servidão e obediência no pensamento político de...
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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO
Thais Florencio de Aguiar
Servidão e obediência no pensamento político de Spinoza
Rio de Janeiro 2006
THAIS FLORENCIO DE AGUIAR
Servidão e obediência no pensamento político de Spinoza
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a aquisição do título de Mestre em Ciências Humanas: Ciência
Política
Rio de Janeiro 2006
THAIS FLORENCIO DE AGUIAR
Servidão e obediência no pensamento político de Spinoza
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Humanas: Ciência
Política.
___________________________________
Prof.º Cesar Guimarães (Orientador)
___________________________________
Prof.º André Martins
___________________________________
Prof.º Renato Lessa
Rio de Janeiro
2006
Dedico esta dissertação ao grupo de estudos que me
ensinou a descobrir a obra de Spinoza.
Agradecimentos
É preciso registrar aqui minha imensa gratidão ao professor Herio Saboga e aos colegas Alexandre, André, Gabriel, Pablo, Patrick e Renata, pela convivência estimulante
que tivemos por ocasião dos encontros do grupo de estudos formado a partir da experiência na Escola de Comunicação da UFRJ. Muitas inquietações produzidas durante aquelas discussões foram retomadas neste trabalho. Devo expressar minha profunda admiração e meus sinceros agradecimentos ao
professor Cesar Guimarães. Seu incentivo foi decisivo para meu ingresso no Iuperj, assim
como para a redação desta dissertação em tempo regulamentar. Combinando conhecimento
e afabilidade, sabedoria e singeleza, Cesar Guimarães demonstrou-me sua grandiosidade
não só como mestre orientador, mas também como ser humano.
É imprescindível agradecer ainda aos professores Renato Lessa e Marcelo Jasmin,
com os quais cursei grande parte do mestrado. Com eles, aprendi, em aulas instigantes, a
pensar a política. Agradeço em dobro ao professor Lessa pela participação na banca de
avaliação deste trabalho, assim como ao professor André Martins (UFRJ). Foi uma honra
inestimável poder contar com uma banca tão qualificada e valiosa como essa. Sou grata
também ao permanente incentivo do professor Paulo Vaz, meu orientador durante a
graduação na UFRJ, que me introduziu ao mundo da pesquisa. Nunca poderei deixar de
reconhecer, a cada agradecimento a ser escrito ao longo da minha existência, o papel
determinante da professora Heloísa Gomes, uma das primeiras professoras a me fazer
cultivar, ainda menina, o gosto e o prazer pelo conhecimento.
Sou realmente agradecida pela bolsa de mestrado que me foi concedida pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) ao longo desses
dois anos de formação. Esse auxílio possibilitou-me a dedicação exclusiva aos estudos e,
mais do que isso, selou em mim um compromisso com a educação brasileira.
Por fim, constato que este trabalho não existiria sem o apoio de Sonia Davidson,
sem o carinho alentador de meus pais e de minhas irmãs e sem a paciência, a alegria e o
amor de meu companheiro Pablo. Com eles, tudo ficou mais fácil.
Resumo
Esta dissertação dedica-se à distinção das concepções de servidão e obediência no
pensamento político de Spinoza (1632-1677). Destoando da tradição política ocidental, a
noção de servidão spinozista envolve conceitos concernentes, sobretudo, à ontologia e à
epistemologia. Ela pode ser traduzida como um estado de impotência do indivíduo em
conhecer a cadeia de causas e conseqüências das coisas, sendo ainda entendida como
condição existencial do indivíduo. Considerando essa condição, a obediência decorre de um
complexo de afetos e, à medida que regula paixões, desejos e potência do indivíduo, parece
confundir-se com a própria idéia de servidão. Por outro lado, a obediência estabelece-se
como artifício fundamental da liberação do indivíduo, visto que essa liberação só se torna
plena por meio de um projeto político coletivo, isto é, através da sociabilidade humana e da
sociedade política. Essa aparente contradição obriga a penetrar, portanto, em um labirinto
teórico, a partir do qual se identifica uma ambivalência fundadora do pensamento político
spinozista, ligada ora à servidão ora à liberdade. Para melhor distinguir o pensamento
político de Spinoza, impôs-se ainda a tarefa de contrapor sua noção de servidão à hipótese
da servidão voluntária de La Boétie (1530-1563), de modo a destacar a dissociação entre
servidão e livre-arbítrio existente no spinozismo. Esta dissertação pode ser caracterizada
como um estudo exegético realizado a partir da leitura de a Ética, o Tratado Teológico-
Político e o Tratado Político.
Sumário
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................1 I. Indivíduo e servidão ...................................................................................................5 II. Corpo político, servidão e obediência ......................................................................28 III. Obediência e risco da servidão voluntária ...............................................................49 CONCLUSÃO. ....................................................................................................................71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................77
Introdução
Este texto se dedica ao estudo de aspectos do pensamento político de um dos mais
incompreendidos e relegados pensadores da filosofia ocidental – Baruch (ou Bento, em
português, Benedictus, em latim) de Spinoza (1632-1677). O cerceamento religioso e
político à sua obra – que levou o termo “spinozismo” a significar injúrias e ameaças –
reproduziu-se para além do seu curto período de vida, apresentando-se como falta de apreço
pela sua produção intelectual. Pierre Bayle, por exemplo, em seu dicionário, julgou o
spinozismo como “a mais monstruosa hipótese imaginável, a mais absurda e oposta às
noções mais evidentes do entendimento” e também David Hume referiu-se à “horrenda
hipótese” de Spinoza. Em contrapartida, poetas e críticos de arte como Goethe e Coleridge
disseram-se spinozistas; para Hegel, Spinoza foi considerado “um ponto crucial na filosofia
moderna”. Em 1881, Nietzsche, outro maldito que filosofou contra o seu tempo,
manifestaria seu entusiasmo por Spinoza: “estou encantado: tenho um precursor, e que
precursor! Não conhecia Spinoza. Minha solidão, que me dificultava a respiração, é a partir
de agora uma dualidão”.
Se hoje o spinozismo goza de alguma aceitação nas escolas de filosofia e alguns
círculos filosóficos têm por ele predileção, o mesmo não ocorre nas escolas de teoria
política, muito embora a filosofia spinozista só adquira plenitude através de uma práxis
política. Não se pode negar, é verdade, que sua teoria, por conta da defesa da liberdade de
pensamento, ecoará parcialmente no ideário da Revolução Francesa. Nem isso, no entanto,
o porá no centro da reflexão política, a não ser como componente menor da corrente
jusnaturalista de pensamento. A considerar o parecer de um expoente como Hampshire
(1951), Spinoza, “pese sua dívida com Thomas Hobbes”, foi muito menos original como
filósofo político do que como metafísico1.
A despeito disso, propõe-se aqui penetrar nos meandros da concepção política
exposta na obra desse filósofo. Como o campo é vasto, a atenção volta-se para as noções de
servidão e obediência civil. Cumpre saber como a idéia de servidão, tema que soa um tanto
démodé no parlatório pós-moderno da democracia capitalista e liberal, revela-se atual.
Trata-se de perceber como esse conceito, que traduz a condição existencial do indivíduo,
pode ser tomado como uma ferramenta de dominação no campo político e, ao mesmo
tempo, como desafio a ser superado somente pelo projeto político. A feição que a servidão
adquire em Spinoza é ainda totalmente diversa daquelas que vigoraram em autores da
modernidade como La Boétie e, bem mais tarde, Tocqueville. Por conseguinte, também sua
concepção de liberdade destoa da concepção burguesa que vigora no mundo
contemporâneo.
