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SEMEANDO SABERES ANCESTRAIS. NARRATIVAS SOBRE A CULTURA
AFRO-BRASILEIRA NO GRUPO DE CAPOEIRA ANGOLA SEMENTES DO
SERTÃO – UM ESTUDO DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA.
Denise de Almeida Oliveira
Resumo: Esse trabalho busca demonstrar as potencialidades da Capoeira Angola
enquanto espaço de mobilização da consciência histórica acerca da história do Brasil e
dos povos afrodescendentes, tendo como o núcleo de pesquisa o Grupo de Capoeira
Angola Sementes do Sertão, sob liderança do Treinel Lupião, que desenvolve atividades
no Campus da Universidade Estadual de Feira de Santana desde 2013.
PALAVRAS-CHAVE: Didática da História, Consciência Histórica, Capoeira Angola.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho investiga as formas de mobilização da “consciência histórica”, no
“Grupo de Capoeira Angola Sementes do Sertão”, que desenvolve atividades na
Universidade Estadual de Feira de Santana (BA) desde 2013 e se insere no campo de
estudo da Didática da História, que ocupa os espaços de transmissão de conhecimento
histórico que estimule essa consciência dos participantes.
O grupo de Capoeira Angola Sementes do Sertão sob a liderança do Treinel
Lupião, começou a desenvolver atividades em uma sala concedida pela reitoria na
Universidade Estadual de Feira de Santana em 2013. Desde então, treinos acontecem
nas segundas e quartas e rodas de capoeira e samba na sextas. A escolha da
Universidade como espaço de transmissão desses saberes se deu por uma necessidade
imediata, pois a sede do grupo ainda está em construção. O ambiente onde esse ensino e
aprendizagem se inserem influencia diretamente no perfil dos participantes, maioria de
jovens entre vinte e trinta anos, que já fizeram ou fazem algum curso na Universidade.
Entre os objetivos desse trabalho, o mais destacado deles é trazer as percepções
que os participantes do Grupo de Capoeira Angola Sementes do Sertão têm em relação à
história, com ênfase na história do Brasil e da população afrodescendente, e de que
formas lidam com questões atuais que estão relacionadas com essa historicidade. O foco
é a compreensão da Capoeira Angola como o lócus privilegiado de narrativas que
mobilizam a conscientização histórica, através de uma educação não formal, que
influencia diretamente nos posicionamentos dos sujeitos participantes.
A Didática da História é um campo de estudo relacionado aos espaços de ensino
e aprendizagem da história, como os espaços escolares, mas que se amplia para além da
educação formal através da área que denominamos de ‘Usos Públicos da História’ ou
‘didática da história pública’, segundo Rafael Saddi, é aquela que se dedica aos
elementos extra científicos e extraescolares da consciência histórica. Ela atua na
investigação da consciência histórica produzida nos meios de comunicação de massa
(revistas, jornais, televisão, cinema, propagandas, sites), bem como nos discursos
políticos (a partir das produções narrativas dos partidos políticos, dos diferentes órgãos
do Estado) e também nas instituições culturais e religiosas (tais como igrejas de
diferentes tipos, institutos de culturas, museus etc)1
Jörn Rüsen compreende a consciência histórica, como “a suma das operações
mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de
seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua
vida prática no tempo”2. Trata-se de um processo da consciência em que as experiências
do tempo são interpretadas com relação às intenções do agir, e enquanto interpretadas,
inserem-se na determinação do sentido do mundo e na auto-interpretação do homem,
servindo de parâmetros de sua orientação no agir e no sofrer3, evitando, dessa forma,
que o ser humano, nesse processo de transformação, se perca nas mudanças do mundo e
de si próprio4.
Nesse sentido, consideramos a Capoeira e suas práticas como uma área propicia
para investigar e tentar perceber como a história é transmitida e apropriada pelos
sujeitos, logo, das formas da consciência histórica que ali são empreendidas. Trata-se de
um estudo de caso, de uma abordagem específica colocando no foco da análise o grupo
Capoeira Angola Sementes do Sertão.
1 Idem. 2 RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: fundamentos da ciência histórica. Tradução: Estevão de Resende
Martins. Brasília. Editora da Universidade de Brasília. 2001, p. 57. 3 Ibidem, p. 59. 4 Ibidem, p. 60.
O traçado metodológico do trabalho de investigação compreendeu: a revisão de
literatura sobre história da capoeira, interpretação de letras de músicas que fazem parte
do universo cultural da capoeira e do samba, a tabulação e leitura de questionário e a
análise do discurso a partir do Grupo focal e de entrevistas semiestruturadas.
Para efeito desta investigação consideramos que as cantigas da capoeira, assim
como toda a musicalidade da cultura popular, é um rico manancial de fontes históricas,
pois fornecem, segundo Waldeloir Rego, valiosos elementos para o estudo da vida
brasileira, em suas várias manifestações, os quais podem ser examinados sob o ponto de
vista linguístico, folclórico, etnográfico e sócio-histórico. As canções serão analisadas
do ponto de vista das narrativas históricas nelas contidas e como elas servem para
compreensão do passado para pensar questões do presente e influenciar ações futuras,
podendo servir como um elemento de mobilização da consciência histórica.
2. CAPOEIRA ANGOLA EM FEIRA DE SANTANA
A Capoeira Angola conhecida hoje em Feira de Santana tem como principal
expoente o Mestre Claudio, fundador do grupo Angoleiros do Sertão no começo da
década de 1980. O grupo que se estrutura ao longo da década de 80, com mais de 30
anos de tradição de trabalho com Capoeira Angola e samba de roda rural e já se
difundiu por diversos Estados do Brasil e países no mundo, sendo uma das grandes
referências de manifestação culturais do interior da Bahia.
Atualmente em Feira de Santana existem três grupos de capoeira angola:
Angoleiros do Sertão, Malungo Centro de Capoeira Angola e o Grupo de Capoeira
Angola Sementes do Sertão. Os dois últimos grupos são da linhagem do primeiro, tendo
o mestre Claudio como principal referência, mas possuem suas próprias dinâmicas, de
acordo com os direcionamentos dado pelas lideranças de cada grupo.
