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SEGREGAÇÃO ESPACIAL NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE REABILITAÇÃO URBANA: o fenômeno da gentrificação analisado a partir do projeto Porto Maravilha. Ana Beatriz Oliveira Reis* Juliana Pessoa Mulatinho** Marcela Münch de Oliveira e Silva*** Resumo: O objetivo do presente trabalho é demonstrar de que forma as políticas de reabilitação urbana podem se transformar em causas da segregação urbana, ocasionando, especialmente, o fenômeno da gentrificação. Para tanto, esse artigo científico empreende uma análise do projeto Porto Maravilha, aqui entendido como uma ação de reabilitação urbana. Esse exame possui especial relevância uma vez que, a cidade do Rio de Janeiro, vem passando por grandes obras urbanísticas que caracterizam justamente a noção de reabilitação urbana. A partir da pesquisa das ações empreendidas na implementação desse projeto, conclui-se pela existência de uma relação entre a requalificação urbanística empreendida e a ocorrência do fenômeno da gentrificação. A proposta aqui delineada se realiza através de uma perspectiva jurídico-sociológica com viés crítico em uma abordagem dialética contrapondo as s teóricas da reabilitação urbana (OLIVEIRA, 2011) e da segregação espacial (GARNIER, 2013) para analisar o fenômeno da gentrificação (RIGOL, 2004). São utilizadas as técnicas de pesquisa de revisão bibliográfica e análise documental. * Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF ** Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF *** Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF

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Page 1: Segregação Espacial Seminario Ppgsd Uff

SEGREGAÇÃO ESPACIAL NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS DE

REABILITAÇÃO URBANA: o fenômeno da gentrificação analisado a partir

do projeto Porto Maravilha.

Ana Beatriz Oliveira Reis*

Juliana Pessoa Mulatinho**

Marcela Münch de Oliveira e Silva***

Resumo:

O objetivo do presente trabalho é demonstrar de que forma as políticas de reabilitação urbana podem se transformar em causas da segregação urbana, ocasionando, especialmente, o fenômeno da gentrificação. Para tanto, esse artigo científico empreende uma análise do projeto Porto Maravilha, aqui entendido como uma ação de reabilitação urbana. Esse exame possui especial relevância uma vez que, a cidade do Rio de Janeiro, vem passando por grandes obras urbanísticas que caracterizam justamente a noção de reabilitação urbana. A partir da pesquisa das ações empreendidas na implementação desse projeto, conclui-se pela existência de uma relação entre a requalificação urbanística empreendida e a ocorrência do fenômeno da gentrificação. A proposta aqui delineada se realiza através de uma perspectiva jurídico-sociológica com viés crítico em uma abordagem dialética contrapondo as s teóricas da reabilitação urbana (OLIVEIRA, 2011) e da segregação espacial (GARNIER, 2013) para analisar o fenômeno da gentrificação (RIGOL, 2004). São utilizadas as técnicas de pesquisa de revisão bibliográfica e análise documental.

1. Introdução

A reabilitação urbana é um conjunto de intervenções urbanísticas

realizadas através de políticas conjuntas entre o poder público e o setor

privado, com objetivo de renovar os tecidos urbanos que se encontram

degradados a partir da modernização da infraestrutura urbana, promovendo o

potencial dessas áreas para atrair maiores investimentos. Na atualidade, a

cidade do Rio de Janeiro está justamente passando por esse processo, que

* Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF** Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF*** Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – PPGDC/UFF

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pode ser facilmente constatado pela realização de inúmeras intervenções

urbanas através de projetos como o “Porto Maravilha”, que será analisado no

presente trabalho.

Ainda que de forma velada, sob o manto de um discurso de que as

mudanças sociais promovidas pela reabilitação urbana buscam maior coesão

social, através do aumento de oportunidades geradas por novos investimentos

em áreas degradadas ou em vias de degradação, essas políticas têm

intensificado a segregação sócio-espacial.

Esse fenômeno, identificado como gentrificação, se constitui na

“substituição social, reinvestimento econômico e, em geral, mudança de

significado e imagem dessas áreas centrais” (RIGOL, 2004, p. 99), e está

ocorrendo em muitas cidades no mundo sujeitas a intensos processos de

transformação do espaço urbano.