Quase não se pode falar em pensamento filosófico e político ocidental sem
mencionar a noção de obediência civil. Essa palavra-chave apresenta-se nas mais diversas
formas ao longo da história – marido/mulher, pai/criança, príncipe/súdito, senhor/escravo,
Deus/crente – e está calcada na idéia de subordinação da vontade a uma autoridade, seja
esta uma pessoa ou uma comunidade. Também em Spinoza ela não poderia deixar de
apresentar-se como categoria política; no entanto, ela perde sobremodo suas características
como princípio de coesão social. Como se verá, a idéia de obediência não passa, para
Spinoza, de artifício político, visto que o filósofo se desfaz de todo arcabouço moral,
hierárquico e dualista (bem e mal) que sedimenta tradicionalmente o terreno da obediência.
A teoria de Spinoza forma um sistema coerente, completo e original, a despeito das
influências que sua obra recebe, especialmente, a filosofia grega (com ênfase para o
estoicismo), a escolástica, a filosofia judaica medieval, a filosofia cartesiana e o
pensamento político hobbeseano. Em verdade, Spinoza incorpora e supera em grande
medida essa herança intelectual, dando origem a um aparato filosófico próprio. Como parte
inerente desse sistema, a concepção política spinozista, para se tornar inteligível, demanda
o conhecimento de conceitos básicos concernentes, sobretudo, à ontologia, à epistemologia
e à antropologia política que compõem seu sistema intelectual. Trata-se de perceber como
seu pensamento político perde sentido sem a projeção de uma ontologia muito própria,
profundamente passional – mas que também pode ser racional – e marcada por duas formas
principais de cognição das coisas, a saber, a imaginação e a razão. Esses conceitos básicos
funcionam como alicerces que edificam a sociabilidade humana, isto é, um corpo social e
1 Ainda que o próprio Hampshire considere que a abordagem política de Spinoza seja “completamente inteligível, aparecendo-nos como uma antecipação de métodos que chegaram a ser familiares ao pensamento contemporâneo”.
político decorrente de uma ontologia essencialmente imanente. A apresentação desses
fundamentos teóricos aparece no primeiro capítulo desta dissertação e, já nessa etapa, vê-se
configurar o que Spinoza chama de servidão do indivíduo.
A questão da obediência civil está imersa em controvérsias. Parece confundir-se
com a própria idéia de servidão, à medida que pretende regular paixões, desejos e potência
do indivíduo. Ora, se a condição passional e imaginativa do indivíduo denota sua
impotência em governar-se e agir adequadamente conforme o conhecimento das causas,
como tornar uma sociedade, onde se multiplicam essas paixões e imaginações, apta a se
governar? Isto é, multiplicada, a servidão do indivíduo daria lugar à servidão da multidão?
Cumpre notar, primeiro, que o projeto político spinozista tem em vista o favorecimento do
conatus, isto é, o permanente esforço do indivíduo em afirmar-se na existência. Segundo,
que a visão spinozista repele qualquer demofobia, posicionando-se, portanto, contrária a
projetos políticos que não reconheçam na “massa” a expressão de sua potência, tendendo a
temê-la e contê-la. O propósito filosófico político anuncia, portanto, uma busca da
liberação do indivíduo. Diante disso, como pensar, então, o conceito de obediência civil
como categoria política e, portanto, regulação desse esforço, encaixando-a em uma filosofia
que afirma ao mesmo tempo que a liberdade se realiza unicamente nas relações mantidas
sob esse Estado? Considerando essas indagações, a questão central do segundo capítulo
deste estudo versará sobre como o artifício político da obediência oscila em uma
ambivalência ligada ora à servidão, ora à liberdade.
Essa questão central implica uma interrogação que inquietou Spinoza: por que os
homens se orgulham de sua escravidão ou por que lutam por sua servidão como se lutassem
por sua liberdade. Recorrendo aos anais da teoria política, vê-se que, no século anterior,
outro pensador espantou-se com a servidão humana e os efeitos da obediência, vindo a
formular a hipótese da servidão voluntária. La Boétie (1530-1563), tal qual Spinoza,
perturbou-se ao ver que a ordem política transformara a sociedade em um ajuntamento de
escravos em vez de uma comunidade de homens livres. O terceiro e último capítulo intenta
confrontar as visões de La Boétie e Spinoza acerca da servidão e da obediência civil.
A elaboração desta dissertação demandou a leitura transversal daquelas que se
consideram as três maiores obras acerca do pensamento político de Spinoza. A primeira
delas, o Tratado Teológico-Político (sigla TTP), foi publicada pela primeira vez, em 1670,
sem o nome de autor e em uma falsa edição alemã, o que não evitou a identificação da
autoria, além de anátemas, insultos e maldições proferidos por judeus, católicos, calvinistas
e luteranos e também o ataque de cartesianos. O TTP, assim como as duas outras obras de
Spinoza estudadas para esta dissertação, foi escrito originalmente em latim; na
impossibilidade de ler a obra no idioma original, utilizou-se aqui a tradução portuguesa do
TTP realizada pela Casa da Moeda, em Lisboa.
A segunda obra, a Ética, foi escrita entre 1661 e 1675; Spinoza cogitou publicá-la
em 1675, mas foi dissuadido por motivos de prudência e segurança. Dessa obra, abordam-
se, principalmente, as partes III e IV, utilizando-se a tradução brasileira disponível na
edição de Os Pensadores, tendo paralelamente como referência a edição bilíngüe
(francês/grego-latim) da Éditions du Seuil, publicada em Paris. E ainda o Tratado Político
(sigla TP), escrito de 1675 até a morte de Spinoza, em 1977; a obra foi interrompida
justamente durante a redação do capítulo dedicado ao estudo das formas de se conservar um
Estado democrático. Para a leitura do TP, utilizou-se a tradução realizada para a edição
brasileira de Os Pensadores.
As obras de outros pensadores que interpretei importantes aparecem nas referências
bibliográficas. Para a produção deste estudo, vali-me intensamente de pensadores como
Gilles Deleuze, Alexandre Matheron, Étienne Balibar, André Tosel, Diogo Pires Aurélio e
Marilena Chauí. Algumas passagens textuais reproduzidas de obras escritas em inglês,
francês ou espanhol foram traduzidas pela própria autora deste trabalho.
CAPÍTULO I
Indivíduo e servidão
1. O conatus e as paixões
Há, na obra de Spinoza, um vínculo forte e orgânico entre indivíduo e comunidade
política, constituída a partir de uma visão menos teórica e mais prática e não contemplada
apenas na idéia de que a comunidade é a simples soma de indivíduos. Cumpre
compreender, portanto, como se configura essa organicidade, pois, uma vez desvelada tal
organicidade, atesta-se a imanência da esfera política spinozista, em oposição a todo e
qualquer conteúdo transcendente que, incorporado ou não pelo discurso teológico-político,
vigorou, ao longo da história da humanidade, como princípio ordenador da vida política.
A análise desse vínculo torna-se relevante para esta dissertação porquanto percebe-
se que da imanência instaurada por ela deriva uma visão mais holística do conceito de
servidão e de obediência na política, temas centrais aqui. Trata-se, por conseguinte, de
analisar, neste capítulo, os primeiros passos dados por Spinoza na direção da fusão do
indivíduo no corpo social, além de examinar o que o filósofo caracteriza como gênese da
servidão.
Desse modo, este capítulo tem por intuito compreender os conceitos básicos e os
aspectos principais das partes II (Da Natureza e da Origem da Alma), III (Da Origem e da
Natureza dos Afetos) e IV (Da Servidão Humana ou das Forças dos Afetos) da Ética. A
despeito do sistematismo spinozista, os conceitos são apresentados aqui de forma
abreviada, muito embora tenha se tentado manter a lógica geométrica que caracteriza a
obra. Na Ética, Spinoza desenvolve não só uma ontologia e uma antropologia política, mas
também os alicerces do estado civil e a origem do mecanismo de servidão do indivíduo.
Esses conceitos permitirão ao leitor deste estudo avançar sobre a leitura do Tratado
Teológico-Político (TTP) e do Tratado Político (TP), cuja visão sobre servidão e
obediência aparece nos capítulos seguintes. Ver-se-á que conhecer as causas relacionadas à
servidão implica em cristalizar o fundamento da obediência na comunidade.
O estudo de alguns dos conceitos básicos da Ética se faz importante, sobretudo, à
medida que se diz que o TTP apresenta uma Ética “subterrânea”2. Ou seja, considera-se que
concepções desenvolvidas na Ética estão implícitas ou subjacentes no conteúdo do TTP,
assim como no do TP, concepções essas sem as quais a leitura desses Tratados perde muito
de sua compreensão. Nesse sentido, o TTP, publicado em 1670, e o TP, escrito entre 1675 e
1677, podem ser considerados extensões da Ética, esta elaborada entre 1661 e 1675, ou
seja, quase simultaneamente àquelas obras (Deleuze, 2002, p. 20 e 21)3. Porém, a retomada
dos conceitos da Ética nessas obras indica não somente uma quase-simultaneidade
cronológica ou uma coerência intelectual, mas também uma preocupação teórica
sistemática movida pela busca das razões que conduzem os homens a lutar por sua servidão
com a mesma tenacidade com que lutariam por sua liberdade.
*
Um dos conceitos-chave na filosofia política spinozista, tema fundamental da
Ética, é a concepção ontológica do conatus. Segundo sua definição (Ética, III, prop.6), as
coisas4 possuem uma tendência natural em afirmarem sua essência e perseverarem na
existência. Isto é, “toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”.
Ainda de acordo com Spinoza, esse esforço constitui a própria essência atual de uma coisa
(idem, III, prop.7), o que reafirma a importância do conatus no sistema spinozista, pois é
2 A expressão é de Andre Tosel, utilizada em Spinoza et le crépuscule de la servitude: essai sur le Traité Theologico-politique. 3 Todas as três obras aqui citadas foram escritas em latim. Com a morte de Spinoza em 21 de fevereiro de 1677, o TP fica inacabado, tendo sido interrompido no capítulo XI, dedicado ao estudo da democracia, sistema político considerado o mais apropriado pelo filósofo. Das três obras, Spinoza só publicou em vida o TTP. Tanto a Ética quanto o TP viriam a ser publicados somente após sua morte, ainda em 1677, na publicação Opera posthuma. Spinoza teria pensado em publicar em 1675 a Ética, porém, por prudência, renuncia à intenção. 4 É bom lembrar que Spinoza não sustenta na Ética uma visão antropocêntrica. Sua demonstração sobre as ordens das coisas não se restringe aos indivíduos, seres humanos; muito pelo contrário, o homem é apenas uma parte da Natureza. Por isso, embora tenha-se chamado o conatus de concepção ontológica, cumpre ressaltar que o conatus não é mecanismo exclusivo do homem, mas também de infinitas outras formas de existência. Considerações propriamente referidas aos homens aparecem a partir do livro III por ocasião da abordagem da formação de afetos ou sentimentos. Esse estudo quase sempre se refere ao homem, mesmo assimilando tal visão não antropocêntrica de Spinoza.
graças a esse mecanismo de esforço que o homem e todas as outras formas de existência,
por exemplo, afirmam a vida, repelem ameaças de destruição e buscam manter sua
constituição vital.
Perseverar no ser não pode ser entendido apenas como longevidade ou
prolongamento da vida. Para Spinoza, isso não é sinal de perfeição. Perseverar é, sim, durar
ou continuar indefinidamente a existência. Todavia, como adverte Spinoza, “nenhuma coisa
singular pode ser dita mais perfeita porque perseverou mais tempo na existência, já que a
duração das coisas não pode ser determinada por sua essência” (idem, IV, Prefácio). Isso
ocorre porque a duração não é determinada apenas pela essência, isto é, pela força do
conatus – força essa chamada de potência –, pois fosse isso que a explicasse, não haveria a
morte. Ver-se-á, mais adiante, que a potência do conatus pode ser superada por outras
potências concorrentes.
A duração consiste, portanto, em apenas uma determinação do conatus. Ele
comporta ainda uma segunda determinação, a saber, a de ampliar ou atualizar a essência do
homem, essência essa que se expressa pelo seu apetite ou desejo, ou melhor, apetite e
desejo constituem a própria essência do homem. Da natureza dessa essência “se segue
necessariamente o que serve para a sua conservação” (idem, III, prop.9). O desejo se traduz,
portanto, por expressão desse forte impulso de conservação, isto é, do conatus. Conforme
assinala Deleuze (2002, p.108), “o conatus, tornado consciente de si sob este ou aquele
afeto [sentimento], chama-se desejo, sendo este sempre desejo de alguma coisa”.
Essa disposição em opor-se a tudo o que destrua ou suprima a existência do
homem (e das coisas) é incondicional, ou seja, ocorre mesmo enquanto o homem tem idéias
confusas e deturpadas ou enquanto tem idéias claras e distintas das coisas, mesmo enquanto
lida com representações imaginárias ou com concepções da razão. Por conseguinte, são
inconcebíveis atitudes de autodestruição do indivíduo. Para Spinoza, “nenhuma coisa pode
ser destruída, a não ser por uma causa exterior” (idem, III, prop 4), o que retira da morte
qualquer relação com a aquiescência. Portanto, algo ou alguém só é decomposto na medida
em que a potência de uma causa externa prevalece no confronto com sua potência. E,
conforme registra Spinoza no axioma do livro IV, essa comparação de potências consiste na
própria condição da existência: “Não existe, na Natureza, nenhuma coisa singular tal que
não exista uma outra mais potente e mais forte que ela. Mas, dada uma coisa qualquer, é
dada uma outra mais potente pela qual a primeira pode ser destruída”.
Aí está a dificuldade de toda coisa em exprimir plenamente a essência, dado que
ela não é determinada pela potência do homem – esta potência é limitada e infinitamente
superada pela potência das causas externas (idem, IV, props.3 e 5). Isso significa que a
existência define-se necessariamente pela potência de uma causa externa em comparação
com a do homem. É o que leva Deleuze a sintetizar que “tudo é uma luta de potências”.
A partir do momento em que concorre com outras potências, há, portanto, uma
variação constante da potência do conatus. Assim, a potência do homem pode ser
aumentada ou reduzida conforme seu corpo e suas idéias interagem com outros corpos ou
outras idéias. Esse evento, designado por Spinoza como afecção, modifica corpos e idéias,
pois um age sobre o outro, um afeta o outro deixando espécies de impressões. Por isso, em
função desses choques entre corpos e idéias são produzidas imagens, que podem ser
entendidas como uma forma de percepção das coisas, ou seja, como representações ou
idéias-imagens.