A transmissão de saberes presentes no universo da cultura popular, analisado por
Pedro Abib, no trabalho Capoeira Angola: Cultura popular e o jogo dos saberes na
roda, é pautada por uma lógica diferenciada, pressupondo práticas pedagógicas também
diferenciadas, baseadas em outra concepção de tempo, espaço, e de sociabilidade, que
priorizam outro tipo de relação entre o mestre e o aprendiz (educador e o educando), em
que as formas simbólicas da ritualidade e a ancestralidade têm papel fundamental.
Dessa maneira, nesse processo pedagógico privilegia-se outro sistema de valores, que
na maioria das vezes não são encontrados na educação formal instituída pela sociedade.
Compreendemos, dessa maneira, o grupo de Capoeira Angola como uma
instituição – calcada numa herança cultural africana que foi reelaborada no movimento
histórico da diáspora – que produz um pensamento e por consequência, um projeto
educativo. Segundo Silva5, essa educação diferenciada está relacionada com o termo
educação entre africanos, que é utilizado para “referir-se a conhecimentos, valores,
posturas ensinadas em estabelecimentos de ensino”, sendo possível ainda outra acepção,
mais ampla, para o termo educar-se, no sentido de tornar-se pessoa, aprender a conduzir
a própria vida. Nesse sentido, o processo de educação extrapola os limites da escola
moldada na perspectiva ocidental e se desenvolve nas relações estabelecidas entre
gerações, os gêneros, os grupos sociais e raciais6.
Esse projeto educativo empreendido pela Capoeira Angola, permite a
mobilização da consciência histórica, conceito abordado por Jörn Rüsen, como modo
pelo qual a relação dinâmica entre experiência do tempo e intenção no tempo se realiza
no processo da vida humana7. A consciência histórica permite o entendimento sobre
história de uma forma ativa, onde os sujeitos podem interpretar o passado para
compreender a conjuntura do presente e dar orientação prática para sua vida, enquanto
sujeitos ativos desse processo de transformação histórica.
3. CANTOS QUE CONTAM: NARRATIVAS ENTOADAS
Segundo o coordenador do Grupo de Capoeira Angola Sementes do Sertão,
Luciano Reis, ou Treinel Lupião,
“a Capoeira surge de uma demanda de liberdade, e no seu corpo de
informações que foram se amontoando ao longo do tempo, ela vem
desenhando tudo isso que aconteceu através dos seus rituais, das ladainhas,
dos corridos, dos sambas, da própria dinâmica ritualística e do propósito
dela” (...) as ladainhas assim como os corridos eles contam e mandam
mensagens e tem diversas ladainhas com diversas mensagens riquíssimas que
também de novo retomam toda essa questão do contexto histórico, da gente,
formação do povo brasileiro. (Treinel Lupião).
5 SILVA, 2003 apud SANTOS, 2004, p. 118. 6RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: fundamentos da ciência histórica. Tradução Estevão de Resende
Martins. Brasília. Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 58.
Do ponto de vista amplo, a cantiga de capoeira tanto pode ser o enaltecimento de
um capoeirista que se tornou herói pelas bravuras que fez quando em vida, como pode
narrar fatos da vida cotidiana, usos, costumes, episódios históricos, a vida e a sociedade
na época da colonização, o negro livre, o escravo na senzala, na praça e na comunidade
social. Louvam-se os mestres de capoeira e evocam-se as terras de África de onde
procederam8.
Essa retomada histórica através das letras das músicas no universo da cultura
popular, levando em consideração todo o aparato sensitivo da orquestra, do coro, da
entonação, do circulo energético da roda, faz com que a canção não seja apenas uma
simples narrativa histórica, mas uma forma profunda de se conectar com aquele período
ou aquela mensagem que está sendo passada, como pode explicitar melhor a Treinel
Muqueca:
Quando a gente ouve uma ladainha, um corrido, e a gente se emociona na
roda, eu acho que você retoma muito daquilo que você não viveu, mas que
você internaliza tal forma que você tá tão disponível naquele momento,
naquele ciclo e vivenciando aquela energia, que você sente coisas, que você
desperta para um choro, você chega arrepiar e você não sabe talvez
exatamente que seja mas eu acho que essa sintonia com tudo que existiu
(Treinel Muqueca – Sementes do Sertão)
Com o objetivo de fazer uma “retomada histórica” através dos cantos da
Capoeira, serão analisados a relação ancestral com a África, o tráfico negreiro, as
condições de vida dos escravizados, as formas de resistência, a relação com a
religiosidade, como eventos como a Guerra do Paraguai e a abolição da escravatura.
O corrido abaixo traz referências a dois países da África que tiveram grande
fluxo de escravização para o comércio transatlântico que traficavam africanos para o
Brasil
P: Eu vim de Guiné/ passei em Angola/ cheguei aqui agora/ quero vadiar
Angola/ quero vadiar Angola /quero vadiar Angola/ cheguei aqui agora/
quero vadiar Angola;
R: eu vim de Guiné/ passei em Angola/ cheguei aqui agora/ quero vadiar
Angola. (DP)
As estimativas em torno dos escravos traficados para o Brasil giram em torno de
três milhões e meio de africanos. Desses, a metade foi traficada ao longo dos séculos
XVI, XVII e XVIII, cabendo ao século XVIII um total aproximado de 1.700.000
8 REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico. Salvador. Editora Itapuã, 1968, p. 89-
90.
escravos. Nesse século, o Brasil é o destino das embarcações que saem de duas grandes
áreas fornecedoras: a costa ocidental (chamada da Mina) que para cá envia em tomo de
600 mil escravos, pra onde eram levados também escravizados de Guiné, e a costa
centro-ocidental (chamada Angola) que transporta, aproximadamente, 1.100.000
escravos9.