As populações de baixa renda que vivem nessas áreas centrais são

empurradas para a periferia, onde viverão em espaços estigmatizados como

espaços de pobreza, e suas casas dão lugar a novos empreendimentos

voltados para a prestação de serviços e para a habitação de moradores com

maior poder aquisitivo. A reabilitação urbana, portanto, caracteriza uma

estratégia de “liberar o terreno para operações rentáveis e habitantes

solventes” para o contentamento dos exploradores do mercado imobiliário

(GARNIER, 2013).

Na cidade do Rio de Janeiro, a realização do projeto de revitalização da

região portuária, área central historicamente ligada à imagem de degradação,

violência e marginalização, é expressão desse deslocamento da pobreza para

a periferia das cidades. O “Projeto Porto Maravilha” surge em 2009, no bojo de

alterações no espaço urbano voltadas à adequação da cidade ao recebimento

dos mega eventos esportivos internacionais, tendo sido inspirado no Projeto

Puerto Madero, em Buenos Aires. O objetivo, tal qual o era lá: “transformar

uma área tradicional da cidade, porém desvalorizada e precarizada com o

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tempo, em um grande polo de cultura e lazer, com restaurantes, espaços

culturais e museus” (BELLO, 2011, p. 299).

Não há, portanto, uma finalidade social nessa revitalização da zona

portuária, mas, ao contrário, a finalidade de favorecer ao mercado imobiliário,

valorizando áreas a custa de remoções de comunidades, conduzidas pela

Secretaria Municipal de Habitação (SMH) em total desrespeito aos direitos e

garantias, asseguradas ao menos em tese, aos então moradores.

Pretende-se, assim, analisar o discurso hegemônico da reabilitação

urbana demonstrando, através da análise da experiência empírica das

intervenções urbanísticas promovidas no âmbito do projeto Porto Maravilha,

que essas práticas, na verdade, têm acirrado a desigualdade sócio-espacial no

Rio de Janeiro, com a retirada de direitos de boa parte da população que é tida

como um entrave ao avanço deste projeto de desenvolvimento para as

cidades.

Através de uma abordagem dialética, pretende-se evidenciar as

contradições existentes no discurso apresentado pelo estado, pelo mercado e

por muitos profissionais ligados ao urbanismo que afirmam que a reabilitação

urbana, em especial das áreas centrais, tem como objetivo primordial a

promoção de maior coesão social (OLIVEIRA, 2011).

A análise proposta será realizada através de uma perspectiva jurídico-

sociológica com viés crítico em uma abordagem dialética que contrapõe as

categorias teóricas da reabilitação urbana (OLIVEIRA, 2011) e da segregação

espacial (GARNIER, 2013) para analisar o fenômeno da gentrificação (RIGOL,

2004), especialmente aquela verificada no âmbito da implementação do projeto

Porto Maravilha. Serão utilizadas as técnicas de pesquisa de revisão

bibliográfica e análise documental.

2. Descortinando o discurso da reabilitação urbana

A reabilitação urbana é apresentada como uma panaceia urbanística

voltada à recuperação de áreas urbanas degradadas progressivamente, seja

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pelo decorrer do tempo, pelo uso excessivo, ou mesmo pela inadequação de

seu formato a novos modos de vida.

Trata-se, como já dito, de um conjunto de intervenções urbanas, feitas

sob a parceria entre o setor público e privado, com o fim de transformar áreas

esquecidas, recuperando seu prestígio e sua integração ao resto da cidade

através da modernização de sua infraestrutura e da realização de obras

arquitetônicas de grande porte. O objetivo é criar uma nova imagem urbana,

limpa, criativa, a fim de transformá-la numa marca registrada, e especialmente

em um destino turístico (GARNIER, 2013).

Embora o discurso predominante dos defensores dos processos de

reabilitação urbana seja baseado na promoção da coesão social uma vez que

essas áreas passariam a contar com melhor infraestrutura urbana e mais

acesso a serviços antes negligenciados, percebe-se, através da observação de

alguns processos de reabilitação a ocorrência do fenômeno da gentrificação, o

que será abaixo descrito, uma vez que a população histórica dessas áreas

geralmente é forçada a abandonar essas áreas através da remoção direta e da

remoção indireta caracterizada pela excessiva valorização da área.

Conforme observado por GARNIER (2013) a reabilitação urbana,

portanto, caracteriza uma estratégia de “liberar o terreno para operações

rentáveis e habitantes solventes”, ou seja, aquela parcela da sociedade que

pode pagar pelo produto caro que se tornaram as grandes cidades.

