santiago & maia - entre o mercado e o forum

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Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Entre o Mercado e o Fórum: o debate anti-tabagismo na cena midiática Daniela Santiago 1 Uni-BH [email protected] Rousiley C. M. Maia 2 Universidade Federal de Minas Gerais [email protected] Resumo: Este artigo tem como propósito abordar a inter-relação existente entre os complexos empresariais internacionais e as esferas públicas de sociedades democráticas específicas. Para tanto, investiga- se o debate público, na cena midiática, em torno da problemática do fumo – motivado pela tramitação da Lei Antitabagista (Lei no 10.167/00) – , procurando compreender de que forma o cenário mais amplo das discussões de interesse público motivou adequações e limites aos planos mercadológicos da empresa. A quase interdição do processo de construção de marcas pela lei tem impacto direto na mediação simbólica entre a empresa e seus públicos, além de alterar o perfil de concorrência e atuação no mercado. Busca-se investigar, de modo particular, o modo pelo qual a empresa Souza Cruz dialogou com os demais atores sociais, num cenário de grandes adversidades, revestindo suas práticas de elementos discursivos que lhe permitiam legitimar-se frente a demandas políticas, éticas e morais, que transcendem, em muito, o domínio estrito da racionalidade econômica. Palavras-chave: debate público; esfera pública; propaganda; tabagismo Abstract: This article has the purpose of approaching the existent interrelation between the international managerial compounds and the public spheres of specific democratic societies. For such, public debate is investigated, in the mediatic scene, regarding the problem of tobacco– spurred by the processing of the Anti-tobacco Law (Law in the 10.167/00)–, attempting to understand those forms in the widest scenery of the discussions of public interest which motivated adaptations and limits to the marketing plans of the company. The quasi 1 Daniela Santiago é mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e professora do Departamento de Ciências da Comunicação do Uni-BH. 2 Rousiley C. M. Maia é doutora em Ciência Política pela University of Nottingham e professora do Departamento Social da UFMG.

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  • Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    Entre o Mercado e o Frum: o debate anti-tabagismo

    na cena miditica

    Daniela Santiago1 Uni-BH

    [email protected] Rousiley C. M. Maia 2

    Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

    Resumo: Este artigo tem como propsito abordar a inter-relao existente entre os complexos empresariais internacionais e as esferas pblicas de sociedades democrticas especficas. Para tanto, investiga-se o debate pblico, na cena miditica, em torno da problemtica do fumo motivado pela tramitao da Lei Antitabagista (Lei no 10.167/00) , procurando compreender de que forma o cenrio mais amplo das discusses de interesse pblico motivou adequaes e limites aos planos mercadolgicos da empresa. A quase interdio do processo de construo de marcas pela lei tem impacto direto na mediao simblica entre a empresa e seus pblicos, alm de alterar o perfil de concorrncia e atuao no mercado. Busca-se investigar, de modo particular, o modo pelo qual a empresa Souza Cruz dialogou com os demais atores sociais, num cenrio de grandes adversidades, revestindo suas prticas de elementos discursivos que lhe permitiam legitimar-se frente a demandas polticas, ticas e morais, que transcendem, em muito, o domnio estrito da racionalidade econmica.

    Palavras-chave: debate pblico; esfera pblica; propaganda; tabagismo

    Abstract: This article has the purpose of approaching the existent interrelation between the international managerial compounds and the public spheres of specific democratic societies. For such, public debate is investigated, in the mediatic scene, regarding the problem of tobaccospurred by the processing of the Anti-tobacco Law (Law in the 10.167/00), attempting to understand those forms in the widest scenery of the discussions of public interest which motivated adaptations and limits to the marketing plans of the company. The quasi

    1 Daniela Santiago mestre em Comunicao Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e professora do Departamento de Cincias da Comunicao do Uni-BH. 2 Rousiley C. M. Maia doutora em Cincia Poltica pela University of Nottingham e professora do Departamento Social da UFMG.

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 2/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    interdiction of the process of construction of marks for the law has direct impact in the symbolic mediation between the company and its publics, besides altering the competition profile and performance in the market. We seek to investigate, the way on behalf of which the Souza Cruz company dialogued, with the other social actors, in a private way, in a scenery of great adversities, covering up its practices of discursive elements which allowed legalizing in face of political, ethical demands, and its existence, transcending, on the whole, the strict domain of the economical rationality.

    Key words: public debate; public sphere; advertisement; tobacco

    Rsum: Le propos de cet article est daborder linterface existante entre les complexes dentreprises internationales et la sphre publique des socits dmocratiques spcifiques. Pour cela, le dbat public est analys, dans les mdias, autour de la problmatique du tabac motiv par la votation de la Loi Antitabac (Loi no. 10.167/00) dans le dessein de comprendre de quelle manire le scnario des discussions dintrt public le plus vaste, dclencha des adquations et des limites dans les prospections de march des entreprises. La quasi-interdiction par la loi du procs de cration de marques a un impact direct sur la mdiation symbolique entre lentreprise et ses publics et de surcrot, elle modifie le profil de la concurrence et lactivit du march. Linvestigation, de manire particulire, se focalise sur la faon par laquelle lentreprise Souza Cruz tablit un dialogue avec tous les acteurs sociaux, dans un scnario de grandes adversits en parant ses pratiques dlments discursifs qui lui certifiaient sa lgitimit face aux demandes politiques, thiques et morales, en transcendant davantage, le strict domaine de la rationalit conomique.

    Mots-cls: dbat public, sphre publique, publicit, tabac

    Resumen: Este artculo tiene por objeto acercarse a la interrelacin existente entre los compuestos directivos internacionales y las esferas pblicas de sociedades democrticas especficas. Por este motivo, el debate pblico se investiga, en la escena meditica, con respecto al problema causado por el tabaco en lo que va a la Ley Anti-tabaco ( Ley 10.167/00) , intentando entender esas formas en la esfera ms amplia de las discusiones de inters pblico que motiv adaptaciones y lmites a los planes del mercadeo de la compaa. La casi interdiccin del proceso de construccin de marcas para la ley tiene impacto directo en la mediacin simblica entre la compaa y sus pblicos, adems de alterar el perfil de la competicin y actuacin en el mercado. Nosotros buscamos investigar, la manera en que la compaa Souza y Cruz dialog, con los otros actores sociales, de una manera privada, en un paisaje de grandes adversidades, las que cubre sus prcticas de elementos discursivos que permitieron legalizar ante las demandas polticas, ticas, y su existencia, transcendiendo, en general, el dominio estricto de la racionalidad econmica.

    Palabras claves: Debate pblico; esfera pblica; propaganda, tabaco

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 3/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    Nas sociedades complexas contemporneas, a mdia pode ser entendida

    como uma instncia em que boa parte das controvrsias pblicas se

    desenvolve. Enquanto aparato tcnico, os meios de comunicao

    proporcionam um espao de visibilidade em que imagens, proferimentos,

    aes e eventos tornam-se disponveis para o conhecimento comum, de modo

    pblico, compartilhado e socialmente acessvel, como Dewey (1927)

    escreveu. Em estudos sobre comunicao poltica, o papel que os meios de

    comunicao desempenham como frum de debate cvico arena de disputa

    de interesse e de troca de razes mediando o Estado e os cidados, e tambm

    entre esses vem despertando crescente interesse (Meyer, 1995;

    Klandermans e Goslinga, 1996; Page,1996; Camaur, 2000; Norris, 2000;

    Reese et al. 2003). Os agentes da mdia editam e enquadram as vozes dos

    agentes sociais, atravs de modos operatrios prprios, produzindo o

    cruzamento de discursos advindos de diversos setores sociais (Entman, 1993;