O próprio nome concebido historicamente, “Capoeira Angola”, faz menção a
essa relação com a cultura bantu angolana. De forma mais direta, a capoeira é
relacionada com dança ritualística da região sul de Angola, conhecida também como
Mufico, Efico ou Efundula, ou dança da zebra, como ficou conhecida no Brasil. É um
ritual que marca a passagem das meninas à vida adulta. No duelo entre os jogadores, o
vencedor da luta tem o direito de escolher sua noiva entre as meninas que participam do
ritual sem pagar dote. No N’golo, ou dança da zebra, dois jogadores tentam atingir o
rosto do adversário com o pé, sem utilizar de golpes com as mãos, o que condiz com os
objetivos do jogo da Capoeira10. A referência à dança da zebra é trazida na ladainha do
Treinel Lupião, “O nego não aceitou”:
O nego não aceitou, o nego não aceitou aiaiai/ passivo o cativeiro/ escravo
se rebelava/ fugia o tempo inteiro/ para formar o quilombo êêê,/ para formar
o quilombo aiaiai/ os escravos se ajuntou/ lá pra bem dentro do mato/ ora
meu deus/ bem longe do seu feitor/ lembrando da terra mãe/ das dores das
alegrias/ daquela luta da zebra aiaia/ para ter sua parceria/ quilombola fez
arma, êêê/ dentro da mandigaria/ criou Capoeira Angola/ decretou sua
alforria camaradinha. (Treinel Lupião - Grupo de Capoeira Angola
Sementes do Sertão).
Essas referências históricas trazidas pela ladainha buscam reafirmar elementos
de ligação histórica entre o continente africano e o Brasil, como também abordar sobre
os laços de solidariedade entre os negros escravizados que se aglutinavam, faziam
rebeliões, fugiam, construíam quilombos. Nesse contexto de resistência nasce a
Capoeira Angola como uma forma libertar o corpo e torná-lo uma arma contra o sistema
escravista opressor.
Há diversos cantos que tematizam sobre o sistema escravista, as dores os
lamentos, o banzo, como era chamada a doença da tristeza, como é abordada na
ladainha Cativeiro, do Mestre Marrom:
9 SOARES, Mariza de Carvalho. Descobrindo a Guiné no Brasil colonial. Revista IHGB, Rio de Janeiro,
161 (407) 71-94, abr./jun. 2000, p. 71. 10 YAHN, Carla Alves de Carvalho. Um canto de luta e liberdade ecoa na Capoeira Angola. II
Colóquio da Pós-Graduação em Letras. UNESP, p. 259-260.
Chora meu cativeiro/ Quanta tristeza me traz/ O meu pai falava sempre/ Não
esquecerei jamais/ O nego era transportado/ Pelo navio negreiro/ Com
promessa de trabalho/ De ganhar muito dinheiro/ Nego trabalha tanto/Só
recebia chicotada/ Foi ai que foram feitos/ Que vida amargurada/ O nego
trabalhava tanto/Morriam todos de doença/ Uma delas era o banzo/ A
doença da tristeza/ No dia 13 de maio/ Apareceu uma mulher/ Não libertou
todos os escravos/ Princesa Isabel/ Chora meu cativeiro/ Quanta tristeza
guardou/ O pai falava sempre/ Tudo aquilo que herdou/ Menino tome
cuidado/ Com a magia do saber/ Praticar a capoeira/ Pra poder se defender.
(Mestre Marrom - Associação de Capoeira Angola Mestre Marrom e
Alunos).
Banzo é o nome que se dá ao estado a que eram acometidos os negros africanos
em terras brasileiras. Uma espécie de tristeza profunda que se manifestava nos negros,
na sua condição de escravo, longe de sua terra natal. Um corpo escravo, quando em
banzo, apresentava-se meio intenso fastio, profundo silêncio, dores de uma liberdade
abortada, sofrimento continuado das asperezas com o que o tratavam11.
A ladainha que também aborda sobre a história da abolição, ao dizer que a
princesa Isabel não libertou “todos os escravos”, pois não os libertou de forma
completa, ficando estes a mercê de um sistema racista que os mantinha em condições
semelhantes de exploração. Outra ladainha, que traz críticas diretas à versão da história
de que abolição da escravatura aconteceu através da Lei Áurea, como um presente
concedido pela Princesa Isabel, é A história nos engana, do Mestre Moraes:
A história nos engana/ Diz tudo pelo contrário/ Até diz que a abolição/
Aconteceu no mês de maio/A prova dessa mentira/ É que da miséria eu não
saio/ Viva a vinte de novembro/ Momento pra se lembrar/ Não vejo em treze
de maio/ Nada pra comemorar/ Muitos tempos se passaram/ E o negro
sempre a lutar/ Zumbi é nosso herói/ Zumbi é nosso herói/ Colega velho/ Do
Palmares foi senhor/ Pela causa do homem negro/ Foi ele que mais lutou/
Apesar de toda luta / Colega velho/ Negro não se libertou. (Mestre Morares
– Grupo de Capoeira Angola Pelourinho).
Esse canto traz críticas diretas à comemoração da data da promulgação da Lei
Áurea e faz referência ao dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares,
maior liderança do Quilombo dos Palmares, grande símbolo da resistência negra. Em
2011 o Movimento Negro conseguiu garantir a data 20 de novembro como data
comemorativa do dia de Zumbi e da Consciência Negra, através da Lei n°12519/201112.
Relatos sobre o cotidiano dos escravizados também são resgatadas nas canções da
capoeira, ao falar sobre as formas de exploração e controle dos escravizados:
11 MARCASSA, Mariana Pedrosa. Sons de Banzo. PUC: São Paulo. 2016, p. 11. 12 BRASIL, LEI Nº 12519/11. É instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos: Brasília, 2011.
P: Trabaia nego, nego trabaia, nego trabaia no canaviá/ R: trabaia nego,
nego trabaia/ P: nego trabaia sem nada ganhá/ R: trabaia nego, nego
trabaia (DP).
P: Ói o nego, ói o nego, ói o nego meu sinhô/ R: Ói o nego, ói o nego, ói o
nego meu senhô/ P: Lá vai o nego/ R: Ói o nego sinhá/ P: Esse nego é
valente/ R: Ói o nego sinhá/ P: É de rebelião/ R: Ói o nego sinhá/ P:
Maltrata esse nego/ R: Ói o nego sinhá/ P: Conforme a razão/ R: Ói o nego
sinhá (DP).
P: Toca fogo no canaviá, quero vê o patrão de raiva se queimar/ R: toca
fogo no canaviá/ P: ô no canaviá, deixa queimar/ R: toca fogo no canaviá.
(DP).
O primeiro corrido descreve o trabalho dos escravos nos engenhos de açúcar,
produção que teve centralidade da economia brasileira durante mais de dois séculos; o
segundo traz uma narrativa do olhar do colonizador sobre os negros escravizados. Ao
cantar este corrido, como descreve a liderança do grupo Sementes do Sertão: “você
retoma (...), revive aquele momento histórico ali, casa grande, senzala, o escravo fujão,
o escravo capoeira, escravo de rebelião13”. O terceiro corrido aborda diretamente uma
ação direta de rebelião, de tocar fogo no canavial para se vingar do patrão.
Outra narrativa recorrente nos cantos é em relação à Guerra do Paraguai, por ter
tido a participação de um número considerável de escravos e negros livres de várias
regiões do Brasil, muito deles capoeiras. Os soldados baianos que conseguiram
sobreviver nas batalhas graças à capoeira eternizaram o valor de suas participações no
conflito através de músicas que se tornaram tradicionais na capoeira da Bahia, como
possivelmente “Paranaê”14:
P: Paraná ê, Paraná ê, Paraná/ R: Paraná ê, Paraná ê, Paraná/ P: Vou me
embora pra Bahia, Paraná, tão cedo não venho cá, Paraná/ R: Paraná ê,
Paraná ê, Paraná15 (DP).
Tava lá em casa/ Sem pensar, nem imaginar/ Quando ouvi bater na porta/
Capitão mandou chamar/ Pra ajudar a vencer/ A guerra do Paraguai (DP).
Sara Abreu, ao estudar as práticas pedagógicas voltadas para jovens e crianças
em Salvador, também traz o primeiro canto como análise e observa que essa cantiga
pode ser entendida como um exemplo de como eles (as) aprendem a valorizar a própria
identidade étnica, ao afirmar as nossas origens, referindo-se à Calunga para lembrar da
história do povo africano que foi trazido para o Brasil e fincou suas raízes em nossa
13 Entrevista Semi-estruturada com Treinel Lupião, liderança do Grupo de Capoeira Angola Sementes do
Sertão. 14 CUNHA, Pedro Figueiredo Alves da. Capoeiras e valentões na história de São Paulo (1830-1930).
USP: São Paulo, 2011, p. 126. 15 “Paraná” é referente ao rio Paraná, onde aconteceu importante batalha na Guerra do Paraguai.
formação cultural, sendo o preto aqui entendido como símbolo positivo de identificação
étnica16.
O segundo canto, além de afirmar a identidade do samba como “samba de preto
sim”, busca situar o lugar de fala, de ser samba de angoleiro, do grupo Sementes do
Sertão e que tem como referência maior da aprendizagem que Treinel Lupião teve com
o Mestre Claudio. A afirmação identitária pode ser percebida também na valorização de
aspectos relacionados com o modo de vida local do Sertão, da zona rural, dos vaqueiros,
da cultura sertaneja de um modo geral:
P: Sou eu Angoleiro que vem do sertão/ jaleco de couro e berimbau na mão/
R: sou eu angoleiro que vem do Sertão/ P: Que vem do Sertão tabaréu meu
irmão/ R: Sou eu angoleiro que vem do Sertão. (Mestre Claudio – Angoleiros
do Sertão)
P: panha lá vaqueiro, panha jaleco de couro, panha jaleco de couro, na
porteira do currá/ R: Panha lá vaqueiro, panha jaleco de couro/ P: panha
jaleco de couro, sinhozinho mandou buscar/ R: panha lá vaqueiro, panha
jaleco de couro. (DP)
Essa concepção sobre a história, enquanto uma necessidade de orientação
temporal pode ser lida através da ladainha abaixo:
Quem não conhece seu passado/ não protege seu futuro/ cada história
respeitada/ é um espaço seguro/ pra que nossa identidade não se perca no
futuro/ nossa história está ligada/ a um povo muito sofrido/ que aqui para o
Brasil/ foram arrastados e trazidos. (Mestre Jogo de Dentro - Grupo de
Capoeira Semente do Jogo de Angola).
Através da ladainha, a História é compreendida como uma necessidade de
manutenção da identidade afro-brasileira; da mesma maneira, Rüsen argumenta que o
sentido de uma história é medido pelo seu grau de êxito em estabilizar a identidade de
seus destinatários ao longo da mudança no tempo: “Assim como consolidação da
identidade consiste na ampliação do horizonte nas experiências do tempo e nas
intenções acerca do tempo, na qual os sujeitos agente se asseguram da permanência de
si mesmos na evolução do tempo”17.
4. OS GINGADOS DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
A compreensão da Capoeira Angola como um espaço propício ao estudo da
Didática da História para perceber as formas de mobilização da consciência histórica, a
16 MACHADO, Sara Abreu da Mata. Saberes e fazeres na capoeira angola: a autonomia no jogo de
muleekes. Salvador, 2012, p. 213. 17 Ibidem, p. 126.
partir da interpretação de dados e das narrativas nas quais os sujeitos elaboram a relação
passado-presente-futuro, correlacionado a questões políticas atuais, será abordada nesse
capítulo. Como já mencionado, o caso investigado é o Grupo de Capoeira Angola
Sementes do Sertão.
