ser liberto na porvíncia do ceará

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  • 7/26/2019 Ser Liberto Na Porvncia Do Cear

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    CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXIL

    OLHAR PARA ALM DAS EFEMRIDES:

    SER LIBERTO NA PROVNCIA DO CEAR

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA

    SO PAULO 2005

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    CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXIL

    OLHAR PARA ALM DAS EFEMRIDES:

    SER LIBERTO NA PROVNCIA DO CEAR

    Dissertao de Mestrado apresentada ao

    Programa de Estudos Ps-Graduados emHistria Social da Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo (PUC/SP) como partedos requisitos para obteno do grau deMestre em Histria Social.

    Orientadora: Profra. Dr a. Estefnia KnotzFraga.

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA

    SO PAULO 2005

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    CAXIL, Carlos Rafael VieiraOlhar para alm das efemrides: ser liberto no Cear / CAXIL, Carlos RafaelVieira.

    So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2005.

    172 p.

    Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2005.

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    CARLOS RAFAEL VIEIRA CAXIL

    OLHAR PARA ALM DAS EFEMRIDES:

    SER LIBERTO NA PROVNCIA DO CEAR

    Banca Examinadora:

    _____________________________________________ Presidente da BancaNome

    Instituio

    _____________________________________________NomeInstituio

    _____________________________________________NomeInstituio

    SO PAULO 2005

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    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer primeiramente s Instituies PUC-SP e CAPES

    pelo financiamento de meu curso e pesquisa. minha av Nilza Arajo Caxil,

    cujas palavras me faltam para expressar a gratido que sinto por ela. Minha

    me Adlia Arajo Caxil, uma santa mulher que sempre acreditou no filho

    obstinado. Aos meus tios Jos Dantas da Silveira, Sinval Primo Caxil e Jos

    Barbosa, que sempre confiaram e torceram pelo sucesso desse trabalho. sminhas tias Aleuta Maria Caxil, Tereza Roseneide Barbosa Caxil e Maria

    Valniza da Silveira, pessoas que sempre permaneceram ao meu lado me

    iluminando e aconselhando em muitos momentos.

    Sou muito grato a Estefnia Knotz C. Fraga minha estimvel guia,

    orientadora que esteve presente em todos os momentos dessa dissertao.

    Uma verdadeira engenheira do saber, responsvel por me mostrar os materiais

    certos a serem empregados na construo desse trabalho. A realizao dessapesquisa s foi possvel graas s valiosas contribuies dessa magistral

    orientadora.

    Ainda sou bastante grato s professoras e professores da PUC-SP como

    tambm da Universidade de So Paulo e da Universidade Federal do Cear.

    So eles: Maurcio Broinizi, Antnio Rago, Olga Brites, Maria do Rosrio, Lilia,

    Ivone Avelino, Yara Aun Khoury, Maria Izilda Matos, Denise Bernuzzi, Dedea,

    Mnica, Raquel, Pedro Tota, Marina de Melo e Sousa, Eurpedes Antnio

    Funes, Frank Ribard, e especialmente a Maria Antonieta Antonacci e Maria

    Cristina Wissenbach pelas valiosas sugestes feitas no exame de qualificao.

    Devo muito aos meus amigos de Fortaleza, Bruno Brasil, Alberto e

    Marco Antnio, que sempre me incentivaram e fortaleceram minhas

    esperanas. Flvia Oliveira de Rogrio, pessoa extraordinariamente amiga,

    que sempre se preocupou e me ajudou durante esses dois anos de pesquisa, etambm Teti, sua me. Aos meus amigos de So Paulo, cujas vivncias e

    VI

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    prticas nesses dois anos so imensurveis. So eles: Marcelo, Jlio,

    Geovanni, Pedro, Z, Fred, Rodrigo e Vincios. Aos meus amigos de

    residncia, Paulo e Jnio. Aos meus conterrneos que tambm percorreram e

    ainda esto percorrendo esse instigante e delicado percurso da pesquisa

    histrica: Moiss, Josiberto, Alnio, Daniel, Viviane, Felipe, Andr, Zilmar,

    Gustavo, Edson e Kiko. Agradeo ainda s minhas amigas paulistas que me

    proporcionaram tantos momentos agradveis, regados a muitas gozaes e

    risos, Dbora, Carol, Malu, Carla, Fernanda, Juliana, Daniela, Luana, Bel,

    Roseli e Patrcia. Meus colegas interestaduais, Egl e Leno de Manaus; Mrio,

    rica e Ipojucan do Par; Eduardo do Rio Grande do Sul; Elizabeth de Santa

    Catarina; Vnia do Paran; Bartolomeu, Vtor, Lvia e Xico da Bahia. Sou muitoagradecido tambm aos meus colegas da Associao de Ps-Graduandos da

    PUC-SP, Ernani, Vladmir, e, principalmente, aos secretrios dessa entidade,

    Marcelo e Yara, pessoas fundamentais durante a nossa gesto na Associao.

    Ainda agradeo ao Elvis, funcionrio da Secretria de Alunos da PUC-

    SP; Jane e Betinha, secretrias do programa de ps-graduao em Histria

    da PUC-SP; como tambm ao Srgio Resende, diretor do Teatro Universitrio

    Catlico, por me proporcionar muitos momentos divertidos naquele teatro.

    Tambm sou grato a R e Albinha pelas calorosas conversas no RsBar,

    escutando Cssia Eller e tomando alguns goles de Bomia.

    Tambm devo muito Madalena, bibliotecria da Academia de Letras do

    Cear; ao Mardnio, diretor do Arquivo do Estado do Cear; Juliano, bolsista

    do mesmo Arquivo. Ao erudito pesquisador Andr Frota, pelas incontveis

    horas que passamos decifrando a grafia dos escrives, juizes e curadorespresentes nas Aes de liberdade. Aos funcionrios Oswaldo e Gerusa, do

    Instituto Histrico e Geogrfico do Cear; como tambm Gertrudes e seu

    marido Almadan, funcionrios do Setor de Microfilmagem da Biblioteca Pblica

    do Cear, Menezes Pimentel.

    A todas essas pessoas do fundo do meu corao sou muito grato e a

    elas dedico esse trabalho.

    VII

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    RESUMO NA LNGUA VERNCULA

    CAXIL, Carlos Rafael. Olhar para alm das efemrides: ser escravo naprovncia do Cear. 2005. 172 p. Dissertao (Mestrado em Histria Social)PUC/SP.

    Inicialmente este trabalho buscou, atravs da anlise de Correspondncias

    Expedidas, Ofcios, Atas, Anais da Cmara e Peridicos de poca, evidenciaro processo de extino do elemento servil na provncia do Cear

    desencadeado pelas sociedades libertadoras, especificamente a sociedade

    Perseverana e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora. Demonstrou-se o

    contexto scio-poltico e econmico em que elas surgiram, como tambm os

    fatores que possibilitaram a provncia do Cear ser a primeira a libertar seus

    escravos quatro anos antes do Imprio, no dia 25 de maro de 1884. Em

    seguida analisando, principalmente, Aes de Liberdade, evidenciou-se oimportante papel que teve a lei 2040 de 28 de setembro de 1871 para o

    encaminhamento jurdico de liberdade de escravos no Brasil. Procurou-se a

    partir dos embates parlamentares perceber as experincias sociais do sistema

    escravista, vivenciado por senhores e escravos, relacionando essas

    experincias aos projetos de encaminhamento de uma sociedade livre. E

    finalmente analisou e discutiu alguns trabalhos literrios escritos no Brasil,

    principalmente no Cear, a partir da segunda metade do sculo XIX, quetrataram da condio do africano e do afro-descendente. Focalizou-se

    especificamente poesias e romances de carter romntico e naturalista.

    Palavraschave: escravo, liberto, movimento, abolio.

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    ABSTRACT

    CAXIL, Carlos Rafael. Olhar para alm das efemrides: ser escravo naprovncia do Cear. 2005. 172 p. Dissertao (Mestrado em Histria Social)PUC/SP.

    Initially this work looked for through the analysis of Sent Correspondences,

    Occupations, Proceedingses, Annals of the Camera and Newspapers of Time

    to evidence the process of extinction of the servile element in the county of

    Cear unchained by the societies libertadoras, specifically the society

    Perseverance and Future and Society From Cear Libertadora. The partner-

    political and economic context was demonstrated in that they appear, as well as

    the factors that facilitated the county of Cear to be the first to free its slaves

    four years before the Empire, on March 25, 1884. Soon after analyzing, mainly,

    Actions of Freedom, the important paper was evidenced that had the law 2040

    of September 28, 1871 for the juridical direction of slaves' freedom in Brazil. It

    was sought starting from the parliamentary embates to notice the social

    experiences of the system escravista vivenciados for gentlemen and slaves and

    to relate them to the projects of direction of a free society. It is finally it analyzed

    and he/she/it discussed some literary works written in Brazil, mainly, in Cear,

    starting from the second half of the century XIX that were about the condition of

    the African and afro-descending. Focalizou-if specifically poetries and romances

    of romantic-naturalistic character.

    Words - key: slave, I free, I move, abolition.

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    SUMRIO

    APRESENTAO........................................................................................................11CAPTULO 1

    O PROCESSO ABOLICIONISTA DOS ESCRAVOS NO CEAR:

    TRAJETRIA ..............................................................................................................23

    1.1ASLIBERTADORAS:OMOVIMENTOESEUSFINS ............................................. 24

    1.2OLIBERTADORESEUSIDEAIS ................................................................................ 35

    1.3COMPRAS,VENDASEFUGAS.................................................................................... 39

    1.3ALIBERTADORAEMMOVIMENTO........................................................................ 41

    1.4ASSENHORASABOLICIONISTAS ............................................................................ 47

    1.5PRESSAELIBERDADE................................................................................................. 49

    CAPTULO 2

    RUMO LIBERDADE ...............................................................................................55

    2.1ALEI2040EOSPROJETOSQUEARESULTARAM............................................... 56

    2.2ESCRAVOSBUSCANDOALEINALUTAPELALIBERDADE............................. 78

    2.2.1BERNARDO ........................................................................................................... 78

    2.2.2JOS,JOAQUIM,ANTNIO,ALEXANDRINA E MARIA........................................ 812.2.3BENEDICTA........................................................................................................... 89

    2.2.4ESCRAVA MARIA LUIZA DA CONCEIO........................................................... 93

    2.2.5EUFRSIA E THEODORA ...................................................................................... 95

    2.2.6CUSTDIO............................................................................................................. 97

    2.2.7ANTNIO JOAQUIM ........................................................................................... 100

    2.2.8MACRIA............................................................................................................ 101

    CAPTULO 3

    SER NEGRO NA LITERATURA.............................................................................1093.1LIBERTADOR:LITTERATURA ................................................................................. 110

    3.2AFAMLIA .................................................................................................................... 114

    3.3GALENO:LENDASECANESPOPULARES...................................................... 125

    3.4ROMANCE:REALISTANATURALISTA ................................................................ 135

    CONSIDERAES FINAIS .....................................................................................148

    FONTES.......................................................................................................................154

    BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................156

    ANEXOS......................................................................................................................163

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    APRESENTAO

    Ptria, Brasil, ergue um bradoUm brado augusto de luz,Que nesta festa sublimeV-se a filha de Jesus! a virtude prediletaA redentora diletaQue se chama caridade!Que com suas asas douradasCobre essas frontes magoadasE lhes d a liberdade!Sim! Que esses pobres escravos

    Nossos legtimos irmos,Que a tanto tempo choraramSo agora cidados! 1

    O embrio dessa dissertao comeou na graduao. Logo no primeiro

    ano do curso de Histria me interessei em realizar uma pesquisa referente s

    religies afro-brasileiras presentes no Cear, especificamente, em Fortaleza.

