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Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação:

A excelência na formação do Assistente Social

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ChancelerDom Dadeus Grings

ReitorJoaquim Clotet

Vice-ReitorEvilázio Teixeira

Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloAugusto BuchweitzBeatriz Regina DorfmanBettina Steren dos SantosClarice Beatriz de C. SohngenCarlos Graeff TeixeiraElaine Turk FariaÉrico João HammesGilberto Keller de Andrade Helenita Rosa FrancoIr. Armando Luiz BortoliniJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy – Presidente Lauro Kopper FilhoLuciano KlöcknerNédio Antonio SeminottiNuncia Maria S. de Constantino

EDIPUCRSJerônimo Carlos Santos Braga – DiretorJorge Campos da Costa – Editor-Chefe

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Maria Isabel Barros Bellini Thaísa teixeira Closs

Organizadora

Serviço Social, Residência Multiprofissional e Pós-Graduação:

A excelência na formação do Assistente Social

EDIPUCRSPorto Alegre, 2012

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© EDIPUCRS, 2012CAPA Rodrigo BragaREVISÃO DE TEXTO Fernanda LisbôaEDITORAÇÃO ELETRÔNICA Andressa Rodrigues

S491 Serviço social, residência multiprofissional e pós-graduação :a excelência na formação do assistente social [recursoeletrônico] / org. Maria Isabel Barros Bellini, ThaísaTeixeira Closs. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre :EdiPUCRS, 2012.191 p.Sistema requerido: Adobe Acrobat ReaderModo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>ISBN 978-85-397-0192-6 (on-line)1. Serviço Social – Ensino. 2. Assistentes Sociais –

Formação Profissional. 3. Residência Multiprofissional emSaúde. 4. Pós-Graduação – Ensino. I. Bellini, Maria IsabelBarros. II. Closs, Thaísa Teixeira.

CDD 361

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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Sumário

APRESENTAÇÃO ...................................................................................7

INTRODUÇÃO ....................................................................................10Maria Isabel Barros Bellini

EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE ........................................................14Marisa CamargoMaria Isabel Barros Bellini

INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS EM ATENÇÃO BÁSICA .....................................34Thaísa Teixeira Closs

SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE ...................................................................... 63Tatiane Moreira de VargasMaria Isabel Barros Bellini

A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO .....................................................................79Cláucia Ivete SchwerzMaria Isabel Barros Bellini

FAMÍLIAS VULNERÁVEIS ..................................................................101Simone da Fonseca SanghiMaria Isabel Barros Bellini

ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL ....................................................118Vanessa Maria PanozzoBerenice Rojas Couto

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VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA .................................................................136Maíra GiovenardiMaria Isabel Barros Bellini

OS FILHOS DA AIDS ..........................................................................155Luciana Basile SilvaKelinês GomesMaria Isabel Barros Bellini

SOBRE AS AUTORAS ........................................................................189

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APRESENTAÇÃO

No processo de indução e apoio à institucionalização, fortalecimento e expansão das residências multiprofissionais em saúde, os gestores federais da saúde e da educação têm sido questionados com relação ao alto custo dessa formação, à dificuldade de considerar sua abrangência em contraponto ao seu real impacto sobre as ações e serviços de saúde e à escala necessária de qualificação de profissionais para atender às necessidades do Sistema Único de Saúde/SUS. Outro questionamento frequente diz respeito a que profissões devem compor a equipe multiprofissional no serviço e, portanto, também nos programas de formação na modalidade residência.

É necessário financiar a formação de profissionais de saúde das diversas categorias em um programa de 60 horas semanais, em dedicação exclusiva por dois anos? Por outro lado ainda, como foram definidas as profissões consideradas da saúde? Há as que se manifestam como injustamente excluídas, como a especialidade da Física Médica, e há as que estão incluídas, mas se consideram como sendo profissões não apenas da área da saúde, como a Psicologia e a Educação Física. São questões complexas, a serem abordadas à luz da construção do também complexo princípio da integralidade da atenção à saúde que conforma o SUS.

A presente publicação apresenta um conjunto de artigos escritos a partir da práxis e das reflexões de assistentes sociais, que, após vivenciar a experiência de cursar a residência multiprofissional em saúde, na atenção básica e na saúde mental, buscaram a continuidade da sua formação em nível de pós-graduação stricto sensu – mestrado e doutorado – no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

A leitura dos artigos que compõem esta publicação nos transporta a um entendimento sobre a importância de investir na formação dos diversos profissionais que compõem a equipe de saúde com distintos papéis na conformação da rede de atenção à saúde, quando o desafio colocado é o de promover mudança do modelo de atenção e efetivar o preceito constitucional de que cabe ao SUS ordenar a formação de recursos humanos para a saúde.

Ao considerar a inserção dos Assistentes Sociais e as experiências formativas pautadas na gestão e no planejamento da atenção básica,

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é possível projetar seu papel na “participação e sistematização de demandas da população e na construção de interfaces entre serviços” das diferentes áreas, na perspectiva da ação intersetorial das políticas sociais. A democratização dos serviços e a organização do trabalho aberta às demandas da população, promovendo o encontro entre as necessidades de saúde e a oferta de serviços, são aspectos particularmente afeitos à atuação do Serviço Social.

Ao tratar da Assistência em Saúde Mental, um dos trabalhos postula a questão sobre como o Estado se tem organizado para o enfrentamento da questão social, entendendo a saúde mental como expressão dessa relação. A análise do processo histórico mostra a evolução da Reforma Psiquiátrica, da rede de atenção integral à saúde mental e da mudança conceitual que resultou na criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Ao mesmo tempo, há muitos desafios ainda a serem enfrentados para a real inclusão social de portadores de sofrimento psíquico no cotidiano da comunidade.

Os objetos de estudo aqui selecionados apontam para a ampliação do campo de visão no que diz respeito à construção social do processo de saúde e doença, no âmbito individual e coletivo. O estudo sobre a família como rede de apoio ao dependente químico destaca a importância deste acolhimento e também o risco da sobrecarga para a família enquanto cuidadora. É impactante o relato da mãe de um dos dependentes participantes da pesquisa quando declara “Hoje deixo ele voltar para casa, é meu filho. Antes, botava ele para correr e os laços que ele formou na rua foram mais fortes”.

O estudo sobre famílias vulneráveis, suas múltiplas configurações e formas de organização para enfrentar um cotidiano altamente adverso oferece pistas sobre a importância da abordagem necessária para que as políticas públicas sociais possam ser adequadamente endereçadas e beneficiar efetivamente a quem precisa delas. E o artigo “Filhos da AIDS: contando histórias de vida” traz depoimentos que se constituem em lição de vida e rica fonte de reflexão sobre como se organiza a rede de atenção, a importância de que ela seja usuário-centrada, e de que os profissionais de saúde estejam preparados para a atenção integral, para muito além dos saberes cognitivos, técnicos e práticos. O acolhimento e o vínculo de que o usuário do SUS precisa só se concretizarão se os profissionais de saúde puderem dispor em caráter abrangente, de uma formação ético-

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política preparada para captar a complexidade da realidade em que a vida acontece, e onde a saúde e a doença se manifestam.

Nos últimos dois anos, o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, em parceria com a CAPES, têm promovido, como parte das múltiplas estratégias que integram a política de formação dos profissionais de saúde, apoio à criação de programas de pós-graduação em ensino na saúde, incluindo a articulação entre a residência médica e multiprofissional aos mestrados profissionais. A trajetória das pesquisadoras materializada nesta publicação nos remete ao acerto deste caminho. O conjunto das pesquisas, desenvolvidas em programa de pós-graduação stricto sensu, constitui-se em um precioso material de investigação e registro do que pode ser alcançado pela residência multiprofissional em saúde e, em especial, de visibilidade sobre a inserção do profissional Assistente Social na equipe multiprofissional de saúde.

A iniciativa dialoga também com os objetivos estratégicos estabelecidos pelo Ministério da Saúde para a atual gestão, que envolve o fortalecimento das redes de atenção à saúde, a atenção básica como ordenadora da rede e a Saúde Mental (ou Atenção Psicossocial), como prioridade.

A oportunidade de apresentar esta publicação é motivo de grande satisfação, por tantas razões, mas principalmente pelo aprendizado proporcionado e pela constatação de que o Brasil, em que pesem os desafios ainda postos, pode orgulhar-se da qualidade da educação superior que tem produzido, por contar com instituições de excelência, como a PUCRS, e do amplo movimento em curso, com o forte engajamento das universidades, dos gestores da saúde, da educação e dos serviços, de integração ensino-serviço-gestão-comunidade, que norteia a política nacional de gestão do trabalho e da educação na saúde.

Ana Estela HaddadDiretora de Programa

Secretária-Substituta de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúdedo Ministério da Saúde

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INTRODUÇÃO

Maria Isabel Barros Bellini

Esta publicação atende a vários interesses. Interesse dos órgãos representativos da categoria profissional dos assistentes sociais, das instituições de ensino superior e do Ministério da Saúde e da Educação quanto aos investimentos realizados para qualificação profissional na área, para valorização das práticas e cenários de prática na saúde e consolidação do SUS. Reitera-se que essa qualificação só é possível se amparada na parceria entre instituições governamentais e universidades impactando na forma como a política de saúde é ensinada nas universidades e conduzida pelos gestores e profissionais nos municípios e estados do Brasil.

Nessa perspectiva, em 2004, o Ministério da Saúde reiterava, no documento sobre a Política de Educação e Desenvolvimento para o SUS: caminhos para a Educação Permanente em Saúde, a importância da “criação e ampliação de programas de residência em saúde da família, residências integradas em saúde e a redistribuição ou ampliação das bolsas de residência entre as áreas, profissões e especialidades importantes para a implementação do SUS” (BRASIL, 2004, p. 26). Antecipando essa necessidade, o Rio Grande do Sul, já na década de 1970 criou a residência multiprofissional no Centro de Saúde-Escola Murialdo e, na década de 1980, a residência em saúde mental que funciona junto ao Hospital Psiquiátrico São Pedro/RS, formação que atualmente é denominada Residência Integrada em Saúde/RIS/SES e está composta por quatro ênfases (Saúde Mental Coletiva, Atenção Básica, Dermatologia Sanitária e Pneumologia Sanitária).

A experiência foi seguida pelo Grupo Hospitalar Conceição, PUCRS e Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS) os quais criaram as suas residências multiprofissionais e atualmente esses programas oferecem, anualmente, “um total de 159 vagas para o ingresso de diferentes profissionais de saúde” (VARGAS, 2011, p. 91), do total dessas vagas estima-se que 22 são para Assistentes Sociais (VARGAS, 2011), configurando um percentual de aproximadamente 15%.

A implementação da busca dessa modalidade de formação pelos assistentes sociais e a inserção do Serviço Social na residência

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multiprofissional é motivo de atenção pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social/ABEPSS entidade civil, de natureza político-científica de âmbito nacional, de direito privado, sem fins lucrativos que propõe e coordena a política de formação profissional na área de Serviço Social articulando a graduação com a pós-graduação e que tem como preocupação o fortalecimento de uma concepção de formação profissional integradora. Por essa razão, a modalidade de formação da residência multiprofissional tem sido digna do olhar atento dos órgãos representativos da categoria profissional dos assistentes sociais e já foi entendida como uma formação especializada e focada apenas na realidade de saúde, portanto, limitada e/ou depositária do temor quanto à diluição das competências e atribuições de cada profissional.

Essas preocupações estão presentes no documento intitulado Parâmetros para Atuação dos Assistentes Sociais na Área da Saúde, de março/2009, o qual preconiza, no item 3.2.6. Ações de Assessoria, Qualificação e Formação Profissional, “a participação na formação profissional através da criação de campo de estágio, supervisão de estagiários, bem como a criação e/ou participação nos programas de residência multiprofissional e/ou uniprofissional” (p. 34), reiterando que essas atividades devem ser articuladas com as unidades de formação acadêmicas. O mesmo documento discrimina as ações a serem desenvolvidas e entre elas que o Assistente Social deve “participar ativamente dos programas de residência, desenvolvendo ações de preceptoria, coordenação, assessoria ou tutoria, contribuindo para qualificação profissional da equipe de saúde e dos assistentes sociais, em particular” (p. 35). Quanto ao trabalho em equipe destaca-se que a interdisciplinaridade é colocada como o princípio fundamental na modalidade de formação em residência que tem no trabalho coletivo o seu compromisso.

A produção aqui disponibilizada apresenta artigos elaborados a partir de dissertações e teses de assistentes sociais que, após realizarem formação em residência multiprofissional, levaram suas discussões e suas experiências em saúde para maior adensamento na formação em nível de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS. O objetivo é publicizar e compartilhar o resultado de pesquisas em nível de mestrado e doutorado que abordam experiências oriundas de programas de residência multiprofissional em

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saúde socializando a riqueza das possibilidades de investigação que essa convergência de área proporciona.

A primeira parte é dedicada à relação do Serviço Social com a formação em nível de residência multiprofissional, são três artigos que abordam o exercício profissional do assistente social, a inserção do assistente social na residência e a relação do Serviço Social e da Educação na Saúde. Problematiza-se a contribuição deste profissional tanto para a manutenção de um modelo de saúde superado como para a construção de um modelo em consonância com a Reforma Sanitária e para consolidação do SUS.

A segunda parte apresenta cinco artigos sendo três sobre experiências em saúde mental problematizando as conquistas da reforma psiquiátrica, o tratamento domiciliar de dependentes químicos e a atenção em saúde mental. Sem dúvida, são exercícios que adentram “os resistentes muros dos hospitais psiquiátricos e seus saberes instituídos” para, assim, “começar a quebrar as correntes e abrir as portas para um novo modelo de atenção à saúde mental” (GIOVENARDI, 2010, p. 115). Os muros a serem vencidos não são apenas dos hospitais psiquiátricos, mas também de práticas profissionais superadas, preconceituosas, e discursos que se amparam em um projeto de sociedade que não considera as conquistas da Reforma Sanitária. Os outros dois artigos abordam a dramaticidade das vidas de famílias em situação de vulnerabilidade e seus acordos de sobrevivência e a experiência de adolescentes que vivem e convivem com a AIDS desde o primeiro minuto de suas vidas, ou mesmo antes de nascer.

São discussões e experiências riquíssimas todas amparadas e sustentadas por um mesmo horizonte: o compromisso com o Projeto Ético Político profissional do assistente social. São relatos plenos de possibilidades, não são planos e nem projetos, são antes de tudo realidades e têm como objetivo socializar experiências de formação na residência multiprofissional adensadas no mestrado ou doutorado, portanto, inquestionáveis quanto ao rigor com que foram elaborados.

Espera-se contribuir para a consolidação e ampliação da inserção do assistente social na modalidade de formação em residência multiprofissional com seguimento em nível de pós-graduação stricto sensu, qualificando cada vez mais a formação profissional.

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PARTE I

SABERES CONSTRUÍDOS X

SABERES INSTITUÍDOS: A formação profissional em movimento

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EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE

Marisa CamargoMaria Isabel Barros Bellini

Entre o ideal e o real na atenção primária em saúde

O interesse pela temática do exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde teve sua gênese no processo de formação em Atenção Básica em Saúde Coletiva através do Programa de Residência Integrada em Saúde (RIS), ofertado anualmente pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP) na capital do estado, Porto Alegre. Essa formação em nível de pós-graduação lato sensu com ênfase na díade ensino-serviço possibilitou a inserção em equipes multidisciplinares de unidades básicas e, em menor proporção, de unidades secundárias do Sistema Único de Saúde (SUS), compostas por categorias profissionais de saúde de nível superior e técnico, na condição de residente de Serviço Social, no período de 2005 a 2007.

Um conjunto de contradições que perpassavam a realidade vivenciada nas unidades de saúde campo do ensino em serviço da RIS pertencentes ao Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM), instituição pioneira na criação da Residência em Medicina Comunitária no Brasil, suscitou, a priori, o interesse pela temática do processo de trabalho do qual os assistentes sociais eram partícipes no âmbito das equipes multidisciplinares de saúde. Era preliminar, dentre as contradições evidenciadas, o hiato entre o atendimento considerado ideal às necessidades sociais de saúde e o atendimento real ofertado nas unidades do SUS.

Por um lado, integrava-se um processo de trabalho multidisciplinar em que, apesar das dificuldades institucionais de toda ordem para a efetivação da RIS, essa modalidade de ensino em serviço apresentava-se como potente estratégia de formação de recursos humanos qualificados para atuar no SUS com base em uma proposta de caráter educativo e político de ensino em serviço, com vistas à atenção integral, de caráter interdisciplinar, ao privilégio da articulação intersetorial e fortalecimento

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dos princípios da atenção primária em saúde. Por outro lado, a realidade do SUS não garantia a absorção dos profissionais assistentes sociais no espaço sócio-ocupacional da atenção básica, principal campo de inserção dos residentes em Atenção Básica em Saúde Coletiva.

Sob essa lógica, ainda que o assistente social egresso da RIS se constituísse em recurso humano qualificado para atuar no SUS, sua inclusão em equipes de atenção básica dependeria do interesse dos gestores municipais. Paradoxalmente, percebia-se a existência de um aspecto nuclear entre a saúde coletiva e o exercício profissional do assistente social, o que se convencionou denominar de convergência entre o objeto de atenção da saúde coletiva e o objeto de trabalho do assistente social (CAMARGO, 2009). A saúde coletiva, entendida como o conjunto de práticas em nível econômico, político, ideológico e técnico, toma como objeto as necessidades sociais de saúde (PAIM, ALMEIDA FILHO, 1998), o que se aproxima de maneira estrita com a forma sob a qual as expressões da questão social, objeto de trabalho do assistente social, emergem no âmbito da saúde. As necessidades de saúde são decorrentes das formas como os grupos se inserem na reprodução social (CAMPOS, SOARES, 2003), o que demanda compreender a saúde a partir de uma concepção ampliada e situá-la para além do espaço da produção social.

O contexto vivenciado apontava para o insuficiente volume de informações acessadas acerca das particularidades do trabalho do assistente social, na busca por constituir respostas às necessidades sociais de saúde às quais aquele nível de atenção se voltava. A inquietude profissional em relação à explicitação dessas particularidades, tendo em vista ratificarem a coerência e necessidade de inserção do assistente social nas equipes de atenção básica do SUS, foi canalizada para o curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Faculdade de Serviço Social (FSS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), cujo ingresso ocorreu no ano de 2007. A imersão na revisão teórica da temática e o estabelecimento de um esquema metodológico das questões norteadoras e dos respectivos objetivos permitiram importantes interpretações sobre o processo de

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ensino em serviço da RIS e, consequentemente, das configurações do processo de trabalho em que participa o assistente social na atenção básica em saúde, constituindo-se em tema de pesquisa.

A partir de uma pesquisa qualitativa, com caráter exploratório e descritivo, que fundamentou a dissertação de Mestrado em Serviço Social, defendida no ano de 2009, desvendaram-se as configurações do processo de trabalho em que participa o assistente social na saúde coletiva, no espaço sócio-ocupacional da atenção básica do SUS, tendo como lócus o município de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul (RS).11 Cabe registrar que, ainda no processo de seleção dos participantes da pesquisa – assistentes sociais que trabalharam em unidades de atenção básica do SUS durante o ano de 2007 –, não foram localizados profissionais na ESF, tampouco as informações sobre a inserção destes nas unidades de atenção básica estavam corretas e atualizadas.

A grande maioria dos profissionais constantes como trabalhadores de unidades básicas de saúde a partir dos subsídios oficiais da Coordenadoria Geral de Atenção Básica à Saúde/CGRABS, órgão da Secretaria Municipal de Saúde/SMS, era na realidade proveniente de unidades de outros níveis de atenção no âmbito do SUS. Em virtude disso, dos 75 assistentes sociais identificados inicialmente, somente 12, isto é, 16% realmente trabalharam em unidades de atenção básica do SUS. Destes, dois recusaram-se a participar da pesquisa; um não obteve aval do coordenador da unidade de saúde para participar, sob a alegação de evitar prejuízos ao atendimento dos usuários do Serviço Social; e um foi excluído por trabalhar na gestão de uma unidade de média complexidade (CAMARGO, 2009).

Em relação aos resultados encontrados, destaca-se que o tempo de inserção dos assistentes sociais nas unidades básicas de saúde apresentou variação de seis a 26 anos. No que diz respeito à qualidade dos serviços prestados, essa característica foi considerada positiva, à medida que o vínculo entre profissional e usuário contribui na qualificação da atenção em saúde e do modelo de atenção. Do ponto de vista das condições de trabalho e inserção do assistente social em 1 Dissertação de Mestrado em Serviço Social apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Faculdade de Serviço Social (FSS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), desenvolvida com o auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) através da concessão de bolsa integral, defendida no ano de 2009, aprovada com voto de louvor e orientada pela Profa. Dra. Ana Lúcia Suárez Maciel.

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unidades de atenção básica do SUS, essa mesma característica associa-se à transferência de profissionais a unidades de atenção secundária, a não realização de concursos públicos ou outras formas de contratação profissional pelas últimas gestões municipais e, ao crescente desmonte desse espaço sócio-ocupacional (CAMARGO, 2009).

A redução do contingente profissional inserido em unidades básicas do SUS na realidade estudada, remonta à década de 90 do século XX, contexto de adesão do Estado aos pressupostos neoliberais enquanto proposta teórica inspiradora das políticas econômicas e sociais. Permeada por políticas de minimização do Estado interventor no campo social, amplia-se a adoção do Programa Saúde da Família (PSF) e da atenção básica como estratégias de organização do primeiro nível de atenção no âmbito do SUS, em um contexto de intensificação da focalização e da privatização da saúde, distanciando-se progressivamente dos cuidados primários à população, privilegiados na Declaração de Alma-Ata.

Em meio à polissemia de concepções adotadas nos diferentes países para referenciar o primeiro nível de atenção em saúde das populações, nos anos iniciais da primeira década do século XXI, as principais agências mundiais de saúde mobilizaram as Américas em prol da renovação da atenção primária em saúde. Em face das recentes mudanças desencadeadas em direção à renovação do nível primário de atenção à saúde, em nível continental, com repercussões locais para a saúde pública, bem como a necessidade de dar continuidade ao estudo empreendido no Mestrado em Serviço Social, o presente ensaio é produto das primeiras aproximações teóricas com as categorias temáticas orientadoras da proposta de pesquisa da tese de doutoramento em Serviço Social pelo PPGSS da FSS, da PUCRS. Nesse ínterim, apresentam-se os resultados da revisão do estado da arte sobre o tema de pesquisa: “exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde”, realizada em duas importantes fontes de informações secundárias que armazenam produções teóricas em Serviço Social.

Essa proposta tem como objetivo identificar o direcionamento dado às produções da área sobre o exercício profissional do assistente social na renovação da atenção primária em saúde. Ampliar a leitura da realidade de trabalho do assistente social pressupõe enriquecer

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o tratamento teórico do exercício profissional considerado em suas múltiplas determinações e mediações, o que implica “caminhar para uma abordagem na óptica de totalidade da mesma, ampliando o foco de análise para o trabalho em seu processo de realização no mercado de trabalho, em condições e relações sociais determinadas” (IAMAMOTO, 2008, p. 258). O exercício profissional extrapola o foco centrado no trabalho do assistente social, visto que esse se restringe a um dos elementos do exercício profissional.

Saúde no Século XXI: Renovação da Atenção Primária em Saúde

Por ocasião da Conferência Internacional de Alma-Ata, realizada no ano de 1978, sob a promoção da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), os cuidados primários de saúde foram considerados foco principal do sistema de saúde dos países, e parte integrante do desenvolvimento global comunitário. Por sua vez, a Atenção Primária em Saúde (APS) foi definida como a principal estratégia para a expansão das coberturas dos serviços para toda a população e diminuição das taxas de morbidade e mortalidade. No conteúdo da Declaração de Alma-Ata, produto desse processo, consta a preocupação com a promoção da saúde de todos os povos do mundo, destacando-se a participação comunitária como um dos princípios fundamentais dos cuidados primários de saúde (OMS, 1978).

Nesse contexto, a saúde foi considerada um direito humano fundamental e alcançar o seu mais alto nível tornou-se a mais importante meta social mundial atrelando-se a sua efetivação, para além do setor saúde, à ação coletiva de setores sociais e econômicos. Para tanto, aprovaram-se inúmeras resoluções, dentre as quais, que a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e o UNICEF seguissem apoiando estratégias nacionais de cuidados básicos de saúde, cujas recomendações foram aprovadas na Assembleia Mundial de Saúde no ano seguinte, 1979, e acatadas pelo governo brasileiro, fazendo referência à relação entre saúde e desenvolvimento (NUNES, 1994; CAMARGO, 2009).

Na década de 90 do século XX, o Banco Mundial assinalou a necessidade de os países das Américas lutarem contra a pobreza e investir em saúde, influenciando na criação de um pacote de serviços de atenção primária. Em reunião para dirigentes mundiais, promovida

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pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano 2000, chefes de Estado e de governo de diversos países, dentre os quais o Brasil, aprovaram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), quais sejam: 1) erradicar a extrema pobreza e a fome; 2) alcançar o ensino básico universal; 3) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4) reduzir a mortalidade infantil; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; 8) desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento (ONU, 2000).

Durante a primeira década do século XXI pode-se constatar um crescente interesse em renovar a APS, em nível mundial. Em 2004, a OPAS e a OMS convocaram os estados membros a adotarem uma série de recomendações em prol do fortalecimento da atenção primária. Criou-se então um Grupo de Trabalho sobre APS, responsável pela revisão de literatura dos países e elaboração de diversos documentos que foram apresentados e discutidos em fóruns virtuais e em sessões plenárias em reunião na Costa Rica (OPAS/OMS, 2005).

No ano seguinte, em 2005, um documento provisório foi enviado aos países, com sugestões para conduzir o processo nacional de consulta sobre a APS, bem como de diretrizes específicas para a análise. O produto desse processo foi o lançamento do documento de posicionamento da OPAS e da OMS, denominado “Renovação da Atenção Primária em Saúde/APS nas Américas” (OPAS/OMS, 2005).

Dentre os motivos para adotar uma abordagem renovada da APS, são destacados no documento supracitado: o surgimento de novos desafios epidemiológicos; a necessidade de corrigir os pontos fracos e as inconsistências presentes em algumas das abordagens amplamente divergentes da APS; o desenvolvimento de novas ferramentas e o conhecimento de melhores práticas que a APS pode capitalizar de forma a serem mais eficazes. Além disso, há um crescente reconhecimento de que a APS é uma ferramenta para fortalecer a capacidade da sociedade de reduzir as iniquidades na área da saúde (OPAS/OMS, 2005).

Nessa perspectiva, a abordagem renovada da APS é vista como condição essencial para alcançar os compromissos da Declaração do Milênio, abordando os determinantes sociais e alcançando o nível mais

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elevado de saúde para todos. Contudo, a atenção primária seletiva, isto é, aquela cujas atividades são voltadas às populações pobres, tem sido a realidade de muitos países, ao passo que um sistema de saúde com base na APS deveria ter como princípios: receptividade, orientação de qualidade, responsabilização governamental, justiça social, sustentabilidade, participação e intersetorialidade. O mesmo deve ser composto por um conjunto central de elementos funcionais e estruturais garantidores de cobertura e acesso universal a serviços aceitáveis à população, que aumentem a equidade (OPAS/OMS, 2005).

Em nível nacional, há algumas medidas aprovadas recentemente pelo Ministério da Saúde (MS) brasileiro que sinalizam a polivalência de concepções adotadas para referir-se a estratégias e serviços desenvolvidos no primeiro nível de atenção no âmbito do SUS. Merece destaque a aprovação da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), no ano de 2006, em cujo cenário o PSF, com composição de equipe mínima médico assistencial, foi considerado a estratégia prioritária para a sua organização no âmbito do SUS, em território nacional (BRASIL, 2006; CAMARGO, 2009). No documento preliminar divulgado pelo MS três anos mais tarde, em 2009, tratando sobre as diretrizes do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), a Estratégia de Saúde da Família (ESF) foi caracterizada como “vertente brasileira da APS [Atenção Primária em Saúde]” (BRASIL, 2009, p. 07).

Em 2008, aprovou-se a composição de equipes multidisciplinares matriciais através dos NASF, com indicação da inclusão do profissional assistente social. Nesse contexto, ficou instituído que o NASF deve atuar:

Dentro de algumas diretrizes relativas à APS [Atenção Primária em Saúde], a saber: ação interdisciplinar e intersetorial; educação permanente em saúde dos profissionais e da população; desenvolvimento da noção de território; integralidade, participação social, educação popular; promoção da saúde e humanização (BRASIL, 2009, p. 07).

Para verificar a prevalência da utilização das concepções de atenção primária, atenção básica e programa saúde da família na produção teórica brasileira contemporânea, Gil (2006) analisou os principais documentos normativos do SUS, publicados pelo MS, no período de 1990 a 2005. Também, revisou a base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS/BIREME), a partir dos textos completos

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apresentados na Scielo.22 A análise revelou que no período anterior à criação do SUS “a atenção primária à saúde representava um marco referencial para a organização dos serviços numa lógica que tinha como proposta ser uma das principais alternativas de mudança do modelo assistencial” (GIL, 2006, p. 1171 apud CAMARGO, 2009, p. 70).

Enquanto a atenção primária apresenta difusão internacional, a atenção básica é uma expressão tipicamente brasileira utilizada para definir uma forma própria de organização do primeiro nível de atenção no âmbito da política pública de saúde. Com o advento do SUS, tem-se tornado cada vez mais frequente a utilização da atenção básica como referência aos serviços municipais, concepção que assim como a atenção primária sofreu forte influência do Banco Mundial na organização das ações (GIL, 2006). A adoção da concepção de atenção básica surgiu permeada por políticas de redução do papel do Estado caracterizadoras da década de 90 do século XX, diante da intensificação do processo de focalização e privatização da saúde (DIAS, 2007).

À parte ou mesclada a essas novas medidas do Estado em relação à saúde pública, tem-se observado a ampliação dos serviços de atenção especializada no âmbito privado. Trata-se de um mesmo cenário que, em suma, condensa avanços e retrocessos no que diz respeito à efetivação do direito social à saúde sob a responsabilidade do Estado. Na prática, a viabilização de novas diretrizes tem-se mostrado uma tarefa extremamente difícil devido ao comprometimento histórico do Estado com o modelo de atenção em saúde médico assistencial privatista engendrado.

Exercício profissional do assistente social no contexto de renovação da atenção primária em saúde

Ao discutir sobre práticas de atenção primária, mais especificamente sobre profissionais médicos, subespecialistas e profissionais não médicos, Starfield (2002) refere que existem três tipos de funções para esses últimos. O primeiro tipo desempenha função “suplementar” “[...] que amplia a eficiência do médico ao assumir parte das tarefas, geralmente aquelas que são de natureza

2 Gil (2006) refere ter considerado essa base de dados pela acessibilidade e fluência que apresenta entre pesquisadores e estudiosos.

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técnica e, comumente, sob a orientação do médico” (STARFIELD, 2002, p. 162). No segundo tipo, os profissionais não médicos atuam como “substitutos”, prestando serviços geralmente prestados por médicos (STARFIELD, 2002). No terceiro tipo, também de caráter “complementar”, os profissionais não médicos “ampliam a efetividade dos médicos fazendo coisas que os médicos não fazem, fazem mal, ou fazem relutantemente” (STARFIELD, 2002, p. 162).

Após enumerar estudos sobre os tipos de profissionais que constituem as experiências de atenção primária em diversos países, Starfield (2002) também observa que “nenhum estudo examinou o potencial de profissionais não médicos para realizar ou contribuir com as funções da atenção primária” (STARFIELD, 2002, p. 163). Contudo, o investimento em recursos humanos é enfatizado pela OPAS e OMS como uma área essencial e uma das barreiras à implementação da APS, desde a Conferência Internacional de Alma-Ata (OPAS/OMS, 2005), uma vez que a qualidade dos serviços depende dos profissionais que neles trabalham.

Nessa perspectiva, convém desvendar como vem se efetivando o exercício profissional da categoria dos assistentes sociais no contexto de renovação da APS. Esta proposição parte do pressuposto de que o assistente social é o profissional privilegiado para atuar nos determinantes sociais de saúde, produto da ação humana, responsáveis pelas iniquidades em saúde:

Os Determinantes Sociais da Saúde [DSS] incluem as condições mais gerais socioeconômicas, culturais e ambientais de uma sociedade, e relacionam-se com as condições de vida e trabalho de seus membros, como habitação, saneamento, ambiente de trabalho, serviços de saúde e educação, incluindo também a trama de redes sociais e comunitárias (COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2006).

Para revisar o estado da arte sobre o exercício profissional do assistente social no contexto de renovação da atenção primária do SUS brasileiro, tema de pesquisa da tese de doutoramento em Serviço Social pelo PPGSS da FSS, da PUCRS, realizou-se um estudo exploratório da produção teórica da profissão acerca da temática. A coleta de informações ocorreu em duas fontes secundárias: 1) resumos de dissertações e teses no portal de busca da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

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Superior (CAPES), no período de 2005 a 2009; e 2) resumos das produções publicadas nos anais do X e XI Encontros Nacionais de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS), promovidos pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), nos anos de 2006 e 2008, respectivamente.

O marco referencial adotado para delimitar o início do processo de coleta de informações foi o ano de 2005, por se tratar da ocasião de lançamento do documento “Renovação da Atenção Primária em Saúde/APS nas Américas”, explicitado anteriormente. Para a conclusão, optou-se pelo ano de 2009 para a CAPES, e o ano de 2008 para o ENPESS, por corresponderem às suas edições mais atuais. Privilegiou-se a análise de conteúdo de corte temático (BARDIN, 1977) dos resumos das produções de ambas as fontes secundárias, sendo coletadas informações referentes às categorias temáticas: 1) atenção primária em saúde; 2) atenção básica em saúde; 3) saúde da família 4); assistente social e atenção primária; 5) assistente social e atenção básica; 6) assistente social e saúde da família.

O expressivo número de dissertações e teses encontradas no portal de busca da CAPES, sobre a expressão exata atenção primária em saúde (2005-2009), demonstra que o estudo dessa temática no âmbito das diversas áreas de conhecimento tem aumentado anualmente, conforme se pode observar no Quadro 1. Entretanto, com essa característica de busca, não foram localizadas produções que tratassem do exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde, ao proceder-se a leitura dos resumos.

Quadro 1 – Expressões exatas de atenção primária em saúde, no período de 2005 a 2009.

Ano Profissionalizante Dissertação Tese Subtotal

2005 01 04 04 09

2006 01 07 04 12

2007 01 10 02 13

2008 02 10 04 16

2009 05 22 05 32

Total 10 53 19 82Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2010).

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Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente social e atenção primária (2005 a 2009), emergiram duas produções, das quais uma apresentou relação com o tema de pesquisa. Tratava-se de uma dissertação de Mestrado em Serviço Social defendida na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2009), baseada em pesquisa qualitativa sobre o trabalho do assistente social na atenção primária à saúde em Juiz de Fora, estado de Minas Gerais (MG), no que se refere à sua organização, desenvolvimento, objeto, objetivos, instrumentos e condições de trabalho. A outra produção foi excluída por restringir a citação do assistente social a profissional integrante dos recursos humanos em pesquisa sobre o sistema de saúde mental no contexto de Reforma Psiquiátrica no município de Santos, estado de São Paulo (SP).

Na análise dos cento e 34 resumos das produções encontradas sobre a expressão exata atenção básica em saúde (2005-2009), identificou-se três dissertações relacionadas ao tema pesquisado. A primeira tratava-se de uma dissertação de Mestrado em Serviço Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ (2006), que utilizou um estudo de caso com enfoque qualitativo para analisar o trabalho do assistente social no PSF de Ipatinga (MG). A segunda constituía-se uma dissertação de Mestrado em Saúde na Comunidade na Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto/USP (2008), baseada em estudo comparativo sobre os tipos de intervenções apresentadas ao Serviço Social pelos usuários dos modelos de prestação da atenção básica no Distrito de Saúde Oeste de Ribeirão Preto (SP). A terceira referia-se à dissertação de Mestrado em Serviço Social na PUCRS (2009), baseada em estudo exploratório sobre o processo de trabalho em que participa o assistente social na saúde coletiva, no espaço sócio-ocupacional da atenção básica em Porto Alegre (RS).

Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente social e atenção básica (2005-2009), foram listadas 14 produções. Dessas, a metade, ou seja, sete foram excluídas por trazerem o assistente social em seus resumos, sem, no entanto, referirem elementos do seu exercício profissional na atenção primária em saúde. Quatro produções encontradas em buscas anteriores e incluídas nas produções referentes ao tema de pesquisa “exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde”, reapareceram na opção de busca todas as palavras sobre assistente social e atenção básica (2005-2009).

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Dentre as sete produções escolhidas, emergiram três novas. Essas foram incluídas na seleção sobre o tema de pesquisa. A primeira dissertação de Mestrado em Serviço Social na PUCRS baseava-se em pesquisa qualitativa sobre o processo de trabalho do assistente social no PSF da 6ª Coordenadoria Regional de Saúde, região norte do estado. A segunda, dissertação de Mestrado em Serviço Social na Universidade Paulista Júlio Mesquita Filho/Franca (SP), constituía-se em estudo quantitativo sobre o perfil da população portadora de Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) atendida nas ESF de Franca. A terceira tratava-se de uma tese de Doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), objetivando: apreender as condições que favoreceram ou restringiram a implantação do PSF em Aracaju; refletir sobre a política de saúde construída nesse município; subsidiar o debate sobre a inclusão, enquanto política nacional, do assistente social nas equipes de Saúde da Família e da condição do assistente social enquanto trabalhador da saúde.

Na opção de busca por todas as palavras sobre assistente social e saúde da família (2005-2009), foram listadas 29 produções. Com base na totalidade de resumos, 76%, isto é, 22 das 29 produções foram excluídas, por dedicarem-se à discussão da política de saúde; do trabalho em equipe; de concepções de usuários e profissionais sobre diversas temáticas; da atenção por áreas temáticas; outros níveis de atenção no âmbito do SUS. As demais sete produções sobre assistente social e saúde da família, foram incluídas na seleção sobre o tema pesquisado. Entretanto, seis dessas produções foram localizadas e incluídas em buscas anteriores. A produção ímpar tratava-se de uma tese de doutorado em Serviço Social pela PUCSP, sobre questões relativas à temática de subjetividade do trabalho.

Do número total de dissertações e teses localizadas no portal de busca da CAPES, referentes ao período pesquisado (2005-2009), de acordo com as opções e expressões explicitadas, oito apresentaram alguma relação com o tema de pesquisa “exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde”. Cinco das oito produções listadas na busca pela expressão exata de atenção básica em saúde reapareceram na lista das expressões exatas sobre saúde da família, conforme indicado no Quadro 2. Essa informação ratifica

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a utilização generalizada da expressão PSF para identificar a atenção básica na atual conformação do SUS.

Quadro 2 – Produções identificadas sobre o tema de pesquisa, no período de 2005 a 2009.

Ano Atenção primária em saúde

Atenção básica em saúde

Saúde da Família (SF) Subtotal

2005 00 00 01 (T) 012006 00 01 (D) 01 (D) r3 012007 00 01 (D) 01 (D) r 012008 00 02 (D) 02 (D) r 022009 01 (D) 01 (D) + 01 (T) 01 (T) r 03

Total 01 Dissertação 05 Dissertações e 01 Tese

05 Dissertações e 01 Tese 08

Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2010).3

De maneira semelhante, a produção listada na busca pela expressão exata de atenção primária em saúde se repetiu na busca pela expressão exata de saúde da família. Porém, o resumo desta produção não apresentou a mesma concepção das demais, visto que a metodologia da pesquisa utilizada pelo autor da produção contemplou serviços de atenção para além do PSF. Apenas uma produção sobre a expressão exata atenção básica em saúde não voltou a aparecer nas demais opções de busca realizadas.

No que diz respeito à instituição de ensino onde foram apresentadas, seis das oito produções que demonstraram relação com o tema de pesquisa “exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde”, isto é, 75% eram provenientes de Instituições de Ensino Superior (IES), localizadas na Região Sudeste do Brasil. Os outros 25% das produções provêm de universidades da Região Sul do País. Os núcleos temáticos e a frequência dos temas dessas produções apresentaram-se da seguinte maneira:

1. Trabalho do assistente social na atenção primária em saúde [01]: a) organização, desenvolvimento, objeto, objetivos, instrumentos, condições de trabalho: 01.

3 Informa repetição da produção.

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2. Trabalho do assistente social na atenção básica em saúde [06]: a) prestação de serviços assistenciais: 01; b) manutenção do modelo de atenção em saúde médico privatista: 02; c) contribuição para a mudança do modelo de atenção em saúde, com ações inovadoras e críticas: 01; d) mediação entre o projeto ético-político profissional e os princípios orientadores do SUS: 01; e) complementaridade e subsídios à equipe multidisciplinar: 01; f) manutenção do modelo de atenção em saúde médico privatista: 02; g) atuação nas refrações da questão social, gestão, formulação e planejamento de políticas sociais: 01; h) levantamento de indicadores socioeconômicos da população usuária: 01; i) elaboração de estratégias de intervenção: 01; j) participação no movimento de Reforma Sanitária: 01.

3. Trabalho do assistente social na estratégia Saúde da Família [05]: a) prestação de serviços assistenciais: 01; b) manutenção do modelo de atenção em saúde médico privatista: 02; c) complementaridade e subsídios à equipe multidisciplinar: 01; d) atuação nas refrações da questão social, gestão, formulação e planejamento de políticas sociais: 01; e) levantamento de indicadores socioeconômicos da população usuária: 01; f) elaboração de estratégias de intervenção: 01; g) participação no movimento de Reforma Sanitária: 01; h) questões relativas à temática da subjetividade do trabalho (romantismo, família, religiosidade e política): 01.

De acordo com o número total de produções publicadas nos anais do X e XI ENPESS, nessas duas edições do evento bianual foram aprovados e inscritos 1.050 trabalhos (ABEPSS/CFESS, 2006; ABEPSS/CFESS, 2008). Na análise dos resumos cuja produção continha título que demonstrava relação com o tema de pesquisa “exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde”, foram identificados 24 sobre as categorias temáticas: 1) atenção primária, 2) atenção básica e 3) saúde da família, conforme informações dispostas no Quadro 3.

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Quadro 3 – Produções sobre atenção primária, atenção básica e saúde da família por eixo temático, nos Encontros Nacionais de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) (2006; 2008).

Eixo temático X ENPESS2006

XI ENPESS2008

Subtotal

1) Fundamentos do Serviço Social 01/48 00/54 01

2) Formação profissional e o processo interventivo do Serviço Social

04/57 00/56 04

3) Questão social e trabalho 02/234 00/263 02

4) Política social 09/143 08/195 17

Total 16/482 08/568 24/1050Fonte: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) (2006; 2008).

O volume de produções sobre as categorias temáticas de atenção primária, atenção básica e saúde da família reduziu pela metade na edição de 2008, em relação à de 2006. A partir da análise dos 24 resumos das produções cujos títulos demonstraram relação com o tema pesquisado, observou-se que nem todas refletiam sobre ele. Somente oito, ou seja, 33% realmente tratavam de elementos relacionados ao tema de pesquisa, enfatizando um dos elementos do exercício profissional do assistente social: o trabalho.

Sobressaiu o eixo de “política social” com quatro das oito produções, seguido do eixo de “formação profissional e o processo interventivo do Serviço Social” com três produções. O eixo “fundamentos do Serviço Social” apresentou uma produção. Submetidos à técnica de análise de conteúdo com recorte temático (BARDIN, 1977), foram identificados os núcleos temáticos e a frequência dos temas nos resumos das produções, apresentados no Quadro 4.