A formação dessa idéia e imagem produzidas nesse encontro é um momento
fundamental na concepção do homem sobre a existência. Com freqüência, essas idéias-
imagens englobam ao mesmo tempo a natureza do corpo afetado e a do corpo exterior
afetante (idem, II, prop.16), dando origem, portanto, a idéias confusas. A natureza de um
grande número de corpos é percebida pela mente humana ao mesmo tempo que a do seu
corpo. Além disso, como ensina o corolário II desta mesma proposição, nesse processo, as
idéias que nós temos dos corpos exteriores indicam mais a constituição do nosso corpo do
que a natureza dos corpos exteriores. Isto é, os afetos ou sentimentos que provêm do
encontro com outros corpos existentes explicam-se pela imagem confusa da natureza do
corpo afetante envolvida pela natureza do nosso corpo.
Assim, as idéias confusas, assim como os afetos decorrentes delas, não deixam de
ser uma projeção da potência do homem sobre as coisas, ou seja, eles exprimem a tendência
de conservação e afirmação do ser. Assim, à medida que o homem é permanentemente
afetado por idéias-imagens, sua “alma [mente ou espírito]5 é determinada a pensar tal
5 Ao cotejar as traduções portuguesa (Os Pensadores, da Editora Abril) e francesa (Éditions du Seuil), verifica-se a preferência da primeira publicação pelo termo “alma”, enquanto a segunda opta pelo termo “espírito”. Segundo Deleuze (2002), Spinoza evitou utilizar a palavra alma, a não ser em momentos especiais,
coisa de preferência a tal outra”6 (idem, III, Definição Geral dos Afetos). Com efeito, são
dessas idéias-imagens que emanam os afetos (isto é, sentimentos); ou seja, entre uma e
outra afecção ou idéias-imagens, o homem experimenta esses afetos; quando eles
favorecem e ampliam a potência do conatus, são denominados afetos e sentimentos alegres
e, quando diminuem e entravam a potência, são chamados afetos tristes.
Pode-se argumentar que, por determinação do conatus, a “mente esforça-se tanto
quanto pode por imaginar as coisas que aumentam ou facilitam a potência de agir do corpo”
(idem, III, prop.12). Isso levaria a pensar que os homens tendem sempre a fazer com que se
produza em si afetos de alegria, visto que aumentam a potência. No entanto, em condições
naturais de existência, eles não têm o domínio de definir de que maneira serão afetados.
Ademais, os afetos tristes sempre existirão enquanto potências houver maiores e contrárias
à natureza dos homens.
Mas, por que não têm os homens o domínio de definir a maneira de ser afetado? É
preciso entender que os afetos que provêm de eventos, como o encontro com outros corpos
ou o choque entre idéias, explicam-se pelas imagens confusas que não distinguem bem a
natureza do corpo externo e nem mesmo a natureza do corpo afetado. Recolhemos desses
eventos apenas impressões, de baixa nitidez, ou seja, temos idéias inadequadas desses
corpos ou dessas imagens, porquanto não são compreendidas como parte de uma cadeia de
causas e efeitos. Em outras palavras, os corpos e idéias não se compreendem como causas
adequadas dos afetos deles originados a não ser parcialmente.
Quando isso ocorre, isto é, quando o efeito não pode ser conhecido por uma causa
que não somente de forma parcial, chama-se causa inadequada. Por conseguinte, enquanto
o homem concebe idéias inadequadas, ou seja, “quando em nós se produz qualquer coisa ou
por entender que ela estava marcada por um sentido teológico. De fato, verificando na mesma edição bilíngüe da Éditions du Seuil o texto escrito em latim, nota-se que Spinoza aplica o termo mens com maior freqüência, termo esse que as traduções francesas, inclusive a consultada para este estudo, traduzem por espírito. No entanto, acredita-se que a palavra espírito ainda traga, ao olhos do leitor, forte carga divinizada ou santificada. Em função desse e de outros problemas de tradução, adotamos o seguinte procedimento: a) usar a tradução portuguesa, ainda com suas limitações, cotejando quando necessário com a tradução francesa em uso; b) indicar as divergências de tradução significativas através de notas. No caso em questão, percebe-se que a palavra mens apresenta uma abrangência sinonimística vasta, que engloba os sentidos de faculdade intelectual, inteligência, espírito, alma, razão, sabedoria, juízo, discernimento, caráter, índole, etc. Seria importante que a palavra mens fosse retida, então, como sinônimo de mente, no sentido de representar um conjunto de processos cognitivos e atividades psicológicas que englobam o entendimento, o pensamento, a percepção, a memória, a imaginação e o intelecto, todos eles considerados meios pelos quais se formam as idéias. 6 Grifo do autor.
qualquer coisa se segue da nossa natureza de que não somos senão causa parcial” (idem, III,
Definições, 2), somos passivos, isto é, padecemos. Em Spinoza, o verbo padecer, como se
nota, está relacionado à idéia de sofrer alguma modificação sem compreender perfeitamente
as causas verdadeiras e, por isso, não poder agir sobre elas de modo adequado. Diante
disso, os afetos decorrentes dessa condição existencial são chamados por Spinoza de
paixões (em latim, passio, que significa paixão, passividade, sofrimento e relaciona-se ao
verbo patior, pati, que significa sofrer, padecer, suportar).
A paixão, portanto, designa sempre uma causa externa. Diz-se que a mente
imagina enquanto está sob o efeito da paixão. Por isso, a partir do momento em que a
mente percebe algo como causa de alegria ou tristeza, ela tende a associar a alegria à coisa
através da qual experimentou alegria e tristeza à coisa através da qual experimentou
tristeza. Enquanto imagina, a mente ou espírito está inclinada a ignorar as causas
verdadeiras das coisas e dos afetos aos quais está submetida. Em função desse mecanismo
de associação, Spinoza determina que o amor não é outra coisa senão a alegria
acompanhada da idéia de uma causa exterior e o ódio, por sua vez, é a tristeza
acompanhada da idéia de uma causa exterior.
Já que o afeto de alegria indica algo que aumenta ou fortalece a potência e o de
tristeza algo que a reduz ou entrava, Spinoza define-os como afetos ou sentimentos
primários, juntamente com o desejo. Combinados, esses afetos primários dão origem a
todos os outros afetos-paixões possíveis, que podem variar de acordo com as conexões
feitas pela imaginação. Assim, pode-se derivar o orgulho, o arrependimento, a glória, a
inveja, o medo, a esperança e tantos outros7.
Pode ainda ocorrer que a alma seja afetada por dois eventos, corpos ou idéias ao
mesmo tempo, donde resultará um afeto, que logo se associará ao(s) objeto(s) em questão.
Spinoza demonstra que a reaparição de somente um desses corpos suscita na memória a
reaparição do outro, tornando-o também presente, de modo que uma coisa qualquer pode
vir a ser, por acidente, causa de alegria ou de tristeza. Ou ainda, por um simples traço de
semelhança que uma coisa qualquer mantém com outra amada ou odiada, ela se torna causa
7 Os afetos ditos principais são definidos por Spinoza na parte III da Ética, somando o total de 43 definições. Outros afetos, no entanto, podem ser produzidos. Para Spinoza, “é evidente para todos que os afetos podem combinar-se entre si de muitas maneiras, e que deles podem resultar tantas variações que é impossível determinar o número” (Ética: III, 59-esc.).
de alegria ou tristeza. Da mesma forma, a semelhança de um objeto amado com outro
odiado pode por a mente, isto é, a alma em um estado de incerteza ou de flutuação. Essa
“flutuação da alma” nasce do encontro de duas paixões contrárias (Ética, III, props.12 a 17
e Delbos, 1916, p.133).
Esses mecanismos de transferências e associações de idéias permitem verificar o
quão fortuitas são as relações de causas e efeitos expressas pelos afetos. A partir desses
afetos, que são idéias inadequadas, segue-se uma seqüência infinita de outras idéias
inadequadas, o que configura um verdadeiro “labirinto da vida afetiva”8. Assim, enquanto
vive sob paixão, ou seja, se move determinado por idéias confusas, o homem é passivo, está
à mercê da fortuna. Spinoza observa que, movido pelas paixões, “somos agitados pelas
causas exteriores de numerosas maneiras e que, como as ondas do mar agitadas por ventos
contrários, somos sacudidos, ignorando o que nos espera e a nossa sorte” (Ética, III,
prop.59-escólio.)
Ao contrário, o homem que tem idéias adequadas tende a agir, isto é, tende a ser
ativo. Uma causa é adequada quando seu efeito pode ser clara e distintamente
compreendido por ela, ou seja, “quando se segue da nossa natureza, em nós ou fora de nós,
qualquer coisa que pode ser conhecida clara e distintamente apenas pela nossa natureza”
(Ética, III, Definições). Portanto, o homem entende-se como parte de um todo, e, como
parte que é, compreende também o encadeamento de causas em um âmbito maior do que
aquele restrito à sua esfera de atuação. A partir do momento em que compreende, o homem
pode agir, pois não é mais constrangido e determinado a atuar pelo impulso das paixões.
Em outras palavras, desde já se pode observar que agir ou ser ativo em Spinoza significa
conhecer as causas das coisas.
Visto que agir relaciona-se às idéias adequadas, pode-se considerar que mesmo um
afeto de alegria, embora aumente a potência, seja ainda uma paixão. Ela seguirá sendo uma
paixão “enquanto a potência de agir do homem não cresceu a ponto de que ele se conceba
adequadamente, a si mesmo e às suas próprias ações” (idem, IV, prop.59-demonstração.).
Quando a potência do homem cresce a esse ponto, formula Deleuze, o homem adquire a
plena posse formal da potência de agir (2002 e 1968). Nesse patamar, a alegria não se
8 Expressão de Pierre Macherey que aparece no apêndice de seu livro “Introduction à L´Ethique: les voies de la libération”.
define mais por um aumento da potência de agir, mas ela leva o homem a exercer o próprio
domínio dessa potência (2002, p.57).
Torna-se evidente, portanto, que a teoria spinozista visa ao abandono da
passividade, para o qual prescreve o efeito libertador do conhecimento. Para tanto, o
homem depende da concepção das idéias adequadas. No entanto, “a alma [lê-se espírito,
mente] está sujeita a um número de paixões tanto maior quanto maior é o número de idéias
inadequadas que tem; e, ao contrário, é tanto mais ativa quanto mais idéias adequadas tem”
(Ética, III, prop.1-corol.). Emerge, então, uma questão: à medida que, submetido às
paixões, o homem tem idéias inadequadas que tendem a produzir outras idéias inadequadas,
como passar a conceber idéias adequadas? Essa questão constitui um ponto essencial na
teoria de Spinoza porquanto sua resposta não se reduz a uma decisão epistemológica ou
psicológica, mas incorpora um projeto político. Esse projeto definir-se-á pela própria
expressão da potência de existir, agir e compreender do homem.
2. Paixão, ação e gêneros de conhecimento
Spinoza relaciona a paixão e a ação e, da mesma maneira, as idéias inadequadas e
as idéias adequadas a planos epistemológicos diferentes, ditos gêneros de conhecimento9,
que são a imaginação (ou opinião) e a razão. Definidos na parte II da Ética, os gêneros de
conhecimento fundamentam toda a filosofia política spinozista, perpassando a teoria
exposta no TTP e no TP. Esses gêneros, na verdade, conformam patamares distintos de
produção de idéias, isto é, disposições cognitivas diversas que terão conseqüências
essenciais na expressão do conatus e, por conseguinte, na definição de uma condição de
servidão. Desse modo, tais disposições cognitivas aproximam o projeto político de um
projeto filosófico, ou seja, de uma phílos (amigo, amante) sophía (conhecimento, saber)
que, por sua vez, se opõe a uma polymátheia, que é o saber de coisas desconexas, saber que
não ensina a ter compreensão.
Assim, a imaginação ou opinião, como conhecimento de primeiro gênero, constitui
o universo de idéias inadequadas, em que as coisas são concebidas isoladamente, mutiladas
de suas causas, consistindo em imagens confusas. Com efeito, as imagens que os homens
têm das coisas “variam, em cada um, em razão da coisa pela qual o corpo foi afetado mais
freqüentemente e que a alma imagina ou de que se recorda mais facilmente” (idem, II,
prop.40 – esc.I e II), seguindo mecanismos de associações e transferências fortuitos.
Através da imaginação, portanto, o homem não compreende as leis da Natureza e das coisas
tal qual elas são, tendendo a imaginar em vez de conhecer.
Para Spinoza, como a mente e o corpo não têm, a bem da verdade, uma idéia
objetiva de si mesmos, mas seu conhecimento de si mesmos provém do choque de outras
idéias e de outros corpos com o corpo em questão, o homem tende a operar signos
equívocos. O resultado é a produção espontânea de idéias inadequadas que caracteriza um
verdadeiro estado alucinatório ou de embriaguez por paixões. Por conseguinte, o homem
tende, através da imaginação, a tomar as coisas como contingentes em vez de necessárias,
ou seja, a notá-las como obra do acaso ou resultado de acidente, enquanto, na verdade,
estão inseridas numa cadeia de causas e leis da Natureza da qual advém inexoravelmente.
Por todos esses motivos, a imaginação consistirá, para Spinoza, na “única causa da
falsidade”, enquanto, “ao contrário, o conhecimento do segundo e do terceiro gêneros é
necessariamente verdadeiro” (idem, II, prop.41). Não obstante, é esse primeiro gênero de
conhecimento que exprime as condições naturais de existência enquanto não se tem idéias
adequadas. É sob a esfera da imaginação que, por excelência, o homem move-se, o homem
deseja, relaciona-se e constrói sociedades.
O segundo gênero, o da razão, define-se pelo conhecimento adequado, ou melhor,
por idéias adequadas das propriedades e das relações das coisas (idem, II, prop.40 – esc.2).
As idéias adequadas podem ser ditas idéias verdadeiras, pois elas refletem o conhecimento
das leis da Natureza e das coisas que são parte dela, conduzindo o homem ao discernimento
entre o verdadeiro e o falso. Mas como saber que se sabe verdadeiramente? Para Spinoza,
uma vez concebida, a idéia verdadeira torna-se indubitável, pois quem conhece uma coisa
verdadeiramente, deve ter, ao mesmo tempo, uma idéia adequada de seu conhecimento.
Em outros termos, conceber uma idéia verdadeira significa conhecer uma coisa
perfeitamente e, enquanto existente no homem, também existe adequada no todo, ou seja,
na Natureza. Por conseguinte, é da propriedade da razão considerar as coisas não como
9 Embora identifique-se aqui apenas dois gêneros, são eles três. Em função da perspectiva aqui adotada, o
contingentes, mas como necessárias porquanto percebe as causas e os efeitos decorrentes
delas. Quando isso ocorre, o homem torna-se mais apto a conhecer e menos apto a padecer,
ou seja, mais ativo e menos passivo diante de eventos.
A distinção entre esses gêneros de conhecimento suscita, então, a questão
apresentada no final da seção 1, a saber, como conceber idéias adequadas, uma vez que as
condições sob as quais somos afetados parecem nos condenar a experimentar apenas a
passividade? Ou ainda, se a imaginação constitui a condição natural sob a qual vivem os
homens, como exprimir-se através da razão? Para se compreender a possibilidade dessa
reversão de um gênero em outro, torna-se fundamental estar atento para duas
considerações.