    Tal tema me despertou simpatia ainda na infncia, quando eu e meus pais

    freqentemente amos assistir ao maracat desfilar pelas ruas do centro de

    Fortaleza. Desde essa poca a cultura afro-brasileira me fascina,

    principalmente as religies e festas. Meu primeiro impulso enquanto recm

    ingresso na universidade foi procurar um professor especialista no assunto que

    pudesse me auxiliar.

    Tive conhecimento de existir no departamento de Histria um

    pesquisador chamado Eurpedes Antnio Funes. Entrei em contato com oprofessor e ele se comprometeu a me ajudar. Somente alguns meses depois,

    veio a oportunidade de participar de sua pesquisa como bolsista do CNPq-

    PIBIC. O tema do projeto era Fazendo a Liberdade: a Histria dos Negros

    Libertos no Cear, que tinha como objetivo analisar o processo histrico

    constitudo pelos libertos e ex-escravos, considerando as experincias vividas

    por homens e mulheres, sua insero na sociedade, no mercado de trabalho,

    as formas de resistncia e de luta contra a discriminao racial e a1 Poesia declamada por Antnio Olmpio na festa realizada pelos scios da Sociedade CearenseLibertadoraem homenagem a emancipao de 35 escravos. Libertador, 03 de abril de 1881, p. 08.

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    marginalizao social. Procurou-se tambm perceber a constituio de seus

    espaos e suas prticas religiosas e culturais como o maracat, os reisados e

    outros autos que possibilitassem a busca de uma identidade.

    Alm de mim faziam parte do grupo mais dois bolsistas, Alnio e

    Mariana, tambm estudantes de Histria. O grupo se reunia mensalmente para

    discutir avanos ou recuos da pesquisa. Cada componente desenvolvia um

    trabalho individual, mas que tinha afinidades em comum. princpio meu

    objetivo era encontrar uma identidade para os negros cearenses atravs das

    religies afro-brasileiras presentes no Estado do Cear. Depois de alguns

    meses pesquisando em censos, jornais, relatrios e correspondncias percebi

    que no era possvel prosseguir. O material encontrado no permitia o

    desenvolvimento do trabalho. Ento minha proposta inicial foi substituda.

    Passei a trabalhar com jornais de poca, do perodo de 1870 a 1884,

    especificamente, O Cearensee OLibertador, sendo esse ltimo um rgo da

    Sociedade Cearense Libertadora e, o primeiro, rgo oficial do governo da

    Provncia. Atentou-se para os discursos presentes em ambos os jornais, o teor

    laudatrio do Libertador pouco se distanciava das propagandas

    governamentais presentes no Cearense. Por fim a opo foi de deixar o

    Cearensede lado e deter-se no Libertador.

    Passou a ser interesse saber um pouco mais sobre quem eram os

    indivduos que escreviam naquele jornal, quais suas intenes, seus anseios,

    objetivos e projetos. Passou-se ento a ler autores que j haviam desenvolvido

    uma pesquisa a respeito. No trabalho do historiador Raimundo Giro,Abolio

    no Cear, encontram-se alguns esclarecimentos sobre esses indivduos esobre o que propunham e desejavam. Alm do trabalho de Giro, tambm a

    dissertao de Pedro Alberto de Oliveira, Declnio da Escravido no Cear, foi

    de grande importncia para situar as principais questes dessa pesquisa.

    Ao contrrio de Giro, que se deteve, principalmente, em questes

    especficas referentes s fundaes das libertadoras cearenses, Perseverana

    e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora, Pedro Alberto desenvolveu um

    trabalho de cunho econmico, analisando com acuidade e preciso nmeros e

    dados sobre a estrutura da provncia do Cear. Como tambm alguns fatores

    12

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    que fizeram com que o Cear fosse a primeira provncia do Brasil imperial a

    libertar seus escravos. Segundo Pedro Alberto foram eles: o intenso trfico

    interprovincial a partir de 1850; a forte seca que assolou o Cear de 1877 a

    1879; assim como o movimento abolicionista desencadeado pelas libertadoras

    cearenses.

    Alm desses dois trabalhos, que muito contriburam para esta pesquisa,

    outros discutiram o movimento abolicionista na provncia do Cear. Dentre eles

    esto Revelaes da Condio de Vida dos Cativos no Cear, do jornalista e

    pesquisador Eduardo Campos, e Notcia do Povo Cearense, de Yaco

    Fernandes.

    Eduardo Campos trabalhou com inventrios, livros de notas, cdigos de

    posturas, regulamentos emitidos pelo presidente da provncia e outros

    documentos oficiais. O autor chegou concluso que o escravo era incapaz de

    agir por conta prpria, pois no possua vontade nem deciso. O escravo no

    passava de uma coisa, uma propriedade, um bem mvel. O autor chegou a

    essa concluso atravs da leitura de determinados documentos oficiais, dentre

    eles, o Regulamento expedido pelo presidente da provncia, em 1853, o qualdeterminava: art. 1o So bens do evento os escravos, e o gado vacum e

    cavalar achados [...] art.2o Estes bens so apreendidos, depositados,

    avaliados e arrematados, e o produto recolhido a tesouraria provincial [...]2.

    Segundo Campos os nicos momentos em que os escravos demonstravam ter

    discernimento de si ocorriam quando praticavam fugas, revoltas e

    assassinatos.

    Yaco Fernandes, por sua vez, partiu do pressuposto de que os membros

    das libertadoras cearenses, principalmente aqueles oriundos da Perseverana

    e Porvir e Sociedade Cearense Libertadora no passavam de literatos

    entusiasmados, burgueses ingnuos que para driblar o cio provinciano,

    pasmaceira provincial, cogitaram a libertao dos escravos. O autor se

    mostrou encolerizado com tais membros: esses sisudos pndegos da

    Perseverana e Porvir e depois de sociedade libertadora cearense, que noutra

    2 CAMPOS, Eduardo. Revelao da condio de vida dos cativos no Cear. In: Da senzala para ossales. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto. 1988. p. 36.

    13

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    terra qualquer nada arranjariam, esto bem situados no quadro local.3

    Fernandes interpretou o desempenho das libertadoras como uma maneira de

    seus scios se promoverem. Viu suas realizaes enquanto imposturas que

    visavam mais ao interesse individual de cada membro do que causa da

    abolio.

    Outro trabalho tambm relevante sobre a abolio no Cear foi escrito

    por Almir Leal e intitula-se Saber e Poder O Pensamento Social Cearense no

    Final do Sculo XX.Nessa dissertao de mestrado defendida na PUC-SP, em

    1998, o autor tratou de alguns aspectos da abolio no Cear, especificamente

    no tpico intitulado Estratgias Abolicionistas: Aes Intelectuais. Almir dirigiu

    sua anlise para o movimento abolicionista desencadeado em Fortaleza pelos

    membros das libertadoras. Procurou enfocar a atuao desses indivduos

    considerando que as suas leituras eram socialmente constitudas, figurando

    tambm como aes sociais com prticas polticas distintas. Seu estudo

    concluiu que as aes e atitudes tomadas durante a campanha abolicionista

    pelas libertadoras Perseverana e Porvir, Sociedade Cearense Libertadora e

    Centro Abolicionista 25 de Dezembroestavam relacionadas e tinham origem no

    repertrio de leitura realizado pelos seus membros na dcada de setenta do

    sculo XIX, como tambm por posturas intelectuais desenvolvidas a partir de

    1880.

    Percebeu-se que grande parte dos trabalhos escritos sobre o movimento

    abolicionista na provncia do Cear teve como pressuposto um carter poltico-

    positivista, com caractersticas elitistas e biogrficas onde se percebe uma

    constante exaltao aos valores humanitrios das libertadoras e dosabolicionistas. Os trabalhos produzidos, com algumas excees, tratam da

    questo da abolio tendo como tese central o papel humanitrio dos

    cavaleiros da esperana no processo abolicionista na provncia do Cear.

    A questo que os abolicionistas tidos como os cavaleiros da esperana

    vo ser retratados nessas obras sempre representando a imagem dos homens

    que possuam o carter filantrpico e enfeixavam nas suas mos a tocha que

    iria iluminar a sociedade cearense e a conduziria atravs da luz de seus atos,

    3Idem, p.179.

    14

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    gestos e sapincia, para uma realidade longe da barbrie representada pela

    escravido. O tema Cear Terra da Luz at hoje tem uma forte conotao nos

    discursos proferidos por autoridades estaduais e por intelectuais, que, com

    isso, querem exaltar os brios do Cear e dos cearenses.

    Nesse sentido, interessou-nos a percepo da construo desse

    discurso legitimador do carter empreendedor do povo cearense, construdo

    sob os auspcios da abolio e dos abolicionistas. Do como este discurso ainda

    encontra espao nos dias de hoje na sala de exposio permanente do Museu

    do Cear, cujo nome Cear Terra da Luz, ou no Centro Cultural de Arte e

    Cultura Drago do Mar, ou mesmo nas placas comemorativas denominam ruas

    e logradouros da cidade.

    Como afirma Rgis Lopes Ramos, sem o ato de pensar sobre o

    presente vivido, no h meios de construir reflexes sobre o passado. E o

    prprio conhecimento do atual j pressupe referncias sobre o pretrito.4

    Essa relao entre passado e presente ajudou a melhor delinear os objetivos

    desse estudo e a problematiz-lo. Ou seja, a despeito do movimento

    abolicionista cearense, especificamente o realizado na cidade de Fortalezapelos membros da Sociedade Perseverana e Porvir (1879), Sociedade

    Cearense Libertadora (1880), interessa perceber para quem de fato o

    movimento abolicionista foi importante, para os libertos ou para a concretizao

    de uma sociedade capitalista burguesa onde valores como progresso e

    modernidade s seriam possveis com a abolio da mo-de-obra escrava?

    Eis o projeto que tinha como objetivo central analisar o processo

    abolicionista na provncia do Cear, desencadeado pelas libertadoras. Desta

    maneira, estabeleceu-se como sujeitos a serem pesquisados, os membros das

    sociedades libertadores cearenses. Faria uma anlise crtica desses indivduos

    procurando definir os interesses que estavam em jogo naquele momento.

    Porm, um trabalho com objetivos bem prximos aos que propus j

    havia sido desenvolvido pelo pesquisador Gleudson Passos. Tivemos

    4 RAMOS, Francisco Rgis Lopes. Museu, ensino de histria e sociedade de consumo. In: Trajetos:Revista de Histria da UFC. Fortaleza, vol. 1, n. 1, 2001, p. 109.

    15

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    conhecimento do trabalho de Gleudson atravs Estefnia Knotz, que orientou a

    ambos, e props, como primeira atividade acadmica, realizar uma anlise

    sobre sua dissertao intitulada As Repblicas das Letras Cearenses:

    Literatura, Imprensa e Poltica. Nesse trabalho Passos buscou retratar as

    aes dos intelectuais cearenses, tendo como parmetros analticos a

    literatura, imprensa e a poltica. Tambm teve como objetivo perceber a

    insero dos letrados cearenses atravs de posturas intelectuais, polticas, e

    os usos de suas mquinas literrias com o intuito de construir modelos de

    Estado e nao durante as duas ltimas dcadas do sculo XIX e as primeiras

    do sculo XX. Seu foco de anlise recaa sobre as sociedades literrias

    existentes entre 1873 e 1904: a Academia Francesa (18731875), o ClubeLiterrio (18871889), a Padaria Espiritual (18921898), a Academia Cearense

    (18941904) e o centro literrio (18941904). Passou limitou sua anlise aos

    espaos literrios, sociedades, clubes e agremiaes, entendendo estes como

    espaos eminentemente polticos e urbanos. Utilizou como fontes, jornais de

    poca, peridicos e pasquins literrios, livros de memria, cartas, discursos

    oficiais e comemorativos, relatrios dos presidentes da provncia, manuscritos,

    revistas de poca e obras literrias.

    O trabalho desenvolvido por Passou possibilitou reformulao de alguns

    itens desta pesquisa. Foram salutares para este trabalho algumas questes

    discutidas pelo historiador: a anlise dos discursos produzidos por intelectuais

    denominados Mocidade Cearense; a percepo do discurso enquanto uma

    ferramenta poltica dos grupos letrados; o discurso enquanto poder de

    determinados grupos sociais em impor seus anseios e valores aos demais da

    sociedade.

    os sujeitos da Mocidade Cearense potencializaram sua mquina

    discursiva, apropriando-se de enunciados e contedos simblicos

    coletivamente engendrados naquele espao social, tais como os referenciais

    morais moral e a fora. Recodificando para aquele campo de experimentao

    subjetiva os enunciados da ordem burguesa como liberdade poltica e

    econmica, industrialismo, desenvolvimento tecnolgico, progresso cientfico,produtos de intensidades desejantes do iluminismo, Romantismo e do

    Positivismo, aqueles homens tiveram um interesse comum: integrar-se nas

    16

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    relaes de poder de sua sociedade e manter o domnio dos grupos

    tradicionais, ou seja, acompanhar a emergncia dos novos setores sociais

    segundo a manuteno dos antigos setores dominantes na nova ordem

    mundial.5

    Num primeiro momento esta dissertao se aproxima do trabalho de

    Passos, onde pretende fazer uma anlise do discurso. Todavia neste trabalho

    sero privilegiados os discursos relacionados com a abolio. A preocupao

    maior ser compreender os discursos produzidos pelos libertadores e sua

    relao com os interesses de classe. Entende-se que havia uma preocupao

    dos membros das libertadoras de estabelecer uma sociedade capitalista e

    burguesa margeada por valores europeus, principalmente ingleses e franceses.

    Seremos mais analticos nesse aspecto.

    Aps ler a dissertao de Gleudson Passos mais um trabalho nos foi

    apresentado, Escravos, Libertos e rfos: A Construo da Liberdade em

    Taubat (1871 1895), tese defendida em 2001 pela Doutora Maria Aparecida

    Chaves Ribeiro Papali.

    Nesse trabalho Papali buscou identificar os caminhos emancipacionistas

    e tenses abolicionistas na cidade de Taubat a partir da demanda pela

    liberdade jurdica desencadeada pela legislao de 1871, como tambm

    compreender as tenses surgidas no campo do trabalho, onde havia um forte

    interesse da elite local pela mo-de-obra disponibilizados pelos libertos e

    rfos (ex-ingnuos). A autora ainda buscou refletir sobre o sentido de

    liberdade, atravs da concepo de escravos e libertos, e estabelecer

    parmetros de liberdade na tica dos mesmos.

    Para desenvolver sua pesquisa, Papali trabalhou com os seguintes

    documentos: Aes de Liberdade, peridicos, Atas da Cmara, Leis, Decretos

    e Obras de poca. Mas a qualidade do seu trabalho reside na anlise das

    Aes de Liberdade, material que comeou a ser melhor explorado nas ltimas

    dcadas. Dentre outros historiadores que se dedicaram perscrutao dessa

    5 CARDOSO, Gleudson Passos. As Repblicas das Letras Cearenses: Literatura, Imprensa e Poltica(1873 1904). 2000. Dissertao de mestrado (Histria Social). Pontifcia Universidade Catlica: SoPaulo. p. 49.

    17

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    fonte podemos citar Sidney Chalhoub, um dos primeiros a trabalhar as

    experincias do cativo por meio da anlise de Aes de Liberdade. Papali

    utilizou ao todo 90 Aes de Liberdade, ocorridas entre 1871 e 1888,

    envolvendo 192 libertandos. Algumas aes so simples peties para alforria

    ou concesses sumrias de alforria incondicional, outras so volumosas Aes

    contendo argumentos e relatos de libertandos, advogados e testemunhas. A

    leitura do trabalho desenvolvido pela historiadora tambm foi bastante profcua

    na melhor definio desta de pesquisa.

    Alguns anos atrs, trabalhando no Arquivo Pblico do Estado do Cear,

    desempenhando a funo de pesquisador bolsista do CNPq-PIBIC, deparamo-

    nos com algumas Aes de Liberdades no catalogadas, espalhadas em

    caixas ainda no numeradas, e que s estavam ali na sala de pesquisa devido

    insistncia de um professor pesquisador. Essas Aes em sua grande

    maioria so relativas a processos desencadeados por escravos contra seus

    senhores, como caracterizou Maria Aparecida Papali, peties para alforria e

    Concesses sumrias de alforria incondicional.

    Naquele momento no se deu muita importncia queles documentos.Transcreveu-se alguns, enquanto de outros apenas informaes especficas

    foram anotadas. Ainda no havia definido trabalhar com esse tipo fonte.

    Portanto, a pesquisa de Papali possibilitou visualizar questes que poderiam

    ser desenvolvidas neste trabalho atravs das Aes encontradas no Arquivo do

    Cear. Foram encontradas doze Aes movidas entre os anos de 1878 e 1880,

    classificadas em Peties para alforria e Concesses sumrias de alforria

    incondicional.

    Deste modo, pela mediao dos autos judiciais, peties e sentenas

    auferidas por juzes, curadores, escrives, advogados e testemunhas, buscou-

    se demonstrar como se desenvolveram os trmites judiciais pelos quais

    passava uma Ao de Liberdade, assim como tambm reconstruir a luta

    travada pelosescravos e libertandos no campo judicial em busca da liberdade.

    Tentamos mostrar os escravos e libertandos enquanto sujeitos de sua

    liberdade na Provncia do Cear. Tambm consideramos importante esclarecer

    que a partir da Lei 2040 foi possvel aos escravos construrem sua liberdade via

    18

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    fundos de emancipao ou via peclio. Tal lei permitiu aos escravos e

    libertandos lutarem pela sua liberdade no campo jurdico, rea por excelncia

    da classe dominante.

    Nessa dissertao buscou-se contrapor alguns trabalhos que discutiram

    o processo abolicionista na provncia do Cear, dando relevncia ao papel

    humanitrio dos membros das sociedades cearenses, Perseverana e Porvir e

    Libertadora Cearense, trabalhos que destacaram o papel empreendedor dos

    abolicionistas, caracterizando-os como sujeitos corajosos e cultos que

    almejaram o fim da escravido por amor e compaixo ao escravo.

    Da mesma forma procuramos contestar os trabalhos que consideraram

    os membros das libertadoras como impostores burgueses que visavam acima

    de tudo se promover atravs da campanha abolicionista. Desenvolvemos uma

    linha de anlise diversa, compreendendo que os membros das libertadoras no

    realizaram uma campanha abolicionista devido somente a seus valores

    humanitrios, mas tambm no os consideramos farsantes que pretendiam

    apenas se autopromover.

    Entendo que uma das maneiras de defini-los seja seguir de perto suas

    atividades em atos, gestos e palavras. Os membros das sociedades no eram

    originrios das camadas mais pobres da populao cearense, mas tambm

    no eram totalmente oriundos e porta vozes exclusivos dos interesses das

    classes dominantes. Por outro lado, certo que sua composio social os

    situaria enquanto membros das camadas mais altas da sociedade. Sua

    atuao no pode ser aplicada exclusivamente em termos de defesa de

    interesse de classes. Apesar de possurem estreitos laos de parentescos que

    os atavam a famlias proprietrias de terras, sua atuao se dava no contexto

    urbano. Logo entendemos que esses indivduos em grande parte eram

    intelectuais da cincia que procuravam legitimar e respaldar cientificamente

    suas aes e posies em determinadas instituies do saber, como Academia

    Francesa, Academia Cearense de Letras e, posteriormente, Instituto Histrico

    Cearense.

    19

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    Ainda refutamos aqueles que consideram o escravo um ser incapaz de

    agir por conta prpria, ou seja, aqueles que consideraram o escravo como

    coisa, propriedade, bem semovente, demonstrando ter discernimento de si

    apenas quando praticam revoltas, fugas e assassinatos. Nas linhas que

    seguem o desenvolvimento desse trabalho entendemos os escravo enquanto

    agente social, que, atravs da experincia cotidiana do cativeiro, construiu

    estratgias de luta embasadas numa conscincia prpria de seus direitos e

    fazendo de tudo para alcanar a liberdade.6

    Nesse sentido dividimos essa dissertao em trs captulos, onde

    buscou-se demonstrar o contexto scio-poltico e econmico em que surgiram

    as libertadoras cearenses; o tipo de atividade preponderante e sua influncia

    no emprego da mo-de-obra servil, como tambm a porcentagem e o perfil da

    populao cearense a partir da segunda metade do sculo XIX, precisamente

    de 1870 a 1879. Enfocamos tambm o papel significativo da urbanizao de

    Fortaleza a partir da segunda metade do sculo XIX, que possibilitou o

    surgimento de uma elite letrada responsvel pelo surgimento de sociedades

    libertadoras na provncia. Tambm importaram os fatores que possibilitaram a

    provncia do Cear ser a primeira a libertar seus escravos quatro anos antes do

    Imprio, no dia 25 de maro de 1888. Analisaremos o surgimento das

    libertadoras Perseverana e Porvire Sociedade Cearense Libertadora, o papel

    da imprensa enquanto importante mecanismo de formao de opinio e os

    discursos pronunciados no jornal O Libertador.

    Sero focalizados tambm os anncios de fugas de escravos presentes

    no jornal O Cearense, o papel desempenhado por algumas mulheres noprocesso abolicionista da provncia e a atuao ilegal de alguns membros da

    Libertadora Cearense no movimento abolicionista. So aspectos centrais do

    primeiro captulo e para desenvolv-los pesquisamos os seguintes

    documentos: correspondncias expedidas, registros de ofcios, Anais da

    Assemblia Legislativa, censos, obras de poca, peridicos, livro de notas de

    6

    A imensa massa populacional que se transferiu do continente africano para a colnia portuguesa nopode ser analisada apenas como fora de trabalho e, por isso, muitos historiadores hoje, procuramdiscernir os caminhos, num simples nem bvios, atravs dos quais os escravos fizeram histria. SILVA,Eduardo; REIS, Joo Jos. Entre Zumbi e o Pai Joo. O Escravo que Negocia. In: Negociao e Conflito:A Resistncia Negra no Brasil Escravista. Companhia das Letras. So Paulo: 1989. p.13.

    20

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    compra e venda de escravos, assim como as revistas do Instituto Histrico e

    Geogrfico do Cear.

    No segundo captulo procurou-se evidenciar o importante papel da Lei2040 mais conhecida como Lei do Ventre Livre ou Lei de 28 de setembro de

    1871 para o encaminhamento jurdico da liberdade de escravos no Brasil.

    Analisou-se os projetos que resultaram na Lei e, a partir dos embates

    parlamentares, percebeu-se as experincias sociais do sistema escravista,

    vivenciadas por senhores e escravos, relacionando-os aos projetos de

    encaminhamento de uma sociedade livre, e entendendo que a sociedade

    escravista foi resultado da dinmica estabelecida entre escravos e senhores.

    Ao tratar das relaes entre senhores e escravos privilegiou-se a idia

    de que as relaes histricas so fruto de atividades realizadas por homens e

    mulheres nas lutas, resistncias, conflitos e acomodaes. Visualizou-se os

    processos cveis enquanto um campo de conflitos onde os anseios de duas

    classes antagnicas se chocam direito propriedade privada verso direito

    liberdade. Evidenciar-se- nesse captulo como a Lei 2040 possibilitou aos

    escravos utilizaremse de argumentos acerca da ilegalidade da propriedadeprivada para obstruir a relao de domnio senhorial, conseguindo colocar seus

    senhores na desagradvel situao de rus acusados muitas vezes de

    exercerem sobre eles um direito fundado sobre bases ilegais. Foram utilizadas

    as seguintes fontes: Aes de Liberdade, Leis do Imprio do Brasil, Anais da

    Cmara dos deputados e obras de poca.

    No terceiro captulo buscou-se analisar os trabalhos desenvolvidos por

    autores que trataram e discutiram a condio do africano e do afro-

    descendente na sociedade escravista, principalmente, mas no

    especificamente, aqueles que escreveram no Cear. Analisaram-se os poemas

    publicados no peridico O Libertador na coluna intitulada Litteratura; alguns

    poemas de Juvenal Galeno publicados na obra Lendas e Canes Populares;

    poemas do poeta baiano Castro Alves; e tambm alguns romances de carter

    naturalista escritos por Aluzio Azevedo e Adolfo Caminha, sendo obra do

    primeiro O Mulatoe do segundoA Normalistae Bom Crioulo.

    21

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    Examinaram-se as poesias escritas no peridico Libertador,

    especificamente aquelas publicadas durante o ano de 1881 por membros das

    libertadoras dentre eles, Antnio Bezerra e Juvenal Galeno. As poesias escritas

    por Antnio Bezerra no peridico O Libertador, na sua grande maioria, so de

    cunho ufanista. Entoou glria aos membros da libertadora e os incitou a lutar,

    agir, trabalhar, e a buscar todos os meios que levassem ao fim da escravido.

    Juvenal Galeno, por sua vez, na obra Lendas e Canes Populares

    retratou os costumes e prticas sociais dos tipos existentes na populao do

    Cear, do rude lavrador passando pelo vaqueiro, pescador e escravo. Galeno

    cantou em alguns momentos a condio do cativo. Descreveu atravs de

    versos as amarguras, emoes, paixes e gostos sentidos pelos escravos. Dos

    poemas presentes na obra, Cativeiro aquele que melhor expressa o lamento

    do escravo por ser privado da liberdade.

    Analisaram-se tambm algumas poesias escritas por Castro Alves,

    dentre elas O Sculo, onde o poeta se refere moral crist para expressar seu

    descontentamento com o sistema servil.

    Em Tragdia do Lar, escrito em 1865, Castro Alves apontou a

    perversidade da escravido. Contou a histria de uma escrava que se viu aflita

    ao sofrer a ameaa de ser separada do seu filho. Mostrou a insensibilidade do

    sistema escravista para com o direito maternidade, um dos mais

    fundamentais princpios humanos. O poeta denunciou a estrutura do sistema

    atravs da experincia do principal elemento do escravismo: o prprio escravo.

    A poesia no foi o nico gnero literrio utilizado por intelectuais,populares e abolicionistas, como meio de criticar o sistema escravista. O

    romance, especificamente o romance realista-naturalista, tambm foi um

    importante instrumento de contestao. Trabalhou-se especialmente com trs

    romances: O Mulato, de Aluzio Azevedo, escrito em 1881, obra responsvel

    por inaugurar o naturalismo no Brasil; assim como, A Normalista e Bom

    Crioulo, ambos de Adolfo Caminha, sendo o primeiro publicado em 1893 e o

    segundo em 1895.

    22

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    CAPTULO1

    OPROCESSOABOLICIONISTA DOS ESCRAVOSNOCEAR:TRAJETRIA

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    1.1 AS LIBERTADORAS: O MOVIMENTO E SEUS FINS

    Entendemos que o surgimento das libertadoras cearenses foi frutodas

    mudanas que ocorreram na provncia do Cear a partir da segunda metade do

    sculo XIX. A criao da Santa Casa de Misericrdia, em 1861, a criao da

    Biblioteca Pblica, em 1867, a instalao da estrada de ferro Fortaleza-

    Baturit, em 1873, a implantao do plano urbanstico do engenheiro Adolpho

    Herbster, em 1875, como tambm a criao da Academia Cearense de Letras,

    da Academia Francesa, do Instituto Histrico e Geogrfico e de algumas

    agremiaes literrias so caractersticas significativas dessa poca. Nessecenrio emergiram novas foras sociais, uma elite intelectual composta de

    letrados e profissionais liberais, dentre eles funcionrios pblicos, advogados,

    professores, mdicos e farmacuticos.7

    importante observarmos que as mudanas ocorridas na provncia do

    Cear, a partir da segunda metade do sculo XIX,no estavam acontecendo

    isoladamente. Outras provncias do Brasil imperial, principalmente depois de

    1850, passaram por transformaes sociais, polticas e econmicas onde as

    cidades, suas capitais, constituram-se como as snteses dessas

    transformaes. A urbanizao exigiu um complexo quadro administrativo que

    foi preenchido por burocratas, bacharis, engenheiros e mdicos.

    As mudanas que aconteceram a partir dos anos 50 trouxeram como

    conseqncia uma forte urbanizao. O rpido crescimento das cidades seguiu

    um aumento considervel da populao citadina, cujos valores tornaram-sebem diferentes daqueles da populao do campo. O meio urbano constituiu-se

    espao bastante propcio difuso de novas idias. A forte concentrao de

    pessoas, consoante ao desenvolvimento dos meios de comunicao, jornais,

    folhetins e transporte, estradas de ferro e navios a vapor, favoreciam a

    transmisso de notcias e sua discusso, estimulando a formao de uma

    opinio pblica forte.8 Nos centros urbanos observou-se nessa poca uma

    enorme adeso causa abolicionista. Atravs da imprensa, aqueles que

    7Ver: PONTE, Sebastio Rogrio. Fortaleza Belle poque: Reformas Urbanas e Controle Social (1860-1930). Fortaleza: Demcrito Rocha, 1999.

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    simpatizavam com o fim do elemento servil procuravam angariar fundos que

    seriam destinados libertao dos cativos.

    Quando as sociedades libertadoras surgiram, o sistema escravistacearense estava bastante desgastado. A forte estiagem que comeou no ano

    de 1877 e terminou em 1879 foi responsvel por obrigar grande parte dos

    fazendeiros da provncia a vender, como uma das alternativas de

    sobrevivncia, qui os nicos bens que ainda possuam: os escravos.

    O escritor e memorialista Rodolfo Tefilo escreveu uma obra de fico

    intituladaA Fome, publicada pela primeira vez no ano de 1898, onde retratou a

    calamidade ocasionada pela seca de 1877-79 na provncia do Cear. Ainda

    que se trate de uma obra de fico, acreditamos que A Fome no foge da

    realidade ocorrida naqueles anos de estiagem. Segundo o autor, o personagem

    principal, um pequeno fazendeiro do interior:

    Passava os dias meditando: estudava os planos da salvao, que procuravaacertar para depois execut-los. A imigrao para a capital era a nica esperana.Decidiu-se por ela: mas era preciso vveres ou dinheiro, e onde hav-los? A cruz doSanto Lenho vendida ao usurrio pouco produziria. Os escravos dariam um produto

    suficiente s necessidades da viagem, mas quem os compraria naquelas paragens, seos mascates desenganados tinham sado para outra localidade? O fazendeirocompreendia o perigo da situao. Algumas semanas mais de expectativa tornariamimpossvel a retirada. Estava resolvido a emigrar, mas no sabia onde achar foraspara vender os escravos e a cruz da famlia. Os seus parentes tinham sado todos,exceto seu primo Incio da Paixo, que vindo despedir-se para no dia seguinte emigrarpara a capital, despertou em Freitas uma idia: mandar por ele os cativos para seremvendidos.9

    Atravs da citao possvel perceber a situao do senhor que morava

    no interior da provncia e no tendo outro recurso ao qual recorrer para

    sobreviver naqueles anos de estiagem, optou por vender os nicos bens queainda tinham algum valor naquela ocasio, seus escravos. A historiadora

    Viviane Lima de Morais, em sua dissertao, corrobora essa assertiva quando

    escreveu:

    O vaqueiro [...] foi forado a comercializar suas vestes, motivo de orgulho,representativas de sua identidade; e objetos que, mesmo com valor extremamentedepreciado, foram vendidos por ninharias, porque naquele momento s a comida tinhavalor...10

    8Ver: MONTENEGRO, Antnio Torres.Abolio.So Paulo: tica, 1988.9TEFILO, Rodolfo.A Fome. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1979. p. 09.10MORAIS, Viviane Lima de. Razes e Destinos da Migrao: trabalhadores e emigrantes cearenses peloBrasil no final do sculo XIX. 2003. Dissertao de Mestrado (Histria Social). Pontifcia Universidade

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    Segundo Robert Conrad, durante a seca a venda de escravos para o sul

    do Imprio foi uma das principais fontes de renda do Cear. Em 1879 o

    imposto cobrado sobre a exportao de escravos rendeu 125:880$000 ris

    para os cofres pblicos, quantia que representava 7% do oramento provincial.