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Quadro 4 – Núcleos temáticos e frequência dos temas nas produções sobre Serviço Social e atenção primária, nos Encontros Nacionais de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) (2006; 2008).4

Tema X ENPESS2006

XI ENPESS2008 Subtotal

1) Avaliação sobre a atuação do assistente social na estratégia Saúde da Família (usuários e/ou equipe multiprofissional de saúde)

01 00 01

2) A dimensão educativa do Serviço Social no Pro-grama Saúde da Família (PSF) (educação em saúde)

01 00 01

3) Inserção do assistente social no Programa Saúde da Família (PSF)

01 00 01

4) Serviço Social na Residência Multiprofissional em Saúde da Família

01 00 01

5) O Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) como possibilidade emergente para o trabalho do assistente social

00 01 01

6) O trabalho do assistente social na atenção primária em saúde (dificuldades enfrentadas pela falta de recursos para atender as demandas)

00 01 01

7) Resumo e texto completo indisponível 024 00 02

Total 06 02 08Fonte: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) (2006; 2008).

Das oito produções em destaque, apenas uma utilizava a concepção de atenção primária para caracterizar o nível de atenção em saúde. A maior parte dessas produções, isto é, 63% enfatizavam o trabalho do assistente social junto ao PSF. As outras duas produções não tinham resumos disponíveis. Nenhuma das IES de origem dos autores apresentou um volume de trabalhos significativamente superior às demais, visto que sete das oito produções eram provenientes de universidades distintas. No entanto, prevaleceram as universidades da Região Sudeste, seguida da Região Nordeste do Brasil, a exemplo das produções localizadas através do portal de busca da CAPES.

4 Uma dessas produções tem título e autoria idêntica à produção localizada no portal de busca da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, 2010).

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Considerações finais

A partir da pesquisa realizada em duas fontes secundárias para a área de Serviço Social: portal de busca da CAPES e anais do X e XI Encontros Nacionais de Pesquisadores em Serviço Social, realizados nos anos de 2006 e 2008, respectivamente, localizaram-se 16 produções referentes ao período de 2005 a 2009, que apresentaram relação com o tema de pesquisa “exercício profissional do assistente social na atenção primária em saúde”. Cabe ressaltar que nenhuma dessas produções adotou como marco referencial de estudo o processo de renovação da APS nas Américas, proposto por organismos internacionais de saúde na primeira década do século XXI.

Percebe-se, a partir da análise da totalidade de resumos dessas produções, que há o privilégio de um dos elementos do exercício profissional do assistente social, qual seja: o trabalho, tendo como foco a atividade do sujeito em ação. O desafio dessa perspectiva de análise é traduzi-la em “suas particulares inserções nas esferas de produção de bens e serviços [...] em suas múltiplas determinações e mediações, no âmbito da práxis social” (IAMAMOTO, 2008, p. 258). Ratifica-se que a grande maioria das produções enfatizou experiências específicas de inserção do assistente social em unidades da atenção básica ou ESF, tendo apenas uma delas ampliado a discussão para o conjunto de serviços correspondentes à atenção primária em saúde, contudo, ainda centrando-se na discussão da prática profissional.

Em algumas das produções pesquisadas, destaca-se a insuficiência da ESF em garantir a promoção das mudanças pretendidas no modelo de atenção médico assistencial privatista, historicamente hegemônico no contexto da política de saúde brasileira. Em outras produções, e em contraposição às primeiras, a ESF é destacada como possibilidade de afirmação da atenção básica no SUS, e espaço sócio-ocupcional emergente para o profissional assistente social. Destarte, inserido no contexto contraditório de produção e reprodução social da saúde na ESF, o assistente social efetiva seu trabalho em prol tanto da manutenção do modelo de atenção quanto contribuindo para a sua mudança, buscando mediar os princípios norteadores do projeto ético-político profissional e os princípios orientadores do SUS.

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Nesse cenário contraditório, afirma-se a dimensão qualitativa do trabalho do assistente social: socialmente construído e indispensável na mediação do acesso às ações intersetoriais, bens e serviços necessários à efetivação do direito social à saúde, de responsabilidade do Estado. Urge, portanto, desvendar as múltiplas determinações e mediações que perpetram o exercício profissional do assistente social no processo de renovação da atenção primária em saúde.

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Referências

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COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE. Determinantes Sociais da Saúde ou por que alguns grupos da população são mais saudáveis que outros? 2006. Disponível em: <http://www.determinantes.fiocruz.br/chamada_home.htm>. Acesso em: 28 de nov. de 2010.

COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Banco de teses. Resumos. Disponível em: <http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/>. Acesso em: 01, 02 e 03 de nov. 2010.

DIAS, Míriam Thaís Guterres. O contexto histórico das políticas de saúde e de saúde mental no Brasil e no Rio Grande do Sul. A reforma psiquiátrica brasileira e os direitos dos portadores de transtorno mental: uma análise a partir do Serviço Residencial Terapêutico Morada São Pedro. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2007.

GIL, Célia Regina Rodrigues. Atenção primária, atenção básica e saúde da família: Sinergias e singularidades do contexto brasileiro. Cad. Saúde Pública, v. 22, n. 6. Rio de Janeiro: jun. 2006, p. 1171-1181.

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NUNES, Everardo Duarte. Saúde coletiva: história de uma ideia e de um conceito. Rev. Saúde e Sociedade, v. 3, n. 2, 1994, p. 05-21.

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INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS EM ATENÇÃO BÁSICA: FORMAÇÃO EM EQUIPE E INTEGRALIDADE

Thaísa Teixeira Closs

Transcorridas cerca de duas décadas da implantação do Sistema Único Saúde (SUS), significativos são os avanços quanto à ampliação do acesso à saúde, mas ainda permanecem desafios no que se refere a mudanças efetivas no modelo assistencial, com base na integralidade da atenção. Nesse horizonte, a temática do trabalhador e do trabalho realizado nessa política assume destaque nesse processo de mudanças, demarcando a importância de profissionais sintonizados com as demandas emergentes para o SUS.

Dessa forma, acreditamos que a qualificação do SUS, entre outros aspectos, implica um processo amplo de mudanças no trabalho em saúde, o que exige estratégias em direções distintas: no campo da assistência e da gestão, no desenvolvimento de processos sociais direcionados à construção de uma cultura sanitária de defesa e afirmação da vida, bem como no plano da formação em saúde. Assim, destacamos a importância da adoção e ampliação das políticas de Recursos Humanos em Saúde, dentre as quais se situa a Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), como uma modalidade de formação que comporta possibilidades de contribuições para a consolidação do SUS.

A potencialidade da Residência consiste em sintonizar trabalho e formação, em situar as necessidades de saúde da população como eixo norteador da qualificação dos profissionais, além de constituir-se numa formação pautada pelo trabalho em equipes. Porém, sua conformação como política pública é recente, o que aponta para a importância de serem ampliados os debates sobre essa formação, tendo em vista consolidá-la e qualificá-la. Dentre as profissões envolvidas na Residência, ressaltamos que há uma inserção consolidada dos assistentes sociais, sendo que o Serviço Social representa a terceira maior categoria em número de bolsas financiadas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2006a).

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Embora se evidencie essa presença significativa nas Residências, há uma insuficiência de dados sistematizados sobre a inserção da profissão nessa formação. Tal “lacuna” remete ao adensamento da produção sobre essa temática, em especial no que se refere à integralidade na atenção básica, pois esse nível do SUS tem assumido um papel fundamental na reestruturação do modelo assistencial, em especial pelas suas características assistenciais que possibilitam o estabelecimento de vínculo e atendimento continuado da população.

Nesse horizonte, este artigo apresenta elementos da dissertação de mestrado “O Serviço Social nas Residências Multiprofissionais em Atenção Básica: formação para a integralidade?” (CLOSS, 2010), realizada a partir do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS. A pesquisa, do tipo quantiqualitativa, foi realizada junto a dois programas de Residência em atenção básica, no município de Porto Alegre/RS, tendo como sujeitos 23 assistentes sociais. Essa proposta de estudo emergiu do trabalho desenvolvido em equipes multiprofissionais diretamente na atenção básica do SUS, em especial, através das experiências efetivadas junto ao Programa de Residência Integrada em Saúde da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul.

O presente artigo discute inicialmente a RMS no contexto da política de formação de recursos humanos em saúde, destacando suas particularidades e diretrizes, com destaque para a formação voltada para a atenção básica. No segundo momento, discutimos perspectivas para o trabalho e a formação dos assistentes sociais nas Residências, discutindo a inserção desses profissionais na atenção básica e sua contribuição frente à afirmação da integralidade em saúde.

As Residências Multiprofissionais na Atenção Básica e o Desafio de Materialização da Integralidade

Com a constituição do SUS, o ordenamento de Recursos Humanos é afirmado como atribuição desse Sistema, destacando a importância da intervenção do Estado frente à formação de profissionais com competências para atuar de acordo com os princípios dessa política. Trata-se de uma área do SUS que tem como finalidade contribuir para a afirmação de uma lógica pública na formação e no trabalho em saúde, na qual o compromisso com a valorização do trabalhador de saúde alia-se à

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qualificação da atenção em saúde. Se esse sistema destina-se à garantia da saúde da população brasileira como um direito de cidadania, ele necessita, portanto, criar condições que fortaleçam o exercício do trabalho em saúde orientado para a afirmação desse direito e para a materialização do modelo assistencial que o SUS instaura.

O ordenamento da formação de recursos humanos, conforme define a Lei Orgânica da Saúde,11 prevê a organização de um sistema educativo em todos os níveis de ensino, englobando formação técnica, graduada, pós-graduada e permanente, além da especialização em serviço e a área da pesquisa. Além disso, aponta para a concepção de que a rede de serviços do SUS constitui-se em lócus de ensino-aprendizagem, o que implica, fundamentalmente, a educação permanente dos trabalhadores e iniciativas de integração entre ensino e serviço, instituindo, no interior dessa rede, práticas de formação e de pesquisa. Trata-se, assim, de uma importante mudança de perspectiva na abordagem dos serviços de saúde: estes como espaços de geração de novos conhecimentos e práticas voltados para a inovação assistencial.

Nesse quadro em que se insere a RMS. Embora respaldada no arcabouço jurídico do SUS, somente na conjuntura recente a RMS adquire estatuto de política, contando com normatização específica construída através de processos de mobilização.2

A RMS constitui-se numa modalidade de formação pós-graduada, lato sensu, desenvolvida em serviços do SUS, sob supervisão técnico-profissional. Sua potencialidade reside em estar orientada para o atendimento ampliado às necessidades de saúde, para a qualificação do cuidado frente aos processos saúde-doença em suas dimensões individuais e coletivas. Para tal, a formação ocorre através da integração do eixo ensino-serviço-comunidade e da permanente inter-relação entre os núcleos de saberes/práticas das profissões envolvidas na formação com o campo da Saúde Coletiva. 1 O ordenamento de recursos humanos na área na saúde, em especial no que tange à formação, é abordado nos artigos 6º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 27º e 30º da Lei 8080/90.2 No período de 2005 a 2007 efetivaram-se amplos debates sobre essa formação, bem como Seminários Regionais e Nacionais, os quais tiveram como produto a pactuação de diretrizes sobre Residência Multiprofissional e Residência em Área Profissional em Saúde, constantes na Portaria nº 45 de 12 de Janeiro de 2007. Mais recentemente, a Portaria nº 1.077/2009 (BRASIL, 2009a) redefiniu a carga horária através da qual deve ser desenvolvida a formação, bem como alterou a organização da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional, com impactos negativos na representatividade dos segmentos envolvidos nessa formação nesta Comissão.

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Dessa forma, os conceitos de campo e núcleo de saberes e práticas de saúde (CAMPOS, 2000) auxiliam na operacionalização da interdisciplinaridade e têm sido incorporados na organização dos programas de residência. O núcleo consiste nos saberes e práticas relacionadas à dada profissão, enquanto o campo se constitui na área de limites imprecisos entre as disciplinas e as profissões, conformando um território de saberes e práticas comuns ou confluentes. Nessa linha, a interdisciplinaridade consiste em trocas criadoras entre núcleos profissionais na construção de interfaces de saberes e práticas visando empreender respostas aos desafios emergentes no cotidiano do trabalho em equipe.

A formação em serviço remete à centralidade do trabalho como polo educativo, aspecto que também demarca a particularidade e a potencialidade da RMS. Para tal, a categoria trabalho deve ser alvo de reflexão e crítica e, portanto, pontuaremos alguns elementos acerca das particularidades do trabalho em saúde que atravessam o campo dos processos da Residência.

O primeiro elemento a ser considerado é o fato de esse trabalho ser fortemente regulado pelas lógicas nucleares das profissões, tais como as normatizações específicas e os atos privativos, implicando uma tensa arena de interesses corporativos, por vezes contrários ao Projeto de Reforma Sanitária. Esse elemento indica que a mudança no trabalho em saúde passa pelo diálogo com os organismos das profissões em saúde, de modo que o exercício dessas possa empreender respostas ao campo das necessidades sociais em saúde, ao modelo assistencial previsto pelo SUS.

Outra particularidade, relacionada com o aspecto anterior, é o fato de ele ter como base uma dada formação específica que media a conformação de sua intencionalidade e a relação com o campo das necessidades sociais em saúde, ou seja, compreende o processo de apreensão e respostas a essas necessidades. Trata-se, assim, de um campo estratégico para a efetivação de mudanças no trabalho em saúde, diretamente relacionado com o ensino superior.

Consideramos que as contribuições realizadas por Marx (1989; 2004a; 2004b) em relação à categoria trabalho são especialmente relevantes para essa discussão. Nessa trilha, é necessário pensarmos o trabalho como unidade dialética e contraditória, ou seja, como trabalho que pode materializar-se em alguns momentos como concreto e em

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outros como abstrato, bem como mediarmos esses conceitos com as particularidades do trabalho no setor saúde, de forma a construir aportes para a formação voltada para o SUS.

No que tange à dimensão concreta do trabalho, é fundamental relacioná-la com os produtos e o valor de uso, ou seja, identificar de que forma estes impactam na atenção em saúde e o que representam do ponto de vista do trabalhador dessa área. Nesta trilha, abre-se como possibilidade a análise da dimensão concreta particular dos trabalhos das diferentes profissões inseridas nas equipes multiprofissionais.

Outro aspecto consiste na apreensão da dimensão teleológica do trabalho (MARX, 2004a; 2004b), ou seja, o plano da intencionalidade, que, no caso dos trabalhadores da saúde, se insere diretamente no campo da disputa de projetos para esse setor, indissociáveis de projetos societários. Nesta dimensão do trabalho que se move a esfera cultural e valorativa que pode, em parte, reforçar tendências regressivas no campo do direito social ou, estrategicamente, fortalecer o Projeto de Reforma Sanitária, contribuindo para a consolidação de uma contra-hegemonia no setor saúde.

Se atentarmo-nos para a dimensão ontológica do trabalho (MARX, 2004a; 2004b), ela também oferece aportes para a discussão dos processos educativos a partir do mundo do trabalho. Tal dimensão demarca o significado do trabalho como atividade humana constituinte do ser social, que ao projetar e incidir na realidade a transformando, também é produtora de sentidos para o próprio sujeito que a realiza. Ou seja, o trabalho não opera transformações somente no objeto ou matéria sobre a qual incide, mas converte-se em processo de transformação/produção dos sujeitos. Neste horizonte, ganham destaque o processo de educação permanente do trabalhador e a formação pelo próprio trabalho, o que implica apreender e fortalecer o trabalho em saúde na sua dimensão criativa, valorizando o potencial educativo que dele emerge para a qualificação do atendimento às necessidades em saúde.

É fundamental também considerarmos o trabalho na sua dimensão abstrata (MARX, 2004a; 2004b), pois esse se materializa pela mediação do mundo/mercado de trabalho e da gestão do trabalho no SUS, imprimindo-lhe configurações diversas que, por vezes, tensionam sua dimensão teleológica e ontológica. Assim, são crescentes

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os processos de precarização no interior do setor saúde, bem como a diversificação dos vínculos contratuais, acarretando uma realidade por vezes adversa para os trabalhadores dessa área, com importantes impactos na qualidade da atenção.

Apreender essa dimensão abstrata do trabalho é fundamental, tendo em vista não esvaziá-lo de historicidade e desvinculá-lo dos processos de alienação, bem como das lutas pela superação dessa forma determinada de trabalho (IAMAMOTO, 2008). As expressões particulares do trabalho abstrato e dos processos de alienação no setor saúde podem ser visualizadas nas crescentes relações desumanizadas, na banalização e indiferença frente ao sofrimento humano, na baixa disponibilidade para a escuta e acolhimento às demandas dos sujeitos.

Além desses aspectos, o trabalho possui centralidade na natureza do setor saúde, pois é este o elemento central da produção dos serviços nessa área, materializados no cuidado prestado à população usuária. Assim, caracteriza-se por ser trabalho vivo em ato, no qual ganha destaque a sua dimensão relacional (campo das tecnologias leves), posto que incide no complexo objeto da saúde, em sujeitos que vivenciam o processo saúde-doença e as distintas necessidades dele decorrentes (MERHY, 2007). Sobre esse aspecto, vale lembrar o debate marxista sobre o trabalho como serviço (MARX, 1989; 2004a; 2004b) consumido em ato, e por se dar na esfera estatal, tal como o trabalho em saúde do SUS, seria considerado improdutivo. Contudo, é pertinente ressaltar que, embora não produza diretamente mais-valia, compõe a sua distribuição social via Estado e políticas sociais.

Considerar as particularidades do trabalho em saúde é fundamental para que possamos tecer estratégias que as contemplem nos processos de formação, buscando consolidar a articulação necessária entre os setores de saúde e educação. A necessidade dessa articulação ganha densidade pela pouca permeabilidade dos processos educativos na área da saúde às lutas pela redemocratização da sociedade e à afirmação da saúde como direito social, eixos que informam o Projeto de Reforma Sanitária. O campo da educação das profissões da saúde ainda se encontra fortemente arraigado ao modelo privatista e hegemônico de saúde, conformando um polo de tensão e resistência ao SUS que necessita ser alvo de diferentes ações.

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Na contratendência dessa realidade, a RMS procura romper com a lógica de fragmentação entre as profissões, buscando a necessária complementaridade entre práticas e saberes distintos. Dessa forma, essa modalidade de formação tem-se constituído como estratégia potencializadora da mudança do modelo assistencial. Por estar inserida diretamente na rede de serviços e ser desenvolvida tendo como foco de ensino o trabalho em saúde, ela própria converte-se em uma estratégia de Educação Permanente em Saúde, pois impulsiona a crítica e a análise dos processos de trabalho, favorecendo, assim, mudanças no modo de fazer a atenção em saúde das equipes multiprofissionais.

A EPS baseia-se na aprendizagem no trabalho, realizada a partir dos problemas enfrentados na realidade e considera que as necessidades de formação e desenvolvimento dos trabalhadores devem ser pautadas pelas necessidades de saúde concretas dos sujeitos, a partir da dinâmica também concreta dos serviços de saúde. Constitui-se em um processo educativo que ocorre a partir da problematização do cotidiano de trabalho, sendo realizado através de espaços e temas que gerem autoanálise, implicação, mudança institucional e transformação das práticas em saúde (CECCIM, 2005).

Além do referencial da Educação Permanente, a Residência deve ser desenvolvida de modo a articular-se a um sistema de formação de recursos humanos ou, mesmo, contribuir para fortalecê-lo, como prevê a Lei Orgânica. Isso implica que a Residência mantenha relações com as formações de graduação e pós-graduação, tais como a integração com estágios da graduação e com os programas de mudança e reorientação da formação em saúde (PRÓ-SAÚDE e PET-SAÚDE), além da articulação com núcleos e redes de pesquisa.

Da portaria que dispõe sobre a Residência Multiprofissional e define seus eixos norteadores,3 podemos destacar a integralidade da atenção e a atuação em equipe interdisciplinar como diretrizes centrais para os processos de ensino/trabalho nas Residências, os quais necessitam estar alicerçados em projetos pedagógicos críticos e consistentes.

3 A seguir, apresentamos alguns destes eixos: “II - concepção ampliada de saúde (...) IV - abordagem pedagógica que considere os atores envolvidos como sujeitos do processo de ensino-aprendizagem-trabalho (...); V - estratégias pedagógicas capazes de utilizar e promover cenários de aprendizagem configurada em itinerário de linhas de cuidado de forma a garantir a formação integral e interdisciplinar; VI - integração ensino-serviço-comunidade (...) ; VII - integração de saberes e práticas que permitam construir competências compartilhadas para a consolidação do processo de formação em equipe (...) integralidade que contemple todos os níveis da Atenção à Saúde e à Gestão do Sistema” (BRASIL, 2007).

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Assim, a formação na Residência necessita dialogar e contribuir com a afirmação da integralidade, tanto no plano dos níveis de atenção do SUS como na gestão em saúde. De forma bastante sintética, a integralidade implica uma abordagem totalizante das necessidades e da atenção em saúde, o que se desdobra na análise e intervenção sobre: a relação entre demandas, as necessidades de saúde e ofertas de serviços; a (re)organização dos processos de trabalho das equipes, tendo como foco o usuário; o trabalho em equipe e a afirmação da interdisciplinaridade; a relação profissional-usuário, tais como escuta, vínculo, acolhimento, tendo em vista a abordagem ampliada do sujeito e das suas necessidades; a acessibilidade a diversos níveis de atenção de forma articulada visando ampliar as possibilidades de atendimento às necessidades de saúde singulares e coletivas; a diversificação de ações que transcendam o enfoque curativo; os modelos assistenciais e a gestão dos serviços e políticas.

A integralidade na formação em RMS se expressa no processo de formação em equipe diretamente nos serviços de saúde. Dessa forma, as experiências formativas na RMS precisam ter como eixo a integração de saberes e práticas entre os trabalhadores da saúde, de modo que sejam construídas competências compartilhadas na formação em equipe, voltada para a interdisciplinaridade.

Essas diretrizes direcionam-se ao fortalecimento da dimensão cooperativa entre os profissionais de saúde, em contraposição à fragmentação operada pela divisão social e técnica do trabalho. A construção da interdisciplinaridade – entendida como processo e movimento de sínteses e totalizações provisórias na apreensão da realidade e intervenção nela – deve partir da reflexão sobre as necessidades sociais postas no cotidiano do trabalho, as quais demandam ações que transcendem os conhecimentos de uma área específica e, assim, desafiam a permanente integração de saberes e a construção de competências compartilhadas.

O trabalho em equipe com vistas à interdisciplinaridade parte da perspectiva de que cada trabalho de qualidade particular se insere em um processo de trabalho coletivo, no qual a articulação dos diversos saberes que os conformam visa ampliar a resolutividade das ações em saúde desenvolvidas. Para tanto, os trabalhadores precisam conhecer a particularidade de cada trabalho, reconhecendo o seu valor de uso em cada situação demandada pela população.

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Nessa perspectiva, a formação em RMS potencializa a constituição de competências e saberes compartilhados, os quais tensionam a especialização do trabalho fundada em saberes utilizados privativamente. Isto não implica a diluição da particularidade de cada trabalho, porque isso também implicaria a perda de qualidade da atenção em saúde, mas sim na aquisição de novas competências, construídas conjuntamente. Essa construção passa pela preservação das atribuições profissionais, mas as competências das profissões envolvidas na equipe devem ser conjugadas. Contudo, as ações privativas das profissões devem ser informadas por um conjunto de valores sintetizados nos princípios do SUS que o sintonizem com a dimensão cuidadora na produção de saúde (MERHY, 2007).

Assim, a formação da RMS engloba tanto a qualificação de cada trabalho particular quanto a qualificação do trabalho coletivo em saúde. A inserção e o trabalho em equipe multiprofissional necessitam englobar tanto as ações relativas a cada profissão, como também as ações coletivas, resultando em um processo de ensino-aprendizagem-trabalho voltado para a construção de mudanças na atenção em saúde e na gestão dos serviços. Trata-se, assim, de apreender as requisições que o processo de qualificação do SUS coloca para o trabalho coletivo em saúde – em especial na ênfase em dadas áreas do sistema, conforme a área de concentração do programa – e também para o trabalho de cada profissão.

Nesse horizonte, uma das áreas do SUS com maior concentração de programas de Residência e com ampla inserção de assistenciais sociais consiste na formação voltada para a atenção básica em saúde. Atualmente esse nível de atenção é responsável pela cobertura e pelo acesso a serviços de saúde de grande contingentes populacionais. Mendes (2002) destaca que a atenção básica, no quadro do sistema de saúde, deve cumprir três funções essenciais: a resolutividade, podendo, assim, resolver grande parte das necessidades de saúde da população usuária; o papel organizador dos sistemas de referência, dos fluxos da rede; e a responsabilização, mantendo a corresponsabilidade pela saúde dos sujeitos, independente do nível do sistema de saúde no qual estão sendo atendidos.

Além dessas funções, podemos também destacar atributos assistenciais da atenção básica, que a caracterizam e demarcam sua relevância e abrangência na organização do sistema de saúde. Conforme Starfield (2002), esses atributos consistem: na acessibilidade

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e no primeiro contato, que se refere ao acesso preferencial e facilitado da população a serviços de saúde; a longitudinalidade, constituída pelo estabelecimento de cuidado e relações contínuas entre equipe e população; a coordenação, que consiste na responsabilização pelo cuidado em saúde, mesmo quando o usuário acessa outros níveis de atenção do sistema; a abrangência do cuidado, relativa à adequação das ações programadas pelo serviço frente às necessidades de saúde e à capacidade de resolutividade dessas ações.

Dessa forma, esse nível do SUS tem assumido certa centralidade nas agendas governamentais, o que se expressa na implantação expansiva dos Programas de Saúde da Família (PSF) e de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que vem operando uma reestruturação desse nível de atenção. Atualmente esses programas integram a Estratégia de Saúde da Família (ESF), diretriz prioritária da Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2006b).

Desde a sua implantação, o debate sobre esses programas tem congregado tensões, passando a ser alvo de distintas abordagens, aglutinadas em dois polos de análise. O primeiro problematiza a tendência de precarização e focalização de serviços sociais contida nesses programas, ou seja, a lógica de racionalização de recursos com assistência em saúde através da priorização de serviços básicos direcionados a populações mais vulnerabilizadas, com restrições de acesso aos demais níveis de atenção. Já o outro polo de análise enfatiza os resultados positivos alcançados, tal como a ampliação do acesso a serviços de saúde, a melhoria dos indicadores de saúde das populações atendidas, bem como a potencialidade de reorientação do modelo assistencial, pois as diretrizes desses programas sinalizam para a ampliação do objeto das práticas de saúde e para a superação da atuação curativa e pontual.

As diretrizes da referida Política Nacional de Atenção Básica compreendem uma ampla gama de ações, se relacionam com uma concepção ampliada de saúde, estando explícito o direcionamento no sentido de efetivar processos de trabalho fundamentados na interdisciplinaridade, na intersetorialidade, na atenção ampliada às necessidades de saúde. Porém, os processos de trabalho realizados diretamente a partir da ESF contam com um número reduzido de núcleos de conhecimento acionados na produção do cuidado, o que

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pode limitar as possibilidades de trocas criadoras que fortaleçam os saberes do campo da Saúde Coletiva. Neste sentido, acreditamos que um aspecto a ser adensado de reflexões é a contradição entre a ampliação do objeto saúde e do escopo de ações, proposta pela ESF, com a redução da multiprofissionalidade das equipes, frequentemente denominadas de “equipes mínimas”. No entanto, é questionável se a presença de outros profissionais na composição básica dessas equipes não seria uma estratégia potencializadora do modelo de atenção à saúde buscado por essa política.

Neste horizonte, torna-se premente a necessidade de criação de estratégias de suporte a essas equipes, que vão desde arranjos que ampliem a sua composição, ancoradas nas necessidades de saúde loco-regionais, bem como a implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Essa necessidade se coloca também como um desafio para a formação em residência na atenção básica, tendo em vista impulsionar a vivência de novos arranjos de equipes, voltados para a ampliação da resolutividade e adequação às necessidades de saúde prevalentes no território, subsidiando também a inserção dos egressos das Residências nos NASFs.

No que tange especialmente aos NASFs, entendemos que este é um debate que necessita ser aprofundado, em especial, em relação ao trabalho pautado no apoio matricial4/assessoria. Afinal, que particularidades adquirem o trabalho desse profissional vinculado aos NASFs? Quais saberes e competências profissionais são mobilizados no processo de suporte às equipes de ESF? A construção de respostas para tais perguntas necessita considerar as ações previstas para os assistentes sociais, definidas na Portaria que as institui, as quais têm como eixos: a “promoção da cidadania, a produção de estratégias que fomentem e fortaleçam redes de suporte social e maior integração entre serviços de saúde (...) contribuindo para o desenvolvimento e ações intersetoriais para a realização efetiva do cuidado” (BRASIL, 2009b).

4 Para essa discussão, cabe ressaltar as indicações de CAMPOS (2007) sobre apoio matricial: a relação entre apoiador (ou equipe) matricial baseia-se na construção de projetos terapêuticos, ou seja, na discussão e no planejamento conjunto das terapêuticas (ou plano de acompanhamento) direcionadas a cada usuário, sempre de modo integrado com a equipe de referência; composição de diferentes estratégias de apoio, tais como atendimentos e intervenções conjuntas entre equipe e apoiador, atendimento especializado do apoiador em algum caso emergente (com a co-responsabilização e permanência de vínculo com a equipe de referência), troca de conhecimentos e orientações. Ressaltamos, ainda, outra possibilidade de trabalho, tal como processos de assessoria, que compreendam a análise e identificação de necessidades no território, objetivando a potencialização de ações existentes e o planejamento de novas ações.

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Entendemos que os NASFs representam um novo espaço sócio-ocupacional a ser explorado pelos assistentes sociais, elucidado em suas potencialidades e contradições. Questões implicadas no processo de implantação (composição das equipes, priorização das áreas/equipes de ESF) e na dinâmica de funcionamento (o grande número de equipes de ESF vinculadas a cada NASF, a tendência deste de assumir o papel de um serviço de média complexidade e funcionar na lógica tradicional da referência e contrarreferência) necessitam ser debatidas, serem alvo de pesquisas, bem como privilegiar relatos de experienciais profissionais sobre a atuação em apoio matricial.

Nesse quadro de transição e mudança na atenção básica, a integralidade em saúde se coloca como premissa fundamental, diretriz que, compondo a tríade de princípios doutrinários do SUS junto com a universalidade e equidade, necessita ser explorada e adensada na formação nas RMS. A integralidade ancora-se na perspectiva de necessidades em saúde como conceito-chave para a análise da materialização da Política de Saúde, em suas diferentes dimensões, de modo a efetivar o conceito ampliado de saúde no cotidiano do SUS. Dessa forma, as necessidades de saúde podem ser apreendidas em quatro grandes eixos (CECÍLIO, 2006), quais sejam: o que se refere às condições de vida dos sujeitos; ao acesso às tecnologias de saúde capazes de melhorar, qualificar e prolongar a vida; ao vínculo usuário/serviços de saúde, ou seja, responsabilização, compromisso com suas questões de saúde; e aos crescentes níveis de autonomia do usuário, como dimensão de emancipação.

Tal diretriz pode ser entendida como o compromisso crescente do sistema de saúde, em sua totalidade, com o atendimento qualificado e ampliado das distintas necessidades de saúde. Mattos (2006) ressalta que integralidade pode ser analisada e materializada em três planos distintos: no âmbito das práticas – como um atributo das respostas profissionais que buscam a compreensão sobre o conjunto de necessidades de ações de saúde que o usuário apresenta; no plano da organização dos serviços – através de uma lógica de programação de saúde horizontalizada, na qual o serviço busca atingir as necessidades da população-alvo; e também na organização das políticas deste setor, o que significa a noção de responsabilidade estatal na resposta a problemas de saúde, juntamente à recusa do reducionismo do objeto das políticas que são alvo de formulação.

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Podemos também nos valer da discussão de Cecílio (2006) sobre a integralidade, o qual destaca que essa pode ser apreendida tanto em uma dimensão ampliada, no plano do conjunto do Sistema, como também numa dimensão focalizada, no plano de dado serviço e equipe de saúde. Ressalta o autor que o atendimento integral às necessidades de saúde não se realiza somente no âmbito de um serviço de saúde – por mais competente e compromissado que ele esteja com tais necessidades – e sim deve ser pensado e efetivado através da articulação entre os demais níveis do sistema e do acesso a serviços e políticas para além do setor saúde, visando à melhoria e à ampliação da qualidade de vida dos usuários.

Já no espaço do serviço de saúde, conforme Cecílio (2006), a integralidade corresponde ao movimento empreendido pela equipe, no contato profissional-usuário, no sentido de realizar a melhor escuta, apreensão e atendimento das necessidades de saúde, frequentemente travestidas em demandas simplificadas, ou moduladas pela oferta dos serviços. Deve-se, segundo o autor, investir na confluência de saberes das equipes multiprofissionais, na organização e capacitação dessas equipes, no sentido de ampliar esse processo de escuta, apreensão e atenção às necessidades de saúde.

Diante do exposto, podemos ressaltar que a integralidade em saúde possui como eixos analisadores para sua materialização a intrassetorialidade, a intersetorialidade e interdisciplinaridade, dimensões potenciais para serem desenvolvidas como experiências formativas nas RMS, bem como a serem exploradas na atuação dos profissionais da saúde, entre esses o assistente social.

Perspectivas para o trabalho e formação dos assistentes sociais sob o eixo da integralidade na atenção básica

A discussão sobre a materialização do trabalho e formação dos assistentes sociais nas Residências de forma articulada com a afirmação da integralidade em saúde implica, necessariamente, a problematização do campo de valores e princípios que norteiam as ações profissionais, bem como a elucidação do objeto sobre o qual incidem essas ações. Dessa forma, é fundamental estabelecermos mediações entre o projeto ético-político profissional e o Projeto de Reforma Sanitária, bem como

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entre saúde e questão social. Além disso, a configuração particular da atenção básica em saúde, as diretrizes e políticas que a norteiam também apontam tendências para o trabalho e a formação dessa profissão nesse âmbito do SUS. Dessa forma, o primeiro aspecto a ser enfatizado consiste na centralidade do conceito ampliado de saúde5 como norteador do trabalho e da formação nas Residências. Tal conceito permite-nos dialogar com a questão social em suas diferentes expressões, bem como sinaliza para a importância de considerarmos a determinação social do processo saúde/doença, apreendendo “a influência da cultura, das relações sociais e econômicas e das condições de vida nos processos saúde-doença” (NOGUEIRA, MIOTO, 2006, p. 228).

Tal perspectiva é fundamental, tendo em vista fortalecer que esse trabalho esteja atento às refrações da questão social no âmbito dos processos saúde/doença e às demandas emergentes no cotidiano profissional, de forma a potencializar a produção e a garantia da saúde através da defesa e da ampliação de direitos. Adensar as mediações entre saúde e questão social, tendo como foco de problematização os determinantes sociais do processo saúde/doença, consiste num dos principais eixos do trabalho e da formação dos assistentes sociais nas Residências. Os dados6 obtidos em nossa pesquisa indicam a necessidade de que esse eixo seja aprofundado nos processos de ensino.

Outro aspecto consiste na direção social do trabalho do assistente social nas Residências, o qual necessita ancorar-se nos valores e princípios consubstanciados no Projeto de Reforma Sanitária e no projeto ético-político profissional, pois são estes projetos que balizam a abordagem da profissão e da saúde (BRAVO, MATOS, 2006). Por Projeto de Reforma Sanitária, entende-se um conjunto de concepções e valores em torno da democratização da saúde na sociedade brasileira, bem como dos meios de concretizá-los, o que se expressa nos planos ideológico, jurídico, político, institucional e assistencial. No que tange ao projeto profissional, esse se articula com um projeto societário radicalmente democrático, 5 “Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso à posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1987, p. 384). 6 Na pesquisa realizada identificamos que grande parte dos assistentes sociais (60%) apreende a questão social como matéria profissional, contudo, somente parte destes estabelece mediações entre saúde e questão social (46,67% dos sujeitos). Dentre os que não apontam a questão social como objeto, a maior parcela (26,67%) refere conteúdos relacionados a objetivos do trabalho na saúde, e pequena parcela (13,33%) aponta outras abordagens de objeto profissional.

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com valores emancipatórios referentes à conquista da liberdade, situando a centralidade do trabalho na (re)produção da vida social (BARROCO, 2006). A valoração ética desse projeto remete, prioritariamente, ao campo da ação profissional frente à questão social, balizando a intencionalidade e a direção do trabalho do assistente social.

Na pesquisa realizada, os dados indicam claramente a direção social do trabalho referendada em ambos os projetos. Através dos dados7 quantitativos, podemos constatar uma predominância dos princípios do SUS sobre os do atual Código de Ética, dentre os princípios elencados pelos residentes como norteadores do trabalho e da formação. Contudo, devemos ponderar sobre a implicação entre tais princípios, pois, por exemplo, tanto o Projeto de Reforma Sanitária como o Projeto Profissional têm como direção social a consolidação da democracia, da cidadania e a premissa de universalização de direitos. Outro ponto é que a particularidade dessa formação também contribui para uma valorização dos princípios desse Sistema como norteadores das ações, o que por sua vez também contribui para fortalecer finalidades comuns entre os trabalhadores das equipes, necessárias para a materialização da interdisciplinaridade.

Dadas essas considerações introdutórias que balizam a discussão da inserção profissional no SUS, passaremos à discussão de possibilidades de materialização do trabalho profissional na atenção básica frente à diretriz da integralidade, de forma articulada com a formação nas RMS.

Como discutimos no item anterior, esse nível do sistema – dada a centralidade que assume na organização e na reestruturação do SUS, somada às suas singularidades e potencialidades assistenciais – é estratégico para a qualificação do sistema de saúde, com vistas à consolidação de uma abordagem integral.

Dentre atual contexto de mudanças na atenção básica, de reorganização dos serviços e expansão da ESF, inclusive nos grandes centros urbanos, visualizamos três tendências para a inserção dos assistentes sociais na atenção básica, quais sejam: a participação direta deste

7 Na abordagem quantitativa de nossa pesquisa sobre intencionalidade profissional, os três princípios com maior frequência de escolha pelos residentes, selecionados dentre o Código de Ética e dentre as diretrizes do SUS, foram: a participação popular/controle social (13), a integralidade em saúde (12), a saúde como direito social (12), a universalidade do acesso (12). A análise comparativa dos dados, entre princípios do Código e do SUS, demonstra que os princípios priorizados pelos residentes no trabalho são: a participação popular/controle social (13), seguido da integralidade e da saúde como direito social (12); o posicionamento em favor da equidade e justiça social (9), seguido da ampliação e consolidação da cidadania (8).

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profissional em equipes de ESF, contudo, condicionada às configurações locais da rede de saúde, em que esta garanta a inclusão de outros profissionais além dos previstos na equipe mínima; sua participação direta em equipes de outros serviços de atenção básica onde não foi implantada a ESF, voltando-se para o atendimento da população adstrita, juntamente com o atendimento “especializado” de referência para a ESF e também participando de iniciativas de apoio matricial; a inserção direta em equipes de apoio matricial, em especial os NASF, na qual a atuação ocorre a partir da interface com as equipes ESF e territórios vinculados ao NASF.

A formação dos assistentes sociais nas Residências necessita dialogar com essas tendências atuais de inserção na atenção básica. Implica apreendê-las e problematizá-las, sobretudo, de forma articulada com uma análise conjuntural sobre a própria configuração da rede básica no contexto dos sistemas locais de saúde. É a partir deste debate mais amplo – a configuração da rede básica nos sistemas locais e o desafio da sua qualificação – que o tema candente da inserção do assistente social nas equipes mínimas de ESF ganha densidade política, pois se articula ao processo de construção de novos arranjos de equipes que qualifiquem a atenção em saúde.

É justamente nesse contexto que a integralidade em saúde se coloca como premissa fundamental, indagadora da reorientação do modelo assistencial e também impulsionadora de uma inserção crítica e propositiva do trabalho do assistente social na saúde, sintonizada com os desafios de materialização do SUS.

A busca pelo atendimento integral das necessidades sociais, no âmbito do SUS, insere-se num contexto mais amplo de disputa pela afirmação de democracia e justiça social, que se soma à contraditória luta por emancipação e cidadania da classe trabalhadora no seio das sociedades capitalistas.8

Como uma noção prenhe de sentidos e uma “imagem-objetivo”, a integralidade em saúde indaga sobre valores a serem defendidos na materialização do sistema de saúde, assim como remete necessariamente à centralidade do direito universal à saúde, o qual implica num duplo movimento que articule a garantia/oferta de Políticas Públicas que 8 É importante nos atentarmos para os limites da emancipação humana na ordem capitalista burguesa, pois a efetiva emancipação social transcende o limitado horizonte do direito burguês, sendo impensável sem a construção de uma sociedade radicalmente democrática (MARX, 2004c). Na mesma linha, se evidenciam as limitações da efetiva universalização da cidadania nos marcos da sociedade burguesa, ou seja, não há como compatibilizar cidadania plena e capitalismo (COUTINHO, 2008).

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incidam sobre a melhoria das condições de vida da população com a luta social pelo acesso igualitário e universal aos serviços de saúde (MATOS, 2005; 2006).

Conforme Paim (2008), a integralidade nas bases conceituais da Reforma Sanitária brasileira incorpora quatro perspectivas, compreendendo-a:

a) como integração das ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde compondo níveis de prevenção primária, secundária e terciária; b) como forma de atuação profissional, abrangendo as dimensões biológica, psicológica e social; c) como garantia da continuidade da atenção nos distintos níveis de complexidade do sistema de serviços de saúde; d) como articulação de um conjunto de políticas públicas vinculadas a uma totalidade de projetos de mudanças (Reforma Urbana, Reforma Agrária, etc.) que incidissem sobre as condições de vida, determinantes da saúde e dos riscos de adoecimento, mediante ação intersetorial (PAIM, 2008, p. 15).

Neste horizonte, a integralidade, no debate da Reforma Sanitária brasileira, necessita ser materializada tanto no plano da atuação profissional como na própria organização do sistema de saúde. Em especial, essa organização volta-se para a articulação e construção de um sistema integrado: integração de abordagens assistenciais, articulação dos serviços de saúde, interfaces com as demais políticas de Seguridade Social.

Além desses aspectos, reiteramos que a integralidade pode ser apreendida como o direcionamento do sistema de saúde, em sua totalidade, para o atendimento qualificado e ampliado das distintas necessidades de saúde, de modo a efetivar o conceito ampliado no cotidiano do SUS. Essa perspectiva foi encontrada na pesquisa realizada em nossa dissertação na qual identificamos que a grande maioria dos assistentes sociais (93,33%) relaciona a integralidade com o conceito ampliado de saúde, destacando a superação da fragmentação e uma abordagem que prime pela totalidade na apreensão das necessidades de saúde da população usuária. Em menor frequência (26,6%), os assistentes sociais também associam a abordagem ampliada da saúde com a perspectiva da intersetorialidade e da interdisciplinaridade e, ainda, com a intrassetorialidade (6,67%).

Partindo dessa apreensão de integralidade, os assistentes sociais têm um papel fundamental na construção dessa diretriz do SUS, tendo em vista ser esta um

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princípio dotado de vários sentidos que consistem tanto na abordagem do indivíduo na sua totalidade como parte do contexto social, econômico, histórico e político, quanto na organização de práticas de saúde que integrem ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação (NOGUEIRA; MIOTO, 2006b, p. 278).