    Curran, 2001; Gomes, 2004; McCombs e Ghanem, 2003). Aquilo que

    tornado pblico pela mdia atinge uma audincia ilimitada, espao-

    temporalmente dispersa, e promove mltiplos caminhos para a conversao

    cvica

    Polticos e porta-vozes de determinadas causas, bem como atores da

    sociedade civil empreendem uma luta por visibilidade, a fim de influenciar a

    publicizao dos eventos pelos agentes da mdia, buscando controlar as

    percepes que os cidados tm de questes de interesse coletivo (Gamson,

    1992; Ryan, 1991; MacAdam, 1996; Plot, 1999; Pan e Kosicki, 2003). Por

    certo, o acesso desses atores aos meios de comunicao fortemente regulado

    pelos profissionais da mdia, seguindo rotinas produtivas e padres

    empresariais configurados pelos imperativos de lucro do mercado, na maioria

    dos casos. Alm disso, os atores sociais tm recursos altamente diferenciados

    para transacionar com os agentes da mdia, seja em termos organizacionais e

    econmicos, seja em termos de recursos simblicos, de prestgio e

    notoriedade. Contudo, o fator publicidade proporciona restries

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 4/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    transposio direta do poder econmico de grandes empresas para formas de

    poder poltico, capaz de fazer valer os interesses especficos das corporaes

    em detrimento da vontade ou das necessidades mais amplas da sociedade.

    Autores deliberacionistas vm defendendo que a complexidade da

    sociedade contempornea no impede processos coletivos de debate. Ao lado

    da coordenao sistmica e da ao de especialistas, a participao de pblicos

    crticos da sociedade civil em debates pblicos amplia a base de

    conhecimentos para o processamento coletivo e contnuo de problemas, e

    proporciona, tambm, maior legitimidade para as decises das instncias

    estatais (Bohman, 2000; Drysek, 2002; Habermas, 1997). Nesse processo,

    destaca-se a importncia do intercmbio permanente entre as esferas pblicas

    formais e informais na deliberao, principalmente para corrigir as presses

    de fontes no democrticas de poder sobre as tomadas de deciso

    institucional. Assim sendo, fundamental que o debate torne-se mais amplo

    possvel nas sociedades complexas, inclusive, atravs da visibilidade

    proporcionada pela mdia massiva.

    Neste artigo, pretende-se evidenciar que o poder dos centros decisrios

    do sistema poltico, face aos complexos empresariais, se torna mais slido

    quando sustentado por pblicos crticos na periferia do sistema poltico. A

    partir de tal perspectiva, pretende-se apreciar a experincia vivenciada pelas

    empresas tabagistas diante de legislaes anti-tabagistas, particularmente a

    lei nmero 10.167/00 sancionada em dezembro de 2000, que define limites

    para as estratgias mercadolgicas das empresas. A produo, a

    comercializao e o consumo do cigarro compreendem questes controversas,

    com implicaes muitas vezes ticas e morais que extrapolam os domnios de

    relevncia exclusiva da esfera convencionalmente considerada econmica.

    Assim sendo, o interesse particular, neste artigo, examinar o embate

    discursivo sobre a legislao anti-fumo interno cena miditica, identificando

    os argumentos que ganham visibilidade, as principais estratgias discursivas

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 5/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    utilizadas pelos atores sociais no espao da mdia, bem como o modo pelo qual

    a prpria mdia construiu seus enquadramentos discursivos no cenrio

    nacional.

    Nesse sentido, entendemos que o frum de debates promovido pelos

    meios de comunicao um entre vrios outros espaos discursivos sobre

    determinados temas existentes nas sociedades democrticas (Blumer e

    Gurevitch, 2000; Norris, 2000; Reese et al. 2003). Contudo, o espao da

    mdia dispe de amplo poder de publicidade, uma vez que dirigido a um

    pblico abrangente, incluindo potencialmente todos os cidados. Tal

    caracterstica impe modificaes importantes dinmica argumentativa. No

    espao de visibilidade miditica, os discursos interagem de forma complexa,

    formando uma rede difusa de discursos. Isso porque os agentes da mdia

    promovem a mediao de instituies e esferas distintas, de modo que um

    grande nmero de consideraes que correspondem a diferentes esferas de

    validade, bem como a diferentes posies de interesse e valor vm a pblico

    (Page, 1996; Maia, 2004; Bohman, 1999, 2000).

    De tal sorte, partimos da premissa de que existe um potencial pblico

    para a razo na cena miditica e mltiplos agentes podem dar voz a um

    espectro diverso de razes pblicas, de modos distintos e com graus variados

    na articulao de seus discursos: alguns salientam questes de eficcia,

    outros, questes de bem viver, ticas e morais. Nesse mbito, o interesse

    especfico do artigo buscar entender como as companhias produtoras de

    cigarro dialogam com outros atores sociais participantes do debate sobre o

    fumo, na cena miditica, detectando o seu posicionamento diante do produto

    que comercializa e as tentativas de legitimar seus posicionamentos

    argumentativos frente aos demais.

    Para cumprir tais propsitos, elaborou-se uma estratgia analtica

    estruturada em dois planos. Foram examinadas, em primeiro lugar, matrias

    jornalsticas de 3 jornais dirios de circulao nacional Folha de S. Paulo,

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 6/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    Estado de Minas e Jornal do Brasil , no perodo de janeiro de 2000 a

    dezembro de 20013. Este perodo compreende: (1) a fase anterior ao envio do

    projeto de lei Cmara dos Deputados; (2) sua tramitao no Congresso

    Nacional, entre os meses de junho e dezembro de 2000 e (3) o perodo

    posterior publicao da Lei no 10.167/00, ocorrida em 27 de dezembro de

    2000, e seus desdobramentos. A partir do material jornalstico, buscou-se

    apreender a estratgia discursiva utilizada pelos principais agenciadores do

    discurso das empresas particularmente a Souza Cruz na polmica em

    torno do fumo. Em segundo lugar, buscou-se detectar o impacto geral do

    debate pblico no projeto de fala da empresa4. Para tanto, os principais

    argumentos apresentados pela Companhia Souza Cruz em seu site na internet

    foram aproximados daqueles defendidos pelos principais interlocutores

    envolvidos pelo debate anti-tabagismo, os quais ganharam visibilidade nas

    matrias veiculadas pela mdia.

    Complexidade, conglomerados transnacionais e controle democrtico

    Tornou-se senso comum afirmar que a ordem mundial atual mais

    aberta, complexa, incerta, diversa, interconectada e passvel de desencadear

    riscos que qualquer poca anterior sendo este um repertrio comum

    utilizado nos discursos sobre a globalizao. preciso ressaltar, contudo, que

    a prpria noo de globalizao - embora muito utilizada em discursos

    acadmicos e populares - extremamente vaga e ambgua (Giddens, 2001;

    Schmalz-Bruns, 2001; Guibernau, 2001). Pode-se falar de uma globalizao

    econmica, ao fazer referncia a transaes econmicas que se movimentam

    num nvel nunca antes atingido, com a acelerao de mercados financeiros e a 3 Das matrias sobre a temtica do tabagismo veiculadas nos jornais selecionados, foi selecionado um corpus composto por 266 matrias que tratavam de um embate argumentativo explcito. 4 Projeto de fala refere-se, neste contexto, no s competncia comunicativa dos sujeitos falantes a responsabilidade e a capacidade de organizar enunciados como tambm s estratgias utilizadas para alcanar certos objetivos comunicativos, tais como factivo, informativo, persuasivo e sedutor (Charaudeau, 1996)

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 7/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    influncia de empresas transnacionais por meio de cadeias de produo

    mundiais, que afetam, de modo imediato e mediato, as economias nacionais.