    Os escravos em grande maioria pertenciam a pequenos proprietrios rurais,

    fazendeiros e pessoas de classe mdia das cidades.11

    Com a ecloso da guerra do Paraguai, em 1865, o nmero de escravos

    alforriados cresceu consideravelmente. Dos 5.462 homens enviados para a

    guerra, 350 eram escravos alforriados.12Alguns senhores, quando sorteados

    para o servio militar, libertavam seus escravos e os mandavam em seu lugar.

    O governo imperial gastou uma boa soma com cartas de alforrias. Dos 350

    cativos da provncia do Cear que foram enviados para a batalha13, a grande

    Catlica: So Paulo. p. 74. Ver ainda: MOTTA, Felipe Ronner Pinheiro Imlau. Progresso, Calamidade eTrabalho: Pobreza e Urbanidade Incipiente na Cidade em Fins do Oitocentos. Revista Trajetos, vol. 2,nmero 04, 2003. Nesse artigo o autor analisa documentos como jornais, relatrios de presidente daprovncia e anais da assemblia legislativa, buscando perceber no contexto da seca de 1877 a 1879, naprovncia do Cear, as implicaes e mudanas ocorridas nesse momento na provncia. "No devemosnos distanciar do sofrimento real dos homens e mulheres que foram diretamente atingidos pelacalamidade, porm se faz necessrio estarmos sbrios para que possamos captar no somente martriosmas tambm as estratgias empreendidas por uma classe que soube se utilizar, com destreza, desseapelo emocional, que bem peculiar aos momentos de seca e escassez." Ibidem, p. 158.11CONRAD, Robert. Os ltimos anos da escravatura no Brasil (1850 1880). Rio de Janeiro, Braslia:Civilizao Brasileira, 1975. p. 75.12ALBUQUERQUE, Diogo Velho Cavalcanti de. Fala recitada na abertura da Assemblia Legislativa daProvincial do Cear pelo Exmo. Presidente da Provncia Diogo velho Cavalcanti de Albuquerque no dia 1ode novembro de 1868. Fortaleza, Typ. Brasileira, p. 19. No dia 28 de dezembro de 1868 foi sancionadapelo presidente da provncia Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, a lei de nmero 1254 que sedestinou a liberar os escravos de preferncia do sexo feminino que fossem nascendo. As alforrias seriamrealizadas no ato do batismo, sendo fixada a importncia para cada um de 150$000 ris pagos pelo cofrepblico. Somente em 8 de novembro do ano de 1869 foi ela posta em prtica pelo presidente JooAntnio de Arajo Freitas Henriques, vigorando at 1872, quando prevaleceu a Lei do ventre livre. Ver:GIRO, Raimundo.A Abolio no Cear. 4oedio. Fortaleza: Prefeitura Municipal de Maracana, 1988.13No dia 06 de novembro de 1866 o governo imperial expediu um decreto concedendo liberdade quelesescravos da nao que servissem ao exrcito, estendendo esse benefcio s suas esposas se fossem

    casados. Muitos escravos receberam carta de alforria para lutarem na guerra do Paraguai. O convviontimo entre ex-escravos e os demais membros do exrcito possibilitou a alterao gradativa da opiniodesses ltimos sobre o cativeiro. Quando a guerra terminou, em 1870, o exrcito passou a ter uma maiorimportncia poltica e social dentro da sociedade. Como afirma Lilia Moritz "a elevao poltica e social doexrcito e o fortalecimento da campanha abolicionista. A fora militar do imprio era at ento a GuardaNacional, formada por grandes latifundirios, comerciantes e polticos voltados para o controle da ordem ea manuteno do poder da aristocracia agrria. O exrcito no possua ento qualquer significado social,sendo formado por homens livres, no-proprietrios, recrutados mais por castigo ou desemprego. scom a guerra do Paraguai que o exercito passa a Ter uma posio poltica e social de destaque,negando-se depois a capturar escravos fugitivos e dando dessa forma importante apoio campanha emfavor da abolio." SCHWARTZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro:jornais, escravos, cidados emSo Paulo no final do sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 33. Terminada a guerra oexrcito se opunha a perseguir escravos fugitivos, pois os identificava enquanto companheiros quehaviam combatido durante as batalhas sob a mesma condio. Joaquim Nabuco escreveu na sua obra:

    "Essa cooperao dos escravos com o exrcito era o enobrecimento legal e social daquela classe.Nenhum povo, a menos que haja perdido o sentimento da prpria dignidade, pode intencionalmenterebaixar os que esto encarregados de defend-lo, os que fazem profisso de manter a integridade, aindependncia e a honra nacional... desde esse dia pelo menos o Governo deu aos escravos uma classesocial por aliada: o exrcito". NABUCO, Joaquim.Abolicionismo. 6oedio. Petrpolis: Vozes, 2000. p. 35.

    26

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    maioria foi com o auxlio pecunirio do governo. Os preos variavam entre

    1:000$000 ris a 1:500$000 ris pagos em espcie ou com "aplices da dvida

    pblica". Em Fortaleza essas alforrias foram mais numerosas em 1867 quando

    foram libertados 126 escravos.

    No ano de 1870, precisamente no dia 22 de outubro, foi sancionada a

    resoluo de nmero 1.344 estabelecendo a quantia de quinze contos de ris

    para a libertao dos escravos, sendo alforriados 83 indivduos, 21 na capital e

    62 no interior. A lei 1254, durante os quatro anos de existncia, alforriou 377

    escravos.

    Com a resoluo da lei 2040 de 28 de setembro de 1871 foi destinado

    s provncias um fundo de emancipao proveniente de impostos sobre a

    venda e transferncias de escravos, de loterias, de multas e de outras fontes.

    Na provncia do Cear, a primeira cota foi distribuda no ano de 1876, no valor

    de 81:537$164 ris repartidos entre os 46 municpios existentes na poca,

    sendo libertados apenas 110 cativos, em sua maioria do sexo feminino, no

    valor total de 48:116$983 ris. Cada escravo custou em torno de 437$000 a

    420$000 ris. Juntamente com os 110 cativos libertados, somaram-se mais 14alforriados a ttulo oneroso e 280 a ttulo gratuito, perfazendo um total de 404,

    conforme constam nos nmeros oficiais de 1880. Entretanto, dos 46

    municpios, apenas 20 usaram o fundo e isso aconteceu devido ao descaso de

    alguns senhores, como tambm s dificuldades de ordem burocrtica.

    A partir de 1870, com a queda do cultivo algodoeiro, a exportao de

    escravos tornou-se uma importante fonte de renda para alguns proprietrios.

    De 1871 a 1876 foram 3.256 escravos. A sada desses cativos no abalou

    economicamente a provncia devido ao fato da mo-de-obra servil ser pouco

    empregada nas atividades agropecurias.

    O tributo cobrado por cada escravo exportado da provncia em 1851

    custava 5$000 ris, em 1852 passou para 20$000 ris por cada cativo com

    idade at 12 anos e 30$000 ris para os que tivessem acima dessa idade. Em

    1853, subiu para 30$000 e 60$000 ris respectivamente. Em 1854, passoupara 60$000 ris sem discriminao de idade. Em 1855, aumentou para

    27

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    100$000 ris, permanecendo at 1860, quando baixou para 40$000 ris.

    Sendo que, em 1868, novamente baixou para 30$000 ris, permanecendo at

    1871, quando subiu novamente para 60$000 ris.14 Isso significa que nesse

    perodo, uma das principais rendas na receita oramentria da provncia foi o

    imposto cobrado sobre a exportao dos escravos.

    O livro de notas relativo s transaes de compra e venda de escravos,

    como tambm procuraes e hipotecas envolvendo os mesmos, realizadas

    durante o perodo de 1865 a 1872 na capital da provncia, mostra-nos que dos

    254 escravos negociados, grande parte era destinada exportao. A maioria

    dos escravos negociados vinha do interior da provncia, onde 116 eram

    homens e 138 mulheres. 242 no possuam nenhuma qualificao profissional

    e dos doze que sobraram, nove mulheres eram cozinheiras, dois eram

    pedreiros e um era sapateiro. Tal documento nos apresentou nomes de

    grandes negociantes de escravos da provncia como, Jacob Cahu, Joseph

    Alcain, Guilherme Augusto de Miranda, Joaquim da Cunha Freire e Francisco

    Coelho da Fonseca.15

    Foram arrolados no censo realizado na provncia do Cear no ano de1872, 721.686 habitantes, onde 31.913 eram escravos. 182.760 pessoas

    trabalhavam na agricultura sendo cativos 7.375 desses trabalhadores. Os

    escravos foram pouco empregados na atividade da agricultura, grande parte

    realizou atividades de jornaleiros e criados, um total de 21.613 indivduos. Dos

    11.363 escravos restantes foram inclusos como outros. Acreditamos que essa

    classificao outros dizia respeito queles escravos que no desenvolviam

    uma atividade especfica, mas vrias.

    Contudo, ao ser feito pelo governo, em 1873, o controle da "matrcula

    especial" como determinava a lei 2040, verificou-se que o nmero de escravos

    diferentemente daquele apresentado no censo de 1872 era de 32.652, onde foi

    constado que durante o perodo de 1871 a 1873 nasceram 2.597 filhos livres

    de mulheres escravas, demonstrando que a populao oriunda do cativeiro

    crescia numa proporo de 4% ao ano.

    14 Ver: SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. Declnio da escravido no Cear. 1988. (Dissertao demestrado). Universidade Federal de Pernambuco: Recife, 1988.15Ver: Arquivo Pblico do Estado do Cear, Livro de Notas, Fortaleza, 1865-1872, Livro Nmero 1515.

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    pai era dono de uma casa de ferragens, a primeira do ramo a se instalar em

    Fortaleza. Vice-presidente: Jos Teodorico de Castro, tambm cearense e

    comerciante. O tesoureiro: Joaquim Jos de Oliveira Filho, livreiro e scio do

    pai na livraria Oliveira. O secretrio: Alfredo Salgado, formado em Comrcio na

    Inglaterra era tambm intrprete junto ao comrcio, cabendo-lhe os negcios

    realizados nos idiomas ingls, francs e alemo. Os diretores da sociedade:

    Antnio Cruz, comerciante dono de uma casa de negcios e Barros da Silva

    dono de uma casa comercial chamada "Bolsa do comrcio", ambas localizadas

    em Fortaleza.