Em primeiro lugar, convém notar que afetos alegres e tristes são paixões que
exprimem idéias inadequadas e “toda paixão nos mantém separados da nossa potência de
agir” (Deleuze, 1968, p.252), isto é, de conhecer. Mesmo a paixão alegre, que favorece a
potência de agir, isto é, de compreender, ainda é paixão, pois é incapaz de produzir idéias
adequadas por si só, ou seja, fazer com que o homem exerça a plena posse formal de sua
potência. No entanto, cabe admitir que as paixões alegres e tristes diferem
substancialmente, muito embora, alegres ou tristes, ainda exprimam idéias inadequadas
próprias do gênero da imaginação. Com efeito, a paixão alegre aproxima da posse da
potência, enquanto a paixão triste, pelo contrário, afasta. Ainda conforme Spinoza (Ética,
IV, prop.59-dem), “na medida em que a alegria é boa, ela convém com a razão (pois que
ela consiste em que a capacidade de agir do homem seja aumentada ou favorecida)”.
Em segundo lugar, é bem verdade que, “durante o tempo em que nós não somos
dominados por afetos que são contrários à nossa natureza, durante esse tempo nós temos o
poder de ordenar e encadear os afetos do nosso corpo segundo a ordem relativa à
inteligência” (idem, V, prop.10). Isso significa que, enquanto o homem não é afetado por
paixões tristes, que reduzem sua potência de agir e compreender, ele está disposto a
compreender. Uma questão importante para concepção de idéias adequadas é, portanto, a
exposição do homem ao maior número possível de afetos alegres. “A alma humana é apta a
perceber um grande número de coisas e é tanto mais apta quanto mais o seu corpo pode ser
conhecimento de terceiro gênero (a intuição) foi descartado como objeto de estudo.
disposto de um grande número de maneiras” (idem, II, prop.15). Em outras palavras, quanto
maior o poder de ser afetado, maior a capacidade de compreender do homem.
Ora, deixar-se ser afetado – de preferência, pelo máximo de paixões alegres
possível –, não significa outra coisa senão pôr em relação corpos e idéias com o maior
número possível de outros corpos e idéias. Por definição, essa relação será de composição,
se for baseada em paixões de alegria, e de decomposição ou destruição, se baseada em
paixões de tristeza (como, por exemplo, a relação do veneno com um organismo humano
ou animal)10.
Portanto, é desejável que os homens esforcem-se por organizar encontros que
propiciem o máximo de paixões alegres. Essa constitui, à visão de Spinoza, a principal via
de acesso para o aumento da potência de compreender, isto é, para a concepção de idéias
adequadas e, por conseguinte, da expressão do conatus pela razão. Logo, fica evidente
como Spinoza estabelece a dinâmica social como princípio de conhecimento e, do mesmo
modo, princípio da política. É dessa maneira que projeto filosófico e projeto político se
fundem.
Todavia, cabe ressaltar, então, que uma soma de paixões não faz uma ação
(Deleuze, 1968). Ou seja, pode ocorrer que os homens, ao comporem relações e formarem
um corpo social, acumulem apenas paixões, ainda que alegres. Para configurar a plena
posse formal da potência, é necessário que esses afetos alegres passivos sejam convertidos
em afetos ativos (que por definição, sempre serão alegres). Portanto, além de acumular
paixões alegres, é preciso encontrar o meio de conquistar a plena potência de agir, isto é,
experimentar afetos ativos e não passivos, ou seja, afetos dos quais somos causa total e não
parcial. Trata-se, portanto, de converter afetos produzidos pela paixão em afetos próprios
da razão.
Mas em que consiste esse processo? Nesse processo, a paixão alegre do homem
cresce ao ponto de ele concebê-la adequadamente, a si mesmo a às suas próprias ações
(Ética, IV, prop.59-dem). Ou seja, idéias claras e distintas substituem as idéias mutiladas
das coisas, a paixão dá lugar à ação, resultando no abandono do estágio de passividade. O
10 Esse exemplo expressa bem a visão não antropocêntrica da Ética de Spinoza. É preciso compreender que o homem é apenas uma parte do todo, que é composto por inúmeras coisas. O próprio homem é composto por outros corpos, ou seja, elementos, que interagem entre si ou com outros elementos fora do homem.
homem se concebe, então, como parte do todo e, por conseguinte, entende-se como inserido
em uma cadeia de causas e efeitos.
Para Spinoza, esse processo só é passível de ocorrer quando os homens, ao
comporem suas relações, formarem noções comuns. São elas que permitem à paixão alegre
crescer de modo que o homem possa se conceber adequadamente. Como revela o corolário
da proposição 38, livro II, “...existem certas idéias ou noções comuns a todos os homens.
Com efeito, todos os corpos convêm em certas coisas, as quais devem ser percebidas por
todos adequadamente, isto é, clara e distintamente”. E toda vez que isso ocorre, ou seja,
toda vez que “coisas são comuns a todas as coisas e existem igualmente no todo e nas
partes”, elas não podem ser concebidas senão adequadamente. Ou seja, as noções comuns
são idéias necessariamente adequadas.
Assim sendo, nota-se que não basta se dispor a ser afetado. É preciso que o
homem seja afetado de alegria e, para isso, organize encontros que propiciem tais afetos e,
por conseguinte, forme, a partir desses encontros, noções comuns que permitem divisar a
melhor maneira de compor relações, redundando no aumento de potência de agir, isto é, de
compreender as coisas. Formar noções comuns é, portanto, atividade estratégica para a
conversão de afetos passivos em ativos, porquanto “...a alma [isto é, o pensamento] é tanto
mais apta para perceber adequadamente várias coisas quanto mais o seu corpo tem
propriedades comuns com os outros corpos” (idem, II, prop.39-corol.).
A percepção das propriedades comuns existentes entre os corpos constitui,
portanto, um verdadeiro “salto” (Deleuze, 1968, p.262 e 2002, p.55) da produção de afetos
passivos para produção de afetos ativos. Esse salto ocorre quase ocasionalmente quando
corpos encontram outros corpos e sentem paixões alegres, paixões essas que mesmo
pertencentes ainda ao primeiro gênero de conhecimento induzem a formar uma idéia
adequada do que é comum entre tais corpos. Assim, um afeto ou paixão, que é uma idéia
confusa e inadequada, pode deixar de ser uma paixão no momento em que dela formamos
uma idéia clara e distinta (idem, V, prop.3).
Tal mecanismo torna-se mais inteligível se considerar-se que a imaginação, não
obstante seja um conhecimento inadequado, envolve a idéia adequada de uma coisa. Como
explica Pires Aurélio11 – , a imaginação “não é ignorância absoluta nem corresponde a um
puro nada; é simplesmente uma idéia que não pode exprimir adequadamente a sua causa e
ignora essa mesma insuficiência”. Nesse sentido, as noções comuns constituem o vetor de
expressão adequada das causas, que possibilita cultivar idéias claras e distintas a partir de
idéias confusas.
Esse processo pode, então, ser resumido da seguinte maneira. Como observa
Deleuze, “quando nós encontramos um corpo que convém ao nosso, quando nós
experimentamos um afeto passivo alegre, nós somos induzidos a formar uma idéia do que é
comum àquele corpo e ao nosso” (1968, p.261). Ao formarem essa idéia comum, os
homens experimentam um afeto de alegria que amplia ainda mais sua potência de agir ou
compreender. Isso convém à razão, pois que toda alegria consiste em que a capacidade de
agir e compreender do homem seja aumentada ou favorecida. Ainda para Spinoza, o que
convém à razão pode dela nascer. “Por isso, se um homem afetado pela alegria [passiva]
fosse levado a tão grande perfeição que se concebesse adequadamente a si mesmo e às suas
ações, seria apto para essas mesmas ações às quais ele já é determinado pelos afetos, que
são paixões, mais ainda, seria até mais apto” (Ética, IV, prop.59-dem.). Deduz-se daí que
toda alegria passiva pode dar lugar a uma alegria ativa que se distingue somente pela causa
(idem, IV, prop.51-dem.).
