são como um cristal, as palavras. algumas, um

8

Upload: antonio-alves

Post on 15-Mar-2016

214 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento. No ar claro nas tardes transparentes Suas sílabas redondas (Ó antigas ó longas Eternas tardes lisas)

TRANSCRIPT

Page 1: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um
Page 2: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um

“ Sei que a poesia não se explica, a poesia implica, como costuma dizer a minha amiga Sophia de Mello Breyner. Sei que a energia, como diz o meu amigo Herberto Hélder, é a essência do mundo e que “os ritmos em que se exprime constituem a forma do mundo”.

Sei, como o poeta russo Mandelstan que “escrever é um acontecimento cósmico”. E que cada palavra é um pedaço do universo. Ou como dizia Klebnikov: “Na natureza da palavra viva, esconde-se a matéria luminosa do universo”. Talvez tudo isto seja a poesia. Ou talvez ela não seja mais do que o primeiro verso, aquele que nos é dado, como sempre dizia Miguel Torga, porque os outros têm de ser conquistados. Talvez tudo esteja nesse primeiro verso, que é o instante da revelação e da relação mágica com o mundo através da palavra poética. Talvez o poeta, afinal, não seja muito diferente daquele sujeito que vemos nas tribos primitivas, de plumas na cabeça, repetindo palavras mágicas enquanto dança e pula ao ritmo de um tambor. O poeta é esse feiticeiro. Dança com as palavras ao som de um ritmo que só ele entende. Ou é talvez o adivinho. (…)

A poesia é, assim, antes de tudo, uma forma de medição. Um presságio do sul, como dizia o meu amigo José Manuel Mendes. Uma encantada, encantatória e desesperada tentativa de captar a essência do mundo e de, através da palavra, “mudar a vida”, como queria Rimbaud. Uma forma de alquimia, que procura o impossível. Ou seja: o verso que não há.

A poesia é também a língua. E para mim a língua começa em Camões, que tinha uma flauta mágica. A música secreta da língua. A arte e o ofício da língua e da linguagem.

(…) O poeta, dizia Cioran, “ é aquele que leva a sério a linguagem”. E o que é levar a sério a linguagem? Eu creio que é estar atento aos sinais. Os sinais mágicos da palavra. Os sinais da essência do mundo que por vezes se revelam na palavra poética. (…) Isto é o que eu sei de poesia. Talvez seja muito pouco. Mas não sei se é possível saber mais.”

Manuel Alegre

Page 3: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um

“Peguem num poema e leiam-no.

Não é preciso mais

nada.”EUGÉNIO DE ANDRADE

Page 4: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um
Page 5: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um

Ser poeta é ser mais alto, é ser maiorDo que os homens! Morder como quem beija!É ser mendigo e dar como quem sejaRei do Reino de Aquém e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendorE não saber sequer que se deseja!É ter cá dentro um astro que flameja,É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito!Por elmo, as manhãs de oiro e cetim…É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente…É seres alma e sangue e vida em mimE dizê-lo cantando a toda a gente! Florbela Espanca in «Poesia Completa»)

Page 6: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um

Orfeu Rebelde Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento. Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas,Violências famintas de ternura. Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga

Page 7: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um
Page 8: São como um cristal,  as palavras.  Algumas, um

O poema me levará no tempoQuando eu já não for euE passarei sozinhaEntre as mãos de quem lê.

O poema alguém o diráÀs searas

Sua passagem se confundiráCom o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitaráO espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentesSuas sílabas redondas(Ó antigas ó longasEternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontraráUma praia onde quebrar as suas ondasE entre quatro paredes densasDe funda e devorada solidãoAlguém seu próprio ser confundiráCom o poema no tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen