seleção de artigos - olavo de carvalho

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Seleção de Artigos Olavo de Carvalho retirado de http://www.olavodecarvalho.org

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Uma seleção de artigos do professor Olavo de Carvalho que ajudaram a expandir meu horizonte de consciência.

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Page 1: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

Seleção de Artigos

Olavo de Carvalho

retirado de http://www.olavodecarvalho.org

Page 2: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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Índice

Motivação ........................................................................................................... 4

O poder da burrice ............................................................................................. 6

Pobreza e grossura ............................................................................................ 8

Assassinato da oportunidade ........................................................................... 11

A avó de todos os crimes ................................................................................. 12

Mamar e sofrer ................................................................................................. 14

Antifascismo hitlerista ....................................................................................... 15

Para uma antropologia filosófica ...................................................................... 17

A vitória do fascismo ........................................................................................ 19

Fórmula da Minha Composição Ideológica ...................................................... 22

Casta de malditos ............................................................................................. 27

Alquimia da islamização ................................................................................... 33

O império da vontade ....................................................................................... 39

Algo de limpo no reino da Dinamarca .............................................................. 40

Malditos imperialistas ....................................................................................... 42

Poesias de Antonio Machado ........................................................................... 43

Redescobrindo o sentido da vida ..................................................................... 45

Dois estudos sobre Aldous Huxley ................................................................... 47

1. Admirável Mundo Novo ............................................................................. 47

2. A Ilha......................................................................................................... 53

Intelectuais orgânicos ....................................................................................... 61

O imbecil juvenil ............................................................................................... 63

Sto. Tomás, a vaca voadora e nós ................................................................... 65

Tocqueville e o totalitarismo ............................................................................. 75

Educação Liberal .............................................................................................. 78

Um título de Dostoievski ................................................................................. 101

Provas científicas ........................................................................................... 103

Viver sem culpas ............................................................................................ 105

Dinheiro e poder ............................................................................................. 107

Que é ser socialista? ...................................................................................... 108

Que é o fascismo? ......................................................................................... 110

A velha alucinação ......................................................................................... 112

Origens do comunismo chique ....................................................................... 113

Vocabulário da insensatez ............................................................................. 115

Passado e futuro ............................................................................................ 117

Lembrete de Natal .......................................................................................... 118

Aprendendo a escrever .................................................................................. 120

Page 3: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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Motivos da filosofia ......................................................................................... 122

Sutilezas da fala brasileira ............................................................................. 125

Língua e nacionalismo ................................................................................... 126

Destino e Estado ............................................................................................ 129

Confronto de ideologias ?............................................................................... 131

Dica para os esquerdistas .............................................................................. 132

Lições de moral .............................................................................................. 134

A mão direita da esquerda ............................................................................. 136

Racismo, aqui e em Cuba .............................................................................. 138

Da ignorância à loucura ................................................................................. 140

Benfeitor ignorado .......................................................................................... 142

Fora do universo ............................................................................................ 143

O poder de conhecer ...................................................................................... 145

Doença existencial e fracasso econômico-social ........................................... 147

Crítica social e História ................................................................................... 152

Jesus e a pomba de Stalin ............................................................................. 153

Guerra de religião? ......................................................................................... 156

Lições de obviedade ...................................................................................... 157

Fantamasgoria verbal ..................................................................................... 160

História marxista é charlatanismo .................................................................. 162

O comunismo depois do fim ........................................................................... 164

Do marxismo cultural ...................................................................................... 166

Almas Escravas .............................................................................................. 169

Psicologia do fanatismo ................................................................................. 170

Ainda o fanatismo ........................................................................................... 172

Page 4: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

4

Motivação

Fiz esta seleção de artigos do professor Olavo de Carvalho para que sirva de

“Guia de Conversão” para os meus amigos – ou para qualquer outra pessoa

que a tenha em mãos. Mas, ao contrário do que possa ser dito por aí, essa

conversão não implicará rituais iniciáticos secretos, adesão a doutrinas

políticas, tietagem fanática, obediência cega ou nem mesmo que você goste

pessoalmente do portador da conversão. Se você se converter, saiba, meu

amigo, que você ganhará algo totalmente novo e desconhecido: você mesmo.

Embora isso possa parecer meio o estilo “auto-ajuda”, que, dizem por aí, não

funciona porque você está sendo ajudado por um idiota, trata-se de algo muito

diferente. Vou tentar me explicar melhor contando minha própria experiência.

Em certo ponto da minha vida, eu tive a certeza de que precisava me dedicar a

algo, digamos, mais “intelectual” – embora eu não possuísse a menor

capacidade de definir melhor essa percepção. Como eu já conhecia o professor

por intermédio dos meus irmãos, e por falta de outro lugar no qual começar,

resolvi ler os artigos do professor, presentes em publicações variadas e

disponíveis em seu website pessoal (www.olavodecarvalho.org).

Essa empreitada foi um estouro! Passei dois anos rasgando minhas vestes

diariamente. O professor realmente ia no sentido inverso de tudo o que eu

acreditava que uma pessoa deveria acreditar.

De início tomei aquela posição de filósofo de Jornal Nacional: o professor

poderia até estar certo em alguns pontos, mas era muito extremista e

intolerante. Foi só depois de ler todos os seus artigos (por três vezes) é que eu

pude, como a criancinha que aprende a segurar o lápis e manter o traço, ligar

os pontos da figura toda e chegar à espantosa conclusão de que aquilo tudo

fazia muito sentido. Depois disso, sabendo que havia algo de bom, belo e

verdadeiro a que eu poderia me dedicar, me tornei aluno do professor Olavo no

seu Seminário de Filosofia (www.seminariodefilosofia.org) e tenho tentado me

educar da melhor maneira possível. Com o tempo me livrei, pelo menos de

uma parte, daquela autopiedade, rancor generalizado e confusão paralizante

que reina nesta sociedade que, para ser um intelectual, é preciso considerar a

verdade como um “conceito ultrapassado” e a militância política a mais alta

prova de amor ao próximo.

Page 5: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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Pode ser que você não tenha nenhum conflito relevante ou nenhuma pretensão

diferente do curso que a sua vida já está tomando; pode ser que você já

estabeleceu suas metas e esteja confiante na direção delas; ou pode ser que

você saiba, de algum modo, que está num vale de lágrimas, não aquele de que

falam as Sagradas Escrituras, mas, um outro, criado para transformar as

lágrimas em ácido que não nos dá nenhuma chance de pensar em outra coisa

que não a nossa própria dor; pode ser, até mesmo, que você esteja achando

muito difícil de entender o que eu estou tentando explicar (e isso pode ter muito

a ver com minha incapacidade de expressão). Seja qual for o caso, peço que

você se esforce para ler esta seleção e que, então, saiba que não precisamos

olhar apenas para os lados ou para nossos umbigos, mas também podemos

olhar para cima.

Marcos Alcântara

Page 6: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

6

O poder da burrice

O Globo, 4 de outubro de 2003

Numa discussão, a superioridade intelectual nem sempre é vantajosa. Quando

excessiva, torna-se um inconveniente, pela simples razão de que nada pode

fazer um debatedor render-se a um argumento que esteja acima da sua

compreensão. Quanto mais esmagado sob montanhas de fatos e provas, mais

ele se sentirá imune e vitorioso, saindo do debate persuadido de que foi vítima

de injustiça. Se há uma força invencível neste mundo, é a burrice. Por isso os

demagogos e cabos eleitorais que fazem as vezes de professores não

procuram desenvolver em seus alunos a inteligência, que arrisca torná-los

sensíveis a objeções, e sim a burrice, que faz deles criaturas invulneráveis e

coriáceas como rinocerontes.

Num recente debate sobre as quotas raciais, fiz o que pude para explicar a

meus interlocutores a diferença -- que mencionei em artigo anterior nesta

coluna -- entre o compactado emocional pré-analítico da doxa e o discurso

analítico do conhecimento, mostrando em seguida que a argumentação da

“affirmative action” estava no primeiro caso e não podia ser levada a sério

como descrição da realidade. Mal terminei de falar, e um militante se levantou

indignado:

-- Quer dizer que o senhor nega a existência do apartheid?

Eu não poderia ter solicitado um exemplo mais didático. No uso vulgar do

termo apartheid comprime-se uma multidão de significados heterogêneos: um

regime jurídico de separação formal entre as raças acompanhado de

perseguição genocida, a mesma separação sem violência genocida, a

segregação informal pacífica ou violenta sem suporte jurídico, o ódio racial

explícito sem segregação formal ou informal e acompanhado ou não de

condutas agressivas, o ódio incubado e implícito, o vago desprezo cultural sem

expressão em atos e até mesmo o famoso “racismo sutil”, cuja presença ou

ausência depende da subjetividade do observador que atribui intenções mesmo

quando negadas com veemência pelo próprio agente. Tudo isso, no

vocabulário dos quotistas raciais, é apartheid.

Responder “sim” ou “não” à existência de tudo isso em bloco é uma

impossibilidade. Por que, então, formular a pergunta com termo tão elástico e

enganoso? Simples: para dar ares de delito a qualquer resposta que não seja a

desejada pelo interrogante. É obrigatório, aí, não só admitir como fato líquido e

certo a onipresença do alegado “racismo sutil”, mas ver nele um crime tão

grave quanto a segregação explícita e o genocídio. Qualquer hipótese que

fique abaixo disso, que não consinta em igualar o Brasil à Alemanha nazista,

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torna-se ela própria um crime de racismo. Para isso serve a confusão de

significados: para mudar à vontade o sentido das objeções e recobri-las de

uma aura criminosa mesmo quando são conclusões lógicas elementares ou a

expressão de fatos notórios. Trata-se de atemorizar para inibir, de vetar a

possibilidade da discussão racional por meio da intimidação psicológica.

Isso começa como um ardil premeditado, um truque de erística concebido por

técnicos em manipulação de consciências. Mas, ao propagar-se, perde toda

intencionalidade consciente e torna-se um automatismo introjetado, um cacoete

mental. As pessoas já não o usam para confundir os outros, mas para

expressar, com tocante candura, sua proibição interna de compreender o que

elas mesmas dizem, seu temor e incapacidade de abandonar por um momento

sequer o círculo dos chavões sagrados e examinar a realidade sob outros

aspectos, ainda quando a omissão destes esvazie de significado o seu próprio

discurso por falta de pontos de comparação. No fim das contas, já não

verbalizam senão um sistema de tabus destinado a bloquear o acesso ao

significado de qualquer objeção possível, tornando repulsiva e criminosa a

simples tentação de examiná-la. Imantado da ilusão de santidade e

interiorizado ao ponto de tornar-se um substituto do senso de identidade para o

seu portador, o sistema reage com violência à destruição de qualquer das suas

partes e se recompõe como um rabo de lagartixa.

É evidente que mentalidades assim formadas estão intelectualmente

danificadas, e por isso mesmo imunes à persuasão racional: querer fazê-las

perceber o que quer que seja é como exigir que um paralítico saia andando.

Para voltar ao exercício da inteligência normal, precisam de um milagre.

A distribuição democrática dessa lesão mental é a finalidade essencial da

educação neste país.

Alguns observadores desatentos imaginam que, para produzir um mal tão

profundo, seja preciso toneladas de doutrinação e propaganda. Nada disso.

Basta usar a técnica do “ato comprometedor”, descoberta por J. L. Freedman e

S. C. Fraser em 1966 e hoje incorporada à pedagogia oficial. Se um grupo de

pessoas é induzido a imitar, ainda que a título de mera experiência, uma

determinada conduta que não compreendam bem ou que seja contrária às

suas convicções, em 76 por cento dos casos elas mudarão suas convicções

para adaptá-las retroativamente à conduta imitada. Basta portanto um

professor enviar seus alunos uma vez, uma única vez, a uma manifestação em

favor de qualquer “causa” que não estejam em condições de julgar por si

próprios, e 76 por cento deles aderirão automaticamente a essa causa,

qualquer que seja. Ora, enviar alunos a manifestações políticas, reforçando a

incitação por meio de recompensas e castigos às vezes nada sutis, tornou-se

entre os professores brasileiros do ensino médio quase uma obrigação, mesmo

porque eles próprios tiveram suas convicções formadas mais ou menos assim

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e não vêem nada de mau naquilo que fazem. Consolidada a estupidez por

algumas repetições, resta para o ensino universitário apenas a tarefa de

embelezá-la com uns toques de vocabulário pedante.

Platão considerava que, após o homicídio, o segundo delito mais grave era o

de arruinar a alma de jovens e crianças. E Jesus Cristo dizia que o melhor a

fazer com os culpados desse crime era amarrar-lhes uma pedra no pescoço e

jogá-los ao fundo do mar. Mas não creio que na baía da Guanabara haja

espaço bastante para todos eles.

Pobreza e grossura

Bravo!, julho de 2000

Neste país você não pode pedir emprego e muito menos dinheiro emprestado a

um conhecido sem que ele instantaneamente assuma ares paternais e comece

a lhe dar conselhos, a ralhar com você chamando-o de irresponsável, leviano e

miolo-mole. E dê graças a Deus de que ele o faça em tom bonachão e não

transforme a humilhação sutil em massacre ostensivo. Finda a cena, ele sai

todo satisfeito com a consciência do dever cumprido e considera-se

dispensado de lhe arranjar o emprego ou o dinheiro. E você? Bem, você sai

duro, desempregado... e culpado.

Esse mesmo sujeito é capaz de, na mesma noite, oferecer um jantar tomando

o máximo cuidado para que a arrumação da mesa e a distribuição dos

convidados obedeçam estritamente às regras da mais fina etiqueta.

Um indício seguro de barbarismo num povo é a atenção excessiva concedida

aos sinais convencionais de boa educação e o desprezo ou ignorância dos

princípios básicos da convivência que constituem a essência mesma da boa

educação.

O bárbaro, o selvagem, pode decorar as regras e imitá-las na frente de quem

ele acha que liga para elas. Mas não capta o espírito delas, não percebe que

são apenas uma cartilha de solicitude, de atenção, de bondade, que pode ser

abandonada tão logo a gente aprendeu o verdadeiro sentido do que é ser

solícito, atencioso e bom.

Meu pai era um sujeito relaxado, que às vezes ia de pijama receber as visitas.

Mas ele chamava de "senhor" cada mendigo que o abordava na rua, e sem que

ele me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades

necessitava de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em

situação normal. Quanto mais respeitoso, mais cuidadoso, mais escrupuloso

cada um não deveria ser então com um amigo que, vencendo a natural

resistência de mostrar inferioridade, vem lhe pedir ajuda! Esta regra elementar

é sistematicamente ignorada entre as nossas classes médias e altas,

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principalmente por aquelas pessoas que se imaginam as mais cultas, as mais

civilizadas e – valha-me Deus! – as mais amigas dos pobres.

Fico horrorizado quando vejo alguém enxotar um flanelinha como se fosse um

cachorro, e nunca vi alguém fazê-lo com a desenvoltura, o aplomb, a

consciência tranqüila de um intelectual de esquerda! Nos anos 60, corria o dito

de que ajudar os pobres individualmente era "alienação burguesa", ópio

sentimental, sucedâneo da revolução salvadora. Passaram-se quarenta anos, a

revolução salvadora não veio (onde veio, os pobres ficaram mais pobres ainda)

e duas gerações de necessitados apertaram ainda mais os cintos em

homenagem à prioridade da revolução. Mas não conheço um só militante

comunista do meu tempo e do meu meio que não esteja com a vida ganha, que

não ostente como um sinal de maturidade triunfante a segurança financeira

adquirida graças ao apadrinhamento da máfia política que, até hoje, domina o

mercado de empregos na imprensa, na publicidade, no ensino superior e no

mundo editorial.

Hoje não precisam mais do pretexto revolucionário para enxotar flanelinhas.

Seu discurso tornou-se palavra oficial, as prefeituras e governos estaduais nos

advertem, em cartazes piedosos, para não dar esmolas. Sim, a caridade

individual está em baixa. Os frutos da bondade humana não devem ir direto

para o bolso do necessitado: devem ir para as ONGs e os órgãos públicos,

sustentando funcionários e diretores, financiando movimentos políticos,

pagando despesas de aluguel, administração, publicidade e transporte, para no

fim, bem no fim, se sobrar alguma coisa, virar sopa dos pobres, diante das

câmeras, para a glória de São Betinho.

Há quem neste país tenha nojo da corrupção oficial. Pois eu tenho é da

caridade oficial.

Ainda há quem diga: "Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira

esquina!" Pois que beba! Tão logo ele o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês

querem educar o pobre "para a cidadania" e começam por lhe negar o direito

de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem

primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que atormentado pela miséria tem o

direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro

falido? Querem educá-lo impingindo-lhe a mentira humilhante de que sua

pobreza é uma espécie de menoridade, de inferioridade biológica que o

incapacita para administrar os três ou quatro reais que lhe deram de esmola?

Não! Se querem educá-lo, comecem pelo mais óbvio: sejam educados. Digam

"senhor", "senhora", perguntem onde mora, se o dinheiro que lhes deram basta

para chegar lá, se precisa de um sanduíche, de um remédio, de uma amizade.

Façam isso todos os dias e em três meses verão esse homem, essa mulher,

erguer-se da condição miserável, endireitar a espinha, lutar por um emprego,

vencer.

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Na verdade, a barreira que impede o acesso de pobres e mendicantes

brasileiros a uma vida melhor é menos econômica que social. Façam um teste.

Quanto custa um frango? Assado, com farofa. Cinco reais no máximo, em geral

menos. Quer dizer que um mendigo, pedindo esmola em qualquer das grandes

capitais do Brasil, pode comer pelo menos um frango por dia, se não dois, e

ainda lhe sobra o dinheiro da condução. Para você fazer uma idéia de quanto

um país onde isso é possível é um país rico e generoso, tente esta

comparação. Quando Franklin D. Roosevelt lançou o New Deal, um dos

objetivos principais do ambicioso plano econômico foi assim anunciado pelo

rádio: "Assegurar que cada família deste país tenha em sua mesa um frango

por semana." Ouviram bem? Um frango por semana para quatro ou cinco

pessoas. Na época pareceu um ideal quase utópico. Pois bem: estamos numa

terra onde velhas desamparadas que se arrastam pelas ruas comem um frango

por dia, onde os meninos de rua pedem esmola em frente ao MacDonald’s para

completar o preço de um BigMac com fritas de três em três horas, onde os

bebês famintos exibidos pelas mães em prantos usam fraldas descartáveis,

onde as casas dos bairros miseráveis têm antenas parabólicas e os catadores

de lixo se comunicam com seus sócios por telefones celulares.

Em contrapartida, façam outro teste: peguem um sujeito sujo e esfarrapado,

encham-no de dinheiro e façam-no entrar numa loja de roupas – não digo uma

loja elegante, mas qualquer uma -- para comprar um terno. Será enxotado. E,

se gritar: "Eu tenho dinheiro!", vai terminar na polícia, com holofote na cara,

tendo de se explicar muito bem explicadinho, isto se não for obrigado a

escorregar "algum" para a mão do sargento.

O mesmo pobre que pode comer um frango por dia tem de comê-lo na calçada,

com os cães, porque não tem acesso aos lugares reservados aos seres

humanos. Está certo que você, gerente do restaurante, fique constrangido de

botar um sujeito estropiado e fedido no meio dos seus clientes distintos. Mas

não vê que mandá-lo comer na rua é mais falta de educação ainda? Pelo

menos dê-lhe de comer num cantinho discreto, converse com ele sobre as

dificuldades da vida, ofereça-lhe uma camisa, uma calça. Seja educado,

caramba! Pois se você, que está bem empregado e bem vestido, tem o direito

de ser grosso, que primores de polidez pode esperar do pobre? Se um dia,

cansado de levar chutes, ele o manda tomar naquele lugar, não se pode dizer

que esteja privado do senso das proporções. E não me venha com aquela

história de "Se eu tratar bem um só mendigo, no dia seguinte haverá uma fila

deles na minha porta". Isso pode ser verdade em casos isolados, mas não no

cômputo final: se todos os restaurantes tratarem bem os mendigos, logo haverá

mais restaurantes que mendigos. Conte os mendigos e os restaurantes da

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Avenida Atlântica e diga se não tenho razão. Isto sem que entrem no cálculo os

bares e padarias.

O brasileiro de classe média e alta está virando uma gente estúpida que clama

contra a miséria no meio da abundância porque cada um não quer usar seus

recursos para aliviar a desgraça de quem está ao seu alcance, e todos ficam

esperando a solução mágica que, num relance, mudará o quadro geral. Sofrem

de platonismo à outrance: crêem na existência de um geral em si, dotado de

substância metafísica própria, independente dos casos particulares que o

compõem.

Por isso é que quando a propaganda do Collor inventou aquela coisa de "Não

votem em Lula porque ele vai obrigar cada família de classe alta a adotar um

menino de rua", eu me disse a mim mesmo: "Raios, se isso fosse verdade eu

ficaria satisfeito de votar no Lula." Só acredito é em gente ajudar gente, uma

por uma, não na mágica platônica das "mudanças estruturais", pretexto de

revoluções e matanças que resultam sempre em mais pobreza ainda.

Na verdade, quem acredita nelas erra até ao dar nome ao problema geral.

Quando, revoltados ante a desgraça do povo brasileiro, gritamos: "Fome!", algo

está falhando na nossa percepção da realidade social. No mais das vezes, o

que falta não é comida, não é dinheiro: é as pessoas compreenderem que a

pobreza não é um estigma, não é uma desonra, é uma coisa que pode

acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o

reforço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente normal

e, em suma, um membro da espécie humana.

Entre as causas culturais da pobreza, a principal não está nos pobres: está na

falta de educação dos outros.

Assassinato da oportunidade

Época, 15 de julho de 2000

Discursos fingidos contra a pobreza estão matando, de modo egoísta, nossa

chance de sair dela

As demonstrações de escândalo ante a pobreza neste país são tão enfáticas,

tão hiperbólicas, que se diria que um padrão de vida de Primeiro Mundo é coisa

simplesmente natural e sua ausência, em qualquer lugar do planeta, é uma

absurdidade inaceitável para a razão humana. Na verdade, a pobreza tem

acompanhado o Homo sapiens desde seu surgimento, e a floração

extraordinária de riquezas em alguns pontos da Terra nos últimos séculos é

que é um fenômeno estranho, carente de explicação satisfatória até o

momento. A profusão de livros que prometem elucidar as “causas do

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subdesenvolvimento” só tem servido para camuflar o fato de que o

desenvolvimento ainda não foi compreendido de maneira alguma. Só um

maluco pode pretender explicar o que não aconteceu quando não entende

sequer o que aconteceu.

Há três hipóteses básicas para explicar o sucesso econômico: a teoria de Karl

Marx, segundo a qual a riqueza capitalista se forma pela extração da mais-valia

(diferença entre o salário e o valor objetivo do trabalho), a de Max Weber,

baseada na concentração de esforços propiciada pela ética protestante, e a de

Alain Peyrefitte, na qual o desenvolvimento nasce de certas condições culturais

e psicológicas que favorecem a criatividade econômica, a livre negociação e a

fidelidade aos contratos. A primeira foi desmoralizada por seus erros de

previsão, por suas falhas lógicas e pela revelação de que usara estatísticas

manipuladas. A segunda entrou em pane porque o próprio autor morreu sem

ter conseguido confirmá-la. A terceira me parece a mais certa, mas isso é o

máximo que posso dizer.

Se simplesmente não sabemos como um fenômeno se produz, por que nos

sentir revoltados por ele não se reproduzir a nosso bel-prazer? Proclamar o

direito de todos a algo que não se sabe como lhes dar é puerilismo. Mas é um

hábito de nossa cultura elevar meros objetivos desejáveis à categoria de

“direitos”, punindo o fracasso como se fosse um delito. Todos queremos uma

vida melhor para os brasileiros, mas quem pretenda nos induzir a crer que a

conquista dessa vida é coisa fácil por natureza, que não a havermos alcançado

é uma anormalidade, uma injustiça, um crime, esse é um mentiroso, um

farsante que busca subir na vida pela indústria da intriga e ainda tem o

desplante de insinuar que os demais ramos da indústria é que são desonestos.

A teoria de Peyrefitte não é absolutamente segura, mas é a que melhor tem

resistido às objeções. Se no Brasil não querem prestar atenção nela é por um

motivo muito simples: ela afirma a necessidade imprescindível de uma

atmosfera geral de confiança, em que os controles jurídico-policiais e

monopolísticos cedam lugar a mecanismos unicamente culturais de incentivo à

livre iniciativa popular. Ora, no Brasil isso é impraticável porque nossos

políticos e intelectuais estão empenhados em aumentar o próprio poder

mediante campanhas de disseminação da suspeita que induzam o povo a

aceitar mais leis, mais controle, mais burocracia. Eles chamam isso de “ética”,

de “luta contra a miséria”, até de “cristianismo”. Eu chamo de liquidação

maldosa e egoísta de uma oportunidade de sucesso.

A avó de todos os crimes

Época, 5 de agosto de 2000

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A crença de que a miséria produz a violência é, ela própria, geradora de

violência

Na sucessão memorável de lições sobre as causas sociais do crime, destacou-

se a do secretário da Segurança do Rio Grande do Sul, José Paulo Bisol: a

onda de violência é criada por um “estado de necessidade” que torna essas

ações moralmente legítimas.

O doutor Bisol, caso o leitor não recorde, é aquele cérebro prodigioso que, na

CPI do Orçamento, apreendeu 40 quilos de documentos e, 24 horas depois, já

apresentava suas conclusões da leitura, só não entrando para o Guinness

porque não há justiça neste mundo. Mas raciocinemos, nós, em velocidade

humana. Em dois sentidos pode-se dizer que a miséria produz o crime. Num

sentido direto, o homem a quem falta o pão para os filhos vai e rouba um pão.

No outro sentido, a miséria geral e difusa pode induzir ao crime, por contágio

psíquico, um cidadão que não seja diretamente afetado por ela; um cidadão

que tenha não somente o indispensável à vida, mas ainda o excedente para a

compra de armas e drogas.

Os crimes cometidos no primeiro sentido não são crimes. A premência da

situação desconfigura o delito e o acusado sai livre, sem entrar nem mesmo

nas estatísticas. O doutor Bisol, leitor voraz, não pode ignorar esse detalhe

penal. Mas, numa discussão sobre a violência brasileira, a menção a esses

pseudocrimes, não sendo alegação extemporânea de um ignorante, só pode

soar como argumentação implícita em favor da segunda hipótese: a escusa do

estado de necessidade deve ser estendida àqueles casos em que a ligação

entre miséria e crime é indireta. Para justificar o delito não é preciso que seu

autor seja compelido por uma necessidade pessoal. Basta a miséria geral. A

miséria dos outros. Eventualmente, a miséria das vítimas.

Mas, onde a ligação entre miséria e crime não é direta, também não é

necessária, forçosa, inescapável: é casual e probabilística. Premido pela

necessidade pessoal, qualquer um roubaria. Sugestionados pela miséria geral,

uns roubam, outros não. Depende. Depende de quê? Depende de uma escolha

– daquela escolha, justamente, que o homem necessitado não podia fazer.

Necessidade é impossibilidade de escolha. Se há escolha, não há

necessidade. A miséria, aí, não é causa: é simples ocasião do crime.

Escolhas dependem de crenças. O homem livre rouba ou se abstém de roubar,

mata ou se abstém de matar, conforme creia que deve ou não fazê-lo, que é

certo ou errado fazê-lo. A doutrina Bisol parece lhe dizer que é certo. Não o diz

claramente, mas o insinua com aquela nebulosidade que, confundindo o

ouvinte e o próprio falante, mais facilmente ainda os induz a aceitar o que

despertos e atentos rejeitariam.

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Hoje essa doutrina não apenas é aceita em muitos meios, mas todo impulso de

rejeitá-la é aí recebido com exaltadas demonstrações de escândalo que inibem

as objeções, ao mesmo tempo que, reprimindo a discussão franca, adensam

ainda mais a névoa cataléptica da indistinção entre necessidade e escolha,

entre causa e ocasião. E a névoa, ao se expandir sob os auspícios da classe

culta, amortece no criminoso potencial os últimos escrúpulos de consciência.

Filha do lusco-fusco, mãe da escuridão, ela é a avó de todos os crimes.

Mamar e sofrer

Época, 26 de agosto de 2000

Quem não chora não mama: por isso, nem todos têm acesso aos benefícios da

discriminação

Se a atual efusão de bondade para com os discriminados fosse sincera, ela

procuraria socorrer primeiro os grupos que sofrem discriminação mais aberta e

mais violenta, em vez de ficar rebuscando indícios de “racismo sutil” para

favorecer os grupos que, longe de ser os mais discriminados, são apenas os

mais protegidos pela Nova Ordem Mundial e os mais aptos a desferir um golpe

mortal na unidade cultural brasileira.

Esses são os discriminados oficiais. Mas nenhuma discriminação, no Brasil,

supera aquela que se volta contra as pessoas apegadas às tradições de sua

cultura religiosa, caso não tenham a sorte de essa cultura ser indígena ou

africana. Contra os católicos e os evangélicos, tudo é permitido: excluir suas

doutrinas do universo intelectual respeitável; falar deles numa linguagem feita

para humilhar e ferir seus sentimentos; achincalhar publicamente seu Deus,

sua moral, seus profetas; fazer paródias grotescas de seus ritos, símbolos e

preces; anatematizar o empenho proselitista que lhes foi ordenado pelo próprio

Cristo; obrigá-los a aceitar, com presteza solícita, leis hostis a suas crenças;

subestimar como detalhe irrelevante o massacre de milhões deles nos países

comunistas; depreciar seus gestos de generosidade e auto-sacrifício mediante

explicações pejorativas e atribuição maliciosa de intenções; esmagá-los no

torniquete das cobranças contraditórias, acusando sua igreja de repressiva

quando pune as condutas imorais e de corrupta quando as tolera.

Quem move esses ataques não são indivíduos isolados ou grupos

clandestinos: é o establishment, é a mídia chique, são os professores nas

cátedras, são os artistas nos palcos e nas telas, diante dos olhos do mundo,

com a aprovação risonha das autoridades e dos bem-pensantes. As provas

não têm de ser desentranhadas mediante tortuosas conjeturas estatísticas:

Page 15: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

15

elas estão diante de nós. Quem deseje investigá-las não terá dificuldade senão

o embarras de choix.

E, se querem estatísticas, digam: qual a porcentagem de cristãos tradicionais

na população brasileira e nas cátedras das universidades? No ministério FHC?

Nos cargos de chefia da mídia? Façam essas contas e saberão o que quer

dizer exclusão. Ainda bem que o reino dos cristãos não é deste mundo; porque

até na cadeia “os bíblias” são um grupo à parte, alvo de chacotas dos demais

detentos.

Quem diga ou faça contra gays um milésimo do que se diz e se faz contra os

seguidores de Cristo será punido e exposto à execração universal. Mas quem

ouse sugerir que cristãos também têm direitos já é virtualmente um réprobo,

um inimigo do povo. Toda palavra em favor deles – inclusive as deste artigo –

será recebida com protestos, com um brilho silencioso de ódio frio nos olhos

ou, na mais branda das hipóteses, com um sorriso desdenhoso.

Por isso essa palavra não será dita nas reuniões com que o Brasil se prepara

para o congresso mundial que, em 2001, se manifestará contra “todas” – entre

enfáticas aspas – as discriminações. Omitindo-a, essas reuniões provarão

apenas a discriminação dos mais quietos e resignados pelos mais barulhentos

e ambiciosos. Só estes têm direito ao título de “discriminados”, outorgado pelas

potências que regem o mundo. É a lei: quem não chora não mama. E quem

chora escondido que mame as próprias lágrimas.

Antifascismo hitlerista

O Globo, 2 de setembro de 2000

Por que os comunistas vivem chamando os outros de fascistas? Já vi esse

rótulo colado nas figuras mais díspares: cristãos, liberais, conservadores,

maçons, militares latino-americanos, anarquistas, social-democratas,

muçulmanos - todo mundo. Nem judeus escapam: Menachem Begin e Arthur

Koestler levaram essa carimbada umas dúzias de vezes.

De onde vem essa mania, essa necessidade compulsiva de dar a cada

desavença, por mais mesquinha e estapafúrdia, o ar de um épico combate

antifascista?

Detesto conjeturas psicológicas. Prefiro o método genético do velho Aristóteles.

Em quase cem por cento dos casos, contar como as coisas começaram já

basta para a plena elucidação de causas e motivos.

Até o princípio dos anos 30, os comunistas não ligavam muito para fascismo ou

nazismo. Papai Stalin ensinava-lhes desde 1924 que esses movimentos eram

apenas a radicalização suicida da ideologia capitalista, prenunciando o fim do

império burguês e a vitória final do socialismo. "O nazismo, dizia-se, é o navio

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quebra-gelo da revolução." De repente, em 1933, partindo de Moscou sob o

comando de Karl Radek, uma onda de antifascismo varreu a Europa sob a

forma de livros, reportagens, congressos, passeatas, filmes, peças de teatro.

Intelectuais independentes apareciam nos palanques ao lado dos poetas

oficiais do Partido. Manifestos antinazistas traziam as assinaturas de estrelas

do cinema.

Entre essas duas épocas, algo aconteceu. Adolf Hitler, eleito chanceler,

preparava-se para grandes conquistas que requeriam o poder absoluto.

Ansioso de eliminar concorrentes, e não podendo abusar do apoio recalcitrante

do exército alemão, recorreu à ajuda da instituição que, no mundo, era a mais

informada sobre movimentos subversivos: o serviço secreto soviético. A

colaboração começou logo após a eleição de Hitler. Em troca da ajuda militar

alemã, vital para o Exército Vermelho, Hitler era informado de cada passo de

seus inimigos internos. O sucesso da "Noite das Longas Facas" de 1934

inspirou Stalin a fazer operação idêntica no Partido soviético: tal foi a origem do

Grande Expurgo de 1936, no qual o serviço secreto alemão, já disciplinado por

Hitler, retribuiu os favores soviéticos, descobrindo e forjando provas contra

quem Stalin desejasse incriminar. O famoso pacto Ribentropp-Molotov foi

somente a oficialização exterior de uma colaboração que já era bem ativa fazia

pelo menos seis anos.

A onda mundial de histrionismo antifascista foi inventada por Karl Radek, em

primeiro lugar, como vasta operação diversionista. No auge da campanha, ele

escrevia a um amigo: "O que ali digo (contra o fascismo) é uma coisa. A

realidade é bem outra. Ninguém nos daria o que a Alemanha nos dá. Quem

imagina que vamos romper com a Alemanha é um idiota."

De Paris a Hollywood, idiotas pululavam entre os escritores e artistas.

Arregimentá-los como "companheiros de viagem", criando a cultura do

comunismo chique que até hoje dá o tom nos meios pedantes em países

periféricos, foi o segundo objetivo da operação. Eram pessoas importantes,

formadoras de opinião, que conservavam sua identidade exterior de

independentes, ao mesmo tempo que serviam obedientemente ao comunismo

porque suas vidas eram controladas através de suborno, envolvimento e

chantagem. Um exemplo entre centenas: André Gide, que era homossexual,

durante anos não teve um companheiro de cama que não fosse plantado ali

pela espionagem soviética. Quando se recusou a colaborar, a sujeira

colecionada nos arquivos despencou em cima dele. Por análogos

procedimentos, a espionagem soviética colocou a seu serviço André Malraux,

Ernest Hemingway, Sinclair Lewis, John dos Passos e muitos outros, como

também atores e atrizes de Hollywood, que, além do glamour, garantiam para

Moscou um regular fluxo de dólares, moeda indispensável nas operações

internacionais. O controle dos intelectuais era feito diretamente por agentes

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soviéticos, em geral à margem dos partidos comunistas locais, que por isto

foram pegos de surpresa pelo pacto de 1939.

A terceira finalidade do "antifascismo" foi recrutar espiões nas altas esferas

intelectuais. Alguns dos mais célebres agentes soviéticos, como Kim Philby,

Guy Burgess, Alger Hiss e Sir Anthony Blunt, entraram para o serviço por meio

da campanha. Conforme o combinado com Hitler, nenhum dos então

recrutados foi usado contra a Alemanha nazista, mas todos contra os governos

antinazistas ocidentais.

Comunistas, espiões e "companheiros de viagem" carregam pesada culpa pela

mais sórdida fraude já montada por uma parceria de tiranos. Em suas mais

notórias expressões, toda a cultura antifascista da época, o espírito do Front

Popular, matriz do antifascismo cabotino que ainda subsiste no Brasil, foi a

colaboração consciente com uma farsa, sem a qual as tiranias de Hitler e Stalin

não teriam sobrevivido a suas oposições internas; sem a qual portanto não

teria havido nem Longas Facas, nem Grande Expurgo, nem Holocausto.

Neurose, dizia um sábio amigo meu, é uma mentira esquecida na qual você

ainda acredita. A compulsão comunista de exibir antifascismo xingando os

outros de fascistas revela o clássico ritual neurótico de exorcismo projetivo, no

qual o doente se desidentifica artificialmente de suas culpas jogando-as sobre

um bode expiatório. Nos velhos, é hipocrisia consciente. Nos jovens, é

absorção simiesca de um sintoma ancestral que acaba por neurotizá-los

retroativamente, fazendo deles os guardiães inconscientes de um segredo

macabro.

Por isso, amigo, quando um comunista chamar você de fascista, não se

rebaixe tentando explicar que não é. Ninguém neste mundo deve satisfações a

um colaborador de Hitler.

Para uma antropologia filosófica

O Globo, 19 de julho de 2003

A condição humana mais geral e permanente, a estrutura fixa por trás de toda

variação local e histórica, pode-se resumir em seis interrogações básicas,

articuladas em três eixos de polaridades, cujas tentativas de resposta, estas

sim temporais e variáveis, dão as coordenadas da orientação do homem na

existência.

O primeiro eixo é "origem-fim". Ninguém jamais soube onde e quando o

conjunto da realidade começou nem como ou quando vai terminar. Pode-se

arriscar uma teoria da eternidade do mundo, um mito cosmogônico ou a

imagem do "big bang", uma teologia da criação ou um atomismo materialista,

cada qual com sua respectiva explicação do fim. Nenhuma delas jamais obteve

Page 18: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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aceitação universal. O que não se pode é ignorar a questão, pois dela depende

o nosso senso de orientação no tempo, a possibilidade de conceber projetos e

dar forma narrativa às nossas experiências.

O segundo eixo é "natureza-sociedade". Todo homem vive entre dois campos

da realidade, um anterior e independente da ação humana, o outro criado por

ela. A diferença e a articulação desses campos aparecem no contraste entre o

geometrismo da taba circular e o matagal informe, na oposição de Lévi-Strauss

entre o cru e o cozido, no instinto de buscar a proteção do grupo contra os

animais e as intempéries ou, inversamente, no sonho rousseauniano de

encontrar na natureza um abrigo contra os males do convívio social. A natureza

pode aparecer como um pesadelo temível ou como seio materno acolhedor. A

sociedade pode ser lar ou prisão, fraternidade ou guerra. Pode-se fazer da

natureza uma espécie de ordem social, como na antiga cosmobiologia, ou

naturalizar a sociedade, como na antropologia evolucionista. Mas essas

tentativas só revelam a impossibilidade, seja de explicar um dos termos pelo

seu contrário, seja de articulá-los numa equação definitiva, seja de

compreender um deles sem referência ao outro.

O terceiro eixo é "imanência-transcendência". Cada ser humano sabe que ele

próprio existe, que tem um "mundo" interior de experiências, recordações,

desejos, temores. Mas sabe também que esse poço é sem fundo, que ninguém

pode compreender-se ou ignorar-se totalmente, que cada alma encontra dentro

de si algo de estranho e atemorizante, que cada um se conhece e se

desconhece quase tanto quanto aos demais. Buscamos na nossa intimidade o

abrigo contra a maldade alheia, assim como buscamos no outro, no amigo, na

esposa, a proteção contra nossos fantasmas interiores. Cada um de nós é

próximo e estranho a si mesmo. Por outro lado, para além de tudo o que se

pode conhecer da realidade, para além de toda experiência alcançável, cada

homem e cada cultura pressente um fator "x", que, desde acima ou desde o

fundo do fluxo dos acontecimentos, faz com que as coisas sejam o que são e

não de outro modo. "Por que existe o ser e não antes o nada?": assim

formulava Schelling a interrogação suprema. Podemos tentar respondê-la pela

concepção de um absoluto metafísico, de uma divindade ordenadora ou de

uma fantástica auto-regulação de coincidências. Podemos até expulsá-la da

discussão pública, deixando-a à mercê do arbítrio privado, com a abjeta

covardia intelectual do agnosticismo moderno. Mas mesmo então sabemos que

não escapamos dela. Entre a imanência e a transcendência, várias articulações

são possíveis, mas nenhuma satisfatória. Podemos conceber o transcendente

à imagem do nosso ser íntimo, como divindade bondosa que nos compreende

e nos ama -- mas isso fará ressaltar ainda mais o que a vida tem de estranheza

fria e hostilidade demoníaca. Podemos imaginá-lo com os traços impessoais e

mecânicos de uma fórmula matemática -- mas isso não nos impedirá de

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amaldiçoar ou bendizer o destino, subentendendo nele uma intencionalidade

humana quando nos oprime ou nos reconforta.

Cada um dos pólos é uma interrogação, um misto de ignorância e

conhecimento, um foco de tensões espirituais. Cada um articula-se com seu

oposto, num mútuo esclarecimento -- ou multiplicação -- de tensões. E no

ponto de interseção dos três eixos, como no das três direções do espaço,

fixado na estrutura da realidade como Cristo na cruz, está o ser humano.

Crenças, cosmovisões, doutrinas, diferem sobretudo pela hierarquia que

estabelecem entre os seis fatores por meio de assimilações e reduções. Muitas

culturas arcaicas privilegiavam o fator "origem", explicando sociedade e

natureza por um mito cosmogônico, ignorando a transcendência e a imanência.

A escolástica medieval remeteu-se à transcendência, sonhando poder deduzir

dela uma ordem intelectual completa e definitiva. A modernidade absorveu tudo

na oposição natureza-sociedade, esperando não menos utopicamente reduzir

os mistérios da transcendência e da imanência, da origem e do fim, a questões

de partículas subatômicas, código genético e análise lingüística. Preparou

assim o advento das ideologias totalitárias que fizeram da sociedade a razão

última da origem e do fim, colocando entre parênteses a natureza, sufocando a

imanência e vedando o acesso à transcendência. Cada um desses arranjos,

mesmo o mais limitador, é legítimo e funcional a título provisório, como

experimento de sondagem numa certa direção que os interesses de um

momento enfatizaram. Torna-se alienante e opressivo quando se cristaliza

numa proibição de olhar para além da articulação admitida. Só a abertura da

alma para a simultaneidade dos seis pólos, com suas luzes e trevas, dá acesso

à experiência realista da condição humana e, portanto, à possibilidade da

sabedoria. Todas as explicações que, para enfatizar uma articulação em

particular, negam ou suprimem a estrutura do conjunto, são falsas ou estéreis.

Filosofias como o marxismo, o positivismo, o pragmatismo, a escola analítica, o

nietzscheanismo, o freudismo, o desconstrucionismo, -- todas aquelas, enfim,

que ocupam o espaço inteiro do ensino acadêmico neste país -- são doenças

espirituais, obsessões que nos encerram hipnoticamente no fascínio de uma

resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de referências que dá sentido

à pergunta.

A vitória do fascismo

O Globo, 26 de julho de 2003

Tom Jobim dizia que no Brasil o sucesso é um insulto pessoal. Sem querer,

explicava assim a ampla aceitação da ideologia socialista entre nós. Para o

cidadão normal de uma democracia, o êxito de quem quer que seja é resultado

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do talento e da sorte. Para frustrados e invejosos embriagados de mitologia

socialista, é o efeito de uma planificação maligna das classes dominantes, o

produto diabólico de uma máquina de exclusão social inventada e controlada

por astutos engenheiros sociais burgueses.

Na imaginação socialista, os capitalistas não fazem outra coisa senão reunir-se

na calada da noite para premeditar a ruína dos pobres. Para isso, criam todo

um aparato ideológico de “reprodução” dos padrões sociais existentes,

contratando intelectuais e técnicos para estudar meios de não deixar mais

ninguém subir na vida.

O capitalismo, nesse sentido, é uma sociedade administrada, um mecanismo

racional calculado nos seus mínimos detalhes para bloquear o progresso

social.

Só que, após ter descrito e acusado essa máquina com requintes de análise

corrosiva, no instante seguinte o socialista aparece condenando a “anarquia do

mercado” e fazendo a apologia da economia planejada como solução para

todos os males...

Já tenho me perguntado como é possível uma criatura mudar de discurso tão

radicalmente, sem nem perceber que se contradiz. Cinismo ou inconsciência?

Maquiavelismo ou burrice?

Observem a rigidez da disciplina no PT ou no MST, e obterão a resposta. O

militante socialista ou comunista sacrifica tudo à hierarquia partidária, mesmo a

moralidade, mesmo as exigências mais íntimas da consciência pessoal. É

natural que projete essa conduta sobre a fisionomia do inimigo, concebendo-a

à sua própria imagem e semelhança. Mas toda fantasia projetiva é

necessariamente paradoxal, é ao mesmo tempo direta e inversa. De um lado, o

capitalismo aparecerá aos olhos do socialista como uma hierarquia maquinal

análoga à do seu partido, apenas com signo ideológico oposto. De outro, a

atmosfera partidária, com aquele seu unanimismo que dá a cada um dos

militantes um sentimento tão vivo de participação, de proteção mútua, de

“comunidade solidária”, é vivenciada como o embrião de sociedade ideal, em

contraste com a qual a realidade do capitalismo aparecerá como pura confusão

e lei da selva.

Basta olhar o capitalismo diretamente, sem o viés projetivo da disciplina

socialista, para ver que ele não é nem uma coisa nem a outra, mas apenas a

integração de várias premeditações parciais -- os cálculos dos vários interesses

privados -- num ambiente geral frouxamente atado pelas regras da convivência

democrática.

Mas a idéia mesma de “regra” tem sentido diferente para socialistas e

capitalistas. Numa democracia capitalista, as regras do jogo são fixas, ao

passo que as finalidades gerais do esforço social vão mudando conforme as

inclinações da opinião pública a cada momento. Numa sociedade socialista --

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ou nos partidos que lutam por ela --, é o contrário: as finalidades são

constantes, cristalizadas no símbolo utópico do “ideal”, e as regras do jogo é

que mudam segundo as conveniências estratégicas e táticas vislumbradas

pelos líderes em cada etapa da luta.

Por isso é tão difícil um socialista compreender o capitalismo quando um

homem formado nas regras do capitalismo entender a mentalidade socialista.

Esta último tentará explicar a conduta socialista pela racionalidade de

interesses econômicos, acreditando que tais ou quais vantagens obtidas no

caminho aplacarão os ódios e as ambições da militância enragée. O segundo

enxergará o capitalismo por meio de uma grade de fantasias projetivas

macabras, e acabará acusando a classe burguesa de ser ao mesmo tempo

uma maçonaria racionalmente organizada para saquear o mundo e um

aglomerado caótico de egoísmos incapazes de organizar-se.

Não espanta que toda tentativa de fusão entre capitalismo e socialismo resulte

numa contradição ainda mais funda: quando os socialistas desistem da

estatização integral dos meios de produção e os capitalistas aceitam o princípio

do controle estatal, o resultado, hoje em dia, chama-se “terceira via”. Mas é,

sem tirar nem pôr, economia fascista. De um lado, burgueses cada vez mais

ricos, mas -- como dizia Hitler -- “de joelhos ante o Estado”. De outro, um povo

cada vez mais garantido em matéria de alimentação, saúde, habitação, etc.,

mas rigidamente escravizado ao controle estatal da vida privada.

Também não espanta que os socialistas, não entendendo o capitalismo,

procurem descrevê-lo com a fisionomia hedionda do fascismo, que, por

afinidade, entendem perfeitamente bem. E muito menos espanta que,

abominando então o capitalismo como uma espécie de fascismo, acabem

sempre lutando em favor de reformas econômicas e políticas que o

transformarão exatamente nisso. Como a economia socialista em sentido

integral é inviável, como nunca se chega lá, e como por outro lado os

burgueses raramente têm fibra para resistir à investida socialista contra o

liberal-capitalismo, o resultado é sempre o mesmo: a vitória do fascismo.

A única diferença entre as economias fascistas dos anos 30 e a de agora é que

aquelas eram de escala nacional e, para impor-se, recorreram muito

logicamente a um discurso carregado de mitologia patrioteira e racista. A de

hoje é mundial, devendo portanto usar de pretextos simbólicos que, ao

contrário, sirvam para dissolver as identidades nacionais e os valores morais e

religiosos a elas associados. Daí o pacifismo, o feminismo, o multiculturalismo,

o desarmamentismo civil, o casamento gay, etc. Ideologia, já definia o velho

Karl Marx, é um “vestido de idéias” em torno de objetivos que nada têm a ver

com idéias. Hitler confessava, em privado, não acreditar nem um pouco na

discurseira racista que usava para infundir nos alemães um sentimento de ódio

travestido de amor à justiça. Os próceres do globalismo progressista também

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não acreditam no besteirol politicamente correto que injetam nas massas de

militantes idiotizados. Tanto quanto o comunismo e o fascismo de velho estilo,

o “socialismo democrático” ou “terceira via” de hoje é um compactado de maus

sentimentos numa embalagem de belas palavras.

Fórmula da Minha Composição Ideológica

Alguns leitores cobram-me uma autodefinição ideológica. Outros, mais

solícitos, apressam-se em fazê-la por mim, catalogando-me seja como

neoliberal, seja como anarquista, seja como conservador, seja até como

fascista e o diabo a quatro. Surdo às demandas dos primeiros, que me

parecem artificiais e de puro capricho, não posso, no entanto, permanecer

insensível ante os esforços dos segundos, que traduzem, a olhos vistos, um

anseio genuíno e profundo de suas almas, e, mais que um anseio, uma

necessidade vital absoluta, a qual, se não atendida, acaba por se atender a si

mesma como um estômago de pobre que, desprovido de alimento, se

autodigere mediante uma úlcera. Essas pessoas, com efeito, não sabendo o

que fazer de suas vidas sem um catálogo ideológico de tudo, e não dispondo

de informações cabais sobre a minha personalidade política, acabam por

construí-la com pedaços de si mesmas, colhidos nos bas fonds dos seus

respectivos subconscientes e constituídos substancialmente de temores,

suspeitas, fantasias macabras e uma vasta coleção de demônios.

Não suportando mais ver tanto sofrimento inútil, nem me conformando com

tamanho desperdício de criatividade que mais utilmente se empregaria no

hobby literário, ao qual algumas dessas criaturas aliás se dedicam nas horas

vagas de seu penoso mister catalogante, decido-me, pois, a fornecer enfim

meu perfil ideológico, e não apenas meu perfil de ambos os lados mas também

meu auto-retrato de frente e de costas. Direi, em suma, o que vocês querem

saber, que não é necessariamente o que vocês querem ouvir.

Infelizmente, não posso me definir com uma só palavra, como seria do gosto

de tantos, pela simples razão de que não acredito haver algum conceito

abrangente capaz de juntar, numa só unidade compacta, as diferentes atitudes

e opiniões de um indivíduo ante os diversos setores da vida. O tipo assim

descrito teria a coerência em bloco de uma caricatura, de um Idealtypus

weberiano ou de um arquétipo platônico, mas nada teria de um ser humano1.

Toda fórmula ideológica pessoal compõe-se de um amálgama de preferências

e repulsas variadas, umas referentes à política, outras à moral, outras à

religião, outras à vida econômica e assim por diante. Esses vários elementos

não formam quase nunca uma unidade coerente, embora tendam à coerência

como numa assíntota, aproximando-se dela sem jamais alcançá-la. Tal esforço

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de coerenciação denomina-se, precisamente, filosofia, uma atividade que, pela

própria natureza, é constante e sempre inacabada.

Não podendo, portanto, me definir com um termo unívoco, limito-me a dar uma

lista dos vários elementos que compõem, como podem, minha ideologia

pessoal.

1. Em economia, sou francamente liberal. Acho que a economia de mercado

não só é eficaz, mas é intrinsecamente boa do ponto de vista moral, e que a

concorrência é saudável para todos. Há dois tipos de pessoas que não gostam

da concorrência: os comunistas e os monopolistas. Às vezes é difícil distingui-

los. Quem foi que disse: "A concorrência é um pecado"? O Dr. Leonardo Boff

adoraria ter dito, mas não disse. Quem disse foi John D. Rockefeller. E, como

se vê pelo episódio bíblico de Marta e Maria (ou de Esaú e Jacó), a

concorrência não é pecado nenhum. Pecado é um sujeito ser John D.

Rockefeller ou o Dr. Leonardo Boff.

Como liberal sou contra o socialismo e contra toda forma de Estado

corporativo, seja de estilo mussoliniano, seja católico. Acredito, com Sto.

Tomás, que há um preço justo para cada coisa. Mas, como observavam os

conimbricenses, o número de variáveis a levar em conta no cálculo do preço

justo é ilimitado, e a única maneira de encontrá-lo é deixar que as pessoas

discutam livremente e admitir que, de algum modo, vox populi, vox Dei. O

Estado existe apenas para impedir que os concorrentes se comam vivos, para

assegurar as condições logísticas da prática do liberalismo e para, last not least

amparar in extremis quem não tenha a mínima condição de concorrer no

mercado.

2. Em religião, sou tradicionalista e conservador. Não, não sou eu que sou

assim. Religião é tradição e conservação. É o fator de imutabilidade que faz

contraponto à História, e sem o qual o movimento não seria sequer percebido.

Por isto, o Concílio Vaticano II podia ter mexido em tudo, menos no essencial:

o rito e a doutrina. Ao contrário, ele virou o essencial de pernas para o ar,

apegando-se idolatricamente à imutabilidade do secundário, como por exemplo

o celibato dos padres. Tendo invertido o senso das proporções, o Concílio

tornou a Igreja uma instituição insensata e ridícula, que condena seus próprios

santos enquanto se prosterna ante os inimigos. Mas não defendo a

imutabilidade só do Catolicismo: acharia uma insensatez mudar uma só palavra

do Corão, da Torá ou dos Vedas.

3. Em moral, sou anarquista. Acredito que há princípios morais universais,

permanentes, que a inteligência discerne por baixo da variação acidental das

normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado. Mas, por isso

mesmo, impor o certo é errado, a não ser em caso de vida ou morte. O sujeito

que faz o certo só por obediência e sem compreendê-lo acaba por transformá-

lo no errado. "Experimentai de tudo e ficai com o que é bom", recomendava S.

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Paulo Apóstolo, meu amado guru. É uma questão de viver e aprender. Mas

como podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar? Por

isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e a

autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência,

sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem os religiosos, que

por sua dedicação à vida interior têm autoridade para falar dessas coisas,

devem impor regras morais à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que

afinal não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana e

prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações

práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito corriqueiras, e jamais

em motivos pretensamente elevados de ética, que terminam por fazer da

burocracia estatal um novo clero, e do Código Penal um novo Decálogo. A

coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal.

4. Em educação, sou mais anarquista ainda: não acredito em ensino obrigatório

do que quer que seja e noto que a expansão hipertrófica do sistema de ensino,

público ou privado, só cria novas formas de analfabetismo. Acho que a

educação deveria ser livre, que cada um deve buscá-la na medida de suas

necessidades, e considero uma monstruosidade totalitária que, após proclamá-

la um direito, o Estado moderno faça dela um direito obrigatório. Acho aliás que

o mesmo se dá com muitos outros "direitos", que você acaba exercendo a

muque ou sob pena de prisão. Era um absurdo que as mulheres não pudessem

trabalhar, mas é um absurdo maior ainda que, obrigadas a trabalhar, não

possam ficar em casa para criar seus filhos. Complementarmente, é um crime

que se obrigue uma criança a fazer trabalho de adulto, mas é um crime maior

ainda que ela seja impedida de ganhar seu próprio dinheiro, fazendo, se quiser,

um trabalho que esteja à altura de suas capacidades e que, no fim, há de

educá-la muito mais do que qualquer escola. Tornei-me jornalista ainda quase

um menino, aos dezessete anos, e aprendi na redação o que três décadas de

escola não me ensinariam. Esta porcaria de governo que temos hoje me tiraria

de lá e me poria numa escola para aprender português nos livros de Paulo

Coelho.

5. Em política internacional, e sobretudo em comércio internacional, sou

radicalmente nacionalista, protecionista e tudo o mais que os globalistas

odeiam. Isso não quer dizer que eu seja contra a globalização da economia.

Muito menos há aí qualquer contradição com a crença liberal acima subscrita.

Apenas, entendo que globalismo não é o mesmo que monopolismo das

grandes multinacionais, e que, assim como estas se associam umas com as

outras – e com certos Estados – para ficar mais fortes, é justo que o

empresário nacional, sobretudo o pequeno, busque apoio do seu próprio

governo para não ser esmagado pelos monopólios internacionais. Aí a

intervenção do Estado não é contra o liberalismo ou a concorrência: ela é, ao

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contrário, o fator equilibrante que impede a extinção do liberalismo e sua

substituição pelo monopolismo. O mais detestável dos socialismos é o

socialismo dos ricos.

6. Em filosofia, sou realista, meus gurus sendo Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz,

Husserl e Xavier Zubiri, todos os quais afirmam o poder humano de conhecer

as coisas como são. Husserl e Zubiri, no meu entender, foram os únicos

filósofos realmente grandes deste século, e perto deles um Foucault ou um

Deleuze são apenas meninos de escola. Acho que marxismo, estruturalismo,

desconstrucionismo, psicanálise, neo-relativismo, neopositivismo, etc. etc., são

filosofias boas para analfabetos funcionais e portanto atendem a uma autêntica

necessidade social criada pela rápida expansão do ensino universitário, onde é

preciso fabricar professores cada vez mais rápido e cada vez mais barato. Ler

o Dr. Freud, Poulantzas, La Pensée Sauvage ou Richard Rorty já é esforço

bastante para essa gente, que morreria de congestão cerebral após meia

página de Zubiri ou das Investigações Lógicas.

7. Em História, acredito na relatividade do progresso e acho que todo

progresso se paga com perdas que nem sempre valem a pena. É claro que

aprecio os computadores e os direitos constitucionais, mas penso nos milhões

de vidas humanas que foram sacrificadas no altar do progresso e me pergunto

se nós, sobreviventes, não saímos diminuídos moralmente pelos próprios

benefícios que recebemos2. Um índio, que anda pelado no meio do Xingu, não

tem Internet mas não carrega, nas costas, o peso de tantos pecados históricos.

O progresso, sem dúvida, é vantajoso. Mas não tem a dignidade de um

genuíno ideal moral. É apenas uma conveniência prática, e quando procura se

enfeitar com uma ideologia autoglorificadora, com as pompas de uma utopia

futurista, sobretudo "científica", aí, meus filhos, é que ele se encarna num

Robespierre, num Lênin, num Hitler, num Mao, num desses monstros que os

séculos antigos não poderiam sequer imaginar. Gosto do progresso, não nego.

Mas não sou seu entusiasta e não sacrificaria, por ele, a vida de um cabrito. O

progresso tanto mais vale quanto menos custa.

8. Em todos os domínios e circunstâncias, sou contra o governo mundial.

Ninguém deve governar o mundo, senão Deus. A ONU, a Unesco, o Banco

Mundial, as grandes corporações multinacionais, a Internacional Socialista e

todas as entidades do gênero são para mim a encarnação mesma da

megalomania e do desejo ilimitado de poder. Isso não quer dizer que os

Estados nacionais sejam anjinhos, pois, como já informava a Bíblia, "os anjos

das nações são demônios". Quer dizer apenas que o chefe mundial dos

demônios é muito pior do que todos eles somados.

Que as pessoas acostumadas a identificar globalização e liberalismo não

vejam aí contradição alguma. A unificação política e administrativa do mundo

não beneficiará o liberalismo, mas o extinguirá para sempre, instituindo a

Page 26: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

26

"Terceira Via". Que é a Terceira Via? É aquela síntese de capitalismo e

socialismo que, resguardando a liberdade de movimento para as grandes

empresas que apoiam o governo, planeja, controla e determina tudo o mais.

Essa síntese não é nova. Surgiu na década de 20 e se chama fascismo.

Naquela época o fascismo era coisa de escala nacional. Hoje querem fazer um

fascismo mundial e, para disfarçar, fazem campanhas alarmistas contra os

remanescentes do fascismo old style, como Le Pen e o Dr. Enéias, os mais

autênticos bois-de-piranha da boiada universal. Para enfrentar o governo

mundial é preciso criar um novo nacionalismo, liberal, democrático, inteligente,

capaz de tomar parte no jogo da globalização sem deixar que transformem

nosso país numa província ou numa colônia de férias para turistas sexuais. E

para isso é preciso resistir ao maquiavélico jogo duplo que, de um lado,

exaltando falsamente o liberalismo, tudo submete a um planejamento global e,

de outro, incentivando maliciosamente reivindicações socialistas malucas e

toda sorte de ressentimentos doentios, divide o povo, desorienta os

intelectuais, debilita o Estado brasileiro e nos deixa, a todos, à mercê do poder

multinacional.

Foi para atender aos ditames dessa minha ideologia compósita, segundo as

várias exigências que me parecessem mais razoáveis no momento e na

situação, que já tive a ocasião de votar em Lula e em Roberto Campos, em

Maluf e Brizola, em Ulisses Guimarães e em Delfim Netto, em Franco Montoro

e em Fernando Henrique Cardoso. Não votei em Collor: tomei um Engove e

votei no Lula. Na eleição seguinte, não votei em Lula: tomei um Engove e votei

em FHC. Mas escolhi sempre conforme o detalhe concreto do que estivesse

em discussão e não conforme aquela linearidade rígida de quem é "direitista"

ou "esquerdista" como se torce pelo Coríntians ou se crê em Jesus Cristo: de

uma vez por todas e por toda a vida. Pois esta coerência só se pode ter nas

coisas profundas, duráveis e do coração, e não nessa agitação epidérmica que

é a política, onde, sem aviso prévio, de repente as pessoas, idéias e coisas se

convertem em seus contrários.

23/12/98

NOTAS:

1 - Talvez por isso os líderes de maior coerência ideológica em bloco, na

história do nosso país, foram também os mais estéreis politicamente, como

Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes, ao passo que outros deixaram obra mais

durável justamente porque se permitiram ajustes e combições "pragmáticas".

2 - Isso não implica a adesão a nenhuma teoria maluca da "culpa coletiva". O

que digo é que nos tornamos culpados, individual e concretamente, pelos

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27

custos do progresso, na medida em que aceitamos seus benefícios

levianamente, sem gratidão consciente pelas gerações que se sacrificaram por

nós.

Casta de malditos

Diário do Comércio, 30 de abril de 2007

Há mais de dois séculos a casta dos intelectuais ativistas espalha terror e

sofrimento por toda parte, sempre sob a desculpa de conduzir a humanidade a

um reino de justiça igualitária. Não há genocídio, não há violência, não há

brutalidade que não tenha por trás a criatividade incansável desses tagarelas

iluminados, cujo maior talento é o de jogar os demais grupos humanos uns

contra os outros enquanto mantêm oculta sua própria existência de agentes

históricos principais, dirigentes máximos do processo e mandantes últimos de

todos os crimes.

O intelectual ativista distingue-se do filósofo, do erudito, do cientista, do

escritor, embora possa atuar sob a camuflagem de um ou vários desses papéis

sociais, confundindo a platéia. A diferença é que, enquanto estes se esforçam

para tentar compreender e expressar a realidade, ele só se ocupa de condená-

la e de tentar transformá-la em outra coisa. O homem de estudos tem diante de

si um mundo que já lhe parece complicado demais para a sua pobre

cabecinha. O intelectual ativista tem na cabeça inchada um projeto de mundo,

o plano integral de uma nova humanidade, que ele acha infinitamente superior

a tudo quanto já existiu ou existe neste universo desmasiado estreito para a

sua grandiosa imaginação.

Como não se pode interferir numa coisa sem jamais pensar nela, o intelectual

ativista às vezes estuda algo da realidade, com o objetivo de alcançar prestígio

num domínio especializado para depois poder falar com uma tremenda

autoridade científica sobre assuntos dos quais ele sabe pouco ou nada e dos

quais na verdade não quer saber coisa nenhuma. Voltaire ganhou fama como

expositor da física de Newton, que ele havia estudado com certa atenção, para

depois posar de guru em todas as áreas da atividade humana nas quais sua

erudição era sofrível ou nula. Karl Marx estudou razoavelmente Epicuro e

Demócrito para depois entrar na história como reformador da filosofia de Hegel,

da qual ele tinha conhecimentos muito limitados e uma compreensão

barbaramente deficiente. Richard Dawkins estudou genética e saiu dando

palpites sobre religiões que ele desconhece no todo e nos detalhes. Noam

Chomski dedicou alguns anos aos estudos lingüísticos para depois poder

orientar a humanidade em questões de economia, guerra, política, direito e

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28

relações internacionais, onde seus conhecimentos se limitam àquilo que

qualquer um pode ler diariamente na mídia popular esquerdista.

A quota de atividade intelectual séria a que esses indivíduos se entregam

durante a primeira parte da vida não reflete seus interesses verdadeiros. É

apenas uma fase temporária de conquista de credenciais que depois serão

usadas e abusadas fora da sua jurisdição. É por isso que eles se chamam

intelectuais ativistas e não intelectuais tout court . O objetivo de suas

existências é o ativismo. A vida intelectual é somente um meio e pretexto. Eles

não querem compreender a realidade. Querem modificá-la, e não apenas em

algum detalhe que esteja ao seu alcance. Querem modificá-la no todo, de alto

a baixo, corrigindo a natureza e Deus, que tiveram o desplante de fazer as

coisas como elas são sem consultar antes a sabedoria de Voltaire, Karl Marx e

Richard Dawkins.

Vejam o caso deste último. O fato de que todas as civilizações conhecidas

tivessem alguma religião pode ser facilmente explicado pela razão de que as

religiões são universalmente necessárias para dar abertura a uma dimensão da

realidade que não poderia ser conhecida sem elas. Richard Dawkins prefere

atribuir a existência das religiões a um efeito residual da evolução das

espécies, que não logrou produzir ao longo dos tempos nenhuma criatura tão

inteligente quanto Richard Dawkins e por isso deixou a humanidade à mercê de

crendices e superstições bárbaras.

Com o risco de afastar-me perigosamente do assunto principal deste artigo,

não resisto a observar que a simples redução da questão religiosa a uma

matéria de “crença” ou “descrença” já é uma simplificação intelectualista que

jamais poderia ter-se produzido antes que um assunto tão complicado e

exigente fosse entregue ao arbítrio de palpiteiros ativistas que não têm a

mínima condição de compreendê-lo.

Desde logo, a noção de “fé” só existe nas religiões do grupo abraâmico –

judaísmo, cristianismo e islamismo. Não se fala disso no budismo, no

hinduísmo, no xintoísmo ou nas religiões cosmológicas do Egito, da Babilônia,

da Pérsia, etc. Um elemento tão limitado no tempo e no espaço não pode, com

alguma razoabilidade científica, ser apontado como o traço universal definidor

das religiões em geral. Mesmo dentro do estrito domínio cristão, a fé não

significa “crença”, muito menos crença irracional, mas apenas confiança numa

presença divina cujas provas iniciais tendem a ser esquecidas na agitação e

dispersão de uma vida ilusória. A fé não é “crença”, é antes a fidelidade a uma

recordação espiritual evanescente. O sujeito que não sabe nem isso deveria

ser autorizado a participar do debate religioso, na melhor das hipóteses, só

como ouvinte atento e mudo.

Em segundo lugar, o religioso não se distingue do materialista só na superfície

intelectual das suas “crenças”, mas na profundidade da sua vida interior, na

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sua percepção da realidade. O materialista identifica-se com o seu corpo

porque não tem capacidade de abstração suficiente para conceber sua pessoa

como unidade espiritual, como “tipo” cuja estrutura essencial antecedia como

possibilidade sua existência temporal e continuará inalterada como tal depois

da morte. “ Tel qu'en lui-même enfin l'éternité le change ”, dizia Mallarmé ante o

túmulo de Edgar Allan Poe: a eternidade o transforma enfim naquilo que ele

sempre foi. Esse nível de percepção de si é inacessível ao indivíduo

sensorialista, hipnotizado pelo fluxo das impressões corporais. Para ele, o

discurso espiritual não diz, nada, é vazio, porque trata de realidades que

transcendem a sua esfera de experiência. Ele só pode compreender esse

discurso como seqüência de afirmativas sobre o universo físico, as quais, não

podendo ser testadas pelos meios da ciência de laboratório, só podem ser

objeto de “crença” ou “descrença”. Por trás da afetação de superioridade

olímpica de um Dawkins ou de um Daniel Dennett existe a consciência

humilhante e dolorida de uma deficiência psíquica, de um handicap espiritual

deprimente. É por isso que seu “materialismo” não é só uma teoria, é uma

atitude integral, carregada de ódio às religiões e de uma vontade radical de

eliminá-las da face da Terra. O sentimento de inferioridade e exclusão que

corrói as almas desses indivíduos é ainda mais intolerável do que aquele que

poderia resultar de qualquer discriminação meramente social ou cultural: o

homem privado de acesso à dimensão divina da existência sente-se em vida

um condenado do inferno, sua alma é permanentemente acossada por uma

inveja espiritual insanável e sem descanso. Ele é, literalmente, um pobre diabo.

Não espanta que tantos materialistas – explícitos ou disfarçados – venham

engrossar as fileiras dos intelectuais ativistas e explorar o ressentimento dos

excluídos sociais. Incitando estes últimos ao ódio e à revolta contra uma

condição social específica que pode ser acidental e passageira, eles buscam

alívio para seu próprio sentimento de exclusão, muito mais permanente, geral e

insanável.

Também não é de estranhar que muitas vezes os intelectuais ativistas gostem

de ostentar o título de “malditos”, dando a este termo a acepção de meros

excluídos da sociedade. Essa acepção é falsa, porque em geral eles não são

excluídos sociais de maneira alguma, são os queridinhos do sistema,

paparicados e bem remunerados. Esse uso do termo é pura camuflagem

irônica: eles sabem que são malditos num sentido muito mais real e profundo.

São malditos espiritualmente, excluídos da experiência do divino no mundo.

É claro que muitos crentes das religiões são, nesse sentido, tão materialistas

quanto Dawkins ou Dennett: estão privados da vivência espiritual e só podem

assimilar o conteúdo da religião como “crença”, na esperança de alcançar

algum dia, ao menos na hora da morte, uma percepção mais consistente da

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realidade divina. Só que nessa esperança existe mais sabedoria do que num

desespero travestido de orgulhoso desprezo. O puro “crente”, que tem apenas

“crença” e ainda não a verdadeira “fé”, está no caminho da vida espiritual. Mas

aquele que pensa que toda fé é crença, esse é o mais ignorante de todos os

ignorantes, que discursa com ares de certeza tanto mais infalível quanto menos

concebe a realidade de que fala.

Mas, voltando aos intelectuais ativistas, dois acontecimentos recentes ilustram

da maneira mais enfática o espírito que anima essas criaturas.

O primeiro, naturalmente, é a pressa indecente com que o prof. Roberto

Mangabeira Unger aceitou um cargo no governo que ele vinha insistentemente

rotulando – aliás com razão -- de “o mais corrupto da nossa história”.

Acrescentando à obscenidade o cinismo, o ex-professor de Harvard prontificou-

se a retirar suas críticas, atribuindo-as à ingenuidade de ter acreditado na mídia

antipetista, sem nem mesmo lhe ocorrer que alguém pudesse desejar saber

por que o arrependimento de tê-las publicado só lhe veio depois do convite

para o ministério, nem um minuto antes.

O objetivo do intelectual ativista é sempre e invariavelmente o poder. Sua

atividade intelectual é apenas um instrumento ou um derivativo provisório, sem

qualquer significado em si mesmo. Não li toda a obra do prof. Unger, mas a

parte que li não continha uma só página de análise da realidade: só a

expressão obsessivamente insistente de projetos, de utopias, de deveres que

as pessoas deveriam cumprir se elas tivessem a felicidade de ser o prof. Unger

e se o mundo não fosse injusto ao ponto de ter feito desse profeta iluminado

um simples professor universitário e não uma reencarnação de Júlio César ou

Gengis-Khan. O prof. Unger sempre discursa na clave do “dever ser”, com

profundo desinteresse pelo “ser”. Ante a oportunidade de exercer ainda que

uma migalha insignificante de poder no governo podre de um país falido,

situado na extrema periferia do mundo, ele não se fez de rogado como Jonas

ante o chamamento divino. Mais que depressa, atirou ao lixo a camuflagem de

estudioso e mostrou o que é: um oportunista afoito, ávido de meios para

“transformar o mundo” à sua imagem e semelhança.

Mas, já que ele se arrependeu de suas próprias palavras, deu-me também a

oportunidade de me arrepender das minhas: qualquer coisa que eu tenha dito

ou escrito em louvor do prof. Unger fica nula e sem efeito a partir da sua

nomeação. Os atos públicos de um filósofo são interpretações – às vezes

radicais – que ele dá à sua própria filosofia. Sócrates, enfrentando a morte com

um sorriso, deu o melhor esclarecimento possível sobre como se deveria

interpretar sua teoria da vida eterna. Integrando o establishment que antes ele

fingia desprezar, o prof. Unger mostrou o que é sua filosofia: mero discurso de

autopropaganda, trocável por qualquer outro que sirva ao mesmo objetivo.

Page 31: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

31

O outro acontecimento foi o discurso bombástico da professora de Literatura

Inglesa, Nikki Giovanni, na noite de vigília da Virginia Tech em homenagem às

vítimas de Cho Seung-hui. “Nós somos a Virginia Tech! Nós não seremos

derrotados”, exclamava ela, adornando com uma retórica de triunfalismo

retroativo o vexame da inermidade de milhares ante um agressor solitário e

sendo instantaneamente celebrada pela mídia como uma espécie de antípoda

do assassino sul-coreano, a encarnação da vida invencível da coletividade em

contraste com a morte de uns quantos indivíduos.

Nenhum outro orador seria melhor para essa farsa. Nikki Giovanni foi quem,

nas suas aulas, deu sentido e orientação prática à loucura de Cho Seng-hui,

infundindo-lhe o ódio assassino aos protestantes, aos judeus e aos brancos em

geral. As duas peças de teatro, deformidades literárias medonhas nas quais o

criminoso em preparação anuncia ao mundo as intenções que lhe passavam

pela alma, são um traslado quase literal de poemas da sua professora, onde é

explícito e enfático o apelo à matança dos “honkies” – o equivalente branco do

pejorativo “nigger”. Num deles, “ The True Import of Present Dialog, Black vs.

White ” (“O verdadeiro alcance do presente diálogo, negro versus branco”), ela

não deixa por menos: “ We ain't got to prove we can die. We got to prove we

can kill ” (“Não temos de provar que somos capazes de morrer. Temos de

provar que somos capazes de matar.”) E, num convite direto: “ Do you know

how to draw blood? Can you poison? Can you stab-a-Jew? Can you kill huh? ”

(“Você sabe como arrancar sangue? Sabe envenenar? Sabe esfaquear um

judeu? Você sabe matar, hein?”). Mais adiante, ela sugere ao negro urinar

numa cabeça loira e em seguida arrancá-la. Num outro poema, dedicado ao

espirito das revoluções, ela propõe um kit especial para crianças, com gasolina

e instruções sobre como montar um coquetel Molotov. Seus ensaios estão

repletos de estereótipos racistas destinados a fomentar o ódio aos brancos.

Mas talvez a melhor expressão da mentalidade que ela transmite a seus alunos

seja a tatuagem que ela traz no braço, “Thug life”, (“vida de bandido”), em

homenagem a Tupac Shakur, um delinqüente raper assassinado num tiroteio

por outros rapers em 1997.

A história de Nikki Giovanni, que jamais aparecerá na mídia brasileira, pode ser

lida no artigo de Steve Sailer, “Virginia Tech's Professor of Hate” (“A professora

de ódio na Virginia Tech”, publicado na revista de David Horowitz, Front Page

Magazine. Mas quem melhor a resumiu foi um dos leitores que enviaram

comentários ao blog de Sailer: “ Quantas vezes Cho Seng-hui ouviu na Virginia

Tech as palavras ‘privilégio branco'? ” Não dá para contar, mas, só no website

da escola essa expressão aparece 33 vezes.

Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá matando gente

se estiver dopado. E a própria Nikki Giovanni sempre soube que Cho não era

bom da cabeça. Mas que importa? Os intelectuais ativistas, por definição, são

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32

sempre inocentes das conseqüências de seus atos e palavras. Se o prof.

Unger disse tais ou quais coisas contra o governo, a culpa é da mídia que o

enganou, pobrezinho. Se Cho Seng-hui levou à prática o ódio anti-branco que

uma professora lhe inoculou, a culpa é dos próprios brancos, do sistema, do

capitalismo, do mundo mau – de todos, menos dela.

Essa crença do intelectual ativista na sua própria inocência e na culpa radical

dos outros é uma herança direta das heresias do fim da Idade Média, cuja

continuidade nas ideologias revolucionárias modernas é hoje uma realidade

histórica bem provada.

Às vezes não é só convicção de inocência. É um sentimento de ser vítima no

instante mesmo em que se comete o crime. É uma inversão total da relação de

atacante e atacado. Se querem um exemplo, vejam o projeto de lei PLC

122/2006, que quer punir como crime toda crítica ao homossexualismo. A

desculpa é proteger uma comunidade discriminada, mas que comunidade é

mais discriminada do que os cristãos, que morrem aos milhares toda semana,

nos países islâmicos e comunistas, e que nas democracias ocidentais são cada

vez mais privados do direito de expor sua fé em público? É contra eles que

essa lei iníqua se volta diretamente, numa ameaça tenebrosa aos seus direitos

mais elementares – uma perseguição aberta e cínica incomparavelmente mais

temível do que qualquer risco que os homossexuais possam ter sofrido neste

país ou em qualquer outro. O que esse projeto consagra como lei é a inversão

de nomes entre o perseguidor e o perseguido, entre o opressor e o oprimido,

fazendo o primeiro de coitadinho e o segundo de criminoso.

Se a história da origem das ideologias modernas fosse contada ao público,

este reconheceria imediatamente, nessa lei, nas declarações do prof. Unger ou

no discurso da profa. Nikki Giovanni, a mesma velha pretensão demencial dos

cátaros e dos albigenses à pureza intocável, coroada pelo direito de condenar

o universo.

Como ninguém conhece isso, a ordem dos tempos também fica invertida, as

velhas reivindicações de heresiarcas assassinos aparecem como o cume do

progresso e das luzes, a objeção racional às suas pretensões se torna

“fanatismo” e “fundamentalismo opressor”.

***

Sobre os intelectuais ativistas, leiam, se puderem, estes dois livros:

(1) “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, trad. Paulo Neves, São Paulo,

Editora Peixoto Neto, 2007. É tradução de “ La Trahison des Clercs”, um

clássico de 1927 em que o filósofo judeu, um dos homens mais lúcidos que a

França já produziu, denuncia a abdicação geral dos deveres da inteligência por

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33

parte de intelectuais ávidos de poder. O editor Peixoto Neto foi meu aluno. Não

o vejo há muitos anos, mas não é errado um professor ter orgulho de seus ex-

alunos quando estão fazendo um belo trabalho.

(2) “Le Socialisme des Intellectuels”, de Jan Waclav Makhaïski, trad. e ed.

Alexandre Skirda, Les Éditions de Paris, 2001. Makhaïski, autor polonês que

escrevia em russo, foi militante esquerdista e conheceu bem os meios

revolucionários russos e internacionais no fim do século XIX. Das suas

observações e experiências, tirou as seguintes conclusões: (1) a classe

revolucionária efetiva não eram os proletários, mas os intelectuais; (2) eles não

eliminariam o capitalismo, mas o modificariam até que ele começasse a

trabalhar mais em proveito deles do que dos capitalistas. Batata. Não deu

outra.

Alquimia da islamização

Diário do Comércio, 21 de novembro de 2005

Um vício generalizado da nossa época é o abuso das figuras de linguagem.

Abuso não quer dizer uso excessivo, mas uso errado. Figuras de linguagem

existem para três finalidades: expressar de maneira compacta um aglomerado

de significações, enfatizar no objeto um valor ou nuance que o seu simples

conceito não enuncia, dar voz à primeira impressão de um objeto ainda mal

apreendido, na esperança de que esse artifício provisório ajude a apreendê-lo

melhor. O primeiro desses usos é poético, o segundo retórico, o terceiro

dialético ou propriamente filosófico. Em cada um deles as relações entre o

objeto apreendido e sua expressão verbal formam uma equação diferente. Em

todos o emissor do discurso tem o domínio consciente da equação. A prova

disto obtém-se pela análise que torna claro o que parecia obscuro: o

aglomerado poético pode ser decomposto nas suas várias camadas de

significado (se não pode, então não é poesia, é macumba); a qualidade

retoricamente acentuada pode ser distinguida do objeto que a ostenta; a

primeira impressão pode ser completada por impressões subseqüentes,

expressas em outras tantas figuras de linguagem, até que da confluência das

várias impressões e respectivas figuras surja, numa síntese intuitiva, a forma

essencial do objeto visado.

A figura de linguagem é usada de maneira abusiva quando não serve para

nenhuma dessas operações. As palavras não expressam então nem uma

riqueza de significações simultâneas, nem uma ênfase valorativa consciente,

nem um esforço de chegar à realidade através do véu do discurso. Expressam

a paralisia do pensamento que, não sabendo resolver a equação, isto é, passar

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34

do discurso à percepção intuitiva por meio da análise, se detém na repetição

hipnótica do discurso mesmo, fazendo dele um substitutivo da realidade.

Se tantos intelectuais europeus não tivessem se habituado a pensar assim --

se é que isso ainda é pensar --, jamais teria surgido uma escola como o

desconstrucionismo, que nega a realidade em nome do discurso. O

desconstrucionismo não é uma análise filosófica: é a simples transposição

metalingüistica da própria patologia verbal que o alimenta. Mais ou menos

como aquelas especulações complexíssimas, intermináveis e

desesperadoramente fúteis com que um esquizofrênico letrado, acreditando

analisar seus sintomas, não faz senão produzir alguns novos – ou, pior ainda,

um upgrade dos anteriores.

A doença, surgida na Europa, chegou até a América e, aqui, fez vítimas nos

lugares mais inesperados. A metonímia – ou mais precisamente metalepse --

“guerra contra o terrorismo”, que algum iluminado soprou para dentro da

cabeça do presidente Bush, prova que conservadores americanos são capazes

de pensar tão esplendidamente mal quanto qualquer maoísta do Quartier Latin.

Guerra contra o terrorismo é guerra contra quem? Terrorismo não é o nome de

um inimigo, mas de uma de suas formas de ação. Adotaram essa expressão

desastrada por dois motivos. Primeiro, por covardia: não queriam dizer

“islamismo” para não ser politicamente incorretos, nem “marxismo” para não

parecer “nostálgicos da Guerra Fria”, nem muito menos “islamomarxismo” ou

“marxo-islamismo” (nomes horríveis, mas tecnicamente apropriados,

descrevendo com exatidão os elementos do composto) porque os exporia à

rotulagem fácil de “teóricos da conspiração”. O segundo motivo, derivado do

primeiro, é a pseudo-esperteza de usar um chavão publicitário em vez do nome

da coisa. É fácil ser contra o “terrorismo” porque é um meio de ação hediondo,

só aceitável naquele estado alterado de consciência que revela, precisamente,

o “fanático”. Como ninguém quer ser carimbado de fanático, todo mundo adere,

pelo menos da boca para fora, à “guerra contra o terrorismo”. E tão

reconfortados se sentem ao ver que concordaram em lutar, que já nem ligam

de continuar sem saber contra quem. Só que, sendo impossível combater por

meios invariavelmente lícitos um inimigo tão protéico e evanescente, alguma

violência com aparência de terrorismo todo mundo está sujeito a cometer a

qualquer momento, e no instante seguinte estarão todos, em nome da

concórdia, se acusando uns aos outros de terroristas. Toda a chamada “ordem

internacional” baseia-se, hoje, nessa absurdidade completa. E desta nascem

muitas outras.

Os franceses, por exemplo, ficaram contentíssimos com a fatwa – decreto

inspirado – com que a autoridade religiosa islâmica amorteceu em cinco

minutos a baderna ante a qual o governo tivera de se contentar com

gesticulações impotentes adornadas de palavreado pomposo. Nem de longe

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percebem que refrear as manifestações é demonstração de força ainda mais

eloqüente do que produzi-las. Se os jovens muçulmanos rebelados se

mostraram capazes de criar em poucos dias mais confusão e terror do que os

meninos enragés de 1968, um único mufti , com umas poucas linhas escritas,

provou ter mais autoridade do que o governo, a polícia, a mídia e a opinião

pública da França, todos somados. Criar o caos, qualquer bando de

irresponsáveis pode, com um pouco de ousadia. Mas produzir o caos e em

seguida transfigurá-lo em ordem é o máximo de controle que seres humanos

podem ter sobre o fluxo dos acontecimentos. É a arte da transformação, como

em alquimia: Solve et coagula . Primeiro a substância deve ser dissolvida e

transformada numa pasta caótica pela ação corrosiva do “mercúrio” (entre

aspas porque não corresponde ao mercúrio químico; designa a força

dissolvente e desorganizante em geral). Quando está no ponto, joga-se nela o

“enxofre”, que a cristaliza, produzindo o “sal” – a nova ordenação interna

desejada. Há séculos – documentadamente, pelo menos desde Ibn Khaldun

(1332 - 1406) -- os muçulmanos sabem que esses símbolos alquímicos podem

designar também forças histórico-culturais, cujo manejo sutil está então ao

alcance de uma ciência política infinitamente mais fina do que aquilo que leva

esse nome nas universidades ocidentais. A dialética de Hegel e Marx é uma

caricatura de alquimia política em linguagem pedante. A superioridade

intelectual dos muçulmanos, nesse ponto, é arrasadora (leiam Henry Corbin e

Seyyed Hossein Nasr), e é nela – não na pura brutalidade do terrorismo, ou na

força passiva da multiplicação genética -- que reside o segredo da expansão

islâmica. Por isso é que, por trás de sua aparência de imigrantes bárbaros, os

muçulmanos têm manipulado os Estados ocidentais com a facilidade de quem

tapeia crianças. Querem um exemplo?

Com o apoio da British Advertisings Standards Authority, desde janeiro de 2005

os muçulmanos ingleses lançaram uma campanha para proibir outdoors que,

pela exibição ou insinuação de nudez, fira os seus sentimentos religiosos. O

Canadá foi um pouco além: está discutindo seriamente, por sugestão de um

ex-procurador geral, a hipótese de adotar a shari'a (conjunto de mandamentos

corânicos) como lei reguladora para os residentes muçulmanos, que assim

teriam direitos e deveres diferentes daqueles que pesam sobre o restante da

população (com a conseqüência inevitável de que, com o crescimento

demográfico desproporcional, logo a shari'a dominará todo o Canadá). Nos

EUA, inúmeras escolas oficiais – notem bem: oficiais – punem qualquer crítica

ao Islam submetendo o faltoso a um estágio obrigatório de “reeducação da

sensibilidade”, que inclui horas e mais horas de recitações do Corão e audição

de pregações islâmicas.

Ou seja: uma comunidade carente, que chegou anteontem trazendo nada mais

que sua miséria e seu ódio ao país hospedeiro, em pouco tempo conquista

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36

direitos especiais e uma posição privilegiada na sociedade, e sua religião é

tratada com a deferência devida a uma prima-dona autoritária e ranheta.

Enquanto isso, o que se passa com a religião local, cujos santos e mártires,

mediante sofrimentos e trabalhos indescritíveis, criaram a civilização e a cultura

desses Estados e lhes ensinaram os primeiros princípios da moralidade que

fundamentam suas leis?

Em várias cidades da Europa e dos EUA, a exibição pública de um crucifixo é

banida por lei como atentatória aos direitos dos ateus; o professor ou aluno que

entre numa escola oficial portando uma Bíblia corre o risco de ser suspenso ou

expulso; a prece em voz alta é vetada em certos edifícios estatais, os festejos

de Natal são proibidos nas praças públicas, e inscrições com os Dez

Mandamentos são arrancadas por iniciativa da autoridade ciosa de não ferir os

sentimentos politicamente corretos.

Não vou me prolongar na descrição do estado de coisas. Digo apenas que é

aviltante e criminoso. Quem quiser saber mais – e tiver estômago para isso –

que leia “Persecution”, de David Limbaugh (Harper Collins), “The

Criminalization of Christianity”, de Janet L. Folger (Multnomah Publishers), “The

ACLU Versus America”, de Alan Sears e Craig Osten (Broadman & Holman) ou

simplesmente acompanhe as notícias diárias sobre anticristianismo militante no

site www.wnd.com .

A religião declaradamente inimiga do Ocidente (v. “The West's Last Chance.

Will We Win The Clash of Civilizations?”, de Tony Blankley, Regnery, 2005) é

tratada nos países ocidentais como se fosse senhora do espaço inteiro,

enquanto as religiões-mães da nossa civilização, judaísmo e cristianismo, são

escorraçadas como cães sarnentos, por iniciativa das próprias autoridades

governamentais que, por outro lado, se dizem em “guerra contra o terrorismo

islâmico”.

Cada vez mais a posição da religião cristã e judaica no Ocidente,

principalmente na Europa e nos Estados americanos governados pela

esquerda, se torna a mesma que têm nas ditaduras islâmicas -- como por

exemplo o Irã, onde todo culto não-muçulmano só pode ser praticado em

recinto fechado, sendo proibida toda pregação pública, distribuição de livros,

etc. – ao mesmo tempo que o Islam se coroa dos direitos e privilégios de uma

religião hegemônica.

Mas, partindo daquela premissa inicial incongruente, muitas análises da

situação, correntes na mídia e nos meios universitários, conseguem inverter os

termos do problema, seja por maquiavelismo cínico, seja por ignorância:

“A batalha subjacente (à luta contra o terrorismo) será entre a civilização

moderna e os fanáticos antimodernistas; entre aqueles que acreditam no

primado dos indivíduos e os que acreditam que os seres humanos devem

obediência cega a uma autoridade mais alta; entre os que dão prioridade à vida

Page 37: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

37

neste mundo e aqueles que acreditam que a vida humana não é senão a

preparação para uma existência além da vida...”

Quem escreveu isso foi o ex-secretário do Trabalho do governo Bill Clinton,

que se gaba de ser um grande “analista simbólico” das mudanças

civilizacionais. Movido por seu ódio à “direita religiosa” americana, ele descreve

um campo mundial dividido entre “fundamentalistas” ou “transcendentalistas”,

como George W. Bush e Bin Laden, e “modernistas” ou “laicistas” como ele

próprio, e conclui: “O terrorismo rompe e destrói vidas. Mas o terrorismo não é

o único perigo que enfrentamos.”

Não é. O “perigo que enfrentamos” são inscrições dos Dez Mandamentos, são

crianças cristãs cantando canções de Natal, são padres, pastores e rabinos

recitando Salmos, são famílias religiosas que não aceitam o casamento gay e o

abortismo em massa, é, enfim, tudo aquilo que se opõe à ética materialista,

atéia e politicamente correta.

Só há um problema: essa ética é que, em nome do “multiculturalismo”, concede

direitos especiais à minoria muçulmana enquanto sufoca tradições ocidentais

milenares. Como poderia então ser ela a grande inimiga do radicalismo

islâmico? Ela é o instrumento mesmo de que este se serve para debilitar a

cultura da Europa e da América e subjugá-la ao seu ímpeto revolucionário e

destruidor.

E não há nisso nenhuma estranha coincidência. A origem dessas modas

culturais é bem conhecida: remonta, através de uma cadeia de intermediários

fiéis, à Escola de Frankfurt e ao filósofo húngaro George Lukacs. Elas são o

chamado “marxismo cultural” em estado puro – a arma mortífera concebida

dentro do próprio Ocidente para destruir sua civilização.

Impressionados com o fracasso da revolução socialista na Europa Ocidental no

começo do século XX, e especialmente com a defecção geral dos proletários

que foi a sua causa imediata, os frankfurtianos e Lukacs começaram a

especular se, além da resistência político-militar da “burguesia”, não haveria

outro fator, como direi, astravancându us pogréssio do çossializmu. Chegaram

à conclusão de que havia: eram milênios de herança judaico-cristã, o universo

simbólico inteiro da civilização Ocidental. “Quem nos livrará da civilização

Ocidental?”, perguntava Lukacs.

A resposta não demorou a vir de Moscou. Stalin, transferindo para as nações a

teoria da luta de classes, dividiu o mundo em Estados proletários e Estados

burgueses. Os primeiros estavam, evidentemente, no chamado “Terceiro

Mundo”. A ideologia do terceiromundismo começou a nascer aí, entre as duas

guerras, com o intuito de levantar contra o Ocidente burguês todas as forças

políticas, culturais, psicológicas e psicopáticas da Ásia, da África e da América

Latina. Os “condenados da Terra” libertariam da civilização Ocidental o pobre

Lukacs por meio do intenso trabalho dos partidos comunistas para

Page 38: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

38

arregimentar, treinar e armar a grande “nação islâmica” para a guerra mortal

contra o Ocidente. A história é longa para contar em detalhes, mas a leitura do

segundo volume de “The Sword and the Shield. The Mitrokhin Archive”, de

Christopher Andrew e Vassili Mithrokin, recém publicado sob o título “The

World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World” (Basic

Books, 2005), é um bom começo para compreendê-la.

A invasão física e cultural do Ocidente por hordas de imigrantes ao menos

implicitamente solidários com o terrorismo é a bomba de efeito retardado

plantada pela estratégia global estalinista. É claro que, nisso, o Islam não teve

o papel passivo de massa de manobra. Elites islâmicas versadas tanto nas

tradições muçulmanas quanto nas doutrinas ocidentais, especialmente o

marxismo, o positivismo (no sentido amplo da palavra), o existencialismo e o

estruturalismo-desconstrucionis mo, tinham suas próprias ambições e um plano

de longo prazo.

Nos anos 50, um suíço islamizado, Frithjof Schuon, voltou da Argélia,

transfigurado por uma longa imersão nas ciências espirituais islâmicas, àquela

altura praticamente desconhecidas no Ocidente fora de um reduzido círculo de

interessados. Sua promessa ao chegar foi: “Vou islamizar a Europa.” Disse e

fez. Sem comícios nem bombas. Tornou-se o guia espiritual de eminentes

intelectuais, milionários e homens de governo europeus. Almas de elite, que

haviam perdido a conexão íntima com o cristianismo, recuperaram um sentido

de ordem islamicamente moldado. Não se “converteram” ao Islam, pelo menos

exteriormente. Apenas, suas almas foram dissolvidas e recristalizadas no forno

da alquimia espiritual islâmica. Discípulo do principal discípulo de Schuon -- o

lituano naturalizado britânico Martin Lings – é, por exemplo, o futuro rei da

Inglaterra, o príncipe Charles. Só por essa amostra vocês imaginam o poder da

coisa. O rombo por onde o Islam invadiu o Ocidente não está em baixo, entre o

povão revoltado e estudantes furiosos. Está acima do que o comentário político

usual enxerga.

Pode parecer absurdo que altas doutrinas espirituais convirjam com o

marxismo, mas a identidade do alvo – a destruição do Ocidente – é patente

demais para que a diversidade de inspirações originárias constitua problema.

Ademais, inúmeros teóricos marxistas e muçulmanos vêm fazendo há décadas

um profundo trabalho de harmonização das duas grandes utopias: o socialismo

planetário e o califado global. A orientação mais geral é tomar o islamismo

como um coroamento espiritual do socialismo meramente “terrestre”.

A visão monstruosamente invertida que Robert Reich apresenta da invasão

islâmica – visão hoje compartilhada por quase todos os defensores

“modernistas” do Ocidente, é, como a expressão mesma “guerra contra o

terrorismo”, produto de um pensamento auto-impugnante que toma figuras de

Page 39: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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linguagem como objetos reais. “Fundamentalismo” é figura de linguagem.

“Modernidade” é figura de linguagem. “Fanáticos” é figura de linguagem.

“Choque de civilizações” é figura de linguagem. Nenhuma delas usada como

utensílio provisório para a investigação da verdade, mas todas como fetiches

verbais com que a confusão mental se camufla a si própria, fazendo-se passar

por discurso de conhecimento.

O império da vontade

Jornal do Brasil, 5 de janeiro de 2006

Se há um esforço inútil, embora inevitável, é o de contestar o relativismo. É

inevitável porque objeções relativistas são fáceis de aprender, fáceis de repetir

e acessíveis gratuitamente a qualquer bobão interessado em debater o que

ignora. Não importa o que você diga, elas começarão a saltar por todo lado

como sapinhos histéricos, e você não terá remédio senão sair caçando uma a

uma ou admitir que teria sido melhor ficar quieto desde o início.

Não que a dificuldade de caçá-las seja notável. Superar o relativismo é a

escola maternal da filosofia (ingressar nele é o berçário). O problema é que,

sendo meras combinações automáticas de juízos, prescindindo de qualquer

apreensão da realidade, elas têm uma facilidade enorme de reproduzir-se em

formatos variados, diferentes só em aparência, sem a menor chance de o

interlocutor fazer parar a proliferação mecânica de ranhetices mediante o apelo

à percepção dos fatos. É como você discutir online com um programa de

computador, sem nenhuma consciência humana para lhe responder do outro

lado da linha.

Pior ainda: por serem imunes ao teste da realidade, as objeções relativistas

não podem ser objetos de crença. Crer num juízo é crer na realidade do seu

conteúdo. Abstraída a realidade, a mente opera num espaço separado onde

pode haver apenas autopersuasão hipotética, como num teatro. Não crença

efetiva. No mundo real, essas objeções só podem funcionar como atenuantes

de crenças positivas, nunca tornar-se elas próprias crenças positivas. Nesse

sentido, todo mundo é um pouco relativista quando revê suas idéias (ou as

alheias) e as hierarquiza segundo o grau de certeza que parecem ter. Mas

ninguém é relativista além desse ponto. Nenhum relativista acredita em

relativismo, exceto de maneira experimental e provisória. Debater com ele só

pode servir para treinamento ou diversão e para nada mais.

O corolário é incontornável: se ele insiste muito nas objeções, se as defende

com o ardor de quem acreditasse nelas positivamente, está fingindo. Ele crê

em alguma outra coisa, e usa as investidas relativistas como barreira de

proteção para que sua própria crença não seja posta em exame. Todo ataque

Page 40: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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relativista muito enfático encobre um autoritarismo secreto que mantém o

adversário ocupado na defensiva só para poder em seguida triunfar sem

discussão. Reparem na presteza com que esse tipo de relativista, ao sair do

exame das opiniões adversárias para a defesa das suas próprias, passa do

discurso dubitativo às afirmações intolerantes que se ofendem até às lágrimas,

até à apoplexia, ante a simples ameaça de objeções. O relativismo militante é

um véu de análise racional feito para camuflar a imposição, pela força, de uma

vontade irracional. Sua função é cansar, esgotar e calar a inteligência para

abrir caminho ao “Triunfo da Vontade”. É um método de discussão

inconfundivelmente nazista.

Se você estudar Nietzsche direitinho, verá que toda a filosofia dele não é senão

a sistematização e a apologética desse método, hoje adotado pela tropa inteira

dos ativistas politicamente corretos. Por trás de toda a sua estudada

complexidade, a estratégia do nietzscheísmo é bem simples: trata-se de

dissolver em paradoxos relativistas a confiança no conhecimento objetivo, para

que, no vácuo restante, a pura vontade de poder tenha espaço para se impor

como única autoridade efetiva. Descontada a veemência do estilo

pseudoprofético, não raro inflado de hiperbolismo kitsch , não há aí novidade

nenhuma. É o velho Eu soberano de Fichte, que abole a estrutura da realidade

e impera sobre o nada. É a velha subjetividade transcendental de Kant, que

dita regras ao universo em vez de tentar conhecê-lo. É o velho mestre Eckart,

proclamando modestamente que Deus precisa dele para existir. É o velho

sonho alemão de ser o umbigo do mundo, ou melhor, de fazer do mundo um

apêndice do umbigo. Adolescentes vibram com coisas assim. Só alguns deles

crescem para perceber a diferença entre essas frescuras e a autêntica filosofia.

Algo de limpo no reino da Dinamarca

Jornal do Brasil, 16 de fevereiro de 2006

A onda de indignação islâmica contra as caricaturas dinamarquesas é tão

forçada, tão tardia, tão histericamente exagerada, que se torna quase

irresistível buscar para ela uma causa racional por trás dos pretextos aparentes

que a legitimam. Se ninguém faz isso, é porque o dogma imperante na mídia

chique reza que, no mundo, só quem tem interesses ocultos e planos secretos,

invariavelmente sinistros e gananciosos, é o governo americano. O resto da

humanidade é transparência pura, sinceridade transbordante que raia a

candura angélica.

Nessas condições, não é de espantar que mesmo condutas patentemente

farsescas como essa de agora sejam aceitas a priori como expressões

ingênuas de motivos literais, mesmo quando isso implique apostar na hipótese

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de que estrategistas capazes de intimidar o Pentágono sejam apenas os

fanáticos extravagantes e idiotizados que eles fingem ser.

Se você consentir em deixar essa hipótese de lado por cinco minutos, posso

lhe fornecer, para explicar a epidemia de ódio anti-dinamarquês, um belo

motivo racional que você não lerá em parte alguma e que aliás não tem nada a

ver com charges nem com religião.

A Dinamarca é, na Europa, a campeã absoluta da pesquisa de fontes

renováveis de energia -- fontes que, quando saírem da fase experimental para

entrar no mercado, podem libertar o Ocidente da escravidão ao petróleo árabe

(e venezuelano).

Em 1998, uma pequena ilha de 114 quilômetros quadrados, Samsoe, foi

escolhida pelo governo dinamarquês como sede de um experimento inédito:

criar uma comunidade integralmente servida por energia renovável, limpa e

barata. Soren Hermansen, gerente do projeto, afirmou na ocasião que

precisava de uma década para isso. Transcorridos oito anos, o sucesso passou

na frente do cronograma: cem por cento dos 4.400 habitantes da ilha, mais os

turistas, têm suas moradias e locais de trabalho servidos por energia renovável

produzida no local. O complexo de recursos tecnológicos desenvolvido em

Samsoe deve ser lançado no mercado mundial por volta de 2008.

A União Européia já começou a investir no projeto. Uma coisa era falar de

energia renovável nos anos 60, quando o único motivo para buscá-la era o

temor ecopsicótico de que os recursos da Terra se esgotassem a breve prazo.

Outra coisa é colocar esse produto no mercado num momento em que só dos

EUA a gangue petrolífera internacional arranca 600 milhões de dólares por dia.

Os donos do petróleo sabem o que o possível sucesso da Dinamarca significa:

é a sua sentença de morte. É o fim da OPEC. É o fim dos potentados árabes.

E, cá entre nós, é o fim de Hugo Chavez.

Daí a urgência de acossar e intimidar por todos os meios o governo

dinamarquês. É a reação de um gigante moribundo contra o pigmeu

assustadoramente saudável que ameaça acabar com a sua festa obscena. O

futuro pode estar nascendo em Samsoe -- e a massa islâmica enfurecida,

ludibriada para imaginar que luta por altos valores religiosos, foi convocada

para estrangulá-lo.

***

Segundo Tim Rutten, colunista do Los Angeles Times , a quase totalidade da

grande mídia americana decidiu não publicar as charges dinamarquesas, para

não ferir suscetibilidades. Tirou do público o direito de julgar por si próprio,

obrigando-o a curvar-se à sentença ex cathedra das autoridades islâmicas.

Enquanto isso, os muçulmanos europeus reproduzem as charges

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abundantemente nos seus jornais, para incitar o ódio ao Ocidente; a Sony

promete para breve, sob aplausos gerais, um filme baseado na obscena

invencionice anticatólica de Dan Brown, “O Código Da Vinci”; e a mídia islâmica

mundial, inclusive nos países ocidentais, continua publicando cartoons anti-

semitas brutais sem ser perturbada por ninguém. A chantagem emocional é

fonte de privilégios.

***

Moralmente, o caso dos cartoons não tem significação nenhuma. Um jornaleco

empenhado em cantar louvores ao laicismo moderno e levando pauladas de

bandidões islâmicos não é coisa que me comova. Dinamarqueses fazem até

campanhas em favor das FARC. Pedem para apanhar.

Malditos imperialistas

Zero Hora, 19 de fevereiro de 2006

(RICHMOND, VIRGINIA) - Querem saber como funciona o odioso imperialismo

americano? Vou lhes mostrar.

Até os anos 60, o governo dos EUA era obrigado, por lei, a estocar reservas de

comida suficientes para, no caso de guerra ou crise mundial, alimentar cada

cidadão do país por três anos.

Então alguém convenceu o Congresso a dar comida de graça para as

populações pobres de outros países.

Desde então, as remessas ao exterior não cessaram de aumentar, e as

reservas não cessaram de diminuir.

Em 1996, o governo anunciou que o estoque restante bastava para apenas três

dias.

Em 11 de setembro de 2001, os silos do governo estavam quase vazios. Povos

que tinham se alimentado do estoque durante anos saltavam nas ruas,

festejando a morte de três mil americanos.

E quantidades cada vez maiores de comida continuaram sendo doadas aos

pobres da Ásia, da África e da América Latina.

Em 2003, o Departamento de Agricultura parou de medir a reserva estatal em

dias, porque restava menos que o suficiente para um dia por pessoa. Logo

depois, parou completamente de medir a reserva estatal, que era irrisória, e

começou a somar a totalidade da comida circulante no país, incluindo as

prateleiras de supermercados. Todo o alimento de consumo diário passou a ser

computado como reserva de emergência. Somado, dava 34 quilos por pessoa:

Page 43: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

43

o total da comida disponível era dezoito vezes menor que o estoque de

emergência de 1960.

E as remessas para os países pobres continuavam aumentando.

Em 2005, com ameaças de guerra pipocando por toda parte, metade do mundo

unida numa feroz campanha anti-americana, o estoque total baixou para 7,1

quilos por pessoa. Uma queda de 80 por cento em dois anos.

Militarmente, o ponto mais vulnerável da defesa americana é a comida. Mas

ninguém pensa em reduzir a ajuda ao exterior.

Quando vocês me apontarem um caso análogo em toda a história universal,

quando me mostrarem alguma nação que tenha se prejudicado a si mesma,

consciente e deliberadamente, para socorrer aqueles que em retribuição a

xingam e sonham com a sua destruição, então talvez eu comece a desconfiar

que os americanos sejam um povo tão ruim quanto qualquer outro.

Até o momento, vivendo aqui desde maio do ano passado, só tenho motivos

para acreditar que são melhores. Logo na semana em que cheguei, entrei

numa igreja protestante do interior. Só caipira. Sabem o que os malditos

rednecks estavam fazendo? Coleta para as crianças pobres... do Brasil.

Cinqüenta entre cada cem americanos fazem trabalho voluntário – a favor de

“minorias” locais ou, em geral, de populações do Terceiro Mundo. Claro, de

outras nações também sai dinheiro para o mesmo destino. Mas vem de

governos, de instituições, de empresas. Um povo, mães e pais de família

largando seus afazeres para cuidar de gente que nunca viram – isso nunca

houve em parte alguma. Só aqui. O advento de uma sociedade capaz de criar

esse tipo de pessoas é o acontecimento mais notável da história moral da

humanidade.

Os brasileiros não podem entender isso porque, como se sabe, eles se dividem

genericamente em dois tipos: adultos ricos e remediados que, da janela de

seus carros, espantam com gritos e ameaças as crianças pobres que lhes vêm

pedir dinheiro; e crianças pobres que, descrentes da caridade pública, vão

trabalhar para o narcotráfico ou, armadas de faças ou lascas de garrafas,

assaltar os ricos e remediados. Com essa tremenda autoridade moral é que

falamos dos americanos.

Poesias de Antonio Machado

Primeira Leitura, novembro de 2004

Poucas obras poéticas são dignas do nosso amor como a do espanhol Antonio

Machado (1875-1939). Cabe num pequeno volume, e é do tamanho do mundo.

Ali estão os problemas da metafísica ocidental e oriental, a fé e a dúvida, as

paixões e a sabedoria, o sentido do tempo e da eternidade, tudo comprimido

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em versos de uma simplicidade fulgurante, cuja perfeição ninguém sabe dizer

se é musical ou geométrica.

Don Antonio viveu humildemente num quarto de pensão e morreu num quarto

de hotel, fugindo da polícia política sem jamais ter sido político. Abençoou a

pobreza digna (“a mi trabajo acudo...”) e, vendo aproximar-se a morte, fixou

num pedaço de papel seu último pensamento: “Estos días azules y este sol de

la infancia.” O fluxo do tempo que pelo milagre da luz se transfigura em

eternidade na presença é uma de suas visões recorrentes: “Tedio infantil, amor

adolescente, / como esta luz de otono os hermosea! / ¡Agrios caminos de la

vida fea / que también os doráis al sol poniente!” O ontem e o amanhã fundem-

se no eterno presente: sob a claridade de Sevilha emerge do passado a

imagem do pai que, passeando no jardim, lança um olhar no vazio e enxerga

os cabelos brancos do filho poeta que no mesmo instante o evoca em seus

versos. Um olmo seco, derrubado por um raio, renasce na imortalidade do

poema antes que o serrem para queimá-lo nas lareiras. Amo tanto esse poema

que, buscando nele dois versos para epígrafe de um capítulo, acabei por

transcrevê-lo inteiro.

O espaço, por sua vez, se transfigura em memória e profecia. O poeta caminha

pelos campos de Castela. As paisagens em sucessão tornam-se glórias e

misérias da Espanha histórica (“Castilla miserable, ayer dominadora, envuelta

em sus andrajos desprecia cuanto ignora”) e despertam a antevisão do castigo:

“Al declinar la tarde, sobre um remoto alcor, / veréis agigantar-se la forma de

um arquero, / la forma de um inmenso centauro flechador.” Mas nem tudo é

perdição e morte. Sobre os campos paira, ante os olhos de Deus, “Castilla la

gentil, humilde y brava”.

E, quando passam os anos, Don Antonio, que já era a clareza e a simplicidade

encarnadas, torna-se ainda mais simples e claro, condensando sua mágica

sabedoria em epigramas:

“Caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.”

“Todo pasa y todo queda,

pero lo nuestro es pasar,

pasar haciendo caminos,

caminos sobre la mar.”

Jamais serei grato o bastante ao poeta que inundou de luz tantos momentos

sombrios da minha vida.

Trechos de “Retrato” de Antonio Machado

¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera

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mi verso, como deja el capitán su espada:

famosa por la mano viril que la blandiera,

no por el docto oficio del forjador preciada.

Converso con el hombre que siempre va conmigo

—quien habla solo espera hablar a Dios un día—;

mi soliloquio es plática con ese buen amigo

que me enseñó el secreto de la filantropía.

Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.

A mi trabajo acudo, con mi dinero pago

el traje que me cubre y la mansión que habito,

el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.

Y cuando llegue el día del último vïaje,

y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,

me encontraréis a bordo ligero de equipaje,

casi desnudo, como los hijos de la mar.

Redescobrindo o sentido da vida

Primeira Leitura, novembro de 2005

Freud assegurava que, reduzido à privação extrema, o ser humano perderia

sua casca de espiritualidade e poria à mostra sua verdadeira natureza,

comportando-se como um bicho. Victor Emil Frankl, psiquiatra, judeu e

austríaco como Freud, não acreditava nisso, mas não teve de inventar uma

resposta ao colega: encontrou-a pronta no campo de concentração de

Theresienstadt durante a II Guerra Mundial. Ali, reduzidos a condições de

miséria e pavor que no conforto do seu gabinete vienense o pai da psicanálise

nem teria podido imaginar, homens e mulheres habitualmente medíocres

elevavam-se à dimensão de santos e heróis, mostrando-se capazes de

extremos de generosidade e auto-sacrifício sem a esperança de outra

recompensa senão a convicção de fazer o que era certo. A privação despia-os

da máscara de egoísmo biológico de que os revestira uma moda cultural

leviana, e trazia à tona a verdadeira natureza do ser humano: a capacidade de

autotranscendência, o poder inesgotável de ir além do círculo de seus

interesses vitais em busca de um sentido, de uma justificação moral da

existência.

Uma recente viagem a Filadélfia, onde a Universidade da Pennsylvania

comemorava com um ciclo de conferências o centenário de nascimento do

Page 46: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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criador da Logoterapia, trouxe-me a lembrança animadora de que na história

das idéias tudo se dá como na vida dos indivíduos: mesmo a extrema

indigência espiritual consolidada por séculos de idéias deprimentes não impede

que, de repente, a consciência do sentido da vida ressurja com uma força e um

brilho que pareciam perdidos para sempre. A evolução do pensamento

moderno, de Maquiavel ao desconstrucionismo, é marcada pela presença

crescente do fenômeno que denomino "paralaxe cognitiva": o hiato entre o eixo

da experiência pessoal e o da construção teórica. Cada novo "maître à penser"

esmera-se em criar teorias cada vez mais sofisticadas que sua própria vida de

todos os dias desmente de maneira flagrante. A "análise existencial" de Frankl,

a contrapelo do "existencialismo" de Heidegger e Sartre que é uma apoteose

da paralaxe, recupera o dom de raciocinar desde a experiência direta, que ao

longo da modernidade foi renegada pelos filósofos e só encontrou refúgio entre

os poetas e romancistas.

O que Frankl descobriu em Thesienstadt foi que além do desejo de prazer e da

vontade de poder existe no homem uma força motivadora ainda mais intensa, a

"vontade de sentido": a alma humana pode suportar tudo, exceto a falta de um

significado para a vida. Ao contrário, dizia Frankl, "se você tem um porquê ,

então pode suportar todos os comos ". A privação de sentido origina um tipo de

neurose que Freud e Adler não haviam identificado, e que é a forma de

sofrimento psíquico mais disseminada no mundo de hoje: a neurose noogênica

, isto é, de causa espiritual, marcada pelo sentimento de absurdo e vacuidade.

A análise existencial é a redescoberta da lógica por trás do absurdo, a

reconquista do estatuto espiritual humano que torna a vida digna de ser vivida.

A logoterapia é a técnica psicoterápica que faz da análise existencial uma

ferramenta prática para a cura das neuroses noogênicas.

Uma pesquisa da Biblioteca do Congresso mostrou que "Man's Search for

Meaning", a mistura de autobiografia, análise filosófica e tratado psicoterápico

em que Frankl expõe as conclusões da sua experiência no campo de

concentração, é um dos dez livros que mais influenciaram o povo americano.

Se, a despeito disso, a obra de Frankl ainda não alcançou o lugar merecido nas

atenções do establishment acadêmico, é simplesmente porque este é o templo

da paralaxe cognitiva.

* * *

Livros de Victor Frankl no Brasil:

Em Busca de Sentido (Vozes-Sinodal)

Psicoterapia Para Todos (Vozes)

A Questão do Sentido em Psicoterapia (Papirus)

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Um Sentido para a Vida (Santuário)

Sede de Sentido (Quadrante)

Psicoterapia e Sentido da Vida (Quadrante)

A Presença Ignorada de Deus (Vozes-Sinodal)

Dois estudos sobre Aldous Huxley

Prefácios a Admirável Mundo Novo e A Ilha,

escritos para a reedição dessas obras pela Editora Globo, São Paulo, 2001.

1. Admirável Mundo Novo

Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e ao

tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo

conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos

de compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica

sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.

Como artista, é cheio de imperfeições. Nenhuma de suas obras dá a

medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus

recursos intelectuais. Ao contrário, cada uma delas, se tem o brilho de um

achado literário premiado por um êxito retumbante, desperta em seguida a

suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isto Huxley, amado pelo

público, foi com freqüencia visto com certo desdém pelos críticos eruditos (o

nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a crítica erudita julga livros e

não almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e

de suas obras, é bem melhor do que a crítica deste ou daquele livro em

particular pode revelar. Nessa escala, o público o enxergou melhor que os

críticos. Poucos homens de letras souberam honrar tão bem, pela seriedade de

sua luta pelo conhecimento, o amor que o público lhes devotou.

Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele

empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visáo a

aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente

o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e autopiedade,

ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade

de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que

acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais

interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto.

Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os

exercícios do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano

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48

cujo sucesso na cura de Huxley veio a tornar célebre. O Dr. Bates era um

inimigo dos óculos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade

que são estrangulados pela camisa-de-força de uma lente de grau fixo. Muito

de sua técnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual

e o amor à luz. Talvez ele nunca tenha atinado com a formidável importância

filosófica de sua técnica. Mas Huxley, à medida que recuperava a visão graças

aos exercícios de Bates, ia fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais.

A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxleu o

soubesse, pelo filósofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes

filosóficas deste e de muitos séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa

kantiana de dados sensíveis brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e

sintetizados na mente segundo padrões a priori. A percepção humana é,

inerentemente, percepção intelectiva ou, na fórmula zubiriana, “inteligência

senciente”. Isto tapava, de um só golpe, o abismo que três século de idealismo

filosófico haviam cavado entre conhecimento e realidade. “Realidade”, diz

Zubiri, é o aspecto formal que o ser oferece à percepção humana. Não há uma

“coisa em si” a ser apreendida para além da percepção, porque, precisamente,

o que o ser oferece à nossa percepção é o seu “em si” e nada mais, ou, como

diria Zubiri, aquilo que ele é “de suyo”, de seu, de próprio, de real.

Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só vieram a

difundir-se no mundo a partir da década de 70, após a morte de romancista),

chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões similares. A

“arte de ver” (The Art of Seeing, 1943) não consistia no esforço interrogativo

que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de

instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que

quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que

as coisas, “de suyo”, queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi

intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção

contemplativa ante a realidade do mundo.

A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios

ópticos, filia-o a uma tradiçao ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e

praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do

mundo objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz --

luz no sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A

ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida

objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas,

simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto

remonta à “filosofia iluminativa” de Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) filósofo

persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e

longínquo em observações casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253).

Huxley soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem

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em algum ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em

The Art of Seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera

inconfundivelmene sohrawardiana.

Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do mundo

interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior

ao da média dos romancistas do seu tempo.

Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o a

algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em

“Contraponto” (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma

atmosfera emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados.

Isso poderia fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com

mais atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus

emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um

significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma

realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que “dados”

atomísticos kantiano, os episódios de “Contraponto” são mônadas de Leibniz,

cada uma refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.

Algo dessa técnica repete-se nas primeiras páginas do “Admirável Mundo

Novo”. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de crianças

para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da

disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global de um mundo

do qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam

confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade

futura aí descrita, que o autor situa no século VII d. F. (“depois de Ford”, ou às

vezes “depois de Freud”) é aparentemente uma utopia, no sentido definido por

Goethe: “Uma série de idéias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos

para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas

dificilmente venham a se encontrar juntos.” Um universo assim construído teria

uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na

realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a

estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem

Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. Não se

pode controlar administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química

(as pastilhas de soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma

auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposições

genéticas; nem, muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala

limitada de um Estado nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo

terrestre. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e

intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma

utopia: são órgãos solidários e inseparáveis de um mesmo e único sistema.

Page 50: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

50

Onde quer que apareça um deles, os outros o seguirão, mais cedo ou mais

tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História.

Por isso mesmo o “Admirável Mundo Novo” é menos uma utopia, uma

especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo

interna por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que

floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz

unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo

em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi

perceber a unidade subjacente às idéias dominantes do seu tempo, que

geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato,

determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G.

Wells, Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos

outros “maîtres à penser” da década de 20 abundam nas páginas deste livro,

que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do

que como um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de

pensamento que se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às

cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da

Nova Ordem Mundial.

O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, é

mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da

Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de

hoje se dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto

já estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro “A

Revolução Invisível” (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de

uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e

Blair. Que feito de tão magna importância fosse obra de um autor que

representa mais do que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo

moderno, é coisa que não deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus

clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, não é outra coisa

senão a mediocridade materializada em escala global -- o mundo onde o Sr.

Wells se sentiria tão à vontade quanto Bouvard e Pécuchet.

As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas

concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o

Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido

possíveis sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto

cientista ela foi tão precária quanto é minguado o talento literário do Sr. Wells,

nada mais justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar

mundos. Sua função, como já dizia Karl Marx, não é a de compreender o real,

mas a de mudá-lo. Mas as idéias não precisam ser inteiramente falsas para

esse fim. Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis.

Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem

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não pode ser compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas

pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser,

transformando-se em algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à

psicologia de Pavlov, na prática, um alcance que ela jamais poderia ter em

teoria. De modo análogo, todos podemos ser levados a comportar-nos como

pacientes psicanalíticos, militantes proletários ou peças de uma linha de

produção, dando uma espécie de “segunda realidade”, como diria Robert Musil,

às ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas

teorias se tornaria tão difícil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida

que, tendo saltado do décimo andar, já se encontrasse à altura do sexto ou

quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber

a irrealidade do mundo social que as rodeia é dessa mesma índole: elas

constroem essa irrealidade a cada instante, com suas próprias vidas, e se

aprisionam nela no ato mesmo de tentar contestá-la em pensamento.

A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um produto da

mente, construido com indícios esparsos, um vulgar “silogismo imaginativo”

eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador contrói uma

terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da atmosfera

cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada --

erroneamente -- num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio

Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: “As profecias feitas em

1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava”, afirmou

ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios

sobre lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e

outras técnicas de manipulação comportamental que, previstas para o século

VII d. F., já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX.

Passado mais meio século, porém, já transcendemos a época das descobertas

técnicas e entramos, em cheio, na da sua aplicação rotineira em escala

mundial. Uma boa descrição parcial desse estado de coisas encontra-se no

livro de Pascal Bernardin, Machiavel Pedagoge ou le Ministère de la Réforme

Psychologique (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as

técnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de

governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclusões do seu

exame são duas. Primeira, a educação das crianças no mundo de hoje

despreza a sua formação intelectual e se dedica quase que inteiramente ao

adestramento comportamental dos perfeitos cidadãozinhos da Nova Ordem

Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim pouco têm a ver com o

que que se denominava tradicionalmente “pedagogia”, mas se constituem

essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente

a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética padronizada

para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à instauração de um

Page 52: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de

higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor à toda a

humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet -- nada disso é

coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de

um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo

crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.

No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu todo,

com o Admirável Mundo Novo. A diferença principal é que neste os

“selvagens”, isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na

sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia,

rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se

encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de

quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas

grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam

nos noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus

pais à guarda do Estado. Por isto a vida moderna não tem a uniformidade

tediosa das cidades de Huxley.

Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao contrário

do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado.

Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão eficazes

de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os indesejáveis, que

separá-los geograficamente tornou-se uma despesa desnecessária. A

presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos cargos de

destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível, que todos os

selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente

para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição

dos bons cidadãos. A secretária de Estado Madeleine Albright foi até explícita:

qualquer americano que contribuísse regularmente para uma igreja e se

preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam um virtual candidato a

ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de “selvagens” não estão nos

confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.

Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente

uma escala de valores “selvagem”. Mergulhou no estudo das literaturas

sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Fritjof Shuonn

viria a chamar “unidade transcendente das religiões”, tão diferente do

ecumenismo burocrático de hoje quanto as visões de Sta. Teresa ou Jacob

Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se

estranho e incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells

e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa

tentativa -- falhada -- de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para

fora da percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril.

Page 53: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

53

Se não abriu para quem quer que fosse “as portas da percepção”, despertou

Aldous Huxley para a temível realidade da manipulação química do

comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave New World

Revisited, e para os aspectos falazes e ilusórios da democracia, que ele

caricatura impiedosamente em seu último romance, A Ilha, espécie de

contrapartida dialética do Admirável Mundo Novo.

Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a intuição

global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista

a unidade do real e, em conseqüência, o senso da integridade humana, que

tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não

fizeram senão dispersar numa poeira de estilhaços.

Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua experiência do

mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo unificante

do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a unidade da

consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade exterior de

um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da

verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos

no mundo exterior -- eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley.

Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a

serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley,

malgrado seu múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente

de tudo aquilo que se volta para “a única coisa necessária”.

26/03/01

2. A Ilha

Os críticos acusaram freqüentemente os personagens de Huxley de não

ser propriamente seres humanos, mas apenas símbolos de idéias.

Contra essa censura posso levantar de imediato três objeções:

1) Mesmo que ela fosse certa, não bastaria para arrasar de vez a

reputação de Huxley como ficcionista, de vez que crítica semelhante já se fez a

Swift e Voltaire.

2) Ela não é propriamente uma censura, mas a definição mesma do

gênero “sátira”, no qual se incluem, de algum modo (já veremos qual), as

principais obras de Huxley. Não é possível satirizar os seres humanos naquilo

que têm de pessoal e autêntico, mas só no que têm de exterior, de típico, de

copiado e de mecânico.

3) Mas as histórias de Huxley escapam mesmo às limitações intrínsecas

do gênero satírico. É verdade que Lenina Crowne ou Bernard Trotsky, em O

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54

Admirável Mundo Novo, assim como Will Farnaby, Robert MacPhail ou o

embaixador Bahu, em A Ilha, não são realmente pessoas de carne e osso: são

encarnações das utopias, sonhos e ilusões da intelectualidade ocidental. Mas

se malgrado essa sua origem puramente intelectual seus destinos nos

interessam e nos comovem como os de gente de verdade, é pelo fato de que,

no século XX, o poder enormemente ampliado da mídia cultural fez com que as

idéias passassem a ter uma influência formadora mais direta e decisiva sobre

os corações humanos. Símbolos, frases-feitas, emoções e trejeitos mentais

criados pelos intelectuais fincaram raízes tão profundas no subconsciente das

pessoas, que se tornaram, em muitos casos, indiscerníveis das reações

pessoais autênticas. É olhar e ver: muitas personalidades em torno de nós são

realmente, literalmente, traslados de modas intelectuais. Esses tipos só são

cômicos e artificiais quando vistos do exterior, e nossa reação perante eles é

ambígua: não conseguimos nem compartilhar de seus sentimentos ao ponto de

sofrer por eles, nem desidentificar-nos deles o bastante para torná-los

definitivamente cômicos. Pois todos nós, uns mais, outros menos,

macaqueamos as modas culturais, e este é um destino inescapável do homem

moderno: nem possuímos mais aquele fundo comum de valores e símbolos

que permitia ao camponês da Idade Média ser ele mesmo justamente porque

era igual a todos, nem nos tornamos tão prodigiosamente individualizados que

possamos inventar nossa própria linguagem. A única autenticidade possível ao

homem moderno é um arranjo mais ou menos pessoal de modelos mais ou

menos copiados.

É nessa zona indistinta entre o discurso coletivo e a emoção autêntica,

entre a macaquice intelectual e a vida pessoal efetiva que Huxley colhe seus

personagens. Daí sua maior originalidade como ficcionista – sua capacidade de

fazer o leitor vivenciar o jogo das idéias estereotipadas como se fosse um

drama humano de verdade. Por isso suas obras não podem rotular-se

categoricamente como sátiras, já que participam, a um tempo, da sátira e do

drama: sátira das idéias, drama dos erros e sofrimentos humanos que essas

idéias geraram ao transformar-se em ações. É precisamente essa visão

intermediária entre a sátira e o drama que o habilita a sondar com olhar

profético o futuro que se gera no ventre das idéias. Cada um de seus romances

é como aquele fantasma do poema de Heine que acordava um homem de

madrugada e, de espada em punho, o ameaçava: “Eu sou a ação dos teus

pensamentos.”

Muito do que Aldous Huxley escreveu é a dramatização satírica das

idéias que se tornaram vida pessoal e tragédia pessoal entre os intelectuais

midiáticos, aqueles seres meio cultos, meio ignorantes, que desfrutam do

privilégio maior da mediocridade -- falar a linguagem média -- e que por isto

dão o tom dos debates públicos, encarnando a personalidade das épocas.

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55

Essas criaturas são as testemunhas principais que o historiador das idéias

interroga. Por exemplo, quem queira conhecer a mentalidade do século XVIII

não irá sondar as profundezas abissais da ciência de Leibniz, mas deslizar

sobre as superfícies brilhantes de Voltaire e Diderot. Os grandes espíritos não

pertencem propriamente à sua época: uma parte do seu ser está mergulhada

num passado imemorial, a outra projeta-se num futuro inalcançável, e só uma

parcela ou recorte deles é visível a seus contemporâneos. Mas a mente do

intelectual médio é o ponto de intersecção dos horizontes de consciência da

sua época: o que aparece na sua tela interior é aquilo que todos vêem ao

mesmo tempo, a coincidência de todos os recortes, a interconfirmação de

todas as percepções e de todas as cegueiras. Por isto seu discurso é tão bem

recebido por seus contemporâneos, e por isto é tão fácil, das suas palavras,

deduzir o que “o público” pensava.

O intelectual médio é ao mesmo tempo o porta-voz e o eco das modas

culturais. Mesmo quando as critica, não vai além delas, limitando-se a opor

uma moda a outra moda, como aqueles que, hoje em dia, opõem ao socialismo

a utopia neoliberal, ou vice-versa, sem ter a mínima idéia do parentesco que os

une.

Huxley era um ouvido especialmente atento às conversações dos

intelectuais médios, das quais ele não apenas captava com facilidade o

“espírito da época”, mas inferia as mais espantosas e acertadas conclusões

sobre o rumo que as coisas iriam tomar se aquelas idéias, em vez de esgotar-

se como puras futilidades de salão, fossem levadas à prática como modelos do

mundo futuro. O Admirável Mundo Novo é o mundo que teria resultado – e que

de certo modo resultou – da aplicação das modas intelectuais da década de 30.

A Ilha é o mundo criado pelas utopias psicoterapêuticas e orientalistas dos

anos 50-60.

Aldous Huxley morreu antes de que essas idéias tomassem corpo na

cultura da “New Age” e, partindo das esperanças utópicas de um novo mundo

de sanidade e autoconhecimento, desembocasse na tragédia mundial das

drogas, das seitas escravizadoras, das experiências psíquicas autodestrutivas.

Não obstante, ele captou antecipadamente a loucura por trás de tudo isso, e é

precisamente essa antevisão que dá o tema deste romance.

Publicado em 1963, este livro foi lido como uma espécie de antítese do

Admirável Mundo Novo. Enquanto o romance de 1932 trazia o retrato de uma

sociedade opressiva e mecanizada, da qual toda espontaneidade humana tinha

sido extirpada em benefício da ordem e da produtividade, a ilha de Pala era

como que a materialização dos sonhos de liberdade da geração flower power:

amor livre, religiosidade sem dogmas, respeito às diferenças individuais,

incentivo à expressão das emoções, tudo num ambiente ecológico de

reverência pela natureza.

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56

Sublinhava essa interpretação o fato de que a utopia fosse, no capítulo

final, brutalmente destruída pelos tanques da vizinha ilha de Rendang-Lobo,

encarnação de tudo o que a juventude dos anos 60 mais odiava: industrialismo,

militarismo, religião tradicional, lei e ordem.

Compreendido assim, A Ilha não era senão a tradução ficcional de

lugares-comuns da retórica esquerdista da época, mista de “New Age” e “New

Left”. Daí o imenso sucesso do livro. Ele parecia dizer tudo o que a geração

mais pretensiosa de todos os tempos queria ouvir. Mesmo a derrota da utopia,

em vez de ter um efeito deprimente, parecia exaltá-la até às nuvens: Pala fôra

destruída por ser boa demais para este mundo, como Che Guevara, derrotado

pelo mais pífio exército sul-americano, transcendia no mesmo ato os

julgamentos humanos e subia aos céus como um Ersatz comunista de Jesus

Cristo.

Êxitos de livraria baseados em equívocos de interpretação não são raros

na história da literatura. Na verdade, A Ilha é o mais temível inquérito sobre o

auto-engano da geração que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo utópico

da época, seria impossível que os leitores o compreendessem. Isso teria

exigido deles um realismo cruel, que mesmo à distância de quatro décadas

ainda parece difícil de suportar, tão contaminados das ilusões e mentiras dos

anos 60 permanecemos hoje. Daí que, deslizando sobre a superfície da

narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais

importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da última lição de um

sábio.

Em primeiro lugar, a destruição de Pala não vem do exterior. É o próprio

príncipe herdeiro, Murugan, quem atrai os estrangeiros para ajudá-lo no golpe

militar destinado a romper o equilíbrio do paraíso agrícola e colocar o país, pela

força, na modernidade industrial. Os ideais da “geração Woodstock”, com

efeito, apenas usavam a linguagem do primitivismo agrícola como veículos de

expressão de seu ódio à sociedade industrial, mas essa revolta era, ela própria,

um fenômeno da intelectualidade urbana e universitária, e supunha uma dose

de liberdade de expressão e meios de comunicação que seriam inconcebíveis

em qualquer sociedade agrícola. Quando Murugan acusa os governantes de

Pala de “conservadores e reacionários”, ele põe o dedo na ferida: os ideais que

produziram Pala jamais poderiam ter surgido numa economia como a de Pala.

A utopia não é destruída do exterior, mas explodida desde dentro, pela sua

autocontradição congênita.

Em segundo lugar, os golpistas, tão parecidos com os militares do

Terceiro Mundo nos seus métodos de modernização autoritária, nada têm de

conservadores e tradicionalistas na sua ideologia. Murugan, bisneto do Velho

Rajá, o fundador de Pala e autor do livro sapiencial em que se inspira o regime

da ilha, acaba se voltando contra as tradições locais por influência de sua mãe,

Page 57: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

57

a rani Fátima, a qual durante sua formação cultural na Europa recebera a

influência dos ensinamentos teosóficos de Helena Blavatsky, tornando-se

devota dos “Mestres do Astral”, especialmente um tal Koot-Hoomi -- figura

inconfundivelmente diabólica segundo todos os cânones da religião tradicional -

- , em cima de cujas concepções se forma a aliança entre a família real de Pala

e os militares de Rendang-Lobo. Ora, teosofismo e mensagens de Koot-Hoomi

são elementos inconfundíveis da própria ideologia “New Age”. Embora já um

tanto velhos na época, foram reaproveitados na onda geral de orientalismo pop

com que o movimento dos jovens atacava e corroía as bases cristãs da

sociedade Ocidental.

Os militares de Rendang-Lobo também não são, de maneira alguma, “a

direita”. Estão ansiosos para fazer negócios com a Standard Oil só para poder

comprar armas do bloco soviético e dar prosseguimento ao seu sonho macabro

de “revolução permanente”. Seu chefe, o Cel. Dipa, é uma espécie de Chavez

avant la lettre. Seu modernismo revolucionário representa a outra face da

ideologia “jovem” dos anos 60: o lado brutal e sanguinário personificado pelos

Black Panthers, por Ho-Chi-Minh e Fidel Castro. Pala não é destruída por seus

inimigos, mas pela contradição interna da mais mentirosa ideologia de todos os

tempos, a ideologia da esquerda norte-americana dos anos 60, que pretendia

encarnar o espírito de “paz e amor” ao mesmo tempo que espalhava no mundo

“um, dois, três, muitos Vietnãs”.

Ainda mais significativo é que a origem das concepções utópicas do

regime de Pala remontasse à fusão de vagos remanescentes do budismo

tântrico com as idéias de evolucionismo biológico trazidas, no século passado,

por um médico escocês, meio sábio, meio charlatão, que adquirira prestígio na

ilha curando uma misteriosa doença de seu governante por meio do

“magnetismo animal”. Essa mistura de budismo heterodoxo, evolucionismo e

magnetismo compõe a fórmula inconfundível do teosofismo de Madame

Blavatsky. Assim, a raiz do utopismo anárquico de Pala e do modernismo

autoritário de seu príncipe golpista é, rigorosamente, a mesma.

Para tornar as coisas ainda mais estranhas, o teosofismo de Blavatsky

foi, notoriamente, um instrumento usado pelo imperialismo inglês para corroer

as tradições religiosas autênticas das nações orientais e torná-las mais

vulneráveis à dominação cultural estrangeira por meio de um entorpecente

pseudo-espiritual fabricado em Londres por uma vigarista russa. [1]

Pelo lado da ideologia palanesa, portanto, o lixo ancestral não é menos

fedorento que o teosofismo explícito de Rendang-Lobo. Já no segundo capítulo

do livro, o náufrago Will Farnaby, traumatizado pelo perigo recente, é curado de

seus males pelo método freudiano da ab-reação no curso de uma psicoterapia

improvisada... por uma garota de nove anos. Mary Sarojini MacPhail, a garota,

neta do atual guru médico da ilha, resume na sua pessoinha os princípios de

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58

educação e ética ali vigentes: são os princípios do sincerismo, do “botar para

fora”, que os “grupos de encontro” e as técnicas psicoterápicas de

“sensibilização” e “liberação” disseminaram no mundo a partir de Esalen,

Califórnia, e que marcaram inconfundivelmente a atmosfera dos anos 60. O

festival de experimentos psíquicos e “liberações” desembocou no império

mundial dos traficantes de drogas e na transformação da delinqüência juvenil

(e infantil) numa catástrofe global de proporções incontroláveis. Na época,

porém, prometia um novo mundo de espontaneidade e sanidade. Todas as

crianças de Pala são versadas em “auto-expressão”, aquela confissão

simplória e cínica dos próprios maus sentimentos que, teoricamente, os

tornaria inofensivos. O fato é que a “auto-expressão”, ensinada em grupos-de-

encontro por psiquiatras e psicoterapeutas “libertadores” nos conventos

católicos, suscitou entre as monjas uma epidemia de lesbianismo e de casos

amorosos com seus terapeutas, levando praticamente à destruição de várias

ordens religiosas. De braços dados com o pseudo-orientalismo, a “libertação”

psicoterápica abriu caminho para que milhões de jovens abandonassem o

cristianismo e se entregassem às mais tirânicas manipulações psíquicas nas

mãos de seitas delinqüenciais como “Love Family”, que, em nome da

expressão espontânea das emoções, obrigava crianças de quatro anos de

idade a submeter-se, junto com seus pais, à prática de sexo grupal. A

imensidão dos danos psicológicos trazidos a essa geração jamais poderá ser

medida exatamente. As tristezas e as vergonhas acumuladas são demasiado

profundas para vir à tona. Documentos aterrorizantes acumulam-se, em pilhas,

nos milhares de clínicas especializadas em tratamentos de egressos de seitas,

sobretudo ao longo da Costa Oeste americana -- o lugar onde nasceria,

segundo a promessa da época, a nova civilização de sanidade, paz e amor. [2]

Os efeitos terrificantes, porém, não nasceram do mero acaso. Fruto e raiz

têm sua continuidade lógica. Os “grupos-de-encontro” nasceram da pesquisa

militar sobre guerra psicológica e controle comportamental. Um de seus

pioneiros, Kurt Lewin, já na década de 40 havia chegado à conclusão de que a

pressão sutil e disfarçada do grupo era o meio mais efetivo de produzir

mudanças de comportamento. A lição foi bem aprendida por Carl Rogers, Fritz

Perls, Abraham Maslow e outros criadores dos “grupos-de-encontro” da década

de 60. A “liberação”, em suma, não passava de “engenharia do consentimento”.

Lewin e seus sucessores haviam descoberto um tipo de controle

comportamental infinitamente mais eficiente e irresistível do que todas as

técnicas descritas no Admirável Mundo Novo. Como admitiu um dos

praticantes do método, Robert Blake, ex-aluno de Lewin no Tavistock Institute

de Londres (a principal academia inglesa de guerra psicológica), “não importa

quanto o orientador desses grupos tente ser não-diretivo, ele será ainda

sutilmente ditatorial e até mais ditatorial (por causa da sua sutileza) do que o

Page 59: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

59

mais rígido adestrador, porque todo o controle está escondido”. [3] Por uma

coincidência que neste contexto adquire as dimensões de um símbolo, Blake

dirigiu um desses grupos justamente na Standard Oil – a empresa com a qual o

príncipe herdeiro Murugan está louco para fazer negócios.

Após presenciar uma sessão de “educação para o amor” das crianças de

Pala, Will Farnaby, o visitante trazido pelo naufrágio, protesta: “Isto é puro

Pavlov!”. O instrutor, com aquele ar beatífico de tantos lavadores de cérebros

da década de 60, responde: “Pavlov usado exclusivamente com bom propósito.

Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão.”

Tanto pelas suas origens blavatskianas quanto pelos métodos de

dirigismo sutil, a ideologia palanesa é irmã gêmea do autoritarismo de

Rendang-Lobo. A Ilha não é a tragédia de um paraíso de liberdade destruído

pela invasão de militares malvados: é a tragédia da autodestruição de uma

utopia intrinsecamente má e mentirosa envolta em belas palavras.

No momento culminante da narrativa, Will Farnaby, finalmente rendido

aos encantos da “religião sem dogmas” dos palaneses, resolve experimentar a

moksha, a erva alucinógena ritual que, em vez de precipitar somente o

consumidor num estado de apatetado bem-estar como o soma do Admirável

Mundo Novo, lhe abriria as portas do conhecimento transcendental. Nos

primeiros instantes, Will “vê a luz”, ou pelo menos pensa que vê. Mergulha num

estado de beatitude indescritível e supõe ter conhecido o próprio Deus. De

repente, a visão se transfigura. Abrem-se as portas do inferno: vermes

horrendos aparecem misturados à figura de Adolf Hitler que gesticula e berra. A

visão de Will mostra a verdadeira natureza da religião palanesa: uma religião

de “experiências psíquicas”, incapaz de transcender a dualidade cósmica e

elevar-se ao reino da eternidade. É a religião dos “grupos-de-encontro”, o

substitutivo postiço que uma estratégia política oportunista quis substituir ao

cristianismo. Tão logo Will emerge do transe, ele ouve os primeiros tiros do

exército invasor: é a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo

que a falsa visão espiritual.

Poucos livros foram tão fundo na compreensão do auto-engano congênito

da cultura contemporânea. Perto da pedagogia palanesa da ilusão, as técnicas

de controle social do Admirável Mundo Novo parecem ingênuas e

rudimentares, assim como perto da engenharia comportamental dos anos 60 o

totalitarismo explícito da década de 30 parece coisa de orangotangos. O

diagnóstico impiedoso do neototalitarismo mental dos anos 60 não pôde ser

compreendido por seus contemporâneos. Eles estavam embriagados na

mentira nascente, e a antevisão de Huxley passou léguas acima de suas

cabeças. Mas, hoje, vivemos no mundo criado por aqueles malditos “jovens

idealistas” dos anos 60. As técnicas de controle social e engenharia do

consentimento já não são experiências limitadas, efetuadas na privacidade de

Page 60: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

60

grupos-de-encontro: são o dia a dia das escolas públicas, onde nossos filhos

se encontram à mercê daquilo que Pascal Bernardin chamou “ministério da

reforma psicológica”. [4] Tal como Mary Sarojini MacPhail, cada criança,

submetida à pressão sutil do grupo, aí adota alegremente as condutas

desejadas, sem ter a mínima idéia de possíveis alternativas. Nos EUA, os

resultados da adoção maciça dessas técnicas no ensino já são patentes: os

índices assustadores de consumo de drogas e a criminalidade infantil nas

escolas públicas levam muitos pais a preferir educar seus filhos em casa,

enquanto a Prefeitura de Nova York, admitindo-se incapaz de controlar a

violência das crianças, privatiza suas escolas como quem entrega um fardo

superior às suas forças. No Brasil, esse processo ainda está no começo, mas

basta ler os “Parâmetros Curriculares Nacionais” do Ministério da Educação

para perceber que a engenharia de comportamento aí predomina amplamente

sobre a formação intelectual e a instrução moral honesta. O espírito dos

“grupos de encontro” dos anos 60 tomou conta da pedagogia universal,

firmemente decidido a “libertar” as crianças do legado da civilização cristã.

Quando a “libertação” mostrar sua outra face, quando Pala revelar sua

identidade com Rendang-Lobo, haverá choro e ranger de dentes. Mas, como

aconteceu com a geração de 60, nenhum dos autores da tragédia reconhecerá

suas culpas: cada um deles se proclamará um idealista traído pelos rumos

imprevisíveis da História e, revigorado pelo sentimento de inocência, tirará da

cartola um novo projeto de “mundo melhor”.

Aldous Huxley escreveu este livro para nos advertir da culpa monstruosa

que se oculta por trás da inocência dos idealistas.

22/4/01

[1] V. Peter Washington, O Babuíno de Madame Blavatski, trad. Antônio

Machado, Rio, Record, 2000, assim como René Guénon, Le Théosophisme.

Histoire d’une Pseudo-Réligion, Paris, Éditions Traditionnelles, 1929 (reed.

1978).

[2] Um documentário impressionante da devastação psíquica resultante dos

experimentos psíquicos da década de 60 encontra-se em Flo Conway e Jim

Siegelman, Snapping. America’s Epidemic of Sudden Personality Changes.

New York, Lippincott, 1980.

[3] Cit. em E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political

Control, South Bend, St. Augustine’s Press, 1999.

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61

[4] V. Pascal Bernardin, Machiavel Pédagogue ou le Ministère de la Réforme

Psychologique, Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1995.

Intelectuais orgânicos

O Globo, 26 de maio de 2001

Só agora li uma entrevista que o prof. Carlos Nelson Coutinho deu ao jornal

“Valor”, na qual, forçando até onde é possível o sentido das palavras, ele me

incluiu entre os que teriam “preconceito contra o marxismo”. Apesar da data já

um pouco longínqua, vale a pena examinar o documento, que ilustra o peculiar

modus pensandi de um “intelectual orgânico”.

“Preconceito”, caso alguém ignore, é opinião prévia a um exame racional. Na

deterioração geral da língua, no entanto, a palavra tornou-se um estereótipo

infamante que os mais preconceituosos usam para rotular qualquer conclusão

adversa a seus preconceitos, à qual alguém tenha chegado após longo estudo

e ponderação.

O prof. Coutinho aderiu ao marxismo militante na entrada da juventude, antes

de ter examinado senão um fragmento infinitesimal da bibliografia marxista, e,

passadas quatro décadas, ainda é marxista sem ter mais que um

conhecimento periférico da argumentação antimarxista; ao passo que eu, tendo

feito idêntica escolha prematura, coloquei minha opção entre parênteses uns

anos depois e, abstendo-me por duas décadas de emitir opiniões políticas

enquanto pesava criteriosamente os argumentos pró e contra o marxismo,

emergi enfim do silêncio dizendo coisas que contrariam os sentimentos juvenis

em que se fossilizaram a pessoa, a vida e os neurônios do prof. Coutinho.

Entre nós dois, obviamente, o preconceituoso é ele, que nunca escreveu uma

linha senão para dar retroativamente ares de requinte intelectual às crenças a

que já tinha aderido de corpo, alma e carteirinha antes de fazer qualquer uso

revelante do intelecto.

Isso não quer dizer que hoje ele faça desse instrumento um uso mais intenso

do que na aurora da sua militância. Pelo menos ele não o utiliza o bastante

para perceber que não tem sentido afirmar que entrei na mídia “com grande

respaldo” e logo em seguida referir-se a mim como “uma voz isolada”, que “não

é representativa de nada”... Ou bem eu, isolado, falo com a minha própria voz,

ou alguém que me respalda fala pela minha boca. O prof. Coutinho que trate de

decidir se quer me chamar de pau-mandado ou de excêntrico solitário. Se entre

les deux, son coeur balance, isto só prova que ele quer me rotular de alguma

coisa, qualquer coisa, não importa o quê.

Page 62: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

62

Quando digo que o marxismo imbeciliza, é a esse tipo de fenômeno que me

refiro. Nenhum esquerdista, até hoje, conseguiu dizer contra mim algo de

inteligente. Ante a “voz isolada” que os atemoriza, todos têm dado um show de

inépcia, de covardia e de maledicência sussurrante. Tempos atrás desafiei para

um debate sobre Gramsci, inclusive oferecendo troca de links entre nossas

respectivas páginas na internet, o prof. Coutinho e seus oitenta fiéis escudeiros

de um site devotado à beatificação do fundador do Partido Comunista Italiano.

Fugiram, como de hábito, afetando ares de dignidade ofendida, e, em pleno dia

de Natal, redigiram uma carta enfezada na qual denunciavam como imposição

ditatorial a oferta do intercâmbio de links.

É sempre aquela coisa do “1984”: democracia é ditadura, ditadura é

democracia. Discussão é imposição, imposição é discussão. Conceito é

preconceito, preconceito é conceito.

O leitor desacostumado ao trato com comunistas pode estranhar a

desenvoltura, a tranqüilidade de consciência com que posam de vencedores

após uma debandada tão ostensiva. Mas, creia-me, o fenômeno não se explica

pela simples cara-de-pau. Eles conservam na fuga um ar triunfante porque não

são intelectuais como os outros. São -- e gabam-se de ser -- “intelectuais

orgânicos”, células de um vasto corpo combatente. Nunca agem sozinhos. Têm

sempre o apoio logístico de uma rede inumerável de militantes obscuros,

anônimos, que podem prosseguir o combate nos bas fonds da intriga e da

calúnia quando os porta-vozes mais respeitáveis do “coletivo” se saem mal nos

confrontos públicos. Quando as vozes de cima se calam, as de baixo começam

o zunzum nos porões.

Agora mesmo, enquanto meus detratores mais notórios se recolhem para

lamber as feridas das últimas refregas, um jornalista de São Paulo, mais

comunista que a peste, deplorável farrapo humano que busca no ódio político o

alívio de sua indescritível miséria de alma, está espalhando na internet avisos

segundo os quais eu, Olavo de Carvalho, não trabalho há trinta anos e... vivo

da exploração de mulheres. Dito em voz alta, numa tribuna acessível aos olhos

do público, isso exporia o fofoqueiro ao desprezo de todos. Sussurrado no

mundo virtual, pode até funcionar. A intriga propaga-se por reflexo

condicionado, não por adesão consciente. Não é preciso acreditar nela para

passá-la adiante, repeti-la por automatismo e acabar tomando-a como

premissa implícita de julgamentos e decisões.

A manipulação de automatismos mentais torna-se ainda mais fácil numa

atmosfera infectada de ódios e temores coletivos contra alvos mais ou menos

distantes, só conhecidos por ouvir-dizer. O ambiente de esquerda é o caldo de

cultura ideal para esse tipo de bactérias.

Page 63: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

63

É por sempre contar com esse fundo de reserva que o “intelectual orgânico”

pode se sentir vitorioso mesmo quando perde. Ele perde, mas o Partido não

perde nunca. Não adianta nada você derrubar um desses sujeitos no ringue.

Enquanto você recebe sua medalha, eles já fizeram a sua caveira entre os

vizinhos. E quando você, imbuído de seu prestígio de campeão, vai pedir fiado

um quilo de feijão no armazém da esquina, o português, desviando os olhos,

lhe explica que os negócios vão mal e que você não tem mais crédito.

O mais pérfido em tudo isso é que o comunista famoso pode sempre sair

bonito, alegando que desaprova os métodos imorais usados por seus

companheiros anônimos. Mas, a partir do momento em que aceita ser um

“intelectual orgânico”, ele não pode mais deixar de beneficiar-se dos métodos

que desaprova. Não é uma questão de escolha. O Partido trabalha para ele

como ele trabalha para o Partido, na unidade orgânica e indissolúvel da bela

imagem pública com a safadeza escondida.

A imoralidade da militância comunista é intrínseca e independe de aprovação

pessoal. E o máximo da imoralidade consiste precisamente em que o sujeito

pode permanecer limpo no instante mesmo em que tira vantagem da sujeira

praticada por outros, da qual ele nem precisa saber. É a síntese perfeita da boa

consciência com a falta de consciência.

O imbecil juvenil

Jornal da Tarde, São Paulo, 3 abr. 1998

Já acreditei em muitas mentiras, mas há uma à qual sempre fui imune:

aquela que celebra a juventude como uma época de rebeldia, de

independência, de amor à liberdade. Não dei crédito a essa patacoada nem

mesmo quando, jovem eu próprio, ela me lisonjeava. Bem ao contrário, desde

cedo me impressionaram muito fundo, na conduta de meus companheiros de

geração, o espírito de rebanho, o temor do isolamento, a subserviência à voz

corrente, a ânsia de sentir-se iguais e aceitos pela maioria cínica e autoritária, a

disposição de tudo ceder, de tudo prostituir em troca de uma vaguinha de

neófito no grupo dos sujeitos bacanas.

O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e professores,

mas é porque sabe que no fundo estão do seu lado e jamais revidarão suas

agressões com força total. A luta contra os pais é um teatrinho, um jogo de

cartas marcadas no qual um dos contendores luta para vencer e o outro para

ajudá-lo a vencer.

Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua geração, que não

têm para com ele as complacências do paternalismo. Longe de protegê-lo,

essa massa barulhenta e cínica recebe o novato com desprezo e hostilidade

Page 64: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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que lhe mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não sucumbir.

É dos companheiros de geração que ele obtém a primeira experiência de um

confronto com o poder, sem a mediação daquela diferença de idade que dá

direito a descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes, dos mais

descarados, que se afirma com toda a sua crueza sobre a fragilidade do

recém-chegado, impondo-lhe provações e exigências antes de aceitá-lo como

membro da horda. A quantos ritos, a quantos protocolos, a quantas

humilhações não se submete o postulante, para escapar à perspectiva

aterrorizante da rejeição, do isolamento. Para não ser devolvido, impotente e

humilhado, aos braços da mãe, ele tem de ser aprovado num exame que lhe

exige menos coragem do que flexibilidade, capacidade de amoldar-se aos

caprichos da maioria - a supressão, em suma, da personalidade.

É verdade que ele se submete a isso com prazer, com ânsia de

apaixonado que tudo fará em troca de um sorriso condescendente. A massa de

companheiros de geração representa, afinal, o mundo, o mundo grande no qual

o adolescente, emergindo do pequeno mundo doméstico, pede ingresso. E o

ingresso custa caro. O candidato deve, desde logo, aprender todo um

vocabulário de palavras, de gestos, de olhares, todo um código de senhas e

símbolos: a mínima falha expõe ao ridículo, e a regra do jogo é em geral

implícita, devendo ser adivinhada antes de conhecida, macaqueada antes de

adivinhada. O modo de aprendizado é sempre a imitação - literal, servil e sem

questionamentos. O ingresso no mundo juvenil dispara a toda velocidade o

motor de todos os desvarios humanos: o desejo mimético de que fala René

Girard, onde o objeto não atrai por suas qualidades intrínsecas, mas por ser

simultaneamente desejado por um outro, que Girard denomina o mediador.

Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo, custando tão alto

investimento psicológico, termine por levar o jovem à completa exasperação

impedindo-o, simultaneamente, de despejar seu ressentimento de volta sobre o

grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por isto tem o dom de

transfigurar cada impulso de rancor em novo investimento amoroso. Para onde,

então, se voltará o rancor, senão para a direção menos perigosa? A família

surge como o bode expiatório providencial de todos os fracassos do jovem no

seu rito de passagem. Se ele não logra ser aceito no grupo, a última coisa que

lhe há de ocorrer será atribuir a culpa de sua situação à fatuidade e ao cinismo

dos que o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas humilhações não

será atribuída àqueles que se recusam a aceitá-lo como homem, mas àqueles

que o aceitam como criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas

maldades da horda que tudo lhe exige.

Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais

forte que o despreza, desprezo pelo mais fraco que o ama.

Page 65: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

65

Todas as mutações se dão na penumbra, na zona indistinta entre o ser e

o não-ser: o jovem, em trânsito entre o que já não é e o que não é ainda, é, por

fatalidade, inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das culpas de

quanto se passa dentro e em torno dele. Seus julgamentos são quase sempre

a inversão completa da realidade. Eis o motivo pelo qual a juventude, desde

que a covardia dos adultos lhe deu autoridade para mandar e desmandar,

esteve sempre na vanguarda de todos os erros e perversidade do século:

nazismo, fascismo, comunismo, seitas pseudo-religiosas, consumo de drogas.

São sempre os jovens que estão um passo à frente na direção do pior.

Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um

mundo velho e cansado, que já não tem futuro algum.

Sto. Tomás, a vaca voadora e nós

Caderno de Cultura do IDEAS – Instituto de Estudos e Ações Sociais – da

UniverCidade. Ano I, número I, Outubro de 2001.

A Antônio Donato Rosa e Júlio Fleichman.

Nenhum historiador profissional do mundo aceita hoje em dia a lenda

setecentista que deprecia a Idade Média como "Idade das Trevas", mas ela

continua firmemente arraigada no credo universitário brasileiro e é repassada

de geração em geração por sociopatas militantes e analfabetos funcionais aos

quais um abuso de linguagem confere o estatuto de intelectuais acadêmicos.

Só isso já bastaria para ilustrar a imensidão do abismo mental que se alarga

dia a dia entre as nações cultas e aquelas onde a negligência ou cumplicidade

dos governantes permitiu que as instituições de ensino fossem monopolizadas

por propagandistas e demagogos a serviço de grosseiras ambições de poder.

O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e

agitadores do século XVIII como expediente de ocasião para a propaganda

anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e ideológicas da monarquia.

Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia popular, graças ao

respaldo de toda sorte de organizações políticas e sociedades pseudo-

iniciáticas, o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica aceitável nos

meios científicos e hoje subsiste apenas em círculos de ativistas semiletrados

do Terceiro Mundo, à margem das correntes vivas do pensamento mundial.

No Brasil ou na Zâmbia, "medieval" ainda pode ser usado como termo

pejorativo nas polêmicas da mídia, mas quem quer que se deixe impressionar

por isso mostra que é escravo de uma atmosfera mental provinciana, sem a

mínima abertura para o horizonte maior da cultura universal.

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Em contrapartida, não há estudioso sério que hoje possa contestar a afirmação

de Schelling, segundo a qual a transição da filosofia medieval para a atmosfera

moderna inaugurada por Descartes assinala a queda do pensamento filosófico

para um nível pueril. (2)

Essa queda revela-se da maneira mais escandalosa na simples perda da

técnica filosófica cujo domínio distingue o filósofo do beletrista e do ideólogo.

A longa prática da disputatio nas universidades havia dotado os intelectuais

europeus de uma habilidade lógica extraordinária, capaz de apreender num

relance o sentido dos conceitos, a distinção entre vários níveis de abordagem,

os pressupostos embutidos nas discussões, o senso das relações entre a parte

e o todo, a hierarquia de credibilidade das premissas, enfim, todas as

condições indispensáveis para uma investigação filosófica consistente.

De repente, tudo isso se perdeu. Descartes, malgrado sua alegação de

aprendizado escolástico, recai em erros lógicos primários que nenhum

estudante medieval cometeria, como o de não perceber que uma noção

puntual do ego pensante é um conceito abstrato e não uma intuição direta. (3)

O show de inépcia prossegue ao longo de dois séculos com a disputa de

racionalistas e empiristas, que qualquer escolástico treinado resolveria em vinte

minutos.

Malgrado a introdução meritória de novos temas e a persistência de alguma

habilidade escolástica notada em casos esparsos, o ciclo filosófico moderno é

em geral de uma grosseria sem par e o pouco que dele se aproveita reside

precisamente nos sistemas que, nadando a contracorrente, conservam o

essencial do legado escolástico, como é o caso dos de Leibniz e Schelling. Não

por coincidência, esses sistemas foram os que encontraram menos

compreensão entre seus contemporâneos, tendo de esperar o século XX para

que o mundo acadêmico percebesse sua importância incomum.

Também não é de estranhar que, em plena ascensão do estilo moderno,

algumas antecipações geniais feitas pelos escolásticos remanescentes,

especialmente na Espanha e em Portugal - como a teorização da economia de

mercado dois séculos antes de Adam Smith e a formulação do indeterminismo

físico três séculos antes de Heisenberg -, passassem completamente

despercebidas, enquanto a moda mecanicista, hoje totalmente desmoralizada,

posava como a encarnação mesma do espírito científico em oposição às

"trevas" escolásticas.

Tudo isso revela o quanto a história da filosofia, como a história de tudo o que

é humano, está sujeita a oscilações inteiramente irracionais e fortuitas, e o

quanto é imprudente tentar enxergar na sucessão temporal das filosofias algo

como uma progressiva vitória da luz sobre as trevas. Habet mundus iste noctes

suas, "este mundo tem suas noites", dizia S. Bernardo de Clairvaux, e nada o

ilustra melhor do que as crises de regressão e de esquecimento que pontilham

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a história da filosofia, obrigando cada geração de estudiosos a desencavar dos

escombros os tesouros que suas antecessoras, imbuídas da ilusão de estar no

pináculo da evolução humana, atiraram ao esquecimento.

Um desses tesouros, ciclicamente esquecido e reencontrado, sempre diferente

a cada reencontro, é a filosofia de Sto. Tomás de Aquino.

O que ela tem a dar ao mundo de hoje já não coincide exatamente com

aqueles aspectos seus que foram trazidos à luz pelo renouveau tomista

inspirado pelo Papa Leão XIII. O neotomismo do século XX, com todas as

contribuições esplêndidas que trouxe à reconquista de uma perspectiva cristã

na filosofia, talvez constitua, hoje em dia, até mesmo um obstáculo a uma

tomada de consciência dos ângulos da filosofia tomística que mais

urgentemente a atual geração necessita redescobrir.

Mas algumas outras dificuldades, mais elementares, se apresentam desde logo

ao estudante que se aventura nas páginas de Sto. Tomás. Examinarei aqui

duas delas.

A primeira é que a filosofia de Tomás não pode ser facilmente resumida em

alguma fórmula como "Penso, logo existo", "Todo o real é racional e todo o

racional é real" ou "A existência precede a essência", com que o público

moderno se acostumou a gravar na memória a imagem vulgar dos sistemas

mais badalados. Nenhuma filosofia verdadeiramente grande se deixa aprisionar

nesses rótulos. Eles servem para condensar universos filosóficos pobres ou

fictícios - pobres como o de René Descartes ou fictícios como os de Hegel e

Sartre --, mas não servem para Aristóteles, Leibniz, Schelling ou Husserl, cujos

sistemas não se fecham nas fórmulas de uma geometria imaginária mas

permanecem abertos à complexidade do real vivente, cheio de surpresas.

Também não servem para Tomás de Aquino, pela mesmíssima razão. É

relativamente fácil conceber, a partir de certas fórmulas resumidas, o que

Descartes ou Hegel teriam dito sobre isto ou aquilo quando não se conhece o

que disseram efetivamente. Mas o que Tomás tem a dizer não é nunca

inteiramente previsível, porque seu sistema tem a complexidade orgânica de

uma criação da natureza, que não é linearmente coerente mas contém sempre

incoerências superficiais absorvidas numa coerência mais profunda.

Essa dificuldade leva muitos estudiosos a simplificar o pensamento do grande

santo, espremendo-o numa logicidade um tanto estereotipada que, se o torna

mais digerível desde os princípios do próprio intérprete - freqüentemente mais

interessado numa apologética paroquial do que em filosofia -, acaba por

eliminar a variedade e o elemento surpresa que constituem um dos encantos

maiores da obra tomística.

Um exemplo característico é a eliminação habitual do componente astrológico,

essencial à obra e à sua compreensão. A justa rejeição magisterial da

astrologia como técnica preditiva levou com freqüência a jogar a criança fora

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junto com a água do banho, e no caso de Tomás a "criança" era nada menos

que toda uma filosofia da natureza e da liberdade. Para ele, Deus move os

corpos inferiores por meio dos superiores; logo, todos os fenômenos da ordem

natural terrestre são reflexos dos movimentos dos astros. Como o corpo

humano faz parte da ordem natural, ele está tão sujeito às influências dos

astros quanto qualquer outra coisa que se mova sobre a Terra; e como as

mutações sofridas pelo corpo interferem na conduta por intermédio dos

sentidos e das paixões, está claro que tudo quanto na conduta humana seja de

ordem puramente passional, isto é, independente da influência ordenadora da

inteligência e da vontade racional, pode muito bem ser compreendido com

base na influência dos astros. Essa clara reivindicação de uma astrologia

natural soa demasiado escandalosa aos ouvidos dos crentes, e por isto foi

freqüentemente suprimida das exposições "oficiais" da filosofia tomista, o que

se tornou no entanto indefensável depois do estudo definitivo de Thomas Litt.

(4) Não obstante, a edição eletrônica da Summa Contra Gentiles no site do

Jacques Maritain Center omite ainda os capítulos concernentes à influência dos

astros, que se contam entre os mais notáveis da filosofia tomística da natureza.

(5)

Esses arranjos e supressões, criando uma facilidade enganosa, acabam por

dificultar a compreensão do que existe de mais característico no pensamento

de Tomás, que é precisamente a coexistência de uma poderosa inteligência

metafísica com a boa-fé quase simplória com que sua alma santa se abria aos

dados do real e da ciência do seu tempo, sem nenhuma prevenção dogmática.

A história da vaca voadora é provavelmente fictícia, mas reflete bem o espírito

de Tomás. O santo estava estudando quando um monge o chamou às pressas

para ver uma vaca que passava voando diante da janela. Tomás saltou da

cadeira e, reclinado ao parapeito, vasculhou os céus em busca da vaca,

enquanto em torno os outros monges explodiam numa gargalhada coletiva.

Surpreendido, o santo se explicou: "É que achei mais razoável uma vaca voar

do que um monge mentir." O que é certo é que Tomás, alertado para qualquer

fenômeno, por mais esquisito e alheio a suas crenças, jamais recusaria

examiná-lo com a maior boa fé, mesmo que isto o levasse a conclusões bem

diversas das esperadas. Nada poderia contrastar mais enfaticamente com a

imagem de um sistema hierárquico fechado, que se consagrou na imaginação

do leitor contemporâneo por obra de apologistas ingênuos e adversários

astutos. Diz Eric Voegelin: "Esse sistema frouxamente atado, em certos pontos

repleto e abundante de excessos de digressão, é o perfeito símbolo de uma

mente que não é nem apriorística nem empirista, mas em si mesma um ser

histórico vivente, experienciando sua harmonia com a manifestação de Deus

no mundo histórico." (6) Não por coincidência, prossegue Voegelin, algumas

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69

das idéias mais interessantes de Tomás se encontram espalhadas nas

digressões e não no corpo central dos argumentos.

Entre perder-se na riqueza inesgotável do sistema vivente e recortá-lo segundo

um esquema didático prévio, o leitor moderno optará, decididamente, pela

última alternativa, preferindo antes conformar-se com "manuais de tomismo" -

quando não com aquelas reduções pejorativas tão caras à mentalidade

uspiana (7) -- do que lançar-se a uma leitura direta que o atemoriza e

confunde.

Uma segunda dificuldade, diretamente ligada à primeira, é a resistência

obstinada que a mente moderna oferece a uma proposta filosófica que

pretenda ser ao mesmo tempo realista e cristã. Mentes forjadas no molde do

preconceito kantiano segundo o qual Deus, por estar infinitamente separado da

esfera da nossa experiência sensível, só pode ser objeto de crença e não de

conhecimento -- preconceito que se incorporou na cultura universitária

contemporânea com uma autoridade dogmática intolerante a avassaladora --,

dificilmente podem conceber que a referência a Deus seja senão o apelo a um

artigo de fé, totalmente separado do conhecimento dos fatos da ordem sensível

e até da especulação filosófica racional. Essa mente acabará por dividir a

filosofia de Sto. Tomás em dois compartimentos estanques, separando

"filosofia" de "teologia" segundo noções estereotipadas de uma e da outra.

Com isso, perderá justamente o essencial dessa filosofia, que é a unidade

tensional e viva do imanente e do transcendente.

Tomás, embora rejeitando a convicção de seu amigo S. Boaventura de que

Deus é um dado intuitivo imediato, e embora subscrevendo tudo quanto a

doutrina da Igreja afirma sobre o papel decisivo da fé para a salvação das

almas, jamais se conformou com um Deus que fosse simples objeto de crença

ou mesmo a pura conclusão de um silogismo. Deus para ele é ineludivelmente

uma presença, e esta presença se manifesta de maneira prioritária nos dados

do mundo sensível. Ele estava persuadido de que os fatos da ordem sensível,

sendo expressões diretas do Verbo criador, jamais poderiam mentir. Por isto

ele não hesita em sacrificar a coerência superficial do sistema em favor da

variedade dos fatos, que têm para ele uma autoridade divina. Daí seu realismo,

inseparável do seu cristianismo. No universo tomístico, o verso do salmista,

Coeli enarrant gloriam Dei -- "Os céus exibem a glória de Deus" -- significa, da

maneira mais enfática, que astronomia, geologia, zoologia e demais ciências

da ordem sensível não são, em última instância, senão teologia simbólica. Na

Summa Contra Gentiles ele enuncia a fórmula mesma da hermenêutica

simbólica da natureza: "Nós falamos por meio de palavras, Deus fala por meio

das coisas." Logo, a transmissão da mensagem divina, para Tomás, não se

esgota no conteúdo verbal explícito da Bíblia e na doutrina formal que dele

extrai o magistério da Igreja; ela prossegue, diante de nós, no desdobramento

Page 70: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

70

inesgotável dos fatos da ordem natural e histórica. Entre a verdade que "desce"

na revelação do Sinai e na encarnação de N. S. Jesus Cristo e a verdade que

"sobe" dos fatos sensíveis ao sentido eterno que neles se manifesta, aí

residem precisamente o desafio e a tarefa do filósofo, erguido assim ao

estatuto de pontifex, de construtor de pontes entre os dois mundos que o

homem habita simultaneamente. Que a construção seja trabalho inesgotável e

altamente problemático, que ele seja sistêmico e orgânico por vocação mas

jamais redutível a um sistema perfeito e fechado, eis o que dá à filosofia

tomística a peculiar tensão intelectual que o torna, para nós, de uma rara força

estimulante.

Essa tensão reaparece, sob formas diversas, em mil e um pontos da doutrina

tomística. Um deles, realçado no belo estudo que Luiz Jean Lauand antepôs à

sua tradução (de parceria com Mário Bruno Sproviero) de duas "questões

disputadas" do mestre, é que a noção mesma de "conhecimento", nessa

doutrina, tem seu fundamento último na teologia da criação: "Não é possível

apreender o núcleo da expressão 'verdade das coisas' - ele simplesmente nos

escapa - se nos recusarmos a pensar as coisas expressamente como criaturas,

projetadas pela intelecção de Deus, que pensa-o-ser... O ser-pensado das

coisas por Deus fundamenta a sua inteligibilidade para o homem." (8)

Na entrada do ciclo moderno, Descartes, ignorando por completo esse item da

doutrina tomística, retornará à noção de Deus como fundamento do

conhecimento, mas compreendendo-O apenas como garantia externa da

conexão entre o ego pensante e o mundo físico. Que diferença entre essa

justaposição mecânica de três fatores e a reabsorção tomística de sujeito e

objeto na sua condição originária de criaturas!

Por isso mesmo é puramente metonímica - e, se tomada ao pé da letra, até

insultuosa - a noção vulgar que apresenta Tomás como o homem que se

dedicou a "harmonizar teologia cristã e filosofia grega". Harmonizar doutrinas

seria antes trabalho de um erudito de gabinete, não de um filósofo. Tomás é

um filósofo, e não menor do que seu mestre Aristóteles, justamente porque o

que ele busca não é a harmonia entre doutrinas prontas, mas o elo perdido

entre dois universos de experiência: a experiência do apelo divino, a

experiência do mundo sensível. O que ele busca é a absorção de toda a

realidade num sentido espiritual, e não a solução de um problema dogmático-

administrativo.

Que esse empreendimento tivesse também, no contexto histórico imediato,

uma tremenda importância política que passou despercebida a seus

contemporâneos, os quais por isto precipitaram a Igreja numa longa sucessão

de quedas e humilhações que ainda está longe de ter-se esgotado, é um

desses casos de engano geral ante um acerto individual, que mostram, acima

de toda possibilidade de dúvida, que a verdade aparece com mais facilidade à

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71

alma do homem singular empenhado em conhecê-la do que à autoridade

coletiva, mesmo quando respaldada em garantias divinas de última instância.

Tomás compreendia, mais que ninguém, que da tensão harmônica entre o

espiritual e o sensível dependia a sobrevivência da própria Igreja enquanto

instituição, e mais ainda a do sacrum imperium que deveria representar a forma

histórica por excelência da civilização cristã, a encarnação da Igreja na história.

Por isso ele insistia na compreensão simbólica da natureza, que integra as

ciências do mundo físico numa visão metafísica que é, em essência, a mesma

que se depreende da revelação evangélica. (9)

A dissolução da síntese civilizacional da Idade Média e a quebra da unidade da

Igreja acompanham pari passu a divisão irrecorrível de "ciências sagradas" e

"ciências profanas", que, a partir do século XIII, e contra a intenção manifesta

de Tomás, foi suprimindo destas últimas toda significação espiritual, até torná-

las independentes e hostis a qualquer consideração de ordem metafísica, para

não dizer teológica, de modo que não resta ao apologeta cristão senão tentar

harmonizar a posteriori ciência e teologia, num esforço vão de reduzir a uma

linguagem comum conclusões obtidas por métodos incompatíveis e

mutuamente excludentes. No século XIX, a ciência da natureza já se declara

inimiga aberta da religião cristã. Acuados, os cristãos mal conseguem resistir,

no século seguinte, à tentação de apegar-se, in extremis, à conciliação falsa e

oportunista elaborada pelo Pe. Teilhard de Chardin, prostituindo a religião no

leito da ciência e vice-versa. (10)

Ao mesmo tempo, o simbolismo da natureza, expelido do mundo católico

"oficial", era açambarcado pelas seitas heréticas e gnósticas, que o

modificaram a seu belprazer -- embaralhando as criteriosas distinções que nele

Tomás havia estabelecido entre o racional e o supersticioso, entre o divino, o

natural, o humano e o demoníaco -- e fazendo dele a base de não sei quantas

concepções mágicas e loucas que deram origem às sociedades secretas

revolucionárias do século XVIII, (11) ao florescimento mórbido de pseudo-

espiritualismos no século XIX (12) e por fim à grande farsa da New Age nos

anos 60 do século XX. (13)

Tal como a divisão de racionalismo e empirismo - cuja unidade dialética, no

entanto, transparece tão nitidamente na filosofia do próprio Tomás --, a ruptura

entre religião e ciência solapava a base mesma do sacrum imperium e da

inserção da Igreja no mundo como Mater et magistra do devir histórico.

Perdido o elo essencial entre o espiritual e o sensível, era inevitável que se

rompesse mais cedo ou mais tarde a unidade da Igreja com o corpo político da

sociedade, como de fato veio a acontecer com o advento das monarquias

nacionais, condenadas à morte já no nascedouro, e, em seguida, do moderno

Estado leigo, no qual a autoridade religiosa recua para o domínio privado

enquanto a esfera pública é entregue à guarda daquela mistura inextricável de

Page 72: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

72

cientificismo, ocultismo e ideologias revolucionárias milenaristas, que compõe a

fórmula da típica mixórdia mental do intelectual moderno.

Paralelamente, o credo cristão, ao perder sua função orgânica na sociedade,

perde também, sobretudo no meio protestante, a flexibilidade e a sabedoria

medievais, enrijecendo-se num moralismo incompatível com a vida prática

moderna e impondo às almas uma carga pesada demais, que elas acabam por

rejeitar ante as ofertas tentadoras de uma vida mais fácil e confortável no seio

do agnosticismo e da indiferença espiritual.

O humilde pároco de aldeia de Bernanos, encarnação de valores da França

medieval no seio do clero moderno, compreendia ainda, como a Igreja de São

Luís e de Joana d'Arc, que numa paróquia -- e a paróquia simboliza o mundo

humano em geral --, o pecado e a graça vivem num estado de equilíbrio

instável cujo centro de gravidade, no entanto, é "baixo, muito baixo". Ele

compreende isso, mas não consegue transmitir essa verdade a seus

superiores, típicos representantes do clero moderno, tão enrijecidos numa

moral monástica incomunicável com a complexidade do mundo quanto, por

outro lado, flácidos e complacentes ante o atrativo intelectual de idéias

modernas cuja periculosidade lhes escapa porque elas não ofendem

diretamente o receituário moral em que se resume o seu cristianismo.

Estudando a história dos costumes medievais, (14) surpreende-nos observar o

quanto a Igreja daqueles tempos era tolerante e compassiva com fraquezas

humanas que, num período posterior, bastariam para expor um pecador à

execração geral, principalmente no ambiente protestante cujo advento

condensa simultaneamente as duas tendências opostas e inseparáveis

nascidas da quebra da unidade medieval: o recuo da religião para a esfera

privada e a adoção de rígidos critérios de moral monástica para toda a

sociedade civil. Um caso como o de Jimmy Swaggart, o pregador fervoroso

submetido a humilhação pública e obrigado a abandonar o magistério por conta

de um simples pecado carnal, seria impensável na Idade Média: o pecador

confessaria seu erro e voltaria ao púlpito com mais entusiasmo ainda,

arrebatado pela efusão da Graça. Seu arrependimento seria propagado de

cidade em cidade e, no ambiente fortemente emocional da época, suscitaria

lágrimas de comoção entre os fiéis.

É um erro enorme, criado pela propaganda anticristã, imaginar a "igreja

institucional" como sede do moralismo autoritário e portanto a supressão da

autoridade pública da Igreja como uma libertação da consciência pessoal. A

religião medieval, justamente por sua participação imediata no mundo social e

político, podia ser mais compreensiva e flexível justamente porque arcava com

parte da responsabilidade pela esfera mundana, onde o centro de gravidade é

"baixo, muito baixo". Recuando para a esfera privada, ela se imbui de um

monasticismo deslocado e intolerante, ao mesmo tempo que, para piorar as

Page 73: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

73

coisas, o Estado, prevalecendo-se de seu prestígio de libertador e progressista,

se aproveita da ocasião para impor a populações desmemoriadas toda sorte de

exigências tirânicas que elas aceitam porque não vêm sob a chancela de um

dogma religioso, mas sob a bandeira da liberdade e das luzes. Qualquer papa

medieval consideraria um pecado contra a ordem divina do mundo humano

tentar derrubar um governante bom e eficiente sob a acusação de vida

dissoluta ou corrupção pessoal, pois sabia que, na paróquia como no mundo, o

bem comum está acima das exigências de perfeição individual. Uma igreja sem

responsabilidade de governo não tem por que se preocupar com isso, e pode,

a pretexto de moral, ajudar a desequilibrar a ordem social e facilitar a ascensão

de insensatas ambições revolucionárias.

Tudo isso já estava, de certo modo, previsto e remediado na filosofia de

Tomás. Quando ele sonda os "processos ocultos da natureza", (15) admite a

existência de fundamento na quirologia e na alquimia, (16) distingue entre

adivinhação natural e demoníaca (17) ou estabelece os limites entre um estudo

científico e uma abordagem supersticiosa da influência dos astros na conduta

humana, (18) só a extrema covardia ante a hegemonia do cientificismo

moderno pode levar um intérprete cristão a depreciar tudo isso como meros

passos obscuros de um precursor canhestro da ciência materialista. Bem ao

contrário, esses aspectos que muito tempo foram tidos como menores e

marginais na interpretação do tomismo representam, para nós hoje, a mais

bela promessa de um resgate cristão do simbolismo da natureza, que já por

tempo demasiado permanece refém de feiticeiros, gnósticos e heréticos,

parceiros ocultos do cientificismo dominante.

Felizmente, ainda está em tempo de reconquistar o terreno perdido. Para isso,

é preciso apenas reencontrar o sentido da filosofia cristã da natureza, sem a

qual uma filosofia cristã da sociedade e da política não passará nunca de um

arranjo improvisado ex post facto e sempre sujeito a ser explorado em

benefício de ideologias anticristãs. Mas essa reconquista pressupõe

inteligências capazes de inspirar-se no exemplo de Tomás - capazes de

suportar a tensão criadora entre o imanente e o transcendente, entre o natural

e o espiritual, e de se abrir à variedade dos fatos com a certeza absoluta de

que, malgrado suas aparências contrastantes e assustadoras, por eles fala a

voz do Divino Salvador. Muitos dizem que a Igreja de hoje precisa de santos.

Mas o próprio Tomás dizia que um pouco de santidade com muita sabedoria

era preferivel a muita santidade com pouca sabedoria. Talvez o que a Igreja de

hoje precise é de inteligências desassombradas, capazes de não recuar nem

mesmo ante a hipótese da vaca voadora.

19 de maio de 2001

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1 Diretor do Seminário de Filosofia do Centro Universitário da Cidade

(UniverCidade). Autor de Aristóteles em Nova Perspectiva (Rio, Topbooks,

1998), O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (Rio, Faculdade

da Cidade Editora, 1997), O Futuro do Pensamento Brasileiro (Rio, Faculdade

da Cidade Editora, 1998), Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão: a

Dialética Erística de Arthur Schopenhauer (Rio, Topbooks, 1999), O Jardim das

Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a

Religião Civil (Rio, Diadorim, 1995; 2a. ed., São Paulo, É Realizações, 2000) e

outras obras. Colunista dos jornais O Globo (Rio de Janeiro), Zero Hora (Porto

Alegre) e Jornal da Tarde (São Paulo) e das revistas Época e Bravo!. Website:

http://www.olavodecarvalho.org.

2 F. W. J. von Schelling, On The History of Modern Philosophy, transl. Andrew

Bowie, Cambridge University Press, 1994, p. 42.

3 V. Olavo de Carvalho, "René Descartes e a Psicologia da Dúvida",

comunicação apresentada no Colóquio Descartes da Academia Brasileira de

Filosofia, Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 9 de maio de 1996. Transcrição

completa no website do autor.

4 Les Corps Célestes dans l'Univers de Saint Thomas d'Aquin, Louvain,

Publications Universitaires, 1963.

5 Jacques Maritain Center:

http://www.nd.edu/Departments/Maritain/etext/gc.htm.

6 Eric Voegelin, History of Political Ideas, vol. II, The Middle Age to Aquinas, ed.

Peter von Sievers, Columbia, University of Missouri Press, 1997, p. 215.

7 V. a propósito Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições. De Epicuro à

Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil, 2a. ed.,

São Paulo, É Realizações, 2000, Cap. I, §§ 2-3.

8 "Introdução" a: Sto Tomás de Aquino, Verdade e Conhecimento. Questões

Disputadas "Sobre a Verdade", "Sobre o Verbo" e "Sobre a Diferença entre a

Palavra Divina e a Humana", trad. Luiz Jean Lauand e Mário Bruno Sproviero,

São Paulo, Martins Fontes, 1999.

9 V. Seyyed Hossein Nasr, The Encounter of Man and Nature. The Spiritual

Crisis of Modern Man, London, Allen & Unwin, 1968.

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75

10 V. Wolgang Smith, Teilhardism and the New Religion. A Thorough Analysis

of the Teachings of Pierre Teilhard de Chardin, Rockford (Illinois), Tan Books,

1988.

11 V. James H. Billington, Fire in The Minds of Men. Origins of the

Revolutionary Faith, NewYork, Basic Books, 1980.

12 V. René Guénon, Le Théosophisme. Histoire d'une Pseudo-Réligion, Paris,

Éditions Traditionnelles, réed. 1978, e Peter Washington, O Babuíno de

Madame Blavatski. Místicos, Médiuns e a Invenção do Guru Ocidental, trad.

Antônio Machado, Rio, Record, 2000.

13 V. Russel Chandler, Compreendendo a Nova Era, trad. João Marques

Bentes, São Paulo, Bompastor, 1993, assim como Olavo de Carvalho, A Nova

Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, IAL e Stella

Caymmi Editora, 2a. ed., 1997 (há transcrição completa no website do autor).

14 V. Life in the Middle Ages, selected and annotated by G. G. Coulton,

Cambridge University Press, 4 vols., 1954.

15 Cf. De occultis operibus naturae, Opera, 27, 504-7.

16 Meteor., III, 9.

17 Summa, II, ii, 95, art. 5.

18 Contra Gentiles, III, 82-87.

Tocqueville e o totalitarismo

Caro Olavo,

Resolvi comprar o livro Democracia na América após ler os seus elogios sobre

ele, mas já na primeira parte, surgiu uma dúvida: Tocqueville fala que a religião

protege os homens contra paixões insensatas de tudo conhecer, portanto de

tudo mudar, acabando assim com a paixão pela igualdade que ameaçava a

liberdade. Mas só que a religião impedia a tirania da igualdade para instaurar a

tirania dos costumes. Pois eram os costumes religiosos que influenciavam as

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leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais

que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até

leis que proibiam o tabaco! (Code 1650).

Estas leis não eram impostas mas sim votadas pelo livre concurso dos

interessados. Não acho que podemos isentar a religião neste caso, culpando

só o estado civil da época, já que "O puritanismo era quase tanto uma teoria

política quanto uma teoria religiosa, e que ele se confundia em vários pontos

com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas."(Pág.43) A política

e a religião eram tendências diversas, mas não contrárias. Os costumes

religiosos influenciavam as leis de caráter tirânico, que eram realmente

cumpridas, como mostra o autor. Como eu já li a sua apostila Humanismo e

Totalitarismo,eu pergunto pro senhor: Será mesmo que as outras épocas não

conheceram o totalitarismo? Com certeza era um totalitarismo em menor

escala, mas não deixa de ser uma semente do totalitarismo vindouro. Será que

a religião não está isenta de culpas pelo totalitarismo na América de outra

época? Podemos dizer também que as leis da sociedade puritana não

influenciaram em nada o totalitarismo posterior? Segundo uma dedução do

próprio Tocqueville, é bem capaz, já que "As leis conservam seu caráter

inflexivel,quando os costumes já se submeteram ao movimento do tempo." Há

por acaso uma data ou um período que mostra que os costumes religiosos

deixaram de ditar as leis? Se há, será que durante essa transição não houve

influência do espírito tirânico dessas leis sobre o novo sistema legislativo? Se a

igualdade exagerada é uma ameaça à liberdade, até que ponto também é a

religião? Fico por aqui, agradecendo desde já pela atenção.

Um abraço,

Marcelo Wick

[email protected]

Resposta de Olavo de Carvalho

Sua pergunta é enormemente complicada, pois não existe "a" religião, e sim

uma multidão de fenômenos diversos e às vezes heterogêneos que recebem

nome. Já no próprio exemplo que você cita, o puritanismo é uma dissidência de

uma dissidência, uma espécie de cristianismo de terceiro grau, e como tal

evidentemente haverá pontos de semelhança e de diferença entre ele e o

tronco remoto do qual proveio.

De modo geral, a idéia de um controle total do governante sobre os indivíduos

só aparece realizada nos antigos impérios "cosmológicos" ~ Egito, Babilônia,

China. Já em Platão (República), a vaga recordação de um Estado "perfeito" na

qual parecem flutuar resíduos do modelo egípcio é projetada para o futuro, ou

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para um tempo abstrato: a u~topia é também u~cronia. A idéia reaparece no

Renascimento, insuflada pela onda de nostalgia platônica e pitagórica. Vem

tingida de três novas nuances: a ciência matematizante da natureza, a

autoconfiança prometéica no poder do homem e a influência de seitas

gnósticas persuadidas de que o mundo criado é o mal e deve ser substituído

por um mundo inventado pelo homem. Eric Voegelin (History of Political Ideas)

assinala ainda o impacto que as vitórias de Tamerlão tiveram sobre a mente

ocidental, promovendo a imagem do governante todo-poderoso que, pela sua

força, engenho e sorte, se coloca acima do bem e do mal (tal a origem do

Príncipe de Maquiavel). A influência conjugada das seitas gnósticas e da nova

mitologia do rei onipotente está na origem das idéias modernas de absolutismo

e de razão-de-estado, sem as quais a possibilidade de um controle oficial sobre

as vidas dos indivíduos não é sequer pensável.

Daí por diante, fica difícil distinguir, na ascensão do domínio oficial sobre os

homens, o que é de origem estatal, o que vem das autoridades religiosas. O

que é certo é que tanto aquele quanto estas já estavam sob o domínio de

concepções que não têm nada a ver com o cristianismo tal como conhecido

antes disso. Também é certo que, pelo lado oficial, o "ancien régime", mesmo

intoxicado de razão-de-estado, conservou muitas das liberdades medievais

pelo menos até a Revolução Francesa. Ninguém compreenderá a brutal

diferença entre a liberdade antiga e a tirania moderna se não souber que a

idéia mesma de uma lei uniforme para todos os habitantes de um território

nacional só se implantou com a Revolução; que, antes disso, a diversificação

em direitos regionais e municipais, prerrogativas de casta, de ofício, de família,

etc. era tão complexa que nenhum governante nacional podia sequer sonhar

em ter sobre a população o controle que desde então se tornou coisa banal e

corriqueira; é à luz de uma ilusão retroprojetiva que "leis como a pena de morte

para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na

escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco",

para citar os seus exemplos, adquirem alcance comparável aos controles

exercidos por governos modernos, seja ditatoriais, seja mesmo democráticos.

Só a título de comparação, note que o governante mais poderoso do "Ancien

régime", Luís XIV, para formar um exército de 140 mil homens, o maior da

Europa então, teve de ir pessoalmente de cidade em cidade implorar que as

pessoas se alistassem, ao passo que o governo da Revolução recrutou um

milhão de soldados em poucas semanas implantando o serviço militar

obrigatório e a pena de morte para os recalcitrantes. Outro exemplo: até o

Renascimento, os papas não tinham sequer a autoridade de nomear os bispos,

que eram escolhidos por negociações locais. Outro ainda: a posição dos judeus

na sociedade, durante toda a Idade Média, variava de cidade para cidade,

numas vigorando sua exclusão dos cargos públicos, noutras esses cargos

Page 78: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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sendo praticamente monopolizados por eles. Não resta dúvida: o controle

central é, no Ocidente, invenção moderna. À luz desse fato, não tem sentido

atribuir o mesmo peso a uma lei moderna e a uma lei antiga cujo conteúdo

verbal seja semelhante. A idéia mesma de uma lei uniforme para toda a nação

surge por obra dos humanistas, que promovem a restauração do Direito

Romano com sua concepção de unidade sistêmica, totalmente ignorada na

mixórdia do direito local e consuetudinário vigente na Idade Média. Ora, sem lei

uniforme é contra-senso falar de totalitarismo. Não deixa de ser elucidativo que

o país europeu que mais se conservou imune a qualquer tentação totalitária, a

Inglaterra, fosse também aquele que mais conservou os direitos medievais, por

confusos que fossem, preferindo a confusão da variedade ao risco de uma

unidade tirânica.

Que pudesse haver tiranias locais e diferenças de maior ou menor

autoritarismo de época para época é um fato que não as torna de maneira

alguma "sementes" do totalitarismo moderno, pois não há relação causal ou

continuidade entre uma coisa e outra. Quando mais não fosse, pela razão

seguinte: nenhuma dessas tiranias jamais se legitimou através de uma teoria,

de uma doutrina, que pudesse permanecer após o fim do regime e influenciar

as gerações seguintes. A continuidade de um "modelo" supõe a continuidade

da sua fórmula ideal, e a fórmula ideal do governo absoluto só surge mesmo no

Renascimento, vinda da fusão do novo modelo do déspota oriental, que

enfeitiçava todas as consciências, com o princípio de ordenação racional

trazido pelo direito romano e pelas novas concepções científicas. O

totalitarismo no fim das contas é isso: despotismo científico. Quando

Tocqueville assinala o parentesco entre o totalitarismo e a ilusão de saber tudo,

ele acerta na mosca: sem a idéia da ciência total não há legislação total, nem

portanto governo totalitário.

A resposta, portanto, é não. Não há em toda a história ocidental antes do

Renascimento nada que se assemelhe ao totalitarismo moderno.

01/05/00

Educação Liberal

Palestra de Olavo de Carvalho

Rio de Janeiro, 18 de Outubro de 2001

Transcrição: Fernando Antônio de Araújo Carneiro

Revisão: Patrícia Carlos de Andrade

Sem revisão do professor

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Agradeço comovido as palavras do deputado Carlos Dias e da minha querida

amiga Mina Seinfeld 1. E, aliás, essa é não somente uma oportunidade para

ela falar a meu respeito, mas para contar também algumas coisas a respeito

dela. A professora Mina está envolvida numa luta que é paralela à minha, onde

encontra condições muito parecidas. Nós dois estamos envolvidos na luta

contra as drogas, apenas a espécie de droga é que muda: sobre as drogas de

que ela trata, ainda há a discussão de se serão liberadas ou não, ao passo que

as drogas de que falo, não apenas estão liberadas, como são obrigatórias. A

diferença é mais ou menos esta. Mas, neste esforço monumental e meritório da

professora Mina, ela encontra a mesma resistência que encontro na minha

área, porque todos estão contra: os drogados, os traficantes, os que têm

interesse político na coisa, os indiferentes e todos aqueles que querem parecer

bonzinhos - todos os politicamente corretos. E, de fato, quando você vai para

um debate é exatamente como ela descreveu: são trinta pessoas para falar a

favor e uma contra e depois, na transcrição, ainda cortam umas frases do que

a pessoa falou e ficam lá somente três linhas, para provar que o debate foi

bastante democrático. Isto é pior do que não ter debate nenhum, é uma

falsificação.

Agradeço muito a meus alunos essa iniciativa. A idéia foi inteiramente deles,

que têm um grande mérito em fazer isto, abrir a outras pessoas a mesma

oportunidade. Nosso curso aqui no Rio tem sido quase que confidencial. Creio

que existe aqui há dezoito anos e nunca foi anunciado nem avisado; continua

existindo, não sei como. Em São Paulo há toda uma infra-estrutura montada, o

número de alunos é bem grande, e no Paraná são cento e cinqüenta alunos. É

um pouco estranho que aqui no Rio de Janeiro, que ainda é a capital cultural

do Brasil, nosso curso seja tão secreto assim. Não me incomodo se dou aula

para um, dois ou cem alunos: o problema é exatamente o mesmo. Ademais,

esse tipo de ensino requer muito tempo para dar frutos. Calculo mais ou menos

dois anos, para a pessoa começar a perceber o que está mudando em sua

vida, no seu enfoque existencial.

Agora, o tema de hoje, que é a educação liberal, é mais abrangente do que a

proposta do meu curso; o curso é uma das modalidades, um dos capítulos do

que chamaríamos de educação liberal. Liberal não se confunde com o

liberalismo político, a ideologia de Adam Smith, Herbert Spencer e outros, nem

com o sentido da palavra liberal nos Estados Unidos que quer dizer

esquerdista, mas tem a ver com a noção, hoje em dia puramente nominal, de

profissões liberais. Profissões liberais, como o próprio nome diz, se opõem às

profissões servis, que são exercidas em troca de uma remuneração. Profissões

liberais são exercidas num ato de liberalidade do indivíduo; ou seja, o

profissional liberal está de algum modo obrigado a exercer a sua tarefa

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80

somente por um mandamento interno, somente por um dever interno, e ele tem

que exercer aquilo com ou sem remuneração, ou até mesmo pagando para

exercê-la. Esse é o sentido originário. Por exemplo, o médico na ética da idade

média não poderia jamais recusar um paciente que não tivesse dinheiro para

pagá-lo; o advogado a mesma coisa. E, por isso mesmo, quando havia uma

remuneração, esta se chamava honorário. Honorário é algo que damos ao

indivíduo não pela tarefa que ele desempenhou, mas em reconhecimento da

honra de sua posição na sociedade ou do mérito de seu saber. Tanto faz dar

cinqüenta centavos ou cinqüenta mil, porque o que vale é a intenção.

Hoje em dia, não é mais assim. Quando consultamos um advogado a primeira

coisa que ele faz é puxar uma tabela de honorários. A expressão tabela de

honorários é uma contradição de termos, pois se são honorários, não há

tabela. Tabelas são de salários ou de preços, tabela de honorários não é

possível.

Na idade média, a formação para as profissões liberais começava com a

absorção do que se chamava as artes liberais. Eram um conjunto de

disciplinas, das quais três tratavam essencialmente da linguagem e do

pensamento e quatro tratavam dos números, entendidos num sentido muito

mais amplo do que hoje estamos acostumados a designar por este nome, e

das proporções. O número seria o sentido geral da forma e da proporção. As

quatro disciplinas que lidavam com o número eram a aritmética, a geometria, a

música e a astronomia ou astrologia. A astrologia veio a se dividir em duas

áreas: a astrologia esférica, que era o estudo da esfera celeste, e a astrologia

judiciária, que era o que hoje chamamos de astrologia - uma especulação, seja

científica ou outra coisa, sobre as coincidências temporais entre o que se

passa no movimento dos astros e os acontecimentos terrestres. Tudo isso era

considerado parte das matemáticas, ou seja, a matemática era, de modo geral,

a ciência da medida e da proporção. As outras três disciplinas eram a

gramática, a lógica ou dialética, e a retórica.

Esta formação básica, que geralmente começava bem mais tarde do que hoje,

aos quatorze anos, visava a transmitir ao indivíduo, por um lado, o senso das

proporções, o senso da forma do mundo e, por outro lado, os meios de

compreensão, expressão e participação na cultura humana 2.

O que hoje chamamos de educação liberal é uma adaptação das artes liberais

antigas, feita sobretudo por dois educadores, Robert Hutchins e Mortimer Adler

3, no começo de século . Nesta adaptação, as artes liberais deixam de se

distinguir das artes servis e começam a se distinguir do ensino profissional.

Todas as áreas de ensino visam a transmitir determinadas habilidades

profissionais; as artes liberais, em contra-partida, visam a formar o cidadão em

geral, o cidadão não especializado. Mais especificamente com a ênfase na

idéia de cidadão da democracia, subentendendo-se democracia pelo sistema

Page 81: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

81

onde vale a pena discutir, onde é possível haver uma discussão e onde há uma

possibilidade de que as questões sejam arbitradas por meio da razão e não de

motivos desconhecidos que uma autoridade possa ter para decidir assim ou

assado.

A discussão é evidentemente inerente à própria idéia de democracia. Mas, por

outro lado, a discussão é perfeitamente inútil se não há nenhum critério

racional para arbitragem das discussões. Se não há nenhum meio de os lados

em disputa provarem as suas razões, ou seja, se todas as razões se

equivalem, então a discussão evidentemente não vai dar em nada e a coisa no

fim será resolvida pelo meio da força. Pode ser a força física ou a força

emocional, o apelo emocional da propaganda.

Adler e Hutchins eram pessoas que pensavam politicamente de maneira muito

diferente entre si: Adler era mais conservador e Hutchins era definitivamente

esquerdista. Mas, sabendo que há um compromisso inerente entre a idéia de

democracia e a idéia de razão, achavam que podiam organizar um novo

sistema de ensino não apenas baseado na tradição das artes liberais, mas na

experiência acumulada do ensino das elites americanas. Nos Estados Unidos,

antes mesmo da independência, se formaram vários colégios para a educação

da elite que, quase instintivamente, adotaram como mecanismo básico de

ensino, a leitura e a absorção do legado dos clássicos. Entendemos por

clássico, uma obra que tem valor e interesse permanente, que tenha dado

alguma contribuição que permanece eficaz ao longo dos tempos; aquela obra

que, a despeito do tempo que passou depois que ela foi escrita, ainda tem algo

a nos ensinar. Particularmente, e mais precisamente, se designam como

clássicas obras que estabeleceram certas noções ou transmitiram certos

ensinamentos, que vão formando patamares sucessivos de consciência

humana, de tal modo que a discussão de determinados assuntos não tenha

mais o direito de descer abaixo daquele patamar.

Por exemplo, a partir do momento em que Aristóteles formula a ciência da

lógica não é mais possível discutirem-se legitimamente as coisas, como os

sofistas e Sócrates discutiam, utilizando uma lógica rudimentar, onde os

procedimentos de prova se confundiam provisoriamente a procedimentos

destinados a impressionar o ouvinte. O próprio Sócrates, que é um crítico dos

sofistas, incorre freqüentemente nesse tipo de argumentação. Não por maldade

evidentemente, mas simplesmente porque os dois tipos de argumentação, a

que visa a impressionar e a que visa a provar, não haviam ainda se distinguido

perfeitamente. Essa distinção só veio mesmo com Aristóteles. E a partir do

momento em que essa distinção fica estabelecida, cria-se uma espécie de

patamar de consciência: não temos mais o direito de ignorar a existência dessa

distinção 4.

Page 82: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

82

A técnica da discussão e da prova foi elevada a nível de requinte quase

inimaginável, mais tarde, pelos filósofos escolásticos, que também fixam um

novo patamar de exigência. Depois surgem os processos de investigação e

prova aceitos nas ciências naturais e isto vai se acumulando como uma série

de patamares de exigência de modo que, teoricamente, não teríamos o direito

de entrar na discussão de um assunto ignorando esses patamares já

conquistados.

Dei o exemplo de patamares conquistados em filosofia, mas temos o mesmo

processo em cada uma das ciências e sobretudo nas artes. Por exemplo, o que

vai distinguir a escrita literária da escrita vulgar, nas artes literárias, é

precisamente a consciência de uma evolução dos meios expressivos da arte,

que a primeira traz dentro de si. A escrita literária é cheia de referências aos

antecessores; referências a toda uma evolução anterior. É praticamente

impossível encontrar um único verso da literatura moderna que não tenha

dentro de si várias camadas de significado que foram sendo acumuladas pela

evolução da poesia ao longo dos tempos. É evidente que, para o leitor

perceber isso, é preciso que ele próprio tenha noção dessa evolução anterior,

de modo que na medida que vai absorvendo esta consciência da evolução da

arte literária, a leitura que faz de um poeta moderno seria imensamente mais

rica do que a que poderia ser feita pelo sujeito que chegasse lá sem ter o

conhecimento das referências. Ou seja, essa evolução vai sedimentando novas

linguagens e novos códigos, cujo conhecimento é a condição para que se

possa participar, de uma maneira consciente, do mundo cultural, do mundo das

discussões, do mundo da comunicação.

A transmissão a um estudante ou a um jovem da consciência desses

patamares é que seria precisamente a educação liberal.

O sistema político moderno é enormemente complexo. Se compararmos

qualquer país hoje - Brasil, Uruguai ou Paraguai - com a República Romana,

veremos que sua organização política é imensamente mais complexa. Para

discutirmos um problema qualquer da economia ou da política paraguaias,

precisaríamos ter um horizonte de consciência muito mais vasto que o que o

cidadão romano ou o cidadão da democracia grega teriam que ter para

compreender seus problemas locais. A acumulação desses patamares de

consciência, portanto, forma a série de condições que, num dado momento da

evolução histórica, o ser humano precisa cumprir para entender o que está

acontecendo em torno dele. Entender o que está acontecendo não é não é um

dever e não é atribuição de uma profissão especializada, mas é, de certo

modo, uma possibilidade aberta a todos os cidadãos. Não podemos tornar isso

obrigatório porque a aquisição desse patrimônio depende de uma capacidade

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pessoal e de uma disposição; uma vocação pessoal. Torná-lo obrigatório é,

portanto, utópico.

Eu não acredito em educação universal obrigatória, de jeito nenhum. Não

acredito em educação de quem não queira se educar. Acredito em

oportunidade universal de educação. Abrir para todos, sim, mas tornar

obrigatório é absolutamente inócuo.

A aquisição da consciência desses sucessivos patamares é uma possibilidade

que está aberta aos cidadãos que desejem compreender o mundo em que

estão. Porque o mundo atual não surgiu do nada, não foi inventado ontem,

resulta de milhões de decisões e ações humanas que foram se encaixando

umas às outras e que produziram resultados que não estavam sob o controle

de ninguém. O código civil de qualquer país do ocidente e, de fato, toda a

legislação moderna, por exemplo, certamente sofrem a influência do código de

Napoleão. Napoleão chamou uma comissão de juristas que escrevia de um

modo e ele riscava e dizia que não era daquele jeito, mas de outro. Ou seja, o

código saiu da cabeça dele e, a partir desse momento, o impacto foi formidável.

Mas se não temos consciência do modus raciocinandi, das razões que

Napoleão teve para fazer isto desta maneira e não de outra, sofremos o

impacto de novas legislações cujas razões profundas não conhecemos. Ou

seja, não estamos capacitados para discutir aquilo.

Hoje em dia todo mundo acredita que existe o direito à liberdade de expressão

e o direito à liberdade de opinião. Eu não acredito porque, para haver liberdade

de opinião é preciso, em primeiro lugar, haver uma opinião. Mas a maioria das

pessoas que exercem a liberdade de opinião não tem opinião. Para ter uma

opinião, preciso ter prestado atenção em algo. Freqüentemente vemos pessoas

que falam durante dez minutos sobre assuntos nos quais não prestaram

atenção nem por dois minutos. Então não posso chamar isso de opinião: isto é

uma efusão improvisada de palavras que brotam no momento da pessoa, mas

sem nenhuma relação com o objeto do qual ela está falando. Então se

acreditamos no direito universal à expressão das opiniões, que ele é um dado

primeiro e incondicional, significa que todos têm o direito de falar pelo tempo

que quiserem e todos têm a obrigação de ouvir. Então lhes pergunto: o que é o

direito à liberdade de opinião sem a contra-partida que é o direito de não ouvi-

la, o direito de ir embora? Por exemplo, nenhum de vocês está obrigado a ficar

sentado aí. Vocês estão porque querem, mas têm o direito de ir embora a

qualquer momento.

A própria idéia de direito à liberdade de expressão, à liberdade de opinião está

condicionada ao mérito da opinião, ao valor da opinião. E esse valor é

condicionado, no mínimo, pelo interesse que o próprio opinante tem no

assunto. Imagina que o sujeito não se interessou pelo assunto o suficiente para

se informar a respeito dele por cinco minutos que sejam. Por que ele teria o

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direito de falar sobre o assunto durante seis minutos e teríamos que escutá-lo?

A conquista de uma opinião, portanto, é o primeiro passo para o exercício

efetivo da liberdade de opinião. É evidente que quando o indivíduo expressa

sua opinião numa assembléia, ele está de certa maneira se personificando;

está dizendo: este sou eu, sou o camarada que pensa assim e assado. Dali em

diante, ele será encarado como representante daquela opinião. Mas, se o

sujeito dá uma opinião que pensou na hora e da qual não vai se lembrar nos

próximos dez minutos, ele personifica o quê?

É só reparar um pouco nas discussões públicas que acontecem no Brasil e

percebemos um fenômeno esquisito. Sabemos que as pessoas lêem pouco; os

jornais de grande tiragem vendem hoje cerca de um milhão de exemplares,

sendo que vendiam o mesmo na década de cinqüenta. Ou seja, a população

cresceu formidavelmente, o número de escolas cresceu mais ainda, e as

pessoas continuam lendo a quantidade de jornais que liam na década de

cinqüenta. Quanto aos livros, não tenho cálculos mais atualizados, mas na

década de noventa havia menos livrarias no Brasil do que na década de

cinqüenta. Apesar dessa total falta de interesse em saber das coisas, as

pessoas sempre têm interesse em opinar. Dificilmente vemos um repórter

perguntar a uma pessoa na rua o que ela acha disso ou daquilo e receber

como resposta: não sei, estou por fora do assunto. Nunca vi isso. As pessoas

consultadas sempre têm opinião sobre qualquer coisa.

Vendo isso ao longo dos tempos, vi que esse é um traço antropológico muito

estranho: uma sociedade onde as pessoas não se interessam pelo assunto,

mas têm um interesse brutal em opinar a respeito dele. Não estranhamos isso

apenas porque já nos acostumamos, mas essa é uma conduta anormal. É uma

anomalia que, repetida ao longo do tempo, acabamos achando que é normal.

Ora, se tentamos convencer as pessoas de que existe um negócio chamado

cidadania e que esta inclui o direito de opinar sobre questões públicas - e todos

estão persuadidos disso - e ao mesmo tempo não cria a percepção de que

para ter uma opinião é necessário ter prestado atenção no assunto, o que

estamos fazendo com essa cidadania? A está transformando numa espécie de

bolha de sabão, numa fantasia, numa mentira e numa paródia de si mesma. A

noção de cidadania e de exercício da cidadania faz sentido a partir do

momento em que as pessoas têm realmente opiniões, não confundindo a

opinião com uma efusão qualquer de palavras que brota do inconsciente ou

que foi ouvida num anúncio de rádio anteontem e o sujeito repete. Esse tipo de

falatório é a degradação da liberdade de opinião, ele não é a própria liberdade

de opinião. Sobretudo porque se espera que o exercício da liberdade de

opinião contenha dentro de si a possibilidade de uma repetição, de uma

reiteração e de uma luta pela própria opinião. Supõe-se que a opinião de um

indivíduo valha algo para ele e, por isso, ele luta por ela. Mas se o sujeito não

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precisou pensar no assunto, se a opinião não lhe custou nada, quanto ela vale

para ele? E a pergunta fatídica: por que devo prestar atenção à sua opinião por

mais tempo que você levou para formulá-la? Se você levou dois minutos

pensando no assunto, por que devo ouvi-lo durante três? Quando queremos

que os outros façam o que não quisemos fazer, que sejam o que não somos,

entramos diretamente no culto à Papai Noel. E chamar isso de formação da

cidadania é achar que puerilizar as pessoas é torná-las cidadãos. Um homem

que acha que os outros têm obrigação de ouvi-lo só porque ele é bonitinho é

exatamente como aquela criança que, quando vem visita em casa, começa a

fazer palhaçada e todos têm que achar bonito e passar a mão em sua cabeça.

Qualquer cidadão que se atreva a falar em púbico com essa expectativa está

se aviltando, está permitindo que a situação lisonjeie seus desejos pueris.

Evidentemente não é esse tipo de formação do cidadão a que visamos.

Educar o cidadão em primeiro lugar não é educá-lo para falar, mas é educá-lo

para saber, quer ele fale ou não. A famosa participação é apenas um exercício

de uma força interior, de um poder que o indivíduo tem. A educação liberal

consiste em dar a ele este poder, esta força interior e não em lhe dar os meios

e as oportunidades de exercê-los.

Você já conheceu alguma pessoa que não tivesse nenhuma opinião sobre a

sociedade em que vivemos? Acho que a minha avó não tinha mas ela foi a

última pessoa. Se perguntasse isso para a minha avó ela perguntaria: " do que

está falando?" Ela nunca achou que existia essa possibilidade de ter uma

opinião geral sobre a sociedade em que estava. Mas a partir da minha geração,

ou talvez a de meus pais, todo mundo foi educado para ter uma opinião sobre a

sociedade, ou seja, exercer uma coisa que se chama a crítica social. Qual é

sua real possibilidade de ter uma visão crítica da sua sociedade? Em primeiro

lugar, para isso você precisaria ter uma idéia do funcionamento da sociedade.

Isso leva algum tempo; é um pouco trabalhoso. Mas mesmo que tivesse a

visão geral, você acredita realmente que o membro de uma sociedade

consegue colocar a cabeça para fora dela, acima dela, e julgá-la desde cima?

Se todos somos de certo modo produtos da sociedade em que estamos,

nossas opiniões, incluindo as negativas que sobre a própria sociedade, são

criações dela mesma e fazem parte do mesmo mal que denunciam. A única

possibilidade de haver uma crítica social legítima, que funcione, é a de que o

indivíduo humano de algum modo se coloque acima da sociedade e consiga

ver nela algo que ela mesma não vê. É necessário que a consciência dele

esteja acima do nível de consciência que aparece nas próprias discussões

públicas. Para criticar minha sociedade como um conjunto, preciso me colocar

numa perspectiva que me permita vê-la como objeto, e daí já não sou mais um

personagem ou um participante da coisa, mas um observador superior;

consegui uma posição acima da confusão, de onde posso ver o que está

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acontecendo e julgar o sentido geral das coisas. Assim como para opinar numa

briga entre marido e mulher é preciso que você não seja nenhum deles.

Quando um casal com um problema vai procurar um conselheiro matrimonial

ou um psicólogo, está supondo que ele tem um ponto de vista superior a cada

um deles.

No que consiste esse ponto de vista superior? Consiste em que se tenha um

critério de julgamento que se sobrepõe às paixões e interesses em jogo

naquele momento. Supõe-se, portanto, que você tenha um conhecimento que o

restante da sociedade não tem. Dito de outro modo, você julga a situação real

à luz de uma norma, mas esta norma só será válida se não tiver sido criada

pela própria situação. Vamos voltar ao exemplo do marido e mulher: a mulher

está acusando o sujeito de não trazer dinheiro suficiente para casa e ele a está

acusando de não desempenhar as tarefas domésticas a contento. Qual a

norma que vai servir para julgar? Pode ser a opinião de um ou a opinião do

outro? Não, a norma tem que ser uma terceira coisa que sirva para arbitrar as

duas ao mesmo tempo. Ou seja, você tem que ter uma medida do justo e do

injusto e esta medida não pode ter sido criada nem pela opinião de um, nem

pela opinião do outro. No caso, trata-se de uma proporção entre direitos e

deveres. É só o conhecimento dessa norma ou dessa proporção que lhe

permitiria julgar a situação e ver qual é a cota de razão e de desrazão que

haveria nessa discussão. O problema é: de onde vamos tirar essa norma. Se

ela foi criada pela própria situação, apenas expressa um dos lados em conflito.

Então ela tem que ser transcendente à situação. Assim como no julgamento de

um processo criminal, o sujeito matou outro, roubou outro, aplicou estelionato:

o tribunal vai julgar aquela situação à luz de uma lei que transcende a situação.

Se pegarmos nossa sociedade como um todo ou a parcela da história que

conhecemos, todos temos opinião a respeito, mas raramente nos preocupamos

com o problema da norma. Se digo que a sociedade é injusta, é injusta em face

de que norma? Qual é a norma com que estou julgando? Ou tenho uma norma

que seja efetivamente superior ao horizonte de consciência da discussão

pública, ou não posso julgar. Ou, então, estou tomando partido dentro de um

conflito e em seguida sou eu mesmo um membro desse conflito. Estou

raciocinando, portanto, em circuito fechado, como um cachorro que persegue o

próprio rabo.

Existem situações, no entanto, onde aparece um sujeito que tem um

conhecimento que a sociedade não tem. A história de Moisés na Bíblia, por

exemplo: Moisés faz uma crítica da situação, a situação do cativeiro dos judeus

no Egito. Ele acha que a situação está ruim por isso, por isso e por isso. E se

lhe dissessem que a situação é assim desde que o mundo é mundo? que

sempre foi assim e sempre será assim? Que sentido faz você criticar uma coisa

que não tem remédio de maneira alguma? A crítica estaria anulada. Mas

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Moisés podia criticar, porque ele tinha conhecimento do que veio antes e do

que viria depois - o conhecimento profético. Tinha conhecimento de que seu

povo podia ser retirado dali e ir para um outro lugar onde teria uma vida melhor.

E de fato fez isto. Como sabemos que Moisés sabia algo que os egípcios não

sabiam? Porque provou que sabia. Com a travessia do Mar Vermelho, ele

provou que enxergava a situação dos judeus no Egito desde um ponto de vista

superior ao da situação real. Sabia que podia fazer e como fazer e, de certo

modo, conhecia o futuro. Esse futuro era invisível para os participantes da

situação. Era invisível tanto para os egípcios quanto para os judeus. Eles

demoraram quarenta anos para ouvir o que aquele homem tinha a dizer. Esse

é o protótipo da crítica social válida.

Outra crítica social válida também é feita por Sócrates. Sócrates critica uma

situação estabelecida à qual ele não se considera superior. Quando Sócrates é

condenado por um tribunal ateniense, se dirige a esse tribunal do ponto de

vista de um homem que já morreu. Ele praticamente se considera morto e diz:

olha, realmente não sei se vocês ao me condenarem me fizeram um malefício

ou um benefício, porque não sei exatamente o que é a morte; tenho a

impressão de que talvez seja melhor depois, que talvez vocês tenham me feito

um benefício. A consciência do desconhecimento da morte é uma norma válida

para o julgamento de qualquer situação humana. Todos sabemos que vamos

morrer; e todos sabemos que não sabemos precisamente o que é a morte, o

que se desenrola nela e depois dela. Isto nos dá uma base firme para julgar

todas as situações humanas.

Me lembro de uma conferência brilhante que o filósofo espanhol Julian Marías

fez no Brasil, na época em que a junta militar havia instituído a pena de morte.

Durante a conferência lhe perguntaram se era a favor ou contra a pena de

morte e ele disse: "sou contra por um simples motivo: não sei o que é a morte e

não tenho o direito de condenar um sujeito a uma coisa que eu não sei o que é;

sei o que é prisão, trabalhos forçados, mas morte, eu não sei o que é e esses

senhores também não." Então, na hora em que o indivíduo emite este

julgamento, coloca-se não apenas acima da discussão pública, mas quase que

infinitamente acima dela, porque a discussão pública é feita em termos de

posições relativas, de posições que podem ter sua validade maior ou menor

numa ou noutra situação. Mas, de repente, chega o filósofo e diz algo que

independe de toda a discussão. No meio das relatividades, ele entra com o

absoluto. O absoluto é este: não sei o que é morte e vocês também não

sabem, e ponto final. Nenhum de nós morreu para contar como é. Isto é o

senso da medida. Em certos momentos, portanto, a consciência pode se

colocar infinitamente acima das questões públicas e encará-las desde uma

medida supeiror que lhe permite um julgamento justo.

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Infelizmente isso não acontece sempre. Freqüentemente nos debatemos em

questões onde nos falta a medida e não a encontramos. A única coisa que

sabemos é que esse senso da medida universal pode ser desenvolvido nas

pessoas pela consciência da dimensão histórica, pela consciência dos

sucessivos patamares de consciência alcançados ao longo do tempo. Porém, o

indivíduo que não recebeu a informação sobre este caso de Moisés, ou

simplesmente não meditou sobre o assunto, simplesmente não tem idéia de

que uma certa situação pode ser julgada em face de uma possibilidade

concreta de mudá-la. Note bem, não é um desejo de mudá-la, mas uma

possibilidade concreta conhecida de antemão. No caso, Moisés sabia porque

Deus contou para ele. Podia ter sabido de outra maneira. Mas ele não achava

que a situação dos judeus na época era ruim apenas porque sim, mas era ruim

em face de um poder do qual Deus tinha investido esse povo antes e em face

de uma promessa que Ele tinha feito para o futuro. Então, encaixando aquela

situação numa sucessão histórica perfeitamente conhecida, podemos dizer que

Moisés podia julgar que aquela prisão era ruim, porque ele sabia onde estava a

porta.

Agora, se estudarmos a história do século XX, veremos uma infinidade de

revoluções, golpes de estado, mudanças políticas feitas por pessoas que

criticavam a situação e que diziam poder mudá-la para melhor e que

produziram situações infinitamente piores. Na década de oitenta, por exemplo,

um cidadão soviético consumia menos carne do que um súdito do czar em

1913. Isto significa o seguinte: Lenin e Trotsky não sabiam onde estava a porta;

propuseram uma mudança não porque tinham perfeito conhecimento da

possibilidade concreta de realizá-la, mas apenas porque queriam. É o caso de

a gente dizer que este tipo de crítica social não é legítima: você está criticando

uma situação mas não é melhor do que a situação, é apenas um componente

dela; ou seja, a sua crítica não é uma crítica, é apenas uma queixa, é um

sintoma da própria situação, e portanto não podemos confiar em você para

resolver a situação. Na hora em que você passa por um sofrimento e diz 'ai', o

'ai' não é uma crítica válida da situação, é apenas uma expressão dela. Tanto

que dizer 'ai' não vai curar você de maneira alguma.

Ao longo de todo o século XX, vemos que a crítica social, em sua quase

totalidade, nunca passou de expressão ou de sintoma da situação. Raramente

se viu um empreendimento vitorioso de transformação da sociedade com base

na crítica, que produzisse exatamente o resultado prometido. Isto significa que,

desde o tempo de Moisés ou Sócrates, a nossa capacidade de crítica social

diminui formidavelmente. Simplesmente não entendemos a sociedade, não

gostamos da sociedade; gostaríamos de mudá-la, mas não chegamos a

perceber que nossa revolta e nosso próprio desejo de mudar são apenas

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sintomas da própria situação social e, portanto, impotentes não somente para

mudá-la, mas até para fazer uma crítica objetivamente justa.

São essas constatações que nos colocam a necessidade de conquista de um

patamar ou de uma medida justa e universal, em função da qual a crítica possa

ser feita. Todo ser humano tem essa possibilidade e, de certo modo, tem esse

direito porque embora seja, sob muitos aspectos, um produto, um efeito ou

uma criação de sua sociedade, há algo nele que transcende a sociedade. Há

no mínimo a estrutura biológica. Não houve nenhuma sociedade que mudasse

substancialmente a estrutura anatomo-fisiológica do ser humano. Esta é uma

constante. Portanto cada um de nós pode dizer que é fruto da sociedade

brasileira? Bom, sou fruto da sociedade brasileira, mas sou membro da espécie

humana e, como membro da espécie humana, existem em mim fatores

estruturais constantes que já existiam antes de o Brasil existir e que vão

continuar existindo depois que o Brasil acabar. Portanto, como membro dessa

espécie animal chamada espécie humana, tenho em meu próprio corpo um

dado que transcende a situação histórica em que vivo. É claro que não é só a

estrutura anatomo-fisiológica do homem que transcende a situação histórica,

existem muitos outros aspectos.

Ao longo da história humana, muitos desses elementos estruturais, constantes

e universais foram se revelando à nossa consciência. E foram registrados em

obras, depoimentos e atos desses seres humanos. A aquisição desse legado é

o que é propriamente o que chamaríamos hoje de educação liberal, que, nesse

sentido, é a formação do cidadão consciente e portanto capaz de julgar não só

fatos da sociedade, mas a própria sociedade como um todo.

Formar um homem desses não é fácil. As situações vão se tornando cada vez

mais complexas e, de repente, vêem-se emergir no cenário da história

situações absolutamente novas que, apesar de todos os dados que acumulou

em toda a sua educação, você não é capaz de compreender. Surge, por

exemplo, um fenômeno como o totalitarismo moderno, como nazismo, fascismo

e comunismo - fenômenos supremamente esquisitos, que tudo o que a

humanidade ocidental sabia até o século XIX não bastava para explicar.

A idéia de que tratados internacionais fossem feitos não para ser cumpridos,

mas apenas para ser usados como armadilhas para os inimigos: isso foi uma

novidade na história. Até o século XIX todo mundo acreditava que tratados

eram para ser cumpridos. De repente aparece um estado, a União Soviética,

que acha que não é bem assim, que não é importante cumprir os tratados, mas

sim apenas assiná-los. De um momento para outro, os tratados se transformam

em instrumentos não para limitar a ação dos contratantes mas, ao contrário,

para dar mais possibilidades de ação contra os demais contratantes. Hitler

levou essa idéia a um nível alucinante: cada compromisso que Hitler assinou

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foi assinado com a finalidade específica de não ser cumprido. Nos

acostumamos tanto com isso que hoje achamos natural.

Certas possibilidades de uso de violência assassina contra países inimigos não

entraram na cabeça humana antes do século XX. A guerra sem declaração de

guerra é um exemplo: você está em guerra com outro país mas não sabe; de

repente soltam uma bomba no seu território. Isso foi mais uma novidade do

século XX. Outro exemplo é o ataque sistemático às populações civis: não

existe mais a noção de campo de batalha. O que é campo de batalha? É o

lugar onde você vai para fazer a guerra. No século XX isso desapareceu. Não

há mais campo de batalha, há guerra onde você estiver.

Quando começaram a suceder, esses fatos deixaram as pessoas

desorientadas; não havia como explicar. Vemos, portanto, o avanço do

totalitarismo no século XX e a impotência da inteligência humana para explicar

esse fenômeno na época, já que somente hoje temos uma compreensão mais

adequada do fenômeno totalitário. Notamos, então, que às vezes acontecem

coisas novas e que mesmo a acumulação de todo o legado desses depósitos

de consciência adquiridos ao longo dos séculos não é suficiente para nos

situar. Seria necessária uma outra abordagem e as primeiras tentativas de

diagnóstico falham, porque estão comprometidas de certo modo,

inconscientemente, com o mesmo circuito produtor de idéias que geraram o

fenômeno. Você tenta investigar o fenômeno, mas faz parte dele; tenta

diagnosticar a doença, mas também está doente. Um exemplo característico é

o livro da Hannah Arendt sobre o totalitarismo. Ela investiga, investiga e pega a

pista certa: diz que os fenômenos totalitários não querem criar uma nova

sociedade, querem modificar a natureza humana. A pista é exatamente esta.

Só que, mais adiante, escorrega e diz que acredita na possibilidade de mudar a

natureza humana, apenas não por meios violentos. E com isso aí a descoberta

influencia a visão de quem descobriu, porque se é possível para o Estado

mudar a natureza humana por meios não-violentos então, prestem bem

atenção, a diferença específica do totalitarismo deixa de ser o projeto de mudar

a natureza humana e passa a ser apenas o emprego da violência. A

especificidade do fenômeno, portanto, se perdeu. Assim, Arendt não consegue

levar o diagnóstico até o fim. Mas ela escreveu o livro no calor do momento e

não podia enxergar a situação com toda a clareza; foi um dos primeiros

diagnósticos abrangentes que se tentou. Se investigasse mais um pouco veria

que, ao longo dos séculos, não surgiu nenhuma idéia ou doutrina política que

visasse a mudar a natureza humana. Todas tomavam a natureza humana,

fosse qual fosse, como pressuposto. Consideravam-na fenômeno de ordem

natural, cósmica, biológica, no qual a sociedade não pode mexer.

Foi só no século XX que se acreditou que, através da formação de um certo

Estado, leis, burocracia, se poderia mexer na própria natureza humana. É a

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diferença que existe entre você ser um criador de animais, como vacas e

galinhas, ou você transformá-los em outra coisa: a idéia de transformá-los em

outra coisa rigorosamente nunca tinha aparecido na mente humana até o

século XX.

Hoje, passados cem anos, temos uma compreensão um pouco maior do

fenômeno totalitário, mas para isso foi necessário remanejar todo o legado de

conhecimentos e repensar a coisa sob mil aspectos. Embora não seja sempre

infalível, esse processo de recuperação do legado é a única esperança que

temos de entender a nossa situação existencial. Não existe nenhum outro

meio. Aliás, existe um outro meio; existe o que a Bíblia chama de sabedoria

infusa: Deus e os anjos infundem em você, sem que saiba. Vai dormir sem

saber e acorda sabendo. Tirando esta hipótese, a única outra hipótese que

existe é a da acumulação do legado da consciência humana ao longo dos

séculos. A finalidade da educação liberal é exatamente esta. E isto é simples:

consiste na aquisição dos documentos necessários, no estudo desses

documentos e na revivescência das experiências cognitivas e existenciais que

estão registradas nesses documentos. Ou seja, você vai ler a Bíblia, Platão ou

Aristóteles, não no sentido apenas de adquirir informação, mas no sentido de

tornar suas as experiências cognitivas que se registraram nesses documentos.

Por exemplo, Aristóteles insiste muito numa coisa que chama maturidade.

Maturidade não no sentido fisiológico, mas no sentido intelectual. O homem

maduro é o homem que teve certas experiências e aprendeu com elas. Uma

dessas experiências é a plena experiência da norma, da existência da norma.

A maior parte das pessoas simplesmente não teve isso; vê as coisas

acontecerem e as opiniões se entrechocarem, mas nunca chegou a

experienciar as famosas leis não-escritas de que fala a tragédia grega. Por

exemplo, em Os suplicantes de Sófocles, dois jovens gregos fogem do Egito,

onde o rei queria obrigá-los a um casamento que não desejavam, e vão parar

numa ilha. Nesta ilha pedem asilo ao rei local. O rei fica num dilema porque,

por um lado, havia uma tradição de dar asilo a quem pede e, por outro, dando

asilo ele se arriscava a uma guerra contra o Egito. Ele imediatamente

argumenta para os jovens: " na legislação egípcia não há nada que impeça o

rei de obrigá-los a casar com quem vocês não querem, portanto o rei do Egito

não cometeu nenhuma ilegalidade" . E eles respondem: " é, mas acima das leis

do Egito há as leis não-escritas, há as leis divinas. A lei divina diz que ninguém

pode ser obrigado a casar contra sua vontade." O rei se toca com aquilo e, em

seguida, tem outro problema: o regime na ilha era constitucional e ele não era

monarca absoluto. Tem, portanto, que levar o problema à assembléia. Reúne,

então, a assembléia e, por meio de um longo e tocante discurso, consegue

persuadir a assembléia a aceitar o risco da guerra, para não infringir as leis

não-escritas.

Page 92: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

92

A tragédia grega era um acontecimento cívico, não apenas um espetáculo

teatral. Era um empreendimento promovido pelo governo para a educação dos

cidadãos. Nessa tragédia e em muitas outras, qual é a mensagem transmitida?

A idéia de que um país é obrigado às vezes a se colocar em risco para não

infringir as leis não-escritas. Ou seja, esse governo argumentava contra si

mesmo, contra seu interesse, e educava as pessoas assim. É claro que o

momento da história em que aparece a tragédia grega é um momento

excepcionalmente luminoso na história da consciência humana. Há inúmeras

tragédias gregas onde se concede razão ao inimigo da pátria, o troiano. Toda a

educação recebida na escola, os discursos políticos etc., induziam as pessoas

ao patriotismo e a tragédia entrava como elemento compensador, para que as

pessoas não tomassem em sentido absoluto os valores do patriotismo, porque

esses valores eram relativizados por valores mais altos. Então, quando existe

uma comunidade política capaz desse nível de consciência, é evidentemente

um momento luminoso da história. E o milagre grego de que falamos não pode,

evidentemente, ser encarado apenas em termos de realizações estéticas ou

científicas, mas sobretudo como um momento culminante na história da

consciência humana.

Existem muitos outros momentos de consciência exemplar na história. Um é a

história que se passa com o genro de Maomé, Ali. Um excelente orador, cujos

discursos estão entre os mais belos da literatura universal, Ali foi um fracasso

total como político, mas um grande guerreiro. Conta-se que, numa das

batalhas, ele encurralou um inimigo, conseguiu desarmá-lo e encostou a

espada em sua garganta. O inimigo então o xingou; ele ficou perplexo, colocou

a espada na bainha e foi embora. Em seguida, o inimigo diz: " você está com a

espada na minha garganta, me derrotou, e só porque o xingo... venci você com

um xingamento?" Ele diz: " não, não é isso, é que fiquei com raiva de você, e

se o matasse, eu não seria mais um guerreiro, seria um assassino, porque o

teria matado por raiva pessoal e não tenho nada contra você. Isso aqui é

guerra.." Esta ética guerreira durou séculos. Até o século XIX ainda havia

amostras de um espírito de luta cavalheiresco que predominava na guerra.

Há outro episódio famoso que se passa entre príncipes muçulmanos e

espanhóis. Uma batalha estava prestes a ocorrer em determinado lugar e os

muçulmanos erraram o caminho. Em vez de parar no lugar da batalha, foram

parar no castelo do príncipe espanhol que iria combatê-los. Só que o castelo

estava vazio, só estavam lá a rainha e suas aias, mucamas e crianças. Conta-

se que a rainha saiu do castelo e passou-lhes um sabão: "não têm vergonha de

encurralar mulheres e crianças assim?" Eles pediram desculpas e foram

embora.

Se comparamos isso com o panorama do século XX, onde vemos, não massas

de população, mas elites intelectuais capazes de se fecharem completamente

Page 93: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

93

à metade da realidade, para encarar somente a metade que lhes interessa,

então, de fato, nossa comunidade política está infinitamente abaixo do nível de

consciência daquelas comunidades.

Imaginem o que aconteceria hoje em qualquer país do mundo. O que

aconteceria com o sujeito que dissesse que não ocupou a cidade porque só

havia mulheres e crianças? Iria para a corte marcial. Seu dever militar se

sobrepõe ostensivamente às normas não-escritas, as quais não são sequer

levadas em consideração. Elas simplesmente não existem mais. O que há

hoje, não é só um fenômeno de imoralidade, mas um fenômeno de baixo nível

de consciência, porque o indivíduo acredita que aquele interesse militar

imediato é real e que a norma não-escrita é irreal. Ele infringe a norma não-

escrita, porque acredita que ela não existe, que é apenas invenção, produto

cultural, crença. Só conhece a norma não-escrita, por referência escrita ou oral,

ouviu falar que existe, mas não tem experiência pessoal dela. Não há nem a

situação do indivíduo que, através da educação, chegou a perceber que essas

normas não-escritas efetivamente existem.

Dike é a idéia grega justiça cósmica; é uma experiência que se pode fazer, não

uma invenção cultural; uma experiência que requer certo nível de maturidade.

Então, quando Aristóteles enfatiza que somente o homem maduro pode guiar a

comunidade, está se referindo aos homens que conseguiram absorver um

certo número de experiências decisivas, que colocam a sua alma um

pouquinho acima do nível de consciência de sua comunidade. Não quer dizer

que precisem ser santos ou profetas ou heróis, mas são simplesmente pessoas

que têm uma amplitude anímica um pouco mais vasta, porque chegaram a ter

certas vivências. Quando não temos isso e, não obstante, temos uma formação

universitária, um diploma, e as julgamos as situações evidentemente pelas

experiências que temos. No começo do século XX, houve uma série de

antropólogos que saíram pelo mundo fazendo recenseamentos dos usos e

costumes dos vários lugares. Quando notaram que aquilo que era proibido num

lugar era obrigatório no outro, tiraram a conclusão de que todas as normas

eram culturalmente relativas. Isto foi especialmente divulgado no mundo por

Margareth Mead e Jules Benedict. Eles fizeram um sucesso tão grande que,

hoje em dia, essa convicção do relativismo antropológico é tida como um

dogma: todas as morais são culturalmente relativas. É no mínimo curioso que

nunca ninguém tenha feito a seguinte pergunta: me aponte uma sociedade

onde o homicídio seja legítimo? Ou, me aponte uma sociedade onde o

casamento seja proibido. Ou, me aponte uma sociedade onde qualquer forma

de conhecimento seja proibido. Simplesmente não existem tais sociedades.

Isso quer dizer que, por baixo da variação acidental de normas aqui ou ali,

existe uma infinidade de normas universais que nunca foram contestadas por

civilização ou cultura alguma. A lista das regras e normas permanente é

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94

infinitamente maior do que a das normas variáveis. Então isso quer dizer que

esses antropólogos, baseados em sua pequena experiência acidental de ter

conhecido uma ou duas comunidades, generalizaram para a espécie humana,

de modo que a visão total da humanidade fica reduzida ao tamanhinho da

amplitude de consciência de dois ou três antropólogos, que viram meia dúzia

de coisas. Nas ciências humanas, isso se tornou norma no século XX: o

indivíduo proclama que tudo o que ele não viu não existe e tudo o que está fora

de seu círculo de experiência só pode existir como invenção, como crença ou

como criação cultural e portanto não tem importância nenhuma.

Uma educação baseada nisso seria uma deseducação, porque ela está de cara

bloqueando a possibilidade de certas experiências.

A humanidade toda deixou documentos de pessoas que conversaram com

Deus. Eles não existiram? São milhões e milhões de documentos, falei com

Deus e obtive tal resposta. Falar com Deus e obter tal resposta é uma

experiência. É algo que acontece ou não acontece. Não é uma teoria

evidentemente, é um fato, ou ele é fictício ou ele é real. Algum antropólogo de

alguma universidade já convidou alguém para fazer essa experiência e ver o

que acontece? Alguém ensinou a você: para falar com Deus é assim e assado,

a coisa tem uma lógica, requer um certo tempo, tem um vai-e-vem, tem um

feedback? Não, porque eles também não sabem. Dizem que houve pessoas

que acreditaram em Deus, Deus é uma crença e nada sabemos a respeito.

Como nada sabemos a respeito? E esses depoimentos todos? Vamos fazer de

conta que nada disso existiu? Toda essa gente estava no mundo da lua e você

foi o primeiro que descobriu a realidade? Construíram-se civilizações,

legislações, sociedades, vidas humanas, tudo em cima disso, e era ficção?

Prefiro apostar na hipótese contrária de que esse pessoal todo sabia do que

estava falando. Ou seja, algo nos aconteceu e se não temos o mínimo acesso

a esse tipo de vivência então nada sabemos a respeito, e não é uma atitude

científica rotular de crença o que você não sabe o que é.

Durante quanto tempo você é capaz de manter um fio de raciocínio dentro de

si, sem se dispersar completamente? Vamos chamar de raciocínio, o

encadeamento de silogismos - premissa maior, premissa menor, conclusão.

Quantos silogismos em linha você é capaz de fazer dentro de si, sem se

dispersar e perder o fio da meada? Um, dois e olhe lá. Isto quer dizer que a

dispersão é o seu estado habitual. Compare-se, por exemplo, a um praticante

de uma mística ascética qualquer, que aprende a se concentrar numa palavra

ou um nome que designa uma qualidade divina durante, digamos, dezesseis

horas seguidas; que aprende a afastar qualquer outro pensamento de sua

mente. Você acha realmente que a visão que o homem disperso tem pode ser

idêntica à do homem concentrado? É claro que não. Isto quer dizer que, em

Page 95: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

95

outras épocas, houve homens muito concentrados, capazes de limpidez de

pensamento, de auto-consciência - e logo explico o que quero dizer com essa

auto-consciência - e que tiveram acesso a certas experiências e deixaram

testemunhos delas, e esses documentos são preciosos. Mais tarde, aparece

um sujeito sem concentração nenhuma, uma alma totalmente dispersa,

totalmente fragmentada, com auto-conhecimento precaríssimo, dizendo que

tudo são crenças. Ora, faça-me o favor!, isto é a anti-educação. Se queremos

entender esses documentos, temos que criar a condição psicológica para

refazer as experiências que estão subentendidas neles.

Alguém já ouviu falar da prece perpétua? É uma técnica da igreja ortodoxa.

Existe um livro extraordinário sobre isso chamado "Relatos de um peregrino

russo" - uma abreviatura de milhares de escritos dos místicos ortodoxos ao

longo do tempo. O peregrino russo é um homem simples que um dia ouve na

missa o padre dizer a sentença de Jesus: orai sem cessar. Ele diz: " como orai

sem cessar? Ninguém pode orar sem cessar, a gente reza e depois vai fazer

outra coisa." Sai então procurando, pergunta para um, pergunta para outro, até

que encontra um monge que diz: " você vai rezar junto com o ritmo de sua

respiração, vai dizer Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim; e vai dizer

isso com plena intenção; você só quer uma coisa na vida: que Jesus tenha

pena de você. Vai esquecer todo o resto e vai fazer isso, vinte e quatro horas

por dia, pelo resto de sua vida." Talvez, se conseguir prestar atenção na

piedade divina, com um pouco dessa concentração, acabe percebendo que ela

existe. Agora, pelo simples fato de ter lido sobre esse negócio de piedade

divina, você diz que isso é crença? Mas, como? Você conhece a coisa, sabe do

fenômeno que está sendo falado, ou sabe somente as palavras?

Assim como esta prática existem milhares no mundo - budistas, judaicas,

islâmicas, hinduístas e outras. Tudo isto é totalmente desconhecido do ensino

moderno. O ensino se tornou uma arte de falar sobre coisas que se

desconhece completamente. Não estou me referindo ao ensino religioso. Se

pedir ao padre, ao rabino, ou ao aiatolá, ele vai ensinar a você algumas coisas

da religião dele, o formulário de crenças dele, e vai dizer que todas as outras

não interessam. Ele também já não está falando de experiências, está falando

de uma crença determinada. Não é disso que estou falando. Estou falando de

realidades e não de formulários de dogmas que dizem que isso está certo e

aquilo está errado. Do mesmo modo, as experiências subjacentes à filosofia de

Platão ou à filosofia de Aristóteles também são condições indispensáveis para

que você as compreenda. Quando Platão falava na Academia, ou Aristóteles

no Liceu, eram literalmente homens maduros falando com outros homens

maduros. Não era uma discussão entre almas dispersas.

Todos aqui já sentiram, por exemplo, acessos de tristeza ou de desespero que

não sabiam de onde vieram. Todo mundo já teve isso. Ora, se existe algo na

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sua própria alma que você não sabe de onde veio, existe um conteúdo que é

estranho a você. Ou seja, a sua alma é tão conhecida sua, quanto uma cidade

onde acaba de desembarcar pela primeira vez; você está perdido dentro de

você. Sua alma é o instrumento pelo qual você conhece o mundo, mas se ela

própria é tão desconhecida assim, quantos metros espera avançar no caminho

do conhecimento, antes de ter limpado as lentes com que vai olhar este

mundo? Uma certa limpidez da alma, portanto, um certo conhecimento do

indivíduo por ele mesmo, de modo que ele saiba de onde vêm suas emoções,

de onde vêm seus desejos e o que o compõe efetivamente por dentro, são

condições sine qua non da verdadeira educação. Não existe a educação sem o

efetivo auto-conhecimento. Mas, se num curso de filosofia universitário, você

levantar este problema, dirão: "se quer auto-conhecimento, que vá procurar um

padre ou um psicanalista, que nós estamos aqui para estudar filosofia." Que

raio de filosofia é esta que não se preocupa nem em saber se a alma do sujeito

está habilitada para aquilo? Que raio de ensino é este que não cumpre a

condição da maturidade que o próprio Aristóteles e o próprio Platão colocam

como condição básica para o estudo da filosofia? Isto quer dizer que, ao longo

dos tempos, a noção de educação foi sendo perdida. Ela é conservada apenas

em núcleos muito limitados; há grupos de pessoas que sabem e continuam

cultivando aquilo, como sempre. Mas o ensino de massas, público e privado,

não está dando às pessoas senão um grosseiro simulacro de educação. Não

cabe a mim julgá-lo ou modificá-lo; não sou ministro da educação, nem quero

ser. Se me pedissem um projeto de educação nacional, me esconderia debaixo

da cama e pedir socorro à minha mãe. Esse problema está acima da minha

capacidade, como está acima da capacidade do ministro da educação ou de

qualquer outro que ocupe o lugar dele.

A educação requer sobretudo essa situação: há o professor e os alunos.

Querem um plano de educação para vocês? Esse, eu sou capaz de inventar,

dentro de um universo operacional abarcável. O professor conhece seus

alunos, sabe até onde pode levá-los e sabe o que pode fazer, isto é o máximo.

A idéia de um plano de educação que abarque toda uma nação, isto para não

falar em toda a humanidade, como faz a ONU hoje, é evidentemente simulacro,

não existe. Os planos atuais de educação que estão sendo impostos no mundo

inteiro pela ONU, que é para a formação do cidadãozinho perfeito da Nova

Ordem Mundial, foram inventados na década de cinqüenta por um sujeito

chamado Robert Muller, que era discípulo de uma pseudo-esoterista chamada

Alice Bailey, uma mulher completamente maluca, da doutrina dos raios

cósmicos, que conversava com extra-terrestres; esse cara pega as obras de

Alice Bailey, adapta para a formação de um plano educacional mundial e este

plano está sendo implantado. Evidentemente isto é uma caricatura grotesca.

Page 97: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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Quando falo dessas coisas, estou falando de mística verdadeira, coisas que

foram acumuladas ao longo de cinco mil anos de judaísmo, dois mil anos de

cristianismo, mil e quinhentos anos de islamismo, quase dez mil anos de

hinduísmo, não de uma doida americana que conversou com extra-terrestres.

Então, o sujeito que aprendeu com esta visionária de extra-terrestres pode

fazer um plano para educar o mundo e eu, que aprendi coisa melhor, só tenho

um plano para educar vocês. É porque sei o que é educação e esse sujeito

evidentemente não sabe. Sei quanto é complexa a educação, o quanto ela

requer de contato direto e comprometimento total do professor com seus

alunos, porque se trata não apenas de transmitir certos conhecimentos, mas de

elevar o indivíduo para a possibilidade de certas experiências interiores, que

darão poder à sua inteligência e poder à sua capacidade cognitiva. Educar é

transmitir um poder. E esse poder, não posso injetar em você; posso dizer mais

ou menos onde ele está e você pode procurar, posso dizer como você pode

abrir a caixa e pegar o que é seu. É a partir desse enriquecimento da

experiência interior e a partir da idéia de concentração, de continuidade da

consciência, que o indivíduo se abre à possibilidade de compreensão desses

documentos deixados ao longo das eras. Informar simplesmente a existência

disso já é fazer alguma coisa. Mas, além de informar, podemos de vez em

quando dar alguma dica de como o indivíduo se torna capacitado para pegar

esse legado.

Durante muito tempo, o ensino ocidental esteve consciente disso. Se lemos os

escritos dos grandes educadores da idade média como Hugo de São Vitor,

Santo Alberto Magno, vemos que o começo das universidades preservou ainda

a consciência disso aqui. Por volta do século XV, mais ou menos, a

universidade se torna objeto de disputa entre Vaticano e estados nacionais. A

partir daí, as universidades vão se tornando, cada vez mais, meios para fins

que não são os de seus estudantes. Ainda pertenço à escola antiga: acredito

que a finalidade da educação é o estudante, é o indivíduo humano, um cara

real. O que ele vai fazer com isso depois simplesmente não é da minha conta.

Acho um assinte a promessa de educação para o desenvolvimento, porque

estará pressuposto que se vai educar o sujeito para fazer determinada coisa, e

que essa coisa vai ter um resultado global x. Ou seja, programa-se a vida

inteira do cara. Educação para a paz, educação para o desenvolvimento,

educação para a cidadania, tudo isto, no fim das contas, é educar o indivíduo

para uma finalidade que não é necessariamente a dele. Então isto não é

educação, é programação. A finalidade da educação, tal como entendo e tal

como foi entendida ao longo de todos os tempos, é a maturidade. O que o

homem maduro vai fazer com o que ensinei é problema exclusivamente dele,

ele vai exercer a maturidade dele, não a minha. Quando ele tiver um problema

na mão a situação será outra, os dados serão outros e não existe nenhuma

Page 98: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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possibilidade de um professor antever tudo isso. Isso significa que, uma vez

conquistada a maturidade, a finalidade da educação está terminada, acabou,

seu educador tem que ir embora para casa. E você se transforma num

educador, se quiser, ou vai fazer outra coisa, pois não é só na educação que

homens maduros são necessários.

Mas essa total desatenção ao fenômeno da maturidade, aliada a uma atenção

excessiva aos usos que a pessoa supostamente vai fazer da educação, faz

com que praticamente toda a educação do século XX faça do aluno um meio e

nunca a finalidade. Ou seja, a educação se torna serva da política, serva da

economia, serva da guerra, serva de qualquer outra coisa e o aluno por sua

vez se torna servo desse processo. Acho isso uma imoralidade. Não gostaria

de praticar isso. A possibilidade de uma educação que não se encaixe nisso é

evidentemente aberta, dentro do próprio sistema democrático, pela

possibilidade da educação livre. É claro que a democracia, como qualquer

outro regime, também programa as pessoas para serem servas de um plano já

dado de antemão, mas ela tem uma vantagem: não cerca o indivíduo por todos

os lados, deixa aberta algumas possibilidades. A democracia induz o indivíduo,

mas não o obriga completamente. O problema é que geralmente as pessoas

não sabem das possibilidades que a democracia deixa em aberto. Ou não

sabem, ou as desprezam. As possibilidades de auto-educação e de educação

livre são coisas preciosas que existem no regime democrático, das quais temos

que tirar proveito de algum modo.

A idéia mesma de que essa proposta educacional se encaixasse de algum

modo dentro do esquema educacional vigente é contraditória, afinal de contas

o sistema educacional vigente tem a sua finalidade também, a formação

profissional e o adestramento das pessoas para a mecânica da democracia.

Mas é claro que a educação de massas - pública ou privada - visa a formar

massas e não indivíduos, o que quer dizer que se trocarmos todos os alunos,

não faz diferença alguma. Mas na educação verdadeira, cada indivíduo é

precioso. E, até por isso, pode existir na educação efetiva o fenômeno do

aborto pedagógico. Eu mesmo já tive uma boa coleção de abortos

pedagógicos, em que vi que, num determinado momento, o florescimento da

consciência é totalmente obstaculizado pelo meio. O meio coloca no indivíduo

certos conflitos que, ou o paralisam, ou o fazem até recuar. O meio social no

qual estamos trabalhando não é inteiramente hostil à educação: deixa uma

certa margem em aberto. Mas a capacidade de desestímulo que o meio

brasileiro tem para a educação é absolutamente fantástica. A curiosidade é

desestimulada e o simples fato de o sujeito querer saber alguma coisa não é

considerado normal;

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99

Outro dia estava conversando com meu irmão sobre como, quando pequeno,

ele gostava de fazer rádios de pilha. Gostava de eletrotécnica. Inventou isso

sozinho, da cabeça dele, foi tentar fazer e aprendeu. E todas as pessoas em

torno achavam aquilo muito esquisito e diziam: "por que você está mexendo

com isso? Tem que se preparar para ganhar dinheiro."Em muitos meios, não

necessariamente nos mais pobres, é assim até hoje.

Vamos pensar na idéia de que o máximo de realismo que se pode ter na vida é

pensar apenas em ganhar dinheiro. Ótimo, você se dedica a algo apenas para

ganhar dinheiro. Vamos supor que você fabrique copos, mas não porque goste

e sim para ganhar dinheiro. No dia seguinte pega o dinheiro que ganhou com

os copos e vai comprar água mineral. Mas acontece que o sujeito que abriu a

mina e engarrafou a água também fez para ganhar dinheiro. E com o que

ganhou, também vai comprar uma outra coisa que só foi feita para dar dinheiro.

Então se você compra um sapato, este foi feito para quê? Não para fazer

sapato, mas para ganhar dinheiro, o sapato não é finalidade, a finalidade é o

dinheiro. Enfim, todas as ações do processo produtivo são exclusivamente

meios, e não há uma única coisa que se possa comprar, que valha a pena ser

comprada. Ninguém fez nada para que aquilo valesse. A idéia de que a atitude

realista e madura na vida é pensar apenas no dinheiro esquece que é

necessário que exista algo que se possa comprar com o dinheiro. Que se este

algo nunca é a finalidade, é sempre secundário, é sempre sacrificado ao

dinheiro. Se eu fizer um objeto ou outro, de um jeito ou de outro, e ganhar a

mesma coisa que se fizesse um determinado bem feito, então para que fazer

este bem feito? Você faz o seu produto mal feito, ganha seu dinheiro e vai todo

contente comprar outro produto que também é mal feito. Isto é uma radical

incompreensão do processo econômico. Mas isso é uma coisa que se vê no

Brasil. Viajando pelo mundo, não vemos as pessoas agindo assim.

A visão negativa que temos do processo capitalista faz com que o pratiquemos

de maneira negativa. Não gostamos dele e por isso o corrompemos. Se fosse

socialismo, faríamos exatamente a mesma coisa.

Esse rebaixamento geral das expectativas, dos valores da vida, é um dado

constante na sociedade brasileira e é um tremendo desestímulo. Faz com que

haja no processo educacional muitos fenômenos de aborto, de indivíduos que

vão se desenvolvendo até certo ponto e de repente têm uma crise, um pânico.

Uma crise muito comum é a do indivíduo que percebe que, quando está

percebendo algo, sabendo algo que os outros não sabem ou não percebem,

cria-se uma dificuldade de comunicação. Por exemplo, se você é muito

apegado a seu grupo de amigos de juventude, não pode se educar, porque ou

você os educa a todos juntos ou vai amadurecer mais do que eles e eles vão

se tornar uns chatos para você e não vão gostar mais de você. A educação tem

esse preço, aquele que sabe não é facilmente compreendido pelo que não

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sabe. Muitas pessoas, quando constatam isso, recuam ou caem no seu

processo educacional e se castram espiritualmente, para não perder amizades

ou apoio familiar, que evidentemente não valem a pena.

Mas é essencial entender, para encerrar, que a definição de educação liberal é

a preparação da alma para a maturidade. O homem maduro é o único que está

capacitado a fazer o bem para o meio em que está. Porque o bem também tem

que ser conhecido. O discernimento entre o bem e o mal não vem pronto; não

adianta ter um formulário, os dez mandamentos ou ter o código civil e penal.

Isto não resolve muito. O bem e o mal são uma questão de percepção, que tem

que ser afinada para cada nova situação que você vive, porque costumam

aparecer mesclados. Jesus disse: na verdade amais o que deveríeis odiar, e

odiais o que deveríeis amar. Este é todo o problema da educação, desenvolver

no indivíduo, mediante experiências culturais acumuladas, a capacidade de

discernimento para que ele saiba em cada momento o que deve amar e o que

deve odiar. Ninguém pode dar essa fórmula de antemão, mas a possibilidade

do conhecimento existe e está consolidada em milhões de documentos. Uma

educação bem conduzida pode levar o indivíduo à maturidade do verdadeiro

julgamento autônomo.

Notas

1. Diretora do programa Drug Watch International.

2. Aliás, a idéia corrente, abundantemente repetida por jornalistas e intelectuais

brasileiros, de que o ensino na época fosse limitado aos nobres, é talvez a

mais idiota que alguém já meteu na cabeça, porque o característico da nobreza

durante toda a idade média era precisamente não estudar. O estudo era

considerado uma ocupação imprópria para os nobres e só própria a dois tipos

de pessoas: aqueles que se dirigiam ao clero e as mulheres. Portanto as

mulheres eram privilegiadas no ensino medieval. Aproximadamente 60% ou

70% do público escolar eram compostos de mulheres.

Este é um detalhe que qualquer estudioso da idade média sabe, mas que você

nunca vê mencionado em parte alguma. É como se houvesse um escotoma,

um ponto preto que impede as pessoas de saberem disso. Esse detalhe por si

basta para derrubar toda uma visão da história, que é aquela visão de que a

história transcorre de um estado de escravidão, dominação e autoritarismo

para um estado de maior liberdade e democracia. Esta visão está subentendida

em praticamente tudo o que se discute nesse país e em metade do mundo. E é

evidente que basta um pouquinho de estudo efetivo da história para ver que as

coisas realmente nunca se passaram assim. Na verdade, idéias como as

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modernas ditaduras e os modernos autoritarismos são coisas que, na

antiguidade e na idade média, nem passariam pela cabeça de um governante.

A hipótese, por exemplo, de haver um cadastro eletrônico onde estão todos

registrados, onde se pode acompanhar a conduta de cada um, saber quanto o

sujeito gastou, onde ele esteve e, em caso de dúvida, poder usar tudo contra

ele, é uma idéia que se fosse dada a Gengis Kahn, ele acharia monstruosa. Ou

seja, Gengis Kahn não pretendia ter tanto poder assim, poder que hoje em dia

qualquer governante ditatorial, e até democrático, tem sobre as pessoas.

A História, portanto, ao contrário do que diz o famoso clichê, tem seguido no

sentido de um crescimento da autoridade. A autoridade vai conquistando meios

de ação sobre os indivíduos de que nunca antes dispôs e, ao mesmo tempo,

surgem mecanismos compensadores como a liberdade de imprensa e o ensino

universal. Mas, elas por elas, o autoritarismo tem ganhado a corrida.

3. Mortimer Adler é autor do livro "Como ler um livro" (pegar referências).

4. Ora, não termos o direito de fazer alguma coisa não significa que não a

façamos. Na prática, a mistura de procedimentos legítimos e ilegítimos é um

fato do nosso dia-a-dia. A maneira mais prática e fácil de fazer prevalecer sua

tese, é fazer como fizeram no debate mencionado por Mina Seinfeld, em que

você desaparece com a tese do adversário e a sua, por ser a única existente,

acaba prevalecendo.

Um título de Dostoievski

Jornal da Tarde, 16 de abril de 1998

O ciclo de palestras que começou dia 13 na Universidade Estadual do Rio de

Janeiro (UERJ) sob o título "Globalização: o fato e o mito" apresenta-se com a

finalidade declarada de combater o "pensamento único". Quem o diz, na sua

edição do dia 12, é o Jornal do Brasil , o qual, co-patrocinador do evento, deve

naturalmente saber do que se trata. Consultando, pois, o venerável periódico

para averiguar que raio de coisa seria o "pensamento único" descubro que, nas

palavras do repórter Cláudio Cordovil, sujeito fidedigno a mais não poder, é

"um pensamento dominante entre as elites tecnocráticas, políticas, econômicas

e jornalísticas que, basicamente, busca assegurar que, nos domínios da ação

pública, só há um caminho". Para combater esse execrável monstro

empastelador de consciências, reuniu-se na UERJ um pugilo de bravos

intelectuais brasileiros, sob a indispensável tutela de prestigiosos convidados

franceses.

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102

Esfrego os olhos, incrédulo. Teria a intelligentsia virado casaca? Teria ela, após

décadas de compressivo uniformismo coletivista - que descrevi em O Imbecil

Coletivo com meticulosidade suficiente para não ter de repetir- me agora -,

optado repentinamente pela variedade, pelo incentivo à divergência, pelo

estímulo à reflexão pessoal fora de toda subserviência à opinião da

coletividade bem pensante?

Que o responda o próprio leitor. Para tanto, basta conhecer dois detalhes sobre

o evento.

O primeiro é a alternativa que a estrela do conclave, o sociólogo Robert Castel,

diretor de pesquisas da École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris,

oferece ao "pensamento único". Para combater a maldita uniformização das

mentes, diz o professor, é preciso quatro coisas: mais união das esquerdas,

mais solidariedade coletiva, mais controle da sociedade pelas leis e, last not

least , aumento do poder do Estado, "guardião último da coesão social". Em

suma: haverá mais liberdade e variedade de pensamento quando todos

pensarem igual e, em caso de divergências, a autoridade estatal der a última

palavra sob a forma de um calaboca geral.

A maravilhosa receita consta do livro Metamorfoses da Questão Social , cuja

tradução brasileira o professor Castel entregou ao deleite de um estupefato

mundo durante o mesmo acontecimento.

Alguns podem imaginar que o professor Castel esteja brincando. Lamento

decepcioná-los, mas trata-se de um homem sério, que acredita piamente no

que diz, não havendo, portanto, nada mais a fazer por ele.

O segundo detalhe é a lista dos convidados brasileiros, em que avultam, para o

máximo abrilhantamento do simpósio, os nomes de Maria da Conceição

Tavares, José Luís Fiori, Paulo Arantes e Emir Sader. Quem não os conhece?

Antecipando-se pioneiramente na aplicação, em escala miniaturizada, das

propostas que o professor Castel oferece para a remodelagem do mundo, os

planejadores do ciclo tiveram a sábia precaução de escolher conferencistas

que estivessem de acordo no essencial, de modo a evitar aquelas situações

vexatórias nas quais pudesse se tornar necessário apelar ao poder público

para restabelecer a coesão ameaçada.

Diante desses dois detalhes, o leitor não terá a menor dificuldade para

constatar que a nossa intelligentsia universitária, como o inglês da piada, morto

e ressurgido sob a forma aparente de cocô de vaca, realmente não mudou

nada.

Tanto no conclave quanto nas doutrinas do professor Castel, a única novidade,

se é que chega a sê-lo, é de ordem retórica e semântica: após quase dois

séculos de combate à variedade anárquica do mercado e de apologia do

dirigismo entrópico cuja versão soviética George Orwell tão bem descreveu em

1984 , a intelectualidade esquerdista descobriu que o velho discurso

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103

uniformista perdera todo atrativo mercadológico e decidiu apelar para o mais

desesperado e psicótico dos expedientes: inverter de vez e ostensivamente o

significado de todas as palavras. Doravante, a liberdade de mercado é que

passa a ser uniformizante, enquanto o controle estatal de tudo se torna,

magicamente, o provedor da variedade. O truque de ilusionismo verbal só não

chega a funcionar muito bem porque, no fim, a linda variedade, cansada de

representar à força o papel do seu contrário, acaba confessando que não

passa de "coesão", "solidariedade" e "controle", coisas que todo mundo sabe

perfeitamente o que são, embora, na experiência histórica do socialismo,

tenham assumido formas realmente variadas, que iam da espionagem

eletrônica da vida privada ao fuzilamento em massa nas praças públicas.

Mas o discurso alucinógeno, para ser acreditado ainda que seja por alguns

minutos, requer uma situação de discurso também alucinógena: a elite falante

que detém o poder sobre o universo cultural denuncia que o universo cultural

está sob o poder de uma elite falante - e, para a nobre finalidade de expulsá-la,

reivindica mais poder. Se a encenação aí montada parece ultrapassar por

instantes os limites de uma impostura meramente humana, também nisto não

há nada de substancialmente novo: em 1872 Fiódor N. Dostoievski já dava ao

seu livro sobre a mentalidade da intelligentsia esquerdista o título de Os

Demônios .

Provas científicas

Jornal da Tarde, 28 de maio de 1998

Os esforços devotados de intelectuais e da mídia para provar que o Brasil é um

país racista seriam desnecessários se o Brasil fosse racista. Ninguém teve de

provar cientificamente o racismo da África do Sul. Quando a prova tem de ser

obtida mediante contorcionismos estatísticos, o que fica provado é apenas o

desejo incontido que uma certa elite tem de produzir, desde cima, um conflito

racial que jamais brotaria de baixo espontaneamente, como de fato não brotou.

Mas essa política pode considerar-se vencedora desde que foi apadrinhada

pela Rede Globo de Televisão, fabricante monopolística da mentalidade

nacional. Não passa um dia sem que mensagens a atestar as supostas

inclinações racistas do nosso povo sejam marteladas e remarteladas por meio

de noticiários, entrevistas e novelas, até tornar-se, pela repetição goebbelsiana,

verdade evangélica, cuja contestação acabará por se tornar, por sua vez, crime

de racismo: está próximo o dia em que louvar a democracia racial brasileira

dará cadeia.

Não sei se a responsabilidade, no caso, incumbe aos proprietários da Rede

Globo ou aos iluminados da esquerda ali inseridos, que, agindo segundo uma

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104

técnica muito conhecida nos anais da estratégia revolucionária, se aproveitam

de algum cochilo da direção e se apressam a mandar na empresa como se já

fosse propriedade do futuro Estado comunista.

Afinal, muito antes de o “politicamente correto” tomar de assalto a cultura do

Novo Mundo, já circulava a ordem do Comintern, de 1931, para que os

comunistas buscassem acirrar a luta entre as raças, dando-lhe um sentido de

luta de classes (William Waack, Camaradas , São Paulo, Cia. das Letras,

1993). Como diria Vicentinho: “A luta continua”; agora, em rede nacional de

televisão.

O novo capítulo da série vem sob a forma de mais uma mentira impingida ao

público como verdade científica. Uma pesquisa da assistente social Maria Inês

da Silva Barbosa, celebrada pela GNT como prova final (mais uma!) do racismo

brasileiro, informa que negros e brancos, em São Paulo, não morrem das

mesmas causas: os brancos sucumbem mais de enfarte (9,8%), os negros, de

homicídio (7,5%, contra 2,5% de brancos). A sociedade racista branca , conclui

a pesquisadora, está exterminando sistematicamente os negros .

Os números podem ser válidos, mas a conclusão é pura fraude. Em primeiro

lugar, a raça branca é mais sujeita a doenças cardíacas do que a negra, o que

já basta para explicar a diferença do número de enfartes. Quanto ao de

homicídios, para concluir que se deve a um racismo exterminador seria preciso

provar que foram, na maioria, cometidos por brancos. Pois caso seja maior

entre os negros não somente o número de vítimas, mas também o de

assassinos, o resultado da pesquisa sugerirá apenas, se tanto, que os negros

são mais violentos que os brancos. Ora, esta conclusão, declarada em público,

seria instantaneamente rotulada de racista, mas não o é menos a sua contrária,

que resulta em atribuir aos brancos, mediante a ocultação de um dado

essencial, a responsabilidade global pelos homicídios de vítimas negras,

mesmo os cometidos por negros. Ou não haverá racismo algum em forçar o

resultado de uma pesquisa para acusar de homicida uma raça inteira, contanto

que seja a branca?

A pesquisadora escondeu muito mal suas intenções ao declarar que o racismo

da África do Sul ou do Alabama, com seus morticínios, seus guetos, sua virtual

proibição de casamentos mistos, nunca foi nada pior que o nosso “racismo

sutil” – tão sutil, digo eu, que só se materializa sob a forma abstrata de frações

numa estatística, e mesmo assim não se torna visível senão aos olhos da fé.

“Para mim, racismo é racismo”, afirmou a entrevistada, atestando sua carência

do senso das proporções.

Ora, entre uma sociedade que diluiu tão bem as desavenças raciais que elas,

se não sumiram de todo, acabaram por se reduzir a uma vaga e evanescente

tendência subconsciente, e uma outra que as exacerbou numa cultura que

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enfatiza a identidade racial acima da unidade do gênero humano, qual a mais

racista e perversa, qual a mais justa, bondosa, sábia?

Mas há outra diferença. Foi por seus méritos próprios, pela sua sabedoria

espontânea e quase sem a intromissão do Estado que o povo brasileiro

conseguiu reduzir ao mínimo a discriminação racial neste país. Na África do

Sul, nos Estados Unidos, uma cultura arraigadamente racista teve de ser

controlada pela polícia e pelos tribunais, e, sob todo o peso da máquina

repressiva, ainda explode, de vez em quando, em descargas de uma violência

sem paralelo na nossa história.

Quem pode negar essa diferença sem uma considerável dose de cegueira

intelectual ou de interesses políticos maliciosos?

Viver sem culpas

Jornal da Tarde, 13 de maio de 1999

“É isso que eu procurei a vida inteira: alguém que me dissesse que é possível

viver sem culpas.” (Marilena Chauí, Diálogo com Bento Prado Jr. , Folha de S.

Paulo , 13 de março de 1999.)

“Viver sem culpas” é um objetivo que toda a cultura progressista oferece à

humanidade. O sentimento de culpa é condenado como um resíduo de antigas

tradições repressivas, que deve ser abandonado às portas de uma nova era de

felicidade e realização pessoal. Esse é hoje um ponto de acordo entre adeptos

das correntes mais opostas. Sacramentada pelo consenso, a condenação da

culpa tem tantas legitimações diversas, que na verdade já não precisa de

nenhuma delas e vive perfeitamente bem como uma auto-evidência que

prescinde de argumentos.

Mas o que é, propriamente, viver sem culpas? Sobretudo, qual a nuança

precisa que tem em vista aquele que nos propõe esse objetivo?

Só há três sentidos em que um ser humano pode ser dito isento de culpas. A

primeira hipótese é a da inocência, a efetiva inocência de Adão no Paraíso, do

Bom Selvagem ou da infância num filme da Disney. A Bíblia e Rousseau, com

muita precaução, remeteram essa hipótese a um passado mítico. Santo

Agostinho confessava-se perverso desde o berço, e o pouco que ainda

pudesse restar de credibilidade na imagem da inocência infantil foi

impiedosamente desmoralizado pelo dr. Freud.

O desejo de “viver sem culpas” não teria o menor atrativo para as almas se

apelasse a uma idéia desacreditada. Não pode ser portanto a inocência

primordial o que o moderno progressismo tem em mente quando nos convida a

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“viver sem culpas”. A inocência completa e absoluta é um mito, uma qualidade

divina que ninguém pode realizar neste mundo.

Um segundo sentido em que se pode “viver sem culpas” é o da inocência

relativa, trabalhosa e periclitante em que o homem consegue se manter quando

se abstém conscientemente de fazer o mal e, se o faz, procura remediá-lo com

devotada boa-fé. É uma norma de perfeição razoável ao alcance de muitos

seres humanos.

Mas não pode ser esse o sentido de “viver sem culpas”, pois a possibilidade de

um homem corrigir o mal que fez repousa inteiramente no sentimento de culpa

que o acomete quando peca; e para refrear-se de fazer novos males ele tem de

conceber em imaginação a culpa que sentiria se os fizesse.

Nesse sentido, a inocência relativa não é de maneira alguma viver sem culpas:

é, precisamente, valorizar o sentimento de culpa como uma bússola que nos

guia para longe do mal.

Mas “viver sem culpas” pode significar ainda uma terceira coisa: pode significar

a abolição pura e simples da idéia de culpa. Neste caso, faça o indivíduo o que

fizer, seus atos não serão examinados sob a categoria da culpa, do

arrependimento, da pena e da reparação. Não importando a natureza desses

atos nem as conseqüências que deles decorram para terceiros, serão sempre

enfocados de modo a evitar o constrangimento de um acerto de contas moral.

Poderão ser explicados sociologicamente, psicologicamente, pragmaticamente,

ser avaliados em termos de vantagem e desvantagem, descritos em termos de

desejo, gratificação e frustração. Só não poderão ser julgados.

Este último sentido é, com toda a evidência, o único em que é possível, na

prática, “viver sem culpas”. É ele, evidentemente, que os ideólogos modernos

têm em vista quando oferecem à humanidade esse ideal de futuro.

Mas, no presente, já há muitas pessoas que vivem sem culpas, que não se

submetem ao exame da consciência moral, que não se sentem constrangidas

quando suas ações produzem danos para terceiros. Chamam-se sociopatas.

Não são doentes mentais, nem retardados. São indivíduos inteligentes,

capazes, não raro dotados de certa genialidade e impressionante desenvoltura

social, e apenas desprovidos de sensibilidade moral para sentir culpa pelos

seus atos. Entre eles encontram-se assaltantes, traficantes, chefes de gangues

– e todos os líderes de movimentos totalitários, sem exceção. Quem deseje ser

como eles sente seu coração bater forte, cheio de esperança, quando ouve

alguém anunciar que é possível viver sem culpas.

Nossa civilização começou quando Cristo ordenou ao apóstolo: “Toma tua cruz

e segue-me.” Dois milênios depois, o ideal que se anuncia é jogar a cruz fora,

pouco importando em cima de quem ela caia, e seguir correndo o carro da

História, pouco importando quem ele venha a esmagar pelo caminho.

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Dinheiro e poder

Jornal da Tarde, 16 de setembro de 1999

Sempre que ouço um político de esquerda verberar em tom profético a

cobiça capitalista, pergunto-me se ele imagina mesmo que o anseio de poder é

uma paixão moralmente superior ao desejo de dinheiro, ou se simplesmente

finge acreditar nisso para se fazer de santinho. Evidentemente, não há terceira

alternativa. Nenhum militante esquerdista quer fazer uma revolução só para

depois ir para casa viver como obscuro cidadão comum da república socialista:

cada um deles é, por definição, o virtual detentor de uma fatia de poder no

Estado futuro. Essa é, entre os adeptos de um partido, a única diferença entre

o militante e o simples eleitor. Ao assumir a luta revolucionária, o mínimo que

um sujeito espera é um cargo de comissário do povo. Afinal, não teria sentido

que, após ter arcado com a responsabilidade de líder ativo na destruição do

capitalismo, ele desse menos de si à “construção do socialismo”. (O mesmo, é

claro, aplica-se, mutatis mutandis , aos militantes do fascismo ou de qualquer

outra proposta de mudança radical da sociedade. Enfatizo o socialismo pela

simples razão de que no Brasil de hoje não há um movimento de massas de

inspiração fascista.)

Toda militância revolucionária é, pois, inseparável da ânsia de poder, e é

preciso um brutal descaramento ou uma inconsciência patológica para não

perceber que essa paixão é infinitamente mais destrutiva que o desejo de

riqueza. A riqueza, por mais que as abstrações dos financistas tentem

relativizá-la, tem sempre um fundo de materialidade – casas, comida, roupas,

utensílios – que faz dela uma coisa concreta, um bem visível que vale por si,

independentemente da opulência ou miséria circundantes. Já o poder, como

bem viu Nietzsche, não é nada se não é mais poder. Isto é a coisa mais óvia do

mundo: por mais mediada que esteja pelas relações sociais, a riqueza é, em

última instância, domínio sobre as coisas. O poder é domínio sobre os homens.

Um rico não se torna pobre quando seus vizinhos também enriquecem, mas

um poder que seja igualado por outros poderes se anula automaticamente. A

riqueza desenvolve-se por acréscimo de bens, ao passo que o poder, em

essência, não aumenta pela ampliação de seus meios, e sim pela supressão

dos meios de ação dos outros homens. Para instaurar um Estado policial não é

preciso dar mais armas à Polícia: basta tirá-las dos cidadãos. O ditador não se

torna ditador por se arrogar novos direitos, mas por suprimir os velhos direitos

do povo.

Foi preciso que a inteligência humana descesse a um nível quase infranatural

para que uma filosofia – ou coisa assim – chegasse a inverter equação tão

evidente, vendo na miséria o fundamento da riqueza e no poder político o

instrumento criador da igualdade.

Page 108: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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O fenômeno mais característico do século 20, o totalitarismo, não foi um desvio

ou acidente de percurso no caminho do sonho democrático: foi a conseqüência

inescapável de uma aposta suicida na superioridade moral do poder político e

na sua missão social igualitária. O resultado dessa aposta está diante dos

olhos de todos. A prometida igualdade econômica não veio, mas, em

contrapartida, a diferença de meios de ação entre governados e governantes

cresceu a um ponto que os mais ambiciosos tiranos da Antiguidade não

ousaram sequer sonhar. Júlio César, Átila ou Gêngis Khan recuariam

horrorizados se alguém lhes oferecesse os meios de escutar todas as

conversas particulares ou de desarmar todos os homens adultos. Hoje os

governantes já estudam como programar geneticamente a conduta das

gerações futuras. Não se contentam com o poder destrutivo dos demônios:

querem o poder criador dos deuses.

É uma das mais atrozes perversidades da nossa época que o homem imbuído

do simples desejo de enriquecer seja considerado um tipo moralmente lesivo e

quase um criminoso, enquanto o aspirante ao poder político é visto como um

belo exemplo de idealismo, bondade e amor ao próximo. Um século que pensa

assim clama aos céus para que lhe enviem um Stalin ou um Hitler.

Que é ser socialista?

Jornal da Tarde, 28 de outubro de 1999

O socialismo matou mais de 100 milhões de dissidentes e espalhou o terror, a

miséria e a fome por um quarto da superfície da Terra. Todos os terremotos,

furacões, epidemias, tiranias e guerras dos últimos quatro séculos, somados,

não produziram resultados tão devastadores. Isto é um fato puro e simples, ao

alcance de qualquer pessoa capaz de consultar O Livro Negro do Comunismo

e fazer um cálculo elementar.

Como, porém, o que determina as nossas crenças não são os fatos e sim as

interpretações, resta sempre ao socialista devoto o subterfúgio de explicar essa

formidável sucessão de calamidades como o efeito de acasos fortuitos sem

relação com a essência da doutrina socialista, a qual assim conservaria, imune

a toda a miséria das suas realizações, a beleza e a dignidade de um ideal

superior.

Até que ponto essa alegação é intelectualmente respeitável e moralmente

admissível?

O ideal socialista é, em essência, a atenuação ou eliminação das diferenças de

poder econômico por meio do poder político. Mas ninguém pode arbitrar

eficazmente diferenças entre o mais poderoso e o menos poderoso sem ser

mais poderoso que ambos: o socialismo tem de concentrar um poder capaz

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não apenas de se impor aos pobres, mas de enfrentar vitoriosamente o

conjunto dos ricos. Não lhe é possível, portanto, nivelar as diferenças de poder

econômico sem criar desníveis ainda maiores de poder político. E como a

estrutura de poder político não se sustenta no ar mas custa dinheiro, não se vê

como o poder político poderia subjugar o poder econômico sem absorvê-lo em

si, tomando as riquezas dos ricos e administrando-as diretamente. Daí que no

socialismo, exatamente ao contrário do que se passa no capitalismo, não haja

diferença entre o poder político e o domínio sobre as riquezas: quanto mais alta

a posição de um indivíduo e de um grupo na hierarquia política, mais riqueza

estará à sua inteira e direta mercê: não haverá classe mais rica do que os

governantes. Logo, os desníveis econômicos não apenas terão aumentado

necessariamente, mas, consolidados pela unidade de poder político e

econômico, terão se tornado impossíveis de eliminar exceto pela destruição

completa do sistema socialista. E mesmo esta destruição já não resolverá o

problema, porque, não havendo classe rica fora da nomenklatura , esta última

conservará o poder econômico em suas mãos, simplesmente trocando de

legitimação jurídica e autodenominando-se, agora, classe burguesa. A

experiência socialista, quando não se congela na oligarquia burocrática,

dissolve-se em capitalismo selvagem. Tertium non datur . O socialismo

consiste na promessa de obter um resultado pelos meios que produzem

necessariamente o resultado inverso.

Basta compreender isso para perceber, de imediato, que o aparecimento de

uma elite burocrática dotada de poder político tirânico e riqueza nababesca não

é um acidente de percurso, mas a conseqüência lógica e inevitável do princípio

mesmo da idéia socialista.

Este raciocínio está ao alcance de qualquer pessoa medianamente dotada,

mas, dada uma certa propensão das mentes mais fracas para acreditar antes

nos desejos do que na razão, ainda se poderia perdoar a essas criaturas que

cedessem à tentação de “fazer uma fezinha” na loteria da realidade, apostando

no acaso contra a necessidade lógica.

Ainda que imensamente cretino, isso é humano. É humanamente burro insistir

em aprender com a experiência própria, quando fomos dotados de raciocínio

lógico justamente para poder reduzir a quantidade de experiência necessária

ao aprendizado.

O que não é humano de maneira alguma é rejeitar a um tempo a lição da lógica

que nos mostra a autocontradição de um projeto e a lição de uma experiência

que, para redescobrir o que a lógica já lhe havia ensinado, causou a morte de

100 milhões de pessoas.

Nenhum ser humano intelectualmente são tem o direito de apegar-se tão

obstinadamente a uma idéia ao ponto de exigir que a humanidade sacrifique,

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no altar das suas promessas, não apenas a inteligência racional, mas o próprio

instinto de sobrevivência.

Tamanha incapacidade ou recusa de aprender denuncia, na mente do

socialista, o rebaixamento voluntário e perverso da inteligência a um nível infra-

humano, a renúncia consciente àquela capacidade de discernimento básico

que é a condição mesma da hominidade do homem. Ser socialista é recusar-

se, por orgulho, a assumir as responsabilidades de uma consciência humana.

Que é o fascismo?

O Globo, 8 de julho de 2000

Benito Mussolini resumiu a doutrina fascista numa regra concisa: "Tudo para o

Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado." No Brasil, se você é

contra essa idéia, se você é a favor da iniciativa particular e das liberdades

individuais, logo aparece um chimpanzé acadêmico que tira daí a esplêndida

conclusão de que você é Benito Mussolini em pessoa. E não caia na

imprudência de imaginar que essa conversa é demasiado pueril para enganar o

resto da macacada. Quando você menos espera, guinchados de ódio cívico se

erguem da platéia, e uma frota de micos, lêmures, babuínos, orangotangos e

macacos-pregos se precipita sobre você, às dentadas, piamente convicta de

estar destruindo, para o bem da humanidade símia, um perigoso fascista.

Cuidado, portanto, com o que diz por aí. Você não faz idéia da autoridade

intelectual dos chimpanzés na terra do mico-leão.

Na verdade, a idéia oficial de "fascismo" que se transmite nas nossas escolas

não tem nada a ver com o fenômeno que em ciência histórica leva esse nome.

É uma repetição fiel, devota e literal das fórmulas de propaganda concebidas

por Stálin no fim da década de 30 para apagar às pressas a raiz comum dos

dois grandes movimentos revolucionários do século e atirar ao esquecimento a

universal má impressão deixada pelo pacto germano-soviético. Nessa versão,

o fascismo e o nazismo surgiam como movimentos "de extrema-direita",

criados pelo "grande capital" para salvar "in extremis" o capitalismo agonizante.