Percebe-se, portanto, que os homens, mesmo sob o gênero da imaginação e o
efeito das paixões, não estão marcados primordialmente por forças conflitantes, ou seja,
contrárias à sua natureza, muito embora os encontros proporcionem até mesmo o encontro
com potências maiores do que a sua, o que pode significar, eventualmente, um fator de
discordância e decomposição do conatus humano. Ainda que desses encontros resultem não
uma composição ou concordância de relações e forças, mas uma decomposição ou
discordância, todos os corpos têm algo em comum.
Ou seja, as noções comuns subsistem mesmo quando resulta dos encontros entre
os homens um afeto de tristeza redutor da potência, ou mesmo quando os corpos não
concordam ou não convém um a outro. Tendo essa premissa em vista, diz-se que um corpo
nunca significará mal a um outro, isto é, nunca será causa de tristeza em função daquilo que
os corpos têm em comum, o que se demonstra na proposição 30, livro IV: “nenhuma coisa
11 Em texto de introdução à tradução do Tratado Teológico-Político (1670), publicado em Lisboa pela
pode ser má pelo que tem de comum com a nossa natureza, mas na medida em que é má
para nós ela nos é contrária”. Spinoza reafirma, dessa maneira, que o corpo possui
propriedades comuns com outros corpos, ainda que não tenha conhecimento disso.
Essas propriedades comuns, portanto, não prevalecem enquanto os afetos de
tristeza se manifestam, pois que a tristeza é o entravamento da capacidade de agir ou
compreender. Adotando essa perspectiva, os corpos tendem a ser contrários e alheios à
composição de relações e idéias adequadas. Somente quando o homem é afetado por
paixões alegres é que eles podem convir e, à medida que uma coisa convém à nossa
natureza é que se pode considerá-la boa.
Deve-se abrir aqui um importante parênteses: para Spinoza, nada é bom ou mau
por natureza, mas apenas em decorrência das circunstâncias. A idéia de bom e mau só pode
ser conhecida através do sentimento de alegria ou tristeza de que somos conscientes.
Assim, os homens tendem a definir uma coisa como má ou boa em decorrência de sua
constituição passional. Logo, o que é bom para um, pode ser mau para outro. Em termos
spinozistas, qualifica-se bom algo que aumenta ou favorece a potência de agir e mau o que
diminui ou impede essa potência. Cumpre ainda associar essas noções à idéia de utilidade
spinozista, muito aplicada à reflexão sobre a sociedade. Dessa maneira, vê-se, na parte IV
da Ética, tudo o que é bom é útil e tudo o que é mau é nocivo, ou seja, o que impede o
homem tornar-se senhor de algo que lhe causa bem (idem, IV, Prefácio; definições 1 e 2;
proposições 8, 38, 39, 41, 68).
Aos poucos torna-se patente como Spinoza consolida geometricamente conceitos
filosóficos que proporcionam a emergência do terreno da sociabilidade. Ora, esse germe
social está mesmo presente quando Spinoza, no livro II, demonstra que o corpo só concebe
a si mesmo através do choque com outros corpos e que quanto maior o seu poder de ser
afetado, mais possibilidades tem de experimentar paixões alegres e, por conseguinte,
conceber idéias adequadas. Nessa perspetiva, quando dois ou mais corpos convêm um a
outro ou compõem suas relações, eles se concebem como uma parte de um todo, formando
uma unidade e estabelecendo o que Deleuze chama de “identidade de estrutura”.
O processo de organização de encontros, o poder de ser afetado do homem e a
formação de noções comuns não só convêm à razão, como também fundam a própria base
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1988.
da sociabilidade spinozista. Ver-se-á, no próximo capítulo, como essa sociabilidade se
distingue, por exemplo, de uma sociabilidade “natural”, de acordo com a qual o homem é
animal sociável, ou de uma sociabilidade “institucional”, segundo a qual ele é anti-social e
incapaz de realizar por ele mesmo a obra da sociedade mais útil. Por ora, pode-se dizer que
persiste em Spinoza uma forte e inexorável inclinação à formação do corpo social, à qual
Deleuze se refere como “esforço da Cidade” (2002):
Eis por que o esforço para perseverar, aumentar a potência de agir, experimentar paixões alegres, elevar ao máximo o poder de ser afetado, por mais que sempre se efetue, só se logra na medida em que o homem se esforça por organizar os seus encontros, isto é, entre os outros modos, se esforça por encontrar aqueles que convêm com a sua natureza e se compõem com ele, e por encontrá-los sob os mesmos aspectos em que se convêm e compõem. Ora, este é o esforço da Cidade…
Além disso, cumpre destacar a perspectiva spinozista em relação ao papel das
paixões e da imaginação no projeto político-filosófico. Ao contrário de alguns pensadores,
para quem as paixões constituem obstáculos para a vida em sociedade, Spinoza não as
considera vícios ou imperfeição da natureza humana12. Para o filósofo, elas representam a
verdadeira expressão dessa natureza que, mesmo operando por meio de signos equívocos,
revela a busca perene pelo fortalecimento da potência do conatus.
Por certo, em Spinoza, a imaginação não condena os homens à proliferação das
idéias inadequadas, pois que ela envolve, embora não exprima, idéias adequadas das coisas.
Essas idéias adequadas podem emergir pela composição de relações e de noções comuns,
ou seja, pela expansão da sociabilidade. Vista por esse ângulo, a imaginação funciona como
acesso à razão, na medida em que experimentar um afeto passivo alegre, enquanto um
corpo convém ao outro, pode levar o homem a formar uma idéia do que é comum entre os
corpos.
12 Ao contrário do que se imagina, Spinoza aponta para a necessidade de se considerar os afetos como coisas naturais que seguem das leis comuns da Natureza e não como coisas fora delas, ou ainda, como vícios da Natureza. Ao considerar os afetos-sentimentos como decorrentes da Natureza, expulsa do seu campo de análise os julgamentos de valor e afirma a geometria como método. Como assinala no prefácio do livro III, busca compreender e conhecer os afetos e as ações do homens no mundo e não detestá-los ou ridiculizá-los. Em tal passagem, Spinoza anuncia uma crítica direta ao tratado das paixões de Descartes.
Nesse sentido, nota-se, portanto, que a teoria spinozista não confere à razão o
império absoluto sobre os afetos ou paixões. Para Spinoza, a função da razão não é a de
interferir verticalmente nas paixões do homem – como postulavam Descartes e os estóicos,
mencionados no prefácio do livro V: “...já demonstramos atrás que nós não temos império
absoluto sobre eles [os afetos]. No entanto, os estóicos julgaram que eles dependiam em
absoluto da nossa vontade e que nós podemos imperar absolutamente sobre eles”. Em sua
obra, Spinoza demonstra apenas o que pode e o que não pode a potência da razão contra os
afetos.
Muito diferente de contrapor razão e imaginação, Spinoza demonstra que uma se
apóia na outra. Por isso, o programa de Spinoza, conforme comentário de Deleuze sobre a
proposição 20, do livro V, “não visa suprimir toda paixão, mas, por meio da paixão alegre,
fazer com que as paixões não ocupem mais que a menor parte de nós mesmos e que nosso
poder de ser afetado seja preenchido por um máximo de afetos ativos” (Deleuze, 1968,
p.264).