Todavia, embora essas ingerências no espaço urbano sejam noticiadas

sob um viés neutro e com uma preocupação única de contribuir para a coesão

social, são, em verdade, fruto de um processo expansivo do capital que, se

num primeiro momento, produz uma desordem espacial com a convivência

entre áreas nutridas de investimento e infraestrutura e áreas renegadas, num

segundo momento quer recuperar algumas dessas áreas para aquecê-las

economicamente, sob o custo da expulsão da antiga população não rentável.

E não é uma exceção, os processos de urbanização costumam colocar-

se de fato como inerentes ao desenvolvimento econômico e ainda como um

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fator de desenvolvimento da cultura, quando se fundamentam nas leis

fundamentais da sociedade em que se inserem, no caso, a ordem capitalista,

que tem como sua face correspondente “o caos urbano”, revestido na forma de

segregação sócio-espacial (GARNIER, 1976).

O resultado dessa reconquista urbana vem repercutindo em diversas

metrópoles na destruição da presença popular nas áreas reabilitadas, e na

perda de identidade criada com esses espaços, num verdadeiro processo de

descivilização (GARNIER, 2013).

Percebe-se que as políticas de reabilitação urbana têm intensificado a

segregação urbana. Essa intensificação acarreta o fenômeno de gentrificação,

analisado em seguida, presente nas cidades que vêm passando por intensos

processos de transformação do espaço urbano, através das políticas de

reabilitação urbanística e que se caracteriza pela “substituição social,

reinvestimento econômico e, em geral, mudança de significado e imagem

dessas áreas centrais” (RIGOL, 2004, p. 99).

3. A produção desigual do espaço urbano e o fenômeno da gentrificação

O contexto do espaço urbano latino-americano é marcado pela

desigualdade e segregação. No sistema de produção capitalista as estruturas

de classe e urbanas dão a tônica dessa desigualdade. A partir de uma análise

mais cuidadosa do espaço urbano é possível perceber que os diferentes

grupos sociais não se distribuem de maneira aleatória na cidade. O mercado,

muitas vezes apoiado pelo poder público, irá submeter o espaço urbano a

constantes rearranjos a fim de garantir o menor gasto com a circulação de

mercadorias e, consequentemente, maiores lucros. Nesse sentido, a aplicação

ou a omissão da legislação urbanística terão papéis fundamentais no

atendimento aos interesses privados do capital.

Mas não só o fator econômico conduz os processos de segregação no

espaço urbano. Fronteiras simbólicas verificadas a partir da análise da vida

cotidiana evidenciam que outros fatores também contribuem para que as

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cidades criem barreiras visíveis e invisíveis às pessoas. Essas fronteiras são

produzidas socialmente e devem ser contextualizadas historicamente através

da observação das paisagens, das rotinas, dos estigmas territoriais e das

significações da cidade.

Na América latina, contudo, percebe-se que a questão social ainda é a

que mais influencia na configuração segregacionista do espaço urbano. Nos

Estados Unidos, por exemplo, a questão racial é muito forte (mesmo que não

possa ser dissociada totalmente da questão econômica). Os chamados

“guetos” são locais nas cidades associados à população negra. No Brasil, a

ocupação dos morros que originaram as favelas se deu, em especial, pela

população de baixa renda, predominantemente antigos escravos

afrodescendentes, mas não exclusivamente. Na capital da Argentina, Buenos

Aires, percebe-se fenômeno semelhante nas áreas onde se localizam os

cortiços, locais habitados pelas classes sociais mais vulneráveis.

Muitas vezes associa-se a segregação somente à questão da

localização. Contudo, além disso, outro componente da segregação é a

questão da mobilidade urbana. A falta de acesso a transportes públicos de

qualidade faz com que a inserção dos jovens da periferia em certas áreas da

cidade seja obstaculizada. Isso evita o convívio entre os diferentes segmentos

sociais contribuindo para acentuar a segregação.