    A princpio a sociedade no tinha sede prpria. Realizava as reunies

    em muitos lugares. Somente a partir de 1880, passou a funcionar

    definitivamente no castelo da rocha negra, residncia de Jos Correia do

    Amaral. A associao era mantida atravs de contribuies espontneas de

    seus scios, como tambm com uma determinada quantia vinda de cada

    transao comercial realizada pela sociedade. Os diretores da Perseverana e

    Porvirforam responsveis pelo planejamento e criao da Sociedade Cearense

    Libertadora, instalada e inaugurada no dia 08 de dezembro de 1880 no salo

    de honras da Assemblia legislativa da provncia.

    Nesse dia foram alforriados alguns escravos. Trs adultos e trs

    crianas. Maria Correia do Amaral me do presidente da Perseverana e

    Porvir, alforriou seu escravo Ricardo. O tenente Filipe de Arajo Sampaio

    libertou sua escrava Joana. E os membros diretores da Perseverana e Porvir

    deram as cartas de liberdade de Filomena com trs filhos. Um dos scios,

    Antnio Dias Martins, narrou os acontecimentos daquele dia:

    O resultado no poderia ser mais compensador, nem mais auspicioso para nse para vs: - a libertao de trs adultos, sendo uma me com trs filhos, uma mulher eum homem e, mais que tudo, a inscrio de 225 scios. Se os nossos pequenosesforos produziram to imensos resultados, vs que encetais a vida da SociedadeCearense Libertadora, to cheia de adeses sinceras, to rica de esperanas e tosanta aspiraes, com o vosso elevado conceito e dedicao de patriotas provados ecearenses distintos que sois e que estremeceis o querido torro natal, vs, comodizamos, tereis muito maior colheita nesta seara luxuriante que enriquece depatriotismo o corao do generoso e nobre povo cearense"18

    18Relatrio do secretrio Antnio Dias Martins. Apud. GIRO, Raimundo. Op. cit.., p. 88.

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    Um dos scios da Perseverana, o Sr Antnio Bezerra, por ocasio da

    fundao da Sociedade Libertadora, declamou:

    Moos! Uma grande idia

    Vos anima os coraes,O mais belo dos padres!Sim, que vos sobra energiaE tendes n' alma a magiaQue gera as revolues;Se a turba no vos entendeDos moos que dependeO destino das naes.

    Avante, pois, que este sculo o sculo de grande ao,Repugna luz do progressoA idia da escravido;

    Bem firmes no vosso posto

    A ptria de tantas glriasQue viu-nos livre nascer,Embora lh'embarquem a marchaNo pode escravos conter; tempo que a liberdadeAos brados da mocidadeErga os brios da nao,Que igualados aos direitosBatidos os preconceitos,Seja o escavo um cidado19

    Terminada a sesso, os scios da Sociedade Perseverana ePorvirescolheram a diretoria que iria compor a recm criada Sociedade

    Libertadora. Joo Cordeiro ficou como presidente; Jos Correia do

    Amaral como vice-presidente; Frederico Borges 1o secretrio; Antnio

    Bezerra de Menezes 2o secretrio; Advogados, Manuel Portugal e

    Justino Francisco Xavier; Joo Crisstomo da Silva Jata, tesoureiro; e

    como procuradores Jos Caetano, Joo Carlos Jata, Joo Batista

    Perdigo e Eugnio Maral.

    Na verdade, pouco se sabe sobre todos os integrantes da Sociedade

    Cearense Libertadorae sobre a sua origem social. Enquanto alguns autores,

    dentre eles Almir Leal e Gleudson Passos ressaltam alguns aspectos da

    formao intelectual de parte dos membros da diretoria da Libertadora

    Cearense os posicionando enquanto oriundos de uma aristocracia agrria,

    19Antnio Bezerra, Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, V, 45, 1984, nmero especial,p. 98-99.

    31

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    outros encontram nessas pessoas representantes de novos segmentos

    urbanos bem distintos da aristocracia proprietria de terras.

    Entendemos que uma das maneiras que temos para melhor defini-losseja seguir de perto suas atividades em atos, gestos e palavras. Esses

    indivduos no eram originrios das camadas mais pobres da populao

    cearense, mas tambm no eram totalmente oriundos e porta vozes exclusivos

    dos interesses das classes dominantes. Por outro lado, certo que sua

    composio social os situaria enquanto membros das camadas mais altas da

    sociedade. Sua atuao no pode ser explicada exclusivamente em termos de

    defesa de interesse de classes. Apesar de possurem estreitos laos de

    parentescos, que os atavam a famlias proprietrias de terras, sua atuao se

    dava no contexto urbano. Logo entendemos que esses indivduos em grande

    parte eram intelectuais que procuravam legitimar e respaldar cientificamente

    suas aes e posies em determinadas instituies do saber, como Academia

    Francesa, Academia Cearense de Letras e posteriormente Instituto Histrico

    Cearense.

    Os membros das libertadoras cearenses, especificamente, SociedadeCearense e Perseverana e Porvir, pertenciam ao meio urbano, faziam parte

    da elite letrada cujo pressuposto supunha o engajamento nos ideais europeus.

    Para esses abolicionistas, o fim da escravido levaria o pas ao

    desenvolvimento social, poltico e econmico.

    Grande parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense

    Libertadora interpretou a realidade na qual viviam sob o prisma de teorias

    positivistas e evolucionistas, que foram introduzidas no cenrio brasileiro a

    partir de 1870. Contudo, no seguiam risca tais doutrinas, mas as

    interpretavam segundo seus interesses, como afirma Lilia Schwarcz:

    [...] a entrada coletiva, simultnea e macia dessas doutrinas acarretou, nasleituras mais contemporneas sobre o perodo, uma percepo por demais unvoca emesmo coincidente de todas essas tendncias. Tais modelos, porm, foram utilizadosde forma particular, guardando-se suas concluses singulares, suas decorrnciastericas distintas. Dessa forma, se a noo de evoluo social funcionava como um

    32

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    paradigma de poca, acima das especificidades das diferentes escolas, no implicouuma nica viso de poca, ou uma s interpretao.20

    Grande parte dos membros da diretoria da Sociedade Cearense

    Libertadora teve como objetivo defender preceitos norteadores da ordemburguesa como: liberdade poltica e econmica, industrialismo e

    desenvolvimento tecnolgico.

    Os sujeitos da mocidade cearense potencializaram sua mquina discursivaapropriando-se de enunciados e contedos simblicos coletivos daquele espao socialcomo a moral e a fora. Decodificando para aquele campo de experimentaessubjetivas os enunciados da ordem burguesa como liberdade poltica e econmica,industrialismo, desenvolvimento tecnolgico, progresso cientfico, produtos deintensidade desejantes do iluminismo, romantismo e do positivismo, aqueles homenstiveram um interesse em comum: integrar-se nas relaes de poder [...]21

    No dia da solenidade oferecida em homenagem instalao da

    Libertadora Cearense, muitas pessoas de outras associaes compareceram

    ao evento: indivduos pertencentes sociedade Cavalheiros do Prazer,

    membros da Associao Democracia e Extermnio, Gabinete Cearense de

    Leitura, Sociedade Artstica Beneficente Conservadorae aqueles pertencentes

    Beneficente Portuguesa 2 de Fevereiro. Nesta ocasio grande parte dos que

    discursaram enfatizaram temas como progresso e civilizao.

    Sucedeu-lhe na tribuna o ilustre secretrio da Beneficente Portuguesa 2 defevereiro que, representando a sua benemrita associao, traz-no dela a sinceraadeso que tributamos a todos os acontecimentos em que a liberdade, ao solbenemrito de todas as naes, irradia-se nos horizontes onde assinalam o progressoe a civilizao; o orador retira-se da tribuna ao som de palmas.22

    O pblico era bem distinto: bacharis, intelectuais, estudantes, procos,

    mdicos, militares e algumas autoridades.

    Diversas pessoas contriburam com o que podiam, o ilustre Dr. Picao ofereceuem adeso causa da emancipao o produto de benefcio da rcita da operetaMadame Angot na Munguba, de que autor, e lhe foi oferecido pelo empresrio doTeatro S. Jos e cujo produto dever ser aplicado libertao de um escravo.23

    O francs Pedro Hiplito Girard, dono de um quiosque localizado no

    passeio pblico, ofereceu o produto da venda de uma noite causa da

    liberdade:

    20

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil(1870 1930). So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 43.21CARDOSO, Gleudson Passos. Op. cit., p. 46.22Ibidem, p. 89-90.23Ibidem, p. 92.

    33

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    a diretoria da sociedade > de acordo com a da resolveu em sesso de 22 de dezembro para findopromover um bazar expositor de prendas para juntar no passeio publico ao beneficioofferecido pelo Sr. P. Hypolito Girard; sendo, de entre os socios presentes sesso,nomeada uma comisso composta dos Sr. Antonio Bezerra de Menezes, Jos Correa

    do Amaral, Jos Barros da Silva, Jos Theodorico de Castro24

    A loja manica Fraternidade Cearense ofereceu 50$000 ris, o cnsul

    alemo Csar de la Camp ofereceu 20$000 ris. O peridico Libertador

    noticiou:

    s seis horas da tarde do dia 31 de dezembro estava armada no centro dopasseio publico uma barraca [...] onde se achavam exposta todas as prendas colhidas.

    Esta profuso de objetos dava uma vista esplendida pela projeco de belloeffeito produzido pela illuminao, apresentado cambiantes belissimas.

    A illuminao principal foi devida ao illustre engenheiro M. Seddon Morgan, a

    quem daqui tributamos os nossos cordiaes agradecimentosIgual aspecto de phantazia offerecia o magnifico repuxo que ficava em frente

    ao bazar produzindo pelo effeito da luz atravez das lanternas de papel de cor-ora chuvade ouro, ora de perolas e as vezes ligeiros iris que assemelhavam-se as azas de beija-flores nas rapinas ondulaes feitas pelas brisas do mar

    Um concurso de cerca de setecentas pessoas animava ruidosamente a grandefesta.

    A musica do 15obatalho de infantaria cedida pelo seu benemerito ...Eram 7 horas da noite e ia comear o leiloMuitos objectos foram vendidos um bouquet de flores naturaes produziu,

    depois de arrematado pelo Sr. Salgado, diretor da sociedade Perseverana e Porvirepelo mesmo de novo offerecido , 30$000

    O lano teve suas alternativas: uma caixinha com perfumarias offerecida por

    uma jovem cearense deu 40$000Assim continuou o leilo mais animado at as 10 horas, tendo produzido cerca

    de 900$000.Ficando ainda por vender mais de dous teros das prendas expostas, e sendo

    a hora adiantada, ficou o leilo adiado para as duas noites seguintes.O bom do Sr.Hypolito preparara ento uma surpresa convidando a directoria e

    diversas familias para um bem servido banquete que os esperava no hotel L, Univers.De facto alli encontramos uma profusa mesa, havendo um salo preparado

    para dana, abrilhantado com a sympathica presena de muitas senhoras, entre asquais se achava a jovem pianista brazileira Idlia Frana que para logo recebeu-noscom uma brilhante execuo de piano

    Discursos, brindes e hurrahs foram proferidos inspirados na mais ardente idea a liberdade, na mais perfeita cordialidade a familia, no mais excelso sentimento o

    enthusiasmoTerminou-se as duas horas da manha (...)No dia 1 e 2 continuou sempre animado e concorrido o leilo; no sendo

    possvel, porm, concluir a venda de todos os objectos, adiou-se ainda para o dia 5 noite.