Essa abordagem da integralidade instiga a realização de ações profissionais sintonizadas com a sua materialização em diferentes planos, como já apontamos anteriormente: no âmbito das práticas em saúde, da organização dos serviços e na organização das políticas setoriais (MATTOS, 2006). Esses planos, além de se traduzirem em eixos sobre os quais incidem as ações profissionais, se convertem, sob o ponto de vista da formação em Residência, em aspectos que devem perpassar os processos de ensino, seja das atividades desenvolvidas nos serviços, seja dos espaços com ênfase teórica e também da pesquisa.

O primeiro pressuposto é superarmos uma perspectiva segmentadora da realidade e da própria Política de Saúde, apreendendo o contexto que conforma esta política e as possibilidades que se colocam para a afirmação do direito à saúde. Tal perspectiva necessita estar presente no plano da dimensão assistencial desenvolvida pelo serviço que é cenário de aprendizagem/trabalho na Residência, e ainda do ponto de vista da inserção em espaços de gestão, viabilizadas pela realização de estágios especializados durante a formação.

Este se constitui num terreno fértil para o trabalho/formação do assistente social. Através dos aportes do projeto profissional, ressaltam-se os processos de diagnóstico, planejamento e gestão como um dos polos das competências profissionais. Competências, essas, ancoradas na perspectiva de apreensão das necessidades de saúde como necessidades humanas (PEREIRA, 2007), interligadas à garantia de direitos e acesso a Políticas Públicas na esfera da proteção social. Isso se traduz na construção de interfaces entre as políticas públicas como uma contribuição fundamental da profissão no campo da integralidade, afirmando as possibilidades de potencialização da Seguridade Social como um conjunto articulado de políticas e serviços pautados na universalidade.

Para tanto, é fundamental o enfoque para a esfera da gestão da Política de Saúde e para a atuação nas instâncias que a compõem, tais como Conselhos e Conferências. O controle social representa não só o

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desafio de aprofundamento da gestão democrática da Política de Saúde, mas também um campo de possibilidades de disputa da organização do sistema através de um modelo assistencial integral. Do ponto de vista do ensino na Residência, trata-se de construirmos experiências formativas dos assistentes sociais, pautadas na gestão e no planejamento da atenção básica, que tomem como eixos a participação, a sistematização de demandas da população e a construção de interfaces entre serviços de diferentes políticas.

Além disso, a integralidade no âmbito da organização dos serviços e processos de trabalho desafia-nos a superar a lógica privatista hegemônica que orienta o trabalho em saúde. Isso implica mudanças nas instituições, na democratização dos serviços e na adoção de uma organização do trabalho aberta às demandas da população: uma relação dialética entre necessidades de saúde e oferta de serviços. São necessárias também estratégias permanentes de apreensão da realidade vivida pela população, do território/comunidade no qual se insere o serviço, de modo a impulsionar ações contínuas e planejadas. Esse desafio necessita, sem dúvida, permear o processo de ensino-aprendizagem dos assistentes sociais nas Residências, podendo ser adensado através do debate e do estudo sobre modelos assistenciais em saúde,9 de forma conjunta com as demais áreas profissionais.

Outro aspecto fundamental, como já referimos, consiste no fato de que o fortalecimento do trabalho coletivo realizado pela equipes multiprofissionais não “exclui” a qualificação do trabalho de cada profissão. Assim, merece destaque nessa formação o processo de fortalecimento do campo de saberes teórico-práticos e competências relativas ao exercício profissional do Serviço Social, conjugado no processo de construção de práticas interdisciplinares. Nesse ponto, reside um dos desafios de articulação do trabalho do assistente social com a diretriz da integralidade, valorizando a particularidade deste trabalho, sua natureza qualitativa e valor de uso. Esse aspecto pode ser alvo de problematização nos espaços de ensino denominados de momentos “núcleo”, tal como a preceptoria realizada no serviço, que 9 Modelos de atenção em saúde constituem-se em “um dado modo de combinar técnicas e tecnologias para intervir sobre problemas de saúde (danos e/ou riscos) e atender necessidades de saúde individuais e coletivas; é uma maneira de organizar os ‘meios de trabalho’ (saberes e instrumentos) utilizados nas práticas ou processos de trabalho em saúde. Aponta como melhor integrar os meios técnico-científicos existentes para resolver problemas de saúde individuais e/ou coletivos. Corresponde à dimensão ‘técnica’ das práticas em saúde; incorpora uma ‘lógica’ que orienta as intervenções técnicas sobre os problemas e necessidades de saúde” (PAIM, 2003, p. 165). Para discussão de diferentes modelos assistenciais no campo da saúde coletiva, ver análise de Teixeira (2003).

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problematize as ações profissionais, bem como nos espaços com ênfase teórica, que agreguem os assistentes sociais residentes e preceptores.

Na pesquisa realizada junto aos programas de Residência, os dados quantiqualitativos obtidos indicam a construção de mediações sistemáticas, por parte dos assistentes sociais, que conformam a particularidade profissional na abordagem da saúde, as quais mobilizam e se traduzem em estratégias profissionais frente aos desafios de afirmação da integralidade.

Tais mediações ancoram-se nos fundamentos teórico-metodólogicos e ético-políticos do Serviço Social, da produção recente desta área, e podem ser denominadas como: mediações fundamentadas no método dialético-crítico, as quais se evidenciam na abordagem da saúde que prima pela totalidade, na perspectiva de desvelamento e reflexão crítica da realidade; nas mediações relativas ao campo de valores do projeto profissional, nas quais ganha destaque a centralidade para a garantia de direitos, indissociáveis da busca pela ampliação da cidadania e democratização; e as mediações articuladas ao campo das Políticas Sociais, ou seja, que expressam o acúmulo de saberes teórico-práticos que essa categoria vem produzindo sobre a esfera da prestação de serviços sociais, seja no campo estatal, como no âmbito de diferentes organizações.

Tais mediações e sua materialização em ações profissionais integradas nas equipes resultam em contribuições para a integralidade do cotidiano das práticas de saúde, na medida em que se relacionam com o conceito ampliado de saúde, pois busca apreender, de forma totalizante, as necessidades de saúde dos sujeitos. Neste horizonte, a partir da pesquisa realizada, identificamos dois eixos nos quais podem ser agrupadas as contribuições profissionais para essa diretriz do SUS, conforme os depoimentos dos residentes. Esses eixos consistem: nos aportes da particularidade do Serviço Social nas equipes – que abarcam a “visão” crítica e totalizante da saúde (56,25%), a direção social do projeto ético-político profissional (25%), o enfoque para o protagonismo do usuário (18,75%) – e as estratégias desenvolvidas para a viabilização da integralidade, que compreendem o trabalho em equipe (31, 25%), a discussão dos acompanhamentos em saúde entre os profissionais de diferentes áreas (12,5%), o trabalho em rede (12,5%), o fortalecimento do acesso ao serviço de saúde (6,25%) e a ampliação do controle social (6,25%).

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Com base nos expostos até então, ressaltamos a importância da construção do trabalho do assistente social no sentido de efetivar abordagens socioeducativas junto a indivíduos, famílias e grupos, que superem intervenções pontuais centradas apenas em demandas emergentes dirigidas pela população ou equipe multiprofissional, para o seu trabalho, de forma a efetivar ações integradas, seja com a equipe, com demais serviços e/ou políticas.

Assim, buscamos identificar em nossa pesquisa a participação dos residentes no conjunto das ações em saúde desenvolvidas pelas equipes de atenção básica. Os dados referentes às ações profissionais indicam que há uma inserção ampla e contínua dos assistentes sociais em diferentes ações da atenção básica, com destaque para as abordagens relativas ao controle social/mobilização comunitária e à saúde da família. Essas ações possuem enfoque interdisciplinar, operacionalizadas através de interfaces entre as áreas profissionais inseridas na equipe. Identificamos que as principais ações realizadas continuamente, por ordem de frequência são: o acompanhamento a famílias e a participação no controle social (100%), a realização de visitas domiciliares (91,6%), o acolhimento aos usuários (83,3%), a participação em projetos interdisciplinares e a realização de práticas grupais (75%).

Neste horizonte, a partir das experiências profissionais pesquisadas nas Residências, da revisão de produções e pesquisas sobre a atenção básica, podemos ressaltar alguns eixos fundamentais com os quais o trabalho e a formação do assistente social necessitam estar sintonizados, podendo aportar contribuições significativas.

Um dos primeiros aspectos a serem enfatizados é a centralidade do território, apreendido não somente como delimitação de abrangência e intervenção do serviço de atenção básica, mas como palco de relações, espaço de pertencimento social, locus de expressão da cultura, da condição e do modo de vida da população. O desafio é consolidar uma inserção proativa nesses territórios, que possibilite identificar e trabalhar com a diretriz da equidade, com as necessidades de saúde de grupos populacionais, juntamente com o enfoque para microáreas. A ênfase para o território também se desdobra na articulação com organizações comunitárias, na identificação de recursos e serviços, fortalecendo interfaces e parcerias conjuntas.

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Outro ponto é a ampliação da acessibilidade do serviço como desafio permanente do trabalho que se pauta pela universalidade do direito. Implica, assim, a organização do processo de trabalho da equipe e da dinâmica do serviço, tendo em vista a realidade da população/território. A participação ativa na implantação de acolhimento, englobando a escuta, identificação de necessidades e inserção nos atendimentos ofertados pelo serviço, ou da rede, é uma estratégia importante. O acolhimento também está associado à mudança da organização da atenção em saúde centrada somente na demanda espontânea (Pronto Atendimento), ampliando o acesso e também qualificando a atenção.

Nesta linha, também se coloca como estratégico afirmar a atenção em saúde longitudinal, voltada para o grupo familiar. Esta atenção necessita da construção de estratégias que favoreçam o acompanhamento continuado da família e a superação do atendimento pontual de agravos em saúde e de grupos populacionais/recortes geracionais. Uma possibilidade para fortalecer esse processo é a definição de profissionais de referência para famílias por microáreas do território. Outro eixo de atuação consiste no enfoque para a promoção em saúde. A perspectiva da promoção parte de uma concepção ampla da saúde de seus determinantes, juntamente com a crítica da medicalização da sociedade e da saúde. Busca a articulação entre diferentes saberes, constituindo-se em “um enfoque político e técnico em torno do processo saúde-doença-cuidado” (BUSS, 2003, p. 15). As ações pautadas na promoção abrangem práticas educativas e grupais, tendo como eixos a ênfase para a informação e ampliação da autonomia, o fortalecimento da participação comunitária, explorando parcerias com serviços das demais políticas presentes no território.

Os programas da atenção básica também podem ser alvo de intervenção do assistente social, tendo em vista qualificar e ampliar as ações relativas à saúde da mulher, saúde da criança, saúde do adulto, pré-natal, planejamento familiar, entre outros. Estes programas, ao combinarem tecnologia e ações de enfoque clínico-epidemiológico, têm alcançado avanços e impactos na melhoria dos indicadores, porém, frequentemente, organizam-se a partir de especialidades médicas e da atuação fragmentada dos trabalhadores (CAMPOS, 2003). Uma possibilidade para superar essa realidade é a inclusão de abordagens educativas, grupais, articuladas com esses programas, juntamente com

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a criação de “protocolos” que favoreçam o enfoque interdisciplinar, bem como a atenção voltada para a família.

Os aspectos abordados anteriormente se articulam com o modelo assistencial Vigilância da Saúde,10 pois levam em consideração a centralidade do território, o enfoque para a promoção da saúde e seus determinantes sociais, sendo uma perspectiva que auxilia na operacionalização do trabalho do assistente social. Para tanto, é fundamental aprofundar competências relativas à utilização de dados socioepidemiológicos em articulação com indicadores sociais, de forma a subsidiar o planejamento e a avaliação das ações de saúde.

Como último ponto, mas transversal ao exercício profissional, destacamos o controle social em saúde. O desenvolvimento permanente de ações que fortaleçam a participação e mobilização dos usuários deve compor as estratégias de trabalho do assistente social, juntamente com o estímulo à criação de conselhos locais de saúde e à participação/articulação sistemática destes com os conselhos distritais, municipais, fóruns e movimentos pela defesa do SUS.

Considerações finais

Entendemos que o debate sobre as Residências coloca em cena o desafio de imprimir mudanças nas práticas em saúde, como um dos eixos estratégicos para a qualificação do atendimento às necessidades sociais no âmbito do SUS. Aglutinar forças sociais para a materialização do Projeto da Reforma Sanitária no plano assistencial do SUS passa, sem dúvida, pela valorização dos trabalhadores deste setor e do papel fundamental que possuem no cotidiano desse Sistema. Para tanto, é fundamental consolidarmos uma lógica pública no ordenamento da formação de Recursos Humanos, que tenha como pontos-chave a efetivação de uma educação voltada para as necessidades da saúde e para o SUS, o foco para a mudança do modelo assistencial e a articulação intersetorial saúde-educação, ancorada no controle social.

A atenção básica também assume relevância no quadro de políticas e ações públicas voltadas para a mudança de modelos assistenciais, pois, dadas suas características assistenciais, precisa assumir cada vez mais um papel estratégico no SUS. Dotá-la de

10 Para discussão do modelo assistencial de vigilância da saúde, ver Paim (2003).

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acessibilidade efetiva, orientar sua atuação para a equidade, valorizando abordagens diferenciadas para a população com déficits históricos de acesso e cuidados em saúde, são perspectivas importantes, juntamente com a busca pela afirmação da integralidade.

Por tanto, é fundamental apreender essa diretriz do SUS através de um enfoque amplo que abarque diferentes planos do Sistema, compreendendo da atenção à gestão, do trabalho à formação. Tal diretriz associa-se a valores sociais emancipatórios e, como uma noção prenhe de sentidos, nos interroga sobre que modelo assistencial queremos construir com base na Reforma Sanitária. Destacamos, ainda, que a intrassetorialidade, a intersetorialidade e interdisciplinaridade podem se converter em eixos analisadores da integralidade, porque voltados para empreender respostas ampliadas às necessidades sociais, premissa fundamental para concretizar o direito social à saúde.

Nessa direção, o foco de atuação do Serviço Social – as refrações da questão social e suas interfaces com os determinantes sociais do processo saúde-doença – delineia a relevância dessa profissão no SUS, porque relacionada com o conceito amplo de saúde e também dotada de sintonia com a área da Saúde Coletiva.

Fortalecer uma formação pós-graduada nessa perspectiva, tal como a Residência, é fundamental, em especial na atenção básica, a qual necessita ser mais priorizada nos debates e produções do Serviço Social na saúde. Tais produções necessitam incorporar as tendências de inserção da profissão na atenção básica juntamente com os desafios de qualificação desses serviços, adensando contribuições profissionais para a consolidação do SUS e também identificando aspectos a serem fortalecidos no exercício profissional nessa área.

Pesquisas sobre a configuração da rede local de atenção básica e a inserção dos assistentes sociais nessa rede, em interface com fóruns profissionais, poderiam auxiliar nesse sentido. Outra possibilidade é a sistematização das experiências profissionais desenvolvidas nas RMS, as quais precisam ser privilegiadas como polo de experimentação e inovação da profissão no SUS.

Neste horizonte, apresentamos a seguir uma sistematização em torno de algumas das diretrizes de formação da Residência, de forma particularizada com o trabalho/formação dos assistentes

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sociais, nos seguintes âmbitos formativos: 1) o ensino em serviço, ou seja, a formação realizada diretamente nas equipes; 2) as aulas/espaços de reflexão teórica desenvolvidos com o grupo de assistentes sociais; 3) a pesquisa e sistematização de saberes e práticas, ou seja, o adensamento de conhecimentos e dados que subsidiem os dois primeiros âmbitos da formação.

Concepção ampliada de saúde:

Qualificação do processo de apreensão e de formulação de respostas profissionais às refrações da questão social no âmbito do processo saúde-doença de indivíduos, famílias e comunidades.

Estudo da determinação social do processo saúde-doença (individual e coletivo) e suas interfaces com o processo de produção/reprodução da vida social.

Sistematização de necessidades e demandas de saúde que dão visibilidade às refrações da questão social; conhecimento do modo e da condição de vida da população usuária e das formas de enfrentamento por ela empreendidas (resistências sociais).

Integração de saberes e práticas, construção de competências compartilhadas na formação em equipe:

Construção conjunta na equipe de projetos de acompanhamento a indivíduos e famílias. Realização de atendimentos e acompanhamentos através de interconsultas. Planejamento e execução de abordagens grupais socioeducativas. Supervisão e matriciamento entre equipes.

Discussão da inserção do Serviço Social nos processos de trabalho/ações da equipe e das particularidades que assume esse trabalho. Estudo de temáticas articuladas com o ensino do campo (Saúde Coletiva), identificando e aprofundando os aportes da área de Serviço Social para elas.

Mapeamento do trabalho do assistente social na equipe e no planejamento de ações conjuntas, interdisciplinares (ações nos programas, “protocolos” no serviço). Construção de fluxogramas analisadores (das demandas e necessidades, dos saberes e competências compartilhados).

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Integralidade que contemple todos os níveis, da atenção à gestão:

Ações que contribuam para o acesso e atendimento integral das necessidades sociais em saúde na rede SUS (intrassetorialidade) e demais Políticas Públicas (intersetorialidade). Ações no âmbito da gestão do serviço e estágios especializados em gestão relativos à ênfase do programa de RMS.

Discussão e estudo sobre modelos de atenção e gestão, sobre as interfaces entre os serviços de saúde e demais políticas públicas que garantam a integralidade, com destaque para linhas de cuidado.

Sistematização de necessidades sociais da população e estratégias intrassetoriais e intersetoriais para seu atendimento (fomento às linhas de cuidado).11

Esta breve sistematização trata-se de uma possível contribuição para a construção de eixos norteadores da formação dos assistentes sociais nas Residências. Tal construção consiste num dos desafios centrais para o debate da inserção do Serviço Social nesta formação, ou seja, debatermos parâmetros que subsidiem a qualificação dos processos de ensino/trabalho vivenciados pelos assistentes sociais, residentes e preceptores, no cotidiano das Residências. Consideramos que se trata de um caminho em aberto, no qual se faz presente a importância da análise das diretrizes legais da Residência e das políticas de formação em saúde, a interlocução com fóruns das diferentes profissões que participam dessa formação, a apreensão de particularidades das áreas de concentração dos programas de Residência, bem como a interlocução com as instâncias de regulação dessa formação e do controle social em saúde.

11 Para discussão de linhas de cuidado, ver Ceccim e Ferla (2006).

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SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO NA SAÚDE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NOS PROGRAMAS DE RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE1*

Tatiane Moreira de VargasMaria Isabel Barros Bellini

As motivações que levaram a construção do estudo dessa inserção estão estreitamente vinculadas à vivência como Assistente Social Residente no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde e, posteriormente, como Assistente Social Preceptora21 do mesmo programa de formação. A experiência nesse espaço tem marcado significativamente a trajetória profissional e pessoal, tendo em vista a possibilidade de, além de atuar profissionalmente como Assistente Social, assumir o compromisso com a formação de outros profissionais da área da saúde. Constantemente, as trocas de conhecimentos e o diálogo entre os saberes vivenciado no cotidiano, com os demais profissionais que assumiram esse compromisso e com aqueles que buscam essa modalidade de formação, provocam inquietações. Essas inquietações alimentam o desejo de aprofundar as discussões sobre essa experiência, com o intuito de buscar algumas respostas ou criar outras perguntas acerca da inserção do Assistente Social nesta modalidade de educação profissional pós-graduada multiprofissional.

A Política de Educação para o Sistema Único de Saúde (SUS) propõe a educação permanente, na perspectiva da busca da transformação das práticas das equipes de saúde, considerando a análise coletiva dos problemas reais e a construção de estratégias de enfrentamento, a partir

1* A revisão de literatura apresentada é parte da pesquisa desenvolvida na dissertação de Mestrado intitulada “O Serviço Social no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde: uma estratégia de consolidação do projeto ético-político profissional”, defendida em janeiro de 2011, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUC-RS), orientada pela Professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini. A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética onde foi desenvolvida, conforme os seguintes protocolos: CEP 10/04983 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, CEPS-ESP 572/10 na Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul e CEP 10-094 no Grupo Hospitalar Conceição.2 Conforme a Portaria nº 1.111/GM, de 05 de julho de 2005, Art. 7º, preceptoria: função de supervisão docente-assistencial por área específica de atuação ou de especialidade profissional, dirigida aos profissionais de saúde com curso de graduação e mínimo de três anos de experiência em área de aperfeiçoamento ou especialidade ou titulação acadêmica de especialização ou de residência, que exerçam atividade de organização do processo de aprendizagem especializado e de orientação técnica aos profissionais ou estudantes, respectivamente em aperfeiçoamento ou especialização ou em estágio ou vivência de graduação ou de extensão.

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do diálogo. Trata-se de uma mudança de concepção educacional na área da saúde, reconhecendo a vivência como importante na possibilidade de aprender (FEUERWERKER, 2005).

Ao refletir sobre essa proposta, é preciso considerar como vem-se apresentando a política de saúde no Brasil, com suas contradições marcadas pelo desejo de implementar a política de saúde orientada pela Reforma Sanitária, conquistado legalmente no SUS, mas em conflito com a radicalização da política macroeconômica, que tem reduzido ao máximo os compromissos do Estado com as políticas públicas. É nesse cenário que se dá a prática profissional e a educação pelo trabalho. Assim,

[...] realizar e ampliar a direção social do SUS – sua perspectiva socializante e emancipatória – depende de formação e capacitação profissional relacionadas a um projeto de sociedade orientado para o enfrentamento das contradições centrais que se manifestam na crise social da saúde (VASCONCELOS, 2007, p. 156).

Nesse sentido, a formação e a capacitação dos Assistentes Sociais precisam estar orientadas na perspectiva socializante e emancipatória do SUS. Em consonância com essa orientação, o Serviço Social, através da sua atuação na área da saúde, traz para esse contexto as suas particularidades e o compromisso com o seu projeto ético-político. No cotidiano, diferentes riscos e desafios são colocados para o Assistente Social e precisam ser analisados, buscando identificar possibilidades de superação direcionadas para o projeto profissional e para a defesa do SUS idealizado na Reforma Sanitária.

Uma das possibilidades de (trans)formação32 da realidade, baseada na educação permanente, é o Programa de Residência Multiprofissional em Saúde. Nesse Programa de formação pós-graduada, os profissionais da área de saúde vivenciam a prática, inseridos no universo de trabalho. O Serviço Social está inserido em muitos desses Programas de Residência em Saúde, por todo o Brasil, com assistentes sociais residentes – que estão fazendo a formação de dois anos de duração e os assistentes sociais preceptores – responsáveis pela formação, em conjunto com os assistentes sociais tutores ou orientadores.

3 A opção pela escrita (trans)formação busca destacar o objetivo de transformar a realidade das práticas de saúde, através da formação de profissionais, baseada na educação permanente.

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Transformações Societárias e Educação na Saúde para o Serviço Social

O contexto atual das políticas sociais no Brasil revela características de fragmentação e subordinação à lógica econômica. Iamamoto (2008b, p. 39) afirma que “são instituídos critérios de seletividade para o atendimento aos direitos sociais universais, constitucionalmente garantidos”. Há um desmonte de direitos já conquistados, através da focalização da política social, da precarização dos serviços pela diminuição do financiamento.

Correia (2007) afirma que as contrarreformas implementadas a partir da década de 90 vão demandar da Política de Saúde brasileira: 1) o rompimento com o caráter universal do sistema público de saúde, com o Estado encarregando-se da parte não lucrativa e a rede privada complementando os serviços; 2) a flexibilização da gestão dentro da lógica custo/benefício, privatizando e terceirizando serviços de saúde, com repasse para Organizações Sociais, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Fundações de Apoio e Cooperativas de profissionais de medicina e com a criação de Fundações Estatais de direito privado; 3) estímulo à ampliação do setor privado na oferta de serviços de saúde.

O projeto político-econômico neoliberal, consolidado no Brasil confronta-se com o Projeto da Reforma Sanitária. A perspectiva da Política de Saúde, articulada ao mercado, tem como tendência a contenção dos gastos com a racionalização da oferta. O Projeto de Reforma Sanitária sofreu desmobilização, e outras concepções teóricas passaram a influenciá-lo, com postulações pós-modernas, ressaltando estudos do cotidiano sem relacioná-los com a Política de Saúde (BRAVO, 2007).

Uma preocupação assumida no Projeto de Reforma Sanitária Brasileira para construção de um sistema de saúde único, com acesso universal, gestão descentralizada, atendimento integral e controle social foi a educação dos profissionais, integrando ensino e trabalho em saúde, como uma ação estratégica para a reforma no setor saúde. O “ordenamento da formação de recursos humanos na área da saúde” foi previsto, explicitamente, no inciso III, do artigo 200, da Constituição Federal.

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Conforme o Ministério da Saúde/MS (BRASIL, 2009), a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) “visa contribuir para transformar e qualificar as práticas de saúde, a organização das ações e dos serviços de saúde, os processos formativos e as práticas pedagógicas na formação e desenvolvimento dos trabalhadores de saúde”. A Educação Permanente reconhece a vivência como significativamente importante para a possibilidade de aprender, parte do pressuposto da aprendizagem significativa, considerando que o fato de dialogar com conhecimentos prévios permite que as pessoas desempenhem papel ativo e se apropriem de novos elementos. A aprendizagem significativa ocorre quando há necessidade de buscar responder um questionamento real ou quando o conhecimento novo é construído a partir de um diálogo com o que já existia. A Educação Permanente ocorre no cotidiano do trabalho, a partir dos problemas enfrentados na realidade.

Na aprendizagem de adultos é muito importante partir do que inquieta: o que provoca curiosidade é o que estimula a busca por aprender. Também é importante destacar que a Educação Permanente se faz no coletivo, pois o olhar do outro sempre levanta questões diferentes entre os sujeitos. São ideias trabalhadas por Freire e por outras correntes construtivistas no campo da educação (FEUERWERKER, 2005).

Ceccim (2005, p. 162) identifica que, na saúde, a educação permanente, configura, para alguns autores, o “desdobramento de vários movimentos de mudança na formação dos profissionais”. Para fins de discussão nesse artigo, a concepção de Educação Permanente deve considerar o processo pedagógico a partir da problematização da realidade, com objetivo de transformar práticas. Orientada por essa intenção, tem sua referência na pedagogia progressista liberal, em que a análise crítica das realidades sociais sustenta implicitamente as finalidades sociopolíticas da educação. Nessa perspectiva, a educação é um instrumento de luta para a transformação social (LIBÂNEO, 2002).

A proposta da Educação Permanente tem uma relação próxima com o Serviço Social, sendo defendida, em estudo recente (FERNANDES, 2008), como uma “dimensão formativa vivenciada nas situações de trabalho dos assistentes sociais”. A autora descreve o quanto os espaços sócio-ocupacionais podem configurar-se como local de produção de conhecimento e aprendizagem significativa. Nesses espaços,

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identificamos as expressões da questão social e a intencionalidade do fazer profissional, dando direcionamento e sentido às práticas.

Assim, na Educação Permanente,

a partir do processo de trabalho, se pode identificar quais as exigências e saberes são necessários ao assistente social para a qualificação e provisão das necessidades sociais demandas pelos usuários dos serviços (FERNANDES, 2008, p. 07).

A educação, nessa perspectiva, traz a experiência de atuação com diferentes demandas oriundas da questão social e as particularidades atribuídas à profissão na divisão sociotécnica do trabalho. É necessário identificar, nesse contexto, as implicações ético-políticas, teórico-metodológicas e técnico-operativas que perpassam o processo de trabalho do Serviço Social.

O Serviço Social traz para o campo da saúde, na sua particularidade, também o compromisso com o projeto ético-político da profissão. Um projeto profissional recente, que

para que se afirme na sociedade, ganhe solidez e respeito frente às outras profissões, às instituições privadas e públicas e frente aos usuários dos serviços oferecidos pela profissão é necessário que ele tenha em sua base um corpo profissional fortemente organizado. (NETTO, 2006, p. 144)

Nessa organização, a recente iniciativa do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) buscou elaborar, a partir de discussões em diferentes locais do país, um documento que define parâmetros para a atuação de assistentes sociais na saúde. A iniciativa pôde demonstrar a necessidade de “fortalecer o trabalho dos assistentes sociais na saúde, na direção dos projetos de reforma sanitária e ético-político profissional” (CFESS, 2009, p. 09). No entanto, os parâmetros descritos no documento precisam encontrar respaldo na intencionalidade das ações realizadas e nos pressupostos ideopolíticos dos trabalhadores que as realizam.

Muito mais do que listar essas possibilidades de instrumentos e de meios de trabalhar, está a forma como os utilizamos, a intenção, os propósitos, a viabilização dos direitos, do acesso, a informação, a participação, que correspondem ao resultado da ação profissional. (FERNANDES, 2008, p. 84).

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Assim, a construção de parâmetros, a partir da discussão entre os profissionais, é significativa não somente pelo resultado alcançado, que será avaliado posteriormente, mas principalmente no seu processo de elaboração, que traz a reflexão sobre a prática e possibilidades de organização profissional.

O Assistente Social, permanentemente, busca o significado da sua prática e analisa os objetivos alcançados através de sua intervenção. Essa busca permanente é decorrente do entendimento de que, nos diferentes espaços de atuação do Serviço Social, o profissional convive com a tensão entre projetos político-institucionais distintos. Segundo Iamamoto (2008), o primeiro projeto norteia os princípios da seguridade social na Constituição de 1988, apostando no avanço da democracia. Implica partilha e deslocamento de poder e supõe politizar a participação. O segundo, de inspiração neoliberal, parte das políticas de ajuste recomendadas pelos organismos internacionais, comprometidas com a lógica financeira do grande capital internacional, num contexto de crise e fragilização da organização dos trabalhadores.

Na área da saúde, é possível identificar dois projetos políticos em disputa, relacionados aos já descritos, requisitando diferentes demandas aos assistentes sociais (BRAVO, 1998): o Projeto da Reforma Sanitária, com demandas de busca de democratização do acesso às unidades e aos serviços de saúde, atendimento humanizado, estratégias de interação da instituição de saúde com a realidade, interdisciplinaridade, ênfase nas abordagens grupais, acesso democrático às informações e estímulo à participação cidadã. E o projeto privatista, que demanda seleção socioeconômica dos usuários, atuação psicossocial através de aconselhamento, ação fiscalizatória aos usuários dos planos de saúde, assistencialismo através da ideologia do favor e predomínio de práticas individuais.

Nesse cenário, Nogueira e Mioto (2006a) destacam estudos sobre o trabalho do Assistente Social na saúde. Em relação ao eixo ético-político da atuação profissional, as autoras destacam as contribuições de Bravo (1996) e de Nogueira (2002a, 2002b, 2004), que relacionam os riscos quanto às possibilidades da ação do Assistente Social no sentido da garantia de direitos universais ao analisarem o cenário atual, apontando as ameaças presentes no confronto entre o projeto privatista de cuidados de saúde e o

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projeto da reforma sanitária. Já, as produções direcionadas à ação profissional, as autoras salientam as contribuições de Costa (2000), Matos (2003), Vasconcelos (2002), Wiese (2002), Mioto (2004), Nogueira (2003), que têm pautado em suas análises os desafios para a materialização do atual projeto ético-político da profissão e do próprio SUS. Nogueira e Mioto (2006a) apontam ainda a ampliação da preocupação com a especificidade do Serviço Social, a partir da concepção ampliada de saúde e o novo modelo de atenção dela decorrente, preconizado na PNEPS. Segundo as autoras, é evidente a força que a temática do social e do trabalho com o social vem ganhando no âmbito da saúde, à medida que outras profissões alargam suas ações nesse sentido. Mas é possível identificar uma desqualificação pela qual vem passando os aspectos relacionados ao social. No entanto, na concepção ampliada de saúde, indicada na VIII Conferência Nacional de Saúde (Brasil, Ministério da Saúde, 1986), o Serviço Social adquire um novo estatuto para o trabalho na área da saúde. Mas deve ser protagonista de um novo modelo, que deve ser construído na discussão interdisciplinar, dando visibilidade ao projeto de formação profissional e ao projeto ético-político (NOGUEIRA, MIOTO, 2006b). No entanto,

observa-se que os assistentes sociais, talvez por falta de clareza ou de conhecimento quanto aos projetos em confronto ou por opções ideológicas, têm se inserido no campo da saúde muitas vezes de forma acrítica, ou seduzidos pelo canto das sereias, que é o mercado, na direção oposta ao projeto ético-político. (NOGUEIRA, MIOTO, 2006b, p. 274)

Assim, a atuação do Serviço Social, nesse novo estatuto conferido pela ampliação do conceito de saúde,43 exige uma inserção crítica no trabalho, consciente dos projetos socioinstitucionais em disputa. Considerando essa exigência, é necessário orientar-se pelo Projeto Profissional do Serviço Social e o Projeto da Reforma Sanitária, no cotidiano de prática na saúde, principalmente, quando se configura como espaço de (trans)formação, através da educação permanente.4 A definição da saúde como resultado dos modos de organização social da produção, como efeito da composição de múltiplos fatores, exigindo que o Estado assuma a responsabilidade por uma política de saúde integrada às demais políticas sociais e econômicas e garanta a sua efetivação e ratificando, também, o engajamento do setor saúde por condições de vida mais dignas e pelo exercício pleno da cidadania. (CAMPOS, G. W. et al. Avaliação de política nacional de promoção da saúde. Disponível em: <http://www.scielosp.org/pdf/csc/v9n3/a20v09n3.pdf>. Acesso em: 18/11/2008.)

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A inserção do Serviço Social nos Programas de Residência Multiprofissional em Saúde

Considerando os pressupostos da Educação Permanente é possível identificar, na formação através de Programas de Residência Multiprofissional em Saúde, uma organização propícia para atender à concepção pedagógica que a fundamenta. Neste caso, a modalidade de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) como proposta de formação pode constituir-se como um espaço significativo para projetos contra-hegemônicos que buscam uma transformação de práticas, a partir da reflexão crítica da realidade. Significativo porque a formação deve articular experiência do trabalho no cotidiano da área da saúde e discussões relacionadas a essa experiência, em seminários, aulas ou outros espaços de debates, subsidiados por referenciais teóricos, em alguns momentos, em conjunto com os diferentes profissionais da área da saúde e, em outros, entre os trabalhadores da mesma categoria profissional.

Conforme Portaria Interministerial nº 1.077, de 12 de novembro de 2009, a RMS é uma modalidade de ensino de especialização, de pós-graduação lato sensu, com duração mínima de dois anos, em que os profissionais da área de saúde vivenciam a prática, inseridos no universo de trabalho e atuando efetivamente, com uma carga horária semanal de 60 horas, com períodos específicos (20% do total da carga horária) para discussão sobre a prática desenvolvida no processo de trabalho. As profissões inseridas, descritas no documento, são Biomedicina, Ciências Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional. Assim, na Residência, as vivências práticas de inserção na equipe de saúde fazem parte da formação, contribuindo para um processo aprendizagem significativa, baseada na experimentação desenvolvida nos processos de trabalho.

A operacionalização do Programa de Residência traz as consequências das transformações societárias relacionadas ao cotidiano dos serviços de saúde e a condução do trabalho do assistente social na atualidade. O trabalho do Assistente Social nesse Programa articula experiência prática do cotidiano da área da saúde e os debates teóricos em espaços de discussão de conhecimentos específicos. A partir dessa articulação, o profissional é orientado e acompanha atividades de atenção

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integral à saúde em serviços e atividades de estudo, em conjunto com outras categorias profissionais. Assim, o trabalho pode ser um espaço privilegiado de formação, onde é possível compartilhar conhecimentos para a consolidação do projeto ético-político do Serviço Social.

Na proposta do Programa, o Assistente Social participa da formação pelo cotidiano de práticas no mundo do trabalho. Mas o trabalho, no contexto do sistema capitalista, é transformado em valor de troca (ANTUNES, 1999) e o trabalhador, mesmo na área da saúde, sofre essa influência. Nessa lógica, o trabalhador da área da saúde, muitas vezes, não vê significado social no seu trabalho, mas só o sentido da prestação de serviço para o “patrão” (Estado ou iniciativa privada), vendendo a sua força como mercadoria.

Dessa forma, é preciso elucidar a tensão e a disputa entre projetos distintos no campo da saúde, a partir da análise das propostas de debates teóricos previstos no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde e do processo de trabalho dos Assistentes Sociais nele inseridos. Os diferentes riscos e desafios colocados para o Assistente Social no cotidiano da sua atuação profissional na área da saúde precisam ser analisados, buscando identificar possibilidades de superação.

Para Iamamoto, essa análise supõe articular uma dupla dimensão:

De um lado, as condições macrossocietárias, que estabelecem o terreno sócio-histórico em que se exerce a profissão, seus limites e possibilidades; e, de outro, as respostas sócio-históricas, ético-políticas e técnicas de agentes profissionais a esse contexto, as quais traduzem como esses limites e possibilidades são analisados, apropriados e projetados pelos assistentes sociais. (2008, p. 222).

Nesse sentido, os profissionais, inseridos no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde – espaço de ensino-aprendizagem-trabalho, devem contemplar o projeto ético-político do Serviço Social no seu processo de trabalho e nos temas debatidos nos espaços de discussão teórica, também com o objetivo de qualificar a formação, considerando as particularidades do Serviço Social e o compromisso com os usuários e com os Assistentes Sociais residentes.

Iamamoto (2008) afirma ainda que o projeto realiza-se em diferentes dimensões do universo da profissão: a) nos instrumentos legais, b) nas expressões e manifestações coletivas da categoria, c)

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nas articulações com outras entidades de Serviço Social ao nível latino-americano e internacional e outras categorias profissionais e movimentos organizados, d) no trabalho profissional desenvolvido nos diferentes espaços ocupacionais, e) no ensino universitário, responsável pela qualificação teórica nos níveis de graduação e pós-graduação. Assim, o Programa de Residência Multiprofissional contempla diferentes dimensões desse universo no qual o projeto profissional pode ser realizado.

No entanto, a apropriação do projeto ético-político na prática dos Assistentes Sociais ainda é bastante fragilizada pelas diferentes tensões vivenciadas nos espaços sócio-ocupacionais. O projeto profissional diverge dos interesses do projeto societário hegemônico. É importante considerar esse enfrentamento,

exceto se quiser esterilizar no messianismo, até mesmo um projeto profissional crítico e avançado deve ter em conta tais limites, cujas linhas mais evidentes se expressam nas condições institucionais do mercado de trabalho (NETTO, 2006, p. 146 e 147).

Além disso, segundo Netto (2006), o debate acerca do projeto ético-político é muito recente, aproximadamente desde a transição dos anos 70 aos 80. A partir de então, a formação/ensino precisou ser redimensionada para a preparação de um novo perfil profissional, capaz de responder às demandas tradicionais e emergentes. Nesse sentido, os Assistentes Sociais que buscam a formação pós-graduada já acessaram conteúdos para a compreensão dessa necessidade na graduação. Esses conteúdos são os componentes imperativos à formação acadêmica, em instituições de nível superior, credenciadas e segundo padrões curriculares minimamente determinados.

Entretanto, a formação dos Assistentes Sociais tem sido marcada pelas consequências da contrarreforma da educação superior, mercantilizando o ensino e desconfigurando as diretrizes curriculares, construídas coletivamente e defendidas pelas entidades organizativas da profissão, que têm como base o projeto ético-político. Nesse sentido, houve uma simplificação drástica dessas diretrizes curriculares, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), acompanhando um projeto de formação reduzido, mais flexível, atendendo necessidades do mercado e precarizando o ensino. Além disso, a aplicabilidade desses conteúdos

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na prática profissional, para a materialização do projeto ético-político da profissão, diz respeito também às opções teóricas e ideológicas.

Nesse sentido, Bravo (2007) aponta questões que indicam uma ofensiva conservadora à tendência hegemônica do Serviço Social, iniciada na década de 1990, que passa pelo discurso do distanciamento entre teoria e prática, pela descrença da possibilidade da existência de políticas públicas e da suposta necessidade da construção de um saber específico na área, com ênfase numa dimensão subjetiva e/ou fragmentada conforme especialidades da medicina. Para a autora, o problema não é o fato de os profissionais buscarem estudos na área da saúde, mas sim quando obscurece a função social da profissão na divisão social e técnica do trabalho e desconsidera a importância de formar trabalhadores de saúde para o SUS com visão generalista.

Através da educação pelo trabalho, o Assistente Social inserido no Programa de Residência, pode analisar criticamente as práticas desenvolvidas, buscando aproximá-las com os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional. No entanto, com a lógica de racionalização de gastos na área da saúde, o financiamento desse Programa de formação atualmente também sofre cortes, em favorecimento de outras estratégias de educação que reduzem as possibilidades de processo de ensino-aprendizagem-trabalho significativo, entre elas, a educação à distância, por exemplo.

Considerações finais

A reflexão construída buscou problematizar conceitos que podem ser operacionalizados de forma estratégica para a construção do SUS, idealizado pela Reforma Sanitária, como a Educação Permanente e o projeto ético-político do Serviço Social. Ao problematizá-los é possível compreender os desafios impostos pelo contexto atual das políticas sociais no Brasil, em especial da política de saúde. Ampliar a compreensão poderá permitir a construção de subsídios para superá-los, a fim de atender o compromisso assumido por esta proposta de formação e por esta categoria profissional.

Atuar em um espaço de constante tensionamento gerado por interesses fortemente articulados para atender ao sistema de produção capitalista, exige iniciativas organizadas pelo coletivo de Assistentes

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Sociais, mas principalmente buscando compor com as demais categorias profissionais, a partir do necessário diálogo constante. É importante destacar que essa aproximação com os diferentes trabalhadores da saúde, que também vivenciam as consequências do enxugamento das políticas sociais, é condicionada por uma disposição para o debate, mesmo entre posicionamentos que representam projetos societários distintos.

Assim, articulado ao demais trabalhadores, o compromisso assumido na educação pelo trabalho dos Assistentes Sociais residentes deverá contribuir para a garantia da defesa do projeto ético-político, bem como para a defesa do Projeto da Reforma Sanitária e os pressupostos da educação permanente na formação para a transformação da realidade social – grande bandeira do movimento sanitário nos anos 80 e intencionalmente atenuada no contexto atual da política de saúde brasileira.

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PARTE II

FAZERES CONSTRUÍDOS X

FAZERES INSTITUÍDOS: A concretude da formação

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A FAMÍLIA COMO REDE DE APOIO AO DEPENDENTE QUÍMICO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES NO ÂMBITO DA SAÚDE PÚBLICA1*

Cláucia Ivete SchwerzMaria Isabel Barros Bellini

A discussão acerca da dependência química no âmbito da saúde pública brasileira apresenta-se como uma temática de fundamental relevância para os diferentes profissionais que atuam nesse campo, uma vez que os dados nos remetem a uma realidade que abrange grande parte da sociedade. Aproximadamente 45% da população brasileira são dependentes de alguma droga lícita ou ilícita (LARANJEIRA, 2005). Somente a partir da explicitação desse dado é possível afirmar a necessidade de aprofundamento científico e de proposição de alternativas que sejam eficazes no trato da questão. Ao ampliarmos nosso olhar e considerarmos as inúmeras implicações da drogadição em nossa sociedade torna-se possível visualizar os prejuízos laborais, sociais, afetivos, que se estendem pelas linhas que constituem a rede de vida dos sujeitos, o que representa sua família, seus laços de amizade, seu espaço profissional, sua vizinhança, sua comunidade, enfim, sua identidade, sua representação social. O lastro que a dependência de determinadas substâncias pode deixar na vida de inúmeros cidadãos pode tomar uma dimensão quase devastadora, mas não irreversível.

Diante desse quadro, o Serviço Social, enquanto categoria profissional inserida no rol dos trabalhadores da área da saúde e como uma profissão que tem em seu objeto as diferentes expressões da questão social, deve-se inserir no atendimento a essa demanda de forma crítica, no que se refere à apreensão da realidade, e propositiva, em ações que possam ampliar o leque de alternativas tanto eficazes como viáveis para o SUS – competências essas que são de sua atribuição.1 O presente artigo é um recorte da dissertação de mestrado A Família enquanto rede de apoio aos Dependentes Químicos: desafios e possibilidades nas linhas percorridas no âmbito da saúde pública, orientada pela professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini, concluída em 2007. Sua elaboração foi inspirada no trabalho de conclusão de curso intitulado “Internação Domiciliar para Dependentes Químicos”, resultado da experiência prévia construída no âmbito da Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública/RS. A continuidade da investigação se deu na pesquisa realizada junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social nos anos de 2006/2007.

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No que diz respeito à importância da atenção voltada para a família, essa se encontra fundamentada e preconizada nas leis que regem os diferentes campos das políticas públicas. Um exemplo é a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), sendo ainda firmada nas bases da Política de Atenção Integral à Saúde Mental. No campo da dependência química, o atendimento ao dependente químico integrado à família, à comunidade e aos demais serviços da rede que constituem a vida do sujeito se encontra preconizado nos decretos de Lei que determinam a política de atenção à dependência química. Esses reconhecem a fundamental importância da atenção integral no tratamento dessa demanda, que consiste em campo fértil para a intervenção do assistente social.

Este artigo trata de pesquisa realizada em nível de mestrado que teve como disparador a vivência como Residente do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva, que se constitui espaço formador de trabalhadores na área da Saúde Pública. O modelo de atendimento utilizado para fins dessa investigação, cujo objetivo é analisar a possibilidade de fortalecimento da família enquanto rede de apoio ao dependente químico, bem como seu potencial na prevenção de recaída ou na redução de danos é o modelo de tratamento da internação domiciliar, que se encontra como modalidade do serviço preconizado na Lei do SUS.

A demanda da dependência química não pode ser vista somente sob um ponto de vista, é necessário que as expressões da questão social, dentre elas a dependência química, sejam compreendidas enquanto partes intrínsecas ao sistema macro para que se possam desdobrar as possibilidades e mesmo os limites de suas refrações.

Segue-se uma discussão acerca da família, sua centralidade no campo das políticas públicas enquanto categoria de análise para a proposta da pesquisa desenvolvida, que visa identificar as possibilidades de fortalecê-la na condição de rede de apoio ao dependente químico e a ela própria enquanto grupo. Seguindo com a discussão acerca de possibilidades de intervenção com a demanda da dependência química bem como com a sua história na sociedade, e a condição para a mudança dos sujeitos permeados por essa realidade através de um conjunto de ações que devem estar na contramão de uma lógica moralista e repressora ainda presente em políticas públicas do Estado.

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A dependência química, seus reflexos sociais e a política de saúde pública no Brasil

É com o olhar crítico para o contexto, e em meio a este, que se faz a discussão acerca do tema da pesquisa. Em se tratando do âmbito da saúde, é preciso destacar que a Constituição Federal de 1988, do artigo 196 ao 200, promoveu uma verdadeira revolução, criando um novo sistema de saúde pública no país. A Legislação Federal e Estadual do SUS (2000, p. 14) determina que

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Assenta, ainda, que o SUS deve dispor de serviços integrados em uma rede regionalizada e hierarquizada, basear-se na descentralização, com direção única em cada esfera de governo.

No tratamento da dependência química, são propostos diversos métodos de intervenção. Ganham destaque as intervenções com a família, na comunidade, as relações significativas e o ambiente de trabalho (SONENREICH, 2000, p. 341). Indica-se, primeiramente, que os pacientes sejam desintoxicados ambulatorialmente. Nos casos considerados mais graves e que reúnam condições de fazer uma internação domiciliar, essa deve ser a opção, deixando-se a hospitalização indicada para o último caso (RAMOS; BERTOLOTE, 1987, p. 116).

A abordagem sobre a drogadição e as políticas públicas para enfrentamento dessa realidade são questões geradoras de polêmica, devido às diferentes concepções de entendimento e tratamento do tema; outro problema é o fato de tratar-se de drogas em um país que, como outros, tem uma sociedade permeada por elas sob as mais diversas formas. Lícitas e ilícitas, envolvidas em fortes relações de poder e interesses políticos, nos mais diversos meios de propagação, possibilitando ao ser humano delas fazer uso, abuso ou mesmo tornar-se dependente.

No Brasil, a corrente de pensamento que defendia a redução de danos teve pouca adesão. A primeira experiência ocorreu em 1989, na cidade de Santos, no Estado de São Paulo, onde o governo municipal lançou a proposta de distribuição de seringas e agulhas, a fim de

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controlar a epidemia de usuários de drogas injetáveis. A medida gerou polêmica nacional, sendo a intervenção enquadrada como crime, antes de ser referência para uma política brasileira de redução de danos pelo uso indevido de drogas (MESQUITA, 1994).

A ideologia que permeia o Estado em suas intervenções no campo referente às drogas seja no atendimento à dependência química ou no enfrentamento ao tráfico, nos remete ao Estado de Polícia, instaurado no período medieval. Tratava-se de um “setor subsidiário da atividade do Estado, visando, sobretudo, à prevenção e punição dos ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e autoritário de investigação e intervenção” (BOBBIO, 1999, p. 410) que se estende até fins do século XVIII.

Na própria conduta tomada a partir da primeira discussão do programa de redução de danos e nas demais situações de repressão, vistas em nosso atual sistema de “segurança” pública, e se formos mais a fundo com nossa visão sobre as políticas públicas, em seus diferentes setores, veremos ainda que as ideologias se parecem com as dos Estados de Polícia e Liberal.

Essa percepção se dá ao tomarmos a conduta repressiva e moralista do Estado atual em relação ao abuso de substâncias em nossa sociedade. Observa-se, de acordo com (BUCHER, 1997), o processo de demonização e de criminalização dos drogadictos, que serve de balizamento para práticas normativas de correção de desvios, de controle social e moral daqueles que se distanciam dos padrões “normais” de funcionamento (BRAVO, VASCONCELOS, GAMA, MONNERAT, 2004, p. 168).

No entanto, na contramão dessa lógica, ao se trabalhar com sujeitos que se tornam dependentes de substâncias psicoativas, assim como em outras áreas, buscamos com estes, a partir de uma perspectiva de acolhimento, viabilizar a protagonização de seus projetos de vida. Projetos que encontram sérios desafios no atual contexto social do país – que não pode ser deixado de lado nesta análise, na medida em que grande parte da população encontra-se atingida pelos fatores estressores sociais e afetada em suas condições de vida.

A internação domiciliar ressalta-se, está prevista na Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, quando passa a vigorar acrescida do seguinte Capítulo VI e do art. 19º, “são estabelecidos, no âmbito do SUS, o

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atendimento domiciliar e a internação domiciliar”, constando ainda do parágrafo 1.º que “na modalidade de assistência de atendimento e internação domiciliares incluem-se, principalmente, os procedimentos médicos, de enfermagem, fisioterapêuticos, psicológicos e de assistência social, entre outros necessários ao cuidado integral dos pacientes em seu domicílio”.

O suporte social é fundamental para a melhora do prognóstico dos dependentes de substâncias psicoativas (RUSCH, 1989, p. 35). Uma investigação completa deve abordar a situação do sujeito em seu meio de convivência, a estabilidade do núcleo familiar e a disponibilidade deste para cooperar no tratamento, devendo-se organizar uma rede de suporte social (DEPARTMENT OF HEALTH, 1999, p. 162).

Kern (2003) aporta uma importante discussão acerca do trabalho do assistente social via mediações em redes, discutindo a importância das redes sociais para o homem; na verdade, entendo-as como essenciais para o tratamento, uma vez que o homem é por natureza um ser social.

Nessa perspectiva, o autor trabalha o sentido da potencialização das redes que constituem as relações humanas e aborda a subjetividade, quer dizer, o potencial encontrado nas redes através da subjetividade, tanto a individual quanto a coletiva, transmitida uma para a outra instância em um movimento constante de relações intersubjetivas. Segundo Kern (2003, p. 54):

A condição humana de estar com o outro significa que o ser humano move-se em direção ao relacionamento com o mundo que o rodeia, em busca de recursos de que necessita, não só para a subsistência, mas também para seu desenvolvimento.

Faleiros (2001, p. 57), ao discutir as estratégias de fortalecimento do usuário por meio das mediações em rede, descreve as redes primárias como aquelas “que se configuram mais significativas para o eu, como as relações afetivas familiares e de amizade. As redes secundárias são formais, institucionalizadas, e dizem respeito à socialização do sujeito e a vínculos sociais mais amplos”. Nessa relação, o autor enfatiza que “as estratégias de intervenção devem combinar as mediações da rede de relação primária com as da rede secundária para fortalecer o patrimônio, o poder, a crítica e a autonomia do sujeito”.

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Seguindo com a leitura deste autor, em se tratando da questão da dependência química, aponta que

a fragilização afetiva, resultante da rejeição familiar, que se manifesta em drogadição ou doença mental, implica uma estratégia voltada tanto para as relações familiares em que se imbricam de imediato como para a relação com instituições, com a garantia de direitos sociais, com a cultura (2001, p. 58).

Cabe ainda enfatizar, de acordo com a mesma referência, o desdobramento dessa estratégia de intervenção voltada a essa demanda, através de uma compreensão do movimento que se dá do particular para o todo, assim como desse todo para o particular. Sobre a compreensão desse movimento, o autor faz a seguinte exposição:

consumo de drogas – rejeição – abandono – família – rede familiar – relações de solidariedade – políticas de atendimento – garantia de direitos – imaginário da droga – atividade laboral, implicando o envolvimento dos atores que vão dando suporte tanto à compreensão da questão como à mudança de trajetória do sujeito (2001, p. 58).

Com esse entendimento que se busca a mediação das situações adversas do cotidiano, viabilizando o protagonismo dos sujeitos envolvidos. A discussão acerca da família tem de se ater às condições em que essas famílias vivem no seu dia a dia, no âmbito doméstico, familiar e de vizinhança, com vistas a construir um projeto social no sentido de uma nova qualidade de vida. É nesta via das linhas das redes formadas pelos sujeitos que haverá a possibilidade de tencionar, fortalecer, abrir seus laços, apoiando, unindo, através dos vários protagonistas sociais – a família, comunidades, vizinhos, parentes, profissionais, instituições, lideranças, políticos –, enfim, a relação da totalidade com as partes e dessas com o todo.

A partir da perspectiva de uma intervenção que considera a família como rede de apoio ao dependente químico, é necessária uma reflexão voltada para a sua centralidade no campo das políticas públicas. Tais políticas devem entendê-la como instância que deve ser igualmente atendida em suas necessidades, na medida em que essa compõe um papel central na vida do homem, enquanto âmbito de potencialidades e de situações conflituosas, constituindo uma complexa teia de relações

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interpessoais influenciadas pela estrutura externa e por sua própria estrutura interna.

A família como referência

É nosso ponto de partida a afirmação de Mioto (1997:128) de que é preciso “pensar as famílias sempre numa perspectiva de mudança, dentro da qual se descarta a ideia dos modelos cristalizados para se refletirem as possibilidades em relação ao futuro”. Nesse sentido, reitera que as transformações ocorridas no âmbito familiar são históricas e articuladas com a sociedade, e quando não encontram “soluções adequadas para os desafios, elas expressam suas dificuldades por meio de inúmeros problemas (dificuldades de relacionamento, membros-problema, doenças)”. Esses aspectos são reiterados por Bellini quando refere que

A historicidade das transformações estruturais e relacionais da família deve ser compreendida pelos profissionais e pesquisadores com intimidade, com olhar atento e um diálogo vigilante, rigoroso, pois muitas destas transformações estão ligadas a estereótipos surgidos ainda no período de imigração do Brasil. (2011, p. 116).

Os conflitos devem ser compreendidos pelas condições em que vivem as famílias que lidam diariamente com a luta de conquistarem seu alimento, sempre escasso, “processos que são acentuados por condições desfavoráveis” (BELLINI, 2011, p. 126). Lutam, igualmente, por um espaço no interior de suas pequenas casas que, geralmente, abrigam um grande número de membros, sendo necessário lutarem por um lugar nas camas e colchões, tornando-se impossível a privacidade. Nas casas, encontram-se literalmente jogados uns sobre os outros, compartilhando seus sentimentos, sejam eles de afeto, raiva ou de frustração.

Para seguirmos compreendendo a dinâmica dos conflitos existentes no contexto familiar, utilizaremos a seguinte definição de Schabbel (2004, p. 417):

considera-se a família como um sistema social, formado por unidades interdependentes (pessoas) que, por comunicação e comportamentos recursivos, estabelecem um intercâmbio de influências recíproco. Os membros de uma família desenvolvem

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padrões compartilhados de comportamento a partir da sistematização de hábitos e do “mergulho” em conhecimento por vezes inconsciente ou de níveis mais arcaicos, a ecologia das ideias, que são determinantes no entrelaçamento das relações familiares.

Nesse sentido, entende-se que a família constrói significados que podem estar baseados em suas crenças, premissas, regras, que irão orientar as interações entre seus membros, além das demais relações sociais, de uma forma que os caracteriza em alguns aspectos.

Considerando-se os fatores que colaboram para o agravamento dos conflitos internos das famílias, o alcoolismo, as dependências de outras drogas e as violências somam-se ao quadro de fragilização.

A condição de miséria das famílias brasileiras consideradas de baixa renda é um quadro alarmante, que exige políticas voltadas para a distribuição de renda enquanto uma política de proteção em meio ao sistema capitalista que gera, cada vez mais, um número massivo de desempregados. A família, afetada nesse contexto, necessita de um apoio direcionado ao maior usufruto de bens e serviços indispensáveis à alteração da qualidade de vida e à exclusão a que estão submetidas.

Há a necessidade de se ampliar a rede social de apoio às famílias que sejam conhecedoras do trato com essas questões, ultrapassando a oferta de serviços exclusivamente solidários, de cunho caritativo. Essa rede deve abranger os serviços de saúde, educação, assistência social e outros, uma vez que tratamos de uma realidade complexa, que exige a integração dos diferentes âmbitos das políticas públicas.

No campo da dependência química, igualmente dispomos de alternativas para os sujeitos. Trata-se de uma acolhida que propicie às pessoas uma escolha consciente, que não pode ser encorajada em um sistema no qual as pessoas são induzidas a seguirem determinado modo de ação, nem em programas em que um tratamento relativamente padronizado é oferecido a todos. Há de se motivar aqueles que buscam ajuda a reconhecerem sua liberdade de escolha em relação à forma como desejam tratar de sua condição.

Portanto, trabalhar na perspectiva de cidadania e do fortalecimento da autoestima dos sujeitos inclui receptividade, respeito, apoio, afeto, preocupação, compreensão empática, comprometimento e interesse pelo que pensam, sentem e fazem.

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Nesse sentido, o atendimento ao sujeito dependente químico e sua família é entendido como um processo que implica uma escuta ativa, visando à criação de um espaço para o diálogo com avaliação de interesses e necessidades, com uma análise de causas e soluções, e planejamento de ações inovadoras a partir das possibilidades e circunstâncias que estão sendo vivenciadas no momento.

A pesquisa

Nesta pesquisa de mestrado investigamos as vantagens e desvantagens identificadas pelas famílias no Modelo de Internação Domiciliar para Dependentes Químicos, bem como pela equipe responsável pelo Programa de Dependência Química do Ambulatório Melanie Klein, de Porto Alegre.

A primeira fase foi realizada em 2004 enquanto projeto de pesquisa desenvolvida no terceiro ano do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental/RIS/ESP. Na época foram acompanhados quatro sujeitos os quais foram internados no seu domicilio.

Nossa pesquisa buscou esses sujeitos e suas famílias dois anos após para avaliar com eles a experiência de internação domiciliar.

Conhecer o que pensam os sujeitos a respeito da proposta de atendimento realizada em seu domicílio em conjunto com seus familiares, buscando desvelar os sentimentos que perpassam todos e a forma como conduzem o tratamento e pensar possibilidades para prevenção de recaída ou mesmo na elaboração de estratégias de redução de danos na dependência química, foi o que nos moveu.

Com objetivo de analisar o modelo de internação domiciliar do dependente químico realizado no Ambulatório Melanie Klein, no âmbito da Saúde Pública, nossa finalidade foi apontar vantagens e desvantagens identificadas pela família e pelo sujeito neste modelo de atendimento, bem como pela equipe responsável pelo Programa de Dependência Química, de modo a contribuir com subsídios para o seu aprimoramento.

O método utilizado foi o método dialético-crítico, pois está em consonância com o Documento da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS (1996, p. 12-13), a orientação da formação profissional dos Assistentes Sociais está pautada pela matriz

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marxista que, ao referir-se à abordagem da questão social, objeto do Serviço Social, aponta que,

na apreensão do processo como totalidade, reproduzindo o movimento do real em suas manifestações universais, particulares e singulares, em seus componentes de objetividade e subjetividade, em suas dimensões econômicas, políticas, éticas, ideológicas e culturais, fundamentado em categorias que emanam da teoria crítica.

A perspectiva dialético-crítico busca refletir sobre o contexto histórico, político, econômico e social, considerando os sujeitos da intervenção determinados pelas relações de poder, capazes de transformar sua realidade, movendo-se dentro da estrutura da sociedade e posicionando-se frente a essa.

O saber buscado nesse processo implica conhecer a realidade da forma mais ampla possível, relacionada às singularidades dos sujeitos, com objetividade e autocrítica diante da intervenção, para que seja comprometida ética e politicamente com os princípios que norteiam a práxis do Serviço Social.

Os participantes da pesquisa foram aqueles que participaram desta modalidade de atendimento para dependência química no Ambulatório Melanie Klein do Hospital Psiquiátrico São Pedro no período em que foi implementado, no ano de 2004, com a realização dos atendimentos nos meses de junho a agosto, ou seja, aqueles que participaram da primeira fase de implantação do modelo a fim de se observar como se encontravam no período em que a segunda etapa foi retomada, no ano de 2006, bem como os processos que passaram após o tratamento, para que se possa identificar a possibilidade de contribuição na prevenção da recaída ou na redução de danos. Cabe ressaltar que os critérios para a amostra do respectivo período em que foi efetivada consistiam em sujeitos do sexo masculino ou feminino que fecharam critérios para dependência de acordo com a OMS (1993). Seus perfis configuram-se por faixas etárias entre 18 e 60 anos, com suporte familiar, desejo de realizar esse tipo de atendimento e não apresentação de riscos físicos importantes, como delirium tremens, suicídio e agressão.

Identificamos quatro sujeitos na primeira fase da implementação do projeto de internação domiciliar no Ambulatório Melanie Klein realizada no ano de 2004, no período de junho

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a agosto, sendo esses os mesmos sujeitos entrevistados para o aprofundamento da análise desse modelo de tratamento. Foram feitas entrevistas enquanto instrumentos para análise, bem como as entrevistas colhidas no primeiro ano da sua realização, a fim de verificar se houve mudanças quanto aos aspectos apontados.

A equipe constituída dos técnicos do Ambulatório Melanie Klein, sendo uma psicóloga, uma psiquiatra, um médico clínico e uma assistente social, também foi entrevistada, assim como os residentes que na época eram cinco médicos psiquiatras, um enfermeiro, uma assistente social, duas terapeutas ocupacionais e uma artista plástica.

As abordagens foram realizadas no espaço do ambulatório Melanie Klein, conforme acordado com a Coordenadora do Programa de Dependência Química. A respeito das intervenções que foram realizadas nos domicílios dos sujeitos na primeira fase em que foi implantado o modelo, essas foram realizadas diariamente, em duplas, composta pela pesquisadora e por mais um membro da equipe. O tempo para a internação domiciliar neste modelo foi de um período médio de sete dias, de acordo com as necessidades de cada sujeito, podendo chegar a 10 dias. Para os acompanhamentos diários do modelo, foram utilizados roteiros, para que a equipe estivesse voltada aos aspectos que devem ser contemplados, de acordo com os objetivos da pesquisa e os cuidados ao sujeito que devem ser observados. A metodologia utilizada para a análise dos dados qualitativos foi a denominada análise de conteúdo, a qual visa não somente à descrição de resultados, mas à compreensão dos significados envoltos na realidade que se está buscando estudar.

O reencontro – uma oportunidade de compartilhar a história

O reencontro é, então, a realização da pesquisa no âmbito da academia, a fim de aprofundar a discussão quanto a esse modelo de tratamento. Cumpre-se, assim, o objetivo de analisar o modelo de internação domiciliar do dependente químico, realizado no Ambulatório Melanie Klein no âmbito da Saúde Pública. A finalidade é identificar as vantagens e desvantagens identificadas pela família e pelo sujeito neste modelo de atendimento, bem como a avaliação da equipe responsável pelo Programa de Dependência Química, de modo a contribuir com subsídios para o seu aprimoramento.

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Assim, serão descritos trechos importantes das falas dos sujeitos que contêm os que indicarão as categorias principais que estão sendo interpretadas em relação aos objetivos da pesquisa.

O primeiro sujeito do sexo masculino, com 37 anos de idade, residia com a esposa e três filhos. Possuía segundo grau completo, profissional de Técnico em Enfermagem, estando em licença saúde no período da internação domiciliar. Dependente de álcool desde os 12 anos de idade, com consumo de meio litro de cachaça por dia, relatava estar a três meses sem fazer uso da bebida. Buscou atendimento ambulatorial, pois “se sentia muito nervoso com a família e estava com medo de agredir os filhos” (sic).

Desde sua avaliação inicial, de acordo com os seus relatos e avaliação da equipe interdisciplinar, trabalhou-se com a hipótese diagnóstica de este sujeito ter uma comorbidade psiquiátrica21 de depressão com sintomas psicóticos. A investigação então da equipe buscava identificar se essa era primária ou secundária à dependência química. Seus familiares não queriam que fosse realizada uma internação hospitalar, optando, assim, pela internação domiciliar, onde ficou sendo acompanhado durante cinco dias, quando apresentou sintomas psicóticos graves, sendo então encaminhado para internação hospitalar devido ao risco de suicídio avaliado pelos profissionais.

No reencontro, encontrava-se exercendo sua atividade profissional de auxiliar de enfermagem em um hospital da rede pública de Porto Alegre. Depois de terminado o ano de 2004 em acompanhamento no Ambulatório Melanie Klein, foi encaminhado para a Unidade Básica de Saúde (UBS) de sua região para obter continuidade no acompanhamento da depressão e ao Grupo de Alcoólicos Anônimos como apoio para a manutenção da abstinência para o álcool.

Nesse intervalo de tempo, relatou três recaídas, mas que não consistiram em reinstalação.3 Durante a realização da entrevista, ele e sua esposa contaram suas vivências, suas descobertas, seus “limites” (sic). Apontaram como vantagens do período da internação domiciliar ter recebido um atendimento “especializado”, que “esclareceu” seu 2 O uso de drogas pode ser ao mesmo tempo causa, consequência de transtorno mental ou simplesmente ocorrer na presença de outro diagnóstico psiquiátrico, sendo em geral difícil determinar se a patologia observada é resultado do uso regular das drogas, consequência de seus efeitos ou faz parte da síndrome de abstinência (SEIBEL; TOSCANO JR., 2004).3 Retorno a um nível preexistente de uso e de dependência de substância psicoativa em um indivíduo após período de abstinência (SEIBEL; TOSCANO JR., 2004).

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“problema” (sic). Relatava sua própria historia como: iniciou o consumo de álcool aos 12 anos de idade e a depressão foi decorrente, dentre outros fatores, da dependência. A esposa compartilhara deste ponto e relatara o “medo” que sentiu, vendo a doença do marido se agravando em casa, mas, ao mesmo tempo, “amparada”, porque “vocês iam todos os dias lá” (sic), referindo-se à equipe. Ambos relataram que o fato de ter sido atendido por uma equipe especializada em saúde mental foi esclarecedor, tanto para o seu diagnóstico como para o tratamento, o que o ajudou nas recaídas.

A segunda participante, do sexo feminino, com 44 anos de idade, divorciada, residia sozinha nos fundos da casa de um de seus filhos. Possuía terceiro grau incompleto e era professora aposentada. Dependente de benzodiazepínicos desde os 29 anos e de álcool desde os 36 anos. Consumia diariamente meio litro de vinho ou cachaça. Apresentava comorbidade psiquiátrica de Transtorno Afetivo Bipolar que se caracteriza por alterações do humor, com episódios depressivos e maníacos ao longo da vida, para o qual já recebia acompanhamento interdisciplinar no Ambulatório Melanie Klein, sendo encaminhada para a internação domiciliar para a realização da desintoxicação do álcool, o que não conseguiu realizar em nível ambulatorial. Continuava vinculada ao Grupo de Dependência Química do Ambulatório Melanie Klein, o qual frequentava semanalmente. No período de dois anos e oito meses, não teve nenhuma recaída para o álcool nem para os benzodiazepínicos, fato que se deve também ao acompanhamento continuado que se encontrava recebendo até o dado momento.

Em seu relato, afirma que “este foi o tratamento para a dependência química que mais me beneficiou” (sic). Atribuía ao fato de ter trabalhado em sua casa novos hábitos de rotina, paralelamente à realização da desintoxicação, ao que se refere como as estratégias para a prevenção da recaída – fato que, na internação hospitalar, de acordo com ela, “fica só na ideia”. A aproximação da família seguiu identificada como benéfica, pois relembra que no período da intoxicação constante afastou-se da família. “Tava na minha vidinha de remédios e bebida... perdida e isolada” (sic). Aponta os sentimentos de acolhida, carinho, afeto e confiança por parte da família.

Em sua situação, o Ambulatório Melaine Klein é o serviço de referência mais próximo de sua residência e, portanto, a rede

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institucional de apoio que deve atendê-la, uma vez que os serviços de rede devem localizar-se próximos à moradia do usuário do serviço.

O terceiro sujeito do sexo masculino, com quarenta anos de idade, divorciado, residia com a mãe e dois irmãos. Possuía o primeiro grau incompleto e estava sem trabalhar a quatro anos, não possuía renda pessoal mensal e contava, portanto, com a renda familiar proveniente da aposentadoria da mãe e da prestação de serviço de um dos irmãos. Foi morador de rua em momentos alternados em que não se sentia em condições de voltar para casa, segundo seu relato. Sua situação caracterizava-se por dependência cruzada, 4 utilizando-se de álcool, solventes e cocaína (crack), diariamente.

Não foi encontrado e a entrevista foi realizada com sua família pela visita domiciliar. Segundo sua mãe e seu irmão, que participaram do tratamento da internação domiciliar, ele havia voltado para a rua após permanecer seis meses em abstinência ao término do tratamento. Em seus relatos, acreditavam que, devido ao fato de ele não ter conseguido “emprego fixo”, sentia-se frustrado em não colaborar com as despesas da casa e “não aguentou” (sic). No entanto, nesse intervalo de tempo, a família conta que “ele vai e vem”. Ambos apontam que, com a internação domiciliar, puderam acompanhar seu familiar “de perto” e compreender sua doença. “Hoje, deixo ele voltar pra casa. É meu filho. Antes, botava ele pra correr” (sic). O vínculo familiar ficou mantido da forma “possível”. Eles entendem que o fato de ele não ter renda para contribuir nas despesas, o que já lhe preocupava no período da internação domiciliar, dificulta a manutenção da abstinência. Os laços que ele formou na rua “são mais fortes” (sic).

O quarto sujeito da pesquisa, do sexo masculino, com 37 anos de idade, era casado e morava com a esposa e três filhos. Possuía o primeiro grau incompleto e realizava “biscates” como atividade profissional, mas a renda familiar fixa era proveniente da atividade profissional da esposa. Dependente de álcool desde os 14 anos, fazia consumos diários de um litro, variando entre destilado ou vinho. Buscou ajuda para tratamento ambulatorial, mas após um período de atendimento foi encaminhado pela equipe para a internação domiciliar, pois não estava conseguindo manter a abstinência. 4 Termo farmacológico para denotar a capacidade de uma substância ou uma classe de substâncias de suprimir as manifestações da síndrome de abstinência de outra substância ou classe e assim manter o estado de dependência (SEIBEL; TOSCANO Jr, 2004).

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Sua esposa inicia a conversa: “Continua a mesma coisa... Tem dias que ele bebe mais, outros menos, mas, pelo menos, voltou a fazer os biscates dele” (sic). Ele, com um gesto afirmativo com a cabeça, consente. Quanto ao relacionamento com os filhos, ambos afirmam que, com a internação domiciliar, foi possível que entendessem a doença do pai. “Eles não têm mais medo dele, quando tá muito bebum, todo mundo sai de perto”, diz a esposa. Ambos dizem que procuram a UBS, conforme lhes foi encaminhado no período após a desvinculação com o Ambulatório Melanie Klein, nos momentos em “que a coisa está demais” (sic). É uma forma de retomar as orientações acerca dos prejuízos do alcoolismo e das estratégias que podem utilizar para diminuir o consumo, sendo orientados na perspectiva da Redução de Danos, ou seja, minimizar os agravos individuais e sociais na medida em que não apresente condições de modificá-los, indicação mais adequada a ser trabalhada pelos profissionais da saúde de acordo com a situação deste usuário do serviço.

A família como rede de apoio ao dependente químico

A realidade estudada, sem dúvida, possui uma série de implicações e relações que são entendidas de formas diversas no campo teórico através das diferentes especificidades do conhecimento e mesmo para os cidadãos envoltos com essa questão. Portanto, a partir do entendimento do constante movimento do real e suas múltiplas implicações nas esferas de vida e em seu próprio significado, não se pretendeu com esta investigação determiná-la enquanto um saber que responde à demanda da dependência química. Mesmo porque o movimento dialético não se propõe a tal, ou seja, não esgota possibilidades.

Os significados tidos para os sujeitos que vivenciaram esse modelo de tratamento estão contidos nas mensagens identificadas em seus relatos, os quais se referem tanto à subjetividade quanto à possibilidade efetiva da abstinência total. Tal situação foi encontrada em um dos casos, tornando-se condição para lidar e entender a dependência química de modo diferente ao entendimento do período anterior ao da vivência desse tratamento, identificado nas quatro situações atendidas nessa modalidade de tratamento.

As dificuldades enfrentadas na vida podem fortalecer o sujeito, dependendo do modo como são vivenciadas. Conforme os

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relatos obtidos após a internação domiciliar, é possível perceber que, independentemente da manutenção da abstinência, o envolvimento familiar durante o tratamento teve destaque enquanto vantagem dessa modalidade de tratamento. A possibilidade de o grupo familiar entender a dependência química enquanto doença, bem como os prejuízos que decorrem dela desmistificando julgamentos morais, possibilitou outras formas de relacionamento intrafamiliar, calcadas em sentimentos de cuidado, respeito, tolerância. Como ainda o fato de os membros da família do dependente químico falarem de seus sentimentos e percepções em relação às situações vivenciadas deu-lhes também possibilidade de organizarem as suas questões.

Não se trata de a família ser a “cuidadora de seu doente”, mas de ela receber atenção em sua integralidade, como forma de fortalecê-la em períodos de crises e conflitos, nos quais comumente perpassam sentimentos de derrota, culpa, enfim, sentimentos punitivos, presentes em situações de familiar de dependente químico. As experiências negativas que são vivenciadas em meio à dependência química podem ser muitas e traumáticas, pois, como vimos nos casos pesquisados, ela se inicia precocemente na vida dos sujeitos. Portanto, os sentimentos negativos e mesmo doloridos que ficam para cada membro da família, de acordo como cada um assimila tais vivências, não são apagados, ao contrário, eles podem ir acumulando-se.

Schabbel (2004, p. 420) refere que as disputas que surgem em virtude da presença de um dependente químico em uma família podem ser “disputas baseadas em interpretação, equívocos ou ambiguidades, e disputas em valores e objetivos”. Segundo a autora, a mediação necessária para tais situações é a seguinte:

tem por objetivo preparar as partes para que se sintam suficientemente seguras para falar do problema, experienciar suas próprias potencialidades diante da questão e desenvolver o que Busch e Folger chamam de “força da compaixão”, que inclui empatia para com as outras partes envolvidas no conflito.

Realizar tal trabalho pressupõe uma predisposição dos membros da família que, muitas vezes, não é encontrada em um primeiro momento devido à historicidade do grupo com a problemática. Assim, buscar a motivação desse grupo para a proposta faz parte da mediação e do início do fortalecimento da rede. A aceitação para esse

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tipo de intervenção sinaliza que há laços e sentimentos positivos ainda presentes, fato que, por ele próprio, dá início ao fortalecimento da família, pois se reconhece a importância que um membro tem para o outro. Caso contrário, poderiam abster-se dessa intervenção e optar por um tratamento individual do dependente químico.

Quando alguém se torna dependente de uma substância, muda seu modo de ser, seus hábitos e suas relações; passa a girar em volta de um contexto particular ao universo das drogas, o que, gradualmente, vai modificando seu estado natural enquanto ser humano e, assim, sua forma de se relacionar com o mundo. Essas modificações podem causar estranhamento às pessoas mais próximas e implicar mudanças também de sua parte. Tal situação pode transformar-se em um ciclo de conflitos em que as partes não se reconhecem mais e vão distanciando-se ou culpando uns aos outros pelas transformações, com dificuldades de manter ou restabelecer os vínculos que um dia os uniu – fato que também foi relatado pelos familiares entrevistados.

Nesse contexto, trabalhar em uma perspectiva de rede de apoio à família significa trabalhar para que os vínculos da família e sua rede sejam reconectados, na construção do fortalecimento da autonomia dos sujeitos a partir do reconhecimento de sua rede de pertencimento, na tentativa de auxiliar as pessoas a contatarem com aqueles que fazem parte da sua história.

Em relação à análise de recaídas ao longo do tempo, há estudos que mostram que a estabilização da taxa de ocorrência começa a acontecer aproximadamente 90 dias após o início da abstinência (HUNT, BARNETT, BRANCH, 1971). No entanto, os 12 primeiros meses são considerados como período de alto risco de acordo com o DSM-IV (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1994).

Na clássica análise (CUMMINGS, GORDON, MARLATT, 1980) de 311 episódios de recaída em dependentes de álcool, tabaco, heroína, alimentos e jogo compulsivo, identificou três situações primárias associadas ao problema: 1) estados emocionais negativos (35% das recaídas); 2) conflito interpessoal recente (16% das recaídas); e 3) pressão social (20% das recaídas). Estudos subsequentes não apontaram mudanças no quadro apresentado, mas variaram quanto à definição de pontos críticos. Um estudo (GOSSOP, GREEN, PHILLIPS, BRADLEY, 1989) sobre recaídas em 80 dependentes de álcool e heroína, submetidos

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a tratamento em regime de internação, informou que: 1) quase dois terços daqueles que recaíram reconheceram falhas em tomadas de decisão e em planejamento de atividades (fatores cognitivos); e 2) mais da metade indicou que algum estado de humor negativo precedeu à recaída. O estudo salientou ainda que, frequentemente, esses fatores ocorriam juntos.

Nesse sentido, a respeito de se verificarem as contribuições desse modelo no que concerne à redução de danos e prevenção de recaída, em dois dos casos atendidos, trabalhar as estratégias de prevenção de recaída contribuiu para que ambos fizessem uso dessas ao longo do período de tempo após a internação domiciliar. Sendo que para um significou utilizá-las nos momentos em que teve as recaídas, e para outro, nas situações em que essa sentia vontade de recair que são identificadas na dependência química como situações de risco. Vale lembrar que a Prevenção de Recaída se refere ao conjunto de habilidades para antecipar, prevenir, modificar, enfrentar e lidar com situações que a coloquem em risco para a recaída, isto é, situações que façam com que ela volte a consumir álcool ou outras drogas (KNAPP et al., 1994).

Sobre como a equipe de residentes do Programa de Dependência Química avalia o envolvimento familiar nessa modalidade de tratamento, compartilham do potencial que a internação domiciliar possui para mediar as relações familiares dos sujeitos, bem como no fortalecimento das estratégias de prevenção de recaída na medida em que são trabalhadas com a família como forma de auxiliar o dependente químico em momentos de possíveis retornos ao uso de substância. Mas avaliam, de acordo com as experiências que acompanharam e com o suporte teórico que aprendem com a formação na residência, que o acompanhamento ao dependente químico e a sua família necessita ser continuado e integrado à rede de atenção na saúde, que, por sua vez, não se encontra disponível a todos de acordo com a demanda necessitada, o que propicia a recaída. Como ainda, a complexidade da realidade dos sujeitos, conforme já apontado, a falta de perspectiva de atividade profissional e suas consequências, acaba sendo um fator que leva as pessoas a retomarem o uso de drogas, fato esse também discutido ao longo deste processo evidenciado na pesquisa anteriormente referenciada que aponta a pressão social como responsável em 20% das recaídas (CUMMINGS, GORDON, MARLATT, 1980).

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Considerações finais

A proposta de internação domiciliar, assim como outras modalidades de tratamento, apresenta vantagens e desvantagens. A proximidade com a família possibilita a realização de um trabalho em conjunto com essa através de uma escuta estendida a todos que se incluem no grupo e da mediação das situações conflitantes, como na identificação de situações que são consideradas como risco para a recaída, a partir do entendimento dos demais e não só do dependente químico e no fortalecimento das estratégias de prevenção para essa. Possibilita ainda, que o sujeito possa permanecer em seu meio com um atendimento especializado para sua necessidade. Mas é necessário considerar que esse envolvimento familiar pode, também, apresentar algumas dificuldades que destacam o cuidado de estar atento para não responsabilizar unicamente a família no cuidado ao dependente químico, desresponsabilizando as políticas públicas.

É necessário ressaltar que a internação domiciliar é uma estratégia que não exclui a internação hospitalar ou o atendimento ambulatorial, devendo cada indicação de tratamento ser cuidadosamente avaliada pela equipe de atendimento juntamente com o sujeito e seus familiares. O SUS deveria, portanto, disponibilizar para os dependentes químicos as diferentes modalidades de tratamento para que assim possa ser respeitada a necessidade de cada pessoa.

Para tanto, a política de saúde pública apresenta-se enquanto espaço de aprimoramento e articulação de ações através da integração de programas, serviços e projetos que tenham como base a família reafirmando seu papel central nas políticas públicas. Nesse sentido é necessário valorizar, recuperar e articular a rede de proteção à família, fortalecendo seus vínculos enquanto nicho afetivo de relações que são estendidas às diferentes esferas de vida dos indivíduos, potencializando seu sentido de pertencimento social.

Sem dúvida, a família é um campo de mediação imprescindível para diferentes profissionais que devem se integrar a partir de uma perspectiva interdisciplinar, considerando-se as múltiplas expressões que se fazem presente em seu âmbito. O Serviço Social constitui-se, portanto, em uma das categorias profissionais que, ao longo de sua história, voltou sua intervenção para a família sob diferentes aspectos, devendo seguir com seu olhar voltado para as transformações societárias,

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articulando e viabilizando a conscientização e o acesso às políticas públicas, bem como intervindo diretamente nas mais diversas expressões da questão social, nas suas refrações e particularidades, promovendo a emancipação dos sujeitos e o fortalecimento da autonomia, rompendo com possíveis práticas de assistencialismo e negligência em programas sociais, promovendo novas ações e dando novos sentidos à sua prática.

Por fim, a pesquisa que foi descrita partiu de uma experiência prévia no campo da saúde mental no Programa de Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública/RS, a qual se constitui local estratégico para a reflexão sobre o ensino e o serviço em saúde coletiva, na medida em que essa propicia aos residentes o conhecimento do SUS, as possibilidades de planejamento, o trabalho em grupo e os programas de prevenção e promoção em saúde através da educação em saúde.

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FAMÍLIAS VULNERÁVEIS: A CONSTANTE BUSCA POR PERTENCER...1*

Simone da Fonseca SanghiMaria Isabel Barros Bellini

Felizes são as palavras de Leo Buscaglia (1982), que define “introdução” como “preparar o caminho para um discurso”, pois bem, essa é a primeira tarefa que me cabe: preparar o caminho!

Esse caminho se inicia com uma história que fez muito sentido para mim durante minha trajetória. É a fábula de um cavaleiro conhecido por usar uma armadura de aço reluzente que sempre estava preparado para lutar em qualquer batalha. Quando não estava nos campos de batalha matando dragões, ficava experimentando e admirando o lustre de sua armadura, porém, depois de um tempo, o cavaleiro tornou-se tão enamorado de sua armadura a ponto de não tirá-la mais. Ele a usava para jantar e até para dormir, pois se sentia protegido com ela. No entanto, usando sua armadura de aço já não podia sentir os raios de sol, os pingos da chuva, o calor de um abraço, um afago da sua família, enfim, estava preso naquela armadura rígida e pesada (FISCHER, 2006).

Essa pequena história fez refletir que todos nós, de alguma forma, estamos presos em algum tipo de armadura. A minha era feita de limitações, preconceitos, medos diante do novo, do incerto, do acaso. Então, assim que iniciei minha caminhada, o peso da armadura começou a incomodar e pensei que só conseguiria prosseguir se tentasse me desvencilhar aos poucos das amarras e rever, em pele, osso e sentimentos, a bagagem que sou e a que carregava. Por isso, tentarei conduzi-los pelo caminho que escolhi e percorri, e mostrarei um pouco da bagagem que carreguei e a que construí.

Esse caminho se inicia nos anos de 2003 a 2004, quando ingressei na Residência Integrada em Saúde/RIS (ESPRS),2 uma modalidade de educação profissional pós-graduada de caráter multiprofissional e interdisciplinar, no Centro de Saúde Escola Murialdo-CSEM,3

1* Este artigo é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada Pertencer ao espaço comunitário: desafio da autoeco-organização de famílias moradoras do Campo da Tuca, orientada pela Professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini, concluída em 2007.2 ESPRS – Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul.3 O Centro de Saúde Escola Murialdo (CSEM) é um órgão vinculado à Escola de Saúde Pública da

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localizado no município de Porto Alegre, composto por seis Unidades Básicas de Saúde distribuídas no bairro Partenon, uma das unidades localizada na Comunidade do Campo da Tuca.

A RIS tem como objetivo qualificar profissionais dentro do modelo de assistência à saúde pautada no Programa/Estratégia de Saúde da Família – PSF.4 O PSF teve como referência o ano de 1994, definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o “Ano Internacional da Família”, o que se tornou um marco brasileiro de oficialização da família, como foco do cuidado profissional de saúde.

Essa experiência de trabalho e aprendizagem me proporcionou uma reflexão acerca do contexto no qual estamos inseridos, permeados de mudanças que interferem na dinâmica social como um todo, e de forma particular na família, conforme suas configurações, histórias, conflitos e demandas. O que observava era a família sendo abordada, geralmente, de forma fragmentada, permeada por juízos de valor por parte de alguns profissionais e, algumas vezes, por mim mesma, sendo raramente vista como um sistema vivo,5 com valores, cultura, saberes, produto e produtora da sociedade em que vive.

Igualmente, me surpreendiam as estratégias utilizadas por algumas famílias, que, por mais equivocadas que pudessem parecer, muitas vezes fomentavam sentimentos de inserção na comunidade, estratégias que se expressavam em vincular os filhos ao tráfico, vivenciar a precoce gravidez da filha adolescente como positiva (ainda que isso significasse não ter dinheiro para sustentar mais um membro na família), silenciar diante de crimes em troca de proteção. Tudo isso por uma busca de pertencimento social, de reconhecimento em sentirem-se pertencentes aquele local.

Essa necessidade de reconhecimento era algo que me chamava a atenção e me inquietava muito, reconhecer a importância de aceitação, do pertencimento a um território. E, foi pensando na diversidade de estratégias que as diferentes configurações familiares Secretaria Estadual de Saúde do RS.4 O Programa Saúde da Família – PSF estrutura-se em unidades de saúde, com equipe multiprofissional, que assume a responsabilidade por uma determinada população, em território definido, onde desenvolve ações de saúde. Integra-se numa rede de serviços, de forma que se garanta atenção integral aos indivíduos e famílias. Atualmente chama-se Estratégia Saúde da Família.5 Sistema Vivo: é todo organismo – animal, planta, microrganismo ou ser humano – integrado, um sistema vivo. Em toda a natureza encontramos sistemas vivos dentro de outros sistemas vivos. Os sistemas vivos também incluem comunidades de organismos, que podem ser sistemas sociais como uma família, uma escola, uma cidade – ou ecossistemas (CAPRA, 1998).

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utilizavam, assim como na necessidade de serem reconhecidas em seu contexto social, econômico, cultural e político, que uma pesquisa de mestrado começou a ser pensada.

Compreendia que conhecer as pessoas e as famílias impõe conhecer as comunidades onde elas vivem, entendendo que elas se relacionam das mais diferentes formas, podendo se ajudar ou se prejudicar mutuamente, dependendo dos interesses que as mobilizam. Afinal, que relações socioculturais são estabelecidas? Qual a importância do espaço territorial para o grupo familiar?

Esses questionamentos me levaram a refletir e ampliar a discussão sobre exclusão/inclusão a partir das ideias de Sawaia (1999, p. 09) para explicar esse processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas relacionais e subjetivas. Complemento este pensamento baseada nas ideias de Edgar Morin (1997), que salienta que o princípio da exclusão comporta de maneira complementar e antagônica o princípio da inclusão.

Nesse sentido, aponto para a dialógica (dois princípios que deveriam excluir-se reciprocamente, mas são indissociáveis em uma mesma realidade, Morin, 2000, p. 96). Portanto, a exclusão/inclusão são focos de análise antagônicos e complementares, uma realidade não pode ser pensada sem a outra (GOMES, 2005, p. 80).

Assim, não é mais possível pensar a exclusão social baseada somente na divisão entre as classes sociais, no nível cultural, no acesso à educação, na etnia, na língua, na religiosidade etc., que já são dados constatados e bastante discutidos na academia, na mídia, nos espaços institucionais. Mas a exclusão/inclusão baseada no surgimento de novas formas organizativas de inserção nos diversos espaços vivenciados pelas famílias.

De acordo com Koga (2002, p. 24), “Cada vez mais a complexidade da exclusão social exige respostas igualmente complexas para o seu enfrentamento”. Ou seja, compreender a exclusão social não só como uma questão de sobrevivência, mas agregar a diversidade de outros fatores de agravamento social.

Nesse sentido, percebi que não existem fenômenos de causa única e que, muitas vezes, é o nosso pensamento fechado que contribui para a inflexibilidade diante do novo e da incerteza. E que é preciso dar vistas à realidade, não focando apenas no extremo sofrimento e

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privações, mas destacando o princípio dialógico (MORIN, 1997) em que a comunidade se constitui de múltiplas formas complementares, concorrentes e antagônicas.

Assim, conforme avançava a minha caminhada, meu pensamento também mudava e minha armadura foi desprendendo-se, fui incorporando à minha bagagem conhecimento, vontade, persistência, curiosidade pelo novo, pelo desconhecido, me reconhecendo nas palavras de Fischer (2006, p. 105): “Embora possua este universo, nada possuo, pois não posso conhecer o desconhecido, se ao conhecido me agarro”.

Cada caminho percorrido, cada conhecimento construído, cada página escrita me subsidiaram na construção deste estudo, em meio ao incerto, ao acaso, ao inesperado, o caminho foi constituindo-se como nas palavras do poeta Antônio Machado (1964) “Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar”.

E, inspirada na história do cavaleiro e nas palavras do poeta, é que esta pesquisa foi realizada a fim de satisfazer inquietações surgidas no período em que participei da Residência e que se mantiveram vivas dentro de mim até que pudesse voltar a explorá-las. E daí surge este artigo que reitera as discussões realizadas no período da pesquisa e muitas inquietações que ainda me acompanham. Cabe agora apresentá-las a vocês!

A descoberta do caminho

Na caminhada, que se pretendia solitária, muitos se juntaram ao caminhante, dispostos a partilhar

o sol e poesia, saber e esperança, fábulas e conhecimento, tolerância e descoberta.

(SILVA, 2001, p. 16)

Pontuando o que Morin refere ao abordar o mundo como uno e global,.. “uno no sentido de que cada parte do mundo faz parte cada vez mais do mundo em sua globalidade. E que o mundo em sua globalidade encontra-se dentro de cada parte” (1997, p. 46). Aqui, refiro-me que a organização comunitária não é algo isolado, mas também reflexo de como a sociedade se organiza, da mesma forma que a sociedade manifesta a influência do mundo globalizado.

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A globalização tem redimensionado a noção de espaço e tempo, ultrapassando fronteiras, extrapolando as barreiras nacionais e locais. Essa nova realidade de transformação, impulsionada pelas novas tecnologias de informação, projeta uma reorganização na sociedade, atingindo todos os segmentos de forma geral. E está entre os conceitos mais discutidos da atualidade se apresentando sob as mais diversas dimensões como: econômica, política, social, ambiental, cultural, entre outras. É um complexo de processos e forças de mudanças (HALL, 2005). Nesse sentido, Vieira (1998, p. 103) aponta que,

Apesar da predominância econômica, o processo de globalização transcende os fenômenos meramente econômicos e deve ser entendido também em suas dimensões políticas, ecológicas e sociais. Afetando todas as esferas da vida, trabalho, educação e lazer, expressão artística, tecnologia, administração de empresas e instituições públicas – a globalização, como vimos, implica mudanças sociais e reestruturação da ordem mundial.

Como mostra a citação, o conjunto de fatores que influenciam a sociedade globalizada vai além da questão econômica, chegando a interferir na organização das comunidades e mais diretamente no cotidiano das famílias. Para além do certo e do errado, do bem e do mal, a globalização tem provocado mudanças na forma de viver e conviver a nível mundial e local.

Nesse sentido, os reflexos das posturas globais podem ser vistos nas comunidades. O termo Comunidade vem do latim communitas, quando muitos formam uma unidade. A comunidade pode ser constituída segundo Gustav Radbruch (2004) como uma relação entre os homens derivada da existência de uma obra comum que os prende entre si. E, nessa relação, existem elementos de harmonia e interesses em comum, mas também elementos de conflito.

Para Tönnies (1947), desde que existam homens que dependam uns dos outros, por suas vontades, e se aprovem reciprocamente, haverá comunidade. Essa poderá ser de parentesco, vizinhança ou amizade. O parentesco tem a residência como lugar; a vizinhança é o caráter geral da vida comum, onde a proximidade das casas determina numerosos contatos entre os homens; e a amizade se distingue das duas formas anteriores, é caracterizada por uma identidade nas formas de pensar. Portanto, viver em comunidade requer a compreensão do

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viver em comum, e está associado a um modo de vida. De acordo com Magnani (1998, p. 69):

A vida na cidade, no entanto, não se restringe às experiências do cotidiano que transcorrem no âmbito do bairro. A circulação em direção e através de territórios mais amplos se dá por meio de trajetos – percursos determinados por regras de compatibilidade – que abrem o particularismo do pedaço a novas experiências, situadas fora das fronteiras daquele espaço conhecido, onde se está protegido por regras claras de pertencimento.

A construção de uma ideia de pertencimento ligada a uma referência não só físico-espacial, mas também sociocultural, imprime uma força simbólica à ideia de representar-se no mundo e ocupar um espaço na sociedade. Além das características territoriais, também o tempo de moradia dentro de uma comunidade gera mecanismos e regras a serem compartilhados e ritualizados, compondo um código de obrigações e reciprocidades a ser cumprido, como condição de reconhecimento e legitimidade (LIMA, 2003).

Esse sentimento de pertença a um grupo, com seus valores simbólicos e práticas culturais comuns, sedimenta o processo de formação da identidade social do sujeito e contribui para que a família crie novas formas de organização para sobrevivência do grupo familiar, não só ao que se refere a sua subsistência, mas também quanto às relações estabelecidas no espaço onde vivem.

Essa é uma das inegáveis mudanças ocorridas no mundo nas últimas décadas: a diversificação dos arranjos familiares e suas formas de sobrevivência. De acordo com Gomes (2005): “cresce, consideravelmente, a parcela da população que vive em condições desfavoráveis, tanto nas relações estabelecidas por seus membros quanto nos meios que utiliza para sua subsistência”.

Tal complexificação que significa um processo que envolve o acaso, a imprevisibilidade, o inesperado e a incerteza que fazem parte do cotidiano dos integrantes da família (GOMES, 2005) e tem exigido a criação de estratégias que implicam na adoção de medidas de caráter econômico, social, cultural, as quais contribuam para o desenvolvimento do grupo familiar e os ajudem a lidar com situações de vulnerabilidade no contexto ao qual estão inseridos.

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Portanto, conhecer o meio social6 no qual a família está inserida permite identificar suas demandas, bem como os recursos do grupo familiar, importantes para entender as estratégias utilizadas pelas famílias na comunidade, mas para isso é preciso conhecer aspectos da vida comunitária como costumes, crenças, hábitos.

Além disso, é necessário dar visibilidade de como as famílias vêm se autoeco-organizando – termo usado para designar um dos princípios do Paradigma da Complexidade onde é preciso primeiro cuidar de si para depois cuidar do outro – no espaço comunitário, onde necessitam de estratégias e da legitimidade de um conjunto de práticas para garantir o seu pertencimento social. Vale ressaltar que a comunidade escolhida para a aplicação da pesquisa sempre foi estigmatizada pela sociedade, sendo constantemente associada ao tráfico de drogas, não se percebendo os movimentos sociais e participativos existentes dentro daquele espaço, onde uma série de serviços, projetos e programas funcionavam ao mesmo tempo em prol de seu desenvolvimento social, comunitário, cultural e econômico.

A pesquisa qualitativa foi desenvolvida na Comunidade do Campo da Tuca, localizada no bairro Partenon, zona leste do município de Porto Alegre/RS, que conta hoje com uma população de aproximadamente 10.000 pessoas que, em sua maioria, vivenciam situações de adversidade. A amostra contou com 10 famílias representadas pelas mulheres-mãe participantes de projetos sociais na comunidade e para a coleta de dados foram realizadas entrevistas e visitas domiciliares.

O Campo da Tuca é uma das poucas vilas na cidade de Porto Alegre que preserva seu campo de futebol como espaço de integração social, motivo de orgulho de seus moradores. Seu nome é alusivo à antiga proprietária do terreno – Dona Tuca, que o cedeu para que se transformasse em um espaço de lazer para os moradores.

Esse local conta a história do futebol de várzea e da prática esportiva estimulada e preservada por seus moradores mais antigos, em que a memória faz parte das atividades socioculturais desenvolvidas, e que em outras épocas revelou craques de futebol para o esporte profissional.

Mas a prática esportiva não é o único destaque dessa comunidade, ela também é conhecida por sua organização no tráfico de drogas, o qual, diariamente, movimenta a comunidade e agrava os índices de

6 Meio social aqui é entendido, como a comunidade ou o território onde vive a família, onde ela estabelece seus laços de amizade, sua rede primária (LIMA, 2003).

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violência no local. A comunidade é visivelmente dividida, existindo as ruas dos trabalhadores, formada em sua maioria por carroceiros que trabalham como catadores de lixo, e as ruas dos traficantes, ou “bocas de fumo”, como são popularmente conhecidas.

Assim, a partir da minha imersão neste contexto, e das inquietações trazidas em minha bagagem, fui procurando entender como se davam as relações nessa comunidade, como se estabeleciam as interações, e isso me permitiu soltar um grande pedaço da minha armadura e vislumbrar melhor o horizonte que se descortinava diante de mim. E, diante dessa perspectiva, minha principal indagação foi: Como famílias moradoras da Comunidade do Campo da Tuca, se autoeco-organizam, dando visibilidade ao processo de pertencimento social?

O prazer de caminhar

A caminhada consiste em fazer um ir e vir incessante entre certezas e incertezas, entre

o elementar e o global, entre o separável e o inseparável.

(MORIN, 2006, p. 205)

Este item mostra o processo de reflexão desenvolvido durante o caminho que escolhi e percorri, destacando que foi preciso uma imersão em um novo pressuposto epistemológico – o paradigma da complexidade, que, segundo Silva (2001, p. 18), “negocia com a incerteza, não para exorcizá-la, o que é impossível, mas na perspectiva do estabelecimento de pontes provisórias entre o ser-que-busca e o desconhecido”.

Durante a pesquisa o desafio foi seguir esse novo paradigma, baseada nas ideias de Edgar Morin, que rompe com os limites deterministas e simplificados e incorpora o acaso, a probabilidade e a incerteza como parâmetros necessários à compreensão da realidade.

No intuito de atingir os objetivos da pesquisa, optei por uma abordagem metodológica de natureza qualitativa, onde o foco da pesquisa foram famílias moradoras da Comunidade do Campo da Tuca/Partenon, que estavam vinculadas a algum dos Programas de Proteção Social Básica à Família junto à Associação Comunitária do bairro.

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Entre as singularidades da pesquisa destaco a convivência, o cotidiano, os ritos, hábitos, costumes que circundam a vida em comunidade e, principalmente, o quanto isso representava para as famílias que estavam inseridas naquele espaço. Minhas observações já iniciavam no caminho para comunidade aonde ia interagindo com aquele local, percebendo as pessoas sentadas na frente das casas, as crianças brincando soltas em meio aos cães e às fezes de cavalos; aglomerações nas esquinas; olhares desconfiados sobre todos que se aproximavam e que não eram reconhecidos como parte daquele local.

As mulheres sentadas nos pátios das casas em meio aos filhos menores, chimarreavam7 e conversavam como quem, simplesmente, espera o tempo passar e não tem muitas aspirações sobre o futuro. Seus olhares não eram desconfiados, nem confiantes, apenas indiferentes.

No entanto, durante o estudo foi possível perceber a busca de uma relação de pertencimento que se estabelecia: desde uma simples troca de favores até o comprometimento e/ou envolvimento com o círculo do tráfico em troca de proteção. Isso é evidenciado na fala de uma moradora que conota positivamente a forma como as pessoas envolvidas com o tráfico auxiliam os moradores da comunidade. A situação referida por ela diz respeito ao momento do parto de seu sexto filho onde foram os “trabalhadores do tráfico” que providenciaram um carro para levá-la ao hospital, por que de outra forma ninguém, segundo a moradora, subiria no morro para atendê-la.

Ficou evidente também que, apesar de existir um comando geral da comunidade por parte do tráfico, os moradores possuem uma relação de apego àquele território, onde se reconhecem como pertencentes e, por isso, estabelecem regras de convivência fundamentais para sua própria segurança. E onde o comando do tráfico existente naquele local não servia apenas como referência a um comércio, mas também como um mediador entre os moradores que seguiam essas regras de convivência estabelecidas e aqueles que burlavam estas regras a fim de satisfazer interesses próprios.

Tacitamente existia um acordo, um trato, no qual certamente o elemento principal era o silêncio por parte dos moradores em contrapartida da proteção por parte do traficante. Esse movimento evidencia o princípio

7 “Chimarrear” é um termo do vocabulário tradicionalista gaúcho referente ao ato de tomar chimarrão (bebida feita à base de erva-mate e água quente), costumeiramente acompanhado de prosas entre amigos.

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da autoeco-organização, pois muitos dos moradores entrevistados silenciavam para se proteger e, por conseguinte, protegerem seus filhos, sua família. A autoeco-organização se expressa no momento em que as famílias cuidam de si para cuidar do outro, a partir de suas competências e possibilidades em meio a um contexto marcado pela imprevisibilidade. E, dessa forma, o contexto das famílias moradoras do Campo da Tuca vem sendo permeado por um cotidiano de adversidades onde, muitas vezes, se utilizam de estratégias de inserção no espaço comunitário, como uma forma de proteção, a fim de potencializar uma relação de pertencimento social.

Mas, afinal, por que o pertencimento é tão importante?Historicamente o homem tem sobrevivido, em todas as sociedades,

pertencendo a grupos sociais. Desde o nascimento de uma criança já se pressupõe a existência de alguém para alimentá-la, cuidá-la e ampará-la na chegada a este mundo novo. De acordo com Kaloustian (2002, p. 48),

O bebê, ao ser concebido, já pertence a uma rede familiar, que compreende o pai e a mãe e seus respectivos grupos familiares. Ao pertencer a estes grupos, também já está estabelecido quem são os outros e o universo de escolhas amorosas e interdições às quais estará sujeito, de acordo com a cultura onde ele está inserido.

Daí desencadeia-se todo um processo de identidade desse novo ser. Cada criança recebe um nome próprio e um sobrenome que indicam sua pertinência a uma família, a uma rede de parentesco, a um determinado lugar inserido num contexto social e geográfico.

A família aparece como a matriz da identidade de seus membros em todas as culturas, pois é ela que confere a eles um “sentido de pertencimento e um sentido de ser separado” ao se inserir em outros grupos sociais, como nos aponta Minuchin, (1982, p. 53): “O sentido de pertencimento de cada membro é influenciado por seu sentido de pertencer a uma família específica, já o sentido de separação se dá através da participação em grupos extrafamiliares”.

Os primeiros grupos extrafamiliares surgem no espaço comunitário onde vivem, e onde são estabelecidas as primeiras referências de igualdade com pessoas com que partilham sentimentos significativos, conflitos e contradições. Esse cotidiano permeado de relações, onde se estabelece o processo de construção de identidade entre iguais é denominado por Lima (2003, p. 299) de “sociabilidade local”.

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Este traço importante da sociabilidade local se reafirma com a disponibilidade para a cooperação, já que há uma mobilidade e um compromisso moral em ajudar e ser ajudado por aqueles que se consideram iguais. Nessa “rede de solidariedade é estabelecida a colaboração entre familiares, amigos e vizinhos” (LIMA, 2003) e, mais do que isso, estabelece estratégias de sobrevivência e cooperação.

Sendo assim, não pode haver comunidade sem a presença do sentimento de pertencimento. Esse sentimento é inerente à condição humana, pois todos nós de alguma forma buscamos pertencer a algum espaço e/ou lugar, seja por uma questão geográfica, cultural, social, étnica etc. Segundo Amaral (2006),

Pertencimento, ou sentimento de pertencimento é a crença subjetiva numa origem comum que une distintos indivíduos. Os indivíduos pensam em si mesmos como membros de uma coletividade nas quais símbolos expressam valores, medos e aspirações.

Ainda de acordo com essa autora, esse sentimento de pertencimento pode ser reconhecido na forma como um grupo desenvolve sua atividade de produção, manutenção e aprofundamento das diferenças, cujo significado é dado por eles próprios em suas relações sociais. Quando a característica dessa comunidade é sentida subjetivamente como comum, surge o sentimento de “pertinência”, de pertencimento, ou seja, há uma comunidade de sentido.

Pode-se observar que formas de organizações decorrem deste sentimento de pertinência, que é capaz de realizar a união entre pessoas de ascendência, crenças, valores e costumes diferentes, mas que partilham de um sentido de pertencimento comunitário.

A importância da família e da relação de pertença está relacionada à aproximação e à ligação com o local de origem. É uma ideia de enraizamento, em que o indivíduo constrói e é construído, planeja e se sente parte de um projeto, modifica e é por ele modificado.

A sensação de “pertencimento” significa que precisamos nos sentir como pertencentes a tal lugar e ao mesmo tempo sentir que esse lugar nos pertence e, por isso, territorializar-se ultrapassa a garantia de ter um lugar para morar, indo além da sua representação. Significa a sedimentação de uma identidade social e o uso de estratégias comuns, compartilhadas em determinados espaços da vida cotidiana.

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Mais uma vez, o que se vê é a relação de reciprocidade estabelecida entre os moradores e o tráfico, criando relações sociais ancoradas em práticas comuns com sentido de sobrevivência e de partilha de sentimentos, gostos, hábitos e valores próprios do seu modo de vida. A construção desta relação faz parte da autoeco-organização das famílias no espaço comunitário onde através da rede de solidariedade, da intensa troca de informações e de experiências, há um estreitamento de vínculos, respeito, medo, subalternidade, cordialidade que estabelece valores, costumes e padrões de comportamento fundamentados no cuidado mútuo.

As famílias dentro da comunidade se autoeco-organizam das mais variadas formas, através de suas interações locais, de suas demandas, de seus conflitos, de suas articulações, estabelecendo a construção de regras internas de vivências e convivências. E, nesse tensionamento entre o que é vivenciado no espaço comunitário e o que é percebido pela sociedade em geral, é que surge a possibilidade de compreensão deste contexto complementar, antagônico e concorrente, estabelecido pela comunidade e que deve ser abarcado nas práticas e políticas sociais, a fim de torná-las mais efetivas para essa população.

O processo de autoeco-organização comunitária vem contribuindo para a constante ordem/desordem/organização/reorganização nas relações familiares. E isso não quer dizer que seja bom ou ruim, certo ou errado, mas vem sendo vivenciado pela família e influenciado na construção de novas formas de viver e conviver, o que, muitas vezes, é desconsiderado na elaboração e execução de políticas sociais.

Essa pluralidade de formas organizativas mobilizadas por uma infinidade de interesses necessita encontrar espaços de expressão que contemplem tamanha diversidade. Sendo assim, é preciso estar atento para acompanhar a travessia que a comunidade faz no caminho da autoeco-organização.

Nesse sentido, cada vez mais, tem-se observado a força que os territórios e comunidades vêm exercendo sobre as populações. Por mais instáveis que possam parecer, as pessoas têm suas vidas feitas de afinidades e da construção de relações acumuladas, tanto na individualidade quanto na coletividade. Surge aí a exigência de um novo olhar sobre as pessoas e suas interações com o território onde vivem, não apenas para enxergar mais longe, mas para que não haja somente a consideração da homogeneidade das situações.

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Mas não é apenas a autoeco-organização das famílias que merece ser vista como um novo elemento dessa discussão, mas também a necessidade de mudança nas práticas dos profissionais que atendem essa demanda, em particular os Assistentes Sociais, que necessitam constantemente acolher novas questões que surgem na sociedade contemporânea e que, se abarcadas nos programas, projetos e políticas, podem trazer resultados mais efetivos à população.

Considerações finais

A busca do complexo orienta uma aventura, nunca uma finalização.

(SILVA, 2001, p. 21)

Como pesquisadora e assistente social aprendente, segui o caminho da pesquisa acompanhada por minha thémata, que nas palavras de Morin, ao citar Holton (1997, p. 08) “são as ideias obsessivas que estimulam a pesquisa e o pensamento dos cientistas”. Pois bem, o estudo com famílias e a importância de pertencer a um território com todas as implicações correlatas a esse movimento foi e continua sendo minha thémata.

Compreender o desconhecido nas relações estabelecidas dentro de uma comunidade, não só a do Campo da Tuca, implica que se tenha uma percepção multidimensional dos fenômenos e que não se perca a capacidade de se inquietar. Por isso, estas considerações são finais, mas não conclusivas.

Inquietar-se significa continuar constantemente olhando para a realidade, considerando os novos desafios colocados pela dimensão do cotidiano, que se apresenta sob várias formas exigindo enfrentamento de forma integrada. O desafio está posto também para o Serviço Social, pois meramente romper com a história não significa um avanço, pelo contrário, caminhar na direção da ampliação de conquistas significa ter consciência da caminhada já realizada em seus diferentes momentos, podendo dessa forma dar continuidade e credibilidade a uma categoria que se movimenta assim como a realidade.

Vale lembrar que qualquer discussão acerca da família deve atentar-se, também, às condições em que essas famílias vivem. Não se

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pode desconhecer que a organização e condições de vida das famílias não são só definidas por fatores externos a elas, isto é, por fatores como a dinâmica da economia e as oportunidades ocupacionais, mas também precisam ser compreendidas em seu contexto cultural, inclusive levando em conta suas origens.

Portanto, ao falar de comunidade, principalmente a do Campo da Tuca, não posso esquecer-me de falar de questões que circundam esse território e ajudam a estabelecer as relações de convivência e vivência nesse espaço, como a violência e o poder do tráfico. Algumas opiniões sobre esta questão afirmam que nas comunidades que apresentam maiores índices de vulnerabilidade social o crime consegue instalar-se mais facilmente. São os chamados espaços segregados, em que a infraestrutura urbana de equipamentos e serviços apresenta-se precária ou insuficiente.

Não busco generalizações, mas faço uso das palavras do sociólogo Souza para reiterar essa discussão: “A pobreza não é causa da violência, mas quando aliada à dificuldade dos governos em oferecer melhor distribuição dos serviços públicos, torna os bairros mais pobres mais atraentes para a criminalidade e a ilegalidade”.

E, não é só isso, outros aspectos importantes na formação do ser humano, como constituição de vínculos, afeto, além de oportunidades ocupacionais podem ter relação direta com o aumento da violência, pois aqueles que não obtêm sucesso em nenhum desses aspectos, tornam-se mais vulneráveis ao ingresso na criminalidade, fazendo-o buscar outras formas de reconhecimento.

A família em meio a esse cotidiano vem lançando mão de estratégias que protejam o grupo familiar e possam ir de encontro ao forte estímulo que o crime organizado oferece, como apoio, prestígio e poder, mesmo que algumas vezes faça uso dessa própria organização para sentir-se protegida e pertencente socialmente.

Assim, a investigação sobre como famílias moradoras da Comunidade do Campo da Tuca se autoeco-organizam, dando visibilidade ao processo de pertencimento social, mostra uma série de estratégias utilizadas pelas mesmas, destacando-se a autoeco-organização de si para poderem cuidar dos filhos e se organizarem no mundo. Através desse movimento as famílias contemplam questões externas e internas, objetivas e subjetivas que vão desde contar com

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o crime organizado até burlar programas sociais para suprirem suas demandas e sentirem-se pertencentes.

Portanto, perceber o espaço comunitário para além da violência é também perceber que por trás do crime organizado vive uma população que clama por autonomia, cidadania e emancipação. E o que há de novo nesse cotidiano são justamente as possibilidades que essas famílias encontram de enfrentar a violência sem o embate, através do processo de conscientização de que eles não vivem na melhor das comunidades, mas isso não quer dizer que eles não almejam uma comunidade melhor, como aponta Morin (2001, p. 15), “acreditar que a renúncia ao melhor dos mundos não significa renunciar a um mundo melhor”.

E, ao concluir este artigo, me remeto novamente à fábula do Cavaleiro e sua armadura, pois ao longo da minha trajetória como pesquisadora e assistente social pude muitas vezes sentir partes da minha armadura se desvencilhando. Nesse caminho construí e desconstruí conhecimentos, avancei e retrocedi nas minhas ideias e principalmente aprendi que caminhos óbvios levam sempre aos mesmos lugares. E eu não queria chegar a um lugar conhecido, pelo contrário, queria me aventurar no desconhecido, nas incertezas, assim minha busca teria realmente sentido... e teve.

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Referências

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ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MENTAL: IDENTIFICANDO CAMINHOS DO (DES)CUIDADO EM SAÚDE1*

Vanessa Maria PanozzoBerenice Rojas Couto

A proposta de compreender teoricamente o campo da saúde mental vem acompanhando, de forma intensa, o processo de formação profissional como pesquisadora, fruto da experiência prática construída como assistente social, em espaços institucionais que, em anos de existência, aplicam uma política de saúde mental desumana e excludente. Foi, ainda, no espaço de formação na graduação no Serviço Social que, durante o processo de estágio curricular, pode-se conhecer e intervir nas políticas de Seguridade Social. Esse cotidiano possibilitou identificar as contradições dessa realidade e visualizar a rede de atendimento para os usuários moradores de rua (loucos de rua), na qual eram acompanhados.

Esse processo instigou buscar um aprofundamento acerca da política de saúde mental e foi por meio da inserção num Programa de Residência Profissional21 que se pode compreender o campo de atuação dessa política pública. A Residência Integrada em Saúde Coletiva: Saúde Mental, promovida pela Escola de Saúde Pública da Secretaria do Estado do Rio Grande do Sul, teve a duração de três anos, onde se atuou, como residente de Serviço Social, em diferentes espaços institucionais, dentre esses: hospital psiquiátrico, no primeiro ano; serviço substitutivo – Centro de Atenção Integral em Saúde Mental – CAIS Mental – no Município de Viamão/RS, no segundo ano e no terceiro, na gestão de um projeto específico, cujo objetivo era referenciar os usuários/moradores do Hospital Psiquiátrico São Pedro às unidades básicas de saúde regionalizadas.

As diferentes experiências profissionais proporcionaram um desvelamento das distintas concepções que traduziam as formas de

1 Artigo baseado na Dissertação de Mestrado intitulada As possibilidades de inclusão social dos usuários da saúde mental nas políticas de seguridade social, orientada pela Professora Dra. Berenice Rojas Couto, apresentada para o PPGSS no ano de 2003.2 Nos anos 2000 a 2002, a autora fez parte do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva: Saúde Mental, pela Escola de Saúde Pública -ESP- da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (SES).

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acesso aos direitos. No que tange a vivência de formação em serviço, isto é, do processo de Residência Profissional, como assistente social, esse suscitou, ainda, diferentes inquietações no âmbito da saúde mental. Nesse sentido, a inserção num Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Mestrado – garantiu uma possibilidade concreta de realizar pesquisa de campo, bem como o aprofundamento teórico no campo da saúde pública. Nesse sentido, este artigo compõe parte da dissertação de Mestrado apresentada no ano de 2005 que teve a preocupação de desvelar como ocorre a garantia dos direitos sociais – no âmbito da seguridade social – para o usuário da saúde mental dos Centros de Atenção Psicossocial.

A construção metodológica do estudo

A pesquisa tem como atividade básica a indagação e a descoberta da realidade. Por isso, a identificação do objeto de pesquisa está diretamente ligada à visão de homem e de mundo e de como a realidade se constrói. A atitude de pesquisar está intrinsecamente relacionada com o aporte teórico, que, através de sucessivas aproximações com a realidade, busca uma combinação particular entre a teoria e os dados coletados (MINAYO, 1994).

O referencial apoiado no materialismo histórico apontado por Marx

interpreta a realidade como uma totalidade onde tantos fatores visíveis como as representações sociais, integram e configuram um modo de vida condicionado pelo modo de produção específico. [...] trabalha-se com dados qualitativos para o interior da análise, o subjetivo e o objetivo, os atores sociais e o próprio sistema de valores do cientista, os fatos e os significados, a ordem e os conflitos (MINAYO, 1994, p. 34-35).

A perspectiva de pesquisar no campo da saúde, enfocando a saúde mental, tem o intuito de revelar como se têm construído as práticas em saúde e como se revelam as contradições da sociedade capitalista no cotidiano dos serviços e a assistência ofertada para os usuários dessa política pública. Isso requer um entendimento de como o Estado tem-se organizado para o enfrentamento da questão social, sendo a saúde mental uma das expressões dessa relação de conflito, que, ainda, apresenta para sociedade a exclusão social como alternativa para estabelecer a ordem. Conforme, também, aponta Minayo:

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Numa sociedade capitalista onde as relações se fazem a partir de diferenciação de classes, da desigualdade na distribuição e atribuição de riquezas, a concepção saúde/doença está marcada por essas contradições. Contradições marcam as representações da classe dominante que informam as concepções mais abrangentes da sociedade como um todo (MINAYO, 1994, p. 179).

A partir dessa compreensão, a pesquisa propõe a interação do pesquisador e dos sujeitos, a fim de conhecer a realidade através do método qualitativo, que

responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores, e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não pode ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994, p. 21-22).

Para tanto, considera-se fundamental o conhecimento no campo das políticas sociais e da pesquisa, neste contexto, elemento constitutivo no exercício da efetivação dos direitos. Assim, como assistente social, busca-se, através da intervenção profissional, a organização das ações técnico-assistenciais e ético-políticas, a fim de dar respostas às expressões da questão social que se colocam no cotidiano do trabalho do assistente social. Nesse sentido, para que haja efetividade no trabalho profissional, essas ações devem estar articuladas teoricamente, buscando investigar a realidade social, para propor ações que viabilizem o acesso aos direitos sociais, via efetivação das políticas de proteção social, pois “é na história da sociedade, na prática social que se encontram a fonte dos nossos problemas e a chave de suas soluções” (IAMAMOTO, 1996, p. 102).

O estudo teve como objetivo conhecer como os Centros de Atenção Psicossocial II se estruturavam para ofertar um serviço de atendimento aos usuários da saúde mental com integralidade e como se articulavam no campo das políticas de seguridade social, em especial da saúde e da assistência social, com vistas a referendarem os direitos de cidadania dessa população. A amostra intencional contou com usuários e profissionais de dois serviços de CAPS II do Município de Porto Alegre/RS, devidamente cadastrados no Ministério da Saúde a partir da Portaria 336/2002.

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O instrumento utilizado para a coleta de dados, elaborado pela pesquisadora, foi um formulário32 semiestruturado,43 contendo perguntas abertas e fechadas,5 utilizou-se, também, a técnica de observação. Para a análise dos dados qualitativos fundamentou-se na análise de conteúdo de Bardin (1977), a fim de se poderem problematizar os resultados, relacionando-as com construções teóricas já produzidas.

Respeitando os parâmetros éticos apontados pelas Ciências Humanas e Sociais, no caminho para a efetivação da pesquisa, houve passos a serem cumpridos dentro do contexto institucional da Secretaria de Saúde do Município de Porto Alegre, bem como na aprovação do Projeto no Programa de Pós-Graduação. O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética da Assessoria de Planejamento (Assepla), que autorizou o processo de pesquisa. Após essa aprovação, ocorreu o contato com os serviços de saúde mental selecionados – CAPS II – Centro e CAPS II – Cruzeiro, que também sofreu avaliação e aprovação de suas coordenações, direcionado para a equipe de profissionais sua aceitação. Na equipe de serviço do CAPS II, Centro, houve a apresentação do projeto pela pesquisadora, em reunião de equipe. A partir do consentimento para a coleta dos dados, iniciou-se o processo de pesquisa, evidenciando-se a proposta dos CAPS II, bem como as contradições expressas nessa realidade.

Anteriormente ao processo de entrevista, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Informado, autorizando fazer parte do estudo. Após a coleta de dados iniciou-se o processo de análise. Num primeiro momento os formulários foram fichados. Os profissionais receberam uma identificação com números e os usuários foram identificados por letras, sexo e idade. Ainda, entendeu-se, num primeiro momento, a necessidade de buscar dados sobre a região onde os serviços estão instalados, bem como sobre a demanda atendida pelos serviços.

3 É um dos instrumentos essenciais para a investigação social cuja coleta de dados consiste em obter informações diretamente do entrevistado (MARCONI; LAKATOS, 2002, p. 114). 4 Característica dada ao instrumento que possibilita a formulação de perguntas previamente elaboradas acerca do objeto, sendo possível a construção de indagações do pesquisador no momento da entrevista (MARCONI, LAKATOS, 1999).5 As perguntas abertas e fechadas são utilizadas na construção do formulário, contendo dados referentes ao objeto de estudo, problematizando as questões norteadoras. A pesquisa qualitativa prevê a construção de instrumentos que possibilitem o sujeito pesquisado apresentar sua concepção frente ao problema de pesquisa. Para Marconi e Lakatos, as perguntas abertas são chamadas de livres, que irão permitir ao informante responder livremente, usando a própria linguagem e emitir opiniões. Já as fechadas caracterizam-se pela escolha do informante às respostas entre as opções apresentadas (1999, p. 101).

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Para analisar a pesquisa, elencaram-se categorias que se mostraram essenciais para a problematização em relação ao tema: Integralidade da Atenção;6 Seguridade Social7 compondo a Assistência Social,8 Saúde,9 Previdência Social10 e Cidadania.11 Essas categorias foram de fundamental importância, uma vez que a compreensão das políticas sociais e dos direitos historicamente construídos irá permitir visualizar as concepções de acesso e cuidado em saúde para população usuária da política de saúde mental.

A Constituição do Modelo de Assistência em Saúde Mental

É em grandes períodos históricos que a loucura ganha evidência através de seus diferentes enfoques. Conforme Foucault (1994), existiram três importantes momentos na História, para a compreensão desse conceito. São eles:

• ao final da Idade Média e no apogeu do século XV, quando se caracterizou o período de liberdade e a loucura era experimentada em “estado livre”;

6 A integralidade da atenção é o reconhecimento na prática dos serviços de que: cada pessoa é um todo indivisível e integrante de uma sociedade; as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam também um todo indivisível e não podem ser fragmentados; as unidades prestadoras de serviços, com seus diversos graus de complexidade, também formam um todo indivisível configurando um sistema capaz de prestar assistência integral (SUS, 1990). 7 “A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de ações iniciativas dos poderes públicos e da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos a saúde, a previdência e a assistência social” (BRASIL, 1988, art.194). 8 “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é a política de Seguridade Social não contributiva, que prevê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações da iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (LOAS, 1993, art. 1º). 9 “A saúde não é um conceito abstrato, define-se num contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser contestada pela sua população em suas lutas cotidianas (...) saúde é o resultante das condições de alimentação, habitação, renda, meio ambiente, transporte, lazer, emprego, liberdade, acesso (...) é o resultado das formas de organização social de produção que pode gerar desigualdades” (MENDES, 1994).10 A previdência será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e atenderá, nos termos da lei: “I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II - proteção à maternidade, especialmente a gestante; III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes” (BRASIL, 1988, art. 201).11 “cidadania entendida como a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinada (COUTINHO, 2000, p. 50).

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• nos séculos XVII e XVIII, o período das grandes inter-nações, quando a loucura ocupou o lugar da lepra no mundo da exclusão; e,

• desde a Revolução Francesa até os dias atuais, com o advento da psiquiatria.

O tratamento da loucura teve domínio da medicina com o passar dos anos, e os regimes de internação dos loucos ocorreram de forma maciça na Europa, no século XVII. A doença mental era considerada como um caso de polícia, e as medidas de internação tinham o caráter de aprisionamento, já que a loucura representava ociosidade. A loucura é associada à “ideia de desvio em relação à norma”;

uma aberração da conduta em relação aos padrões ou valores dominantes de uma certa sociedade, ou, ainda, como um estado individual da perda da razão ou do controle emocional, independentes dos significados sociais ou políticos de tais aberrações (PESSOTI apud FERRAZ, 2000).

Foucault (1978) ainda refere que a loucura é uma categoria historicamente construída pela sociedade, com determinantes históricos e culturais baseados em formas de controle da população, principalmente daqueles que pudessem trazer algum dano aos modos de sustentação do capital e que prejudicassem o andamento da produção de riquezas. O movimento de construção desse processo histórico-social-político conduziu a loucura ao confinamento, à rotulação, à cristalização e ao silêncio. Através da condição de doença, a loucura ganha evidência enquanto doença mental. Como Ferraz (2000) afirma, ela é uma patologia de desvio de normas, porque “a doença é definida sempre em relação à média, norma ou padrão”, caracterizada pelo afastamento desse padrão. Essa foi a forma de determinar as características desses sujeitos que começam a aparecer na história a partir da lógica de doença, de patologia que se afasta dos ideais preestabelecidos. Dessa forma, a loucura “é vista sob o prisma de deficiência, definida como um distúrbio de personalidade, com alterações de percepção, do pensamento e da afetividade” (FERRAZ, 2000, p. 38). O sentido da loucura, conforme aponta o autor, traz significados sociais e políticos “que dizem respeito ao modo como o grupo social a ela reage, juntamente com o uso que

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uma sociedade dela faz” (FERRAZ, 2000, p. 34). Para a “sociedade perfeita”, todos devem estar habilitados a nela permanecer. Como Rosa aborda: “a seletividade funciona como um processo perverso de acentuar a exclusão e aumentar a desigualdade entre os desiguais” (1995, p. 87).

o processo histórico de exclusão da loucura não tem suas raízes na natureza da loucura, não são características inerentes ao sujeito louco que geram tal exclusão; este processo resulta de uma série de embates, enfrentamentos, correlações de força, no âmbito de uma cultura que acredita demasiadamente na sua própria razão (LOBOSQUE, 2001, p. 18).

Através das elegebilidades, a sociedade, com seus valores dominantes, exclui as tentativas de inclusão dos movimentos sociais construídos historicamente, favorecendo apenas os mais pobres por possuírem mérito de pobreza, ou sustentando os que são considerados capazes. O fenômeno da exclusão social vem agravando-se expressivamente. Esse movimento sempre acompanhou as formas de organização da sociedade e os modelos de desenvolvimento. É um quadro marcado pela segregação por parte “[d]aqueles que consideram normal e justa a prevalência absoluta dos indivíduos e dos grupos fortes” (AMARANTE, 1995, p. 25).

O processo de exclusão social do louco é uma das formas de separá-lo do convívio social, uma vez que esse não caminha junto com a lógica da “sociedade perfeita”. Excluir o sujeito louco é também julgá-lo de forma simplificada, como responsável pelos problemas sociais, distanciado de uma leitura de totalidade e das contradições inerentes ao processo social que transforma diferença e desigualdade. Como aponta Lobosque (2001, p. 18), “trata-se de uma leitura psicologizante dos graves problemas representados pela exclusão da loucura, e a psicologização de tais problemas é sempre correlata à sua despolitização”. Dentro do controle do social, constituiu-se a Instituição Total,12 a fim de romper com as ameaças ao status quo. Com todos os “perigosos e os loucos fechados” – sem contato com o mundo externo e proibidos de saírem, em qualquer momento, com muros altos, portas trancadas, poder-se-ia ter a sociedade ideal, podendo ser controlada pelos pequenos grupos dirigentes, que, desde aquela época, se caracterizam como capitalistas, 12 Instituição Total: pode ser definida como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla, por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1974, p. 16).

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com direções burocráticas, autoritárias e assistencialistas (GOFFMAN, 1974). “O controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas – seja ou não uma necessidade ou meio eficiente de organização social nas circunstâncias – é o fato básico nas instituições totais” (GOFFMAN, 1974, p. 18).

A prevalência desse modelo macro-hospitalar, característico dessas instituições, perdurou por muitos anos, onde as decorrentes cronicidades de práticas caracterizadas pela burocratização e pela verticalização das relações pessoais no cotidiano se dirigiam, prioritariamente, para a manutenção e a perpetuação do modelo excludente, através da máquina administrativa que exclui, manipula e ameaça a cidadania.

A existência de pobreza e de diferentes condições do vivido é sentido por distintos segmentos todos os dias: os “loucos”, a população de rua, as crianças desnutridas, a questão social expressada nas mais diferentes formas. As realidades são fugidias, quando se precisa enfrentá-las. O padrão hegemônico exclui e, mais que isso, não permite existir a diferença. E, quando essa existe, esse mesmo padrão, não dá nenhuma contribuição para que ela sobreviva: “as discriminações são formas de exercício de poderes para excluir as pessoas do acesso a certos benefícios ou vantagens, a do próprio convívio social da maioria através da rotulação ou etiquetagem desses esteriótipos socialmente fabricados” (FALEIROS, 1995, p. 124).

Assim, podem-se verificar avanços em relação ao tratamento dispensados aos usuários da saúde mental, representados pelo envolvimento dos trabalhadores da área, dos usuários e de seus familiares a respeito do significado do manicômio como instituição de exclusão, bem como sobre a possibilidade de construir uma cidadania.

De qualquer modo, o problema da exclusão é uma das principais questões que ainda não resolvemos e que nem as sociedades avançadas resolveram. Existem sociedades que alcançaram uma aceitável situação econômica, um aceitável nível de democracia, um aceitável nível de relativa igualdade entre as pessoas, no que se refere às condições de vida; mas o problema da exclusão não só não foi resolvido, mas foi sendo agravado. Isso não apenas em relação à questão do louco, mas inclui, ainda, a questão dos idosos, das crianças [...] Creio que quando, sem nenhuma onipotência, afirmamos que é necessário enfrentar prioritariamente a questão do hospital psiquiátrico, que colocamos o problema do manicômio em primeiro lugar, é

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porque é aí onde, paradigmaticamente, tem lugar o processo de exclusão; a existência do manicômio é a configuração, na fantasia das pessoas, da inevitabilidade deste estado de coisas, que é impossível lutar contra esta situação, que as coisas são sempre assim e serão sempre igual. Existirá sempre a necessidade de um lugar para se depositar as coisas que são rejeitadas, jogadas fora e que servem para que nos reconheçamos pela diferença? Este papel pedagógico, no sentido negativo, do hospital psiquiátrico é o que nós técnicos devemos por em discussão se não quisermos avalizar com nossas ações uma perversão que é política, científica, mas sobretudo cultural (ROTELLI apud AMARANTE, 1998, p. 2-3).

A partir da década de 1970, iniciaram os movimentos para uma real desinstitucionalização,13 dos usuários da saúde mental, principalmente, a partir da experiência da Psiquiatria Democrática Italiana. No Brasil, pode-se destacar o ano de 1978 como o período em que a reforma psiquiátrica ganhou uma forte vitalidade e visibilidade social, após denúncias da situação dos grandes asilos, da privatização e da mercantilização de assistência na rede de hospitais conveniados e das reivindicações de humanização dos hospitais. A proposta da desinstitucionalização surgiu através do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, na I Conferência Nacional em Saúde Mental, cujo lema era “Por uma Sociedade sem Manicômios” (1987). A partir desse movimento, o projeto de desinstitucionalização, que passava “a ser um conceito básico determinante na reorganização dos serviços, nas ações em saúde mental e na ação do movimento” (AMARANTE, 1995, p. 81), desenvolveu uma luta política pela transformação do modelo hegemônico asilar, criando novas práticas e modalidades de atenção e cuidado.

Nessa movimentação de discussões e debates sobre paradigmas, surgiu, no Estado do Rio Grande do Sul, a Lei da Reforma Psiquiátrica – Lei nº 9.716, de 07 de agosto de 1992 – estabelecendo propostas referentes à superação do modelo hospitalocêntrico, bem como garantindo aos direitos sociais aos portadores de sofrimento psíquico. Essa superação diz respeito à mudança de uma sociedade culturalmente construída em relação à loucura, no sentido de não mais rejeitá-la e segregá-la, mas, sim, em busca de debates envolvendo os diferentes segmentos sociais para fazer valer os paradigmas de inclusão social (FAGUNDES, 1992).

13 “Desinstitucionalização [...] é um trabalho terapêutico, voltado para a reconstituição das pessoas enquanto sujeitos que sofrem. É provável que não se resolva por hora, não se cure agora, mas, no entanto, seguramente se cuida” (ROTELLI, 1990, p. 16).

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A partir da proposta por uma sociedade sem manicômios, tendo como norte a proposta da política de saúde mental do Estado, que propõe a cada município o atendimento à sua população, e concretizando a Lei da Reforma Psiquiátrica Estadual, foram construídos modelos de atenção integral, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a partir das Conferências Nacionais de Saúde Mental, tendo em vista:

criar um filtro de atendimento entre hospital e comunidade com vistas à construção de uma rede de prestação de serviços preferencialmente comunitária [...] se pretende garantir tratamento de intensidade máxima no que diz respeito ao tempo reservado ao acolhimento de pessoas com graves dificuldades de relacionamento e inserção social (AMARANTE, 1995, p. 82).

No final da década de 1980, esses centros surgiram através de unidades e de equipes de hospitais psiquiátricos que passaram a trabalhar sob essa nova lógica. No Rio Grande do Sul, a Lei da Reforma Psiquiátrica, sancionada em 1992, que determinou a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por redes de atenção em saúde mental, impôs regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações compulsórias, e criou diretrizes no âmbito da saúde mental em contraposição ao modelo hospitalocêntrico, que perdurou por anos, bem como instituiu o “conceito” de cidadania para os portadores de sofrimento psíquico.

A criação de serviços de saúde mental deu-se a partir dos conceitos definidos pela Constituição Federal de 1988, na qual a Política de Saúde Mental é entendida como “a proposição dos processos que possibilitem a mobilização de grupos sociais na direção da melhoria da qualidade de vida” (PORTO ALEGRE, 1992, p. 11). Assim, esses serviços vêm ao encontro dessa proposta de qualidade de vida, visando que as pessoas possam obter uma atenção de forma integral e acreditando que “a integralidade passa pela constituição da identidade, através da reconstrução de vínculos sociais e culturais na perspectiva de ressignificar a própria história dos sujeitos” (PORTO ALEGRE, 1992, p. 11). Esse atendimento de forma integral substituiu o modelo de assistência crônico e tutelador aos portadores de sofrimento psíquico, caracterizado pelas internações.

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Desvelando as possibilidades de concretizar uma nova cultura de assistência em saúde mental

A trajetória da assistência em saúde mental efetivou-se com práticas excludentes, numa perspectiva manicomial. Essa prática tinha como propósito o isolamento dos usuários, tirando-os de seu meio de convívio. Foi somente com a organização dos movimentos sociais, representados pelos usuários, seus familiares e trabalhadores, que se iniciou a luta por uma assistência mais digna e que se puderam traçar novos modelos de cuidado para os usuários da política de saúde mental. A partir da contextualização histórica apresentada no item anterior, foi possível desvelar como os serviços de saúde mental têm assistido os usuários na proposta do atendimento integral, fundamentado nas legislações legais vigentes.

A caracterização dos serviços conforme apontado no caminho metodológico permitiu visualizar a composição das equipes e das diferentes modalidades de atendimento. Compreende-se que esses itens possuem uma relação estreita na forma de assistir os usuários, valendo-se das premissas da reforma psiquiátrica que nega práticas individuais, excludentes e institucionalizadas.

Os dois serviços (CAPS Cruzeiro e CAPS Centro) pesquisados eram devidamente cadastrados no Ministério da Saúde. Possuíam uma equipe interdisciplinar, sendo referência de atendimento para o Município de Porto Alegre. Os profissionais entrevistados, na sua maioria, trabalhavam na área da Política de Saúde e saúde mental há mais de cinco anos, com experiências vinculadas a unidades de saúde, hospital psiquiátricos, hospital geral etc.

As atividades dividiam-se em atendimentos individuais, em grupo, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares etc., conforme preconizado na Portaria nº 336/2002, que faz referência às diferentes modalidades de atendimentos para o usuário da Política de Saúde Mental. Entretanto, o CAPS Cruzeiro sinalizou uma perda considerável de profissionais que atuavam na equipe, bem como a dificuldade de assistir os usuários conforme preconiza a Portaria, no que se refere aos atendimentos do Centro de Atenção Diária – CAD, com atividades organizadas diariamente e as refeições realizadas no próprio serviço.

Os usuários do serviço CAPS II Cruzeiro, conforme se constatou na amostra da pesquisa, eram em sua maioria homens,

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com idade entre 30 e 40 anos. Desses, a maioria possuía benefício da Previdência Social e já estive internada em hospital psiquiátrico pelo menos duas vezes. Todos os usuários entrevistados pertenciam à região do Distrito Glória, Cruzeiro e Cristal.

O CAPS II Centro era considerado pela Secretaria de Saúde municipal referência no atendimento aos usuários da saúde mental, no modelo de serviço substitutivo. Criado desde 1996, contava com uma equipe 18 profissionais, que dão conta dos atendimentos à população do Distrito Centro, da cidade de Porto Alegre, com diferentes modalidades de atendimento, conforme preconiza a Portaria nº 336/2002. Esse CAPS destaca-se por um direcionamento no que se refere ao atendimento aos moradores de rua do Município de Porto Alegre. Esse atendimento era oferecido em conjunto com outros órgãos, dentre eles, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), articulados no processo de atendimento. O CAPS II Centro realizava em média de 400 atendimentos/mês, dividindo-se em cuidados intensivos, semi-intensivos e não intensivos.

Os usuários do serviço CAPS II Centro eram, a partir da amostra eleita, na maioria mulheres, com idade entre 20 e 30 anos de idade. Dessas, a maior parte possui benefícios da Previdência Social ou da Assistência Social e com histórico de internação em hospital psiquiátrico, pelo menos cinco vezes. Um dado destacado é que a minoria dos entrevistados não pertence à região/território que compõe o Distrito Centro, e sim a outros bairros do Município, como da Região Norte, Sul e Restinga.

No que se refere à análise dos dados em relação às categorias centrais da pesquisa pode-se reconhecer que a política de saúde mental mostra-se incipiente, apesar dos movimentos construídos no próprio Estado. Não há uma política de referência e contrarreferência, o que revela uma fragilidade na capacidade de acesso dos usuários às unidades básicas de saúde, bem como a outros equipamentos sociais. Há um reconhecimento dos profissionais da área da necessidade de um atendimento integral, na busca de romper com a centralização do saber médico, com uma proposta de um modelo curativo individual, conforme aponta a fala: “A integralidade é um princípio, o sujeito é visto como um todo, não por especialidade, considerando as questões biopsicossociais, não só as biológicas” (Profissional 1). Esse princípio oferece, de forma

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conjunta, as ações de promoção, proteção, prevenção, tratamento, cura e reabilitação, tanto no nível individual como no coletivo. No individual, no sentido de ser capaz de atender a cada usuário singularmente, propondo-se um plano terapêutico individualizado, e no coletivo à medida que se garante a proposta institucional do serviço, buscando uma nova cultura de assistência. Porém irá aparecer que a integralidade da atenção recai sobre o próprio serviço, onde o usuário é atendido de forma completa, não acessando as outras políticas sociais. Argumenta-se que não existem equipamentos suficientes para contrarreferenciar os usuários na rede de atendimento: “A rede não está adequada: há falta de medicação, a demanda é muito grande o que dificulta o atendimento aos usuários, entram muitos [...] poucas altas, por causa da dificuldade da rede” (Profissional 7).

A integralidade sugerida pela Política de Seguridade Social não atinge diretamente o cidadão usuário da saúde mental, uma vez que não só a saúde mental como expressão da questão social dá conta de ser atendida de forma integrada pelo sistema. O Sistema de Seguridade Social, apesar de 12 anos de existência, apresenta deficiências concretas de acesso à população, necessitando de uma análise mais ampla de como ele vem “ajustando-se” frente à lógica neoliberal, imposta no final da década de 90 do século passado. Essa lógica coloca para os cidadãos brasileiros a dificuldade de proteção social, subjugando o sistema construído com princípios de igualdade e cidadania, ao ser relegado pelo viés econômico de sustentação das necessidades, inclusive sociais, no mercado. Tal lógica determina à população brasileira, e, neste estudo, aos usuários do CAPS II, uma cidadania restrita à complementação de programas de determinada política social, não articulando o tripé da proteção social como um todo.

A Lei de Reforma Psiquiátrica, legalmente sancionada no Estado, em 1992, serve (e serviu) de base para construção de um novo olhar à saúde mental, porém a substituição progressiva de leitos em hospitais psiquiátricos por outros em hospitais gerais não acontece no cotidiano, ainda servindo de referência para a internação os hospitais psiquiátricos do município. Há também uma cultura de descaso e reprovação para com os usuários da saúde mental, uma crença de que os “doentes” devem ser tratados nos hospitais especializados, no caso os psiquiátricos, com a resistência às suas presenças na comunidade. Contrariamente à proposta do SUS, os usuários têm a possibilidade de ser atendidos no posto de

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saúde, porém não o do próprio bairro, por se sentirem estigmatizados em relação à doença; ele não querem ser reconhecidos como doentes mentais. Referente a isto a usuária diz: “Eu não gostaria de ir para o posto, lá eles não sabem que eu sou doente, se fosse num outro bairro que não o meu, sim” (Usuária J, 48 anos). Eles também definem a doença como incômodo para as famílias: “A doença incomoda o familiar, porque eu tenho que estar esmolando, mendigando” (Usuário N, 27 anos). Os usuários sentem o preconceito da sociedade quanto à loucura, que os caracteriza fora dos padrões estéticos e normais. A sociedade perfeita determina padrões não admitindo que um “usuário louco” esteja inserido no mesmo: “o louco tem que andar feio, molambento, tem que fazer alguma coisa errada; a gente não pode se arrumar...” (Usuária P, 37 anos).

A nova lógica de assistir os usuários da saúde mental na comunidade rompe, com a lógica manicomial, mas não rompe com a lógica dos critérios de acesso restritos às demais políticas sociais, reforçando, de certa forma, a segregação do “doente mental”, que se sente acolhido apenas nos programas específicos da saúde mental. Dessa forma, a cidadania fica comprometida, veiculando-se apenas o direito de acesso ao programa.

O estudo apontou que havia uma precária articulação das políticas sociais no Município, revelando um esvaziamento de propostas no âmbito social, as quais são ainda norteadas por concepções arcaicas, sob a égide do neoliberalismo, sendo estimulado a criar modelos de assistência de cunho paternalista e com noções de caridade, uma vez que a sociedade civil se divide com o Estado para dar conta das necessidades da população. A partir dessa análise, se entende que há emergência de se integrarem as políticas sociais, de se criarem mecanismos que permitam a inclusão desses sujeitos na comunidade, com direito a trabalho e renda, e não apenas de criação de programas que somente instrumentalizam o acesso por parte dos mesmos.

As falas dos usuários e dos profissionais revelam que o funcionamento dos CAPS representa algo novo na forma de atender às demandas da saúde mental. Esse modelo caracteriza-se por um atendimento regionalizado, com base no SUS, buscando a promoção da cidadania. Contudo, esse novo não consegue romper com alguns preconceitos, principalmente por parte dos usuários, quando buscam garantir toda a cobertura de atendimento no programa e não se sentem estimulados a

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buscar novos caminhos, reforçando a sua institucionalização em espaços específicos e não contribuindo, dessa forma, para desmistificar a loucura e promover a sua inclusão social no cotidiano da comunidade. Os profissionais, ao entenderem a dificuldade de articulação na sociedade para atender às demandas dos usuários acabam inclusive por colocar em discussão os princípios da reforma psiquiátrica. À medida que o próprio serviço não articula a inclusão social e a promoção da cidadania nos espaços da cidade, ele não possibilita a legitimação dos serviços substitutivos em contraponto à lógica manicomial, segrega a identidade dos sujeitos e limita a pluralidade de ações no âmbito das políticas sociais.

Embora a perspectiva de assumir um modelo assistencial seja extremamente positiva, com concepções de liberdade e autonomia, o CAPS II ainda é embrionário como modelo que garanta um atendimento que assegure características de reforço do acesso como cidadão. Para que isso aconteça, faz-se necessária uma nova cultura a respeito do significado de serviço substitutivo, contextualizado na dimensão legal dos direitos sociais. A Constituição Federal de 1988 criou premissas fundamentais no que tange ao compromisso real de constituir cidadãos e os caminhos a seguir. A partir da seguridade social, foi possível vislumbrar o acesso aos direitos sociais, mas a atual conjuntura desmantela a possibilidade de firmá-los, elegendo as prioridades e quem deve ser assistido.

O desafio é o de criar estratégias que legitimem a cidadania, na perspectiva de articular realmente as políticas de seguridade social, deixando para trás uma herança de práticas assistencialistas, individuais e de exclusão.

Considerações finais

A inserção dos usuários da saúde mental nas políticas sociais brasileiras foi marcada pela ausência de direitos. A trajetória histórica dos modelos de atenção em saúde mental fundamentou-se na noção de seletividade, primando pela segregação dos doentes mentais. Foi somente com a Constituição de 1988 que se pôde inovar o conceito de direito social ao criar as bases da seguridade social como sistema de proteção social, direito do cidadão e dever do Estado. Dentre as significativas inovações, trouxe para a área da saúde o dever de assistir a todos de forma universal; do reconhecimento das diferenças de cada

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sujeito; de a população poder usufruir níveis de atenção em saúde de forma a dar conta do cuidado em saúde; de compreender o sujeito como um todo, isso é composto por diferentes necessidades.

Neste sentido pesquisar e dar visibilidade a Política de Saúde Mental é o que se pretendeu ao traçar incipientes discussões neste momento histórico. Incipiente, pois se sabe que não são verdades absolutas acerca do tema, ao contrário, são movimentos do desvelar da realidade que permitem o surgimento de novas inquietações acerca do objeto estudado.

Ao revelar os dados da pesquisa pode-se perceber uma dificuldade de materializar os preceitos da reforma psiquiátrica. Mesmo com os avanços legais existe ainda uma cultura “intra” e “extramuros” institucionais que irão compor práticas tuteladoras, paternalistas; centralizando um cuidado legitimado pelo acesso do próprio serviço de CAPS, não potencializando os recursos sociais. Dessa forma a condição de cidadania fica tangenciada ao próprio campo da saúde, com a inserção do usuário a programas determinados, sem potencializar o acesso a bens e serviços oferecidos pelas políticas públicas, prevendo a condição de sujeito de direitos. Nessa perspectiva, se assim for feito, há uma possibilidade de institucionalizar novos espaços da cidade, apenas ocupando territórios diferentes, em vez da instituição total, mantendo o modelo manicomial. As práticas burocráticas, cronificadas no conteúdo histórico do “louco” que não tem autonomia, que não têm condições de pensar ou opinar, que não possuem identidade; devem ser substituídas todos os dias pelo conteúdo da vida desses usuários, vida essa que deve ser compreendida a partir daquilo que é de significado para essa população.

As possibilidades de construir processos de trabalho condizentes se dão no cotidiano que é real, que é dinâmico e que permite ser superado. Caminhos como, por exemplo, a discussão de conceito da desinstitucionalização, do que é cuidado em saúde mental, do significado de direito, entre outros, deve compor os espaços de reflexão da equipe de trabalho nos CAPS, na rede de saúde, na discussão de rede social, com os departamentos das diferentes políticas públicas, com os gestores locais e estaduais, nos espaços de formação profissional: Residências, Universidades, entre outros. Para finalizar destaca-se que isso somente é possível com a participação orgânica dos usuários dessa política, pois é para eles que como profissionais políticos que temos que garantir direitos.

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VIVÊNCIAS DESENCADEADAS PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA: DAS CORRENTES ÀS PORTAS ABERTAS1*

Maíra GiovenardiMaria Isabel Barros Bellini

Devemos lutar pela igualdade sempre que a diferença nos inferioriza,

mas devemos lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza.Boaventura de Souza Santos

O presente artigo tem como temática a Reforma Psiquiátrica Brasileira, implementada legalmente no ano de 2001, através da Lei n° 10.216, que trata da proteção e direitos do portador de sofrimento psíquico21 redefinindo o modelo assistencial em saúde mental.

Esta pesquisa foi gestada a partir da observação e preocupação enquanto assistente social em formação na Residência Integrada em Saúde da Escola de Saúde Pública/RS, mantida pela Secretaria de Estado da Saúde (SES-RS), nos anos de 2007 a 2009, em relação ao grande número de reinternações em hospital psiquiátrico de pessoas em sofrimento psíquico. Dados observados tanto nos prontuários quanto no cotidiano da unidade onde se realizou a formação em Saúde Mental Coletiva, espaço este que permitiu refletir sobre o processo saúde-doença (ALIATTI, BELLINI, CAMBOIM, CASSAL, CRUZ, ROSSONI, SOARES, 2009). Na ocasião verificou-se, através dos prontuários, que nas unidades de internação para adultos masculina e feminina, respectivamente, mais de 50% e 40% dos sujeitos internados estavam em sua segunda internação e alguns já foram internados mais de duas vezes, esses dados evidenciando um alerta para que se aprofunde essa realidade das reinternações.

Dessa maneira, o problema de pesquisa que norteou o projeto foi assim elaborado: Como o portador de sofrimento psíquico, sua família ou cuidador e os trabalhadores que compõem a rede de atenção à saúde 1 Artigo baseado na dissertação de mestrado de mesmo título, orientada pela Professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini, concluída em 2011.2 Portador de sofrimento psíquico é o termo escolhido pelo movimento de usuários e familiares em substituição aos termos considerados por eles pejorativos: “loucura” e “doença mental”.

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mental vivenciam os processos desencadeados no atendimento a saúde desde a Reforma Psiquiátrica?

Neste artigo apresenta-se um recorte de nossa pesquisa, e busca-se traduzir as falas dos sujeitos participantes, respeitando suas vivências advindas do processo da Reforma Psiquiátrica, com a tentativa de ser coerente com a realidade e com as percepções daqueles sujeitos.

Política de Saúde no Brasil

A política de saúde, no início do século XX, configurava-se em saúde pública e medicina previdenciária. A saúde pública era destinada à população que não estava inserida no mercado formal de trabalho, sendo o foco de atuação do Ministério da Saúde a medicina preventiva, as doenças infectocontagiosas e os programas de imunização e a medicina previdenciária destinada aos contribuintes da previdência social inseridos no mercado formal de trabalho tendo como foco de atuação a especialização clínica e a medicina hospitalar (CAVALCANTI, ZUCCO, 2006). No entanto, o modelo hegemônico de saúde até meados dos anos 60 era a saúde pública e, somente a partir de 1966, o modelo previdenciário ganha ênfase.

É no bojo do processo histórico-econômico e político que marcou a conjuntura brasileira dos anos 30 que ocorre a formulação da política de saúde, que teve caráter nacional – como as demais políticas sociais – e foi organizada em dois subsetores: o de saúde pública e o de medicina previdenciária (BRAVO, MATOS, 2004, p. 26).

Em decorrência da Segunda Grande Guerra, vivenciou-se uma profunda alteração na realidade mundial onde se implantou uma nova ordem econômica e política. Os Estados Unidos da América consolidaram sua liderança e hegemonia no mundo (BRUM, 1999), o que permitiu a difusão e expansão do seu modelo de assistência sanitária, sendo que a partir da década de 1950, consistiu na ênfase do modelo assistencial à saúde centrado no hospital (ALMEIDA, 1997). Foi também no período pós-segunda guerra mundial que se iniciaram as críticas aos hospitais psiquiátricos, em detrimento da experiência de médicos e enfermeiros que foram prisioneiros dos campos de concentração nazistas e comparavam o tratamento desumano recebido em hospital psiquiátrico com suas vivências enquanto aprisionados.

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Outro marco importante no que diz respeito à política de saúde no Brasil foi o desenvolvimento do setor industrial, suscitando uma “preocupação” com os trabalhadores, devido à necessidade de conservá-los – força de trabalho – com saúde suficiente para participar na produção. Dessa maneira, com o processo de industrialização vivenciado no Brasil a partir da década de 50, o importante era atuar sobre o corpo do trabalhador, mantendo e restaurando sua capacidade produtiva (MENDES, 1999).

A política na área da saúde surge vinculada ao mundo do trabalho e, concomitantemente, com seu desenvolvimento a partir do privilégio do setor privado e a extensão da cobertura previdenciária, evidenciavam-se as desigualdades no acesso quantitativo e qualitativo entre as diferentes clientelas.

No final de 1970, diversos setores da sociedade iniciaram um questionamento sobre o sistema de saúde, na busca por um atendimento mais igualitário e menos excludente, gerado pela insatisfação popular. Há um crescimento em número e intensidade de denúncias da área da saúde e organização da sociedade que reivindicavam a reforma do setor de saúde. Surge então o Movimento Sanitário, configurado como um grupo restrito de intelectuais, médicos e lideranças políticas do setor saúde provenientes do Partido Comunista Brasileiro, difundindo o pensamento crítico da saúde.

Portanto, a Reforma Sanitária tinha como propostas: a criação de um sistema único, com predomínio do setor público, a descentralização, a participação e controle da população e a readequação financeira. Tais propostas visavam alcançar uma redistribuição mais equitativa do cuidado à saúde da população (GERSCHMAN, 1995).

Em decorrência dos avanços nessa área, é elaborado e implementado em 1987 o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), um convênio entre o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social32 (INAMPS) e os governos estaduais. Suas proposições vieram ao encontro dos vários debates que estavam ocorrendo em relação ao setor de saúde, o que resultou na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) aprovando a criação do SUS (BRASIL, 1990), reconhecendo a saúde como um direito a ser assegurado pelo Estado e pautado pelos princípios 3 Anteriormente, a assistência médica estava a cargo do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social ficando restrita aos empregados que contribuíssem com a previdência social; os demais eram atendidos apenas em serviços filantrópicos.

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de universalidade, equidade, integralidade e organizado de maneira descentralizada, hierarquizada e com participação popular.

O conceito de saúde foi por muito tempo entendido como ausência de doenças, onde os sistemas de saúde possuíam como características práticas centradas no adoecimento, marcadas por medidas pontuais e fragmentadas. O SUS amplia este conceito quando concebe promoção, intersetorialidade, integralidade e interdisciplinaridade através da articulação das ações de saúde e com outros setores do município – como educação, meio ambiente, segurança, geração de renda e emprego, entre outros –, elevando a qualidade de vida da população e garantindo sua cidadania.

No contexto brasileiro, até 1988, a saúde era um benefício previdenciário, um serviço comprado na forma de assistência médica ou uma ação de clemência oferecida à parcela da população que não tinha acesso à previdência ou recursos para pagar assistência privada. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a criação do SUS, esse cenário mudou, sendo garantido legalmente o acesso da população aos serviços públicos de saúde.

Contudo essa mudança na conjuntura é de grande complexidade, sendo marcada por avanços e retrocessos os quais se deram por meio de enfrentamentos ao modelo vigente, desempenhado pelas forças reformistas tais como os movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos progressistas, intelectuais e a própria sociedade.

Assim, desde o início da implantação das políticas de saúde, havia interesses econômicos e políticos. No início da década de 90, o projeto na área da saúde passa a ser voltado para o mercado, assistindo-se o redirecionamento do papel do Estado, influenciado pela Política de Ajuste Neoliberal (BRAVO, 2006, p. 13). Esses percalços fizeram com que as ações voltadas para a saúde, inclusive as que estão previstas constitucionalmente, não fossem plenamente efetivadas.

A afirmação das contrarreformas de cunho neoliberal, iniciada na década de 1990, defendidas pelas agências internacionais, onde o projeto do grande capital tem como vetores privilegiados a defesa do processo de privatização e a constituição do cidadão consumidor (MOTA, 1995), afetou a realização de ações na área da saúde.

as políticas de saúde desenvolvidas nos anos 80 deram-se num contexto de luta política, ideológica e técnica entre dois projetos alternativos: o da Reforma Sanitária e o neoliberal.

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O primeiro conforma e inscreve na legislação boa parte de um ideário democrático da saúde. O segundo, tendo como pano fundo o fenômeno da “universalização excludente”, hegemoniza-se à custa de sua dinâmica própria e de mecanismos de racionamento. O principal deles é a inquestionável queda de qualidade do subsistema público de saúde (MENDES, 1999, p. 93).

No processo de privatização ocorrido no projeto neoliberal, ressalta-se a mercantilização da Saúde e da Previdência e a ampliação do assistencialismo. As principais diretrizes são: a Reforma da Previdência inserida no bojo da Reforma do Estado, que vem sendo implantada paulatinamente e possui características de uma contrarrevolução (GUERRA, 1998) ou contrarreforma e a defesa do SUS para os pobres e a refilantropização da assistência social, com forte expansão da ação do setor privado na área das políticas sociais.

Assim, ocorre a segmentação do sistema, com ênfase nas ações privadas que passam de complementares para essenciais, incidindo o contrário do que está previsto na legislação do SUS em sua Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, artigo 4°: “A iniciativa privada poderá participar no SUS, em caráter complementar” (BRASIL, 1990).

Apesar de as propostas do Movimento da Reforma Sanitária terem sido estabelecidas em forma de legislações anteriormente citadas, não houve uma real efetivação pela garantia dos direitos da população, principalmente no que diz respeito ao acesso universal a saúde.

Contudo, a construção e consolidação dos princípios da Reforma Sanitária permanecem como desafios fundamentais na agenda contemporânea do setor saúde, onde a população possui um importante papel, ao exemplo das conquistas realizadas no setor da saúde ao longo dos anos, para que se possa obter um sistema público de saúde conforme os ditames da Constituição Cidadã.

Política de saúde mental no Brasil

Nas últimas décadas, vem sendo delineada, no Brasil, uma transformação do modelo assistencial em saúde mental, a partir da implantação de novos dispositivos de atenção psicossocial, apesar de ainda se configurarem como alternativos ao modelo tradicional. Por modelo tradicional entende-se todos os modos de cuidado centrados em

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uma prática clínica que objetiva unicamente a remissão dos sintomas, desconsiderando que portador de sofrimento psíquico é um sujeito possuidor de desejos, necessidades e com características singulares em seu sofrimento psíquico.

Nos últimos anos do século XX a assistência centrada no hospital psiquiátrico e pautada na perspectiva de isolamento do diferente ganhou grande ênfase. Foucault, em seu livro A História da Loucura (1972), descreve em diversos momentos da história o lugar ocupado pelo louco na sociedade, sendo que a loucura não era entendida como uma doença, mas como a revelação divina. Durante a Antiguidade e idade média, o louco circulava sem grandes preocupações na sociedade e a intervenção do Estado se dava em assuntos pontuais, como por exemplo, em casamentos.

Porém, no século XVII, dá-se o enclausuramento da loucura através do afastamento dos então denominados doentes mentais da sociedade, sendo que a loucura estava estreitamente ligada a uma ameaça ao mundo dos ditos “normais” e, consequentemente, o manicômio era o lugar dos “insanos”, tendo como função a organização e o estabelecimento de métodos de controle das condições insalubres e de contaminação e como um local terapêutico e de predomínio da medicina, ocupando o lugar dos religiosos na sua administração (DIAS, 1997).

Assim, o tratamento oferecido aos denominados “loucos” teve, por muito tempo, como único recurso o hospital psiquiátrico. Este se constitui em um lugar de violência, morte, silenciamento, humilhação, estigma, segregação, desrespeito aos direitos humanos, exclusão social e ausência de direitos. No modelo manicomial, a instituição com suas rotinas e protocolos torna o sujeito passivo, paciente, ficando desprovido de liberdade, cidadania, convivência (DALMOLIN, 2006).

O hospital psiquiátrico configura-se assim como uma instituição total (GOFFMAN, 1961), regula a vida dos sujeitos internados sob uma única autoridade, estabelecendo uma reorganização social para atender os objetivos institucionais desencadeando um processo de deterioração da identidade e individualidade. Os indivíduos ficam presos a um sistema que não possui práticas de saúde voltadas para a promoção da saúde ou tratamento, anulando qualquer possibilidade de interação social com o mundo exterior ao hospital psiquiátrico.

Nesse contexto, emerge na Europa, nos anos 60, o movimento da Reforma Psiquiátrica tendo como objetivo a desinstitucionalização

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dos sujeitos internados em manicômios, ou seja, a superação gradual da internação nos manicômios através da criação de serviços na lógica da inserção social. Já no Brasil, organizou-se o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental em 1970, com o intuito de uma nova lógica de atenção em saúde mental, baseada nos princípios do SUS (VASCONCELOS, 2006).

Nesse cenário, em que diversos segmentos da sociedade iniciam uma crítica ao modelo de tratamento oferecido em hospital psiquiátrico, ao portador de sofrimento psíquico e, através de movimentos significativos ocorridos nas Conferências Nacionais, cria-se a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei Federal 10.216, de 06 de abril de 2001), sendo o Rio Grande do Sul o primeiro Estado Brasileiro a promulgar a Lei 9.716 em agosto de 1992 que trata da Reforma Psiquiátrica.

A Lei da Reforma Psiquiátrica reforça o estabelecimento de uma rede de atenção integral em saúde mental em que sejam respeitados os princípios de equidade, integralidade e humanização, sendo composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência, Ambulatórios de Saúde Mental, Hospitais Gerais, Atenção Básica, entre outros. Essa rede de atenção à saúde mental é também composta por atores que contribuíram em seu processo de implantação: os trabalhadores dos serviços que compõem a rede, os familiares e/ou cuidadores e os próprios portadores de sofrimento psíquico.

A rede de atenção à saúde mental deve prever o estabelecimento de relações profissionais coerentes e eticamente comprometidas com os interesses dos usuários, como refere Iamamoto (2001), é condição essencial no sentido do fortalecimento do protagonismo dos usuários e avanço da organização social e formação da consciência crítica destes.

Conforme a Lei da Reforma Psiquiátrica, os serviços substitutivos em saúde mental encontram-se integrados, como uma rede em que se entrelaçam seus fios para atingir um objetivo em comum, a substituição da internação em hospital psiquiátrico por um tratamento em locais de base comunitária que respeite a autonomia do sujeito em sofrimento psíquico.

Nesse sentido, acredita-se que o atendimento realizado nesses serviços deve ser desenvolvido por uma equipe interdisciplinar, entendendo o sujeito em sua singularidade e complexidade, com a

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perspectiva de que o profissional trabalhador na área da saúde mental deve contribuir para que haja um processo de cuidado considerando a subjetividade do sujeito.

Estamos sempre mais convencidos de que o trabalho terapêutico seja este trabalho de desinstitucionalização voltado para reconstruir as pessoas como atores sociais, para impedir-lhes o sufocamento sob o papel, o comportamento, a identidade estereotipada e introjetada que é a máscara que se sobrepõe à dos doentes. Que tratar signifique ocupar-se aqui e agora para que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento do paciente e que ao mesmo tempo se transforme a sua vida concreta cotidiana (ROTELLI, 1990, p. 94).

A desinstitucionalização é um processo que tem como palavra-chave o conceito de desconstrução, não só dos manicômios, como também dos saberes e das estratégias, todos referidos ao objeto abstrato, ou seja, à doença (ROTELLI 1990). Nesta perspectiva, transformam-se os modos como as pessoas são tratadas, e o objeto deixa de ser a doença e passa ser a existência – sofrimento do indivíduo e sua relação com o corpo social, portanto, a ênfase não se centra mais no processo de cura e sim no projeto de “invenção de saúde”. O olhar passa a ser direcionado à pessoa, sua cultura e vida cotidiana, tornando-se essa o objetivo do trabalho terapêutico e não mais a doença.

De tal modo, o sujeito portador de sofrimento psíquico e sua família devem receber um suporte da rede de atenção à saúde mental, com o objetivo de um atendimento permanente visando à efetivação da atenção integral, bem como a necessidade de cuidado, por parte da equipe de saúde com o grupo familiar, sendo que o sentimento de pertencimento em relação a essa rede tem a função de referência, segurança e afeto entre os sujeitos.

Dessa forma reitera-se que o efetivo exercício de cidadania requer uma concepção e uma vivência de cuidado para além do acesso a um conjunto de serviços. A participação ativa e crítica coloca os sujeitos na condição de protagonistas do processo de concepção dessa rede de atendimento.

a existência de um cidadão ativo, qualificado não apenas para controlar de modo passivo a gestão, mas também para interferir nela, direcioná-la, submetê-la a sua vontade. A gestão assim configurada mostra-se capacitada para se responsabilizar por

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seus atos e decisões, ao tempo que admite ser responsabilizada pela população e a responsabilizar o conjunto do aparelho do Estado (NOGUEIRA, 2005, p. 46).

Desse modo, as ações em conjunto dos profissionais de saúde, familiares, sociedade e usuários são importantes no que se refere ao tratamento dos portadores de sofrimento psíquico para o resgate de sua cidadania, enfatizando uma gestão democrática e participativa.

Caminhos percorridos

Esta pesquisa foi orientada pelo método dialético-crítico, que, segundo Kosik (1995, p. 15), “a dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a ‘coisa em si’. Entretanto, a realidade não se manifesta, se revela de forma imediata devido a complexidade dos fenômenos”. As categorias do método utilizadas foram a historicidade, a totalidade e a contradição e como categorias temáticas têm-se o processo da Reforma Psiquiátrica, a Política de Saúde Mental e o sofrimento psíquico. O tipo de estudo é qualitativo, pois “os estudos qualitativos podem ser definidos como aqueles que trabalham com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações” (MINAYO, 2000, p. 21-22).

Na etapa de coleta de dados foi utilizada uma pesquisa exploratória do tipo bibliográfica e de campo e como técnica utilizou-se: análise documental, observação sistemática e história oral temática. Escolheu-se a história oral temática porque se pretendeu pesquisar sobre um período específico da vida dos sujeitos pesquisados, ou seja, sobre sua utilização da rede de saúde mental, considerando as vivências de internação e tratamento, a partir do processo da Reforma Psiquiátrica, assim, foram entrevistados sujeitos com internações psiquiátricas anteriores e posteriores ao ano de 1992 (data em que se iniciou o processo da Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul), seu familiar ou cuidador, profissionais de hospital psiquiátrico e de serviços da rede de atenção à saúde mental.

Entende-se que a história oral se configurou como uma técnica adequada a essa pesquisa na medida em que “implica a percepção do passado que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado no presente imediato das pessoas é razão de ser da história oral” (MEIHY, 1998, p. 13). Como se pretendeu

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conhecer as vivências dos atores a partir da implantação da Reforma Psiquiátrica, então passado e futuro tiveram sua razão nesta pesquisa.

Foi utilizada a análise de conteúdo dos dados qualitativos (CHIZZOTTI, 1995) e, para que os aspectos éticos fossem resguardados, os sujeitos participantes, na ocasião da entrevista, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Vivências dos Atores Frente aos Processos Desencadeados pela Reforma Psiquiátrica

A vida não é aquilo que uma pessoa viveu,mas sim como ela recorda e como a recorda

para contá-la. Gabriel García Márques

Após a análise dos dados elegeram-se categorias e, para melhor visualizá-las, organizou-se um quadro especificando as categorias elencadas para cada ator envolvido na pesquisa.

Quadro 1 – Categorias de Análise da pesquisa

Portador de sofrimento psíquico Profissional do hospital psiquiátrico

AutonomiaCidadania

ConfinamentoCompromisso

HistóriaMudança

Privação de direitosRede

Solidão

AutonomiaCidadania

ConfinamentoDificuldade

HistóriaInvenção

Privação de direitosRede

Profissional de referência/cuidador Profissional da rede

Autonomia Apoio

CompromissoHistória

InvençãoMudança

Rede

AutonomiaCidadania

DificuldadeConfinamento

HistóriaMudança

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Fonte: elaboração da Autora.

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Tais categorias se expressam no conjunto das falas presentes nas diversas unidades de análise, compondo os subcapítulos a seguir: o primeiro nomeado como “Das correntes...”, o segundo como “... às portas abertas” e o terceiro intitulado “Para as portas continuarem sendo abertas”.

Das correntes...

Já foi comemorado aqui aniversário de paciente de 102, 103 anos. Você imagina uma vida, uma vida. Então por um lado é uma glória para o hospital porque se percebe assim o quanto são bem cuidados, que duram até essa idade. Por outro lado, se pensar na vida dessa pessoa, é uma vida sem direitos na minha opinião. Bom... é muito engraçado... é uma vida sem direitos e ao mesmo tempo o paciente está tendo um direito seu, de ser cuidado. A questão é: que forma? É a forma de ser cuidado (Profissional do Hospital Psiquiátrico).

O fragmento denuncia a complexidade que há em discutir o sofrimento psíquico e suas formas de tratamento. O sofrimento psíquico sempre foi visto como um desvio em relação a um padrão de comportamento preestabelecido do que seja normalidade, tanto pela sociedade em geral como pela ciência. Considerado desviante, a solução historicamente encontrada foi o afilamento como forma de contê-lo.

Aqui era ruim, para morar aqui não dá, aqui é ruim [referindo-se ao hospital psiquiátrico]. A gente passa a semana toda, às vezes chega fim de semana sozinha, não tem nada aqui, é muito parado [...] era fechado, antigamente a gente não andava no pátio, não podia andar no pátio, era tudo fechado assim no pátio, não podia sair do pátio (Yasmin).

O relato anterior é de uma pessoa egressa de hospital psiquiátrico, sujeito da pesquisa, que aqui tem o nome fictício de Yasmin43 e atualmente, em função da implantação da Lei da Reforma Psiquiátrica e seus dispositivos, reside em sua casa. Sua fala evidencia o confinamento, a exclusão, a perda de autonomia, de liberdade, dos direitos civis, políticos e jurídicos e o poder institucionalizante exercido em hospital psiquiátrico.

Segundo dados contidos em seu prontuário, Yasmin possui 56 anos, teve sua primeira internação em hospital psiquiátrico na

4 Nome de origem árabe, significa flor branca. Nasceu para ser feliz. Transpõe todas as barreiras.

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década de 1960 e seguiu tendo internações até sua vida adulta, num total de aproximadamente 34 internações. Na década de 1990 passou a residir em uma unidade de moradia no hospital psiquiátrico, permanecendo nessa por nove anos.

A longa permanência em internação em hospital psiquiátrico foi uma prática muito comum utilizada, sendo que as pessoas que por ela passaram ficaram com as marcas registradas em suas memórias para o resto da vida.

No hospital psiquiátrico, o desejo de normatização é explícito, escancarado: a arquitetura, a separação entre sexos, a onipresença do regulamento, a ruptura dos laços familiares e de vizinhança, o controle rígido do tempo, as relações de poder, tudo está a serviço de reprogramação completa da existência, em virtude das exigências da ordem e da disciplina (MELMAN, 2006, p. 56).

Yasmin, ao contar a história de sua vida, no que diz respeito às suas internações, delineia particularidades que expressam seu sofrimento e solidão frente ao sofrimento psíquico.

Eu só sei que eu comecei a baixar... eu baixava, passava uma semana em casa, daqui a pouco eu já estava de volta [referindo-se ao hospital psiquiátrico] [...] Os primeiros dias eu chorei muito, depois eu queria ir embora. Depois daí não... Eu chorei uns dois, três dias eu chorei, chamava pelo meu pai. Depois eu acabei ficando ali. Aí foi indo... passou aquela choradeira. Aí foi indo, foi indo. Comecei a participar das atividades, me levavam, me traziam. (Yasmin)

Yasmin explica com detalhes como foi seu processo de institucionalização no hospital psiquiátrico e, ao descrever seus sentimentos e vivências, principalmente na expressão “foi indo, indo”, anuncia e denuncia o processo de naturalização da institucionalização. Era um tempo em que os indivíduos internados em hospital psiquiátrico não tinham a perspectiva de retornar ao convívio social. “O isolamento do sujeito doente é a peça-chave do dispositivo institucional que, além de neutralizar o recluso, estabelecendo uma relação pedagógica e disciplinadora, circunscreve uma espécie de laboratório social e sanitário” (MELMAN, 2006).