O levantamento de dados foi feito inicialmente a partir da aplicação de
questionários aos membros do Grupo Sementes do Sertão, tendo alcançado 70% dos
participantes. Em seguida, foram convidadas seis pessoas das 20 que responderam ao
questionário para participar do Grupo Focal (GF.), tendo sido respeitado em sua
composição a diversidade de gênero, de identificação étnico-racial e tempo de vivência
no grupo. Através da metodologia aplicada foi possível capturar as percepções que os
sujeitos têm sobre a história, com ênfase na história do Brasil e dos afrodescendentes, e
as relações estabelecidas entre o passado e as demandas políticas atuais, a exemplo das
cotas para o acesso de negras/os nas universidades, como também a relação que os
sujeitos estabelecem com os conhecimentos transmitidos através da cultura popular,
com enfoque na Capoeira Angola.
Ao analisar no questionário as associações relacionadas ao período colonial no
Brasil, há uma discordância relevante (75%) de visão romântica de um período de
grandes aventureiros e desbravadores descobrindo novas terras, como também 80%
discordam de um esforço europeu para o progresso em outros continentes. Apesar de
mais da metade dos participantes concordarem em parte com uma missão cristã fora da
Europa (certamente por não haver uma descrição sobre o caráter dessa missão), é total a
concordância sobre o desprezo e inferiorização das culturas indígenas e africanas como
também a escravização desses povos, o genocídio de populações indígenas e a
resistência cultural dos povos escravizados.
A história do Brasil e dos povos afrodescendente também é abordada em questão
aberta para construção discursiva, onde 13 pessoas das 20 pesquisadas responderam
entre 2 e 16 linhas, a maioria das narrativas traz a tona as injustiças sociais causadas ao
povos afrodescendentes ao longo da história do Brasil:
“Uma história caracterizada pelo genocídio e injustiça social promovida
pelos detentores do poder e de resistência por parte do povo preto”.
“O povo afrodescendente teve uma história de muita dor e sofrimento, por
ver suas raízes e suas tradições serem arrancadas sem nenhum respeito ou
preocupação. Foi e é muita luta para manter suas tradições vivas. (...)”.
“A história do povo afrodescendente no Brasil é carregada de muita opressão.
Primeiro porque seus ancestrais foram trazidos a força para o território
brasileiro para serem escravizados e daí por diante o povo negro vem
sofrendo os males do racismo em suas diversas formas. (...)”
Os relatos sobre o sofrimento e a resistência dos escravizados africanos e
afrodescendentes presente nos fragmentos supracitados é recorrente nas narrativas
cantadas da capoeira como foi analisado no segundo capítulo. O posicionamento dos
participantes destoa de uma visão eurocêntrica e equivocada sobre a história dos
africanos que foram escravizados no Brasil, já que 80% discordam totalmente da
justificativa que a escravidão só foi possível porque era uma instituição legal na África,
que este foi um sistema necessário pra a produção de riqueza no Brasil, como também
discordam da afirmativa de ser um período da história que precisamos esquecer e
superar. A maioria concorda totalmente que a escravização foi estimulada e financiada
por nações europeias e há consenso que os escravos eram reprimidos fisicamente e
culturalmente, como também que o fim da escravidão não garantiu a seguridade social
da população negra.
A visão crítica enunciada pelos participantes através de suas narrativas escritas
nos questionário, para além de trazer o passado para falar sobre as injustiças sociais
causadas aos povos afrodescendentes traz consequências nos dias atuais. Essa
correlação entre passado e presente e perspectiva futura é a competência narrativa que
une experiência, interpretação e orientação:
“É inquestionável o papel do povo afrodescendente na sociedade brasileira.
No entanto desde o período do tráfico humano que ocorreu da África pra cá é
a parcela da população mais oprimida, seja cultural, histórica ou até
esteticamente. (...”)
“O colonialismo ainda exerce força de forma subliminar, nossa cultura ainda
exclui o afrodescendente de muitos meios, ainda há segregação, a nossa
maneira de ver o mundo aqui no Brasil ainda está traumatizada. (...) No
Brasil ainda há muita desigualdade provinda da colonização, favelas,
repressão e guerra às drogas, marginalização da pobreza... Houve avanços,
mas ainda é uma luta diária, a paz não foi estabelecida, muitas barreiras ainda
são impostas para a vida tranquila de um afrodescendente no Brasil.”
“(...) O porquê da população pobre ser em sua maioria afro descendente, o
por que da maioria dos presidiários serem afro descendentes, dos mortos por
homicídio vítimas da guerra do tráfico, tudo está ligado ao por que fomos
trazidos para o Brasil.”
“(...) O que vivenciamos hoje é fruto de muita luta e sangue derramado. Um
povo que sofreu e sofre até hoje com a negação de suas manifestações, roubo
e apropriação de sua cultura e genocídio institucionalizado, recebe ainda
chibatadas da escravidão. (...)”.
“História sofrida, com muita luta e resistência cultural e física. É uma
realidade ainda presente”.
As narrativas trazem dimensões históricas interligadas, o passado se apresenta
como consequência no presente, as desigualdades sociais implícitas entre brancos e
negros refletem um racismo institucionalizado até os dias atuais.
Há uma concordância geral de que a população afrodescendente foi (e ainda é)
historicamente reprimida e marginalizada e são aqueles que têm menos acesso à saúde,
educação, oportunidades de emprego e ascensão social, mas que conseguiram resistir
culturalmente através de várias expressões como o candomblé, o samba e a capoeira. É
consenso também que o racismo institucionalizado não é um problema superado em
nossa sociedade e é um mal que precisa ser combatido.
As concordâncias sobre a resistência cultural também pode ser observada nas
narrativas escritas e no Grupo Focal:
“(...) O povo resistiu e resiste ainda hoje, atingindo pequenos progressos ao
longo da história (...).”
“Somo levados a pensar exclusivamente que a mesma foi de muito
sofrimento, no entanto não devemos concebê-la apenas desse modo. Percebo
que a história do povo afrodescendente no Brasil, também, revela a força de
um povo que resiste em meio a tantas adversidades mantendo viva sua
essência”.
“(...) A cultura afro brasileira representa resistência até hoje. É muito
importante para o afro descendente o seu envolvimento com alguma
expressão de resistência para afirmação de sua identidade ainda
reprimida(...)”.
“(...) É uma história de resistência que precisa ser valorizada e contada pela
história do Brasil (...)”.
A consciência histórica em relação aos povos afrodescendentes pode ser
percebida pelas narrativas e pelo questionário como uma história de inferiorização, de
exclusão social, de discriminação e de resistência cultural da população negra que
persiste até os dias atuais através do racismo institucionalizado nas diversas esferas
sociais. Para além da compreensão do passado e a relação estabelecida com presente, a
consciência histórica demanda ações futuras, ou seja, posicionamentos dos sujeitos em
relação a demandas políticas essenciais para a superação dos traumas históricos que
fazem presentes na atualidade.
Em relação às demandas sociais atuais, trataremos sobre as políticas de ações
afirmativas voltadas para a população afrodescendente com caso específico das cotas
para o acesso de negros/as nas universidades. Com o objetivo de sondar de que forma os
participantes da pesquisa estabelecem o direcionamento entre o passado, as demandas
presentes para um futuro diferenciado, articulando dessa maneira a consciência histórica
em sua integridade, e perceber a Capoeira Angola, através do grupo estudado, dentro
desse contexto de mobilização.
Há um consenso em relação às demandas políticas serem direitos históricos que
os movimentos negros conseguiram conquistar; a maioria concorda ser uma medida
necessária para a reparação história da população negra como também necessária para
que o acesso à universidade se democratize. Todos discordam totalmente das cotas
como uma medida desnecessária, levando em consideração a suposta “igualdade de
direitos”, como também, desta ser uma política injusta com os demais estudantes que
não são negros e, portanto, não podem participar do sistema de cotas.
A opinião favorável às cotas também é expressa no Grupo Focal, onde os
participantes da pesquisa se utilizam da competência narrativa pra justificar a
necessidade dessa política:
As cotas elas vem com uma necessidade de urgência mesmo, de intervenção
dentro de um processo social que não existia essa igualdade de participação,
igualdade de acesso, por exemplo, à educação superior no Brasil. E... Isso
historicamente, por conta de toda uma história de formação do povo
brasileiro né, onde os negros vieram na condição de escravizados e isso
perdura de certa forma até hoje (...) (GF, Entrevistada A)
Eu acho que as cotas é uma forma de, é... de garantir um pouco desse direito
que sempre foi negado né, que sempre foi exclusivo da população branca,
que ter direito a educação. (GF, Entrevistado E)
Eu acho que meio que uma forma de contrabalancear a história, essa própria
história ai né, dos povos afrodescendentes. É (+) uma forma de tentar dar um
equilíbrio social, não sei, eu vejo mais ou menos assim. Concordo né, acho
inclusive necessário, acho uma política importante. (GF, entrevistado D)
Para além dos argumentos em relação à reparação histórica da população negra,
também é pontuado a necessidade dessa política, para democratizar o acesso à
universidade, como um meio de propiciar a mobilidade social ao afro-brasileiro e tentar
reduzir as desigualdades sociais latentes:
É uma questão muito positiva para as famílias negras né, porque uma das
formas de o negro se ascender socialmente é através da educação. E a gente
lá dentro tem oportunidade de estudar, de se formar na universidade, coisa
que, por exemplo, há trinta anos atrás era muito difícil para a população
negra. E a gente consegue através dessa universidade conseguir um concurso
público, e isso é uma das formas, é um viés pra gente, é...ter uma melhor
condição de vida (...) (GF, entrevistada B)
Seria um processo assim de emancipação, acho que depois das cotas e não
tem muito tempo né, a política de cotas, mas acho que a gente já pode
perceber assim um diferencial, eu acho, na sociedade, de você ver esse, essa
população negra que vem de uma história de baixa renda e que acessa tantos
outros espaços de trabalho depois da universidade (...) (GF, entrevistada A).
O Grupo Focal que trabalhou temáticas inter-relacionadas: as ações afirmativas
voltadas pra a população negra, como o sistema de cotas e o papel da Capoeira Angola
enquanto mobilizador da consciência histórica em relação à história do povo afro-
brasileiro, resultou na discussão de algumas problemáticas. Apesar do consenso na
defesa do sistema de cotas, algumas críticas foram levantadas para refletir sobre o
caráter emergencial dessa política, principalmente relacionado à defasagem do sistema
público de educação básica:
E ai, mesmo isso sendo uma questão positiva para a população negra,
inclusive para mim, é uma coisa que a gente ainda tem muito o que avançar.
Porque a gente chega e estuda desde o maternal até o terceiro ano em escola
pública, outras pessoas estudam em colégio particular, não querendo dizer
que a escola pública é ruim, mas que ainda o governo trata de forma bem pra
o lado mesmo (...) (GF, entrevistada B)
(...) e ai elas cotas vem, acaba sendo uma medida emergencial, mas está se
tornando algo é que veio mais pra legitimar e remediar essa ação do governo,
assim ao invés, como * falou da gente estar em um ensino público de
qualidade para que não precise das cotas, para que todos os estudantes é,
negros e negras ou não, enfim, tenham as mesma qualidade e oportunidade a
um ensino de qualidade de quem pode pagar uma escola particular né (GF,
entrevistado F)
Ao tentar dimensionar a importância da Capoeira Angola como espaço de
mobilização da consciência histórica, a partir da escuta do grupo estudado, foi possível
mapear algumas percepções que os sujeitos estabelecem com a Capoeira Angola e a
transmissão desse conhecimento. Como pode ser observado no gráfico abaixo, há uma
grande discordância do conceito reducionista da capoeira ser apenas uma atividade
física genuinamente brasileira. Os membros do grupo acreditam que Capoeira Angola
é uma forma de resgate histórico e de preservação de uma manifestação afro-brasileira.
Dessa forma, é consenso entre os participantes que esta é uma manifestação cultural
riquíssima é fruto da resistência escrava contra sistema opressor colonial e um
manancial rico de expressões e saberes, trabalhados através da oralidade em uma
dimensão de tempo diferenciada. No que toca à historicização da Capoeira Angola
como uma manifestação mais próxima daquela que os escravizados africanos
praticavam no Brasil, houve nuances, pois 30% demonstraram dúvidas, não
asseguraram essa informação de caráter histórico.
Nas narrativas sobre a história da população afrodescendente, os participantes do
grupo, demonstram percepção da capoeira como uma expressão de resistência:
“Através das diversas formas de manifestação cultural existente na
sociedade: a linguagem; a música/som (samba); capoeira; culinária;
movimentos de luta pelos direitos afrodescendentes, etc.”
“(...)Como forma de resistência o povo negro usou de sua cultura riquíssima,
que é a base do que o Brasil é hoje, com a capoeira, o samba e as religiões de
matrizes africanas.”
“(...) só resistiu no tempo através da força da oralidade, que através dela hoje
podemos experimentar vivências como a Capoeira Angola que chegou até
nós a partir da oralidade, que continua sendo repassado e saudado em seus
cantos, ladainhas, ensinamentos e movimentos com o corpo.”
(...) Capoeira Angola assim, que o povo negro né que foi escravizado no
Brasil construiu uma forma de resistir a brutalidade que era aquele sistema
né, uma forma de viver, naquelas condições, então se hoje a gente faz
Capoeira Angola na forma que é, super tranquila e tal e o que a Capoeira faz
nas nossas vidas, ((murmúrio de bebê)) a gente tem que lembrar que todo
mundo que caiu que morreu para que hoje a gente possa ta fazendo capoeira.
(GF, entrevistado E)
Por que é mais um espaço que o negro criou para sobreviver; era todo o
tempo trabalhando, só fazendo aquilo, então a capoeira, o samba, era talvez
mais uma forma de manter a sobrevivência, pra dar liberdade, porque a gente
precisa disso, acho que é mais nesse sentido mesmo. (GF, entrevistada B)
A importância atribuída pelo grupo à transmissão do conhecimento da Capoeira
Angola, no sentido de mobilização da consciência histórica, pode ser percebida nas falas
abaixo:
Acho que pra mim a Capoeira Angola era veio meio muito a somar de todas
as formas na minha vida, e falando mais especificamente do grupo que faço
parte, mais ainda, acredito eu, pela preocupação do professor de estar a quase
todo o momento de conversa, de treino e tudo mais, de ta contextualizando de
tudo que é a história da Capoeira Angola, a história de como ela surgiu, como
a gente ouviu falar né, com uma história de luta, de sangue do povo negro, de
resistência dos escravos, e tudo mais. (GF, entrevistado F).
Eu acho que ela veio muito a somar, o grupo, o professor com a minha
consciência histórica do povo negro, principalmente como o processo de
escravidão no Brasil, a resistência principalmente. (GF, entrevistado F)
Acho que pra mim meu ganho foi mais nesse sentido do que na parte física,
na movimentação, mas na parte da consciência histórica que eu adquiri, e
venho adquirindo a cada dia assim com ela, de vivência com a Capoeira
Angola (+) que veio reparar essa falha que eu tive no ensino de história ao
longo da minha vida. (GF, entrevistado D)
D (...) meio que você começa a entender a história de uma forma diferente
que você não aprendeu na escola né, isso abre um pouco os seus horizontes e
ai eu acabo encontrando Capoeira, e é isso, a Capoeira é meio que isso que o
pessoal ja falou, é uma forma de resistência de um povo que foi
marginalizado, né...
O entendimento dos entrevistados é de que a Capoeira Angola veio a contribuir
na formação da consciência histórica em relação à história da população negra, o que
não foi possível durante o ensino escolar. Dessa maneira, ao analisar as opiniões em
relação às potencialidades da Capoeira (ver gráfico abaixo), há uma concordância
geral que esta possibilita a valorização da história e da cultura do povo negro no Brasil
e o fortalecimento das raízes ancestrais e da identidade cultural afro-brasileira. A
maioria concorda também que através da capoeira é possível ampliar a criticidade em
relação a teorias de igualdade social e democracia racial. Para eles, a Capoeira Angola
estimula um espírito de enfrentamento em relação às opressões cotidianas vividas pela
população pobre e periférica. Uma pequena porcentagem (15%) concorda em parte
com essa ultima alternativa, reflexo da subjetividade, já que nem todos atribuem o
mesmo caráter político a essa manifestação.
A Capoeira Angola pode ser percebida como um meio de fortalecer as
identidades afrodescendentes e também como uma forma de ampliar a valorização da
cultura afro-brasileira através dessa mobilização da consciência histórica:
Tudo que ta relacionado com a cultura negra eu quero estar, entendeu? E a
Capoeira é mais um lugar para eu estar. (GF, entrevistada B).
“(...) quando eu vi a Capoeira eu achei tudo lindo, foi assim, foi, talvez, esse
encantamento pela Capoeira me motivou a conhecer mais coisas da história
do povo negro e me identificar a partir daí, porque até então eu não tinha essa
coisa de me ver enquanto negra e tudo mais. Eu vivia, eu posso dizer, sei lá,
alienada mesmo, sabe! eu num... eu nem me identificava, se alguém me
perguntasse que cor eu era, eu nunca ía me identificar como uma cor negra,
sei lá, branca também eu sei que eu não era, então eu ía me definir como uma
morena, como várias vezes eu me identificava (...) E aí, o ambiente da
capoeira pra mim foi um ambiente de construir mesmo, sabe, de fortalecer
também, por me relembrar coisas, de me ver dentro daquela situação e me
fortalecer ali como uma pessoa que traz aquela carga cultural, que traz aquela
história e de querer levar isso adiante. (GF, entrevistada A).
A questão da identidade, nossas referências históricas, por exemplo, eu sou
uma pessoa que não sou de pele negra, então eu não sofro dessa forma de
opressão, assim né. (...) falando do meu ponto de vista, como uma pessoa que
não sofre, acho de racismo né, eu vou ver a Capoeira dessa forma com
resistência né, e eu me identifico de certa forma com aquilo também e aí eu
encontro ela, e ela na verdade veio reforçar toda essa consciência histórica.
(GF, entrevistado D).
A Capoeira Angola ao mobilizar a consciência histórica dos sujeitos imersos
nessa dinâmica permite, segundo o Treinel Lupião, o empoderamento dos participantes,
seja forma do pensar e/ou nas suas tomadas de decisões políticas, e define:
(...) O ser angoleiro, na minha opinião, é muito mais aprender e ta se
conectando com essa vibração ancestral, e que vibração ancestral é essa? É o
conhecimento histórico de que viemos de uma dor de África, viemos de uma
dor de escravidão e viemos de uma dor de resistência desses 300 anos,
sobrevivendo (...), pra mim é o espírito da Capoeira Angola, é espírito de
resistência, de rebeldia, de rebelião. (Treinel Lupião).
A Treinel Muqueca enfatiza que esse empoderamento vem da relação
estabelecida através da coletividade, do que se aprende com os outros, de pensar juntos
questões da atualidade, de sentar e discutir, de refletir e pensar formas de ação e de
intervenção:
A gente pensa atividades de intervenção, seja no vinte de novembro ou não,
seja para participar apoiando ou estando presente em atividades de outros
grupos, ou escolas, da militância dentro da universidade, já que a maioria dos
membros do grupo também são alunos da universidade, de não ver coisas
dissociadas. (Treinel Muqueca)
Isso posto, numa visão de conjunto, considerando a do grupo estudado, é
possível concluir que Capoeira Angola, pode ser compreendida como um importante
meio de transmissão e recepção de conhecimento histórico para mobilização da
consciência histórica em relação à história do Brasil e dos povos afrodescendentes,
possibilitando assim um posicionamento político crítico em relação às demandas atuais
da população negra, a exemplo das cotas para democratização do acesso as
universidades públicas no país. No mesmo gingado, reforça pertencimentos identitários
e atitudes de convivência com as alteridades, propiciando a valorização, o respeito e o
fortalecimento da identidade afro-brasileira e estimulando o senso de coletivo, de
resistência e de preservação de tais manifestações.
5. CONCLUSÃO
Esse trabalho partiu dos pressupostos da Didática da História para tentar
compreender a Capoeira Angola enquanto um espaço de formação e mobilização da
consciência histórica, tomando como referência os saberes históricos inerentes a essa
prática. Trouxe como foco de estudo o Grupo de Capoeira Angola Sementes do Sertão,
e ao final é possível concluir, a partir do grupo estudado, que a Capoeira Angola
contribui para as formas de mobilização da consciência histórica em relação a historia
dos povos afrodescendentes e as demandas políticas atuais dessa população. Apesar de a
maioria das pessoas do grupo terem acesso a outros espaços de circulação de
conhecimento histórico, como a universidade, a Capoeira Angola potencializa essas
informações em outra dimensão, que extrapola o científico e trabalha os saberes de uma
maneira muito mais sensível e orgânica.
Os conhecimentos que são transmitidos a partir dos cantos, dos fundamentos e
da organização da estrutura do grupo, mobilizam os pensares dos participantes que se
inserem na dinâmica, através do reconhecimento, valorização e fortalecimento da
identidade afro-brasileira. Toda cosmovisão inerente a uma manifestação de cultura
popular afrodescendente transmitem história, seja através de narrativas cantadas ou
contadas. A própria fundamentação transmite uma tradição, e essa tradição é história. E
essa história contada pela capoeira é uma história de resistência dos afrodescendentes,
que foram sequestrados de suas terras natais, escravizados, violentados, marginalizados
e que até hoje sofrem consequências sociais diretas do racismo institucionalizado.
A Capoeira Angola pode ser compreendida dentro dessa concepção de
resistência cultural como uma luta social, pois ainda que através do enfrentamento
indireto e dissimulado, ela fornece elementos aos seus praticantes, que permitem a eles
enfrentar determinadas dificuldades e obstáculos impostos por uma sociedade
excludente e autoritária, bem como questionar os valores de uma sociedade consumista
e mercadológica. Esse aprendizado desenvolvido nas rodas e no jogo da capoeira, torna-
se então um aprendizado social, a partir do momento que o praticante de capoeira é
capaz de fazer analogias entre a sua prática na roda de capoeira, e as possibilidades de
utilizar esse aprendizado na “roda da vida”18.
Referências
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saberes na roda. Campinas, São Paulo, 2004.
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Negra. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos:
Brasília, 2011.
CUNHA, Pedro Figueiredo Alves da. Capoeiras e valentões na história de São Paulo
(1830-1930). USP: São Paulo, 2011, p. 126.
18 ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: Cultura popular e o jogo dos saberes na roda.
Campinas, São Paulo, 2004, p.137.
MACHADO, Sara Abreu da Mata. Saberes e fazeres na capoeira angola: a autonomia
no jogo de muleekes. Salvador, 2012.
MARCASSA, Mariana Pedrosa. Sons de Banzo. PUC: São Paulo. 2016.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico. Salvador. Editora
Itapuã, 1968.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: fundamentos da ciência histórica. Tradução:
Estevão de Resende Martins. Brasília. Editora da Universidade de Brasília. 2001.
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grupos/academias da cidade de Salvador-BA. Sitientibus, Feira de Santana, n. 30,
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SOARES, Mariza de Carvalho. Descobrindo a Guiné no Brasil colonial. Revista IHGB,
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YAHN, Carla Alves de Carvalho. Um canto de luta e liberdade ecoa na Capoeira
Angola. II Colóquio da Pós-Graduação em Letras. UNESP, p. 259-260.