    Nesse mbito, a noo de globalizao pode referir-se, tambm, formao da

    economia global, que no se deixa regular por qualquer domnio especfico, na

    medida em que os circuitos financeiros se tornam autnomos e se desdobram

    segundo uma dinmica prpria. Contudo, a globalizao econmica no pode

    ser apreendida como uma imagem esttica, de uma poltica de mltiplas

    camadas dentro de uma organizao mundial, como alerta Habermas (2000,

    p.139), mas, sim, mediante uma imagem dinmica das interferncias e

    interaes entre os processos polticos que se desenvolvem de modo peculiar

    nos mbitos nacional, internacional e global.

    A Companhia Souza Cruz lder absoluta no mercado de cigarros no

    Brasil, e subsidiria do segundo maior conglomerado tabagista do mundo, a

    British American Tocacco (BAT), com participao no mercado mundial de

    14,6%. Com mais de 3000 marcas em seu portiflio, a empresa atinge todas as

    partes do mundo e lder de mercado em 50 dos 180 mercados em que atua5.

    O conglomerado possui 85 fbricas em 66 pases, empregando mais de 85 mil

    pessoas. Em seu site na Internet6, a BAT afirma gerar mais de 100 mil

    empregos indiretos, sendo que os impostos relativos ao cigarro correspondem

    maior parte das receitas governamentais em quase todos os pases. No

    Brasil, a participao chega a 6% do total da receita do Estado.

    A BAT estrategicamente planejada para atuar no mercado global.

    Desde sua criao contou com um perfil internacional, operando fora tanto da

    Gr-Bretanha quanto dos Estados Unidos. A cadeia de produo e distribuio

    encontra-se tecnicamente fragmentada e as foras produtivas bsicas

    5 A atuao da BAT encontra-se dividida em 5 regies: America-Pacific (Canad, Estados Unidos, Japo e Coria do Sul); Asia-Pacific (China, sul da sia incluindo ndia, sudeste da sia e Austrlia), Latin Amrica and Caribean (paises da Amrica do Sul, Mxico, Amrica Central e Caribe), Europe (compreendendo mais de 40 pases) e frica and Middle East. 6 http://www.bat.com. Acesso em 10/07/2003.

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 8/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    compreendendo capital, tecnologia e fora de trabalho mostram-se

    dispersas num plano transnacional, ultrapassando fronteiras geogrficas,

    histricas e culturais (Ianni, 1999; Santos, 2001). No obstante, todo o

    processo de gesto encontra-se integrado por um sofisticado planejamento

    coorporativo, ou seja, as aes de logstica desenvolvidas localmente so

    articuladas como parte de um processo conjunto de ganhos globais. Nas

    palavras de Milton Santos, trata-se de uma unidade poltica de comando, que

    funciona no interior das firmas e no uma mera unidade de gerncia do

    mercado global: cada empresa comanda as respectivas operaes dentro da

    sua respectiva topografia, isto , do conjunto de lugares de sua ao (Santos,

    2001, p.27). De tal sorte, o conglomerado e as empresas podem decidir

    estrategicamente sobre zonas de atuao, levando em considerao fatores

    como custo de matria prima e mo de obra, facilidades de infra-estrutura,

    questo fiscal, entre outros. As vantagens competitivas so cuidadosamente

    planejadas no nvel nacional, regional e mundial.

    Nesse cenrio, muitos autores se mostram cticos com a possibilidade

    da deliberao pblica, do uso da razo em pblico vir a se impor frente ao

    poderio econmico de conglomerados transnacionais (Leader, 2001). Alguns

    crticos tendem a defender que os complexos transnacionais, conforme

    estruturados na fase atual da globalizao, no seriam capazes de sobrepor-se

    aos complexos estatais (Streeck apub Schmalz-Bruns, 2001; Chesneaux,

    1995). A empresa global, em virtude de seu poder, poderia preocupar-se,

    simplesmente, com a boa articulao de sua poltica mercadolgica, sem

    necessitar dialogar com outros domnios sociais, exceto quando estes lhe

    fossem teis na estruturao de suas aes estratgicas. Outros crticos tratam

    a sintonia entre os sistemas e os sub-sistemas do mercado como um problema

    de coordenao funcional, e, assim, tendem a expurgar a dimenso moral e

    tica das regulamentaes (Zolo, 1992). Seria esse um processo de

    coordenao s cegas, exterior ordem normativa estabelecida e negociada no

    plano cotidiano da vida social.

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 9/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    Apesar de tal ceticismo, nossa premissa a de que o debate pblico, e

    o intercmbio de razes em pblico (Cohen, 1997), pode ser direcionado

    para soluo de problemas complexos que afetam de modos distintos os atores

    sociais e que, para serem resolvidos, requerem a cooperao entre eles,

    fazendo emergir novas atitudes e orientaes polticas, e, tambm, novas

    relaes entre os cidados e as instituies de uma dada sociedade. Nesse

    esteio, interessa-nos observar a inter-relao existente entre os complexos

    empresariais internacionais e as esferas pblicas de sociedades democrticas

    especficas. Como apontado, buscaremos abordar, no caso do debate anti-

    tabagismo na cena miditica, o modo pelo qual os atores econmicos, muito

    mais que lidarem com suas estratgias produtivas e mercadolgicas, so

    obrigados a revestir tais prticas de elementos discursivos que lhes permitam

    legitimar-se face s demandas ticas, polticas e sociais, que transcendem, em

    muito, o domnio estrito da racionalidade econmica.

    A lei 10.167/00 e a interdio do projeto de fala empresarial

    O projeto de construo de marcas enquanto a identidade que se quer

    dar mercadoria, e sua divulgao atravs de propagandas publicitrias

    um dos pilares fundamentais da estratgia mercadolgica das empresas

    globais. As marcas so mediadores simblicos importantes entre a empresa e

    seus pblicos (Zozzoli, 1998, p. 56; Klein, 2002, p.141). Elas possuem a

    capacidade de integrar as aes produtivas descentradas das empresas

    globais, alm de alterar o perfil de concorrncia e a atuao no mercado

    (Santos, 2001, p.49). Face a este papel primordial desempenhado pela marca,

    em especial na atual fase da globalizao, seria possvel uma empresa

    permanecer ou crescer no mercado, principalmente no de consumo de massa,

    sem o recurso da propaganda?

    Esta a pergunta fundamental que as empresas de cigarro tm o

    desafio de responder, frente ao crescente nmero de legislaes anti-fumo,

    que tm imposto diversas limitaes aos seus projetos de fala. Em muitos

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 10/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    pases, as empresas tabagistas tiveram seu projeto de construo de marca

    quase totalmente interditado. No Brasil, desde dezembro de 2000, as

    companhias de cigarro podem somente utilizar-se da propaganda nos pontos

    de venda. Campanha em qualquer meio de comunicao, patrocnio,

    merchandising, promoo, enfim, todos os mecanismos de divulgao de

    marca foram proibidos pela lei no 10.167/00.

    A nosso ver, tal limitao no pode ser simplesmente qualificada como

    uma adversidade qual a empresa pudesse responder unicamente

    mobilizando uma estratgia tecno-eficiente, a fim de alcanar suas metas com

    sucesso no campo mercadolgico. As legislaes so frutos da

    institucionalizao do debate pblico sobre o cigarro, que mobiliza agentes de

    diferentes esferas e subsistemas, com demandas e interesses diversos. Sobre

    esse contexto, as empresas tm pouco ou nenhum controle. Esta situao se

    configura de modo bastante diverso daquela com a qual as companhias

    usualmente se deparam quando da estruturao de seu modelo produtivo e

    buscam o maior controle possvel sobre as variveis envolvidas, seguindo

    mximas decisrias determinadas para si mesmos em suas reas de atuao.