    No dia 5 as 5 horas da tarde comeou o leilo das ultimas prendas, terminandoanimado, as 9 da manh...25

    24O Libertador, 12 de janeiro de 1881, Nmero 01, p. 3.25O Libertador, 07 de fevereiro de 1881, Nmero 03, p. 6.

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    Antnio Martins. Como colaboradores, Frederico Borges, Justiniano de Serpa,

    Martinho Rodrigues, Joo Lopes, Abel Garcia, Almino lvares Afonso.

    O jornal surgiu com o propsito de atuar na campanha publicitria emfavor da emancipao da escravido na provncia do Cear, primava por uma

    escrita eloqente e potica, sempre se remetendo "conscincia pblica",

    como maneira de convencimento de suas idias.28

    Em homenagem fundao do jornal, escreveu um poeta annimo:

    O grande campeo da liberdade,O temido jornal "libertador" Se fez o horscopo da verdadeO erro profligando com fervor;A carne apodrecida da maldadeQueimava com prazer, embora a dor,Viesse despertar o escravismo,O qual inda sonhava o despotismo.29

    O Libertador, nas edies que antecederam o dia 25 de maro de 1884,

    sempre se referiu liberdade enquanto elemento principal para o

    desenvolvimento das letras, artes, indstria, lavoura, agricultura e que tais

    desenvolvimentos somente poderiam ocorrer com o fim da escravido. A

    abolio permitiria a nao crescer e ser to forte poltica e economicamente

    quanto alguns pases do velho mundo, dentre eles, Frana e Inglaterra.

    Os membros da Libertadora Cearense desejavam ver a provncia do

    Cear como a primeira do Imprio a libertar seus escravos, "podemos exclamar

    cheios de prazer aos nossos irmos do sul: vinde apprender comnosco a ser

    livres!" Ainda exaltavam o esprito empreendedor do povo cearense, "vinde ver

    como um povo acabrunhado de mil calamidades naturaes, encara os perigos, e

    a despeito de todas as desgraas s sonhara com as grandezas que lhe inspira

    o esforo de sua constancia."30.

    28 "...a conscincia pblica revoltou-se, e a liberdade reclamou justia. O Libertador, 1o de Janeiro de1881, Nmero 01, p. 1.29Revista da Academia Cearense de Letras, ano LXXXIX, V, 45, 1984, nmero especial, p. 61-97.30Ibidem, p. 2.

    36

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    Enfatizavam o quanto era vergonhoso para uma nao ainda possuir

    escravos: "em meio das grandes idias que nobilitam o nosso sculo, uma

    grande vergonha faz ainda corar a nossa ptria."31A grandeza do pas, com

    seu imenso territrio, rico em recursos naturais, rios, oceanos e matas, torna-

    se diminuta com a existncia da escravido.

    Em quanto a liberdade no congraar-nos no mesmo amplexo, como irmosque somos perante Deus e a humanidade, perante a civilizao e o progresso,seremos um povo sem autonomia, sem conscincia do nosso valor...32

    Acreditavam que a escravido representava uma violao s leis

    econmicas, polticas e sociais do mundo contemporneo. Os membros da

    sociedade viam a escravido como um entrave racionalidade econmica e aodesenvolvimento de uma nao:

    Considerar nos effeitos da emancipao dos escravos dos Estados Unidos, daqual, no obstante Ter sido effectuada de chfre, resultaram grandes benefcios paraaquelle paiz.

    Ali, os antigos escravos tem feito extraordinrio progresso em sua educaomoral, scientifica, e industrial como se acha perfeitamente demonstrado em algunsartigos sobre a epigraphe publicado em novo mundo dejunho e julho de 1879.

    Quando muitos philantropos da Europa no podiam acreditar na possibilidadede conseguir, que em poucos annos a raa africana fizesse a evoluo da semi-

    barbaria da escravido para o maximo estado de civilizao, no goso de todos osdireitos de cidado de uma Republica perfeitamente democratica, vemos que esseprodigio esta realizado: h negros nas universidades, nas academias, nos collegios enas escholas; h negros medicos, advogados e em todas as profisses; h negrosdeputados e senadores; h negros padres e em todos os ramos da religio christan

    Sejamos por tanto, ousados e resolutos em affirmar os princpios de uma purae radical democracia, clamando sem cessar pelo resgate dos captivos.

    O progresso, como a religio da humanidade, tem por scopo supremo afraternidade dos homens e dos povos, commungando todos os mesmos agape osmesmos direitos e os mesmos deveres.

    Ns que representamos a opinio, queremos a consagrao politica e socialdos princpios de liberdade, de justia de solidariedade, que constituem a scienciamoderna.33

    Os abolicionistas da Sociedade Cearense Libertadora utilizaram-se do

    jornal Libertador para expressarem-se politicamente, criticando duramente

    aqueles que agiam contra seus interesses. Os que se manifestavam contra ou

    se negavam a ajudar eram execrado pelos membros da diretoria: "verificou-se

    e est provado que o homem que negou uma pequenina offerta a sympathica

    31O Libertador, 1ode Janeiro de 1881, Nmero 02, pg 01.32Ibidem, p. 1.33O Libertador,15 de Janeiro de 1881, Nmero 02, p. 3.

    37

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    comisso de senhoras, sob o futil pretexto de ser contra a ideia (logo

    escravocrata)."34

    O juiz municipal Jos Gonalves de Moura sentiu a clera dos diretores,pois mantinha em cativeiro uma mulher de nome Esperana que se dizia livre.

    Os abolicionistas denunciaram e condenaram tal situao:

    Os escravagistas, os miseraveis especuladores de carne humana, estespequenos miseraveis, q' tem accumulado fortuna custa de tantas lagrimas e gemidos,acossados abolicionista, vendo que a cada momento lhes fugir das mos essa novaespecie de velocinio de ouro.

    E que os infames negociantes de negros rastejam-se at o crime, reduzindopessoas livres escravido.

    Mas no nos abandona a f na generosa e grandiosa propaganda, que

    levamos por diante. Um dia o escalbello de reo h de ser o throno de ouro dessesnojentos e asquerosos egoistas e ambiciosos vulgares, que tem os esgares doavarento, a alma de lama [...]35

    E novamente no dia 29 de junho do mesmo ano investiram contra

    Petrolina Alves Pontes e Fideralino Ribeiro da Silva, acusados de manter em

    seu poder, mettidos a ferro, escravos considerados livres. Os abolicionistas

    denunciaram o fato ao chefe de polcia da provncia:

    Hoje que a ida da libertao dos escravos na provncia no mais umautopia, que todos os verdadeiros cearenses se esforam por estirpar de uma vez o

    cancro do elemento servil que tem sido o motivo do retardamento do progresso, que decorao anhelamos para este querido paiz, existe ainda algum que se oppe aoimpulso do grande movimento, lanando mo de meios ignbeis para neutralisar-lhetoda ao

    Existem ainda creaturas que no corando do ridculo papel que representamperante os homens de verdadeiro merecimento, escudam-se na infmia, praticandoactos que na phase presente bem os recommendo a execraam publica [...]

    Em 30 de setembro de 1878 [...] D. Guilhermina Hermilina Freire, concedeucartas de liberdade a seus escravos Salustiano, Luiza e Rufino [...]

    Pois bem; agora aparece Fidelino Ribeiro da Silva, protestando serem os ditosescravos considerados libertos, porquanto aquella senhora , que falleceu emdezembro do ano passado, havia ficado a dever Petrolina Alves Pontes, e quer a todo otranse que os escravos, que entretanto a trs anos gozavam de inteira liberdade,

    fiquem por pagamento da divida [...]Denunciando-lhe ao Ilm.Sr.Chefe de Polcia, confiamos que, tomando em

    considerao os soffrimentos dos mesmos perseguidos, mandar informar-se doocorrido e punira o criminoso com o rigor da lei, para desse modo desbaratar a audaciados negreiros, que ainda se atrevem a escravisar pessoas livres [...]"36

    Os scios diretores da Libertadora Cearense tambm questionaram comoestava sendo feita a classificao dos escravos na capital:

    Vem apelo chamar tambm a ateno do senhor Fleury para a classificaonessa capital

    Seria de grande interesse para o fundo de emancipao a reforma desseservio que como se sabe foi feito com toda a indifferena e por tanto inado dedefeitos que se notam a primeira vista de observao; alm de que hoje o valor dessa

    34O Libertador,12 de janeiro de 1881, Nmero 01, p. 4.35O Libertador, 16 de junho de 1881, Nmero 11o, p. 1.36O Libertador,29 de julho de 1881, Nmero 15, p. 1.

    38

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    criminosa propriedade est entre nos to depreciado que vale a pena ser a talclassificao totalmente reformada

    Com o movimento abolicionista promovido no imperio, fechados os portos dasprovincias do rio de janeiro, so paulo, minas gerais, como actualmente se acham coma promoa da proibio da exportao pelo porto desta capital obtida pela Sociedade

    Cearense Libertadora, um escravo da capital e mesmo do interior da provincia nopode Ter maior valor de 40$000 reis

    portanto uma propriedade completamente depreciada e assim no podeabsolutamente vingar a avaliao anteriormente feita, nesta capital, em sobral, e emoutros municipios

    E por tanto appellamos para as autoridades competentes, cujaresponsabilidade tornar-se-h solidaria com os delinquentes se no houverem severase promptas providencias37

    Outras vezes utilizavam discursos comoventes, procurando sensibilizar seusleitores, posicionando-se como irmos, amigos e pais dos cativos.

    >

    >

    >

    registrando esse acontecimento externamos o mais profundo pezar que nosinvadio a alma, por no termos a felicidade de acharem-se na praia, em tal emergencia,os nossos abolicionistas

    ah!... si elles l estivessem-os infelizes teriam encontrado o pae, o irmo e oamigo que nunca tiveram em sua vida!38

    1.3 COMPRAS, VENDAS E FUGAS

    Do mesmo modo que a imprensa contribuiu para a campanha

    abolicionista, tambm serviu aos interesses escravocratas. Os peridicos da

    provncia a partir da segunda metade do sculo XIX, esto repletos deanncios de compra, venda e fugas de escravos. Nesses anncios vinham

    normalmente assinalados o nome ou alcunha do cativo, como tambm a

    descrio fsica, temperamento, hbitos e deformaes.