É lindo imaginar aqueles banqueiros judeus de Berlim, reunidos em comissão

médica em torno do leito do regime moribundo, até que a um deles ocorre a

solução genial: "É moleza, turma. A gente inventa a extrema-direita, ela nos

manda para o campo de concentração, e pronto: está salvo o capitalismo."

No entanto as origens e a natureza do fascismo não são mistério nenhum, para

quem se disponha a rastreá-las em autênticos livros de História.

Todas as ideologias e movimentos de massa dos dois últimos séculos

nasceram da Revolução Francesa. Nasceram dela e nenhum contra ela. As

correntes revolucionárias foram substancialmente três: a liberal, interessada

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111

em consolidar novos direitos civis e políticos, a socialista, ambicionando

estender a revolução ao campo econômico-social, a nacionalista, sonhando

com um novo tipo de elo social que se substituísse à antiga lealdade dos

súditos ao rei e acabando por encontrá-lo na "identidade nacional", no

sentimento quase animista de união solidária fundada na unidade de raça, de

língua, de cultura, de território. A síntese das três foi resumida no lema:

Liberdade-Igualdade-Fraternidade.

A conjuração igualitarista de Babeuf e seu esmagamento marcaram a ruptura

entre os dois primeiros ideais, anunciando duzentos anos de competição entre

revolução capitalista e revolução comunista. Que cada uma acuse a outra de

reacionária, nada mais natural: na disputa de poder entre os revolucionários,

ganha aquele que melhor conseguir limpar sua imagem de toda contaminação

com a lembrança do "Ancien Régime". Mas para limpar-se do passado é

preciso sujá-lo, e nisto concorrem, com criatividade transbordante, os

propagandistas dos dois lados: as terras da Igreja, garantia de subsistência dos

pobres, tornam-se retroativamente hedionda exploração feudal; a prosperidade

geral francesa, causa imediata da ascensão social dos burgueses, torna-se o

mito da miséria crescente que teria produzido a insurreição dos pobres; a

expoliação dos pequenos proprietários pela nova classe de burocratas que se

substituíra às administrações locais (e que aderiu em massa à revolução) se

torna um crime dos senhores feudais. A imagem popular da Revolução ainda é

amplamente baseada nessas mentiras grossas, para cuja credibilidade

contribuiu o fato de que fossem apregoadas simultaneamente por dois partidos

inimigos.

A terceira facção, nacionalista, passa a encarnar quase monopolisticamente o

espírito revolucionário na fase da luta pelas independências nacionais e

coloniais (o Brasil nasceu disso). A parceria com as outras duas transforma-se,

aos poucos, em concorrência e hostilidade abertas, incentivadas, aqui e ali,

pelas alianças ocasionais entre os revolucionários nacionalistas e os monarcas

locais destronados pelo império napoleônico.

Pelo fim do século XIX, as revoluções liberais tinham acabado, os regimes

liberais entravam na fase de modernização pacífica. O liberalismo triunfante

podia agora reabsorver valores religiosos e morais sobreviventes do antigo

regime, tornados inofensivos pela supressão de suas bases sociais e

econômicas. Ele já não se incomodava de personificar a "direita" aos olhos das

duas concorrentes revolucionárias, rebatizadas "comunismo soviético" e

"nazifascismo". Assim começou a luta de morte entre a revolução socialista e a

revolução nacionalista, cada uma acusando a outra de cumplicidade com a

"reação" liberal.

Essa é a história. O leitor está livre para tentar orientar-se entre os dados,

sempre complexos e ambíguos, da realidade histórica, ou para optar pelas

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simplificações mutiladoras. A primeira opção fará dele um chato, um perverso,

um autoritário, sempre a exigir que as opiniões, essas esvoaçantes criaturas da

liberdade humana, sejam atadas com correntes de chumbo ao chão cinzento

dos fatos. A segunda opção terá a vantagem de torná-lo uma pessoa simpática

e comunicativa, bem aceita como igual na comunidade tagarela e saltitante dos

símios acadêmicos.

A velha alucinação

Época, 22 de julho de 2000

Cada nova geração de comunistas começa dizendo que os

antecessores não entenderam nada

Cada geração de comunistas vive de renegar as antecessoras. O próprio

marxismo nasceu de uma crítica arrasadora a seus precursores “utópicos”.

Marx prometia que daí para a frente tudo ia ser tremendamente científico, e

para isso começou por esconder os dados econômicos recentes, já que as

estatísticas atrasadas de 30 anos eram mais apropriadas a sua teoria.

Por esse rigoroso método ele descobriu que uma revolução comunista só podia

acontecer num país cheio de proletários. Não era o caso da Rússia, que só

tinha condes, camponeses, empregados públicos e estudantes – uma corja de

reacionários e oportunistas. Mas, para Vladimir I. Lênin, isso não era problema.

Se a Rússia tinha poucos proletários, tinha muitos comunistas: bastava o

Partido fazer a revolução em nome dos futuros proletários e, quando estes

nascessem, seriam informados, nos bercinhos, de que estavam no poder fazia

um tempão. O leninismo formou a classe governante mais poderosa,

organizada e implacável que já existiu (implacável até consigo mesma:

ninguém no mundo matou mais comunistas do que eles próprios). Quando a

revolução estava consolidada e os proletariozinhos começaram a brotar,

disseram-lhes que não havia mais vagas na Nomenklatura.

Todavia, a Revolução Russa não desmentiu completamente Marx. Sob um

aspecto ela lhe foi bem fiel. Ele dizia que no campo só havia reacionários, um

“lixo étnico” (sic) que devia ser varrido do higiênico mundo futuro. Os

camponeses russos confirmaram isso em toda a linha, resistindo tenazmente à

política anti-religiosa e à coletivização da agricultura, o que obrigou o governo a

liquidá-los às pencas.

Na China, porém, o exército revolucionário de Mao Tsé-tung, expulso das

cidades, teve de se embrenhar no mato e ficou sem proletários nem

funcionários públicos por perto. Daí o Grande Mao tirou a conclusão de que os

homens do campo eram os bichos mais revolucionários do planeta, a

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113

verdadeira essência mística do proletariado. A nova doutrina estava tão certa

que, para tomar e exercer o poder em nome dos camponeses, Mao teve de

mandar matar apenas 60 milhões deles.

Mas, para o “eurocomunismo” que veio em seguida, todas essas estratégias

históricas não passavam de ilusões. Real, mesmo, só o esquema de infiltração

pacífica propugnado por Antonio Gramsci, segundo o qual a revolução seria

feita com potes de anestésico – sorrateiramente, sem que ninguém

percebesse. Violência, se preciso, só depois, com todos os confortos e

garantias do poder. A “revolução passiva” que ele anunciava, porém, foi tão

passiva que não aconteceu. O estoque de anestésicos foi ingerido pelos

próprios comunistas, que só acordaram com o estrondo da queda do Muro de

Berlim.

Cada geração de comunistas começa dizendo que os antecessores não

entenderam bem o espírito da coisa, mas que, agora sim, os malditos

capitalistas vão ver o que é bom para tosse. Entre fracassos hediondos e

sucessos macabros, assim caminha a humanidade: é o eterno script da novela

revolucionária. Mas não faz mal. Que são umas dezenas de milhões de mortos

como preço da mais fascinante experiência alucinógena que já se inventou?

Por isso, quando ouço falar de uma nova safra de comunistas, saco logo do

meu passaporte.

Origens do comunismo chique

Zero Hora, 10 de setembro de 2000

Já na década de 20, Stalin, julgando com razão que seria muito difícil

controlar uma revolução do outro lado do Atlântico, decidiu que o Partido

Comunista dos EUA não devia ser organizado com vistas à tomada do poder,

mas à sustentação financeira e publicitária do comunismo europeu. Por isso o

comunismo americano sempre se dedicou menos à organização do

proletariado do que à arregimentação de milionários, artistas de Hollywood e

intelectuais de renome. Para o embelezamento da imagem comunista, era

importante que esses “companheiros de viagem” não se tornassem membros

do Partido, mas conservassem sua figura de personalidades independentes, de

modo que suas manifestações de apoio, acionadas nos momentos propícios,

parecessem iniciativas pessoais e livres, ditadas pela coincidência inocente e

espontânea entre os objetivos comunistas e os altos ideais de uma

humanidade apolítica.

O sucesso do novo estilo, que contrastava com a imagem tradicional de

austeridade proletária, fez com que fosse adotado também na Europa

Ocidental, marcando toda uma época. Mais que uma época: o “glamour” do

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114

comunismo chique perpetuou um modelo pelo qual ainda se recorta o figurino

da intelectualidade mundana em Nova York, invejado e imitado pela macacada

letrada do Terceiro Mundo: vão a uma exposição de Sebastião Salgado e

saberão do que estou falando.

Pessoas que ignoram esses fatos têm uma resistência obstinada a acreditar

que efeitos tão vastos possam ter sido planejados por uma elite discreta, quase

secreta. Preferem apegar-se à crença tola de que tudo acontece

espontaneamente – crença que repousa na hipótese de um fluido metafísico

em vez da ação concreta de homens atentos e espertos sobre homens

distraídos e tolos. Mas a propagação espontânea tem, sim, algum papel. Os

técnicos do Comintern, contando com a facilidade com que modas e cacoetes

se espalham entre intelectuais mundanos, usavam calculadamente esse efeito

e o denominavam “criação de coelhos”.

A própria elite às vezes tem simplesmente sorte. Ninguém poderia prever que o

estilo do comunismo norte-americano iria sobreviver à queda de prestígio do

regime soviético, perpetuando-se sob a forma da “New Left”, que nos anos 60

pôde continuar trabalhando pelo totalitarismo sem que sua bela imagem de

independência fosse contaminada pelo que se passava na URSS. Mas às

vezes também dá azar. Os dois principais responsáveis pela criação do

comunismo chique, Karl Radek e Willi Münzenberg, terminaram mortos por

ordem de Stalin, tão logo o sucesso mesmo da operação os tornou inúteis. A

idéia inicial fora concebida por Radek, um dos pioneiros da Revolução Russa, e

realizada sob a direção de Münzenberg, um gênio da propaganda.

Para vocês fazerem uma idéia da eficiência diabólica de Münzenberg, basta

mencionar que foi ele o criador do mito Sacco e Vanzetti. Décadas depois do

julgamento, demonstrada mil vezes a culpa de um e a cumplicidade de outro no

assassinato de um homem desarmado que implorava por piedade,

desmascarada a trama publicitária pelas confissões de membros da equipe de

Münzenberg, o que ainda resta na imaginação popular é a lenda dos operários

inocentes sacrificados por uma sórdida trama capitalista.

“Expert” em farsas duráveis, Münzenberg foi ainda o inventor de outros

instrumentos típicos da propaganda comunista que de tempos em tempos são

novamente retirados da cartola e sempre funcionam, como o “manifesto de

intelectuais”, a passeata de celebridades e, “last not least”, os julgamentos

simulados, eleições simuladas, plebiscitos simulados. A CNBB, portanto, tem

por quem puxar. O estilo é o homem.

Münzenberg foi também o criador daquilo a que chamava “política da retidão”.

É um elemento fundamental do comunismo chique: consiste em não bater de

frente na sociedade democrática, mas em parasitar o prestígio de seus ideais

morais, fazendo com que “companheiros de viagem” criteriosamente

selecionados posem como seus mais representativos porta-vozes. Assim o

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115

apelo a esses ideais pode ser modulado e dirigido conforme os interesses de

uma estratégia que sutilmente, e como quem não quer nada, vai levando a

sociedade cada vez mais longe deles e mais perto da revolução comunista.

Nossas campanhas da “ética” e “contra a miséria” foram apenas a aplicação

dessa técnica: nem elevaram o padrão moral da nação nem diminuíram a

pobreza, mas criaram a atmosfera na qual, hoje, o treinamento de guerrilheiros

é financiado por verbas do governo sem que isto suscite o menor escândalo. O

espírito de Willi Münzenberg continua baixando no terreiro político brasileiro.

Vocabulário da insensatez

O Globo, 16 de setembro de 2000

Duas habilidades que a educação deve desenvolver no estudante são o senso

das relações e proporções no mundo real e o senso das nuances e

ambigüidades na linguagem.

Daí a importância da matemática e das línguas em todo ensino. As duas estão

estreitamente ligadas: sua articulação permite perceber as coisas com nitidez e

verbalizá-las com exatidão. Não é preciso dizer que isso não serve só para os

estudos e o trabalho, mas entra na constituição da personalidade, da

consciência e dos valores pessoais.

Nem é preciso informar que esse efeito não se produz espontaneamente: sua

conquista depende de uma luta interior. Conduzir a alma nessa luta é a mais

alta finalidade da educação, que por isso mesmo recebe seu nome da raiz "ex

ducere" = "conduzir para fora": letras e números transportam a alma para além

do seu horizonte imediato de sensações e reações, abrindo-lhe o acesso à

dimensão da cultura, da História, do espírito.

Sem ter chegado até aí, ninguém está apto a participar utilmente de um debate

público. Tão logo sai do círculo da sua prática corriqueira para opinar sobre

questões maiores, a alma impropriamente educada está tão desguarnecida, tão

fora do seu elemento, que em sua performance as funções da percepção e da

linguagem se invertem.

Se a percepção normalmente serve para a orientação na realidade e a

linguagem para a articulação e expressão das realidades percebidas, no

homem mal instruído que se debate com questões elevadas a capacidade de

aprender direto da percepção torna-se muito reduzida, e desenvolve-se em seu

lugar o hábito de criar falsas impressões a partir da linguagem: ele reage às

palavras por associações emocionais diretas, sem passar pela referência aos

fatos percebidos. Daí uma atmosfera de falsa coerência, em que a simples

coordenação de emoções dentro da psique funciona como substitutivo do

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senso de realidade: basta que a reação do indivíduo a uma idéia lhe seja

habitual e familiar para que ele creia saber toda a verdade a respeito.

Em contrapartida, a estranheza, o medo, a aversão são tomados como provas

de que a idéia é falsa e inaceitável em si. O julgamento já não se baseia no

exame do objeto, do assunto, mas na simples constatação passiva do estado

interior do próprio sujeito. Quando essa reação subjetiva é confirmada por

análogas reações de outras pessoas do seu grupo de referência, aí então a

falsa sensação de realidade é reforçada ao ponto de tornar-se uma certeza

inabalável, um dado do senso comum.

Infelizmente, boa parte da educação brasileira hoje em dia -- do primário ao

doutorado -- visa a aprisionar as pessoas definitivamente nesse estado de

auto-referência grupal.

Para averiguar quanto essa deficiência intelectual está hoje disseminada nas

classes letradas, basta analisar um pouco a linguagem da mídia e dos debates

políticos. Os termos mais carregados de valorações, os mais decisivos e de

efeito mais garantido são justamente aqueles que não designam nada,

absolutamente nada de real, mas apenas um complexo de emoções

produzidas pela pura imaginação.

O termo conservador, por exemplo, tem no linguajar midiático brasileiro um

conjunto de conotações negativas que, bem examinadas, revelam não

corresponder a nenhuma corrente política existente ou concebível, mas

expressar apenas a ojeriza mental suscitada, na mente coletiva, por uma

imagem de fantasia.

O conservador, nessa acepção, é um catolicão moralista e retrógrado, saudoso

de uma civilização agrária tradicional, mas ao mesmo tempo é um industrialista

voraz sem o mínimo respeito pela ecologia; é um adepto da Nova Ordem

Mundial e um nacionalista xenófobo; é um neoliberal que anseia por desmontar

o Estado e um fascista que sonha em instaurar o Estado autoritário onipotente;

é um fundamentalista que tem horror à teoria da evolução e um darwinista

social entusiasta do domínio tecnocrático dos fracos pelos fortes, sendo

ademais um fanático e um corrupto aproveitador sem convicções.

Eventualmente é também malufista.

É evidente que o tipo assim delineado não existe e não pode sequer ser

concebido como possível. Não obstante, o epíteto conservador é usado

correntemente para lançar sobre sua vítima todas essas suspeitas ao mesmo

tempo e torná-la tanto mais asquerosa quanto mais indefinível e envolta em

mistério. O conservador é aí propriamente um Frankenstein, composto

heteróclito de peças inconexas e sem a mínima possibilidade de encaixe. Não

podendo existir no mundo real, ele é apenas a projeção das imagens disformes

que se agitam na mente que o criou para temê-lo e odiá-lo. E é tanto mais fácil

odiá-lo quanto menos ele pode existir no mundo real.

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Uma discussão empreendida com esse tipo de vocabulário jamais será outra

coisa senão um intercâmbio de alucinações. Alucinações, é claro, podem ser

disciplinadas e uniformizadas, de modo que, todos delirando ao mesmo tempo

segundo a mesma pauta, o geral sentimento de concordância forneça à

coletividade de alucinados uma forte impressão de realidade e todos saiam

persuadidos de que sabiam do que estavam falando.

Confúcio dizia que, para moralizar um país, é preciso começar pela

restauração do sentido das palavras. Mas no Brasil essa restauração não vai

acontecer, porque teria de começar por enviar para o hospício os

moralizadores.

Passado e futuro

Época, 2 de dezembro de 2000

O primeiro está desfigurado pela falsificação histórica; o segundo, por anúncios

de vingança

Em 1964, uma revolução comunista estava em marcha no Brasil, sob

orientação direta do governo soviético, recebida no começo do ano por Luís

Carlos Prestes em Moscou. Os arquivos da KGB confirmam isso de maneira

irrespondível. A revolução foi detida por um movimento militar apoiado na maior

mobilização popular de toda a nossa História (800 mil pessoas nas ruas, duas

décadas antes das Diretas Já). Total de mortos na operação: dois.

Os vencidos, inconformados, buscaram apoio na ditadura cubana, que lhes deu

dinheiro e treinamento para a ação armada, e desencadearam uma campanha

de terror, matando a tiros e bombas vários colaboradores grandes e pequenos

do novo regime e pelo menos um de seus próprios militantes, executado à

simples suspeita de “fraquejar”.

O governo reagiu instalando um regime policial que, além de fazer vítimas em

combate, consentiu na tortura e na morte de prisioneiros, à imitação dos

terroristas que chegaram a assassinar a coronhadas um homem amarrado. No

placar final, os comunistas mataram aproximadamente 200 pessoas; os

militares, 300. A diferença não é tão grande que justifique tratar os primeiros

como anjos, os segundos como demônios.

Em favor dos militares, resta um fato. Não há, na História do mundo, outro

exemplo de revolução armada, num país de cerca de 100 milhões de

habitantes, que fosse abortada com menos derramamento de sangue. Desafio

qualquer pessoa a impugnar, com números e provas, essa afirmação. Em

Cuba, com população dez vezes menor, a simples repressão a opositores

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desarmados levou à morte 17 mil dissidentes. Ditadura é ditadura, mas nivelar

a brasileira e a cubana é mais que demagogia: é empulhação.

Não obstante, a violência do extinto regime repercute na mídia até hoje, em

ondas cada vez mais volumosas à medida que o tempo passa, com periódicas

efusões de tinta e lágrimas em louvor dos comunistas mortos, enquanto as 200

vítimas que eles mataram têm de repousar quietas e esquecidas na lata de lixo

da História, o lugar reservado aos que se opõem aos desígnios da Providência

revolucionária. Nos 15 anos que se seguiram ao fim da ditadura, elas jamais

foram manchete, enquanto seus algozes o são pelo menos de três em três

meses, sob variados pretextos, incansavelmente, sem contar filmes, programas

de TV e menções chorosas nos livros didáticos.

Mas, se na imprensa qualquer referência àquelas vítimas tem sido em geral

excluída das páginas noticiosas, só timidamente vazando através de colunas

de opinião, cochichá-la na internet não é menos proibido. Um único e modesto

site devotado a documentar os crimes cometidos pelos comunistas no Brasil,

www.ternuma.com.br, tão logo apareceu foi imediatamente submetido a um

bombardeio de ameaças dissuasórias, das quais cito duas por falta de espaço

para mais. A primeira anuncia: “Vocês não perdem por esperar. Os novos

tempos da revolução... virão à tona, fazendo com que paguem com a vida... A

rebelião começará nos quartéis e os comandantes cairão diante da ira do

povo”. Sublinhando a promessa de rebelião militar, a segunda assegura:

“Como prova o grande camarada Lamarca, muitos militares estão a nosso

lado... A Ditadura do Proletariado lhes (sic) espera!” Eis no que deu ajudar os

comunistas a esconder seu passado: agora eles querem suprimir nosso futuro.

Lembrete de Natal

O Globo, 23 de dezembro de 2000

A coincidência do Natal e do Eid-al-Fitr (fim do jejum) muçulmano é uma

ocasião para lembrar que os pontos de contato entre as religiões cristã e

islâmica - e também a judaica - vão muito além do que as fórmulas de bom-

mocismo ecumênico podem sugerir.

Se há uma lição definitiva a tirar do estudo das religiões comparadas é que

elas são incomparáveis: não são espécies do mesmo gênero, que possam ser

avaliadas uma pela outra. São manifestações irredutíveis - e irredutivelmente

diversas - de uma luz intelectual supra-humana que, derramando-se sobre

objetos diferentes, produz diferentes refrações. A comparação, aí, só pode

tomar duas direções: ou o confronto estéril do inconfrontável, ou a simples

inspiração que nos leva a erguer os olhos para a fonte comum, quer a

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imaginemos como motor imóvel ou como a fonte eternamente silenciosa de

todo Verbo.

Por isso o estudo comparativo das religiões, quando toma a forma do confronto

de doutrinas prontas, desemboca na disputa dos teólogos - e esse tipo de

discussão, dizia o profeta Maomé, leva indiscutivelmente ao inferno. Muito mais

frutífera é a aproximação dos símbolos, que dizem a mesma coisa em

linguagens diversas, mas de tal modo que a mente, ao apreender a

comunidade de sentido entre elas, não pode traduzi-la numa terceira.

Compreendida como disciplina contemplativa, a ciência dos símbolos sacros é

uma introdução à clareza do indizível.

Talvez ainda mais significativa que a coincidência do Natal com o Eid-al-Fitr

seria a aproximação dele com a Laylat-al-Qadr, a noite em que o Corão

"desce" dos céus ao coração do profeta. Maomé é o analfabeto que, no silêncio

da noite, recebe em ditado angélico o mais belo livro da língua árabe, livro que

transcende as propriedades do idioma ao ponto de sua recitação em voz alta

afetar os animais, que se detêm para ouvi-la. É também à noite que a Virgem,

fecundada pelo Espírito, dá à luz a mais nobre das criaturas humanas,

indistinguível do Criador mesmo. A analogia entre esses dois sublimes

paradoxos é evidente. E, enquanto os teólogos disputam nas trevas, cotejando

Cristo a Maomé, a narrativa, em si, é "luz sobre luz": Maomé não corresponde

a Cristo, mas a Maria, o portador humano do Verbo divino; Cristo não é

Maomé, é o Verbo divino, o Logos, Kalimat’ullah.

O espírito sopra onde quer, da forma que quer. Como diz o Corão, "há nisto um

sinal, para os que entendem". Isso não quer dizer que o Papa esteja errado ao

afirmar que o cristianismo é a única via de salvação. Como poderia estar

errado, se o conceito mesmo de "via de salvação" não se aplica ao Islã ou ao

judaísmo? O judaísmo é a lei, a constituição divino-histórica do povo eleito, não

a via de salvação para as almas individuais, para os pecadores errantes e

ovelhas desgarradas. E a palavra mesma "religião" não corresponde ao árabe

din, que assim se traduz erroneamente. Din é o modo natural e primordial do

ser social humano, a constituição civil da sociedade sacra - algo sem

correspondência no evangelho, onde Deus fala às almas individuais, alheio e

indiferente ao que é de César.

Como, pois, comparar essas dimensões diferentes, achatando-as no confronto

doutrinal do certo e do errado?

As religiões, simplesmente, não falam da mesma coisa. É preciso ter

compreendido isto para atinar que é a mesma Voz que fala por meio de todas

elas. Os conflitos correm por conta da incompreensão humana, angustiada

pelos seus esforços vãos de reduzir à unidade doutrinal algo que não é

doutrina, mas que é a Presença mesma. O próprio Corão ensina-nos o limite

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dessas especulações, e adverte judeus, cristãos e muçulmanos: "Concorrei na

prática do bem, que no juízo final Nós dirimiremos as vossas divergências."

Aprendendo a escrever

O Globo, 3 de fevereiro de 2001

É lendo que se aprende a escrever - eis o tipo mesmo da fórmula sintética que

traz dentro muitas verdades, mas que de tão repetida acaba valendo por si

mesma, como um fetiche, esvaziada daqueles conteúdos valiosos que, para

ser apreendidos, requereriam que a fórmula fosse antes negada e relativizada

dialeticamente do que aceita sem mais nem menos.

Ler, sim, mas ler o quê? E basta ler ou é preciso fazer algo mais com o que se

lê? Quando a fórmula passa a substituir estas duas perguntas em vez de

suscitá-las, ela já não vale mais nada.

A seleção das leituras supõe muitas leituras, e não haveria saída deste círculo

vicioso sem a distinção de dois tipos: as leituras de mera inspeção conduzem à

escolha de um certo número de títulos para leitura atenta e aprofundada. É

esta que ensina a escrever, mas não se chega a esta sem aquela. Aquela, por

sua vez, supõe a busca e a consulta. Não há, pois, leitura séria sem o domínio

das cronologias, bibliografias, enciclopédias, resenhas históricas gerais. O

sujeito que nunca tenha lido um livro até o fim, mas que de tanto vasculhar

índices e arquivos tenha adquirido uma visão sistêmica do que deve ler nos

anos seguintes, já é um homem mais culto do que aquele que, de cara, tenha

mergulhado na "Divina comédia" ou na "Crítica da razão pura" sem saber de

onde saíram nem por que as está lendo.

Mas há também aquilo que, se não me engano, foi Borges quem disse: "Para

compreender um único livro, é preciso ter lido muitos livros." A arte de ler é

uma operação simultânea em dois planos, como num retrato onde o pintor

tivesse de trabalhar ao mesmo tempo os detalhes da frente e as linhas do

fundo. A diferença entre o leitor culto e o inculto é que este toma como plano

de fundo a língua corrente da mídia e das conversas vulgares, um quadro de

referência unidimensional no qual se perde tudo o que haja de mais sutil e

profundo, de mais pessoal e significativo num escritor. O outro tem mais pontos

de comparação, porque, conhecendo a tradição da arte da escrita, fala a língua

dos escritores, que não é nunca "a língua de todo mundo", por mais que até

mesmo alguns bons escritores, equivocados quanto a si próprios, pensem que

é.

Não há propriamente uma "língua de todo mundo". Há as línguas das regiões,

dos grupos, das famílias, e há as codificações gerais que as formalizam

sinteticamente. Uma dessas codificações é a linguagem da mídia. Ela procede

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mediante redução estatística e estabelecimento de giros padronizados que,

pela repetição, adquirem funcionalidade automática.

Outra, oposta, é a da arte literária. Esta vai pelo aproveitamento das

expressões mais ricas e significativas, capazes de exprimir o que dificilmente

se poderia exprimir sem elas.

A linguagem da mídia ou da praça pública repete, da maneira mais rápida e

funcional, o que todo mundo já sabe. A língua dos escritores torna dizível algo

que, sem eles, mal poderia ser percebido. Aquela delimita um horizonte

coletivo de percepção dentro do qual todos, por perceberem simultaneamente

as mesmas coisas do mesmo modo e sem o menor esforço de atenção,

acreditam que percebem tudo. Esta abre, para os indivíduos atentos, o

conhecimento de coisas que foram percebidas, antes deles, só por quem

prestou muita atenção. Ela estabelece também uma comunidade de

percepção, mas que não é a da praça pública: é a dos homens atentos de

todas as épocas e lugares - a comunidade daqueles que Schiller denominava

"filhos de Júpiter". Esta comunidade não se reúne fisicamente como as massas

num estádio, nem estatisticamente como a comunidade dos consumidores e

dos eleitores. Seus membros não se comunicam senão pelos reflexos

enviados, de longe em longe, pelos olhos de almas solitárias que brilham na

vastidão escura, como as luzes das fazendas e vilarejos, de noite, vistas da

janela de um avião.

Uma enfim, é a língua das falsas obviedades, outra a das "percepções

pessoais autênticas" de que falava Saul Bellow. Muitos cientistas loucos, entre

os quais os nossos professores de literatura, asseguram que não há diferença.

Mas o único método científico em que se apóiam para fazer essa afirmação é o

argumentum ad ignorantiam, o mais tolo dos artifícios sofísticos, que consiste

em deduzir, de seu próprio desconhecimento de alguma coisa, a inexistência

objetiva da coisa. A língua literária existe, sim, pelo simples fato de que os

grandes escritores se lêem uns aos outros, aprendem uns com os outros e têm,

como qualquer outra comunidade de ofício, suas tradições de aprendizado,

suas palavras-de-passe e seus códigos de iniciação. Tentar negar esse fato

histórico pela impossibilidade de deduzi-lo das regras de Saussure é negar a

existência das partículas atômicas pela impossibilidade de conhecer ao mesmo

tempo sua velocidade e sua posição.

A seleção das leituras deve nortear-se, antes de tudo, pelo anseio de

apreender, na variedade do que se lê, as regras não escritas desse código

universal que une Shakespeare a Homero, Dante a Faulkner, Camilo a

Sófocles e Eurípides, Elliot a Confúcio e Jalal-Ed-Din Rûmi.

Compreendida assim, a leitura tem algo de uma aventura iniciática: é a

conquista da palavra perdida que dá acesso às chaves de um reino oculto.

Fora disso, é rotina profissional, pedantismo ou divertimento pueril.

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122

Mas a aquisição do código supõe, além da leitura, a absorção ativa. É preciso

que você, além de ouvir, pratique a língua do escritor que está lendo. Praticar,

em português antigo, significa também conversar. Se você está lendo Dante,

busque escrever como Dante. Traduza trechos dele, imite o tom, as alusões

simbólicas, a maneira, a visão do mundo. A imitação é a única maneira de

assimilar profundamente. Se é impossível você aprender inglês ou espanhol só

de ouvir, sem nunca tentar falar, por que seria diferente com o estilo dos

escritores?

O fetichismo atual da "originalidade" e da "criatividade" inibe a prática da

imitação. Quer que os aprendizes criem a partir do nada, ou da pura linguagem

da mídia. O máximo que eles conseguem é produzir criativamente banalidades

padronizadas.

Ninguém chega à originalidade sem ter dominado a técnica da imitação. Imitar

não vai tornar você um idiota servil, primeiro porque nenhum idiota servil se

eleva à altura de poder imitar os grandes, segundo porque, imitando um,

depois outro e outro e outro mais, você não ficará parecido com nenhum deles,

mas, compondo com o que aprendeu deles o seu arsenal pessoal de modos de

dizer, acabará no fim das contas sendo você mesmo, apenas potencializado e

enobrecido pelas armas que adquiriu.

É nesse e só nesse sentido que, lendo, se aprende a escrever. É um ler que

supõe a busca seletiva da unidade por trás da variedade, o aprendizado pela

imitação ativa e a constituição do repertório pessoal em permanente acréscimo

e desenvolvimento. Muitos que hoje posam de escritores não apenas jamais

passaram por esse aprendizado como nem sequer imaginam que ele exista.

Mas, fora dele, tudo é barbárie e incultura industrializada.

Motivos da filosofia

O Globo, 10 de fevereiro de 2001

As idéias influenciam o curso das coisas na sociedade, decerto, menos pela

validade objetiva do seu conteúdo do que por servir de símbolos que

condensam sentimentos coletivos -- desejos, ódios, temores, esperanças. É

possível, até, que toda idéia brote desses sentimentos. Mas a transformação

do sentimento em idéia tem vários graus possíveis de elaboração. O simples

desejo de expressar o anseio coletivo não é a única motivação que leva um

filósofo a criar uma doutrina. Há também o impulso de coerência e o simples

desejo de conhecer a realidade, de abrir-se à variedade dos fatos mesmo

quando contrariem os nossos sentimentos e quando não possam facilmente

ser reduzidos à unidade de uma explicação. Esses três motivos de filosofar

são, por assim dizer, naturais. A diferente dosagem com que entrem na fórmula

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123

pessoal define o estilo e o modo de ser de cada filósofo. O tipo extremo, no

qual um desses impulsos se agiganta ao ponto de engolir os outros dois, é tão

raro quanto o composto equilibrado dos três. Mas "que los hay, los hay".

O tipo mesmo do filósofo "expressivo" é Nietzsche. Ele costumava comparar-se

a um perdigueiro, farejando o vento em busca do possível, do latente, que

depois ele cristalizava em símbolos literários de um poder sugestivo quase

hipnótico. É natural que este estilo de pensamento, por estar ainda muito

próximo da imaginação poética, se expresse numa linguagem descontínua,

aforística, metafórica. Por isto Nietzsche não tem propriamente uma doutrina,

mas uma massa ígnea de doutrinas virtuais, umas em conflito com as outras e

algumas em conflito aberto com os fatos. O brilho da sua forma literária

encobre e revela, ao mesmo tempo, a hesitação informe de um saber que se

anuncia e não acaba de nascer. Oscilando entre o futurismo heróico e a

corrosão decadentista, o nietzscheanismo é uma aurora vacilante que perde o

seu momento e não se levanta jamais.

No extremo oposto está Spinoza. Seu apego à coerência lógica era tanto, que

ele não apenas exteriorizou sua doutrina sob a forma acabada e plena de uma

dedução geométrica, mas ainda proclamou a absoluta soberania cognitiva da

pura dedução racional e desprezou como inútil e enganosa a experiência dos

fatos. O spinozismo é o espírito de sistema levado às suas últimas

conseqüências. Há um encanto estético também aí, mas não do tipo verbal: é a

beleza abstrata da unidade lógica, um diamante boiando no infinito, fora do

tempo, longe da "agitação feroz e sem finalidade" deste nosso mundo.

Tentativas de reintroduzi-lo no tempo, na ação, no empírico, só mostram a falta

de pudor de exegetas que se apressam a interpretá-lo às avessas para pô-lo a

serviço de fins práticos que não eram nem poderiam ser os dele.

Assim como o primeiro tipo tem algo do poeta ou do oráculo, e o segundo do

artista plástico, o perfeito respeitador dos fatos, sem deixar de ser filósofo,

aproxima-se antes do modelo do cientista empírico. É Max Weber. Weber

meteu na cabeça um problema -- o das relações entre economia e moral

religiosa -- e, na tentativa de resolvê-lo, criou instrumentos intelectuais que

perfazem, no fim das contas, toda uma filosofia das ciências. Se jogarmos a

sua obra fora e dela só conservarmos os seus escritos de epistemologia e

método, eles já bastarão para fazer dele um astro de primeira grandeza. Mas,

acumulando fatos em cima de fatos e indo buscá-los nos registros de todas as

civilizações ao alcance das suas fontes, ele ampliou de tal modo a área de sua

investigação que, tendo lançado inicialmente uma hipótese, morreu sem ter

chegado a saber exatamente se era verdadeira ou falsa. Mas seu legado

incompleto é precioso. Ele deixou-nos algo mais que um problema e um

método. Deixou-nos um exemplo de probidade intelectual levada até o extremo

do auto-sacrifício.

Page 124: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

124

Em geral, os filósofos têm um pouco de cada uma dessas tendências,

arranjadas em padrões mais ou menos felizes. Oswald Spengler, por exemplo,

é uma mistura da imaginação simbólica de Nietzsche com a ânsia weberiana

de abranger todos os fatos. Faltando-lhe o senso da coerência lógica, não lhe

resta outro instrumento de unificação dos fatos senão o símbolo mesmo. Por

isto sua filosofia da história é antes uma metáfora, uma poética da história.

Uma combinação mais freqüente é a do segundo tipo com o terceiro: aquele

misto de investigador factual probo e sistematizador rigoroso, mas seco e sem

imaginação, que nas épocas de prestígio universitário impera do alto das

cátedras como um árbitro do razoável e do irrazoável. Penso em Victor Cousin,

em Léon Brunschvicg ou em tantos, tantos dentre os neo-escolásticos! Fazem

um bom trabalho e são importantes durante algum tempo, mas depois são

esquecidos.

A combinação mais letal é a do primeiro com o segundo tipos, sem nada ou

quase nada do terceiro. A mistura do farejador de tendências com o construtor

de sistemas, sem a humildade do cientista ante os fatos, produz o arquiteto de

desastres. Nele a possibilidade captada no ar se transmuta, pela estruturação

lógica, em projeto de ação que alia, à força arregimentadora do símbolo e à

certeza racional da ordem, o total desprezo pela realidade quando ela insiste

em contrariá-lo. É o homem que não compreende nem quer compreender o

mundo, mas transformá-lo à imagem e semelhança de um desejo enrijecido em

sistema. Infelizmente, pela própria lógica das coisas, este é, de todos os tipos,

puros ou combinados, aquele que tem mais força de ação imediata sobre o

contorno social. É Karl Marx.

O equilíbrio das três tendências é uma felicidade raras vezes alcançada. O

homem que a realiza tem a fertilidade do primeiro tipo, a coerência do segundo,

a honestidade científica do terceiro. Sua filosofia, mesmo temporariamente

ignorada pelos seus contemporâneos, é sempre uma força benéfica que

atravessa os séculos, inspirando, ensinando, civilizando. Os filósofos deste tipo

são uma bênção para a humanidade. Exemplos? Bem, não me resta muito

espaço para dizer por que, mas, prometendo me explicar melhor algum dia,

voto, para o momento, em Aristóteles e Leibniz.

PS - No meu site da internet um de meus artigos vem antecedido do aviso de

que foi rejeitado por todos os periódicos a que o ofereci. Embora a frase

obviamente não implique que eu o tenha oferecido a todos os periódicos do

país, alguns engraçadinhos parece que daí deduziram, e passaram a insinuar,

que fui censurado no GLOBO. Não leram ou fizeram que não leram a data do

artigo, muito anterior ao início de minha colaboração neste jornal. Proclamar os

méritos de uma publicação que sabe respeitar a liberdade de seus

colaboradores não é só um dever: é um prazer. Alegremente, pois, informo que

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125

aqui jamais sofri censura ou restrições de espécie alguma, por mais que isto

doa a pessoas que, não gostando nem de mim nem do GLOBO, muito

apreciariam que eu as sofresse.

Sutilezas da fala brasileira

Época, 3 de Março de 2001

Graças a elas, a luta pela soberania torna-se guerra contra um inexistente

liberalismo

No Brasil, os nomes de doutrinas e regimes políticos não designam as coisas

que lhes correspondem na ordem das idéias e dos fatos. Designam pessoas e

os sentimentos que a gente tem por elas. Os termos "liberalismo",

"neoliberalismo" e "globalização", por exemplo, são sinônimos. Empregam-se,

indiferentemente, para dizer: "Maldito FHC". Mas, como os sentimentos que os

usuários dessas expressões têm pelo maldito FHC são substancialmente os

mesmos que têm pela direita em geral, as três palavras passam a significar

também fascismo, nazismo e ditaduras militares latino-americanas, sem

prejuízo de que possam ser usadas ainda para designar as tradições dos

Founding Fathers americanos, a ideologia do Concílio de Trento e, last but not

least, o Lalau e o Luiz Estevão.

Não pretendo absolutamente modificar essa norma lingüística solidamente

estabelecida, pois cada um tem a liberdade de usar o divino dom da fala como

bem entenda e, se uma nação inteira decidiu utilizá-lo como instrumento de

auto-intoxicação, quem sou eu para aconselhá-la a não fazer isso?

Não obstante, é bom informar que, no resto do mundo, liberalismo é um regime

de liberdade econômica e política, neoliberalismo é a sutil adaptação desse

regime ao paladar dos nostálgicos do socialismo e globalização ou é a abertura

das fronteiras comerciais ou a consolidação de um onipotente Estado mundial

por cima da dissolução dos poderes regionais. Esses fenômenos não apenas

não são o mesmo, mas têm entre si algumas incompatibilidades essenciais.

Por exemplo, um Estado mundial, com regulamentos padronizados em escala

planetária, é absolutamente contraditório com o princípio liberal da livre

iniciativa local, não podendo, pois, um liberal ser um globalista em sentido

pleno. No uso brasileiro dos termos, porém, essa incompatibilidade escapa por

completo à percepção humana, de modo que todo mundo acredita que

fomentando a intervenção do Estado na sociedade estará fazendo algo contra

a nova ordem global, quando esta, precisamente, necessita que os Estados

nacionais sejam "agentes de transformação" fortes o bastante para implantar

em seus respectivos países as novas leis uniformizantes que vêm prontas de

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126

Nova York e de Genebra, como por exemplo o desarmamento civil e as quotas

raciais.

Mas a mixórdia semântica brasileira transpõe resolutamente as fronteiras da

psicose quando uma alma de nacionalista contempla com horror a

subserviência de nosso governo aos poderes internacionais e chama isso de

"liberalismo", identificando independência nacional com "Estado forte", como se

o governante de um Estado forte não estivesse muito mais habilitado que o

"maldito FHC" a impor a seus governados as regulamentações globalistas que

bem desejasse.

Não é de estranhar que, nesse contexto, os males econômicos do Brasil

acabem sendo atribuídos à economia liberal, a qual, no entanto, praticamente

inexiste neste país. O The Wall Street Journal e a Heritage Foundation mantêm

há anos uma meticulosa pesquisa de índices de liberdade econômica, definida

pela ausência de fatores como intervenção estatal, impostos altos,

regulamentações restritivas etc. Nessa escala, que vai idealmente de 1 a 200,

os regimes mais liberais do mundo são Hong Kong (1), Cingapura (2), Irlanda

(3), Nova Zelândia (4), Estados Unidos e Luxemburgo (5), Reino Unido (7),

Holanda (8) e Suíça (9). O Brasil está em 93º lugar, bem pertinho da China

(114). A prevalecer a atual semântica, devemos nos libertar da exploração

globalista adotando os métodos de desenvolvimento da Índia (133), do Haiti

(137), de Cuba (152) e da Coréia do Norte (155). Teremos de viver de esmolas

do Banco Mundial, mas isso então se chamará "soberania"- e quem serei eu

para dizer que não?

Língua e nacionalismo

O Globo, 3 de março de 2001

Políticos, escritores, professores advertem-nos diariamente contra a invasão

dos "deletes", dos "mouses", dos "enters" e "starts" que povoam nosso espaço

lingüístico. Até universitários incapazes de conjugar um verbo ou colocar

pronomes arvoram-se em guardiões da pureza vernácula, distribuindo nas ruas

panfletos contra o imperialismo cultural nas horas de estudo em que deveriam

estar aprendendo português. E dizem até que servem ao idioma com mais

devoção do que a Academia Brasileira.

Todos esses melindres patrióticos são demasiado posados para que cheguem

a me comover. Não vejo neles senão o oportunismo de demagogos que, em

vez de cultivar o idioma, querem usá-lo como pretexto para gerar um estado de

alarmismo xenófobo útil a seus propósitos políticos.

A desculpa a que se apegam, de que a importação vocabular predispõe à

subserviência ante o imperialismo, é a mais falsa e estúpida que se pode

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127

imaginar. Se existe idioma que importa mais do que exporta, é precisamente o

inglês, o qual, de acordo com esse raciocínio, deveria ser língua dos

dominados e não dos dominadores. Segundo a "Cambridge History of English

and American Literature" (Vol. XIV, Part II, Cap. 15 § 7), o empréstimo,

sobretudo do francês e do italiano, é prática tão extensiva no inglês moderno,

que só um quinto das suas palavras dicionarizadas é de origem nativa.

Estariam os ianques sob o domínio do imperialismo franco-italiano?

Uma língua não é uma simples coleção de palavras. É um sistema. A natureza,

o espírito, o valor do idioma estão na sua estrutura dinâmica, no conjunto de

regras que dão a sua forma total, a qual está para as palavras isoladas como

as proporções e o desenho de um edifício estão para os tijolos que o

compõem. Por isso, palavras importadas não têm, por si, a força de corrompê-

lo.

A corrupção começa no momento em que os falantes dão de usar termos

nativos enxertados em construções frasais copiadas do exterior, que sejam

incompatíveis com o espírito do idioma. Aí já não se trata de inserir tijolos, mas

de alterar a planta do edifício. Mais dano traz à língua nacional quem escreve

palavras portuguesas com sintaxe estrangeira do que quem usa palavras

estrangeiras numa construção castiçamente vernácula. Este enriquece o

idioma: aquele o contamina e infecciona. Um traz alimento; o outro, um vírus.

Por isso, adverte a mesma Cambridge History: "Quaisquer que sejam os

elementos que compõem o nosso vocabulário, o modo com que se empregam

é puramente inglês."'E aí é que está o mal: não podemos dizer o mesmo dos

termos que absorvemos. Com freqüência alarmante, esquemas e maneirismos

frasais ingleses, inúteis e estritamente pedantes, têm entrado no nosso uso

corrente. Nos jornais já não se diz, por exemplo, "na semana passada" e sim

"semana passada", sem preposição, para corresponder ao inglês "last week".

Nem se escreve mais: "Não tenho dinheiro, disse ele", sugestiva inversão da

ordem de verbo e pronome com que o narrador marcava sua distância

psicológica do personagem. Escreve-se "Não tenho dinheiro, ele disse,

perdendo a nuance, só para rimar com "I have no money, he said".

Porém, se você protesta contra esses abusos, quem se levanta para defendê-

los, chamando você de "purista", de "reacionário", de "lusófilo"? Aqueles

mesmos que cinco minutos antes queriam fechar a alfândega às importações

de palavras. Sim, porque em geral essas criaturas não são verdadeiros

nacionalistas e sim marxistas, que só defendem o interesse nacional na medida

em que, ecoando uma teoria absurda inventada por Stálin, enxergam as

relações internacionais como luta de classes. Por extensão, são também

adeptos do progressismo lingüístico, segundo o qual toda construção nova é

melhor que a velha, bem como da ideologia da transgressão obrigatória,

segundo a qual toda regra lingüística é imposição tirânica das classes

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dominantes, odioso mecanismo de exclusão social contra o qual é preciso lutar

com todas as armas, mesmo as da mentira e do achincalhe.

Assim, as forças de dissolução lingüistica entram no mercado sob a proteção

daqueles mesmos que posam como defensores do idioma.

Mas isso não vem de hoje.

Se algum fator dissolvente vem corrompendo e debilitando a língua portuguesa

do Brasil, é precisamente o transgressivismo obrigatório que, desde o

modernismo, se afirma cada vez mais como ideologia dogmática desses

corruptores de menores que hoje dominam a educação nacional. Tal é o maior

inimigo da língua pátria, tal é o agente destrutivo que há um século vem

solapando e embrutecendo o nosso idioma, despojando-o de toda precisão e

sutileza, de toda destreza e flexibilidade, reduzindo-o a um sistema de

cacoetes que limita severamente o círculo do dizível, portanto do pensável.

No começo do século XX, ele forçou a brasilianização estereotipada que,

rompendo nossos laços culturais com Portugal, foi tornando cada vez mais

inacessível às novas gerações a leitura dos clássicos lusos, favorecendo a

fragmentação do português num esfarelado de dialetos provincianos

mutuamente incompreensíveis. Graças a ele, qualquer brasileiro culto tem hoje

mais dificuldade para ler Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro do que um

menino americano para ler Dickens ou Thackeray.

Também por conta dessa ideologia adquirimos um conjunto de preconceitos e

inibições antigramaticais, estendendo a pecha de "pedantismo" ao que quer

que vá além do tatibitate cotidiano de jovens mongolóides e privando-nos

masoquisticamente de instrumentos poderosos e originais como a mesóclise

pronominal. Na sua ânsia de vetar, de inibir, de paralisar a mente das camadas

letradas para reduzi-la à inermidade psicológica e lingüística das classes

pobres, o nacional-populismo conseguiu fazer da língua portuguesa falada no

Brasil o único idioma ocidental que, no século XX, perdeu dois pronomes e

duas pessoas verbais, estando agora obrigado a usar de circunlóquios ou a

apelar para a ajuda dos possessivos ingleses "his" e "yours" para que o ouvinte

saiba de quem se está falando. Isto já é mais que simples enfraquecimento do

idioma: é a completa destruição de seus fundamentos, por obra de

dinamitadores que entram no edifício disfarçados em funcionários da limpeza.

O nacional-populismo-transgressivismo não é um nacionalismo verdadeiro. É

uma doença, um complexo. Rebaixando os valores nacionais à condição de

instrumentos de uma estratégia política interesseira, ele destrói o que finge

defender. Se queremos preservar o idioma nacional, a cultura nacional, a honra

nacional, a primeira coisa que temos de fazer é tirá-las da guarda e tutela de

usurpadores, farsantes e aproveitadores.

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Destino e Estado

O Globo, 10 de Março de 2001

Para compreender a mentalidade de qualquer pessoa, família, comunidade ou

tradição, é preciso conhecer, mais que as condições externas que moldaram o

cenário da sua existência, os atos e decisões livres que a distinguiram de todas

as outras e fixaram o perfil da sua identidade, o padrão das suas reações mais

típicas e duradouras. Mesmo esquecidas, mesmo recalcadas para o fundo do

inconsciente, essas marcas auto-adquiridas da individualidade acompanharão

a criatura -- ou a entidade -- até o fim dos seus dias. Positivas ou negativas,

não poderão jamais ser removidas, apenas -- se negativas -- compensadas, a

duras penas, por novas decisões livres que neutralizem até certo ponto os seus

efeitos indesejados.

"A escolha faz o destino", dizia o grande Leopold Szondi. Uma sucessão de

escolhas individualizantes marca uma história, uma biografia, uma

comunidade, um povo, muito mais do que qualquer acontecimento exterior que

lhe sobrevenha por acaso ou por iniciativa de outros.

Os portugueses, por exemplo, sofreram o terremoto de Lisboa e a invasão

napoleônica. Foram marcados por esses acontecimentos, mas não tão

profundamente quanto se haviam marcado a si mesmos pelo livre

empreendimento das navegações que os tornou, para sempre, descobridores

do mundo. O terremoto e a invasão sobrevivem apenas como marcas do

passado. Mas a epopéia das navegações é o sinal permanente da identidade

portuguesa.

Outro exemplo: os judeus sofreram o Holocausto, mas não o sofreram porque

quiseram. Ele lhes veio de fora, como um flagelo. Marcou-os profundamente,

mas não ao ponto de apagar sua identidade. Esta nasce daquilo que fizeram,

por escolha própria, ao longo do tempo. E o principal que fizeram foi aceitar,

livremente, a Lei de Moisés. Sem o Holocausto, seriam tão judeus quanto

sempre foram. Não o seriam sem a Lei que escolheram, que o próprio Deus

não lhes impôs mas apenas lhes ofereceu: "Se me aceitas, Israel, Eu sou o teu

Deus". A decisão mesma de chamar Holocausto aos sofrimentos que lhes

foram impostos na II Guerra assinala a vitória da identidade antiga, livremente

assumida, sobre o impacto dissolvente de uma força externa hostil.

Interpretando o malefício novo à luz do simbolismo bíblico, os judeus reataram

as duas pontas do fio do seu destino, que o imprevisto brutal quisera separar.

Sim, a escolha, e não o acontecimento, faz o destino.

Os dois exemplos que dei são de escolhas dignificantes. Mas as escolhas

perversas, criminosas, hediondas, marcam o destino de maneira igualmente

profunda.

Page 130: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

130

Tal é a marca das correntes e ideologias que prometem fazer do Estado o

reformador da sociedade. Desde o berço, todas, sem exceção, escolheram

como seu principal e inconfundível meio de ação aquele que é próprio do

Estado e que, na verdade, o define e o distingue de todas as demais

instituições: o monopólio da violência física. O Estado só é Estado porque tem

a legitimidade -- extorquida ou consentida - do uso da força.

Quem quer que proponha modificar a sociedade por meio do Estado -- em vez

de fazê-lo por meio da religião, da cultura, da influência pessoal, da livre

associação dos indivíduos ou dos poderes intermediários -- sabe, desde o

princípio, que seu meio de ação essencial é a força. O Estado pode, é claro,

usar também de outros meios. Mas nenhum deles -- nem a cultura, nem a

educação, nem a propaganda, nem a riqueza - é próprio e exclusivo dele. São

empréstimos casuais. O domínio mesmo que o Estado tenha sobre eles

repousa no controle que ele exerça sobre o seu meio próprio, que é a força.

Por isso, quaisquer meios brandos e incruentos que utilize não são, a rigor,

senão substitutos provisórios da força. Tão logo falhem em dar os resultados

esperados, o Estado entra em crise ou emprega a força. "Tertium non datur":

não há terceira alternativa.

Apostar no Estado é, pois, apostar na violência. Esta aposta marca de maneira

indelével e inconfundível a vocação de todas as ideologias modernas, de índole

reformista ou revolucionária, que vêem no Estado o motor e promotor do bem-

estar social. Mas não me refiro só ao nazismo e ao socialismo. Mesmo formas

infinitamente mais brandas de estatismo não podem escapar à lógica das

coisas. Mesmo homens de convicções tão acentuadamente democráticas

como Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt - ou, entre nós, os militares que

se sucederam no poder após o Marechal Castelo Branco - acabaram

promovendo o autoritarismo e cometendo violências contra seu próprio povo a

partir do momento em que, por convicção ou por falta de imaginação para

conceber alternativas, fizeram do Estado o pólo ativo da vida social e o

escolheram como meio essencial para a realização de seus ideais. Não é

significativo que o governo do grande libertador Lincoln fosse também o

inventor dos campos de concentração, que o do sincero democrata Roosevelt

instituísse contra os descendentes de japoneses a prisão por suspeita racial?

Não é significativo que o governo militar, criado para restaurar a democracia

ameaçada pelos comunistas, acabasse se cristalizando num aparato

repressivo que ele próprio não sabia desmontar, ao mesmo tempo que, jurando

defender a liberdade de mercado, expandia a máquina estatal mais que

qualquer de seus antecessores?

Mais eloqüente ainda é o exemplo dos "whigs", progressistas ingleses,

precursores do Welfare State, que inventaram, antes de Stalin, a "arma da

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131

fome", com as famigeradas Leis do Milho, de 1828, as quais, aplicadas contra a

Irlanda, reduziram sua população de oito milhões para quatro em um século.

Mas se autênticos democratas foram levados a fazer essas coisas pelo simples

fato de apostarem no Estado como instrumento para melhorar a sociedade,

quanto mais malefício não farão homens imbuídos da idéia de que o Estado

deve não apenas melhorar e sim recriar ou revolucionar a sociedade? E quanto

mais vasto e duradouro não será o mal que hão de produzir se, em vez de

revolucionar apenas a estrutura de uma sociedade determinada, pretenderem

usar da força estatal para criar uma nova civilização mundial, modificar de alto

abaixo a herança cultural e os princípios morais, os valores religiosos, os

quadros elementares da percepção e, em suma, a natureza humana?

Por isso, quando intelectuais iluminados nos anunciam, como no Forum Social

de Porto Alegre, que "um outro mundo é possível", o que se deve concluir é

que os cem milhões de mortos da experiência socialista, mais quarenta do

nazifascismo, ainda não foram o bastante para saciar a ambição prometéica

dos inventores estatais de mundos.

Confronto de ideologias ?

Época, 24 de Março de 2001

Qualificar assim a luta entre capitalismo e socialismo é um vício de linguagem

Se você quer avaliar a extensão do domínio hipnótico que os cacoetes

marxistas ainda exercem sobre o sistema neuronal de pessoas que se supõem

imunes a qualquer contaminação de marxismo, basta ver que estas, quando

argumentam em favor do capitalismo, admitem colar na própria testa o rótulo

de defensores de uma determinada "ideologia".

Uma ideologia é, por definição, um simulacro de teoria científica. É, segundo a

correta expressão do próprio Marx, um "vestido de idéias" que encobre

interesses ou desejos. Ao aceitar definir-se na linguagem de seu adversário, o

liberal moderno assume o papel que ele lhe impõe: confessa-se porta-voz dos

interesses dos ricos. Que a confissão seja falsa não a torna menos eficaz.