    No espao pblico, ao invs disso, a presena dos atores articula-se na

    perspectiva do participante. Por conseguinte, o sucesso de um determinado

    interlocutor numa situao de debate no pode ser alcanado de modo

    isolado. O pblico que debate questes de interesse coletivo no o faz a partir

    exclusivamente de sua prpria opinio, mas como participante de uma razo

    pblica (Bohman, 1999; Cohen, 1997). Assim, as proposies apresentadas

    no podem ser racionalizadas apenas sob o aspecto tcnico, pois envolvem

    tambm uma perspectiva moral prtica que impe a exigncia de serem

    compreensveis e potencialmente aceitveis pelos demais parceiros do debate

    os argumentos apresentados, atravs da cooperao dialgica.

    Alm disso, interessa ressaltar, para os propsitos deste trabalho, que a

    vigncia das legislaes antitabagismo em diversos pases, dentre eles o Brasil,

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 11/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    no deve ser vista como resultado apenas da ao do Estado sobre o mercado.

    No se trata de ignorar que a imposio de normas jurdicas obviamente

    uma prerrogativa do Estado constitucional, parte do conjunto de suas funes

    de organizao e execuo da lei. O Estado conta com uma aparelhagem que

    inclui instrumentos de poder para aplicar sanes, caso algum ator social no

    corresponda s determinaes presentes no corpo da lei. Entretanto,

    supervalorizar o papel do Estado como agente exclusivo da regulamentao

    acaba produzindo uma perspectiva de exterioridade, de uma instituio que

    age sobre a outra. Tal perspectiva mostra-se insuficiente se atentarmos para o

    fato de que a conservao da eficcia da lei, para alm do curto prazo,

    depender de processos de legitimao em que as regras vm a ser aceitas

    como justas e, em geral, apoiadas por aqueles que dela participam. No a

    forma do direito, enquanto tal, que legitima o exerccio do poder poltico, e,

    sim, a ligao com o direito legitimamente estatudo (Habermas, 1997, p.170).

    Nesse sentido, a legitimidade da lei exige a negociao entre sujeitos

    sociais, dentro do prprio ordenamento do Estado Democrtico, tanto em

    rgos parlamentares e em tribunais quanto em esferas pblicas diversas,

    organizadas de modo informal em torno de temas especficos, que se

    estruturam com diferentes graus de organizao, densidade comunicativa e

    alcance na sociedade. Assim, autores deliberacionistas, preocupados com a

    organizao democrtica das instituies, sustentam que a pretenso de

    legitimidade e de racionalidade dos arranjos legais e respectivas configuraes

    institucionais no podem prescindir da contribuio da sociedade civil

    (Benhabib, 1996; Bohman, 2000, Drysek, 2002).

    Esta uma das teses centrais do modelo de circulao de poder poltico

    (two track-model) desenvolvido por Habermas em Direito e Democracia. A

    sociedade deve contar com instituies plurais, suficientemente flexveis, para

    garantir o processo deliberativo atravs de intercmbios vibrantes entre os

    pblicos e as organizaes democrticas. Em outros termos, o Estado requer

  • www.compos.com.br/e-compos Dezembro de 2005 - 12/32

    Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    constantemente inputs do pblico para que possa detectar problemas sociais e

    disfunes funcionais que se refletem na vida cotidiana; bem como para

    processar problemas que no podem ser resolvidos sem a cooperao do

    pblico de cidados. Para manter a legitimidade nas decises, esses inputs no

    podem ser ignorados pelos agentes administrativos do prprio Estado e nem

    por especialistas envolvidos na implementao de polticas pblicas. Para

    produzir opinio qualificada e racionalizada, o pblico, por sua vez, no pode

    formar-se sem os mtodos e os limites das instituies democrticas. Como

    Bohman prope,

    A cooperao democrtica mais exigente que a mera obedincia, requerida em formas super-complexas de organizao e de integrao social. Nesses sistemas extremante complexos que requerem alto grau de obedincia, eles tornam-se vulnerveis para serem organizados pelos atores pblicos que reabrem o quadro da deliberao sobre certos problemas e sobre as solues tcnicas correntes (Bohman, 2000, p.192).

    Nesse sentido, o debate antitagista estendeu-se a muitos contextos

    diferentes, perpassando o mbito transnacional e seguindo uma dinmica

    prpria no cenrio nacional. Tal debate incluiu segmentos variados da

    sociedade, em fruns de discusso diversos, com maior ou menor grau de

    organizao, desde fruns cientficos encontros promovidos pela OMS, pelo

    Ministrio da Sade, Instituto Nacional do Cncer, envolvendo especialistas

    tanto da rea de sade como da rea jurdica at encontros promovidos por

    associaes como Centro de Apoio ao Tabagista e grupos de auto-ajuda em

    que os indivduos afetados, procurando livrar-se do vcio, compartilham suas

    vivncias e suas histrias de vida.

    Cabe ressaltar o papel da publicidade nesse processo. Os encontros de

    alcance mundial no s permitem que diversos pases, dentre eles o Brasil,

    discutam planos de ao conjunta face s indstrias fumageiras, como

    tambm contribuem para divulgar conhecimentos que so determinantes do

    posicionamento discursivo de diferentes atores sociais tanto para aqueles

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    que so a favor quanto para aqueles contrrios s legislaes anti-tabagistas7.

    Esses encontros de naturezas distintas produzem insumos que tm

    repercusso direta nas discusses presentes na cena miditica, como

    exploraremos a seguir. Os fruns especializados, tais como os cientficos, so

    fundamentais para o aprofundamento de determinadas questes, codificadas

    em linguagem especializada. J a publicizao dos casos de pessoas

    virtualmente atingidas e suas histrias de vida permitem a tematizao de

    danos e sofrimentos, atravs de uma linguagem existencial que aproxima o

    debate de contextos densos da interao diria.

    Debate mediado e Estratgias discursivas

    O embate argumentativo em torno do cigarro, motivado, em grande

    medida, pela tramitao da Lei Antitabagista no Congresso Nacional, envolveu

    atores sociais diversos, portando diferentes estratgias de convencimento e

    afirmao. Alvo e participante do debate inerente cena miditica, a indstria

    de cigarros esteve durante todo o perodo analisado em posio de

    desvantagem no fluxo concorrente dos campos argumentativos. No espao da

    mdia, poucas vezes as empresas puderam colocar-se como agentes do

    discurso. A srie de denncias que recaram sobre suas atividades e sua

    conduta, seu produto, suas declaraes, colocaram-nas em posio de

    respondentes, cujos argumentos tiveram dificuldade de fazer frente s

    proposies dos demais atores sociais.

    Para entendermos as dificuldades encontradas pelas companhias

    produtoras de cigarros em validarem seus projetos de fala, fundamental

    apresentarmos, ainda que em linhas gerais, pontos importantes do debate

    antitabagismo, travado nas matrias dos jornais analisados. Os

    enquadramentos discursivos que ganharam visibilidade e durabilidade na

    7 A prpria Souza Cruz promoveu encontros em que diversos atores sociais envolvidos na problemtica do fumo puderam apresentar seus posicionamentos discursivos, diante dos quais a empresa organiza seu projeto de fala.

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    cena miditica foram articulados a partir de dois argumentos principais: o

    econmico e o da sade pblica. Os pacotes interpretativos8 assim

    delimitados permitiram aproximar atores sociais diversos que

    compartilhavam posies, compondo um cenrio amplo e complexo de

    disputa discursiva.

    O Argumento Econmico

    O argumento econmico serviu de idia central para dois

    enquadramentos discursivos defendidos pela indstria produtora de cigarros

    e pelos grupos contrrios legislao antitabagista. O primeiro

    enquadramento argumentativo pode ser assim resumido: as aes restritivas

    do Estado contrariam o equilbrio do mercado. Proibir a propaganda de

    derivados do tabaco considerado, nesse ordenamento de sentido, uma ao

    que agride os mecanismos de mercado, os quais incluem, alm da produo e

    da comercializao, a divulgao dos bens.