Outra questão importante que evidencia a questão da segregação no

espaço urbano é a distribuição dos serviços e equipamentos urbanos na

cidade. Enquanto certas áreas são dotadas de infra-estrutura urbana, contando

com inúmeros serviços como saúde, educação e lazer bem como acesso a

inúmeras alternativas de transporte público, outras áreas, geralmente

localizadas nas áreas periféricas das cidades sofrem com a escassez e com a

precariedade dos equipamentos urbanos. O acesso ao transporte público de

qualidade é negligenciado, o que torna mais difícil o contato com certos

serviços uma vez que eles, geralmente, se encontram quase que

exclusivamente nas áreas centrais. Tudo isso viola o que José Afonso da Silva

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chama de “princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus da atuação

urbanística” (SILVA, 2010, p.45)

As autoras María Carmane, Neiva Vieira e o e o autor Ramiro Segura

(2013) destacam que podem ser observados quatro tipos de processos de

segregação no espaço urbano na América Latina. O primeiro desses processos

é a segregação silenciada marcada pelo confinamento de alguns segmentos

sociais num determinado espaço. Tem-se como exemplo desse tipo de

segregação os condomínios de luxo da cidade de São Paulo. O outro tipo de

segregação também se relaciona com a segregação silenciada, trata-se da

denominada segregação padrão, que é aquela marcada pelo abandono estatal

de determinada área da cidade.

O terceiro processo de segregação, talvez a que mais interesse para a

reflexão aqui proposta, é a segregação indolente ou positiva, caracterizada

pela expulsão de determinados grupos de certas áreas da cidade com a

finalidade de se obter certa homogeneidade de determinado lugar.

Por fim, o quarto processo de segregação é da segregação agravada no

qual se verifica a difícil permanência de certos segmentos sociais devido a

questões sócio espaciais. Essas questões dificultam a integração de alguns

grupos na cidade em que habita. No Rio de Janeiro é possível perceber que a

especulação imobiliária e a valorização do valor do aluguel de imóveis de

algumas regiões nos últimos anos tem tornado a cidade ainda mais cara e

inacessível para grande parte da população que se vê obrigada a procurar

novas alternativas de habitação, muitas vezes ainda mais distante dos locais

de trabalho e estudo.

Os processos de gentrificação geralmente são antecedidos pela

realização de obras de infraestrutura – em processos geralmente qualificados

como de reabilitação urbana, no sentido já acima descrito - que transformam

uma área historicamente abandonada pelo poder público. Como exemplo, têm-

se os centros históricos das grandes cidades, muitas vezes associados à

marginalidade, à prostituição e ao uso de drogas. Essas áreas, dotadas de

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grande patrimônio histórico-cultural, foram abandonadas pelo poder público no

momento em que o planejamento urbano, num determinado período, passou a

priorizar as áreas industriais através de um zoneamento que separava os

diversos usos do solo. Logo, a população de baixa renda passou a ocupar

essas áreas muitas vezes em condições insalubres de moradia.

Mas nem sempre o fenômeno da gentrificação é antecedido por

processos de reabilitação urbana. Esse fenômeno, com suas devidas

peculiaridades que merecem ser apreciadas com mais cautela por outros

pesquisadores, tem ocorrido nas favelas cariocas localizadas na zona sul ainda

que os poderes públicos e o mercado não invistam em nenhuma obra de

urbanização. Essas áreas têm sido altamente assediadas pelo mercado devido

à localização estratégica na zona sul, perfeita para o recebimento de turistas

sobretudo no contexto da realização dos megaeventos de projeção

internacional. Sendo assim, a supervalorização dos imóveis nessas favelas tem

feito com que muitos moradores vendam suas casas e deixem esses locais

para morar nas áreas periféricas da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Um dos marcos históricos desse fenômeno é a crise iniciada na década

de 70, na qual o capital internacional necessitou pensar e praticar novas formas

de adiamento (não superação!) no momento crítico em que o capitalismo

passava. A solução foi encontrada na reorganização das cidades.

Essa não foi a primeira vez que o planejamento urbano foi usado para

protelar uma crise do sistema capitalista. Harvey (2012) destaca que no século

XIX essa solução já havia sido utilizada pelo arquiteto Haussmann, na cidade

de Paris que sob um novo modelo de planejamento se tornou a “Cidade da

Luz.”. Nos Estados Unidos, após a crise de 29 e a segunda grande guerra

mundial, o poder público passou a investir em obras de urbanização que

culminaram na criação de várias metrópoles. A urbanização teve um papel

fundamental não só no crescimento das cidades, mas também no crescimento

do mercado consumidor. Com esse processo de urbanização criou-se um novo

padrão de consumo, novas necessidades, novos produtos e,

consequentemente, um novo estilo de vida.