A história de Yasmin esboça um passado de privação de seus direitos nos mais diversos âmbitos de sua vida, aliada à solidão e exclusão

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por ela vivenciada na situação de interna em um hospital psiquiátrico. Porém, com a Reforma Psiquiátrica, Yasmin pode vivenciar o processo das portas abertas, termo aqui utilizado para designar um novo olhar dirigido à área da saúde mental e aos portadores de sofrimento psíquico.

... Às portas abertas

quando completou um mês daí eu estava trabalhando aqui com as coisas, aí que eu cheguei em casa assim, olhei para o chão, que eu vi uma conta ali, eu digo: meu Deus pela primeira vez eu tenho uma responsabilidade de pagar uma conta. Aí eu não sabia se eu ria ou chorava de felicidade.

O relato anterior é um episódio que aconteceu na vida de Yasmin. Na ocasião fazia um mês que a mesma estava morando em uma casa fora do hospital psiquiátrico, não sendo mais moradora do mesmo. Essa fala traz a história viva do processo de sofrimento psíquico vivenciado por inúmeras pessoas que têm diante de si o estigma da loucura.

Segundo registro no prontuário e na memória dos atores envolvidos nesse processo através do acompanhamento de Yasmin no hospital psiquiátrico, a mesma no final da década de 1990 vincula-se a um projeto-piloto criado dentro do hospital chamado de casa de passagem, como um dispositivo da Reforma Psiquiátrica, no intuito de “preparar” os internos do hospital para morar fora dele. Nessa etapa alguns trabalhadores engajaram-se nesse movimento podendo “inventar” intervenções mais humanizadas no cuidado a pessoas que já estavam na condição de morador neste hospital, sem vínculo algum com o mundo dos extramuros.

então foi um período de muito trabalho, apesar de serem poucos pacientes na época foi muito intenso, porque tudo era muito novo pra todo mundo. Ter que abrir estas portas do hospital, para botar os pacientes lá para a rua para aprender a conviver (Profissional de referência de Yasmin).

com a implantação da reforma [referindo-se a Reforma Psiquiátrica] eu acho que as coisas se direcionaram para isso, de criar maior autonomia dos pacientes, a questão de voltar para casa, de alta dos pacientes. (Profissional da rede)

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O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) foi outro disparador utilizado na trajetória de Yasmin na efetivação da Reforma Psiquiátrica.

A definição dos SRT deixa claro que se trata de uma modalidade institucional de saúde para a inclusão social de sujeitos que, por longos anos de suas vidas, por serem portadores de um transtorno mental, foram segregados e isolados da sociedade. (DIAS, 2007, p. 163).

Após Yasmin morar no SRT por algum tempo, ela enfim conseguiu realizar seu desejo de residir em sua casa própria fora do hospital e, a partir desse momento, o hospital psiquiátrico abriu as portas para ela, uma nova vida começara agora como moradora da cidade. A partir dessa conquista, Yasmin teve como desafio recomeçar sua vida de uma maneira mais independente, longe da rigidez por ela vivenciada em suas internações psiquiátricas, sendo seu profissional de referência ator importante nesse objetivo através de anos de acompanhamento a Yasmin nas tarefas de vida diária. Yasmin passou a acessar a rede de atenção à saúde mental por meio de um Ambulatório Especializado, onde possui atendimento psiquiátrico e o Posto de Saúde de sua comunidade que atende a suas demais necessidades.

Observa-se que a construção da autonomia, cidadania, liberdade e compromisso em um processo protagonista a fim de que aqueles sujeitos pudessem viver fora do hospital foi a peça-chave para retomada de suas vidas, porém as mudanças nem sempre acontecem no ritmo esperado.

eu acho assim que teve uma melhora [a partir da Reforma Psiquiátrica]. Acho assim a proposta é muito boa, mas só que a implantação é mais demorada do que a gente gostaria [...] na verdade hoje em dia tem que esse investir ao contrário, não chegar até a internação. (Profissional da rede)

Outra dificuldade enfrentada para a consolidação dos objetivos da Reforma Psiquiátrica é a falta de investimentos na área da saúde mental.

Porque verba para doentes mentais é difícil de conseguir, a gente diz popularmente é um saco sem fundo, não aparece nunca o trabalho que a gente faz [...] já evoluiu, apesar de que agora a gente está num retrocesso, tem os avanços e os retrocessos. Nesse momento em minha opinião, é um momento de retrocesso. A saúde mental está apagada, é muito da questão da... política. É muito, tem muito a ver com a política. Muito

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a ver. E neste momento politicamente não tem, não está tendo interesse e nem investimento para a saúde, muito menos mental. (Profissional do hospital psiquiátrico)

Essa falta de investimentos repercute na implantação dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, tornando esse processo mais lento que o desejável. Contudo, a maior dificuldade enfrentada pela sociedade e trabalhadores da área da saúde mental resume-se neste relato da profissional do hospital psiquiátrico.

Eu acho que a pior parte entre nós, foi difícil, foi a abertura dos manicômios mentais, foi a questão da sexualidade e da saída de dentro dos muros [...] esses grandes manicômios que estão dentro da nossa cabeça, essa é a questão. O fechamento do manicômio inclui a nossa cabeça, nosso pensamento, uma mudança de ideologia, uma mudança de paradigma.

Para as portas continuarem sendo abertas

Algumas proposições advindas a partir da análise dos achados da pesquisa merecem destaque apresentando possíveis ações na área da saúde mental. Essas proposições são voltadas para todos aqueles que possuem um envolvimento no campo da saúde mental: usuários, familiares, trabalhadores, estudantes, pesquisadores e gestores.

Para que as portas possam seguir sendo abertas, são elaboradas estratégias nos vários momentos da pesquisa, ou seja, na parte teórica onde se trouxeram dados históricos e atuais a partir de documentos oficiais que tratam sobre a temática de saúde e, mais especificamente, saúde mental e na pesquisa de campo, onde se depara com a realidade através da fala das pessoas.

Desse modo, observou-se: a necessidade de maior investimento financeiro e político à rede de atenção à saúde mental para sua ampliação e manutenção, acelerando, assim, o que é preconizado na Lei da Reforma Psiquiátrica, ou seja, a gradual extinção dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos assistenciais e a necessidade da ampliação de recursos humanos nesses serviços; a constante qualificação nos serviços de saúde através da Educação Permanente com o trabalho articulado entre o sistema de saúde, em suas esferas de gestão, e as instituições formadoras e o estímulo à população a pensar

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sobre o sofrimento psíquico com ações de mobilização e sensibilização no meio comunitário através de atividades como campanhas abordando a temática sobre a Política de Saúde Mental no sentido de desmistificar e desestigmatizar o sofrimento psíquico e seus tratamentos.

Reflexões finais

Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou

construir um castelo.Fernando Pessoa

Construir um castelo, casa, casebre, cabana ou, então, construir um espaço na sociedade enquanto cidadão, sujeito possuidor de deveres e direitos, é uma conquista importante na vida do portador de sofrimento psíquico. As pedras no caminho podem ser realmente objetos palpáveis, mas também podem ser invisíveis ao olho humano, mas que deixam marcas tanto quanto a rocha dura encontrada no caminho percorrido: o preconceito, o estigma, a exclusão, o isolamento, a frustração, o rechaço.

Para que a mudança na assistência ao portador de sofrimento psíquico pudesse acontecer, foi necessário um movimento da população para que a Política de Saúde Mental ganhasse força adentrando os resistentes muros dos hospitais psiquiátricos e seus saberes instituídos e, assim, começar a quebrar as correntes e abrir as portas para um novo modelo de atenção à saúde mental.

Assim, a Política Nacional de Saúde Mental pactua com os princípios do SUS, dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas em sofrimento psíquico e redirecionando o modelo assistencial em saúde mental, através da progressiva diminuição de leitos em hospitais psiquiátricos, até sua extinção, substituindo esse atendimento pela rede de atenção à saúde mental. Essa rede é composta por serviços localizados em meio comunitário, sendo que o caráter interdisciplinar das equipes que integram esses serviços é extremamente necessário.

A realização dessa pesquisa possibilitou concluir que as ações na área da saúde mental já avançaram significativamente, deixando marcas positivas nas pessoas que dela se beneficiaram, porém precisam continuar progredindo, pois ainda não há alcance a todas as pessoas. Algumas portas

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já se abriram, outra ainda não, com isso, destacaram-se as contribuições da pesquisa em forma de proposições no intuito que a Política de Saúde Mental possa continuar avançando: investimento financeiro e político, ampliação dos recursos humanos nos serviços de atenção à saúde mental, educação permanente e ações globais em saúde mental.

Destarte, muito já se fez, porém há ainda um longo e importante trabalho a ser feito, que não compreende somente as ações dos gestores, mas da população como um todo e assim, de pedra em pedra recolhida no caminho, o castelo pode enfim ser construído coletivamente.

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OS FILHOS DA AIDS: CONTANDO HISTÓRIAS DE VIDA1*

Luciana Basile SilvaKelinês Gomes

Maria Isabel Barros Bellini

Ninguém acorda e decide trabalhar com AIDS. Isso é um processo. Algo que nos sensibiliza, mexe com nossos sentimentos, nossos princípios, e que nos faz rever conceitos. Minha aproximação com a temática aconteceu ao trabalhar no sistema penitenciário, quando me preocupava com as mulheres soropositivas que saíam no final de semana, ou que se foragiam do regime semiaberto, e consequentemente interrompiam o tratamento antirretroviral.

Buscando mais conhecimento, decidi fazer a Residência Integrada em Saúde na Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul, o que me aproximou de histórias e situações que jamais imaginaria. Durante dois anos, o CTA2 foi um espaço de grande aprendizado e uma experiência ímpar na minha vida profissional e pessoal. Esse processo de formação e trabalho nessa área mobilizou a realização de pesquisa no curso de mestrado em Serviço Social na PUCRS, nessa mesma temática.

O impacto do diagnóstico, as dificuldades, os preconceitos. Lembro quando, numa tarde, um menino que aparentava uns 10 anos estava no corredor, sozinho. Depois de atender alguns pacientes, perguntei o que ele esperava. Ele me respondeu: “não sei... eu tinha consulta com a pediatra, mas ela disse que não sou mais criança... me mandaram falar com o médico, mas ele disse que não sou adulto”. O menino chamava-se Pedro.3 Tinha 14 anos, soropositivo, contaminado durante a gestação. Extremamente tímido, falou pouco. Contou-me apenas que a mãe tinha morrido, seu pai também. Perguntei se ele sabia o motivo de vir às consultas. Respondeu que não. Solicitei que retornasse, acompanhado por um familiar, e remarquei a consulta. Alguns dias depois, Pedro retornou, conforme combinamos, acompanhado pela tia. Para minha surpresa, sua tia Ana esteve reclusa na época em que eu trabalhava no presídio. Estava em liberdade condicional. 1 Artigo baseado na dissertação de mestrado intitulada Os filhos da AIDS: contando histórias de vida, orientada pela professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini, concluída em 2009.2 Centro de Testagem e Aconselhamento em HIV/AIDS.3 Nomes fictícios.

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Ana também é soropositiva. Tem quatro filhos e passou a cuidar dos três sobrinhos depois que a irmã morreu em consequência da AIDS. Dos irmãos e primos, Pedro era o único que tinha o vírus. Naquele dia, Ana me disse que Pedro sabia que tinha AIDS, porém nunca conversaram abertamente, pois, segundo ela, “ele não entende, é muito criança”. Isso me incomodou. Pedro não era reconhecido, nem pela família e nem pelos profissionais de saúde como adolescente.

Durante muito tempo, os esforços para combater a epidemia dirigiram-se à prevenção e à sobrevida de quem já estava contaminado. Porém, algo não foi esperado: a existência de uma primeira geração de adolescentes contaminados pela transmissão vertical muda todo o curso da epidemia.

Apesar de reconhecida, a transmissão do HIV ainda demonstraria todo seu impacto e atualmente algo começa a se desenhar na história. As crianças contaminadas por transmissão vertical cresceram, e ninguém, antes delas, sobreviveu para contar como é nascer e crescer com AIDS. No começo dos anos 80, os bebês infectados por transmissão vertical não tinham grandes perspectivas de vida. Aproximadamente trinta anos depois da descoberta da AIDS e 20 anos após o surgimento do AZT,4 o remédio pioneiro contra a doença, a primeira geração contaminada através da transmissão vertical chegou à adolescência.

Esses adolescentes começam a definir sua própria identidade, ensaiam uma escolha profissional e experimentam o sexo. Nesse período de passagem, enfrentam um desafio a mais do que para a maioria dos jovens: a AIDS, ainda carregada de mitos, associada à morte, ao preconceito e ao isolamento social. Soma-se a isso o fato de que, em geral, já órfãos, lidam com os sofridos efeitos colaterais do tratamento (hoje à base de um coquetel que combina até 17 drogas de uso oral e também medicação injetável), e com o dilema de revelar ou esconder sua condição sorológica. Se foram uma incógnita para a medicina, sem saber como se desenvolveriam, e quanto tempo resistiriam, eles agora dão uma resposta para a ciência: sobreviveram e podem levar uma vida normal.

Porém, “levar uma vida normal” em uma sociedade que busca a culpa do outro, que julga e condena, torna-se um desafio. A AIDS ainda é uma doença que desperta um olhar extremamente estigmatizante, ligado ao comportamento e aos princípios de cada um,

4 ZIDOVUDINA, fármaco utilizado no tratamento da AIDS.

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o que faz com que os adolescentes escondam sua condição sorológica como forma de proteção, buscando aceitação na sociedade, que ainda trata a AIDS com preconceito, atribuindo-lhes o status de estranhos, como salienta Bauman (2005).

Para este estudo, foram utilizados dois autores: Bauman e Morin. Esses autores, apesar de abordarem visões diferenciadas, serviram para embasar meu conhecimento a respeito do fenômeno estudado. Em seus livros “ácidos”, Bauman me inquietou e também, muitas vezes, parecia escrever para mim. A cada livro, a cada página, havia a sensação de encontrar uma ferramenta para discutir e situar a pesquisa. Porém, na maioria das vezes, em seus textos, Bauman passava a ideia de que não havia possibilidade de mudança e que estamos condenados a viver em uma sociedade perversa. E é aqui que utilizo Morin para resgatar o que “não teria jeito”. Dessa forma, a complexidade não está presente neste artigo apenas como um referencial, mas como uma escolha para a vida, escolha que me auxilia a compreender os fenômenos a partir de um universo mais amplo, com diversas articulações e que rompe com um paradigma cartesiano de simplificação.

Para investigar como a AIDS repercute na vida de quem nasceu com o vírus, é necessário explicitar a problemática em estudo. Assim, discorro sobre alguns aspectos acerca da AIDS, dentro da sociedade atual, e também apresento a história da transmissão vertical: via pela qual os adolescentes desta pesquisa se contaminaram.

Ao se falar em AIDS, automaticamente pensamos na existência de excluídos, eleitos por uma sociedade regada de preceitos e regras, na qual quem não “se ajusta”, é visto como diferente. Conforme Baumam (1998),

todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo – em um desses mapas, em dois ou em todos os três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo em que fazem atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteiras que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses estranhos (BAUMAN, 1998, p. 27).

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E é nesse contexto complexo, no qual a sociedade produz e reconhece como estranhos pessoas com doença mental, com deficiências, homossexuais, entre tantos outros, que discuto a AIDS: uma doença carregada de preconceitos e esteriótipos, reforçada por quem busca no outro a culpa do que “não é certo”. O surgimento da AIDS e sua associação com uma conduta sexual desviante, uso de drogas e morte, fez com que essa nova doença assumisse o papel de castigo para os transgressores de alguns valores morais.

Com o passar do tempo, a epidemia alastrou-se rapidamente, atingindo outras camadas populacionais até então “livres”, como o caso de indivíduos heterossexuais com relacionamentos estáveis. Assim, viu-se que a AIDS não pertence a um ou outro grupo, mas o desconhecimento, aliado ao imaginário coletivo que acompanha a síndrome, reforça inúmeros estigmas refletidos no isolamento e no anonimato que cerca muito de seus portadores. A mídia divulgou amplamente tais estereótipos, contribuindo com a incorporação no imaginário da população. Tais sentimentos foram e ainda são reforçados na sociedade em que vivemos, pois essa determina quem são os “estranhos”, quem está dentro e quem está fora, o que determina padrões e valores.

Na sociedade atual, as pessoas, antes de serem sujeitos, são mercadorias (BAUMAN, 2008), o que contribui para a fragilidade dos laços humanos, o que torna as relações cada vez mais “flexíveis” (BAUMAN, 2004). Soma-se ainda o fato de que, ao darmos prioridade aos relacionamentos virtuais em “redes” – que podem ser tecidas ou desmanchadas com igual facilidade e frequentemente sem que isso envolva nenhum contato físico –, não saibamos mais manter laços a longo prazo.

As relações estão mais frágeis, e passamos a descartar as pessoas com maior facilidade. E é nessa configuração que convivemos com a AIDS, que em sua caracterização inicial é uma doença contagiosa, incurável, mortal e relacionada principalmente à homossexualidade, associada a vários estigmas e preconceitos advindos das percepções das pessoas frente à morte, à contaminação e à sexualidade (PARKER, 1994).

Nos últimos anos, é possível dizer que a AIDS mudou, se reconfigurou. A morte, algo dado como certo no início da epidemia, hoje é mais distante graças ao tratamento cada vez mais eficaz. E é por essa evolução, no tratamento medicamentoso, que uma geração

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de crianças nascidas com HIV, na década de 80/90, hoje chega à adolescência. Em uma fase já conturbada por si só, esses adolescentes carregam um desafio a mais: a AIDS, impregnada de mitos, associada à morte e ao isolamento social.

Mas o que é ter AIDS? Ou melhor: o que significa ter AIDS hoje? A AIDS não tem cura, mas tem tratamento. Quais as consequências do tratamento? Qual o perfil das pessoas que têm AIDS hoje? Os serviços de saúde estão preparados para atender esses indivíduos?

Para responder a essas questões, é necessário recorrer à história. Tudo começa nos anos 80, época em que a Medicina acreditava na eficácia das vacinas e dos remédios. Aos poucos, as doenças virais e bacterianas vinham sendo vencidas pela medicina: tuberculose e hanseníase. Tais doenças fizeram inúmeras vítimas e deixaram um rastro de preconceito e sofrimento. Elas já estavam saindo da percepção das pessoas como doenças incuráveis, e entrando nos registros da história. Surge então a AIDS: e a sociedade se vê novamente diante de uma doença infectocontagiosa fatal e sem perspectivas de cura.

E, em um movimento equivocado, a humanidade, no século XX, retrocede ao século XVII, e volta a discutir o destino dos infectados pelas pestes (PAIVA, 1992). Em seu livro, Paiva (1992) fala da importância, na época, de combater a lepra e o leproso,

nota-se, em primeiro lugar, que o combate é fundamentalmente ao leproso enquanto portador de um mal em última instância incurável e altamente contagioso. São pessoas lazarentas que devem ser atingidas pelo plano de combate: elas devem ser retiradas do convívio do resto da população da cidade [...] é preciso impedir que a cidade pereça! (PAIVA, 1992, p. 79).

Apesar dos avanços científicos, a história se repete no que diz respeito ao tratamento com o ser humano. Novamente, desta vez nos anos 80, houve uma preocupação sobre onde seriam atendidos (ou depositados?) os doentes da nova peste: a AIDS. Assim, os “estranhos” começam a ser produzidos.

Podemos perceber que, apesar da AIDS já ter completado mais de 30 anos de existência, da evolução dos fármacos utilizados no seu tratamento, do conhecimento cada vez mais claro do funcionamento do vírus no organismo, o diagnóstico, até os dias atuais, ainda provoca reações similares às reações relatadas no passado, época em

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que descobrir ser soropositivo era uma situação que represento pelas equações: AIDS = morte e AIDS = estigma de promiscuidade.

Com tais associações, é impossível desconsiderar o impacto que o diagnóstico positivo causa na vida de um indivíduo. A ideia de “doença incurável e morte” inevitavelmente se constrói no imaginário de quem se descobre portador do vírus HIV. A angústia, o desespero, a sensação de impotência e a ideia de incurabilidade, entre outras, passam a invadir o mundo subjetivo do indivíduo (FERREIRA, 2003). Sofrer o peso do preconceito de uma doença carregada de estigmas, fundamentalmente relacionados a comportamentos considerados socialmente “incorretos”, é quase inevitável.

A história nos aponta que os primeiros casos de AIDS, notificados no Brasil, foram de homossexuais masculinos, de bissexuais, prostitutas, travestis e drogadictos, refletindo um estereótipo de “marginalidade social”. Com o passar do tempo, outras populações foram sendo atingidas, desmistificando a questão do grupo de risco. Incluem-se, nesses grupos, mulheres contaminadas através de relações heterossexuais, permitindo o surgimento de uma nova forma de contágio: a transmissão vertical. Em função disso, em 2001, o Ministério da Saúde estabeleceu condutas profiláticas, buscando o controle das formas de transmissão. Apesar de tais iniciativas, ainda existem contaminações por meio dessas vias, ainda que em menor grau.

No início da epidemia, não existiam recursos de tratamento que permitissem uma ampla sobrevida a partir da descoberta do diagnóstico. Logo, tanto os indivíduos portadores de HIV, como seus descendentes infectados não possuíam muita expectativa de vida. Atualmente, com o avanço significativo das possibilidades de tratamento, o vírus HIV passou a ser percebido como uma doença crônica, cuja expectativa de vida é igual à de indivíduos não portadores, caso estejam em acompanhamento terapêutico. Essa evolução faz com que, nos dias de hoje, crianças que se contaminaram durante a gestação, no parto ou aleitamento já estejam na adolescência, começando uma vida afetiva, indo para o mercado de trabalho. Eles têm o hoje, o amanhã e muito mais, pois não são mais identificados fisicamente como doentes. Aqui, o relato de um médico que viveu e participou da construção desse subcapítulo da história da AIDS.

O trabalho com crianças expostas/infectadas pelo HIV, no princípio, foi muito difícil. Precisávamos convencer a instituição e os colegas de que

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era necessário fazer algo. Por desconhecimento ou por medo, havia uma rejeição prévia à ideia. A residência de Pediatria foi a única que aceitou enfrentar o desafio, dos pediatras preceptores assumi a responsabilidade de levar adiante a ideia de formar um ambulatório para atendê-los. Eu precisava saber muito mais a respeito da doença para atender e ensinar, fiz cursos, treinamentos, no Brasil e nos Estados Unidos, e ainda assim me sentia inseguro em diversas ocasiões. Não havia informações suficientes na literatura e os medicamentos disponíveis eram formulações para adultos, além de restritos a três ou quatro drogas. Precisávamos transformar comprimidos com altas dosagens em medicação para crianças pequenas. Lidávamos constantemente com doenças oportunistas que representavam o fracasso de muitos tratamentos que instituíamos. Acompanhar a evolução da doença era bastante difícil, pois os poucos exames laboratoriais que havia demoravam alguns meses para ficarem prontos, isso depois de muita burocracia para solicitá-los. Era a época pré-coquetel, e a sobrevida dos pacientes era muito baixa. Recordo que eram muito raros os pacientes que completavam 10 anos de idade. Era muito frequente, no início, fazer o diagnóstico do HIV em uma criança e com isso fazer o diagnóstico de uma mãe também infectada. Não poucas vezes havia também a revelação de infidelidade. Eram situações muito delicadas que desencadeavam reações extremas. Exigiam toda nossa habilidade para manter a família como pacientes. Usávamos todos os recursos necessários para permitir que aquelas pessoas pudessem se organizar para poder seguir em frente e receber tratamento. Em cada caso usávamos nossa ciência, mas recebíamos de volta ensinamentos que jamais teríamos aprendido na universidade. Formaram-se vínculos que persistem até hoje. As relações de confiança e respeito que se criavam eram, seguramente, uma parte importante do tratamento. Os adolescentes que hoje permanecem em tratamento conosco representam nossa própria história frente à epidemia. Após tantos anos de convívio desenvolveu-se paralela e reciprocamente um afeto muito grande. Tenho hoje liberdade para conversar com eles sobre quase tudo, mas isso não me torna um especialista em adolescentes. Aprendo com eles sobre muitas coisas. Tendo criado quatro filhos, hoje adultos, posso chegar bem perto. Por considerar que não era correto, aos 12 anos, por exigências burocráticas transferi-los para a clínica de adultos, recentemente criei um serviço exclusivamente para adolescentes. Localizado na Infectologia de adultos do hospital, faço o atendimento acompanhado pelos residentes,

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procurando tratá-los não mais como crianças. Estão aprendendo a consultar sem os cuidadores para que se tornem responsáveis por suas atitudes. Tenho observado que para eles foi muito bom continuarem a serem tratados por quem já os conhece há tanto tempo. A adolescência por si só é uma etapa difícil da vida. Muitas transformações acontecem em todas as áreas, trazendo insegurança, sentimentos contraditórios, e muitas vezes sofrimento. É preciso que sejam estimulados para o exercício da vida, da expectativa de futuro e principalmente da prática da cidadania. A grande maioria traz na memória perda de familiares, o convívio com a pobreza, situações de discriminação e o peso de carregar uma doença crônica e grave. A cumplicidade estabelecida no consultório deve servir para que acreditem que vale a pena viver e serem boas pessoas. Como serão no futuro não sei, mas espero e trabalho para isso, que entendam que podem ser felizes sabendo cuidar de si e dos outros (CARDOSO, 2009).

Esse relato apresenta, de forma clara, os imensos desafios, os limites, as raras possibilidades, a ansiedade dos profissionais envolvidos diante do novo e da falta de perspectiva de cura. Sendo assim, surge a necessidade de buscar alternativas para o tratamento de uma doença grave e até pouco tempo desconhecida. Os mesmos sentimentos de insegurança e dúvidas presentes nas equipes médicas para com o tratamento dessa população foram identificados durante a pesquisa nos adolescentes em relação à convivência com a doença, que lhes é imposta assim como o medo do preconceito. A narrativa do médico mostra também, como salienta Morin (2000), que se abrir para a vida é se abrir também para as nossas vidas.

A metodologia que adotei, bem como o referencial teórico, conduziu o meu olhar para a realidade que busquei desvendar. Assim, ambos passaram a ser cúmplices e não um corpo estranho a ela.

Para o desenvolvimento deste estudo, utilizo a complexidade, enfocada por Edgar Morin, que dá sustentação à reflexão sobre a temática proposta. Busco uma visão multidimensional do fenômeno a ser desvendado, reunindo, agregando, sem perder o individual, o singular. Ao adentrar neste universo e avançar nos estudos, percebi que na história de vida de Morin havia semelhanças entre o autor e os adolescentes que conheci.

Morin nasceu em 1921, em Paris, filho único de um casal de judeus. Seu pai, Vidal, era comerciante. Sua mãe, Luna, foi um capítulo à parte de sua vida. Luna tinha um grave problema no coração, o que lhe impedia de engravidar. Porém, o improvável aconteceu, e Luna

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escondeu a gravidez de seu marido. Morin nasceu em difíceis condições, estrangulado pelo cordão umbilical:

Eu nasci morto. A minha mãe tinha uma lesão no coração e qualquer gravidez corria o risco de lhe ser fatal. Assim que se viu grávida, ela ingurgitou clandestinamente produtos abortivos aos quais eu resisti. Nasci sentado, estrangulado pelo cordão umbilical, sem respiração. Foi preciso meia hora para que o doutor S., que me segurava pelos pés e me esbofeteava com toda força me arrancasse o primeiro grito (MORIN, 1997, p. 21).

Os mesmos problemas de saúde persistiram, e Luna morreu quando Morin tinha apenas 10 anos de idade. Esse fato é extremamente valorizado pelo autor como algo que fez parte de sua construção como pessoa. Na época a verdade sobre a morte da mãe não é dita claramente, gerando-lhe uma esperança de retorno da mãe que nunca voltou.

A morte tinha levado minha mãe em um vagão de um trem de subúrbio, e tentaram me esconder o fato, contado-me que ela tinha viajado para uma temporada na estação de águas em Vittel [...] Meu pai tinha supostamente ido acompanhar minha mãe a Vittel. Eu não estava preocupado. A morte, detectei-a dois dias depois, com dois sapatos pretos, encimados por uma calça e uma jaqueta preta tendo mais acima o rosto de meu pai, que eu via de baixo [...] A morte instalou-se imediatamente em meu ser como dor, horror e segredo. Mas escondi o que compreendera, escondi o que sentia, e continuei a escondê-lo de meu pai, de minha tia e de todos os membros da minha família (MORIN, 2006, p. 14).

Com a morte da mãe e a presença da tia, que se casou com o seu pai, Morin passa a ter uma família que não desejava. Existe aqui um paralelo entre a história de vida de Morin com os adolescentes da pesquisa, explicitado na ausência dos pais, assim como a não revelação da causa da morte dos mesmos – principalmente da mãe. Alia-se a isso a vivência com uma família substituta – outros familiares, famílias adotivas, institucionalização – nem sempre desejada. Portanto, apesar de a realidade dos adolescentes dessa pesquisa ser única, as histórias de vida, com perdas e sofrimentos não são totalmente inéditas, como nos mostra as vivências de Morin.

É em um contexto complexo que cada vez mais a ciência é instigada a compreender os novos desafios que nos são impostos, buscando compreender os fenômenos de maneira aberta, flexível. Para Costa (2006),

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os conflitos oriundos da divisão da sociedade em classes persistem, embora num contexto de maior complexidade das demandas sociais, eles convivem com temas emergentes, conforme coloca a análise da diversidade humana. Os homens não se dividem apenas em classes, mas também entre homo e heterossexuais, entre homens e mulheres, entre jovens e idosos, entre brancos, negros e amarelos. Assim, chamamos a atenção para o conjunto de demandas colocadas na sociedade atual que se articula com as demandas tradicionais dadas pela situação de exploração do trabalho pelo capital. A análise marxista é determinante para a compreensão da sociedade capitalista, porém insuficiente para analisar toda a complexidade das demandas sociais no atual contexto histórico. O mundo no século XXI é mais complexo, o número de habitantes do planeta é maior, a vida humana nunca foi tão longa, o volume de produção e a dinâmica tecnológica nunca foram tão intensos, a vida humana nunca foi tão interdependente embora o homem nunca tenha sentido tamanho isolamento.

Assim como Costa (2006), Bauman (2005) também nos apresenta uma leitura da sociedade atual que ultrapassa as questões relacionadas exclusivamente à divisão de classes: a incerteza da vida cotidiana, a insegurança na cidade, a precariedade dos laços afetivos e do trabalho, a troca do durável pela possibilidade de escolhas, o excesso de informações, a exclusão não apenas pelo ângulo econômico, entre outras. Dessa forma, acreditando nos novos desafios, é que busco, nesta pesquisa, as ideias de Edgar Morin, o qual rompe com os limites deterministas e simplificados e incorpora o acaso, a probabilidade e a incerteza como parâmetros necessários à compreensão da realidade.

Dos sete princípios que Morin utiliza para guiar o pensamento complexo (princípio sistêmico ou organizacional, princípio hologramático, princípio da retroatividade, princípio da recursividade, princípio da autonomia/dependência, princípio dialógico e princípio da reintrodução do sujeito cognoscente em todo conhecimento) os que nortearam a pesquisa foram o princípio da recursividade e o princípio da autoeco-organização. Assim, dentro da perspectiva da complexidade, busquei conhecer os adolescentes, não os separando do seu meio, mas sim em contextualizando-os nesse meio, considerando todos os acontecimentos e as informações que se relacionam a ele numa relação de inseparabilidade.

Assim, para realizar as entrevistas, uma vez estabelecendo questões norteadoras bem definidas, não segui nenhum roteiro. Meu principal objetivo era conhecer como esses adolescentes lidam com a

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AIDS e de que forma a doença está inserida em suas vidas. A escolha pela história de vida, como instrumento de pesquisa, privilegia a coleta de informações contida na vida pessoal dos entrevistados. Para essa pesquisa, foi utilizada a modalidade descrita por Meihy (2006), “relato de vida como narrativa aberta”, em que o pesquisador aborda o sujeito de modo mais aberto possível, interferindo o mínimo durante a narrativa. Após explicar a pesquisa e obter a anuência dos adolescentes e de seus responsáveis, fiz a seguinte pergunta: “como é ter HIV e de que forma isso interfere na tua vida?”. Assim, os adolescentes ficaram livres de roteiro, o que lhes permitiu falar abertamente sobre suas vidas. As entrevistas foram longas, e, após realizá-las, mantive contato com os adolescentes por e-mail e cartas. E era isso que precisava: estabelecer um contato para que eles pudessem participar da construção da pesquisa. Não foram apenas entrevistas. Eles puderem acrescentar, retirar, escolher os nomes fictícios, modificar o texto e, assim, construir suas próprias histórias que se entrelaçam entre as vividas e as contadas.54

A seguir, as histórias contadas e construídas por três adolescentes que tiveram a oportunidade de falar sobre algo intocável, escondido de todos e até deles mesmos, e que mostram que direitos, na vida de quem tem AIDS, não se garantem por si só.

História 1

Por ter feito uma arte de criança, meu castigo foi pior do que dos outros meninos porque naquele dia a tia me contou que eu tinha AIDS – Princípio da Recursividade.

A entrevista de Breno foi a primeira. Nesse dia, ele estava acompanhado da mãe adotiva e de uma tia, que ficaram aguardando na sala de espera. Informado, curioso, pergunta tudo sobre seu tratamento para a médica: quer saber o que é, como funciona, quais os efeitos. Tudo. Durante a entrevista, Breno mostrou-se um menino tímido, com uma voz suave e extremamente cativante. Parecia feliz ao falar sobre sua família e a importância dessas pessoas em sua vida. Porém, a forma como Breno descobriu sua sorologia, me chocou. Não esperava ouvir

5 Durante as entrevistas, foi possível perceber que os adolescentes possuem duas histórias: as vividas – que foram as reveladas durante as entrevistas e que são suas histórias “reais” – e as histórias contadas – que são as histórias “modificadas” e “alteradas” em que o diagnóstico da AIDS não aparece.

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aquilo. Após a entrevista e de me despedir dele e de seus familiares, precisei conversar com a médica que o acompanha. Tentar entender tudo aquilo, tamanha violência. A história de Breno mostra uma prática profissional desrespeitosa, desumana. Depois desse encontro, trocamos alguns e-mails e Breno me ajudou a construir sua história.

Meu nome é Breno, tenho 15 anos. Estou na sétima série, quero fazer artes cênicas no futuro. Acho que vou ser um ótimo ator e fazer muito sucesso!!! Hoje tenho uma família. Bom, acho melhor começar pelo começo, né?

Eu morei na FEBEM desde neném e fiquei até meus 10 anos... lembro de muitas coisas de lá. Tinha uma tia que era muito legal: a tia Marina. Ela, às vezes, acobertava nossas travessuras e também nos levava na casa dela para ver filme e fazer lanche. Todo mundo gostava dela. Ela era como uma mãezona para nós! Mas uma vez a tia Marina não estava, e fizemos uma travessura. Todos os dias a gente almoçava às 11h e dormia duas horas. Às 15h a gente lanchava, e depois as tias mandavam a gente brincar. Teve um dia que encontramos no galpão da pracinha uns cinco baldes de tintas daqueles bem grande. Tivemos a ideia de brincar com a tinta. A festa com as tintas foi grande!!! O cabelo, a roupa, tudo ficou cheio de tinta, e o pior que foi bastante tinta fora. Quando descobriram, óbvio que recebemos um castigo. Ficamos três meses sem sair para passeios e por um tempo também não assistimos à TV. Por ter feito uma arte de criança, meu castigo foi pior do que dos outros meninos porque naquele dia a tia me contou que eu tinha AIDS. Não me lembro o nome dela, só lembro que ela era assistente social. Ela poderia ter me xingado, mas ela me contou como se isso fosse meu maior castigo. Eu não desconfiava de nada, quero dizer eu acho que desconfiava sim. Eu sabia que tinha alguma doença porque eu tomava muito remédio, mas não sabia que era AIDS. Eu tinha seis anos quando isso aconteceu. Com o passar do tempo, fui crescendo e entendendo mais o que era AIDS. Um dia, me deram um papelzinho dizendo o que era AIDS, como pegava, essas coisas. Cheguei na FEBEM e fiquei sentado um tempão, sozinho, tentando entender tudo aquilo. Como que eu tinha aquela doença?

Eu recebi muita ajuda para entender tudo isso. Tinha uma voluntária que aparecia na FEBEM: a tia Sônia. Ela sempre aparecia para brincar comigo. O marido dela e o filho também apareciam de vez em quando. A tia Sônia tem uma amiga, que é a tia Neiva que acabou me adotando. Foi ela que me contou tudo que sei da minha vida. Foi através dela que fiquei sabendo que peguei AIDS, porque a minha mãe me amamentou. Quando eu nasci ela ainda não tinha, pegou depois. A minha mãe era prostituta, tinha 15 anos quando eu nasci. Meu pai? Meu pai

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poderia ser qualquer um. A minha mãe morreu quando eu ainda era neném. Naquela época não tinha tratamento para AIDS que nem tem atualmente, e a minha mãe também tinha depressão. Acabei indo parar na FEBEM. As funcionárias é que me trouxeram para fazer o tratamento aqui no hospital.

Eu sempre pedia para ter uma família, na verdade esse sempre foi o meu desejo mais forte, mas ir morar na casa de uma família não foi fácil. Quando eu tinha 10 anos meu desejo tornou-se realidade. No começo foi estranho mudar de casa, ter que se acostumar e ganhar a confiança, foi mudança demais, mas eu soube lidar com essa mudança porque eu pensei bem e vi que essa mudança precisava ser feita. Hoje eu tenho uma família estruturada: pai, mãe e irmãos. Mas também tenho AIDS e não conheço mais ninguém que tenha.

Na verdade, ter AIDS não atrapalha meu dia a dia. Eu consigo tomar os remédios e quando tenho que sair, levo os remédios comigo. Meus amigos já me perguntaram porque tomo remédio. Aí menti para eles. Falei que era para outra coisa. Tenho medo de sofrer preconceito, ser humilhado e debochado no colégio. Isso seria difícil de aturar. Eu já fiquei com cinco gurias, mas não contei porque não me apaixonei. Sei que não pega pelo beijo, por isso não contei e também porque não transaria com elas. Isso sim me assusta, porque eu posso passar essa doença adiante, se eu não usar camisinha. Fico pensando que tudo poderia ser diferente se eu não tivesse AIDS. Sei que quem tem AIDS também são pessoas normais. O problema é que a cura não foi encontrada, e eu gostaria de não ter essa doença.

História 2

Para mim, a AIDS é normal, para os outros que não é e eu sei que vou ter que continuar esse jogo – Princípioda Recursividade.

Bárbara foi a adolescente com quem mantive mais contato após a entrevista. Nos comunicávamos pela internet e dessa forma fomos construindo a sua história. Bárbara é muito madura, faz colocações extremamente fortes. Muito falante, demonstra uma vontade enorme de viver e para isso encara o preconceito de frente.

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Meu nome é Bárbara. Tenho 17 anos e moro em Montes Claros, uma cidadezinha a uns 500 km daqui. Moro com meu tio, minha tia e minha avó. Terminei o colégio ano passado, mas não fiz vestibular... meu psicológico não tava legal. Sei que é difícil as pessoas entenderem, mas não tava com cabeça para isso. Quis fazer um curso de secretariado, mas meu tio me abriu os olhos: o curso é todos os dias e me trato aqui em Porto Alegre... ia acabar faltando muito.

É nessas horas que lembro que tenho HIV. Quando era criança eu vinha pouco, mas conforme o tempo foi passando, as complicações aumentaram, sem falar na medicação que insiste em não fazer efeito. Aí minhas vindas para cá ficaram bem mais frequentes. Antes vinha de manhã e ia embora para minha cidade de tarde. Agora acabo ficando mais dias, porque tenho que consultar com outras especialidades. Na minha cidade não tem como eu fazer tratamento. Primeiro porque não tem condições e segundo porque tem muito preconceito. Aqui ninguém me conhece, lá é diferente. A única ginecologista que tem lá já sabe que eu tenho HIV. Fico mal com isso. Por mais que eu seja acostumada, isso me chateia.

Minha família ficou sabendo que eu tenho HIV quando minha mãe descobriu que tinha também. Eu tinha uns cinco anos e ela morreu dois anos depois que soube. Naquela época não tinha tratamento como tem hoje e ela também se entregou. Minha mãe sempre deu muito valor à aparência, e a AIDS acabou com ela. Ninguém sabe quem é meu pai, isso morreu com a minha mãe. Deve ter tido um motivo para ela nunca ter contado. Não sei quem infectou quem, ou se os dois tinham AIDS, não tem foto, não tem pista, não tem nada. Eu queria que ela voltasse na terra para me contar, é meu direito, é minha história e eu queria saber.

Minha vida começou a mudar quando descobri que tinha AIDS. Eu comecei a perguntar por que que eu viajava muito, por que eu tomava aqueles remédios e tal e com o passar do tempo eu comecei a sacar. Fui descobrir mesmo com uns nove ou 10 anos... no início foi meio estranho porque eu já sabia o que era, como funcionava. Teve uma vez que julguei muito mal a minha mãe. Eu gritei alto que eu odiava ela e a culpei pelo que eu tenho. Minha vó chegou a chorar. Que horror. Eu me arrependo de ter feito isso... mas foi naquele momento que bateu tristeza.

Tomar a medicação sempre foi algo bem difícil. Quando criança, eu tomei o xarope de AZT. Credo, não gosto nem de lembrar. Ele queimava na boca e eu tinha que tomar água e água gelada em cima. O meu tio não aguentava nem o cheiro. Às vezes eu tava no pátio brincando e ouvia gritarem: Barbaráááá! Pronto, já sabia que era o remédio. Quando eu tinha uns 12 anos, fiz uma loucura. Sei lá, meu tio achou que eu já era responsável o suficiente e deixou os remédios sob minha responsabilidade. Eu coloquei tudo fora, para nunca mais tomar. Eu não queria mais aquilo. Nossa, foi uma loucura mesmo! Hoje eu entendo que é a medicação que me

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deixa viva. Tomo qualquer coisa, independentemente do gosto. Eu avisei o doutor que mudei o horário da minha medicação para poder tomar tudo certinho. Antes eu tomava uns às 6h e às 19h, mas sempre tinha alguém para me acordar. Agora não vou acordar cedo à toa só para tomar um remédio. Aí mudei para as 11h e a meia-noite. Dia desses fui dormir na casa de uma amiga. Ela se apavorou. Eu tomo 15 comprimidos por dia. Até a injeção eu já tomei. O que mais me incomodava com a Fuseon eram os nódulos que ficavam cada vez que aplicava. Parecia que eu tinha levado uma pancada. Teve uma vez que eu fui com uma blusinha e um casaco pro colégio. Acabou esquentando e eu não me dei conta e tirei o casaco. Meus braços tavam com uns roxos e aí me perguntaram o que era. Eu disse que tinha me batido no armário de casa. Na época, eu tinha um namorado e quando ele me pegava pela cintura sentia os nódulos. Bah, era uma saia justa... tinha que ficar dizendo... aí eu me bati, eu tô com uma alergia.