    A proibio da publicidade dos derivados de tabaco, na opinio da

    Associao Brasileira de Agncias de Publicidade (ABAP) e da Souza Cruz.,

    perturbaria as relaes de concorrncia, dificultando a entrada de novas

    empresas produtoras de cigarros. A impossibilidade de dispor dos

    mecanismos de construo de marca privilegiaria as empresas j existentes,

    que durante um longo perodo puderam investir em branding. Por outro

    lado, o enfraquecimento das marcas facilitaria a expanso do mercado ilegal,

    ao tornar os produtos indiferenciados.

    Ao apresentarem seus argumentos na cena miditica, esses atores

    buscaram deslocar a questo da proibio da publicidade de derivados de

    8Segundo Gamson e Modigliani (1989: 3), o discurso miditico pode ser definido como uma srie de pacotes interpretativos que buscam dar sentido a uma questo. Tais pacotes possuem uma idia central que delimita o campo interpretativo, definindo posies e buscando dar sentido aos eventos relevantes em debate. Sobre enquadramentos na mdia, ver tambm Gamson (1992), Entman (1993), Reese et al (2003).

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    tabaco para um plano mais amplo, alm do simples interesse das agncias e da

    Companhia na preservao dos lucros. A estratgia discursiva da ABAP opta

    por defender o mercado, tanto como um espao concreto de comercializao,

    quanto como um valor que deve ser preservado. Trata-se de uma tentativa de

    adequao do discurso ao plano da esfera pblica, em que os interesses

    coletivos devem ser garantidos. Junto a isso, a ABAP busca desvincular-se,

    publicamente, do peso negativo do fumo e das acusaes que pudessem recair

    sobre as indstrias tabagistas.

    O argumento apresentado pelo vice-presidente da ABAP, Dalton

    Pastore, sintetiza a idia central que articula o enquadramento discursivo

    apresentado pela entidade: No d para vetar s um elo da cadeia de

    produo9. E conclui: a nica novidade ser o fim do surgimento de novas

    empresas de cigarro10.

    A Souza Cruz, por sua vez, utiliza-se de uma estratgia discursiva que

    no nega o papel da propaganda como agenciadora de representaes

    simblicas, mas ressalta a importncia do processo de construo das marcas

    para a garantia da qualidade do produto oferecido ao consumidor. H,

    tambm aqui, a busca por parte do locutor de no ligar a defesa da opinio ao

    interesse exclusivo da empresa, mas ao interesse mais amplo, no caso, a

    preservao da legalidade e da qualidade dos produtos comercializados no

    mercado.

    A estratgia de convencimento proposta pelo ento presidente da

    Companhia Souza Cruz, Flvio Andrade, exemplar: a publicidade no

    aumenta o tamanho do mercado. Ela feita com objetivos competitivos. Ou

    seja, para os consumidores darem preferncia s minhas marcas em

    9PENTEADO, Gilmar. Para entidades, veto no afetar consumo. Folha de So Paulo, So Paulo, 10 ago. 2000. p. C3. 10Ibid.

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    detrimento s do concorrente11. E conclui: Quando eu no puder mais falar

    sobre as minhas marcas, tanto as marcas vendidas legalmente como as

    ilegalmente sero muito parecidas12. Este argumento fundamenta a opinio

    com que Flvio de Andrade pretende convencer o auditrio: A partir do

    momento em que se probe a publicidade, vamos criar condies para

    aumentar a ilegalidade no pas 13.

    O segundo enquadramento discursivo mobilizado em torno de

    argumentos econmicos ressalta o papel da atividade econmica como

    provedora de bem estar para a populao. Com um apelo menos tcnico que o

    do primeiro enquadramento, o campo de significao ligado ao impacto da

    atividade econmica na gerao de progresso social tem um alcance potencial

    maior em relao ao auditrio que se busca convencer. O enquadramento

    argumentativo da gerao de bem estar social bastante pragmtico.

    Podemos resumi-lo da seguinte forma: a atividade industrial gera progresso

    econmico. O crescimento econmico prov novos empregos. Em virtude

    disso, h crescimento de renda da populao, alm da gerao de impostos,

    que daro maior capacidade gerencial ao Estado de prover o bem estar de

    forma ampla. Esse campo argumentativo foi utilizado nas estratgias

    discursivas, por exemplo, da bancada parlamentar contrria Lei

    Antitabagista, alm da Associao Brasileira da Indstria do Fumo

    (ABIFUMO).

    Esse quadro de referncia argumentativo sustenta-se em um cenrio

    bastante condizente com o discurso proposto pela empresa. A indstria 11REIS, Clber Cabral. Contrabando de cigarro cresce. Jornal do Brasil, 20 ago. 2000. p. 12. (Entrevista Flvio de Andrade). 12Ibid. 13Entrevista com Flvio de Andrade publicada no Jornal do Brasil, no domingo, 20 de agosto de 2000. A matria ocupou uma pgina inteira do jornal, no caderno 1. A publicao da entrevista coincide com a votao do Projeto de Lei na Cmara Federal. O grande espao destinado Souza Cruz destoa, quando comparado cobertura do prprio jornal ao longo do perodo analisado e, especialmente, do espao ocupado pela Companhia nas matrias que trataram da questo do fumo, na Folha de S. Paulo e no Estado de Minas.

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    tabagista realmente um dos maiores pagadores de impostos do Brasil. Em

    1999, foram recolhidos, em tributos, cerca de R$ 5,5 bilhes, segundo a

    ABIFUMO. Se considerarmos o fato de a Souza Cruz ser a lder no setor de

    cigarros, com quase 80% de mercado domstico, podemos deduzir o tamanho

    de seu peso econmico. Segundo dados do Relatrio Social 2001 da

    companhia, sua atuao gera quase 5 mil empregos diretos e

    aproximadamente 380 mil indiretos. Cerca de 45 mil famlias de produtores

    de fumo fornecem matria prima para a Souza Cruz. Sem dvida, esses dados

    so bastante significativos e do consistncia s formulaes propostas.

    A defesa do enquadramento da promoo econmica e social um dos

    pilares da estratgia argumentativa da Souza Cruz. Isso particularmente

    evidente no contedo do site da empresa na Internet. No espao destinado

    fala da indstria tabagista, nas matrias analisadas, o enquadramento da

    promoo social poucas vezes acionado diretamente pelo falante. Ao que

    parece, as implicaes de bem estar social gerado pelo impacto econmico

    considerado consensual pela empresa, o que se apresenta, ento, como dado,

    um implcito qualificativo para outros enquadramentos propostos.

    H, entretanto, excees. Uma situao em que a indstria tabagista

    aciona diretamente o enquadramento da promoo econmica e social

    mostrada no polmico estudo realizado pela Philip Morris. Nele, a empresa

    ressalta os benefcios econmicos do cigarro para as finanas pblicas da

    Repblica Tcheca, obtidos pela arrecadao de impostos. At a, nada de novo

    presente na proposio. Entretanto, a gigante americana da indstria do

    tabaco prope um reenquadramento argumentativo: o impacto positivo do

    cigarro ocorreria, tambm, em virtude da economia de gastos na rea da

    sade pela mortalidade precoce14.

    14MORTE de fumante ajuda economia, diz Philip Morris. Folha de S. Paulo, So Paulo, 17 jul. 2001. p. A9.