Transferida do confronto objetivo das doutrinas para o terreno da concorrência

de interesses, a luta parece opor agora o explorado ao explorador. Por

elegante que seja a argumentação deste último, ele estará condenado a

personificar sempre o malvado da história.

Descrever o confronto entre capitalismo e socialismo como "luta de ideologias"

é aceitar um jogo viciado, no qual um dos lados dita as regras, dá as cartas e

predetermina o desenlace.

Page 132: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

132

O capitalismo não é uma ideologia. É um sistema econômico que existiu e

provou suas virtudes desde dois séculos antes que alguém se lembrasse de

formulá-lo em palavras. E o primeiro que esboça essa formulação, Adam

Smith, não é de maneira alguma um ideólogo, um inventor de símbolos

retóricos para construir futuros no ar em favor de tais ou quais ambições de

classe. É um homem de ciência em toda a extensão do termo, esboçando

hipóteses para descrever e explicar uma realidade existente. O socialismo, em

contrapartida, milênios antes de existir sequer como estratégia política concreta

já tinha seus ideólogos, seus embelezadores de enganos, seus estilistas de

interesses de grupos ressentidos e ambiciosos. Por isso, o confronto de

socialistas e liberais não opõe ideologia a ideologia: a defesa do socialismo é

sempre a auto-atribuição ideológica dos méritos imaginários de um futuro

possível, a do capitalismo é sempre a análise científica de processos

econômicos existentes e dos meios objetivos de aumentar sua eficiência.

Malgrado tudo quanto se possa alegar contra ele sob outros aspectos (e eu

mesmo não tenho deixado de alegá-lo), o capitalismo não somente gerou

riquezas incalculáveis, mas pôs em ação os meios práticos de distribuí-las ao

povo e criou instituições como a democracia parlamentar, a liberdade de

imprensa, os direitos humanos, ao passo que o socialismo só o que fez até

hoje foi prometer um futuro melhor ao mesmo tempo que reintroduzia o

trabalho escravo banido pelo capitalismo, suprimia todos os direitos civis e

políticos conhecidos, reduzia mais de 1 bilhão de pessoas a uma angustiante

miséria e, para se sustentar no poder, recorria a meios de uma crueldade

quase impensável, como por exemplo a empalação e o esfolamento de

prisioneiros – um recurso muito usado durante o governo de Lênin.

O capitalismo não é uma ideologia – é uma realidade continuamente

aperfeiçoada pela ciência. Ideologia é o socialismo – o vestido de idéias que

encobre as ambições sociopáticas de semi-intelectuais ávidos de poder.

E uma prova a mais de que isso é assim poderá ser dada por eventuais

reações socialistas a este artigo, as quais, como todas as contestações a meus

artigos anteriores, não conseguirão e aliás nem tentarão impugnar a

veracidade de nenhuma de suas afirmações, mas se limitarão a expressar

descontentamento e revolta contra sua publicação.

Dica para os esquerdistas

Jornal da Tarde, 13 de abril de 2001

Se vocês querem "superar o capitalismo", a primeira coisa que têm a fazer é

tirar da cabeça a idéia de socialismo. O socialismo não apenas é incapaz de

Page 133: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

133

superar o capitalismo, como na verdade é apenas uma sombra dele, sem vida

própria.

O capitalismo só será superado quando a economia, que ele transformou em

centro da existência, já não for mais aceita como princípio causal da História,

isto é, quando o último marxista foi enforcado nas tripas do último "homo

oeconomicus".

A superação do capitalismo não pode consistir na destruição da economia de

mercado, pela simples razão de que o mercado não é uma ideologia, um

regime, uma lei que um governante baixou e outro possa revogar, mas é uma

dimensão da existência humana. Algum tipo de economia de mercado sempre

existiu e, mesmo no mais burocratizado dos socialismos, continuou a existir.

Suprimir a economia de mercado é tão inviável quanto proibir as relações

sexuais. O que distinguiu o capitalismo moderno, surgido nos Países Baixos na

época da Reforma, foi um conjunto de condições culturais, morais e políticas

que, na ausência de forças políticas reguladoras da vida social, permitiram que

o próprio mercado assumisse o papel de regulador. Mas não de regulador

autocrático. Os principais fatores daquele conjunto eram a homogeneidade dos

valores morais vigentes (cristãos e judaicos) e a inexistência de um poder

central coercitivo: o acordo interior, na ausência de coerção externa. Tais foram

as bases éticas que, como bem viu Adam Smith, fundamentavam a economia

de mercado sem que esta, por si, pudesse criá-las. Foi a presença dessas

condições que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos países

protestantes e o inibiu nos países católicos, de forte autoridade central.

Por isso é absurdo considerar o capitalismo uma "ideologia", uma

racionalização de anseios políticos. O capitalismo surgiu como realidade

operante muito antes de que alguém o formulasse como ideologia. As

posteriores "ideologias" capitalistas jamais conseguiram dar conta da rica

complexidade do capitalismo e nem mesmo explicar suficientemente sua

eficácia.

Mas nessa origem aparecia já uma contradição fundamental. É que não só a

fórmula econômica surgida espontaneamente daquela combinação de fatores

culturais subsistiu longamente após a dissolução dela, mas também seu

sucesso fez com que fosse exportada para regiões onde combinação similar

nunca existiu. Pois bem, onde o capitalismo se instalou sem essa base ética,

ele teve de improvisar uma - e, aí, a pura "ideologia" capitalista, racionalização

esquemática, fez às vezes do fundamento ético faltante. Isto não podia dar

certo. Daí o sentido de coisa imposta, revolucionária e autoritária, que a

modernização capitalista adquiriu em tantos países, inclusive o Brasil, onde

essa contradição se radicalizou ao máximo no regime militar, tão liberal nos

seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas

suas ações.

Page 134: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

134

Ora, o ponto em comum entre "ideologia liberal-capitalista" e marxismo é o viés

economicista. O primeiro parte de um recorte fenomênico abstrato - a conduta

econômica racional - e o adota, arbitrariamente, como modelo explicativo e

norma corretiva de toda a vida social. O segundo não faz senão "colocar de

cabeça para baixo" esse modelo, atribuindo a conduta econômica racional já

não ao "homo oeconomicus" individual e sim ao Estado socialista, que é ainda

mais abstrato, hipotético e artificial do que ele.

Daí a simbiose doentia de ideologia liberal e de socialismo onde quer que as

autênticas bases culturais do capitalismo falhem. Mas estas bases falham cada

vez mais num mundo onde a religião recua e o poder político se expande.

Por isto o capitalismo se descaracteriza a olhos vistos, ficando cada vez mais

parecido com o socialismo, ao mesmo tempo que o socialismo, fracassado

enquanto fórmula econômica, ganha uma sobrevida postiça na forma de

mitologia cultural do capitalismo e Ersatz de ética religiosa. Por isso, também,

será impossível irmos "além do capitalismo", mesmo em sonhos, enquanto

nossa imaginação estiver presa a essa mitologia.

"Superar o capitalismo" é retirar a economia do topo da vida social,

submetendo-a a valores supra-econômicos. Mas isso é, no mesmo ato, abdicar

do socialismo. O pós-capitalismo ainda não existe nem em teoria. Mas, quando

existir, será menos parecido com o socialismo do que com o capitalismo

originário, onde a lei de Deus era mais importante do que o progresso

econômico e por isto mesmo o progresso econômico era uma bênção e não

uma maldição.

Lições de moral

Jornal da Tarde, 10 de maio de 2001

Dentro da linha de raciocínio segundo a qual os traficantes não são

traficantes porque querem, mas porque nós os obrigamos a sê-lo, o cineasta

Breno Silveira, ao anunciar o filme que está fazendo para mostrar que a

Falange Vermelha é quase uma instituição de caridade, contou à Folha de S.

Paulo de 2 de maio que conheceu Marcinho VP durante uma filmagem no

morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. O futuro detento do presídio de

segurança máxima do Bangu tinha então 12 anos e trabalhava carregando os

equipamentos da equipe cinematográfica: "Aquela foi uma experiência que me

marcou muito. Eu me lembro de um depoimento bonito do Marcinho VP, em

que ele afirmava que gostaria de ser advogado, mas que a vida, com certeza,

não iria deixar."

Curioso. Um de meus melhores amigos, o escritor Ronaldo Alves, nasceu no

morro da Rocinha - mil vezes pior que o Dona Marta -, cresceu entre bandidos

Page 135: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

135

e quis se tornar advogado. A vida obviamente não o deixou, mas ele foi assim

mesmo. Nunca roubou um palito de fósforo. Enquanto os meninos da

vizinhança jogavam pelada e faziam troca-troca, ele estudava.

Coisa análoga posso dizer de mim mesmo, que na infância, embora criado

entre cidadãos pacatos num bairro operário, conheci tanto quanto Marcinho VP

a miséria, a fome, a indiferença do mundo, somando-se a isso a doença que só

me largou na idade adulta.

Não consigo sentir dó desses sujeitos que dizem que ficaram pérfidos ou

burros porque tiveram um mau começo de vida. Pois em geral eles começaram

melhor que eu.

Mais curioso ainda é que nem eu nem Ronaldo tivemos a chance de conviver,

logo na entrada da adolescência, com gente do show business que nos

pudesse abrir a perspectiva de uma existência mais alta. O ambiente de

compressiva mediocridade em que fomos criados não teve essa abertura

luminosa. Ali sofremos decerto mais zombaria e discriminação por nossa mania

de estudar do que Marcinho VP por sua inclinação ao crime.

Mas supremamente curioso é o critério moral com que Breno Silveira julga a

sociedade e a si mesmo. Juro que, se um garoto da favela fosse meu ajudante

por um só dia - não tenho equipamentos de filmagem, mas ele poderia,

digamos, ajeitar meus livros nas estantes -, eu não o largaria enquanto não

tivesse a certeza de haver feito por ele tudo o que estivesse ao meu alcance

para encaminhá-lo melhor na vida. Eu faria isso ainda que ele não tivesse me

contado o que queria ser quando crescesse. Se me contasse, então, eu

compreenderia no ato que não se tratava de um "depoimento", por mais

interessante que parecesse, mas de um apelo. Quando um menino pobre nos

conta seus sonhos de futuro, ele não está enriquecendo nossa memória de

artista: está pedindo socorro. Sei disso porque um dia também contei meus

sonhos - e ninguém ligou a mínima. Nem por isso achei que tinha o direito de

me vingar, mais tarde, vendendo tóxicos a crianças. Breno Silveira, com suas

câmeras e holofotes, passou pela vida de Marcinho VP e não deixou marcas.

Marcinho foi quem deixou um "depoimento bonito" para adornar as memórias

do cineasta. Substancial contribuição: Breno pode agora sacá-la do baú e, do

alto de sua autoridade moral de membro da elite esquerdista, julgar e condenar

os que não fizeram pelo menino do morro Dona Marta o que ele também não

fez. Com a diferença de que a eles o menino nunca pediu nada.

O contraste não poderia ser maior com a atitude de Walter Salles, o diretor de

Central do Brasil, que, encontrando um menino pobre que aliás não lhe pedia

nada, lhe ofereceu emprego num filme que mudou sua vida. Um filme que,

como o de Breno Silveira, também mostra miséria e sofrimento, mas não faz

dos bandidos vítimas e não transmite nenhuma lição de moral além daquela da

qual o próprio Walter Salles deu exemplo - aquela lição que, segundo Goethe,

Page 136: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

136

resume todo o dever do homem: ser digno, prestativo e bom. A quem não quer

ou não pode ser essas coisas resta o consolo moral de falar mal da sociedade.

É isso o que, no Brasil de hoje, se chama "ética". Por isso acho que o filme de

Breno Silveira não deveria nem ser feito.

Ninguém precisa desse tipo de preleções de ética. Mas há um bocado de

Marcinhos VP em potencial que precisam do dinheiro dessa produção para ter

a chance de uma vida nova.

A mão direita da esquerda

O Globo, 9 de junho de 2001

Desde o fim da URSS, a esquerda nacional tem-se empenhado dia e noite em

advertir os nossos nacionalistas — especialmente os das Forças Armadas —

contra o perigo do mundo unipolar e em persuadi-los a tornar-se esquerdistas

por patriotismo. Há pessoas que vivem disso, e há pessoas — até nas Forças

Armadas — que acreditam nelas. Mas só um perfeito idiota não percebe que a

potência dominante que nos impõe as políticas econômicas contra as quais a

esquerda se bate é a mesma que nos impõe o politicamente correto, o

abortismo, o feminismo, o ecologismo e, enfim, todos os modelos culturais que

constituem o restante do programa da própria esquerda.

Muito menos é possível a um cérebro medianamente são deixar de notar que

as fundações e empresas multimilionárias que subsidiam a difusão desses

novos modelos de conduta são as mesmas que, por outro lado, sustentam a

implantação da Nova Ordem Mundial e das tais políticas econômicas que os

apóstolos desses modelos alardeiam execrar.

E quem quer que perceba essas duas coisas não tem como evitar a conclusão

de que o mundo unipolar é ainda mais unipolar do que os porta-vozes da

esquerda desejariam dar a entender. Tão unipolar, que dele provêm não

somente as propostas que a esquerda odeia, mas também as que ela ama e

personifica. E dele, igualmente, vem o dinheiro para subsidiar a implantação de

uma coisa e da outra.

A esquerda, em suma, utiliza-se de um vocabulário estereotipado da época da

bipolaridade para iludir os nacionalistas, desorientá-los e subjugá-los à

estratégia mundialista, atraindo seus ataques numa direção falsa para que não

atinem com a verdadeira. O componente essencial desse vocabulário é a velha

identificação do “norte-americano” com o “liberal-capitalista”, da qual decorre,

automaticamente, a confusão do nacionalismo com o estatismo, o Estado

previdenciário e, “last not least”, o socialismo.

É com a finalidade de legitimar esse brutal engano que o discurso corrente dos

homens de esquerda contra o FMI e a Nova Ordem Mundial apresenta estes

Page 137: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

137

dois fenômenos como se fossem a quintessência do liberal-capitalismo e não,

precisamente ao contrário — como o demonstra a história — invenções

puramente socialistas destinadas a estrangular, junto com a liberdade

econômica, a liberdade política no mundo. FMI e Nova Ordem Mundial são

capítulos da história do centralismo avassalador que tudo sacrifica no altar do

controle burocrático e da economia planificada, os ídolos já mil vezes

desmascarados, de cujos poderes místicos a propaganda socialista promete,

no entanto, obter a cura de todos os males. Do primeiro, disse seu próprio

inventor, Lord Keynes, que era “essencialmente uma concepção socialista”.

Quanto à segunda, foi de ponta a ponta uma criação do famoso “think tank”

londrino do socialismo gradualista que, após passar por várias denominações,

acabou se notabilizando como Fabian Society. Foi um de seus membros mais

ilustres o escritor H. G. Wells, que delineou já em 1928 o programa inteiro da

Nova Ordem Mundial e o publicou no seu livro “Conspiração Aberta”.

“Aberta” é força de expressão. “Conspiração” também. O socialismo fabiano

jamais se envolveu em atentados, comícios, passeatas, muito menos em

conspirações de porão. Tudo o que ele faz é preparar intelectuais para colocá-

los em altos postos de assessoria desde os quais possam, discretamente, mas

sem nenhum segredo, incutir idéias socialistas nas cabeças dos governantes.

O esquema foi inventado pelo teórico Graham Wallas, que com cinco décadas

de antecedência formulou a estratégia gramsciana da “ocupação de espaços” e

da “revolução passiva” (e dizer que Gramsci ainda passa por gênio!). A

magnitude dos efeitos da coisa contrasta singularmente com a circunspecção

dos meios. Praticamente todos os grandes giros da economia moderna no

sentido centralizador e socializante do Estado previdenciário foram planejados

por socialistas fabianos. Só para dar uma idéia do alcance da sua influência, os

planos de governo de três dos mais poderosos — e dos mais estatizantes —

dentre os presidentes dos EUA, Roosevelt, Kennedy e Johnson, foram

diretamente copiados de obras de autores fabianos e adotaram até seus títulos:

o “New Deal” de Roosevelt é um livro de Stuart Chase, a “New Frontier” de

Kennedy um livro de Henry Wallace, e a “Great Society” de Johnson um livro

do próprio Graham Wallas.

Malgrado seu estilo soft, antes social-democrático que comunista, os fabianos

sempre consideraram a URSS uma valiosa aliada na sua luta contra o liberal-

capitalismo. No fundo, ela foi bem mais que isso: desertores da KGB

informaram que pelo menos um dos livros de Sidney Webb, o mais célebre

presidente da Fabian Society, não foi escrito por ele, mas veio pronto do

Ministério das Relações Exteriores soviético. É compreensível. Muito antes de

Gramsci, a URSS também já havia descoberto as virtudes do gradualismo

reformista que, pelo alto e no macio, socializa o mundo mais depressa do que

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138

poderiam fazê-lo alguns milhares de Ches Guevaras — os autênticos bois de

piranha do único socialismo que sai sempre vencedor.

A suprema vantagem do método discreto é que, quando os engenhosos planos

estatizantes de intelectuais socialistas desconhecidos do povão fazem por fim

pesar sobre o bolso das massas o custo imensurável da sua tolice, nunca

faltam na praça intelectuais de esquerda radical, que, ignorando ou fingindo

ignorar tudo do trabalho de seus parceiros fabianos, lançam a culpa do

desastre... no capitalismo liberal!

Não veja a tua mão esquerda o que faz a tua direita, ensina a Bíblia. O

socialismo tem a sua própria versão demoníaca desse ensinamento: não vejam

as tuas massas barulhentas o que fazem os teus aliados silenciosos — e

assim, não sabendo quem as oprime, elas descarregarão sua fúria no bode

expiatório que melhor convenha à tua estratégia.

Resta saber apenas se os nossos nacionalistas — sobretudo os das Forças

Armadas — consentirão em reduzir-se ao papel de massas manipuladas.

Racismo, aqui e em Cuba

Época, 9 de junho de 2001

Há menos negros na elite cubana que na brasileira

Nunca houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação racista,

imprensa racista, comícios racistas, panfletos racistas, filmes racistas,

programas de rádio ou peças de teatro racistas.

Não obstante a total ausência de meios materiais de difusão, a ideologia

racista, transmitindo-se por meios telepáticos, sutis e não identificados, parece

ser um sucesso entre nós. A acreditarmos nas altas autoridades que opinam

sobre a matéria, inclusive o presidente da República, este é um país

barbaramente racista.

Muitos intelectuais brasileiros vivem hoje de divulgar essa tese, encomendada

e paga por fundações americanas, por motivos, decerto, puramente

humanitários e de maneira alguma geopolíticos. Um dos argumentos decisivos

alegados em favor dela é que negros e mulatos, constituindo a maioria da

população, são minoria nas elites e nos bons empregos.

A diferença de nível econômico-social entre comunidades raciais pode ter

várias causas. Uma delas é que do fim da escravatura até o primeiro surto

industrial brasileiro decorreram mais de 40 anos: a população negra e mulata

cresceu vertiginosamente sem que aumentasse ao mesmo tempo o número de

empregos. A industrialização, por sua vez, coincidiu com a chegada de

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139

imigrantes, que, com excelente formação profissional, levaram a melhor no

mercado de trabalho.

Mas nunca se fez um estudo científico que confrontasse as várias causas

possíveis. Uma delas foi escolhida a priori e oficializada como única explicação

permitida: a “discriminação”. Os negros e mulatos ficaram na pior porque

somos todos uns malditos racistas e não lhes damos a mínima chance. Uma

revista semanal chegou a anunciar “a prova definitiva” do racismo dominante:

numa enquete, 90% dos entrevistados disseram que sim, que existe muito

racismo no Brasil. Logo, provado estava.

Não ocorreu aos editores ponderar que, se tantos diziam isso, era

precisamente por serem contra o racismo e que os demais podiam ter negado

a existência dele por julgá-lo coisa feia demais para existir aqui. Isso

evidentemente inverteria a conclusão da pesquisa. Mas esse cuidado

metodológico foi excluído in limine como preconceito racista – e a pesquisa

chegou cientificamente ao resultado premeditado. Desde então, consagrou-se

como norma designar o fenômeno investigado pelo nome da causa a averiguar,

ficando assim dispensada a averiguação e provada a discriminação racial.

Os partidos de esquerda, sempre devotos da probidade científica, exultaram,

adotando a denúncia do racismo brasileiro em seus programas eleitorais.

Escrevo este artigo na piedosa intenção de sugerir que a retirem de lá

imediatamente, porque descobri uma coisa temível: examinada pelo mesmo

critério estatístico, Cuba é o país mais racista da América Latina. Com 60% de

negros e mulatos na população em geral, só 10% de sua elite política não é

branca. Fulgencio Batista era um ditador mulato rodeado de assessores

mulatos. Pelo método científico brasileiro, a conclusão se impõe: uma

revolução racista branqueou o governo.

Para piorar as coisas, Oscar Lopez Montenegro, um mulato que fugiu de Cuba

e hoje distribui em Miami panfletos contra o racismo cubano, informou ao

Washington Times que, quando o governo de Fidel é pressionado pela opinião

pública estrangeira para soltar prisioneiros, invariavelmente solta um branco.

Outro exilado, Manuel Questa Morna, diz que no Exército de Cuba não há

generais negros. “Cuba é um país dirigido por velhos brancos”, confirma Juan

Carlos Espinosa, diretor do Cuban Studies Center da St. Thomas University,

em Miami. E Denis Rousseau, ex-correspondente da France-Presse em

Havana, afirma que a elite cubana está preocupadíssima com o aumento do

número de mestiços na população.

Logo, das duas uma: ou vocês param de denunciar o racismo brasileiro, ou

param de louvar as qualidades excelsas da democracia cubana.

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140

Da ignorância à loucura

O Globo, 23 de junho de 2001

Já assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em vão em ambos

os casos, esse traço inconfundível do leitor brasileiro atual, sobretudo

universitário, que é a incapacidade de discernir entre a expressão de um

estado emocional e a referência a um fato percebido. O que quer que um autor

diga é interpretado sempre como manifestação de seus desejos, gostos,

preferências, ódios e temores, e nunca como descrição adequada ou

inadequada de um dado do mundo objetivo. Nos termos da teoria clássica de

Karl Bühler, a linguagem é reduzida à sua função expressiva, com exclusão da

denominativa. Isso configura nitidamente um quadro de analfabetismo

funcional.

O que hoje se chama “ensino universitário” neste país consiste essencialmente

na transmissão sistemática dessa incompetência às novas gerações. Se é

verdade que a incapacidade de compreender o que se lê é um sinal de

educação deficiente, então a quase totalidade da educação superior tal como

praticada no Brasil deve ser condenada, simplesmente, como propaganda

enganosa.

Esse estado de coisas não resulta apenas da “má qualidade”, genérica e

abstratamente. Ele vem de um aglomerado de influências culturais bem ativas,

constituído de marxismo gramsciano, psicanálise, relativismo antropológico,

nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais teoria dos paradigmas científicos

de Thomas S. Kuhn. O sincretismo dessas influências, que hoje constitui a

típica atmosfera ideológica do nosso ambiente universitário, tem sobre as

inteligências juvenis um efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos

cacoetes do vocabulário “politicamente correto” que se impõe como idioma

obrigatório das discussões pretensamente letradas.

Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se caracteriza por

ser uma hipótese limitada e provisória, elaborada dentro de categorias que só

se aplicam a classes de objetos muito determinados e fundada numa base

empírica muito estreita. Mas o efeito conjugado delas, na exclusão de

quaisquer outras influências culturais de maior envergadura que pudessem

relativizá-las e reduzir cada uma ao tamanho que lhe é próprio, é produzir no

estudante uma falsa impressão de universalidade que lhe dá a ilusão de estar

muito bem orientado no horizonte maior da cultura, justamente no instante em

que suas perspectivas se comprimem até à medida do provinciano e do

gremial.

Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a universalidade

necessária para poder constituir a base de uma educação superior. Para quem

já viesse do curso secundário com essa base, o estudo delas poderia ser útil, à

Page 141: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

141

guisa de tempero crítico e contrapeso relativizador. O que não se pode é

admitir uma bagagem cultural constituída apenas de contrapesos ou uma

alimentação constituída somente de temperos. É precisamente essa falsa

bagagem e esse falso alimento que hoje formam a substância mesma da

educação superior no país.

Quando me refiro a base, o que quero dizer é o conhecimento dos dados

fundamentais da civilização e a aquisição de um quadro de referências

histórico-cultural suficientemente amplo. Isto só se adquire pela absorção do

legado grego, cristão-medieval, renascentista e moderno, de preferência

encaixado no panorama maior das culturas antigas e orientais.

Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam como

acréscimos de detalhe que podem exercer um efeito vivificante sobre a visão

do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando soltos no vazio, acabam por

constituir um “Ersatz” de totalidade, preenchendo com opiniões genéricas e

frases de efeito o espaço que deveria estar repleto de conhecimentos positivos.

A deformidade intelectual daí resultante faz da mente do estudante brasileiro

uma caricatura grotesca da inteligência humana.

Caracterizam-na a completa falta do senso das proporções, a quase

impossibilidade de distinguir entre forma e matéria, a ênfase obsessiva em

detalhes de ocasião, a completa cegueira para as contradições mais patentes.

Um exemplo é a transformação que o relativismo sofreu ao tornar-se moda nos

nossos círculos acadêmicos. Ele já não é mais aquela precaução elegante que

buscava compensar a unilateralidade das afirmações mediante o

reconhecimento da verdade ao menos parcial das suas contrárias. É um

ceticismo ou negativismo militante, fanático, agressivo, irracional, que afirma

peremptoriamente a inexistência de quaisquer verdades objetivas e tem um

acesso de cólera sagrada à menor cogitação de que alguma talvez exista. Não

há nada mais ridículo do que um relativista que se apega ao relativismo com fé

dogmática e rejeita como tentação demoníaca a possibilidade de que alguma

afirmação talvez seja menos relativa que as outras.

O efeito desse hábito sobre a inteligência é devastador. Não existindo verdades

objetivas, a linguagem só pode ser compreendida como expressão de estados

subjetivos -- mas não ocorre jamais aos viciados nesse enfoque a idéia de que

também sua apreensão dos estados subjetivos alheios não poderia, nesse

caso, ser uma percepção objetiva mas somente a projeção dos seus próprios

estados subjetivos. O alardeado “pensamento crítico”, em tais circunstâncias,

torna-se apenas um tiroteio cego de imputações projetivas que se ignoram, até

o ponto de que o “objeto” em discussão, reduzido a mero pretexto de

afirmações da vontade, desaparece completamente de vista. A possibilidade de

uma “argumentação” é aí evidentemente nula, e o único fator decisivo que

condiciona a vitória ou derrota nas discussões é a maior ou menor capacidade

Page 142: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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de impressionar mediante uma “performance” psicológica mais exibicionista e

mais insana, e por isto mesmo mais de acordo com as expectativas doentias

da platéia.

O ambiente dessas discussões é evidentemente psicótico, e a aquisição desta

psicose é hoje considerada não apenas um sinal de cultura, mas um requisito

indispensável para o cidadão ser aceito como pessoa normal no ambiente

universitário. A formação superior, nessas condições, consiste em passar da

ignorância natural à inconsciência militante e desta à onipotência cega que

culmina na loucura.

Benfeitor ignorado

Época, 21 de julho de 2001

Ele lutou pela verdadeira “educação para a cidadania”

O falecimento de Mortimer J. Adler, aos 98 anos, há cerca de um mês, não foi

registrado pela imprensa nacional. Duvido que não haja pelo menos uns

poucos brasileiros que devam a esse filósofo e educador o melhor do que

aprenderam nesta vida – mil vezes melhor do que poderiam ter aprendido em

qualquer curso universitário ou na leitura diária de todas as publicações

culturais impressas nesta parte do mundo. Mas, no geral, a cultura nacional

está hoje nas mãos de pessoas que ignoram Mortimer J. Adler. Se não o

ignorassem, não seriam o que são, nem a cultura nacional a miséria que é.

A diferença básica entre a classe falante brasileira e a americana que ela tanto

inveja é, simplesmente, que esta recebeu na escola uma liberal education, e

ela não. Adler foi a estrela máxima e a encarnação mesma da liberal education

nos Estados Unidos – o educador que, em última análise, fez a cabeça da elite

intelectual mais ágil do país mais forte do mundo.

Liberal education é, para resumir, a educação da mente para os debates

culturais e cívicos mediante a leitura meditada dos clássicos. Acabo de

escrever esta palavra, “clássicos”, e já vejo que não sou compreendido. A falta

de uma liberal education dá a esse termo a acepção estrita de obras literárias

famosas e antigas, lidas por lazer ou obrigação escolar. Um clássico, no

sentido de Adler, não é sempre uma obra de literatura: entre os clássicos há

livros sobre eletricidade e fisiologia animal, os milagres de Cristo e a

constituição romana: coisas que ninguém hoje leria por lazer e que geralmente

são deixadas aos especialistas. Mas um clássico não é um livro para

especialistas. É um livro que deu origem aos termos, conceitos e valores que

usamos na vida diária e nos debates públicos. É um livro para o homem

comum que pretenda ser o cidadão consciente de uma democracia. Clássicos

Page 143: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

143

são livros que criaram as noções de realidade e fantasia, senso comum e

extravagância, razão e irrazão, liberdade e tirania, absoluto e relativo – as

noções que usamos diariamente para expressar nossos pontos de vista. Só

que, quando o fazemos sem uma educação liberal, limitamo-nos a repetir um

script que não compreendemos. Nossas palavras não têm fundo, não refletem

uma longa experiência humana nem um sólido senso de realidade, apenas a

superfície verbal do momento, as ilusões de um vocabulário prêt-à-porter. A

educação liberal consiste não somente em dar esses livros a ler, mas em

ensinar a lê-los segundo uma técnica de compreensão e interpretação que

começa com os eruditos greco-romanos e atravessa, como um fio condutor,

toda a história da consciência ocidental.

A liberal education é uma tradição nos EUA desde antes da Independência.

Adler lutou como um leão para que se tornasse patrimônio de todos os

americanos, mas seu sucesso foi só parcial. As universidades principais têm,

todas, seus programas de liberal education, mas no ensino médio a idéia não

pegou por completo. Hoje a diferença essencial entre a rede de escolas

públicas, fábricas de delinqüentes, e as escolas de elite que formam os

governantes e os líderes intelectuais americanos é que estas se atêm fielmente

à velha educação liberal e aquelas se deleitam em experimentos pedagógicos

de “engenharia comportamental” – muitos dos quais inspiram os programas de

nosso MEC.

Fala-se muito, hoje, em educação para a cidadania. Mas só há duas maneiras

de formar o cidadão: a educação liberal e a manipulação ideológica. Ou o

sujeito aprende a absorver os dados da “grande conversação” entre os

espíritos superiores de todas as épocas e a tomar posição sabendo do que

fala, ou aprende a falar direitinho como seus mestres mandaram, usando os

termos com a conotação que desejam, segundo os interesses dominantes do

dia. A opção brasileira está feita. Por isso, neste país, poucos souberam da

vida ou da morte de Mortimer J. Adler.

Fora do universo

Época, 28 de julho de 2001

A inteligência brasileira vive num espaço separado

Nada mais característico da miséria intelectual brasileira que a reserva de

mercado concedida a certos autores e a certas correntes de pensamento na

economia geral das atenções universitárias. Foucault, Derrida, Lacan, Deleuze,

Freud, Nietzsche, Marx, Gramsci e Heidegger estão entre os privilegiadíssimos.

Devem essa posição – grosso modo, é claro – a seu prestígio de críticos

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144

radicais da civilização do Ocidente. O lado pitoresco da coisa é que tanta

atenção aos críticos coexista com um total desinteresse pelo objeto criticado. É

normal um intelectual brasileiro confiar piamente no diagnóstico nietzschiano

da mente de Sócrates sem ter a menor vontade de saber o que o próprio

Sócrates fez ou disse. Não conheço um único intelectual público que tenha

concedido algum tempo ao estudo de Aristóteles, mas conheço centenas que

asseguram que Aristóteles foi superado não sei onde ou quando. Quando digo

que a física de Aristóteles estava mais avançada que o mecanicismo

renascentista, porque antecipava o indeterminismo de Heisenberg, olham-me

com aquela cara de quem viu um ET. E assim por diante. Os dados, a

realidade, a consistência da civilização não interessam. Só o que interessa é

sua crítica. No fim, “pensamento crítico” vira isso: confiar na opinião de

terceiros, dispensando-se de um exame pessoal do assunto.

Se o assunto é cristianismo, então, a fantasia vai parar longe. Com a maior

seriedade, catedráticos nos asseguram que a Igreja tem “uma concepção

dualista de alma e corpo” ou que ela prega “uma ética de altruísmo”. A primeira

dessas doutrinas é puro Descartes, a segunda uma criação de Auguste Comte,

feita para desbancar o conceito cristão de caridade.

Entre o ambiente cultural brasileiro e a realidade histórica da civilização

ergueu-se um muro de preconceitos, frases feitas, indiferença e esquecimento.

Mais assustador que a ignorância do passado, porém, é o desinteresse pelo

presente. Quantas vezes, diante de públicos universitários supostamente

interessados em filosofia, constatei que nunca tinham ouvido falar de Eric

Voegelin, de Xavier Zubiri, de Bernard Lonergan, certamente os filósofos mais

criativos da segunda metade do século XX!

Haviam parado em Derrida.

Um coágulo de marxismo-estruturalismo-psicanálise-desconstrucionismo havia

obstruído definitivamente seus condutos cerebrais.

O tratamento de choque de Alan Sokal não surtiu efeito nesta parte do mundo.

Imposturas Intelectuais foi bastante lido, mas só é conclusivo para quem tenha

formação científica bastante para sentir a gravidade de seus argumentos.

Como esse não é o caso da maioria de nosso público universitário, o livro fica

com a fama de ter sido apenas uma pegadinha engenhosa.

Recomendo então dois remédios de mais fácil assimilação. O primeiro é

Thinkers of the New Left, de Roger Scruton, a demonstração inequívoca da

menoridade mental dos tótens acadêmicos ainda cultuados no Brasil. O

segundo é Mensonge, de Malcolm Bradbury, uma devastadora sátira do

desconstrucionismo. Trata da vida e das obras de Henri Mensonge, philosophe

inconnu que teria sido não somente o verdadeiro criador da celebrada doutrina

da “inexistência do sujeito”, mas também... o primeiro a praticá-la. E tão

coerente foi esse pensador que nunca foi visto em parte alguma e só deixou

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145

dois escritos, inéditos e jamais lidos por quem quer que fosse: “Moi?” e “La

fornication comme acte culturel”.

Se você tem um filho na universidade, faça uma experiência: dê-lhe os livrinhos

de Scruton e Bradbury. Se depois de os ler ele continuar desinteressado de

conhecer o mundo “extra muros”, você pode ter certeza: ele fará uma brilhante

carreira de intelectual acadêmico. É verdade que o salário não será grande

coisa, mas sempre restará a esperança de que ele chegue ao cume da

profissão: a Presidência da República.

O poder de conhecer

O Globo, 4 de agosto de 2001

“Experimentai de tudo, e ficai com o que é bom”, aconselha o apóstolo.

Experiência, tentativa e erro, constante reflexão e revisão do itinerário — tais

são os únicos meios pelos quais um homem pode, com a graça de Deus,

adquirir conhecimento. Isso não se faz do dia para a noite. “Veritas filia

temporis”, dizia Sto.Tomás: a verdade é filha do tempo. Não me venham com

fulgurações místicas e intuições súbitas. “Que las hay, las hay”, mas mesmo

elas requerem preparação, esforço, humildade, tempo. Até Cristo, no cume da

agonia, lançou ao ar uma pergunta sem resposta. Por que nós, que só somos

filhos de Deus por delegação, teríamos o direito congênito a respostas

imediatas?

O aprendizado é impossível sem o direito de errar e sem uma longa tolerância

para com o estado de dúvida. Mais ainda: não é possível o sujeito orientar-se

no meio de uma controvérsia sem conceder a ambos os lados uma

credibilidade inicial sem reservas, sem medo, sem a mínima prevenção interior,

por mais oculta que seja. Só assim a verdade acabará aparecendo por si

mesma. O verdadeiro homem de ciência aposta sempre em todos os cavalos, e

aplaude incondicionalmente o vencedor, qualquer que seja. A isenção não é

desinteresse, distanciamento frio: é paixão pela verdade desconhecida, é amor

à idéia mesma da verdade, sem pressupor qual seja o conteúdo dela em cada

caso particular.

Não há nada mais estúpido do que a convicção geral da nossa classe letrada

de que não existe imparcialidade, de que todas as idéias são preconcebidas,

de que tudo no mundo é subjetivismo e ideologia. Aqueles que proclamam

essas coisas provam apenas sua total inexperiência da investigação, científica

ou filosófica. Não dando valor à sua própria inteligência — porque jamais a

testaram — apressam-se em prostituí-la à primeira crença que os impressione,

e daí deduzem, com demencial soberba, que todo mundo faz o mesmo. Não

sabem que uma aposta total no poder do conhecimento bloqueia, por

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146

antecipação, todas as apostas parciais em verdades preconcebidas. Se o que

está em jogo para mim, no momento da investigação, não é a tese “x” ou “y”,

mas o valor da minha própria capacidade cognitiva, pouco se me dá que vença

“x” ou vença “y”: só o que importa é que eu mesmo, enquanto portador do

espírito, saia vencedor. Nenhuma crença prévia, por mais sublime que seja o

seu conteúdo, vale esse momento em que a inteligência se reconhece no

inteligível. Quem não viveu isso não sabe como a felicidade humana é mais

intensa, mais luminosa e mais duradoura que todas as alegrias animais.

Infelizmente, a classe intelectual está repleta de indivíduos que não conhecem,

da inteligência, senão o seu aparato de meios — a lógica, a memória, os

sentimentos, cada qual prezando mais um ou outro desses instrumentos,

conforme suas inclinações pessoais — mas não têm a menor idéia do que seja

a inteligência enquanto tal, a inteligência enquanto poder de conhecer o real. É

impressionante como o poder mesmo que define a atividade dessas pessoas

— o intelecto — pode ser desprezado, ignorado, reprimido e por fim totalmente

esquecido na prática diária de seus afazeres nominalmente intelectuais. O culto

da razão ou dos sentimentos, das sensações ou do instinto, da fé cega ou do

“pensamento crítico”, não é senão o resíduo supersticioso que sobra no fundo

da alma obscurecida quando se perde o sentido da unidade da inteligência por

trás de todas essas operações parciais. A inteligência, com efeito, não é uma

função, uma faculdade em particular: é a expressão da pessoa inteira enquanto

sujeito do ato de conhecer. A inteligência não é um instrumento, um aspecto,

um órgão do ser humano: ela é o ser humano mesmo, considerado no pleno

exercício daquilo que nele há de mais essencialmente humano.

Perguntaram-me uma vez, num debate, como eu definia a honestidade

intelectual. Sem pestanejar, respondi: é você não fingir que sabe aquilo que

não sabe, nem que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se sei, sei

que sei. Se não sei, sei que não sei. Isto é tudo. Saber que sabe é saber; saber

que não sabe é também saber. A inteligência não é, no fundo, senão o

comprometimento da pessoa inteira no exercício do conhecer, mediante uma

livre decisão da responsabilidade moral. Daí que ela seja também a base da

integridade pessoal, quer no sentido ético, quer no sentido psicológico. Todas

as neuroses, todas as psicoses, todas as mutilações da psique humana se

resumem, no fundo, a uma recusa de saber. São uma revolta contra a

inteligência. Revoltas contra a inteligência — psicoses, portanto, à sua maneira

— são também as ideologias e filosofias que negam ou limitam artificiosamente

o poder do conhecimento humano, subordinando-o à autoridade, ao

condicionamento social, ao beneplácito do consenso acadêmico, aos fins

políticos de um partido, ou, pior ainda, subjugando a inteligência enquanto tal a

uma de suas operações ou aspectos, seja a razão, seja o sentimento, seja o

interesse prático ou qualquer outra coisa.

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147

É claro que, para cada domínio especial do conhecimento e da vida, uma

faculdade em particular se destaca, ainda que sem se desligar das outras: o

raciocínio lógico nas ciências, a imaginação na arte, o sentimento e a memória

no conhecimento de si, a fé e a vontade na busca de Deus. Mas, sem a

inteligência, que é cada uma dessas funções, ou a justaposição mecânica de

todas elas, senão uma forma requintada de fetichismo? Que é uma imaginação

que não intelige o que concebe, um sentimento que não se enxerga a si

mesmo, uma razão que raciocina sem compreender, uma fé que aposta às

cegas, sem a visão clara dos motivos de crer? São cacos de humanidade,

jogados num porão escuro onde cegos tateiam em busca de vestígios de si

mesmos. Toda “cultura” que se construa em cima disso não será jamais senão

um monumento à miséria humana, um macabro sacrifício diante dos ídolos.

Só o inteligir, assumido como estatuto ontológico e dever máximo da pessoa

humana, pode fundamentar a cultura e a vida social. Por isso não há perdão

para aqueles que, vivendo das profissões da inteligência, a rebaixam e a

humilham. Cada vez que um desses indivíduos grita, seja na língua que for,

seja sob o pretexto que for, “Abajo la inteligencia!”, é sempre o coro dos

demônios que ecoa, do fundo do abismo: “Viva la muerte!”

Doença existencial e fracasso econômico-social

Instituto de Estudos Empresariais. Cultura do trabalho. Porto Alegre: IEE, 2005.

310 p. (Pensamentos liberais, vol. IX).

Muitos estudiosos já chegaram à conclusão - certíssima -- de que os principais

obstáculos ao florescimento da economia liberal no Brasil são de ordem

cultural, mas não se mostram muito eficientes em apontar que causas são

essas. Com freqüência deixam-se levar pelo automatismo sociológico que, na

esteira de Weber, atribui à religião católica uma hostilidade visceral ao

capitalismo (como se não tivessem sido padres católicos os primeiros

teorizadores da economia liberal), ou jogam a culpa de tudo na Contra-

Reforma, no positivismo ou em qualquer outro elemento doutrinal que tenha

contribuído para a formação do estatismo brasileiro culpado de esmagar as

sementes da espontaneidade econômica liberal.

Cada um desses fatores existe, mas nenhum deles, ou a soma de todos, basta

para explicar o conjunto do quadro abrangido.

A base comum das explicações insuficientes produzidas ao longo dessas

linhas é a crença de que os instrumentos conceituais e diagnósticos suficientes

para atacar a questão já existem na tradição sociológica, bastando aplicá-los

ao caso brasileiro para obter a resposta adequada.

Page 148: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

148

Minimizar dessa maneira as dificuldades não é um bom começo para a solução

de qualquer problema. O melhor seria, ao contrário, dar por pressuposto que a

questão a ser enfrentada é uma terra incognita e que a única esperança do

investigador reside no exercício intenso de suas faculdades críticas desde os

fundamentos primeiros do problema.

Para isso é preciso, desde logo, abdicar da ilusão de que as constantes

sociológicas que definem a mentalidade de um povo possam ser captadas pelo

exame de influências ideológicas, estereótipos culturais ou vulgares

correlações econômico-culturais que constituem 80% da ciência social

brasileira. Essas abordagens partem sempre de esquemas prontos e não vão

nunca aos fundamentos.

O fundamento primeiro de qualquer investigação nessa área tem de ser uma

antropologia filosófica, isto é, uma compreensão da estrutura geral da

existência humana, seguida da meticulosa comparação com a variante local

em causa.

A característica mais geral e universal da existência humana é o seu caráter

temporal e sucessivo, isto é, o fato de que a vida do ser humano se constitui de

uma série de enfrentamentos com situações para as quais ele raramente está

preparado e que exigem dele escolhas e decisões cuja somatória se traduzirá

em fracasso ou sucesso, no mais amplo e variado sentido desses termos.

Uma sociedade, nesse sentido, é um entrelaçamento móvel de inumeráveis

percursos humanos, e a primeira pergunta a fazer para conhecer uma

sociedade nacional consiste, portanto, em saber quais são os percursos de

vida mais gerais e constantes que nela se observam.

Como a realização bem sucedida de um percurso de vida é o que se chama

habitualmente "felicidade", e o seu contrário "infortúnio", esse estudo tomaria a

forma de um mapeamento dinâmico das várias modalidades e perspectivas de

realização pessoal, isto é, de felicidade e infortúnio, na sociedade nacional

considerada.

Como a economia é um dos principais e decisivos canais de realização da

felicidade ou do infortúnio, é evidente que a conduta econômica do povo em

exame está integrada nesse mapeamento geral.

Esse estudo jamais foi feito. Sua pergunta essencial seria: Quais os padrões e

símbolos de felicidade que têm movido o povo brasileiro ao longo das épocas,

e quais os meios de ação que ele tem posto em movimento para a consecução

de seus fins essenciais?

Um breve exame da história nacional desde esse ponto-de-vista revela que,

desde os primeiros esforços de ocupação do território, as ambições de

felicidade do povo brasileiro foram as mais minguadas possíveis, em

comparação com as de outros povos.

Page 149: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

149

Dos ocupantes do novo território, só uns poucos tinham projetos pessoais de

grande envergadura, enquanto a maioria, transformada em instrumento desses

projetos, mal ousava sonhar com algum futuro próprio, limitando-se a sua

perspectiva essencial à busca de segurança à sombra da elite de aventureiros

audazes.

O panorama desolador descrito por Capistrano de Abreu nas linhas finais dos

Capítulos de História Colonial denota que, decorridos três séculos de ocupação

territorial, uma população constituída maximamente de escravos e mestiços

vivia ainda encolhida sob as asas de seus senhores e protetores, sem ousar

lançar-se ao mínimo empreendimento pessoal.

O desarraigamento cultural - da Europa, da África ou das culturas indígenas -

contribuiu ainda mais para o ambiente geral de incerteza e temor.

A constituição do estado imperial fez da burocracia estatal a esperança de uma

vida mais segura, mais protegida, para uma população tímida que não buscava

senão proteção e segurança.

Esse encolhimento anormal das perspectivas vitais reflete-se, por exemplo, na

ocupação do território. Enquanto na América do Norte um povo ambicioso e

valente se espalhava por uma área de dimensões continentais, os brasileiros

deixavam a imensidão das terras à mercê dos bichos ou da minguada elite de

desbravadores, contentando-se em ficar encolhido numa estreita faixa

litorânea, em casinhas mirradas que se acotovelavam deploravelmente, como

se houvesse falta de espaço.

O famoso estatismo nacional, que os teóricos liberais não cessam de assinalar

como uma das causas do nosso definhamento econômico, não é pois um

fenômeno primário, uma causa sui , mas a simples expressão de uma vida

diminuída, onde a busca da segurança se sobrepôs a todos os sonhos de

vitória.

Um fenômeno tão enfatizado quanto o carnaval adquire, nessa perspectiva, um

significado bem diferente daquele que em geral se lhe atribui. O traço essencial

dessa festividade é que ela constitui, para milhões de brasileiros, o cume anual

de sua existência. E o que é precisamente que esse povo visa a realizar nessa

data privilegiada? Uma fuga de três dias para fora das realidades da vida. Ou

seja, o momento em que esse povo acredita estar vivendo mais intensamente é

quando ele se abriga da realidade numa fantasia evanescente e fugaz. Nada

poderia expressar melhor a ausência de ambição existencial. Um visitante

ilustre, o conde Hermann von Keyserling, assinalou que, a imitação sendo um

fenômeno universalmente conhecido, o modo de praticá-la no Brasil era

peculiar: enquanto em outros países as pessoas imitavam alguém porque

tinham a esperança de tornar-se iguais a ela de algum modo, os brasileiros se

contentavam com a imitação enquanto tal, visando apenas ao sucesso da

performance e não à aquisição das qualidades pessoais imitadas. Este hábito

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150

denota um fundo depressivo de rendição existencial: o povo que desistiu de ser

contenta-se com parecer.

Outro sintoma desse encolhimento vital pode ser obtido no mostruário da nossa

literatura de ficção, onde a maioria dos personagens é constituída de tipos

humanamente pequenos, inseguros, tímidos, frouxos, que vivem de fingimento

por incapacidade de enfrentar o real. Ao lado desses pigmeus é quase nulo o

número de personagens ousados, valentes, ambiciosos.

Quando aparece ambição ou valentia, está geralmente associada à

marginalidade, ao banditismo, à amoralidade, denotando que a covardia

existencial é a norma e a ousadia uma ruptura que só se pode esperar dos

excluídos e anormais.

A busca permanente de proteção e segurança encontra sua contrapartida

natural na expansão dos controles estatais, que não só inibe a criatividade

econômica da população mas atrofia o desenvolvimento das personalidades

em sentido muito mais geral, produzindo um povo de carentes emocionais,

dependentes, mais inclinados a confiar na força alheia do que na iniciativa

própria. Num meio assim constituído, a iniciativa individual tende a ser

reprimida como atitude imprópria, anormal ou vagamente suspeita. Um povo

educado nessa linha tem menos um "complexo de inferioridade" do que uma

inferioridade real, introjetada ao longo dos séculos e valorizada como uma

espécie de prova de boa conduta. O fracasso ou a redução proposital das

expectativas de sucesso tornam-se, nesse quadro, a norma existencial mais ou

menos obrigatória. O proverbial mau tratamento dado pelos brasileiros a

qualquer pessoa bem sucedida em qualquer campo é a vingança

institucionalizada dos fracassados que nunca sonharam em ser outra coisa e

não admitem que alguém sonhe. O mais profundo derrotismo assume aí o valor

de uma atitude realista e adulta, toda ambição é condenada como sonho pueril,

como doença mental ou mesmo como sinal de desonestidade latente. É natural

que, nessas condições, fora os homens de gênio que são raros em qualquer

país, só os mais descarados, impudentes e amorais conseguem vencer a

barreira da inércia social. O resultado é a presença, nas classes

economicamente superiores, de um número anormalmente grande de

corruptos e desavergonhados - e, entre os intelectuais, professores e artistas,

de uma quota enorme de farsantes que alcançaram pelo alpinismo social o que

jamais conseguiriam pelo talento. Não é de estranhar que estes últimos vivam,

precisamente, de denunciar aqueles, adquirindo assim o prestígio de guardiões

da moralidade, escorados numa adesão fácil a qualquer discurso anticapitalista

apto a explorar o sentimento de inveja popular. Esse ambiente geral de farsa e

mentira torna o povo ainda mais hostil à ambição e ao sucesso. O rancor

invejoso é o sentimento normal predominante, descarregando-se em explosões

de indignação fingidamente moralista que, justamente por ser falsa e não

Page 151: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

151

denotar senão a profunda confusão moral do povo, pode ser facilmente

explorada por movimentos políticos para gerar ainda mais corrupção a pretexto

de moralizar a ordem pública.

Não é preciso explicitar aqui o quanto essa constelação de fatores torna

inviável a economia liberal no Brasil. O anticapitalismo brasileiro está nas

raízes mesmas da conduta humana local e não na influência de "doutrinas".

Doutrinas não produzem efeitos tão profundos. Estes têm de emergir

diretamente da experiência da vida, traduzindo as impressões reais que as

pessoas colhem da sua luta pessoal pela auto-realização humana, impressões

que mais tarde determinarão até mesmo a modalidade peculiar de recepção

dada às "doutrinas". Para a quase totalidade da população brasileira, essas

impressões consistem basicamente, há séculos, em desgarramento,

insegurança, ausência de possibilidades de realização superiores, necessidade

de proteção de adaptação a um horizonte vital estreito.

O florescimento da economia capitalista requer, como condição interior na alma

de seus protagonistas, a ambição, a ousadia e a disposição de enfrentar a

realidade, e, como condição externa, um ambiente de confiança, lealdade e

moralidade. Ambas essas condições estão inviabilizadas desde a base pelos

fatores acima assinalados.

O estatismo, o burocratismo, o autoritarismo, a desorganização visceral, enfim

os vícios todos que os liberais não se cansam de assinalar entre os fatores que

inviabilizam o progresso capitalista neste país não vêm nem de doutrinas, nem

da pura ação predatória do Estado, mas de uma verdadeira doença existencial,

nascida de séculos de experiência real do fracasso, do desarraigamento moral

e da insegurança.

Por mais que o Brasil tenha mudado ao longo dos séculos, essa experiência

permanece constante: o mestiço do século XVIII, cortado de suas raízes e

jogado numa sociedade onde sua única esperança era abrigar-se sob as asas

de algum protetor idolatrado por fora e odiado por dentro, tem a mesma

experiência vital do cidadão de baixa classe média na atualidade, solto sem

referências morais ou culturais num ambiente de complexidade inabarcável,

onde não ousa delinear o mapa de um plano de vida mas busca apenas a

segurança imediata de um empreguinho sem perspectivas, passando o resto

dos seus dias a remoer a inveja disfarçada em indignação moral. Em ambos os

casos a única esperança é a do fracasso controlado, postiçamente dignificado

por ser igual ao de todos.

Não é possível, neste espaço, realizar o estudo abrangente que o assunto

requer com máxima urgência. Nas minhas aulas e conferências tenho

analisado vários aspectos desse complexo de encolhimento vital brasileiro.

Aqui, posso apenas assinalar a sua existência e sugerir que o exame do

Page 152: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

152

assunto pode levar a conclusões bem diversas daquelas que têm prevalecido

na sondagem das causas da atrofia do capitalismo entre nós.

Crítica social e História

Jornal da Tarde, 11 de outubro de 2001

Toda crítica social tem por fundamento uma idéia do melhor. É só em

comparação com essa idéia que a sociedade existente pode parecer boa,

sofrível, má ou insuportável. Mas a idéia do melhor não surge do nada: é

pensada por homens concretos, membros da mesma sociedade que criticam.

Se considerarmos que a mentalidade desses homens é inteiramente um

"produto" da sociedade, então, das duas uma: ou eles próprios incorrem nos

males que denunciam, ou a sociedade, tendo dado a esses homens a idéia do

melhor, não pode ser tão má quanto eles dizem.

Logo, toda crítica social que pretenda ter algum fundamento só pode ser

baseada na premissa de que haja na consciência do homem uma dimensão

que transcende de algum modo a sociedade presente e na qual ele possa

instalar-se em pensamento para julgar essa sociedade desde fora ou desde

cima.

É evidente, no entanto, que o simples apelo verbal à instância legitimadora não

basta para dar validade à crítica. É preciso que esta não somente alegue, mas

prove sua filiação lógica à autoridade superior.

As críticas sociais, portanto, podem ser hierarquizadas numa escala de

validade estritamente objetiva, conforme (a) a legitimidade intrínseca da

autoridade convocada a legitimá-las; (b) a maior ou menor consistência lógica

do nexo entre a autoridade legitimadora e o conteúdo da crítica. Dito de outro

modo: (a) A autoridade da instância superior convocada a legitimar a crítica

pode ser falsa ou deficiente em si, como no caso do crítico que condena a

sociedade com base num puro modelo utópico de sua própria invenção. (b) Se

a autoridade alegada é válida em si, há ainda o risco de que a dedução que

dela extrai o crítico para validar a crítica determinada de uma sociedade

determinada não seja uma dedução válida logicamente.

Uma história das críticas sociais desde a Antiguidade até nossos dias

demonstraria facilmente que, ao longo dos tempos, as críticas sociais

formuladas no mundo ocidental vieram progressivamente perdendo validade ao

mesmo tempo que cresciam em virulência e em número de seguidores. Dito de

outro modo: à medida que passam os tempos, os críticos sociais perdem em

autoridade intrínseca o que ganham em pretensão e audiência.