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4. O Projeto Porto Maravilha – uma outra versão da história

No intuito de ilustramos as relações entre as ações de reabilitação

urbana e a ocorrência da gentrificação será empreendida a partir de agora a

análise de um das grandes obras pela qual vem passando a cidade do Rio de

Janeiro: o Projeto Porto Maravilha.

O Projeto Porto Maravilha é uma ação de reabilitação urbana da zona

portuária denominada Porto Maravilha, iniciada em 2009 pela Prefeitura do Rio

de Janeiro, que pretende restaurar os cinco milhões de metros quadrados

cercados pelas Avenidas Rio Branco e Francisco Bicalho.

Foi instituído pela Operação Urbana Consorciada da Região do Porto o

Rio de Janeiro, a primeira, com previsão legal na LC 101/2009, que alterou o

Plano Diretor, delimitando uma área especial de Interesse Urbanístico (AEIU)

engloba três bairros: Saúde, Gamboa e Santo Cristo, e dois parcialmente: São

Cristóvão e Cidade Nova.

Sua execução se dá por meio da maior PPP já feita no Brasil – o

Consórcio Porto Novo (integrado pela OAS, Odebrecht e Carioca Engenharia),

no valor de aproximadamente R$ 8 bilhões e seu financiamento está associado

à emissão de CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção),

que permitem a elevação da área construída até um coeficiente máximo.

O Projeto vem no bojo de um conjunto de intervenções urbanísticas

realizadas através de políticas conjuntas entre o poder público e o setor

privado, com objetivo de renovar tecidos urbanos degradados a partir da

modernização da infraestrutura urbana, promovendo o potencial dessas áreas

para atrair maiores investimentos, sendo significativa para o seu êxito a aliança

entre as esferas federal, estadual e municipal, pois boa parte da área pertencia

à União.

Outro elemento importante para o êxito do projeto foi a escolha do Brasil

como sede da Copa do Mundo de 2014 e a escolha da Cidade do Rio como

sede das Olimpíadas de 2016 – pois a própria candidatura do Rio, assim como

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em Barcelona, já estava vinculada à realização da revitalização da zona

portuária.

Em sua propaganda, o Projeto se propõe a transformar uma das regiões

mais importantes da cidade, que durante anos foi relegada ao abandono, em

um verdadeiro processo de segregação padrão, deixando para a cidade um

dos mais importantes legados dos Jogos Olímpicos de 2016. O objetivo seria

revitalizar a Região Portuária do Rio de Janeiro a fim de reintegrá-la à cidade,

resgatando a região como área histórica, e estimulando o seu povoamento,

gerando uma expectativa de aumento populacional dos 28 mil habitantes atuais

para 100 mil após as obras, segundo declarações de Alberto Gomes da Silva,

assessor especial da presidência da Companhia de Desenvolvimento Urbano

da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) (MELLO, 2011).

Está também na justificativa do Projeto a proposta de uma solução

paisagística (com obras como a demolição da perimetral e sua substituição

pelas vias do binário) que ao mesmo tempo dê conta de outros problemas

urbanos como o tráfego intenso e a promoção de melhoria na qualidade de

vida e nas condições habitacionais.

Em suma, em termos urbanísticos, o discurso trazido é de uma área

degradada, abandonada que precisa ser revitalizada, representando, portanto,

típico caso de discurso da reabilitação urbana, atrelando, portanto, às

limitações e contradições acima indicadas.

Porém, há ainda uma legitimação do projeto trazida pelo envolvimento

de diferentes atores locais – Poder Público, mercado e sociedade civil – no

processo de decisão e implementação do projeto como uma garantia de um

processo transparente. A parceria público privada serviria não apenas à

execução efetiva do projeto como à sua abertura a setores da sociedade civil,

permitindo assim uma gestão consensual da cidade.

Todavia, essa narrativa oficial escamoteia os reais impactos do projeto

na vida dos habitantes antigos e encobre o modo de vida que já existia e se

reproduzia na área antes desta intervenção urbanística.

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Na zona portuária viviam/vivem comunidades que construíram fortes

traços da história carioca; já havia vida social nesses bairros, e padrões de

sociabilidade que em nada dialogam com a renovação urbanística lá em curso.

As obras arquitetônicas de grande vulto, o MAR, Museu do Amanhã não

transmitem a cultura e a identidade daquele local; o objetivo, aliás, está longe

disso, cinge-se à atração de investimentos, permitindo, quando muito, que o

tradicional seja vendido como turístico.