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    O argumento aciona um terreno polmico, reconhecido pelo porta-voz

    da empresa na Sua, Rme Calvet, ao assumir que o informe pode parecer

    muito chocante15. Sabendo, portanto, do impacto negativo do

    reenquadramento proposto, a Philip Morris apressa-se em justificar-se,

    buscando desvincular o campo de significaes proposto daquele ligado a

    outros valores que no sejam econmicos. Segundo Calvet, o objetivo da

    pesquisa no entrar em uma polmica, mas que ela seja usada como ponto

    de referncia econmico16. O porta-voz da diviso internacional da Philip

    Morris, Robert Kaplan, reitera que o propsito do novo relatrio ser nada

    mais, nada menos que um estudo de impacto econmico17. A opinio que a

    empresa prope no corpo do relatrio, a de que para a economia do Estado a

    morte precoce dos fumantes vantajosa18, uma decorrncia pragmtica do

    reenquadramento argumentativo proposto. Mario Csar Carvalho, no livro O

    Cigarro, reala, por analogia, o absurdo do estudo apresentado pela indstria

    tabagista. Seria algo como medir os ganhos financeiros com a distribuio de

    veneno de rato na merenda escolar das crianas (Carvalho, 2001, p.78). Ao

    contrapor a vantagem econmica ao valor da vida, a empresa transforma esta

    ltima em mercadoria que deve ser tratada numa lgica financeira o que

    evidencia a incapacidade dos mecanismos de regulao sistmica de darem

    conta de domnios que envolvem valores e demandas ticas. Argumentos

    como os relatados que podem, no campo estrito do saber econmico,

    parecer lgicos e pertinentes so totalmente indefensveis quando submetidos

    ao campo discursivo da esfera pblica e suas condies de validao.

    O enquadramento discursivo baseado no argumento econmico no foi

    to forte quanto se poderia pensar, se levssemos em considerao

    unicamente o poderio das empresas produtoras de cigarros. Na cobertura feita

    pelos jornais analisados, em nenhuma das matrias veiculadas o argumento 15Ibid. 16Ibid. 17Ibid. 18Ibid.

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    econmico conseguiu um status de verdade, ou seja, mostrou-se como algo

    que no necessitasse ser questionado. Pelo contrrio, seu poder de

    convencimento no embate argumentativo, em que os locutores buscam a

    adeso do outro apresentando razes e justificativas, foi bastante contestado,

    tendo encontrado, portanto, muita dificuldade em legitimar-se.

    Grupos antitabagismo mobilizaram contra-argumentos que ressaltam

    os custos do cigarro para o sistema de sade, derivados de doenas

    relacionadas ao fumo. Os defensores da legislao antitabagista buscam

    convencer o auditrio de que, mesmo considerado o grande volume de

    impostos gerado pelo cigarro, o prejuzo para o sistema de sade e as perdas

    de produtividade no trabalho provocadas pelo fumo so enormes. Tal

    reenquadramento, organizado dentro prpria lgica econmica, atinge

    diretamente o argumento da promoo social e econmica, uma vez que

    refutam-se as alegadas vantagens tributrias das empresas e as riquezas

    assim geradas para o pas. Os militantes antifumo apresentam valores

    expressivos para evidenciar que as despesas para o Estado so maiores que os

    ganhos19.

    A situao no Brasil pode ser mensurada a partir da matria do dia 27

    de junho de 2000, veiculada na Folha de S. Paulo: segundo estimativa

    publicada pela Folha, foram gastos no ano passado R$ 3,43 bilhes do

    dinheiro do contribuinte com problemas de sade e outros gastos provocados

    pelo fumo. No mesmo perodo, o governo teria arrecadado R$ 2,18 bilhes em

    impostos sobre esses produtos.20A fala do deputado Jutahy Magalhes Jnior

    (PSDB-BA), na matria publicada no jornal Folha de S. Paulo, aponta esse

    nus para as finanas do Estado, como contraponto ao argumento do custo

    19 Um exemplo a pesquisa divulgada pelo Ministrio da Sade dos EUA, em 1985, que estimava o custo total do cigarro para a sociedade americana em torno de US$ 65 bilhes. Segundo a pesquisa, para cobrir o gasto com a sade, o mao teria de custar praticamente o dobro do preo mdio corrente. 20SALOMON, Marta. Lobby pode impedir proibio de propaganda. Folha de So Paulo, So Paulo, 27 jun. 2000. p. C1.

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    econmico da lei apresentado pela bancada ruralista do Rio Grande do Sul.

    Em dois a trs anos, a economia para o SUS (Sistema nico de Sade) ser

    de R$ 2 bilhes a R$ 3 bilhes21. Ao desqualificar o argumento da gerao de

    riqueza, desqualifica-se um dos pilares da estratgia argumentativa defendida

    por empresas tabagistas e os grupos sociais interessados na no aprovao da

    lei, apresentada tanto nas discusses no Parlamento quanto no embate

    discursivo mais amplo.

    Essa contra-argumentao, de contedo tcnico e baseado na lgica do

    mercado, evidencia ainda que a fora que move o mercado a do consumo e

    que este no imutvel. Se h diminuio de demanda por um produto, esta

    ser deslocada para outro bem. Desta forma, a arrecadao tributria

    preservada, no havendo a necessidade de particularizar ou privilegiar

    determinado ramo produtivo. A afirmativa do ento ministro da Sade

    resume bem esse enquadramento argumentativo: Serra considera imbecil o

    argumento de que o cigarro no deva ser combatido porque propicia a

    arrecadao de bilhes de reais. O dinheiro que seria usado para comprar

    cigarros ser gasto em outros produtos, que tambm recolhem impostos, diz o

    ministro 22.

    Alm disso, os grupos antitabagismo buscaram ressaltar incoerncias

    entre o discurso pblico das empresas e as evidncias de prticas ilegais

    cometidas pelas mesmas. A fora desse enquadramento discursivo est

    principalmente no fato de atingir o carter da indstria tabagista, sua

    qualidade de agente social dotado de credibilidade. A fonte principal das

    denncias de irregularidade nas prticas relacionadas produo e

    comercializao dos derivados de tabaco provm, principalmente, de

    documentos secretos das empresas, levados a pblico a partir dos anos 90.

    21OLIVEIRA, Valria de. Cmara aprova veto publicidade de tabaco. Folha de S. Paulo, So Paulo, 10 ago. 2000. p. C1. 22CONTI, Mario Sergio. Governo inicia guerra contra a propaganda de cigarros. Folha de So Paulo, So Paulo, 04 jun. 2000. p. C4.

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    Denncias de envolvimento em atividades do mercado ilegal de

    cigarros, de manipulao gentica para produo de nicotina super potente,

    ocultao de informaes relevantes para a sade do consumidor, como

    aquelas relacionadas dependncia e relao causal entre fumo e cncer,

    comprometeram o projeto de fala das empresas, com a fora devastadora da

    prpria letra. As incoerncias entre o discurso pblico da empresa tabagista e

    as evidncias de prticas ilegais acabam por deslegitimar a sua fala, ao

    comprometer uma das condies fundamentais do discurso, isto , a

    pretenso de veracidade (Habermas, 1989) . Os grupos antitabagismo visam,

    dessa forma, desenvolver uma estratgia argumentativa que desqualifica a

    atividade produtiva, no por ela mesma, j que legal, mas pelo seu efeito

    (vcio/dependncia) e pela identidade e carter de quem a pratica (demanda

    tico/moral).

    O Argumento da Sade Pblica

    O segundo pacote interpretativo presente no frum concorrente de

    debate nos jornais foi o argumento da sade pblica. Defendido pelos grupos

    favorveis s polticas pblicas restritivas ao fumo, os enquadramentos

    decorrentes dessa base argumentativa destacam aspectos mdico-biolgicos e

    comportamentais. H uma relao intensa entre esse campo de sentido e os

    aspectos econmicos que ressaltam o nus do cigarro para o Estado.

    Nesse campo destacam-se, na cobertura dos jornais, entidades como a

    Organizao Mundial de Sade (OMS), o Ministrio da Sade, o Instituto

    Nacional do Cncer (INCA), alm de especialistas e de outras instituies da

    rea de sade. Tais instituies e atores sociais compartilham de posies e

    estratgias discursivas muito semelhantes. Eles utilizam preferencialmente o

    discurso cientfico e, portanto, buscam situar-se mais prximos do campo da

    demonstrao como modo de convencimento, valendo-se de dados

    estatsticos, em resultados de pesquisas cientficas.