    Ha oito dias desapareceram [sic] da casa do abaixo assignado um escravo denome Matheus, com 25 annos de idade, mulato claro, cor pallida, palpebras grossas,com uma cicatriz de ferida recente em uma das pernas, acual tem atada uma corra deveado. Levou camisa e cerola de algodozinho branco e um chapo de palha velho.Sem motivo algum para fugir, visto que era livre andar e trabalhar na rua quando lheparecia; suspeita-se que tenha acostado a algum abarracamento onde tenha deparado

    algum conhecido. Recommenda-se aos srs. Comissarios e administradores respectivos

    37O Libertador,03 de maro de 1881, Nmero 05, p. 5.38O Libertador,17 de maro de 1881, Nmero 06, p. 2-3.

    39

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    e gratifica-se aquem der delle exacta noticia ou o trouxer casa, sendo dispensvelqualquer violncia. Fortaleza, 9 de janeiro de 1880. Fenelon Bomilcar da Cunha.39

    Havia algumas constncias em relao aos escravos descritos.

    Normalmente, a idade variava de 10 a 60 anos, sendo mais constante a

    compreendida entre 15 e 30 anos. Aqueles com estatura alta ou "bastante alta"

    eram mais freqentes do que os de estatura baixa, sendo os de estatura

    "regular" ou mediana os mais numerosos. Quanto a cor, os escravos eram

    descritos de modos bem variados, sendo mais freqente a designao de

    tonalidade "cor mulata" ou "parda".

    Gratifica-se bem quem aprehender os escravos Loureno, pardo, de 28 annosde idade, baixo, cabellos crespos, olhos pretos, nariz chato, barbado, e boa

    physionomia; Roberto, preto, de 22 annos de idade, alto, cabellos carapinhos, olhospretos, nariz chato, pouca barba e boa physionomia, entregal-os na Imperatriz aosenhor Henrique Cordeiro dos Santos, e na capital ao Dr. Meton da Franca Alencar.Supe-se que elles ando nos abarracamentos dos retirantes.40

    Os corpos eram descritos como, "franzino", "regular" ou "bonita figura".

    Os cabelos eram em geral descritos como "carapinhados" ou "pixains", mas

    tambm havia aqueles assinalados como "crespos", "cacheados" ou "corridos".

    O rostos eram "compridos" ou "redondos". Os dentes geralmente vinham

    descritos como "podres" ou "quebrados", ou ento com algumas distines queindicava uma caracterstica da tribo ao qual pertenciam.

    Desapareceu da capital do Cear, em 23 de setembro de 1879, o escravoJos, trajava camisa de algodo grosso e cala de riscado americano, tendo ido ali servendido ao Sr. Baro da Ibiapaba, da casa de quem se evadio; quem o pegar eentregar na capital ao mesmo Baro, ou aos senhores Joo Cordeiro & Cia, noAcarah ao senhor Antonio Ferreira Junior, ou ao major Francisco Theophilo Ferreiraser gratificado com cem mil ris Signaes: idade 19 annos, nariz regular, cabellos quasicarapinhos, olhos pretos, altura baixa, rosto redondo, tem os dentes abertos a faca emum delles na frente quebrado com uma lasca tirada, j querendo mudar de cor.41

    Os escravos presentes nos anncios dos peridicos cearenses, em sua

    grande maioria, apresentavam-se como "bastante ladinos" ou "espertos e bem

    falantes". Quanto ao temperamento, "prosistas", "risonhos", "muito

    despachados". Com relao as preferncias ldicas, as mais freqentes eram

    aquelas relacionadas com dana e msica, "toca bem gaita", "Mete-se a

    cantador", " apaixonado por samba cantador de chulas". Os hbitos so

    39Cearense, 11 de julho de 1880.40Cearense, 09 de julho de 1878.41Cearense, 02 de maio de 1880.

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    secretrio, Antnio Bezerra; os diretores, Antnio Martins, Jos Teodorico,

    Jos Barros, Jos Marrocos e Isac do Amaral.

    Joo Cordeiro, nas memrias publicadas na revista do Instituto doCear, deu outra verso para o fato. Segundo ele, no dia 30 de janeiro de

    1881, foi decidido pelos membros da libertadora, que seria destinada uma

    comisso encarregada de elaborar um estatuto para a sociedade. Dias depois

    os membros se reuniram para ler e aprovar o estatuto, mas houve muita

    discrdia e Joo Cordeiro declarou:

    [...] o projeto de estatutos que acaba de ser lido no convm. Ns queremos

    uma sociedade carbonria, sem ligaes com o governo, que ocupe-serevolucionariamente da libertao dos escravos por todos os meios ao alcance dosnossos recursos pecunirios, da nossa inteligncia e da nossa energia. Os estatutosque nos convm devem ser simplesmente estes: Art.1o libertar escravos, seja porque meio for. Art 2o todos por um e um por todos.47

    O abolicionista Isac do Amaral, por sua vez, numa entrevista publicada

    no jornal O Nordeste no ano de 1934, afirmou que os estatutos no foram

    propostos por Joo Cordeiro, mas sim por Antnio Bezerra:

    [...] a idia triunfou e se formou um grupo de resistncia que prosseguiu na luta,

    sendo de justia destacar os nomes do punhado desse ncleo: Joo Cordeiro, AntnioCruz, Antnio Martins, Antnio Bezerra, Jos Teodorico de Castro, Padre Frota, AlfredoSalgado, Frederico Borges, Almino lvares Afonso, Manuel Albano Filho, Joo e JosAlbano, Jos Barros, Joo Carlos Jata, Jos Marrocos, J. Cndido Maia, Justiniano deSerpa, Rodolfo Tefilo, Filipe Sampaio e Isac do Amaral... eram estes os tais dezlibertadores [...] do lado da libertadora ficamos com a maioria do povo, e do lado doslegalistas, tendo a frente o ento Dr. Guilherme Studart, Julio Cesar da Fonseca Filho,Joo Lopes Ferreira Filho, Antnio Miranda e muitos outros filiados, ficou o apoio oficiale grande parte do funcionalismo pblico e dos proprietrios, que no se queriamaventurar em lutas subversivas, que atentavam contra a constituio do imprio. Mastodos trabalhavam pela mesma causa [...] 48

    A maioria dos membros da Cearense Libertadora entendia que a

    abolio da escravido era o mecanismo pelo qual a sociedade alcanaria o

    desenvolvimento econmico, poltico e social. Tinham como referncias leituras

    cientificistas e evolucionistas, como tambm comungavam dos ideais liberais.

    Eram a favor do livre comrcio e do liberalismo econmico. Baseavam-se na

    economia poltica inglesa. Entendiam que o Estado deveria intervir em algumas

    decises que envolvessem o direito pblico. Assim como Joaquim Nabuco,

    entendiam que a escravido era um mal que deveria ser superado.

    47Revista do Instituto do Cear, Vol. 59, 1945. Apud. GIRO, Raimundo. Op. cit.

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    Para o abolicionista Joaquim Nabuco a escravido deveria acabar

    porque era um mal para a economia do pas, pois lhe tirava a energia e a

    resoluo, desmoralizava-lhe e a rebaixava politicamente frente a outros

    pases. Ainda lhe impossibilitava o progresso material, pois a escravido,

    segundo o abolicionista, "impede a imigrao, desonra o trabalho manual,

    retarda a apario das industrias, promove a bancarrota, desvia os capitais de

    seu curso natural, afasta as mquinas, excita o dio entre as classes, produz

    uma aparncia ilusria de ordem [...]"49.

    Nabuco tinha 34 anos quando publicou o Abolicionismo. Defendeu uma

    abolio moderada quanto aos mtodos e formas de lutas. Foi claro: "[...] a

    escravido no h de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito

    menos por insurreies ou atentados locais", 50mas vir de "uma lei que tenha

    os requisitos, externos e internos de todas as outras."51 Foi o abolicionista,

    nesse sentido, o defensor da causa e o responsvel por advogar a favor de

    "duas classes sociais que, de outra forma no teriam meios de reivindicar seus

    direitos, nem conscincia deles. Essas classes so os escravos e os

    ingnuos."52

    A propaganda abolicionista para Nabuco, no deveria ser dirigida aos

    escravos, mas aos homens "idneos" que se encarregariam de defender os

    interesses dos "mseros cativos" que, segundo ele, no teriam condies de

    defenderem seus interesses por serem ainda "selvagens" e "brbaros."

    A propaganda abolicionista, com efeito, no se dirige aos escravos. Seria umacobardia, inepta e criminosa, e, alm disso, um suicdio poltico para o partidoabolicionista, incitar insurreio, ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de

    Lynch, ou a justia pblica, imediatamente haveria de esmagar. Cobardia, porque seriaexpor outros que a perigos que o provocador no correria com eles; inpcia, porquetodos os fatos dessa natureza dariam como nico resultado para o escravo aagravao do seu cativeiro; crime, porque seria fazer os inocentes sofrerem pelosculpados, alm da cumplicidade que cabe ao que induz outrem a cometer um crime;suicdio poltico, porque a nao inteira vendo uma classe, e essa a mais influente epoderosa do Estado, exposta a vindita brbara e selvagem de uma populaomantida at hoje ao nvel dos animais e cuja as paixes, quebrado o freio do medo,no conheciam limites no modo de satisfazer-se [...]53

    48 Entrevista apresentada no jornal O Nordeste, Fortaleza, edio de 24-03-1934. Apud. GIRO,Raimundo. Op. cit.49

    NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. 6

    o

    edio. Petrpolis: Ed. Vozes, 2000.50Ibidem, p. 35.51Ibidem, p. 35.52Ibidem, p. 35.53Ibidem, p. 39-40.

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    no foi um movimento de cunho humanitrio e filantrpico. Para tais

    abolicionistas, o fim da escravido consistia na negao da grande

    propriedade, na luta pela oportunidade de instruo pblica para toda a

    sociedade e por uma reforma eleitoral que permitisse uma maior participao

    da populao. Esses abolicionistas tinham como inteno mudar a estrutura de

    produo de forma que outros setores da sociedade, que no somente o dos

    grandes proprietrios de terra, mas tambm pequenos produtores e as

    camadas mdias, passassem a ter uma participao poltica mais direta e uma

    certa parcela de poder. Ainda buscavam um reconhecimento, sobretudo

    poltico, onde o fim da escravido era tambm o de uma instituio que

    legitimava at ento a ordem poltica e social vigente.

    Esses abolicionistas estavam pensando a organizao do mercado de

    mo-de-obra, de forma que o fim imediato do regime de trabalho escravo viria

    acompanhado de uma instruo educacional que formasse o ex-escravo nos

    novos valores e comportamentos correspondentes ao modo de produo

    capitalista que estava se instituindo. A mudana do sistema servil ao livre

    deveria vir acompanhada da garantia de que a organizao do trabalho no

    seria ameaada. A liberdade deveria vir atrelada s formas de explorao

    capitalistas que estavam surgindo, se assim no fosse, qualquer outra forma de

    comportamento seria anal