Sei que a medicação vai mudar de novo, e provavelmente tenha que vir mais vezes a Porto Alegre. Ainda bem que a minha dinda mora aqui, senão ia ser mais complicado. Ela é legal, gosto muito dela. Só que, às vezes, ela diz umas coisas que afugentam meus sonhos. Aprendi a ficar só com as coisas boas que ela fala. Eu tenho outros parentes aqui, mas eles não me procuram. Hoje, com 17 anos, eu descobri que eles não me procuram por preconceito, e nunca ninguém tinha me contado. Aliás, agora que cresci, fiquei sabendo de várias coisas, do preconceito da família, das coisas que eu vou ter que enfrentar e que meus tios já enfrentaram. Meu tio me disse que uma vez uma mãe fez de tudo para me tirar do colégio porque ela descobriu que eu tinha HIV, e não queria que o filho dela estudasse na mesma escola duma criança com AIDS. E, no segundo grau, eu pedi para os meus tios me colocarem no colégio Chaves, que é o melhor colégio que tem em Montes Claros. Na época eles disseram que não dava porque não aceitavam alunos do bairro que a gente morava. Há pouco, descobri que isso era mentira. O colégio não me aceitou porque já sabiam do meu problema, e meus tios não me contaram para não me machucar.

Com 17 anos eu estou vendo como é a vida, tenho que começar a andar sozinha. Na minha família não me olham com pena. E isso é muito bom, porque sentir pena é a pior coisa que tem. Eu preciso de carinho, não de pena. Isso tudo foi me amadurecendo, me alimentando para encarar as coisas que eu vou ter que enfrentar... e eu sei que ainda vou passar por muitas. Sei que hoje tem uma legislação que me protege, por exemplo, não vão poder me barrar se eu passar na faculdade. Mas o preconceito sempre vai existir. Para mim, a AIDS é normal, para os outros que não é e eu sei que vou ter que continuar esse jogo.

Eu tiro uma força não sei da onde e Deus me ajuda muito. Nesses 17 anos que o HIV me acompanha, aprendi que tinha que fazer uma escolha: me entregar ou viver. E eu escolhi viver. Eu tô participando de um grupo de jovens numa igreja

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lá perto de casa. É bem legal, eu gosto bastante. A gente faz passeios, ri, canta, ajuda uns aos outros. Às vezes, tem alguém que dá um depoimento sobre algum problema que enfrentou, ou tá enfrentando, e a gente ajuda falando coisas boas, positivas. O líder do meu grupo, que sabe que eu tenho HIV, perguntou se eu teria coragem de dar meu depoimento. Disse para ele que, se eu tivesse câncer, aí sim, mas o HIV não. É tipo... hoje tu ouve a minha história mas amanhã já sai contando. E eles vão me evitar. Não quero isso porque lá eu sou a Bárbara, não sou a guria que tem AIDS. Para eu poder contar, tenho que sentir que tem um laço de amizade, mas tem que ser um laço verdadeiro, porque se ele se rompe, vem a vingança. Há pouco tempo uma senhora mudou com a filha lá para perto de casa. Eu fiz amizade com a filha dela. Bastou para uma vizinha ir dizer: toma cuidado porque eu tenho visto a Bárbara andar muito com a tua filha, e ela tem AIDS. Aí ela mentiu, disse que já sabia porque eu tinha contado. Ela me deixou à vontade... que um dia eu contei. Elas me conheceram primeiro, por isso me aceitaram. Eu não tenho só AIDS. Eu sou muito carismática, converso, cativo as pessoas. Se tem uma meia dúzia que não vai com a minha cara, tem o dobro que vai.

Com meus namorados que as coisas ficam mais complicadas, porque envolve as famílias. Os pais sempre vão se preocupar com o filho. Vão ficar com medo porque, se ele casar comigo, não vou poder dar netos. Se bem que vi na TV que uma mulher que tem AIDS teve um nenê. Com o meu último namorado, os pais dele quando descobriram o que eu tenho praticamente obrigaram ele a terminar comigo, e me esquecer. Sofri tanto que não gosto nem de lembrar. Mas isso infelizmente faz parte de um caminho que está apenas começando.

Hoje estou apaixonada por outra pessoa. Quando eu conheci o Matheus, ele mexeu comigo de um jeito que não sei explicar. Tudo começou com uma amizade que aos poucos foi se tornando algo mais forte e se tornou uma paixão. O dia do nosso primeiro beijo foi inesquecível! Quando me dei conta que estava tão apaixonada, fiquei com medo. Medo de novamente passar tudo o que vivi no meu outro relacionamento. Não queria dar uma responsabilidade para um garoto de 16 anos de assumir um relacionamento com uma pessoa que tem HIV. Também não queria que nada de ruim acontecesse com ele, afinal ele é o saudável. Decidi então terminar com ele. Minhas amigas disseram para eu pensar melhor e que era melhor eu contar para ele e ver no que ia dar do que fugir. Chorei tanto nesse dia, tinha tanto medo. Não queria sofrer, mas tomei a decisão de contar e abri o jogo para ele. Comecei de um jeito fácil, contando cada etapa da minha vida. Falei que tinha perdido a minha mãe cedo, que ela tinha uma doença grave e que durante o parto ela havia me contaminado. Falei que tenho o vírus HIV, que faço tratamento desde pequena e que gostaria que ele fosse sincero comigo. Nessa hora, um momento de silêncio tomou conta da nossa conversa. Preocupada eu perguntei se ele tinha alguma coisa para me dizer. Ele disse que não sabia o que falar. Nem sei

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o que pensei nessa hora. Até que ele me falou que já sabia, aliás, os pais dele também já estavam sabendo.

Te confesso que um medo tomou conta de mim. Imaginei: perdi o Matheus, os pais dele jamais vão permitir nosso namoro. Engoli o medo e perguntei o que eles tinham falado. Ele me respondeu que disseram apenas para ele se cuidar e que confiavam muito nele. Essas palavras foram tão importantes para mim! Nesse mesmo dia, ele me contou que o pai dele tinha sido transferido para o Pará e que ficariam pouco tempo em Montes Claros. Resolvi deixar as coisas rolarem. Foram os três meses mais felizes da minha vida. A gente conversava muito, nos divertíamos, tínhamos muita sintonia. Eu ia na casa dele, jantava lá e todos eram um amor comigo. Ele despertou em mim algo que eu nunca havia sentido antes. Comecei a sentir um desejo íntimo por ele e ele por mim. O nosso problema era que não tinha lugar onde rolar. Foi aí que me dei conta que dessa vez era mais intenso.

Com ele aprendi a não temer o amor, e sim vivê-lo. Aprendi a viver mais, a não temer o amanhã, e sim encará-lo de frente. Apesar de estarmos longe, eu tenho ele dentro do meu coração. Hoje, sou mais feliz por saber que tenho um amor que me ama, respeita e me aceita. E é com ele que se Deus permitir viverei a minha eternidade.

História 3

Na última vez que eu tive internada, eu vi que não precisava passar por isso, e que eu posso continuar vivendo. É só tomar os remédios direitinho – Princípio da autoeco-organização.

A entrevista com Lívia foi a mais peculiar. Depois que o médico a indicou para a entrevista, foi necessário fazer contato telefônico, conversar com ela e com um de seus irmãos sobre a pesquisa e pedir a autorização para sua participação. Tudo isso porque Lívia comparece às consultas sozinha, mesmo morando em outra cidade. Num primeiro momento, cheguei a pensar ser inviável fazer a entrevista. Mas excluí-la porque ela assumiu seu tratamento não era aceitável. O termo de consentimento livre e esclarecido foi enviado pelo correio, assinado pelo irmão que hoje é responsável por ela. Lívia é uma menina encantadora. Durante a entrevista, fez várias perguntas. Dúvidas sobre a forma de contágio, possibilidades de ter filhos, funcionamento do vírus no organismo. Assuntos que provavelmente estavam guardados há muito tempo. Quando falamos sobre a importância de ela não interromper o

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tratamento e os efeitos da Fuseon, ela me disse: “foi muito importante tu me dizer isso... toda vez que eu pensar em não tomar remédio, vou lembrar de ti. Eu achei que ia te ajudar com a tua pesquisa, mas tu não sabe o quanto tu tá me ajudando e talvez me dando mais tempo de vida”.

Foi nesse momento em que percebi a importância do papel que temos enquanto pesquisadores.

Meu nome é Lívia, eu tenho 16 anos. Moro em Charqueadas com meus quatro irmãos. Eu perdi meu pai quando eu tinha um ano e meio. Ele era portador do HIV e minha mãe também. Ela morreu quando eu tinha três anos. Dos seis filhos, eu sou a mais nova e a única que foi contaminada.

A minha mãe escondeu de todo mundo que tinha HIV. A família foi descobrir a doença dela e do meu pai no dia em que ela morreu. Ela consultava, mas era escondido. Sei lá, acho que ela tinha medo do preconceito. A única coisa que me pergunto é: se a minha mãe se tratava, por que os médicos não fizeram alguma coisa para me proteger? Quando ela morreu, eu e um dos meus irmãos fomos morar com meus tios, lá em Esteio. Mas a gente não ficou muito tempo porque eles nos maltratavam. Acho que se eu tivesse ficado com os meus tios eu não estaria viva porque eles não se preocuparam em me levar no médico. Foi minha vó que me trouxe no médico. Comecei a me tratar com quatro anos e na época o doutor disse que eu não duraria até os sete. Aí a minha vó fez uma promessa, que se eu chegasse até os sete anos ela ia fazer uma festa para mim bem grandona. Foi bom porque eu tive duas festas, uma em casa e outra no salão.

Deus tem me ajudado muito. Eu sou evangélica, e uma vez o pastor me disse que eu tava curada, que eu não tinha mais o vírus no meu corpo. Aí eu acreditei nisso e parei de tomar os remédios. Foi quando eu tive uma pneumonia e tive que ficar internada. Fiquei quase um mês internada em estado regular. Eu continuo acreditando que Deus existe, mas Ele não disse que é para eu parar de tomar. Sei que a medicação evoluiu muito e é isso que vem me mantendo viva. Mas é ruim tomar remédio. Às vezes, eu penso... daqui a pouco eu tomo. Aí vai passando, passando e acabo não tomando. Na última vez que eu tive internada eu vi que não precisava passar por isso e que eu posso continuar vivendo. É só tomar os remédios direitinho. Aí, também não incomoda ninguém da família que tem que estar vindo até aqui quando eu estou internada.

Não gosto de dar trabalho para ninguém. No início, era minha vó que me trazia... aí ela foi ficando mais idosa, mais difícil para fazer certas coisas. Quando tinha que vir a Porto Alegre consultar, minha tia que mora em Canoas tinha que ir até Charqueadas me buscar e vir até aqui. Depois foi um dos meus irmãos que faltava no emprego para me trazer. Um dia enchi o saco, e disse: chega, eu já sei ir sozinha. Eu assumi meu tratamento. Aliás, tudo que eu sei eu fui descobrindo sozinha, encaixando as coisas.

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Não sei como e quando eu descobri a minha doença. Quando criança eu fui muito doente, com feridas, secreções no nariz, mas não lembro o dia exato em que soube. Na verdade o HIV cresceu comigo. Acho que é por isso que tenho uma vida normal... só tenho que ter atenção em dobro para não ficar doente. Se uma pessoa normal já se cuida eu tenho que me cuidar muito mais. Se uma gripe é ruim para ti, para mim ela pode ser muito pior, pode virar uma pneumonia. Mas o HIV não me atrapalha no meu dia a dia. Eu estudo, estou no segundo ano e sou monitora num curso de informática de tarde. Adoro ir em festas. Já fiquei com alguns guris, e na hora de beijar sempre penso se tenho algum corte na boca. Eu nunca transei, mas sempre penso como vai ser. No início, com certeza, vou usar camisinha, mas depois de um tempo ele não vai mais querer usar. E aí vou ter que pensar como contar. Eu tenho medo de contar e ele me deixar por causa do HIV. Se fosse ao contrário, e eu gostasse realmente, eu continuaria o namoro. Mas isso eu sei que vai depender de cada pessoa. Talvez eu tenha sorte.

Minhas amigas gostam de conversar comigo... acham que eu tenho que fazer psicologia. Eu gosto de escutar as pessoas. Do grupo eu sou a mais cabeça, mais madura. Elas têm a mesma idade que eu, mas eu sou bem diferente. Acho que é porque eu amadureci muito cedo. Nunca tive ninguém para me dizer: faz assim. Aprendi a me virar sozinha.

Mesmo gostando muito das minhas amigas, nunca contei para ninguém. Não confio nas pessoas. No colégio ninguém sabe o que eu tenho. Tem umas vizinhas que moram perto de casa que sabem. O problema não é saber... é que as pessoas saem falando para todo mundo e não se dão conta que isso machuca a gente. Quando eu era criança eu lembro que uma vizinha que sabia ficava dizendo “olha lá... aquela coitadinha tem HIV”, eu era pequena mas lembro. Numa das vezes que internei, quando voltei para o colégio, uma amiga veio me dizer que todo mundo tava comentando que eu tinha AIDS e que meus pais tinham morrido disso. Aí tive que dizer que era mentira, que eles morreram num acidente de carro e que eu tinha internado porque descobriram que eu tenho um problema no coração e que por isso também eu ia começar a tomar remédios. Para sorte ou azar elas acreditaram... até ficou mais fácil agora porque posso levar a medicação quando saio com elas e tomar sem problemas.

E eu já troquei a combinação dos remédios umas quatro, cinco vezes. Não posso mais bobear. Na minha família sim, todo mundo sabe e não tem preconceito. Mas tem um supercuidado que também me incomoda. Se eu sinto uma dor, todos ficam preocupados, já acham que eu não tomo os remédios direito, não deixam eu fazer certas coisas porque eu sou doente. E eu digo para eles que eu não sou uma pessoa doente, eu sou assim. Sei que é para o meu bem, mas não gosto disso. Há pouco tempo a gente ficou sabendo que meu primo também está com AIDS. Ele tem 24 anos e acho que ele pegou pela seringa porque ele usa droga injetável. Ele

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está preso. Acho que ele não dura muito tempo não. Nem medicação ele queria tomar. E dentro do presídio tudo é mais difícil, judiam muito dele, batem, o lugar é sujo. A minha tia disse para ele fazer um esforço e tomar os remédios. Não entendo como meu primo foi se contaminar. Hoje em dia as pessoas sabem como que pega e tem a escolha de se cuidar ou não. Foi burrice dele, já eu não fiz nada para ter HIV e sofro o mesmo preconceito. Acho que tinha que ter um lugar para atender só os adolescentes. Às vezes tenho dúvidas, tenho medo e não sei para quem perguntar. Tipo um grupo com alguém do hospital, sabe? Ia ser bom. Mas teria que ser aqui, lá na minha cidade não tem condições. Todo mundo ia ficar sabendo... e também lá não tem recurso para nada. Até a medicação eu tenho que vir retirar aqui. Mas isso não me incomoda. É até bom porque o doutor já me conhece há 11 anos. Sei que é ele que tá me segurando aqui nesse hospital. Já era para eu ter ido para clínica adulta... mas eu não quero. Lá a gente vê as pessoas mal mesmo, magras, acabadas pela AIDS. Eu me sinto muito mal de ver aquelas pessoas e saber que um dia eu vou ficar daquele jeito.

Aqui nesse hospital quem decide que eu tenho que passar para clínica adulta não pensa nisso, não sabe como é sofrido. Os médicos de lá nem me conhecem, não sabem da minha história. Podem até ler o que tá no prontuário, mas a minha vida eles não conhecem. Aqui é diferente, o doutor já me conhece. Mas vou ter que esperar. Não sei até quando o doutor vai conseguir me deixar aqui.

A análise dos dados desta pesquisa foi baseada no referencial epistemológico, escolhido para a realização da mesma, pois, como salienta Morin (2005:57), a complexidade nos permite debruçar sobre a vida cotidiana onde ela parece, em geral, ausente. Portanto, esta análise irá para além do “bom” ou do “ruim”, do “certo” ou do “errado”, assumindo uma postura dialógica e uma percepção das histórias de vidas como sendo concorrentes, antagônicas e complementares.

Após a escuta das histórias de vida dos três adolescentes, realizei uma leitura, visando compreender como a AIDS repercute na vida de quem se contaminou por via vertical. Para tanto, foi preciso identificar a forma de organização familiar desses adolescentes, como eles convivem com o vírus HIV, e quais são suas histórias de vida. Inicialmente as entrevistas foram lidas separadamente, mas considerando o contexto como um todo – adolescência, descoberta da doença, família, relacionamentos, adesão ao tratamento e conhecimento sobre a doença, entre outros. Apoiada na história de vida desses adolescentes, passei a analisar alguns limites e possibilidades de ser adolescente e viver com

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AIDS, buscando relacionar como eles vivem em sociedade e quais as estratégias utilizadas para a autoeco-organização.

Para uma melhor aproximação da história de vida desses adolescentes e da teoria da complexidade, analisei alguns fragmentos de falas dos entrevistados, utilizando o princípio sistêmico em que considera impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes (MORIN, 2000, p. 94).

Eu sempre pedia para ter uma família, na verdade esse sempre foi o meu desejo mais forte, mas ir morar na casa de uma família não foi fácil (Breno).

A fala de Breno relaciona-se com um dos aspectos que busquei desvendar nesta pesquisa: conhecer a forma de organização familiar dos adolescentes que nasceram com HIV – e a influência desta organização nas demais relações estabelecidas, seja com amigos ou serviços de saúde –, uma vez que, por se tratar de uma doença altamente estigmatizante, associada à sexualidade, valores morais, religiosos, pelo caráter transmissível e à morte, a AIDS acaba acarretando amplas repercussões psicológicas, sociais, econômicas e políticas, não só no plano individual, mas também na esfera familiar (PARKER, 2004). Agregado a essas mudanças impõe-se a necessidade de hábitos em decorrência da doença: ingerir medicamentos, conviver com a ameaça do aparecimento de doenças oportunistas e da morte. Essas alterações no cotidiano requerem a adaptação às novas demandas e, consequentemente, mudam o relacionamento com a família e nela mesma. Assim, os adolescentes passam a autoeco-organizarem-se, levando em conta o dia a dia vivido, as solicitações da doença, os temores da família, as demandas escolares, o preconceito da sociedade.

Até hoje, a AIDS mostrou um efeito desagregador na organização familiar, pois a contaminação de alguém, até então, estava ligada a questões como drogadição, infidelidade e outras atitudes tidas como “transgressoras” pela sociedade. Dessa forma, a pessoa que vive com HIV não é a única a sofrer as consequências: seus familiares e amigos também acabam enfrentando junto às dificuldades tais como preconceito e estigma. Nesse sentido, busco aqui o princípio recursivo em que Morin (2000) aponta que os indivíduos produzem a sociedade nas interações e pelas interações.

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Nas famílias, em que ocorreu transmissão vertical, podem existir dificuldades relacionadas a perdas de familiares e sentimentos de culpa e de raiva. Nas famílias dos adolescentes que nasceram com o vírus HIV encontramos, frequentemente, situações que aumentam a vulnerabilidade, principalmente a orfandade ou o desconhecimento do pai, como exemplificado nas falas a seguir:

A minha mãe era prostituta, tinha 15 anos quando eu nasci. Meu pai? Meu pai poderia ser qualquer um (Breno, 15 anos).

Ninguém sabe quem é meu pai, isso morreu com a minha mãe (Bárbara, 17 anos).

A minha mãe escondeu de todo mundo que tinha HIV. A família foi descobrir a doença dela e do meu pai no dia em que ela morreu (Lívia, 16 anos).

Provavelmente, a ausência de vínculos corroboram para um sentimento indefinido em relação aos pais biológicos. O ódio é um deles, pois reconhecem os pais como responsáveis pelo drama vivido, como diz Bárbara:

Teve uma vez que julguei muito mal a minha mãe. Eu gritei alto que eu odiava ela e a culpei pelo que eu tenho. Minha vó chegou a chorar (Bárbara, 17 anos).

Nesse sentido, é importante entender o adolescente dentro do seu sistema familiar, pois cada família tem sua maneira auto-organizativa de resolver conflitos e o faz de acordo com sua história. Tais questões estão também relacionadas como a descoberta do diagnóstico, pois isso implica a denúncia da infecção da mãe ou de outros aspectos íntimos delicados ou estigmatizados na família (tais como traição, homossexualidade, ou uso de drogas realizado pelos pais), o que pode se tornar uma dificuldade para a aceitação do diagnóstico. Buscando a análise, a partir da complexidade, identifico o princípio dialógico como um dos pressupostos básicos vivido pelos adolescentes, em que os sentimentos amor/ódio, medo/euforia, mentira/verdade estão presentes no seu dia a dia. E não devem ser considerados como algo negativo, pelo contrário, servem para nos mostrar a complexidade e o turbilhão de sentimentos que é vivido constantemente.

Nesta pesquisa, foi possível perceber diferenças, com dois padrões de revelação do diagnóstico para os adolescentes. A rotina exigida pelo

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tratamento, ou seja, idas frequentes a hospitais e ingestão de medicamentos, facilitam para a criança a percepção de problemas em sua saúde. O recebimento precoce do diagnóstico permite que o indivíduo o perceba como algo que faz parte de seu crescimento, como referem Bárbara e Lívia:

Minha família ficou sabendo que eu tenho HIV quando minha mãe descobriu que tinha também. Eu tinha uns cinco anos e ela morreu dois anos depois que soube. Minha vida começou a mudar quando descobri que tinha AIDS. Eu comecei a perguntar por que que eu viajava muito, por que eu tomava aqueles remédios e tal e com o passar do tempo eu comecei a sacar. Fui descobrir mesmo com uns nove ou 10 anos... no início foi meio estranho porque eu já sabia o que era, como funcionava. (Bárbara, 17 anos)

Não sei como e quando eu descobri a minha doença. Quando criança eu fui muito doente, com feridas, secreções no nariz, mas não lembro o dia exato em que soube. Na verdade, o HIV cresceu comigo. Acho que é por isso que tenho uma vida normal. (Lívia, 16 anos)

Através da naturalização da doença, é possível identificar o principio da autoeco-organização dessas adolescentes que buscam cuidar de si.

Entretanto, conforme o amadurecimento, e entendendo mais a doença, existe um processo difícil de aproximação, maturação e entendimento da contaminação, como evidenciado na fala de Breno:

Com o passar do tempo, fui crescendo e entendendo mais o que era AIDS. Um dia, me deram um papelzinho dizendo o que era AIDS, como pegava, essas coisas. Cheguei na FEBEM e fiquei sentado um tempão, sozinho, tentando entender tudo aquilo. Como que eu tinha aquela doença (Breno, 15 anos).

Na fala de Breno fica evidenciado que, ao saber do diagnóstico, ele passa a pensar sobre sua condição, tentando se auto-organizar.

A relação da família com a AIDS, assim como outras questões, se dá de forma diferente, e embora a importância dessa organização na vida de qualquer adolescente seja fundamental, a maneira como os membros familiares encaram a infecção pelo HIV vai interferir diretamente na convivência do jovem com o vírus. Se isso ocorrer de forma natural, provavelmente o adolescente também terá uma relação mais clara com a condição sorológica. Mas, como uma família, afetada pelo estigma da doença, e que, muitas vezes já lidou com a morte em consequência da AIDS, cuida dessa geração?

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A resposta para essa questão está extremamente ligada às influências externas que a família sofre. Com tanta pressão e estigmatizada pela sociedade, a família pode tornar-se imunodeficiente, em um processo recursivo, uma vez que sofre um desequilíbrio interno. Como consequência, a família pode fechar-se e restringir as redes sociais, isolando-se e oprimindo-se. Por outro lado, novamente em um movimento de recursividade, essa imunodeficiência pode auxiliar os membros familiares a reestabelecerem as relações internas e se fortalecerem para enfrentar o mundo externo. Ambas as possibilidades influenciam na construção da identidade e nas relações que serão estabelecidas.

Com o conhecimento do diagnóstico, surge um novo questionamento: a quem contar? A revelação de sua condição constituiu importante fonte de dificuldades para os jovens, que se mostraram divididos quanto ao que fazer com esse segredo: livrar-se do seu peso, convivendo com os riscos de possíveis rejeições, ou suportá-lo e ter de se haver com os prejuízos dessa escolha, como exemplificado na fala de Breno:

Meus amigos já me perguntaram por que tomo remédio. Aí menti para eles. Falei que era para outra coisa. Tenho medo de sofrer preconceito, ser humilhado e debochado no colégio. Isso seria difícil de aturar (Breno, 15 anos).

É possível relacionar a fala de Breno com o princípio da autoeco-organização, pois, ao mentir sobre os remédios, ele busca uma maneira de continuar convivendo em seu meio, sem ser reconhecido como estranho.

Os adolescentes que vivem com HIV podem não conseguir estabelecer uma relação próxima com os pares, em função da dificuldade de identificação com os mesmos. Essa situação pode fazer com que os adolescentes sintam-se mais isolados. Há uma dificuldade em expor a doença para amigos e colegas, pois se envergonham de ser diferentes e de sofrerem um possível rechaço em função dessa diferença, como diz Lívia:

Mesmo gostando muito das minhas amigas, nunca contei para ninguém. Não confio nas pessoas (Lívia, 16 anos).

No decorrer das entrevistas pude perceber que apesar da tristeza ou certo grau de inconformismo, a conversa sobre o assunto fluiu com facilidade e oferecendo conforto e auxiliando no exercício de assumir a própria doença e tratamento. Tal situação pode ser visualizada dentro do

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princípio da recursividade, uma vez que foram produzidas interações de confiança em que o adolescente se sentiu seguro para contar sua história. A relação estabelecida entre pesquisadora e entrevistados gerou um sentimento de cumplicidade que possibilitou ouvir as histórias de vida.

Essa relação de cumplicidade não é exercida no dia a dia, no meio social em que vivem. Entretanto, ao estabelecer relações mais próximas, é possível ultrapassar a questão da AIDS e construir vínculos sólidos, como refere Bárbara:

Elas me conheceram primeiro, por isso me aceitaram. Eu não tenho só AIDS. Eu sou muito carismática, converso, cativo as pessoas. Se tem uma meia dúzia que não vai com a minha cara, tem o dobro que vai (Bárbara, 17 anos).

A ampliação da revelação para amigos é relatada, em geral, como uma experiência bastante delicada e difícil. A fala de Bárbara evidencia o princípio recursivo em que, segundo Morin (2000, p. 95), os indivíduos humanos produzem a sociedade nas interações e pelas interações. Outro trecho da mesma fala revela a inter-relação dos dois princípios – autoeco-organização e recursividade:

Para eu poder contar, tenho que sentir que tem um laço de amizade, mas tem que ser um laço verdadeiro, porque se ele se rompe, vem a vingança (Bárbara, 17 anos).

Com a dificuldade de contar para os amigos, os adolescentes acabam recorrendo muitas vezes, as equipes de saúde, pois uma das principais características dessa população é o vínculo construído com esses profissionais que os acompanham há muitos anos, como refere Lívia.

É até bom porque o doutor já me conhece há 11 anos. Sei que é ele que tá me segurando aqui nesse hospital. Já era para eu ter ido para a clínica adulta... mas eu não quero (Lívia, 16 anos).

Assim, numa relação de recursividade, médico e paciente estabelecem vínculos de onde emergem cuidados para além da doença, preservando a condição de ser adolescente, compreendendo seus medos e angústias. Essa relação também é reforçada a partir da percepção de que o tratamento vai além da ingestão de medicamentos e realização de exames, passando a existir um tratamento de qualidade e reconhecimento

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do sujeito, uma vez que o médico rompe com o protocolo de idade e continua o atendimento, como fica evidenciado no trecho a seguir:

Lá [referindo-se à clínica adulta] a gente vê as pessoas mal mesmo, magras, acabadas pela AIDS. Eu me sinto muito mal de ver aquelas pessoas e saber que um dia eu vou ficar daquele jeito. Aqui, nesse hospital, quem decide que eu tenho que passar para clínica adulta não pensa nisso, não sabe como é sofrido. Os médicos de lá nem me conhecem, não sabem da minha história. Podem até ler o que tá no prontuário, mas a minha vida eles não conhecem.

O não reconhecimento dessa população por alguns serviços de saúde que utilizam a idade “numérica” como fator de distribuição entre os ambulatórios infantil e adulto é não levar em conta o sujeito e sua história. Ouvir esses adolescentes, perceber suas necessidades, respeitá-los como sujeitos singulares, faz parte do tratamento eficaz.

Adoro ir em festas. Já fiquei com alguns guris e na hora de beijar sempre penso se tenho algum corte na boca (Lívia, 16 anos).

O trecho anterior evidencia a forma de autoeco-organização desses em relação à sorologia. Também é possível perceber que apesar de a adolescência se configurar como um período do desenvolvimento no qual ocorrem importantes mudanças físicas, psicológicas e sociais, caracterizando-se como um momento de transição da infância para a vida adulta (ROCHA, 2004), esses adolescentes já se mostram vigilantes em relação ao cuidar de si para cuidar do outro, no momento em que na hora de beijar não se deixam levar pela emoção e pensam que repercussão que teria na sua vida e na do outro.

Frente a esse contexto, ocorrem importantes alterações emocionais, vivenciadas de forma muito peculiar para cada adolescente. São despertadas ansiedades relacionadas às perdas infantis acarretadas pela entrada no mundo adulto e pelo impulso ao amadurecimento precoce no que se refere ao se deparar com uma doença crônica e contagiosa. Apesar de ser um processo universal, a adolescência assume peculiaridades de acordo com a cultura vigente, que por sua vez influencia na sexualidade, autoestima, relacionamentos, independência dos pais.

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Concomitantemente a tantas mudanças, nas estruturas sociais cada vez mais inconsistentes, os adolescentes sentem suas vidas marcadas por crescentes descontinuidades, como exemplificado na história de Bárbara, que busca em seus relacionamentos meninos mais novos como maneira de adiar o início da vida sexual.

Essa vida de “inconstâncias” ainda é agravada pelo medo de sobrar e o medo de morrer. De serem vistos como estranhos, conforme Bauman, que não se encaixam na sociedade atual já descrita anteriormente.

No que se refere ao medo da morte, apesar de não ser mais tão presente, ainda é lembrado em momentos de doenças e internações hospitalares sofridas por esses adolescentes, quando lidam também com outros fatores estressantes, como as exigências do tratamento, o estigma, o medo, o preconceito, as mentiras. Tudo isso aliado a um contexto em que os adolescentes estão realizando a travessia para o mundo adulto com questões que ultrapassam as esperadas para os adolescentes em geral.

Segundo Blum (1992), para os adolescentes com doença crônica, como é caracterizada a AIDS, hoje em dia, esta fase pode estar associada à depressão e à rejeição de si próprio, por se sentirem diferentes das outras pessoas, tanto física como nos seus comportamentos. Porém, o que foi constatado com a pesquisa contrapõe o autor, já que os adolescentes mostram lidar de forma que a infecção, não interfira na autoestima. Vejamos o relato a seguir:

Na verdade o HIV cresceu comigo. Acho que é por isso que tenho uma vida normal... só tenho que ter atenção em dobro para não ficar doente. Se uma pessoa normal já se cuida eu tenho que me cuidar muito mais (Lívia).

Outro aspecto relevante refere-se à contaminação na adolescência, por outra via, na qual geralmente há um sofrimento em saber que poderia ter evitado e a ideia de morte aparece logo após o diagnóstico. Já os adolescentes que nasceram com o vírus convivem há quase 20 anos com o vírus e são a prova viva de que não há limite para a sobrevivência. Denota-se aqui o princípio da Recursividade, em que esses adolescentes são produtos e produtores, escolhendo o caminho da vida ao invés de esperar pela morte. A fala de Bárbara exemplifica a vontade e a possibilidade de viver:

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Nesses 17 anos em que o HIV me acompanha, aprendi que tinha que fazer uma escolha: me entregar ou viver. E eu escolhi viver.

Escolher viver torna-se algo essencial para esses adolescentes. Construir suas identidades, dentro de um contexto permeado pelo preconceito, é uma luta diária. Segundo Bauman (2005), a medida que as pessoas se deparam com as incertezas, as inseguranças e o medo, as identidades sociais, culturais, religiosas e sexuais acabam sofrendo um processo de transformação contínua. Ou seja, os adolescentes passam a buscar alternativas para se regenerarem e se reorganizarem – o que evidencia o princípio da autoeco-organização – de modo permanente, dentro da realidade que lhe é apresentada.

No que se refere ao conhecimento de sua doença, bem como a adesão ao tratamento, esses adolescentes demonstram ter informações sobre o HIV, compreendendo suas características e seus riscos, como descrito na fala a seguir:

Se uma gripe é ruim para ti, para mim ela pode ser muito pior, pode virar uma pneumonia. (Lívia).

Como observado, a adesão ao tratamento significa muito mais do que tomar medicamentos ou seguir as orientações médicas, estando extremamente ligada à melhoria da qualidade de vida, e ao desejo de cuidar de si para cuidar do outro.

A troca de esquema dos medicamentos também merece atenção, pois, além de significar mudança de hábitos, gera dúvidas, expectativas quanto aos possíveis efeitos da nova medicação, como refere Bárbara:

Sei que a medicação vai mudar de novo e provavelmente tenha que vir mais vezes a Porto Alegre (Bárbara, 17 anos).

As entrevistas destacaram também que os adolescentes já estão habituados com a rotina exigida pelo tratamento, como exemplificado:

Dia desses fui dormir na casa de uma amiga. Ela se apavorou. Eu tomo 15 comprimidos por dia. Até a injeção eu já tomei (Bárbara, 17 anos).

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Aqui é possível identificar o Princípio da autoeco-organização, pois a medicação, que faz parte do cotidiano de Bárbara, não é um fator impeditivo para sair ou dormir na casa de amigas, assim como dormir na casa de amigas também não é um fator impeditivo para tomar a medicação. O mesmo princípio também é identificado na fala de Breno:

Na verdade ter AIDS não atrapalha meu dia a dia. Eu consigo tomar os remédios e, quando tenho que sair, levo os remédios comigo. Meus amigos já me perguntaram por que tomo remédio. Aí menti para eles. Falei que era para outra coisa (Breno, 15 anos).

Saliento aqui a dialógica em que vivem constantemente esses adolescentes: ao mesmo tempo em que são responsáveis pelos seus cuidados, em alguns momentos, surge o sentimento de revolta pela responsabilidade precocemente adquirida em função da rigidez nos horários das medicações, bem como pelos efeitos colaterais algumas vezes apresentados.

Tomar a medicação sempre foi algo bem difícil. Quando criança eu tomei o xarope de AZT. Credo, não gosto nem de lembrar. Ele queimava na boca e eu tinha que tomar água e água gelada em cima. O meu tio não aguentava nem o cheiro. Às vezes eu tava no pátio brincando e ouvia gritarem: Barbaráááá! Pronto, já sabia que era o remédio. O que mais me incomodava com a Fuseon eram os nódulos que ficavam cada vez que aplicava. Parecia que eu tinha levado uma pancada (Bárbara).

Nesse sentido, tanto os cuidadores como as equipes de saúde devem estar integrados na tarefa de auxiliar no tratamento. Essa responsabilidade deve ser compartilhada entre os três e, assim, possibilitar que o adolescente tenha condições de se adaptar às recomendações médicas, de acordo com suas necessidades. Dentro dessa perspectiva, eles utilizam a autonomia/dependência, para se adequarem às exigências do tratamento, como apresenta Bárbara:

Eu avisei o doutor que mudei o horário da minha medicação para poder tomar tudo certinho. Antes eu tomava uns às 6h e às 19h, mas sempre tinha alguém para me acordar. Agora não vou acordar cedo à toa só para tomar um remédio. Aí mudei para as 11h e a meia-noite (Bárbara).

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Perceber o adolescente, através da sua muldimensionalidade, é compreendê-lo em todas as suas dimensões: psicológica, emocional, física, biológica, cultural, espiritual entre outras. Portanto, o modo de vida, a rotina, as crenças pessoais, religiosas e as transformações dessa fase precisam ser considerados durante o tratamento, pois a adesão é um processo permanente e contínuo, conforme mostra o relato de Lívia:

Eu sou evangélica e uma vez o pastor me disse que eu tava curada, que eu não tinha mais o vírus no meu corpo. Aí eu acreditei nisso e parei de tomar os remédios. Foi quando eu tive uma pneumonia e tive que ficar internada. Fiquei quase um mês internada em estado regular. Eu continuo acreditando que Deus existe, mas Ele não disse que é para eu parar de tomar. (Lívia, 16 anos).

O depoimento de Lívia remete ao Princípio da Recursividade, uma vez que a adolescente, mesmo tendo passado por uma situação de adoecimento por ter parado com a medicação, dá-se conta de que precisa buscar uma maneira de continuar, tendo fé, mas sem interromper seu tratamento.

Nesse contexto, a problemática dos adolescentes que nasceram com o vírus, não pode ser vista e nem compreendida por meio da lógica fragmentada, predominante na concepção científica clássica, ou seja, na compartimentação dos fenômenos. Para além disso, as histórias de vida se apresentam como redes de relações, de serviços, de interações, exercendo um movimento constante de organização, desorganização e reorganização.

Em meu processo de construção/desconstrução/reconstrução, percebi a importância de ter utilizado a história de vida nesta pesquisa, pois descobri o que não está nos livros e sim nas vivências e nas relações humanas.

Apesar de recente, a história da AIDS causou um grande impacto, pois trabalhar com a AIDS desperta sentimentos, faz com que reavaliemos certos valores, nos mostra um outro mundo. A AIDS traz à tona o que as pessoas buscam esconder, os medos e os tabus, fazendo uma devassa na vida de quem tem o vírus. Ao longo dos últimos anos, a organização da sociedade civil e a participação das pessoas vivendo com HIV e AIDS (PVHA) têm contribuído para a redução do estigma e do preconceito. Desde então, buscam-se mudanças no modo de a sociedade encarar a doença que, por sua vez, interfere nas decisões das políticas públicas.

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Porém, com tantos avanços nas políticas públicas e na ciência, algo parece não evoluir: o pensamento humano. As pessoas que vivem com HIV/AIDS ainda sofrem com o preconceito e o estigma. A AIDS ainda ‘despersonaliza’, descaracteriza o sujeito. Dessa forma, além de se preocupar com a saúde e com a possibilidade de morte, quem vive com AIDS ainda tem que se preocupar com a exclusão da sociedade e até mesmo da família, aumentando ainda mais o sofrimento.

O enfrentamento da AIDS pelos adolescentes infectados por meio da transmissão vertical representa um grande desafio. As crianças se transformaram em adolescentes, e essa transformação vem acompanhada de manifestações de ordem biológica, psicológica e social peculiares na adolescência, agravadas por uma doença crônica e limitante. A adolescência é um período marcado por ambivalências, contradições, conflitos, com as regras sociais e as figuras de autoridade, um despertar para novas formas de viver e um modo de ser no mundo (BLOS, 1985; ABERASTURY, 1983). A infecção pelo HIV pode ser vista como “uma figura de autoridade”, impondo limites na vida cotidiana e nas relações sociais dos adolescentes.

Nesta pesquisa, os adolescentes mostraram uma relação com a AIDS diferenciada da relação estabelecida pelos adultos. A primeira geração de adolescentes que nasceram com AIDS mostra que não há limites para a sobrevivência, fazendo com que haja uma mudança de discurso: a AIDS desvincula-se da morte a associa-se à vida.

Eles mostraram também que essa sobrevivência está garantida clinicamente, devido ao avanço da medicação, pois a sobrevivência na sociedade é uma luta diária. E é aqui que revelo o principal achado desta pesquisa: para esses adolescentes, histórias vividas e histórias contadas se complementam dentro do princípio da autoeco-organização como estratégia necessária de sobrevivência.

O referencial da complexidade, que norteou esta pesquisa, possibilitou conhecer as particularidades de como é viver com AIDS, além de conhecer as histórias paralelas existentes na vida dos três adolescentes participantes. Foi através do referencial que compreendi a invisibilidade, que antes para mim era algo imposto e que, ao aprofundar minhas leituras, em Morin, passei a compreendê-la como um direito de quem sofre ainda com o preconceito e a exclusão.

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A minha leitura dessa história mudou, e não pretendo finalizar essa discussão, e sim mostrar que existem possibilidades de realizar outras leituras, buscando novas perspectivas de compreensão do fenômeno aqui estudado.

Assim, finalizando, quero compartilhar o melhor retorno que poderia ter desta pesquisa: a confiança de Bárbara, Breno e Lívia, que revelaram a mim as suas histórias – as vividas e as contadas! E, embora saiba que existem muitos outros adolescentes enfrentando os mesmos desafios, para os três participantes foi possível falar de algo escondido, e que, a partir de agora, este estudo poderá servir para socializar o que era até então desconhecido.

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SOBRE AS AUTORAS

Berenice Rojas Couto – Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Coordenadora da Área de Serviço Social e Economia Doméstica da CAPES. Professora de graduação e de pós-graduação da FSS da PUCRS. E-mail: [email protected]. Cláucia Ivete Schwerz – Assistente Social/PUCRS. Mestra em Serviço Social/PUCRS; Especialização em Saúde Mental Coletiva pelo Programa de Residência Integral em Saúde/ESP-RS. Assistente Social na Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras de Deficiência e de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul (FADERS). E-mail: [email protected].

Kelinês Gomes – Assistente Social. Doutora em Serviço Social/PPGSS/PUCRS. Preceptora de Residência Multiprofissional em Saúde/ULBRA. Docente da ULBRA. E-mail: [email protected].

Luciana Basile Silva – Assistente Social. Especialista pelo Programa de Residência Integrada em Saúde da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. Mestra em Serviço Social pelo PPGSS/PUCRS. E-mail: [email protected].

Maíra Giovenardi – Assistente Social. Especialista em Práticas Sociais Interdisciplinares. Especialista em Saúde Coletiva com ênfase em Saúde Mental/RIS/ESP. Mestra em Serviço Social pelo PPGSS/PUCRS. E-mail: [email protected].

Maria Isabel Barros Bellini – Assistente Social. Especialista em Saúde Mental pela Residência em Saúde Mental/SES. Mestra e Doutora em Serviço Social pelo PPGSS/PUCRS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Faculdade de Serviço Social (FSS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI/PUCRS). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Membro da equipe da Assessoria Técnica de Planejamento/SES. E-mails: [email protected], [email protected].

Marisa Camargo – Assistente Social. Especialista em Atenção Básica em Saúde Coletiva pelo Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM) e Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS). Mestra e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Faculdade de Serviço Social (FSS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI/PUCRS). Bolsista da Coordenação de

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Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Apoiadora técnica em pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEST/UFRGS). Professora do Curso de Serviço Social do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais (DCJS) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). E-mail: [email protected].

Simone da Fonseca Sanghi – Assistente Social. Especialista em Saúde Coletiva pela ESP/RS, Mestra em Serviço Social pela PUCRS (PPGSS/PUCRS, no ano de 2005), Docente do Curso de Serviço Social da ULBRA, campi Gravataí e Canoas. E-mail: [email protected].

Tatiane Moreira de Vargas – Assistente Social, Preceptora e Ex-Residente da Residência Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição, Ênfase em Saúde da Família e Comunidade, Doutoranda em Serviço Social (PPGSS/PUCRS). E-mail: [email protected].

Thaísa Teixeira Closs – Assistente Social da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA), Docente na Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FSS/PUCRS). Especialista em Atenção Básica/Saúde Coletiva pelo Programa de Residência Integrada da Escola de Saúde Pública do RS (RIS-ESP/RS). Mestra e doutoranda em Serviço Social pela FSS/PUCRS. E-mails: [email protected]; [email protected].

Vanessa Maria Panozzo – Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela PUCRS. Professora de graduação e pós-graduacão do Curso de Serviço Social, da ULBRA, campus Gravataí. Preceptora do Núcleo de Serviço Social da Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da Faculdade de Educação da Universidade do Rio Grande do Sul – FACED/UFRGS. E-mail: [email protected].

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