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    Essas pesquisas foram largamente noticiadas pelos jornais analisados,

    sendo que os dados sobre os males causados pelo cigarro ao organismo do

    fumante mostram-se contundentes o suficiente para justificar a relevncia das

    reivindicaes apresentadas pelos grupos e entidades envolvidas no debate

    sobre o antitabagismo:

    A Organizao Mundial de Sade registra mais de 60 mil pesquisas publicadas que comprovam a relao causal entre o uso do cigarro e doenas como cncer de pulmo (90% dos casos), enfisema pulmonar (80%), infarto do miocrdio (25%), bronquite crnica e derrame cerebral (40%).23

    A demonstrao, como estratgia de convencimento dominante, fica evidente

    na citao seguinte:

    H algum tempo, a dependncia da nicotina, principal causa do vcio, vem sendo tratada como doena fsica e psquica. A OMS (Organizao Mundial da Sade) calcula que, em todo o mundo, exista 1,2 bilho de fumantes. Embora 70% manifestem o desejo de parar, apenas 5% conseguem sozinhos. Parece pouco, mas representa 90% dos casos vitoriosos.24

    Questes como dependncia, vcio, fumo passivo e relao direta entre

    tabagismo e doenas srias so tratadas atravs de discursos de especialistas,

    os quais, como sabemos, conseguem um efeito de credibilidade tambm muito

    forte na cena pblica. Afinal, bastante consensual, ainda mais entre os

    leigos, a autoridade da cincia em prover verdades, permitindo transformar

    uma afirmao, ou enunciado, em um fato estabelecido que ningum poder

    questionar, a menos que se oponha a ele um outro enunciado, melhor

    demonstrado. Alm disso, os jornalistas costumam acionar mdicos e diversos

    profissionais da rea de sade com o objetivo de informar, como

    habitualmente concebido o propsito do discurso cientfico. Mas h nas

    afirmaes dos especialistas, muitas vezes, uma finalidade prtica a ser

    atingida: conscientizao e o esclarecimento sobre os males do fumo,

    visando ao convencimento ou persuaso do interlocutor. 23FUMO comea na idade escolar. Folha de S. Paulo, So Paulo, 25 abr. 2000. p. 3-1. 24JORGE, Mariliz Pereira. O fantasma da recada. Folha de S. Paulo, So Paulo, 23 jul. 2000. p. C6.

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    Tal deslocamento da questo do fumo para o domnio mdico e sua

    abordagem como problema de sade pblica, na cena miditica, torna a

    participao da Companhia Souza Cruz bastante difcil nesse domnio. Se no

    debate inerente cena miditica coube Souza Cruz o papel de respondente,

    com pouca possibilidade de afirmao de seus posicionamentos face

    polmica em torno do ato de fumar, o caminho encontrado pela Companhia

    foi buscar apresentar seu projeto de fala em seu site na Internet.

    A estratgia de convencimento sustenta-se basicamente nos valores da

    individualidade e da liberdade de expresso, alm da intensa preocupao em

    demonstrar sua qualidade gerencial e produtiva, somada ao peso econmico e

    social da Companhia, caracterizada como uma multinacional genuinamente

    brasileira. A fim de dar solidez aos atributos identitrios apresentados, o

    discurso do site da Companhia busca responder s acusaes graves que lhe

    so endereadas no domnio pblico. Dois pontos so fundamentais em sua

    estratgia discursiva: a definio do fumante como indivduo enquanto

    singularidade e no-repetibilidade e a defesa do conceito do consumidor

    racional.

    O foco na particularidade de cada pessoa serve para compor a

    estratgia de esvaziamento do potencial de causalidade das pesquisas

    cientficas sobre males do fumo. O discurso do site no nega a relao entre

    fumo e doenas graves, mas faz a importante ressalva de que os estudos

    cientficos so estatsticos, ou seja, referem-se a grupos de pessoas e no a

    indivduos isoladamente: os estudos estatsticos no so capazes de

    identificar o que ir acontecer a uma determinada pessoa, e a cincia ainda

    no capaz de determinar quais fumantes iro adoecer ou no25. Atravs

    desse procedimento retrico, a empresa pretende desvincular do ato de fumar

    a idia de causalidade direta em relao s doenas graves quando se trata do

    indivduo, do consumidor, isoladamente.

    25 Disponvel em: . Acesso em: 17/07/2003.

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    Outra caracterstica atribuda pelo discurso do site ao consumidor da

    Souza Cruz sua capacidade de tomar decises conscientes. Ele seria dotado

    de intencionalidade, ou seja, seria capaz de agir de forma racional, pois,

    segundo o discurso da empresa, possui informao suficiente e sabe como

    bem articular suas aes para que sejam refletidas, e no impulsivas.

    exatamente para dar consistncia a essa concepo racional do fumante que a

    Souza Cruz define seu pblico-alvo como sendo formado por adultos bem

    informados e capazes de bem dosar seu consumo de cigarros, estabelecendo o

    equilbrio entre o prazer e o risco. A Souza Cruz fabrica cigarros para o

    consumo exclusivo de adultos [...]26. E, reafirma, O cigarro um produto

    que no deve ser consumido de forma inconseqente, e sim apreciado com

    bom senso e razo, por pessoas adultas e bem informadas27.

    Apesar de o discurso da empresa atribuir aos posicionamentos

    assumidos um tom de fechamento, como se a argumentao apresentada fosse

    suficiente para encerrar a polmica, isso est longe de acontecer. Excetuando

    apenas a capacidade gerencial da Souza Cruz, as respostas e os

    esclarecimentos foram e so questionados pelos diversos grupos e entidades

    presentes no debate sobre os males causados pelo cigarro.

    Concluso

    Na medida em que as empresas tm suas prticas questionadas por

    setores variados da sociedade, elas sofrero resistncias que no so advindas

    do campo mercadolgico. As questes tematizadas nos espaos pblicos

    exercem presses sobre os centros decisrios do Estados democrticos, sendo,

    muitas vezes, encampadas pelos complexos parlamentares ou pelos tribunais.

    Podem, portanto, resultar em normas jurdicas com larga base de

    legitimidade, alm de gerar inovaes culturais e institucionais mais amplas.

    O envolvimento de setores da sociedade civil e a densa problematizao da

    26 Ibid. 27 Ibid.

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    questo do fumo pelos mdia permitiram conferir ao embate argumentativo

    uma dimenso propriamente pblica, distinta da regulao produzida pela

    lgica estrita do mercado ou do Estado. Pouco importa, nesse caso, se as

    demandas tiveram origem na sociedade civil ou nos prprios centros polticos.

    O relevante para produzir legitimidade e garantir maior grau de cooperao

    democrtica entre os atores sociais a possibilidade de os problemas

    detectados passarem pelo crivo de um debate ampliado.

    Nesse sentido, o valor da publicidade deve ser destacado. Ao serem

    convocados a interagir de forma complexa com vrios discursos que esto

    presentes na esfera pblica, os atores sociais sejam os conglomerados

    empresariais (tal como a Souza Cruz), sejam os agentes do Estado ou ainda

    aqueles da sociedade civil percebem que seus projetos de fala no podem ser

    desenvolvidos como se estivessem em contextos isolados, fechados em seus

    prprios crculos de interesse. H sempre uma dinmica de trocas e

    influncias recprocas e construo conjunta de formas interpretativas da

    realidade. De tal sorte, acreditamos que a passagem pela mdia contribui para

    promover a ampliao do debate, com a generalizao das temticas em

    pblico, o que extremamente relevante para o processamento cognitivo e

    coletivo de problemas de interesse comum.