Sei que esta observação é lamentável e que alguns, sem ter jamais estudado o

assunto ou sequer conscientizado minimamente a sua existência antes de ler

Page 153: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

153

este artigo, a recusarão "in limine" e buscarão abrigo contra ela em toda sorte

de subterfúgios. Só o que tenho a dizer a esses é que não me amolem e vão

estudar. Aos demais, isto é, àqueles nos quais o enunciado de uma hipótese

suscite curiosidade em vez de indignação ou lágrimas, sugiro que comparem,

por exemplo, a crítica socrática à marxista. Esta última tem muito mais adeptos

e é muito mais feroz que a primeira, mas, ao declarar que a consciência dos

homens é "produto" da História, já não pode alegar outra instância legitimadora

senão a História mesma; mas, como a História não traz modelos para o seu

próprio julgamento e sim apenas o relato dos fatos consumados, não resta

alternativa ao crítico marxista senão deduzir da História transcorrida uma

hipótese de desenvolvimento futuro e tomá-la desde já como instância

legitimadora da crítica do presente. Nada prova que o desenvolvimento previsto

seja necessário nem que o estado de coisas dele resultante tenha de ser

melhor do que o presente estado de coisas; tudo isso é apenas hipótese e não

tem portanto autoridade legitimadora senão hipotética. Já a crítica de Sócrates,

que não angariou adeptos senão num círculo muito limitado, tinha um

fundamento muito mais sólido, pois as instâncias legitimadoras a que apelava

eram a certeza da morte e a autoridade intrínseca da razão, que nenhum

homem pode rejeitar.

Em desvantagem maior ainda fica o marxismo quando comparado à crítica

social dos profetas hebraicos, que extraíam sua autoridade do cumprimento

das profecias. A crítica de Moisés ao estado de coisas no Egito fundava-se no

seu preconhecimento dos meios concretos de levar o povo judeu a uma

situação melhor; e o sucesso do empreendimento deu plena comprovação às

suas pretensões. Esse é um argumento que nenhum marxista pode alegar em

apoio de suas críticas ao capitalismo. Bem ao contrário, as realizações

históricas do modelo socialista na URSS e na China foram de tal modo

decepcionantes, que os marxistas, após tê-las proclamado e defendido como

as mais puras e típicas expressões da superação marxista do capitalismo, hoje

se empenham "ex post facto" em explicá-las como desvios acidentais e em

limpar o marxismo de qualquer comprometimento com fracassos tão óbvios.

Jesus e a pomba de Stalin

O Globo, 20 de outubro de 2001

Quando Cristo disse: “Na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que

deveríeis amar”, Ele ensinou da maneira mais explícita que os sentimentos não

são guias confiáveis da conduta humana: antes de podermos usá-los como

indicadores do certo e do errado, temos de lhes ensinar o que é certo e errado.

Os sentimentos só valem quando subordinados à razão e ao espírito.

Page 154: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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Razão não é só pensamento lógico: reduzi-la a isso é uma idolatria dos meios

acima dos fins, que termina num fetichismo macabro. Razão é o senso da

unidade do real, que se traduz na busca da coesão entre experiência e

memória, percepções e pensamentos, atos e palavras etc. A capacidade lógica

é uma expressão parcial e limitada desse senso. Também são expressões dele

o senso estético e o senso ético: o primeiro anseia pela unidade das formas

sensíveis, o segundo pela unidade entre saber e agir. Tudo isso é razão.

Espírito é aquilo que inspira a razão a buscar a chave da unidade da visão do

mundo no supremo Bem de todas as coisas e não num detalhe acidental

qualquer, tomado arbitrariamente como princípio de explicação universal, como

algumas escolas filosóficas fazem com a linguagem, outras com a História,

outras com o inconsciente etc. O espírito é o topo do edifício da razão, que por

ele se abre para o sentido do Bem infinito, libertando-se da tentação de

enrijecer-se num fetichismo trágico ou utópico.

Nem a razão nem o espírito se impõem. Só nos abrimos a eles por livre

vontade. A abertura para a razão vem essencialmente da caridade, do amor ao

próximo, pelo qual o homem renuncia a impor seu desejo e aceita submeter-se

ao diálogo, à prova, ao senso das proporções e, em suma, ao primado da

realidade. A abertura para a razão é educação. Educação vem de ex ducere,

que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão

subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a

grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da

maturidade. O homem maduro -- o spoudaios de que fala Aristóteles -- é

aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o

seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua

comunidade para o bem. Este ponto é crucial: ninguém pode guiar a

comunidade no caminho do bem antes de tornar-se maduro no sentido de

Aristóteles. Líderes revolucionários e intelectuais ativistas são apenas homens

imaturos que projetam sobre a comunidade seus desejos subjetivos, seus

temores e suas ilusões pueris, produzindo o mal com o nome de bem.

A abertura ao espírito é um ato de confiança prévia no bem supremo da

existência, ato sem o qual a razão perde o impulso ascendente que a anima e,

fugindo do infinito, se aprisiona em alguma pseudototalidade, mais alienante

ainda que o egoísmo subjetivo inicial. O nome religioso desse ato de confiança

é fé, mas a confiança que eleva a razão à busca do infinito transcende o

sentido da mera adesão a um credo em particular e tem antes uma dimensão

antropológica: tudo o que o ser humano fez de bom, fez movido pela fé e por

meio da razão.

O espírito e a razão educam os sentimentos. Os sentimentos do homem

amadurecido pelo espírito e pela razão são diferentes dos do homem imaturo,

porque aquele ama o que deve amar e odeia o que deve odiar, enquanto o

Page 155: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

155

segundo ama ou odeia às tontas, segundo as inclinações arbitrárias da sua

subjetividade moldada pelas pressões e atrativos do meio social.

Mas o que atrai a alma para a abertura ao espírito e à razão é a esperança, e o

despertar da esperança é um mistério. Homens submetidos à mais dura

opressão e aos mais tormentosos sofrimentos conservam sua esperança,

enquanto outros a perdem à primeira frustração de um desejo tolo. A

esperança não está sob o nosso controle. Seu advento depende do espírito

mesmo, que sopra onde quer. Todos os enredos humanos, da vida e da ficção,

giram em torno do mistério da esperança.

A esperança, a fé e a caridade educam os sentimentos para o amor ao que

deve ser amado. O culto idolátrico dos sentimentos é um egocentrismo

cognitivo, um complexo de Peter Pan que recusa a maturidade. Quanto mais o

homem busca afirmar sua liberdade por meio da adesão cega a seus

sentimentos e desejos, mais se torna escravo da tagarelice ambiente. O

caminho da liberdade é para cima, não para baixo. Libertar-se não é afirmar-se:

é transcender-se.

Das várias formas de escravidão a que o homem se sujeita pelo culto dos

sentimentos, a pior é a escravidão às palavras. Por meio do falatório em torno

o homem pode ser adestrado para ter certos sentimentos e emoções à simples

audição de determinadas palavras, independentemente dos fatos e do

contexto. Paz e guerra, por exemplo, suscitam reações automáticas. Por isso

as massas imaturas aceitam com a maior credulidade os novos regimes de

governo que prometem acabar com as guerras e instaurar a paz. Mas é só

nominalmente que guerra significa morticínio e paz significa tranqüilidade e

segurança. As guerras, no século XX, mataram 70 milhões de pessoas. É

muita gente. Mas 180 milhões, mais que o dobro disso, foram mortos por seus

próprios governos, em tempo de paz e em nome da paz. O homem maduro

sabe que as relações entre guerra e paz são ambíguas, que só um exame

criterioso da situação concreta permite discernir a dosagem do bem e do mal

misturados em cada uma delas a cada momento. Ele sabe que a Pomba da

Paz, oferecida à adoração infantil nas escolas, foi um desenho encomendado a

Pablo Picasso por Josef Stalin com o intuito de fazer com que o símbolo da

Pax soviética -- a ordem social totalitária construída sobre trabalho escravo,

prisões em massa e genocídio -- se sobrepusesse, na imaginação dos povos,

ao símbolo cristão do Espírito Santo. O homem maduro sabe que, tanto quanto

a Pomba da Paz, também manifestos pela paz, discursos pela paz e até

missas pela paz são, muitas vezes, blasfêmias e armas de guerra. No

dicionário, os sentidos da guerra e da paz estão nitidamente distintos, mas o

homem maduro não se refugia da complexidade das coisas no apelo pueril a

absolutos verbais.

Page 156: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

156

Igualdade, liberdade, direito, ordem, segurança e milhares de outras palavras

foram também incutidas na mente das massas como programas de

computador para acionar nelas automaticamente as emoções desejadas pelo

programador, fazendo com que amem o que deveriam odiar e odeiem o que

deveriam amar. Até a esperança, chave da fé e da caridade, se torna aí uma

arma contra o espírito, quando se coisifica na expectativa de um mundo

melhor, de uma sociedade mais justa ou, no fim das contas, de ganhar mais

dinheiro. Jesus deixou claro que não era nenhuma dessas esperanças a que

Ele trazia. Era a esperança de fazer de cada um de nós um novo Cristo,

encarnação e testemunha do espírito. Quem aceitar menos que isso só

ganhará, em vez da paz de Cristo, uma bandeirinha da ONU com a pomba de

Stalin.

Guerra de religião?

Época, 20 de outubro de 2001

Para Bin Laden, o Corão sempre foi apenas um pretexto

Em 24 de setembro Bin Laden disse que as forças americanas entravam no

Afeganistão “sob a bandeira da Cruz”. Dias depois, chamou George W. Bush

de “chefe dos infiéis”. Só isso já basta para evidenciar que sua alegação de

“guerra santa” nunca passou de um subterfúgio, de um disfarce ideológico.

Segundo o Corão, ninguém pode ser ao mesmo tempo cristão e infiel. Cristãos

e judeus estão claramente incluídos na categoria corânica de “povos do Livro”

(ahl al-kitab), reconhecidos como uma espécie de muçulmanos avant la lettre.

Sua salvação está assegurada, em termos inequívocos, na Sura V:69: “Os que

crêem (no Corão), os que seguem as escrituras judaicas, e os sabeanos e os

cristãos – e quem quer que acredite em Deus e no Dia do Juízo e faça o bem –

, esses nada temam, pois não serão afligidos”.

Um muçulmano consciente pode alegar que a mensagem recebida de Deus

pelos “povos do Livro” é incompleta, que eles não a seguiram corretamente ou

até que a deturparam, mas não que são “infiéis” ou “idólatras”.

Na verdade, o Islã, acusado de sectarismo estreito, é a mais ecumênica das

religiões: na sua doutrina da sucessão dos profetas, de Adão a Maomé, estão

incluídas e legitimadas todas as religiões monoteístas, concebidas como

patamares históricos de uma revelação única que culmina na “Laylat-al-Qadr”,

a “Noite do Poder”, quando o Arcanjo Gabriel começa a ditar a Maomé os

versículos do Corão. “Infiéis”, a rigor, são aí somente os ateus, os idólatras

(politeístas) e aqueles monoteístas que, de má-fé, radicalizem as diferenças

Page 157: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

157

entre suas doutrinas respectivas e a mensagem corânica para denegrir esta

última, em vez de reverenciar o mistério da unidade por trás da diversidade.

Ao chamar Bush ora de cristão, ora de infiel, Bin Laden mostrou não falar como

um religioso sério, mas como alguém que quer dizer algo contra seu adversário

e, na fúria, escolhe qualquer coisa a esmo, acabando por apelar a rótulos que

se contradizem.

Seria preciso mais para provar que a oposição desse homem ao Ocidente

nunca foi inspirada em motivos corânicos válidos, mas sim em alguma outra

coisa, em cuja propaganda o Corão foi chamado a servir de ornamento retórico

para encobrir sob altas motivações religiosas uma ambição política

soberbamente má?

Porém, na mesma medida, essas considerações impugnam a tirada

antimuçulmana com que o historiador Paul Johnson deu substancial ajuda

involuntária tanto aos inimigos do Islã quanto aos de Israel e do Ocidente.

Pretendendo demonstrar a radical hostilidade do Islã às demais religiões,

especialmente ao cristianismo, Johnson citou a Sura IX:5: “Matai os idólatras

onde quer que os encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai de emboscadas

contra eles”. Mesmo em seu sentido mais geral possível, o termo “idólatras”

não se aplica aos povos monoteístas. Nessa passagem em especial, ele se

refere aos politeístas de Meca mencionados no versículo anterior, que “fizeram

um pacto contigo (Maomé) e depois faltaram ao combinado”. A esses Maomé

deveria perseguir, capturar e matar, como de fato ele fez e é fato

historicamente bem conhecido. Porém, mesmo nesse caso a autorização para

o uso da força não era ilimitada, pois Maomé, ao entrar vitorioso em Meca, fez

cessar imediatamente qualquer perseguição aos inimigos, condenando à morte

apenas os cinco principais e perdoando todos os outros – com certeza a mais

branda reparação de guerra de todos os tempos. Portanto, um dos dois

interpretou errado o versículo: ou Maomé, ou Paul Johnson. É verdade que

uma leitura parecida com a de Johnson foi usada às vezes por chefes

muçulmanos para incitar à violência contra os cristãos, mas é óbvio que então

se afastaram bastante da interpretação dada em atos pelo Profeta e, como no

Islã as ações e palavras do Profeta são a fonte máxima de autoridade na

exegese do Corão , é claro que esses homens, como Bin Laden, não eram

muçulmanos muito ortodoxos.

Lições de obviedade

O Globo , 01 dez 2001

Page 158: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

158

Ao longo de seis ou sete anos de polêmicas, raramente encontrei um opositor

que evidenciasse conhecer, mesmo por alto, as exigências mais elementares

da demonstração lógica e da argumentação em geral.

Tantos foram os que tentaram invalidar meus argumentos, e tão obviamente

falhas as objeções que me apresentaram, que a coleção delas bastaria para

ilustrar um tratado como as "Refutações Sofísticas" de Aristóteles ou a

"Dialética Erística" de Schopenhauer.

Cheguei a publicar uma versão comentada desta última obra e um breve

estudo sobre a lógica de Aristóteles, na louca esperança de que meus

opositores, tomando consciência de que não discutiam com um opinador

casual, mas com um estudioso e por assim dizer quase um especialista da arte

da prova, notassem o ridículo a que se expunham e, ao menos por instinto de

autopreservação, passassem a opinar menos e a estudar mais.

Foi em vão. Continuaram vindo, com a mesma empáfia de sempre, com a

mesma autoconfiança insensata de sempre e, como sempre, sem os devidos

recursos intelectuais para enfrentar a discussão.

Convidados a assumir as conseqüencias lógicas de suas opiniões

insustentáveis, recuavam e buscavam refúgio numa afetação de silêncio

superior, acompanhada, às vezes, de tentativas de me cassar a palavra pelo

uso da influência, das amizades, dos jogos políticos, quando não da intriga e

da difamação. Paradoxalmente chamavam-me então "autoritário", confundindo

a força da lógica com a lógica da força.

Coletei amostras disso nos dois volumes de "O Imbecil Coletivo". Depois de

publicados, os casos avolumaram-se o bastante para compor três volumes

suplementares.

São tantos os exemplos que não posso supô-los desprovidos de significação

sociológica, como indícios de um estado generalizado de inépcia e

mesquinharia mental que caracteriza a fase mais negra da história da

inteligência nacional - ou, se preferem, da burrice nacional.

São os frutos da formação (ou deformação) imposta a uma geração pelos

ídolos da intelectualidade esquerdista dos anos 60-70 - não citarei nomes

porque todos os conhecem.

Esses professores, que já eram limitadíssimos, impuseram à juventude de

então limitações ainda mais estreitas, ao mesmo tempo que lhe infundiam o

despropositado orgulho de constituir "a parcela mais esclarecida da

população". Não há hoje um só "formador de opinião", de meia idade, que não

tenha conservado essa fé intacta, em formol.

Por isso é já não resta, entre eles, quase ninguém que saiba distinguir, por

exemplo, entre afirmações factuais e opiniões. Por isso, cada afirmação de fato

que apresento é respondida como "opinião extremada" ou coisa assim.

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159

O apelo à moderação soa simpático. Entre opiniões extremadas e moderadas,

o brasileiro, tradicionalmente, prefere as moderadas. Moderação é sinônimo de

equilíbrio, maturidade, sensatez.

Mas até a busca do equilíbrio, quando se sobrepõe ao senso da realidade e se

enrijece num vício de percepção, pode levar aos piores desequilíbrios. E é

evidentemente um desequilíbrio aplicar os conceitos de "moderado" e

"extremado" em domínios onde não cabem de maneira alguma.

Extremismo e moderação só podem aparecer em juízos de valor, em

apreciações pessoais, em opções tomadas livremente numa gama de opções

possíveis.

A simples alegação de um estado de fato não pode ser moderada nem

extremada. Pode ser apenas verdadeira ou falsa, exata ou inexata - e só pode

ser confirmada ou impugnada pela aferição dos dados, não pela denúncia de

más qualidades psicológicas no falante. Se dizemos que um sujeito está morto,

não há nisto extremismo ou moderação: ele não poderia estar extremamente

morto ou moderadamente morto, como uma mulher não pode estar

moderadamente grávida ou um círculo ser extremamente circular.

Na mesma linha está a confusão entre os fatos alegados e as causas

aventadas para explicá-los. Fatos mostram-se pela percepção, pelos

testemunhos e pelos documentos. Causas demonstram-se por lógica e

argumentação. O modus cognoscendi é bem diverso num caso e no outro.

Basta saber disso para perceber que a afirmação de um fato não pode ser

impugnada pela negação de qualquer de suas possíveis causas. Desmentidas

todas as causas, restaria ainda o fato. Invalidada a explicação, restaria o dado

a explicar. E quantas vezes não encontrei acadêmicos, escritores, homens

públicos que acreditavam poder contestar a afirmação de um estado de fato

mediante a alegação da improbabilidade, real ou aparente, de alguma de suas

possíveis causas? Pior ainda, freqüentemente era alguma causa hipotética que

não fôra sequer aventada por mim, mas suposta por eles próprios e atribuída a

mim por autoprojeção.

Para compensar ou disfarçar a pobreza e a deformidade de suas respectivas

apreensões da realidade, esses objetores faziam amplo uso das rotulações

pejorativas ("reacionário", "paranóico"), bem como dos argumentos ad baculum

(alegar que minhas idéias eram "perigosas") , ad populum (tomar como

axiomas inquestionais os lugares-comuns da mídia ou as crenças do seu

próprio grupo de referência) e ad ignorantiam (usar a própria ignorância de um

fato como prova de que ele não acontecera) - enfim, de todo o arsenal de

falácias primárias que todo estudante teria a obrigação de conhecer e evitar.

Mais freqüente ainda eram afetações de bom-mocismo - para evitar a

discussão objetiva, saltavam para a exibição de bons sentimentos, de

"cidadania", "modernidade", "progressismo", etc., como se algum juízo de

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160

existência pudesse ser impugnado ou validado por esses meios, como se não

houvesse a menor diferença entre um discurso de apreensão da realidade e

um discurso de auto-reforço psicológico. O empenho obsessivo de exibir

normalidade para dar ao adversário ares de louco é, em especial, um sintoma

de insegurança disfarçada, principalmente quando se substitui à argumentação

efetiva em vez de simplesmente sublinhá-la.

É tanta a insistência nessas atitudes que sinto que essas pessoas já não

distinguem entre a realidade dos fatos e os sentimentos autoprovocados pela

imaginação e como que treinados diante do espelho. Generalizada essa

indistinção, o ambiente intelectual nacional tornou-se idêntico ao dessas

revistas de fofocas televisivas, onde os relatos de casamentos, divórcios e

peripécias gerais vividas durante a semana pelos personagens de novelas são

acompanhados pelo povão como se fossem o noticiário de acontecimentos

reais.

Não estou, de maneira alguma, aludindo a algum contraditor em particular.

Praticamente todos os que encontrei até hoje foram debatedores que uniam, à

profunda desonestidade na argumentação, a total inconsciência dessa

desonestidade.

Se alguém em particular tivesse se destacado nisso, se o fenômeno não fosse

tão geral e repetido, eu nem me daria o trabalho de escrever a respeito.

Fantamasgoria verbal

Jornal da Tarde, 23 de maio de 2002

Há uma diferença substancial entre aderir a uma posição política, julgando os

fatos com base nela, e tomar conhecimento de fatos que, por sua força

intrínseca, e mesmo contra a nossa vontade, acabam por mudar nossa opinião

política.

Três obstáculos tornam difícil aos brasileiros de hoje perceber essa diferença

na prática, se não mesmo apreendê-la conceptualmente.

O primeiro é o tradicional verbalismo nacional. Verbalismo não é amor às

palavras. Também não é falar muito. É um mau hábito de percepção verbal,

que faz o sujeito reagir emocionalmente à simples menção de certas palavras,

sem esperar para obter uma adequada representação imaginativa das coisas e

fatos mencionados.

O segundo obstáculo é o analfabetismo funcional, endêmico nas nossas

classes superiores. Analfabetismo funcional é impossibilidade de produzir a

representação imaginativa da coisa lida ou ouvida. É um upgrade do

verbalismo. É verbalismo compulsório.

Page 161: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

161

O terceiro é o adestramento ideológico marxista, que encobre e protege sob a

capa de um discurso automatizado os dois vícios acima, tornando-os

inacessíveis às mais engenhosas terapêuticas.

O verbalista salta direto do estímulo verbal à reação emotiva, sem passar pelo

trabalho de imaginação e muito menos pela triagem crítica das representações

imaginativas. Daí sua tendência a comover-se ante simples jogos vocabulares

que, bem examinados, não significam nada e não podem suscitar emoção

nenhuma. Todo o sucesso do movimento concretista em poesia deveu-se a

esse tipo de leitores.

O analfabeto funcional não pode alcançar a representação imaginativa: ou

permanece insensível à mensagem verbal ou tem de projetar sobre ela algum

conteúdo da memória, escolhido ao acaso das associações de idéias e

embebido de conotações valorativas deslocadas do assunto.

O sujeito ideologicamente adestrado já traz na memória todo um repertório de

conteúdos prontos para ser projetados sobre qualquer mensagem, o que o

dispensa e protege do contato intelectual com o interlocutor e lhe dá ao mesmo

tempo o sentimento tranqüilizante de estar compreendendo tudo da situação.

(Há dois tipos de adestrados ideológicos: os assumidos, cândidos ou antigos,

que crêem piamente na ideologia salvadora e não hesitam em oferecê-la como

resposta a todos os problemas, e os enrustidos, maliciosos ou modernos, que

se dizem livres de preconceito ideológico, mas, não tendo nenhum outro

sistema de referências pelo qual orientar-se, continuam julgando tudo segundo

os cânones da ideologia que pensam ter abandonado.)

No fundo, essas três doenças são a mesma, tomada em três níveis de

gravidade crescente. O sujeito começa verbalista por herança cultural

doméstica. Passa a analfabeto funcional pela consolidação do vício tornado

irreversível. Por fim, ao receber instrução universitária, reveste-se aí daquela

carapaça verbal que, consolidando e legitimando os dois vícios anteriores sob

o rótulo de cultura superior, o tornará para sempre imune ao impacto de novas

mensagens verbais. Só na educação superior o desenvolvimento da estupidez

lingüística alcançará aquele patamar de estabilidade que permitirá ao sujeito

não compreender nada e julgar tudo. O verbalista e o analfabeto funcional

ainda têm uma fresta de insegurança, por onde pode entrar um raio de luz. A

instrução universitária veda o buraco e encerra o sujeito numa escuridão

perfeitamente segura.

Por isso são as pessoas instruídas as que mais têm dificuldade de atinar com a

diferença que mencionei. Para essas, não há verdade e mentira, fato e ficção,

lógica e nonsense. Há apenas “posições políticas” -- a delas e a dos outros. Na

verdade não há nem isso, porque uma opinião política própria é conhecida

instantaneamente pelo sujeito no simples ato de inventá-la, ao passo que a

alheia requer atenção, estudo e objetividade, inacessíveis por definição a essas

Page 162: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

162

criaturas. Então, para elas, só existe uma coisa: sua própria posição política, da

qual a adversária não é senão a inversão projetiva, produto totalmente

imaginário. Daí a facilidade com que enxergam a unidade de uma conspiração

adversa por trás dos produtos mais díspares e heterogêneos da inventividade

ideológica humana, compondo com eles o desenho de um inimigo impossível

que é ao mesmo tempo liberal e conservador, saudosista da Idade Média e

democrata burguês, católico e maçom, sionista e nazista. Que esse inimigo não

possa existir no mundo real, pouco lhes importa: se deixassem de acreditar na

existência dele, veriam que sua própria existência é fantasmal e ilusória.

História marxista é charlatanismo

O Globo, 27 de maio de 2002

Com honrosas e inevitáveis exceções, a historiografia disponível no mercado

livreiro nacional é de orientação predominantemente marxista ou filomarxista.

Por isso nossa visão da História é estereotipada e falsa ao ponto de confundir-

se com a ficção e a propaganda. A História que os brasileiros aprendem nas

escolas e nos livros é uma História para cabos eleitorais.

É que ninguém pode ser marxista também sem ler tudo com suspicácia

paranóica em busca de motivações políticas ocultas, e abster-se, por princípio,

de fazer o mesmo com aquilo que se escreve. Com a maior naturalidade um

marxista escarafunchará o “discurso do poder” nas entrelinhas dos autores

mais apolíticos e devotados à pura ciência, ao mesmo tempo que se recusará a

examinar a presença do mesmo elemento em tipos que, como ele, estão

ostensivamente empenhados na luta pelo poder.

Para o marxista, a História, por definição, não é ciência descritiva ou

explicativa, mas arma de luta por um objetivo bem determinado. “Não se trata

de interpretar o mundo, mas de transformá-lo.” O passado não tem pois aí

nenhum direito próprio à existência, senão como pretexto para o futuro que se

tem em vista. Daí que deformá-lo seja, para o historiador marxista, um direito e

até um dever.

Marxismo, em suma, é inconsciência sistematizada.

E note-se que estou falando do marxismo melhorzinho, intelectualmente

“respeitável”. Decerto não é esse tipo de marxismo que se pratica

majoritariamente, no Brasil ou fora: é um marxismo de “agitprop”, que busca

antes o escândalo das denúncias anticapitalistas do que o conhecimento

histórico mesmo num sentido longínquo e metafórico do termo.

Um exemplo é esse desprezível “Genocídio americano — A Guerra do

Paraguai”, de Júlio J. Chiavenato, que consagrou por vinte anos o mito

comunista de uma luta genocida a serviço do banco Rothschild, até ser

Page 163: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

163

completamente destroçado por Francisco Fernando Monteoliva Doratioto no

recém-publicado “Maldita guerra — Nova história da Guerra do Paraguai”.

Mesmo em obras de pura consulta o charlatanismo marxista não deixa de

introduzir as mais escabrosas falsificações. Já denunciei aqui um grotesco

“Dicionário crítico do pensamento de direita”, obra de 114 sumidades

acadêmicas, que excluía sistematicamente todos os pensadores direitistas

mais célebres — de T. S. Eliot a von Mises, de Böhm-Bawerk a Irving Kristol e

Russel Kirk — colocando em lugar deles grosseiros panfletários nazistas como

Goebbels e Streicher, para dar a impressão de que direitistas não pensam e,

quando pensam, é para premeditar crimes hediondos.

Mas o caso mais escandaloso, pelo volume e pelas ambições, é o “Livro negro

do capitalismo”, preparado às pressas por uma equipe de historiadores

filocomunistas para neutralizar o vexame do “Livro negro do comunismo”.

Neste último, um grupo de marxistas arrependidos, com Stéphane Courtois à

frente, fazia as contas e confessava que, com seu total mínimo de cem milhões

de vítimas, o comunismo tinha sido o maior flagelo de todos os tempos,

superando os efeitos somados de todas as guerras, epidemias e terremotos do

século mais violento da História.

Mais que depressa, a tropa esquerdista designou uma equipe de emergência,

com Gilles Perrault no comando, para transmutar o prejuízo em lucro. Missão:

produzir a ferro e fogo cem milhões de vítimas do capitalismo, de modo a

estabelecer, na impossibilidade do resgate da imagem comunista, ao menos

um arremedo de equivalência moral entre os dois regimes.

É verdade que países capitalistas se meteram em guerras e mataram pessoas.

Mas uma coisa é matar inimigos em guerra, outra coisa é um Estado dizimar

sua própria população civil. O total de cem milhões de vítimas apontado por

Stéphane Courtois excluía, por princípio, soldados mortos em campo de

batalha, atendo-se ao genocídio praticado pelos comunistas contra populações

desarmadas, quase sempre nos seus próprios países. Nada de semelhante

podia-se encontrar nas nações capitalistas, exceto mediante o expediente de

chamar “capitalistas” o regime nacional-socialista ou o feudalismo da China

imperial. Perrault e assessores não hesitaram em fazer isso, mas ainda assim

os números ficavam muito abaixo do desejado. Era preciso, pois, falsear mais

fundo, incluindo na soma das “vítimas do capitalismo” os combatentes mortos

em batalhas. Mas mesmo então o capitalismo saía bonito. Os EUA, por

exemplo, em todas as intervenções militares em que se meteram ao longo de

um século, não mataram mais de dois milhões de inimigos, uma quota bem

modesta para um país que se pretendia carimbar como a mais agressiva

potência imperialista de todos os tempos.

Perrault e sua turma, por fim, salvaram-se da encrenca mediante a decisão

cínica de atribuir ao capitalismo a culpa por todas as mortes ocorridas na II

Page 164: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

164

Guerra Mundial (50 milhões no total, incluindo as efetuadas pelas tropas

nazistas e soviéticas), na guerra civil da Rússia (6 milhões, incluindo a metade

liquidada pelo governo revolucionário), na guerra do Vietnã (2 milhões,

incluindo as vítimas dos vietcongues), na guerra na Argélia (um milhão e

duzentas mil, incluindo as que foram mortas pelos rebeldes comunistas), na

guerra civil espanhola (700 mil mortos dos dois lados) e — santa misericórdia!

— no massacre de Ruanda (500 mil mortos, todos eles sacrificados pela

incitação igualitarista dos “pobres” hutus contra os “ricos” tutsis).

E assim por diante.

Resultado: debitando-se na conta capitalista os crimes cometidos pelos

comunistas, o capitalismo se revelava mesmo um regime tão violento e

maldoso quanto o comunismo, ficando assim estabelecida a equivalência

moral, quod erat demonstrandum.

Será que chamar isso de vigarice, de intrujice barata, de propaganda

enganosa, é apenas uma “opinião política”, tão discutível e moralmente relativa

quanto sua contrária? Ou é uma questão de moralidade elementar?

Mas se o leitor pensa que alguns dos protagonistas dessas façanhas sente ao

menos um pouco de vergonha do que fez, está muito enganado. Todos têm a

consciência tranqüila de trabalhar pelo bem e pela verdade. Se lhes atiramos

na cara a iniqüidade de seus feitos, eles nos viram as costas com a altivez

principesca de quem não dá atenção a qualquer um, muito menos a (vade

retro!) anticomunistas.

Mais ainda, com a mesma cara-de-pau com que deformam o conjunto eles

mentem nos detalhes. Logo atrás do sucesso de Perrault aparecia o dr. Emir

Sader, nas orelhas de um livro de Alain Besançon, falsificando com a maior

sem-cerimônia o conteúdo da obra: se no corpo do texto o autor afirmava que

os crimes nazistas eram muito mais alardeados pela mídia do que os

comunistas, o homúnculo das orelhas, mentindo duplamente, nos fatos e na

fonte, invertia a informação, alegando que todos só queriam falar do

comunismo e nunca do nazismo...

Será exagero dizer que a falsa consciência levada a esse ponto é uma forma

de sociopatia?

O comunismo depois do fim

Jornal da Tarde, 06 de junho de 2002

Imagine que, finda a II Guerra Mundial, morto o Führer nas profundezas do seu

bunker, restaurada a democracia na Alemanha, um consenso tácito universal

decidisse que os crimes de guerra nazistas não deveriam ser investigados nem

punidos, que o Partido Nazista continuaria na legalidade sob deminações

Page 165: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

165

diversas, que uma boa parte dos campos de concentração deveria continuar

funcionando ao menos discretamente, que ninguém na Gestapo ou nas SS

seria demitido ou interrogado e que alguns bons funcionários dessas lindas

instituições deveriam ser mesmo postos no comando da nação.

Nessas condições, você acreditaria em "fim do nazismo"? Ou antes perceberia

aí um imenso "upgrade" desse movimento satânico, despido de sua aparência

mais óbvia e comprometedora, sutilizado e disseminado no ar como um vírus

para contaminar toda a humanidade?

Você acreditaria em "fim do nazismo" se, preservados os meios desubsistência

e expansão desse movimento, a mídia internacional e a opiniãoelegante

decretassem instantaneamente a mais drástica repressão moral a todo

antinazismo explícito, acusando de paranóico e antidemocrático quem

ousasseespecular, mesmo de longe, sobre os riscos de um retorno do regime

nazistasob outro nome?

Você acreditaria em "fim do nazismo" se, decorrido meio século desua

pretensa extinção, toda tentativa de investigar e divulgar a extensãodos seus

crimes fosse condenada publicamente como uma inconveniência, um pecado,

um maldoso revanchismo?

Você acreditaria em "fim do nazismo" se, na Alemanha e fora dela, qualquer

crítica mais pesada aos que em outras épocas fizeram a apologia desse regime

genocida fosse banida e perseguida como um delito ou no mínimo como um

sinal de patologia mental?

Você acreditaria em "fim do nazismo" se por toda parte os que fizeram

propaganda nazista fossem paparicados e homenageados não só como

grandes figuras da vida intelectual e artística mas como defensores da

liberdade e dos direitos humanos?

Você acreditaria em "fim do nazismo" se notórios militantes pró-nazistas

estivessem subindo ao poder por via eleitoral em várias nações do Terceiro

Mundo, enquanto em outras espoucassem guerrilhas, revoluções e golpes de

Estado inspirados na pregação nazista?

Você acreditaria em "fim do nazismo" se as nações que supostamente o

venceram estivessem cercadas por uma campanha de ódio internacional

apoiada por partidos e organizações nazistas?

Você acreditaria em "fim do nazismo" se todos os que se auto-rotulassem "ex"-

nazistas fizessem apenas críticas muito vagas e genéricas ao regime de Hitler,

mudando de assunto rapidamente, mas em contrapartida continuassem

atacando o antinazismo como o pior dos males?

Pois então, santa misericórdia, por que acredita em "fim do comunismo"? O

movimento comunista internacional não foi desmantelado, nem debilitado, nem

mesmo acusado do que quer que fosse. Na Rússia o Partido Comunista

conserva um bom número de cadeiras no parlamento, a KGB (com nome

Page 166: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

166

trocado pela milésima vez desde Lênin) continua funcionando a pleno vapor

com verbas superiores às de todos os serviços secretos ocidentais somados, o

Gulag continua repleto de prisioneiros. Na China, no Vietnã, na Coréia do Norte

e em Cuba um bilhão e quatrocentos milhões de pessoas vivem ainda sob

o Estado policial comunista que, a cada nova promessa de liberalização feita

para seduzir investidores estrangeiros, mais aperta as engrenagens da

repressão e estrangula qualquer veleidade de oposição organizada. Na

América Latina e na África, novos regimes comunistas ou pró-comunistas

surgem e,

diante dos olhos complacentes da mídia internacional, demantelam pela

violência ou pela chicana todas as oposições, demolem as garantias de

liberdade individual e o direito de propriedade e fomentam guerrilhas e

revoluções nos países vizinhos, com o apoio das redes de tráfico de

entorpecentes montadas pela KGB e pela espionagem chinesa desde os anos

60, hoje crescidas ao ponto de controlar a economia de países inteiros. Nas

nações capitalistas supostamente triunfantes, slogans, valores e critérios da

"revolução cultural" marxista dos anos 60 se impõem oficialmente nas escolas

e nos lares como um dogmatismo inquestionável, ao mesmo tempo que um

lobby comunista de dimensões tricontinentais controla rigidamente o fluxo do

noticiário nos principais jornais e canais de TV, e nas universidades a ortodoxia

marxista consegue calar pela intimidação e pela chantagem as poucas vozes

discordantes.

Como, em sã consciência, alguém que saiba dessas coisas pode afirmar que o

comunismo acabou ou que ele não representa mais perigo algum?

Do marxismo cultural

O Globo, 8 de junho de 2002

Segundo o marxismo clássico, os proletários eram inimigos naturais do

capitalismo. Lênin acrescentou a isso a idéia de que o imperialismo era fruto da

luta capitalista para a conquista de novos mercados. Conclusão inevitável: os

proletários eram também inimigos do imperialismo e se recusariam a servi-lo

num conflito imperialista generalizado. Mais apegados a seus interesses de

classe que aos de seus patrões imperialistas, fugiriam ao recrutamento ou

usariam de suas armas para derrubar o capitalismo em vez de lutar contra seus

companheiros proletários das nações vizinhas.

Em 1914, esse silogismo parecia a todos os intelectuais marxistas coisa líquida

e certa. Qual não foi sua surpresa, portanto, quando o proletariado aderiu à

pregação patriótica, alistando-se em massa e lutando bravamente nos campos

de batalha pelos “interesses imperialistas”!

Page 167: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

167

O estupor geral encontrou um breve alívio no sucesso bolchevique de 1917,

mas logo em seguida veio a se agravar em pânico e depressão quando, em

vez de se expandir para os países capitalistas desenvolvidos, como o previam

os manuais, a revolução foi sufocada pela hostilidade geral do proletariado.

Diante de fatos de tal magnitude, um cérebro normal pensaria, desde logo, em

corrigir a teoria. Talvez os interesses do proletariado não fossem tão

antagônicos aos dos capitalistas quanto Marx e Lênin diziam.

Mas um cérebro marxista nunca é normal. O filósofo húngaro Gyorgy Lukacs,

por exemplo, achava a coisa mais natural do mundo repartir sua mulher com

algum interessado. Pensando com essa cabeça, chegou à conclusão de que

quem estava errado não era a teoria: eram os proletários. Esses idiotas não

sabiam enxergar seus “interesses reais” e serviam alegremente a seus

inimigos. Estavam doidos. Normal era Gyorgy Lukács. Cabia a este, portanto, a

alta missão de descobrir quem havia produzido a insanidade proletária. Hábil

detetive, logo descobriu o culpado: era a cultura ocidental. A mistura de

profetismo judaico-cristão, direito romano e filosofia grega era uma poção

infernal fabricada pelos burgueses para iludir os proletários. Levado ao

desespero por tão angustiante descoberta, o filósofo exclamou: “Quem nos

salvará da cultura ocidental?”

A resposta não demorou a surgir. Felix Weil, outra cabeça notável, achava

muito lógico usar o dinheiro que seu pai acumulara no comércio de cereais

como um instrumento para destruir, junto com sua própria fortuna doméstica, a

de todos os demais burgueses. Com esse dinheiro ele fundou o que veio a se

chamar “Escola de Frankfurt”: um “think tank” marxista que, abandonando as

ilusões de um levante universal dos proletários, passou a dedicar-se ao único

empreendimento viável que restava: destruir a cultura ocidental. Na Itália, o

fundador do Partido Comunista, Antônio Gramsci, fôra levado a conclusão

semelhante ao ver o operiado trair o internacionalismo revolucionário, aderindo

em massa à variante ultranacionalista de socialismo inventada pelo renegado

Benito Mussolini. Na verdade os próprios soviéticos já não acreditavam mais

em proletariado: Stálin recomendava que os partidos comunistas ocidentais

recrutassem, antes de tudo, milionários, intelectuais e celebridades do “show

business”. Desmentido pelos fatos, o marxismo iria à forra por meio da auto-

inversão: em vez de transformar a condição social para mudar as

mentalidades, iria mudar as mentalidades para transformar a condição social.

Foi a primeira teoria do mundo que professou demonstrar sua veracidade pela

prova do contrário do que dizia.

Os instrumentos para isso foram logo aparecendo. Gramsci descobriu a

“revolução cultural”, que reformaria o “senso comum” da humanidade, levando-

a a enxergar no martírio dos santos católicos uma sórdida manobra publicitária

capitalista, e faria dos intelectuais, em vez dos proletários, a classe

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168

revolucionária eleita. Já os homens de Frankfurt, especialmente Horkheimer,

Adorno e Marcuse, tiveram a idéia de misturar Freud e Marx, concluindo que a

cultura ocidental era uma doença, que todo mundo educado nela sofria de

“personalidade autoritária”, que a população ocidental deveria ser reduzida à

condição de paciente de hospício e submetida a uma “psicoterapia coletiva”.

Estava portanto inaugurada, depois do marxismo clássico, do marxismo

soviético e do marxismo revisionista de Eduard Bernstein (o primeiro tucano), a

quarta modalidade de marxismo: o marxismo cultural. Como não falava em

revolução proletária nem pregava abertamente nenhuma truculência, a nova

escola foi bem aceita nos meios encarregados de defender a cultura ocidental

que ela professava destruir.

Expulsos da Alemanha pela concorrência desleal do nazismo, os frankfurtianos

encontraram nos EUA a atmosfera de liberdade ideal para a destruição da

sociedade que os acolhera. Empenharam-se então em demonstrar que a

democracia para a qual fugiram era igualzinha ao fascismo que os pusera em

fuga. Denominaram sua filosofia de “teoria crítica” porque se abstinha de

propor qualquer remédio para os males do mundo e buscava apenas destruir:

destruir a cultura, destruir a confiança entre as pessoas e os grupos, destruir a

fé religiosa, destruir a linguagem, destruir a capacidade lógica, espalhar por

toda parte uma atmosfera de suspeita, confusão e ódio. Uma vez atingido esse

objetivo, alegavam que a suspeita, a confusão e o ódio eram a prova da

maldade do capitalismo.

Da França, a escola recebeu a ajuda inestimável do método

“desconstrucionista”, um charlatanismo acadêmico que permite impugnar todos

os produtos da inteligência humana como truques maldosos com que os

machos brancos oprimem mulheres, negros, gays e tutti quanti, incluindo

animais domésticos e plantas.

A contribuição local americana foi a invenção da ditadura lingüística do

“politicamente correto”.

Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante

nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do

Ocidente. Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo de “marxismo”, são

imbecilmente aceitos como valores culturais supra-ideológicos pelas classes

empresariais e eclesiásticas cuja destruição é o seu único e incontornável

objetivo. Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de

teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais das

vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a

virulência do seu conteúdo calunioso e perverso.

Tão vasta foi a propagação dessa influência, que por toda parte a idéia antiga

de tolerância já se converteu na “tolerância libertadora” proposta por Marcuse:

“Toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita”. Aí

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169

aqueles que vetam e boicotam a difusão de idéias que os desagradam não

sentem estar praticando censura: acham-se primores de tolerância

democrática.

Por meio do marxismo cultural, toda a cultura transformou-se numa máquina de

guerra contra si mesma, não sobrando espaço para mais nada.

Almas Escravas

Jornal da Tarde, 04 de julho de 2002

A escravidão psíquica jamais é reconhecida como tal pelo escravo.

Reconhecê-la seria pensá-la, expô-la como objeto ante os olhos da mente e,

portanto, libertar-se no mesmo instante. A objetivação é impossível para a alma

escrava, que se identifica com os desejos autodestrutivos injetados nela pelo

escravizador a ponto de tomá-los como seus próprios e personalíssimos,

rejeitando como insultuosa qualquer sugestão de desapegar-se deles por um

momento para examiná-los com alguma distância e frieza. Essa recusa

obstinada é inerente ao processo mesmo da escravidão mental e baseia-se

num motivo psicológico fortíssimo: a defesa inconsciente contra o temor da

humilhação. Não há, de fato, humilhação maior que a de tombar do alto de uma

ilusão lisonjeira, e nada mais lisonjeiro, numa época de igualitarismo e ódio a

todo princípio hierárquico, do que imaginar-se livre e autônomo. Assim, o

orgulho mesmo que a vítima tem da sua liberdade reforça as grades da sua

prisão invisível.

Não pensem que eu esteja falando de processos obscuros, nebulosos e

complexos. O uso de técnicas de escravização psíquica é rotina nos

movimentos revolucionários e totalitários desde a década de 30. Bastaria talvez

um pouco de estudo para livrar-nos de sua influência. Os livros sobre o assunto

são abundantes, desde os clássicos de Pavlov e Léon Festinger até o

notabilíssimo Machiavel Pédagoguez de Pascal Bernardin. Mas, precisamente,

esse estudo requer do sujeito a humildade preliminar de reconhecer-se

vulnerável a manipulações. E quem, desde a Revolução Francesa, está

disposto a admitir que em sua alma, como na de todo ser humano, há um

instinto de submissão? Outrora esse instinto encontrava satisfação ritual na

devoção religiosa, que, ao espiritualizá-lo, o tornava inofensivo.

Hoje em dia, quanto menos reconhecido, mais facilmente pode ser manipulado

desde fora. Por isso mesmo a era da democracia tornou-se a era da

escravização mental. Ninguém é mais sujeito à escravidão do que aquele que

acredita que a liberdade é seu estado natural, inseparável dele como sua

herança genética. Daí que a escravidão só possa ser reconhecida desde fora,

pelo observador que, consternado, vai notando o empobrecimento vital da

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vítima, o estreitamento do horizonte de suas possibilidades de ação, a

progressiva transferência do seu centro decisório consciente para o

automatismo de uma lógica estranha e hostil que o leva à autodestruição.

Nada mais nítido, hoje em dia, do que a ação desse mecanismo na alma

daquelas lideranças políticas e empresariais que, quanto mais se prosternam

ante as exigências do esquerdismo triunfante, mais são rotuladas "de direita"

por uma esquerda assim investida do poder de criar, a seu bel-prazer, a direita

que mais lhe convenha.

A docilidade instantânea com que essas criaturas macaqueiam qualquer novo

cacoete verbal da esquerda, a presteza de sua adesão ilusoriamente esperta e

oportunista a qualquer nova corrente de força injetada no psiquismo social por

uma estratégia revolucionária cujos contornos gerais lhes escapam por

completo - tais são, inequivocamente, sinais alarmantes de enfraquecimento

vital, de passividade crescente, de perda de toda capacidade de iniciativa.

Sinais, diria Nietzsche, do desejo de morrer.

Nem falemos, por obviedade excessiva, do tal sr. Alencar. Quando, meses

atrás, assinalei que Roseana Sarney, na qual muitos viam uma pujante

liderança liberal-conservadora emergente, não passava de uma escrava mental

do esquerdismo, quantos não vieram me dizer que era exagero, paranóia,

hiperbolismo conjetural? Pois agora está aí: a ex-futura-candidata do PFL vai

aderindo velozmente à campanha de Lula, num ritual de auto-sacrifício

masoquista que já se oferece para suportar, com estóica resignação, todas as

esnobações inevitáveis, em troca de não sei que migalhas imaginárias.

Tal é a "direita" que temos - a direita com que a esquerda sempre sonhou, a

direita que, a rigor, a esquerda mesma criou para seu próprio uso e deleite.

Uma direita de pragmatistas estreitos, suicidariamente orgulhosos do

praticismo terra-a-terra que só os desarma e os torna escravos de qualquer

estratégia que transcenda seu horizonte de visão intelectual.

"Hegemonia", no fim das contas, é precisamente isso: domínio do espaço

aéreo, visão abrangente daquilo que o adversário não enxerga.

Psicologia do fanatismo

Jornal da Tarde, 21 de novembro de 2002

Victor Frankl descrevia o fanático por dois traços essenciais: a absorção da

individualidade na ideologia coletiva e o desprezo pela individualidade alheia.

"Individualidade" é a combinação singular de fatores que faz de cada ser

humano um exemplar único e insubstituível. Há individualidades mais e menos

diferenciadas. Quanto mais diferenciadas, menos podem ser reduzidas a

tipicidades gerais e mais requerem a intuição compreensiva da sua fórmula

Page 171: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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pessoal. Isto se observa, mais nitidamente, na obra dos grandes artistas e

filósofos, para não falar dos santos e profetas.. É só de maneira parcial e

deficiente que a personalidade criadora se enquadra em categorias gerais

como "estilo de época", "ideologia de classe", etc., que os cientistas sociais

inventaram para falar de médias humanas indistintas, mas que o estudioso

medíocre insiste em aplicar como camisas-de-força a tudo o que vá além da

média.

Nessa insistência já se manifesta, em forma disfarçada e socialmente

prestigiosa, o fanatismo definido por Frankl. Boa parte da "ciência social" de

hoje não é senão o recorte das individualidades segundo a medida da

mediocridade-padrão. Antonio Gramsci, que limitava o papel dos seres

humanos ao de agentes ou pacientes da luta de classes -- excluindo os

incatalogáveis como aberrações ou como resíduos arqueológicos de etapas

anteriores da mesma luta --, foi, nesse sentido, um gênio da mediocridade e um

codificador-mor do fanatismo. A palavra "fanático", aplicada ao fundador do

PCI, parecerá insultuosa e inaceitável aos que, como bons medíocres, só

entendem "fanatismo" na acepção vulgar e quantitativa da exaltação frenética.

O verdadeiro fanatismo, ao contrário, é inteiramente compatível com a

serenidade do tom e enverga, não raro, convincentes sinais de "moderação". O

fanático não precisa ser irritadiço, nervoso ou hidrófobo. Apenas, ele está tão

afinado com a ideologia coletiva que ela basta como canal para a expressão de

seus sentimentos, vivências e aspirações, sem nada sobrar daquele hiato,

daquele abismo que o homem diferenciado vê abrir-se, com freqüência, entre

seu mundo interior e o universo em torno. Ele pensa e sente com o partido,

ama e odeia com o partido, quer com o partido e age com o partido. Tudo o

que no seu ser escape dessa bitola é desimportante ou doente. Nossa época e

nosso país acrescentaram a isso um trejeito grotesco que assinala a última

rendição da alma: o militante enxerta a sigla da agremiação no seu nome de

batismo, tornando-se "Joãozinho do PT", "Mariazinha do PT". Nem o velho

Partidão chegou a tanto. A filiação partidária já não é a simples aprovação

crítica e condicional que a personalidade autônoma dá a certas idéias políticas:

tornou-se o fator estruturante e a essência vivificadora da personalidade

mesma, que sem ela tombaria como um saco vazio. A função nomeante e

definidora, antes reservada às famílias, às profissões e às regiões, cabe agora

ao partido.

Ao mesmo tempo; a filiação dá ao fanático uma localização e um ponto de

apoio no espaço externo: pela ideologia coletiva ele se integra tão bem no

mundo, que nunca se sente isolado e estranho senão pelo curto intervalo de

tempo necessário a reconquistar o sentido da sua missão partidária e de seu

lugar na História, jogando fora com desprezo o momento de "morbidez".

Jamais deslocado neste mundo, ele não aspira a nenhum transmundo senão

Page 172: Seleção de Artigos - Olavo de Carvalho

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sob a forma de um futuro cronológico a ser realizado neste mesmo plano de

existência. Nada o arraiga mais profundamente na temporalidade, no histórico,

do que sua rejeição do presente, contra o qual ele brada: "Um outro mundo é

possível", querendo dizer, precisamente, que se trata deste mesmo mundo, tão

logo subjugado pelo seu partido. Kant, com ironia involuntária, denominava o

espírito da Revolução "sabedoria mundana". A compressão do infinito no finito

não poderia ser mais explícita do que no verso do poeta comunista Paul

Éluard: "Há outros mundos, mas estão neste." Não poderia? Poderia. Gramsci

já apregoava "a total mundanização do pensamento". O fanático, nesse

sentido, é desprovido daquela solidão, daquela profundidade, daquela

tridimensionalidade próprias dos que "estão no mundo, mas não são do

mundo". Ele, ao contrário, pode "não estar" no mundo, mas, com toda a

intensidade do seu ser, "é" do mundo.

Num próximo artigo mostrarei como isso torna o fanático incapaz de perceber a

individualidade alheia.

Ainda o fanatismo

Jornal da Tarde, 05 de dezembro de 2002

O segundo traço da personalidade fanática, assinalado por Victor Frankl, é o

desprezo pela individualidade alheia.

A estrutura da individualidade manifesta-se antes de tudo como hierarquia de

metas vitais, diversa em cada ser humano. O que é essencial para um é

secundário para outro. Mas todas as metas refletem, de algum modo, algum

valor universal, que pode ser reconhecido e apreciado por quem não as

compartilhe. Não quero necessariamente para mim o que você quer para você,

mas reconheço que querê-lo é bom para você. O homem que deseja a riqueza

aprecia o que busca o conhecimento, este respeita o que busca a perfeição

artística, a felicidade no casamento, o sucesso político, etc. Um mesmo homem

pode, de modo simultâneo ou sucessivo, perseguir objetivos diversos, cada um

deles traduzindo, na situação do momento, os mesmos valores de base. Para o

fanático, só há um objetivo autêntico: as metas do seu partido ou seita. As

outras nada valem em si mesmas, tornando-se boas ou más conforme se

ajustem ou se afastem daquelas. Digamos, por exemplo, a caridade. Para

quem a cultue, ela é, por si, a meta, o valor e o critério supremo das ações.

Para o esquerdista fanático, ela é um símbolo inócuo, que adquire valor

positivo ou negativo conforme seu uso político. Num momento pode ser

condenada como ilusão individualista burguesa, noutro enaltecida como virtude

máxima do cidadão, conforme apareça como alternativa autônoma ou como

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prática social integrada na estratégia de esquerda, como aconteceu com a

"campanha do Betinho".

Se, no entanto, você insiste em reafirmar seus próprios critérios,

independentemente do serviço ou desserviço que prestem às metas políticas

que ele tem em vista, o fanático tem de ignorar você como irrelavante ou

enquadrá-lo como inimigo. Reconhecer seus objetivos vitais como

independentes, ah!, isto não. Nunca. Esse reconhecimento equivaleria a fazer

do sacrossanto ideal político que ele cultua um simples valor vital entre outros,

e isto é precisamente o que ele não pode admitir de jeito nenhum. Daí que ele

seja incapaz de compreender os outros nos próprios termos deles. Ele tem de

traduzi-los na linguagem do seu próprio ideal, isto é, reduzi-los a amigos ou

inimigos do partido, e julgá-los em função disso, por menos que caibam nesse

molde pré-fabricado.

Eric Voegelin, quando jovem, não era a favor nem contra o racismo. Era a favor

da ciência histórica. Estudou a história da ideologia racista e, tendo concluído

que ela não tinha nada a ver com a realidade biológica das raças, publicou

essa conclusão num livro. Mas, para os nazistas, a ciência histórica não era um

critério autônomo admissível. A história tinha de ser a favor do partido ou

contra ele. No dia seguinte, a Gestapo estava no encalço de Eric Voegelin.

Boris Pasternak não era a favor nem contra o socialismo. Era a favor da boa

poesia lírica, da expressão genuína dos sentimentos humanos. Mas, para o

fanático socialista, isso não vale como critério autônomo. A poesia lírica, se não

serve ao socialismo, serve aos inimigos do socialismo. Pasternak foi

condenado à prisão como inimigo do Estado soviético.

O que o fanático nega aos demais seres humanos é o direito de definir-se nos

seus próprios termos, de explicar-se segundo suas próprias categorias. Só

valem os termos dele, as categorias do pensamento partidário. Para ele, em

suma, você não existe como indivíduo real e independente. Só existe como

tipo: "amigo" ou "inimigo". Uma vez definido como "inimigo", você se torna, para

todos os fins, idêntico e indiscernível de todos os demais "inimigos", por mais

estranhos e repelentes que você próprio os julgue. Eu, por exemplo, já fui

catalogado pelos esquerdistas como parceiro ideológico do sr. Lyndon

LaRouche, que por sua vez me considera um porta-voz de tudo o que ele

abomina. Haverá como explicar a ele ou a eles que não tenho nada a ver com

isso?

As intenções pessoais da vítima, aí, desaparecem por completo. Se, por

exemplo, você é contra o socialismo por motivos morais e filosóficos que nada

têm a ver com o interesse das "classes dominantes" que o socialista diz

combater, pouco importa: para ele, você é um ideólogo das classes

dominantes. E, se você responde que o que está em jogo para você é algo de

completamente diverso, ele nem lhe dá ouvidos: você já está catalogado, e

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catalogá-lo é o máximo de gentileza que ele pode conceder a alguém que, aos

olhos dele, só serve precisamente para isso.