Ao contrário do que se propagandeia, os valores históricos dos imóveis

são vistos pelos proprietários, promotores imobiliários e administração pública

como empecilhos para a realização de seus projetos.

Ademais dessa ingerência no cotidiano dos antigos habitantes, muitos

moradores da região foram removidos para dar lugar a empreendimentos

rentáveis e não se sabe se os que lá se mantém após uma possível

especulação imobiliária devido às melhorias urbanas (não só a especulação),

como aconteceu nas reformas feitas ao longo do século XX.

E nisso não há nenhuma surpresa. De fato, o tipo de habitação que se

quer atrair a partir deste projeto não é uma habitação de interesse social. Os

investidores esperados pelo governo somente negociariam os CEPACs se

vislumbrassem um retorno financeiro apropriado, o que não contempla

construção de moradias populares.

Não obstante, a área destinada a habitação social já era habitada por

moradores de baixa renda - a região abrigava vários prédios públicos da União,

do Estado e do Município que, por não cumprirem sua função social, foram

ocupados por populações sem-teto.

Por fim, dentre os atores envolvidos no projeto de revitalização do porto

não se viu justamente aqueles mais atingidos. A participação da sociedade civil

alardeada por acadêmicos se restringiu à participação de empresas privadas e

seus interesses.

5. Conclusão

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A partir do que foi visto, têm-se que a reabilitação urbana é

tradicionalmente entendida como uma forma de obter a modernização de

determinadas áreas urbanas degradadas, através de obras de recuperação de

infraestruturas urbanas. No entanto, a leitura crítica desse discurso revela seu

lado oculto, no qual resta evidente que o objetivo central dessas ações é a

criação de uma nova imagem urbana, que possibilite a inserção da cidade

dentro do mercado turístico. Além disso, a reabilitação urbana manifesta-se

como instrumento para liberar espaços valiosos para operações imobiliárias

lucrativas apenas para a parcela rica da sociedade.

Sendo assim, percebe-se que a reabilitação urbana pode ser um fator

desencadeador do fenômeno da gentrificação, assim entendido como uma

forma de segregação no espaço urbano, que se produz frequentemente a partir

de obras de reabilitação urbana, e acarreta a expulsão da população de baixa

renda de locais que se tornaram atrativos para o mercado imobiliário. Dessa

forma, a revitalização urbana que se promove não é revertida em benefício

para as camadas pobres da cidade, mas sim em privilégio para as elites

urbanas. Afinal, os moradores originais das áreas sujeitas a essa requalificação

acabam sendo expulsos, por diversos meios, desses locais.

A gentrificação produzida pela reabilitação urbana foi demonstrada aqui

a partir da análise do Projeto Porto Maravilha, uma vez que, essas obras,

desde seu planejamento até sua execução, vêm sendo implementadas sem o

devido respeito às características culturais e sociais dos moradores que

vivem/viviam no local. Ao contrário, esses proprietários são encarados como

empecilhos para a realização desse projeto. Nesse sentido, muitos dos antigos

moradores já foram removidos para dar lugar aos empreendimentos previstos.

Além disso, em todo o projeto, não houve efetiva participação da sociedade

civil.

Diante disto, resta perguntar: por que não se investir em infraestrutura

urbana ao mesmo tempo em que se possibilite a permanência da população

em determinadas áreas? Por que a periferia é abandonada pelo poder público

e não recebe os mesmos investimentos que outras áreas? Por que adotar as

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práticas remocionistas ao invés das políticas de regularização fundiária? Todas

essas perguntas só podem ser compreendidas a partir da percepção de que,

no sistema capitalista o espaço é produto socialmente produzido. A

desigualdade e a segregação fazem parte das estratégias que valorizam certas

áreas em detrimento das outras. O poder público, assim como o mercado,

produz as cidades de maneira a criar barreias entre os diferentes segmentos

sociais, favorecendo os distanciamentos geográfico e simbólico entre as

pessoas.

Nesse sentido, a cidade não pode ser compreendida como uma arena

do consenso, mas sim como um espaço de conflito, onde a disputa entre os

diferentes atores se torna explícita na simples observação da paisagem

urbana, tão desigual. Logo, tem-se no exercício do direito à cidade,

compreendido enquanto direito coletivo, uma possibilidade de conquista de

direitos por atores sociais que são marginalizados cotidianamente pela própria

estrutura do espaço urbano.

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