    No espao de concorrncia discursiva dos debates internos cena

    miditica, nem todos os pacotes argumentativos apresentados por atores

    sociais so igualmente potentes. Os campos de sentido defendidos pelos

    militantes antifumo no apenas sofreram pouqussima contestao quanto

    eles prprios proporcionaram diversas informaes que foram utilizadas

    como dados contextuais nas matrias analisadas. O posicionamento favorvel

    dos jornais analisados aos principais campos interpretativos propostos pelos

    grupos antitabagismo foi claramente expresso em diversos editoriais sobre a

    questo28.

    28HORRORES do Cigarro. Folha de S. Paulo, So Paulo, 01 jun. 2001. p. A2.

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    O agenciamento de sentido e os enquadramentos propostos pela mdia

    encontram explicao em diversos fatores presentes no campo extra-

    miditico, como diversos autores sustentam (Meyer, 1995; Klandermans e

    Goslinga, 1996; McAdam, 1996; Pan e Kosicki, 2003). No caso do debate

    bem como a negociao e a barganha envolvidos na questo do fumo

    transcenderam, em muito, os limites dos sub-sistemas funcionais autnomos,

    aparentemente independentes em relao sociedade. O poderio econmico

    dos produtos de cigarros no foi em si condio suficiente para transformar-se

    em poder poltico capaz de influenciar e, no limite, definir as decises nas

    instncias institucionalizadas. possvel dizer que a empresa demonstrou

    competncia em construir seus argumentos na esfera pblica, levando em

    considerao demandas ticas e morais, bem como a busca de entendimento

    baseado no interesse comum recursos procedimentais caractersticos do

    espao pblico. Os atores, protestando contra a legislao antitabagista,

    preocuparam-se, sempre, em desvincular as proposies apresentadas de

    interesses particulares. Procuraram, por exemplo, defender o equilbrio de

    mercado e a promoo econmico social gerados pela atividade empresarial, e

    no a preservao de sua margem de lucro ou de sua base eleitoral, no caso de

    parlamentares que lucravam com o desenvolvimento das empresas

    fumageiras.

    Ao proceder dessa forma, a empresa faz campanha a favor de seus

    interesses, utilizando razes capazes de mobilizar convices racionalmente

    motivadas. O contedo discursivo do site da Souza Cruz seguiu este mesmo

    caminho, ao buscar apresentar a empresa como um ator pblico responsvel,

    que zela pela qualidade de seu produto, tratando de diminuir o ndice de

    substncias danosas no cigarro, e que, alm disso, mostra-se interessado em

    participar do debate sobre o fumo (Santiago, 2003). A preocupao com as

    condies de validao de seu discurso na esfera pblica transparece ainda no

    FUMO Cvico. Folha de S. Paulo, So Paulo, 22 jul. 2001. p. A2.

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    apelo aos valores de expresso e de autonomia de um consumidor racional,

    com liberdade de escolha e capaz de responder, com probidade, pelos seus

    prprios atos valores intrinsecamente associados ao projeto democrtico.

    Contudo, tais habilidades no foram suficientes para reverter o cenrio

    de adversidades enfrentado pela indstria tabagista o qual se expressou

    tambm na cena miditica. A atuao consistente de grupos ligados ao

    movimento antitabagismo no espao pblico foi capaz de articular amplos

    consensos sobre os males causados pelo cigarro. Tais grupos no s

    despontencializaram, i.e, retiraram o poder de convencimento dos

    argumentos apresentados pelos defensores do fumo no prprio campo

    econmico, como tambm reforaram a crise de credibilidade vivenciada pelas

    empresas de cigarros em virtude da publicizao de documentos secretos que

    expuseram aes de bastidores que contradiziam o discurso pblico encetado

    por elas. possvel dizer, assim, que tais atores crticos foram bem sucedidos

    em modificar o contexto em que a deliberao mesma ocorre.

    No caso do Brasil, o cenrio favorvel aos grupos antitabagismo na

    mdia j estava composto desde o incio da intensificao da polmica, por

    ocasio do envio do projeto de lei ao Congresso. Os males causados pelo fumo

    sade, os resultados de pesquisas cientficas, bem como os embates travados

    nos tribunais americanos e ainda o contedo dos documentos secretos j

    vinham sendo amplamente tratados pelos mdia, no pas. Nesse sentido, o

    sucesso do projeto de convencimento dos grupos antitabagismo no Brasil no

    pode ser analisado como um acontecimento limitado ao contexto local. O

    movimento antitabagismo organiza-se em rede no plano transnacional, com o

    propsito de intercambiar experincias e processar regulamentaes

    normativas e jurdicas especficas. Tem, a seu lado, organizaes influentes

    como a Organizao Mundial de Sade, a qual funciona como elemento de

    integrao dos grupos antitabagismo, ao disponibilizar estudos cientficos,

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    diagnsticos e estatsticas a respeito de diversas questes relacionadas ao

    fumo.

    Resta salientar que a aceitao favorvel das opinies apresentadas

    pelos militantes anti-fumo deve-se, ainda, ao fato de os pacotes interpretativos

    ligarem-se de forma direta aos apelos de qualidade de vida e aos pressupostos

    morais presentes na imagem da funo pblica das regulamentaes jurdicas.

    Nesse sentido, as histrias de vida dos fumantes que entraram com aes nos

    Tribunais ou daqueles que expem os males do cigarro no prprio corpo e os

    prejuzos da decorrentes aproximam de modo direto o debate pblico da vida

    cotidiana, com maior permanncia e impacto que as questes tcnicas,

    relativamente abstratas.

    Sob tal aspecto, os limites entre a esfera pblica composto por um

    pblico de pessoas privadas e o mercado mostram-se muitos prximos. Os

    questionamentos pblicos impuseram fissuras na aura glamourizada do

    cigarro e os constrangimentos associados ao ato de fumar comprometeram,

    em muito, o projeto de convencimento desenvolvido pelas empresas

    tabagistas (desenvolvido em seu site, por exemplo). Se considerarmos que as

    empresas no podem mais contar com os instrumentos de comunicao

    mercadolgica, como manter o universo associado ao cigarro sem o recurso

    poltica de branding corporativo?

    Mais que uma inovao institucional, organizada pelos complexos

    parlamentares e jurdicos, as questes presentes no debate antitabagismo

    foram capazes de gerar relevante inovao cultural (Bohman, 1999, 2000;

    Drysek, 2002). As empresas tabagistas esto sujeitas a esse novo cenrio, que

    interfere diretamente nas suas aes mercadolgicas. Mesmo com todo o

    poderio dos complexos transnacionais dos produtores de cigarro, as

    sociedades democrticas impuserem fortes contrapartidas s aes das

    empresas, a partir da mobilizao dos espaos pblicos e dos complexos

    estatais. E para obter sucesso em tal processo, o papel da mdia e a criao de

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    redes comunicativas capazes de sustentar o debate crtico em pblico

    fundamental.

    Fica evidente a relevncia dos mdia para editar e ampliar o debate

    pblico. Apesar de ser um caso especfico, o debate pblico sobre o tabagismo

    e seus resultados tanto em termos jurdicos quanto culturais desafia vises

    cticas, que desconfiam do poder de mobilizao e de resistncia das

    sociedades complexas face aos complexos transnacionais. Esse caso ressalta o

    valor da deliberao e da publicidade, ao evidenciar que a participao dos

    pblicos crticos nos debates sobre questes de interesse comum fortalece o

    papel do Estado face s grandes empresas. Dentro de uma estrutura mais

    dualista e dinmica do sistema poltico, visando uma cooperao constante

    entre as esferas formais e informais, possvel verificar a conquista suficiente

    de poder legtimo no processo deliberativo, com o propsito de alcanar metas

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