Por fim, visto o que é paixão, ação, imaginação e razão, vale redefinir e ampliar o
conceito de conatus, que a partir de agora pode ser entendido como esforço em perseverar
na existência, aumentar a potência de agir e experimentar paixões alegres (Ética, III,
prop.28). Desse modo, a “expressão adequada do conatus consiste no esforço para agir sob
a condução da razão (idem, IV, prop.24), ou seja, para adquirir o que conduz ao
conhecimento, às idéias adequadas e aos sentimentos ativos” (Deleuze: 2002, 109). Ou
ainda, pode-se dizer que a expressão adequada do conatus não é outra coisa senão agir por
virtude, ou seja, agir sob a direção da razão, conforme o princípio da procura do que lhe é
útil. E, segundo Spinoza, “a alma, enquanto raciocina, não deseja outra coisa que conhecer,
nem julga que nada lhe seja útil a não ser aquilo que nos leva a compreender” (Ética, IV,
prop.27-dem).
3. Servidão do indivíduo e impotência da razão
Como já dito, o homem tende a organizar-se em sociedade, dado que é através dos
encontros dos corpos (mesmo no plano da imaginação) que se originam relações de
conveniência. Nessas relações, os corpos se compõem, experimentando paixões alegres e,
por conseguinte, aumento de potência. Isto porque, os homens só percebem seus corpos a
partir do choque com outros corpos13, disso resultando, portanto, que quanto mais afetados,
mais propícios a conhecer adequadamente as coisas. Ou seja, em sociedade, o homem tem
mais chances de formar noções comuns, isto é, idéias compartilhadas e adequadas através
das quais todos os corpos convêm em certas coisas.
Mas pode ocorrer – e com freqüência – que os homens, mergulhados em signos
equívocos, não venham a formar noções comuns ou idéias adequadas. Com efeito, as
condições primitivas de existência designam um universo alucinatório, em que reina a
produção espontânea de idéias inadequadas e nas quais a passagem da paixão à ação é, ou
bem aleatória ou bem fruto de um trabalho constante – isto é, da organização de bons
encontros sob impulsos da razão. Embora, sob a direção da razão, os homens concordem
necessariamente, “raramente acontece que os homens vivam sob a direção da razão” (idem,
IV, prop.35-esc.).
Contudo, o primeiro e o segundo gênero de conhecimento não constituem estados
de vivência monolíticos e distintos, o que significa que os homens não vivem
exclusivamente sob o estado de imaginação ou de razão. Eles sequer configuram estados,
mas, sim, momentos. Ou seja, o homem vive em um estado heterogêneo de paixão e ação,
de imaginação e razão, oscilando ora entre o conhecimento de primeiro, ora de segundo
gênero. Embora o conhecimento de primeiro gênero exprima a condição primitiva da
existência, também pode-se através da imaginação passar à razão, pois a imagem que se
cria das coisas envolve, ainda que de forma confusa, a causa das coisas, ou melhor, um
conhecimento adequado. Como se viu na seção 2, o homem não está condenado a viver
segundo as paixões, ou seja, no mundo alucinatório.
No livro IV, a reflexão sobre as condições naturais de existência ganha contornos
ainda mais políticos, à medida que Spinoza adota como questão a servidão do homem. O
tema, que um século antes havia sido assunto do notável Discurso sobre a Servidão
Voluntária, escrito por Etienne de La Boétie14, desponta na Ética desprovido de qualquer
13 Pela proposição XIX, Livro II, Ética: “a alma humana não conhece o próprio corpo humano nem sabe que este existe senão pelas idéias das afecções de que o corpo é afetado”. 14 A comparação entre os conceitos de servidão em Spinoza e em La Boétie constituem tema do capítulo III desta dissertação.
ilusão teológica ou voluntarista e dissemina-se na obra política do autor, principalmente, o
TTP, tornando-se motivação fundamental da obra spinozista – e que se pode conferir nos
fatos de sua biografia.
Quando se fala em ilusão teológica, quer se dizer que não há, na teoria spinozista,
um Deus antropomórfico, dotado de temperamento e vontade, que age no mundo e
interfere, segundo seu julgamento, na matéria humana. Esse Deus antropomorfo é, na
verdade, invocado pela imaginação do homem para explicar o que sua mente, ou seja, a sua
alma não é capaz de explicar. Nas palavras de Deleuze (2002, p.26), “nos casos em que a
consciência não pode mais imaginar-se causa primeira, nem organizadora dos fins, invoca
um Deus dotado de entendimento e de vontade, operando por causas finais ou decretos
livres, para preparar para o homem um mundo na medida de sua glória e dos seus castigos
(ilusão teológica)”.
Assim, por ignorarem as causas das coisas, os homens são levados a crer em
causas contingentes ou mesmo possíveis, onde, na verdade, só há causas e efeitos
necessários, que decorrem das leis da Natureza, isto é, do conjunto unívoco de seres, coisas
e objetos. Dessa forma, no lugar da ilusão teológica, Spinoza instaura um plano de
imanência, em que as coisas não se explicam por causas exteriores, que transcendem o
conhecimento, e sim por razões que se estabelecem entre os homens e, muitas vezes, estão
ocultas ou são ocultadas.
Da mesma maneira que não há espaço para uma ilusão teológica, não há em
Spinoza, muito menos, uma ilusão de que é a vontade do homem que traça seu destino, ou
seja, que ele possui o domínio sobre as circunstâncias – e, nesse sentido, Spinoza endossa a
negação do livre-arbítrio. Entre outras razões, que serão melhor abordadas no capítulo III
desta dissertação, o homem raramente delibera, dado que sua mente não tem, na verdade,
uma idéia objetiva de si mesma, mas seu conhecimento de si mesma e do corpo provém do
choque de outras idéias e de outros corpos com o corpo em questão.
Esse conhecimento, que constitui a imaginação, configura as condições primitivas
sob as quais se movem os homens e, por conseguinte, marca o estado de passividade. Nesse
tipo de existência, os homens são arrastados pelas paixões produzidas pela imaginação e,
empurrados por elas, são determinados a “operar”, ao mesmo tempo em que desconhecem
as causas que os empurram: “É assim que uma criancinha julga apetecer livremente o leite;
um rapaz irritado, a vingança; e o medroso, a fuga. Um homem embriagado julga também
que é por uma livre decisão da alma que conta aquilo que, mais tarde, em estado de
sobriedade, preferia ter calado” (Ética, III, prop.2-esc.).
O verbo “operar”, aplicado em lugar de “agir”, denota uma distinção fundamental,
que só pode ser entendida pela assimilação de uma ruptura com a ilusão teológica e a
crença no livre-arbítrio. Como efeito, “operar” e “agir” referem-se a duas maneiras
diferentes de mover-se no mundo, intrinsecamente relacionadas aos gêneros de
conhecimento. O conceito é utilizado pela primeira vez na definição 7, da parte I da Ética,
segundo a qual, “diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza
e por si só é determinado a agir; e dir-se-á necessário, ou mais propriamente, coagido, o que
é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira”.
Vê-se que o “agir” está associado ao que é livre, ao passo que o “operar”
relaciona-se ao que é coagido. Logo, o indivíduo que age, o faz seguindo sua natureza, de
sorte que não a contraria. De qualquer forma, é preciso observar que ele não deixa de ser
determinado a agir, porém, essa determinação decorre da necessidade de sua natureza.
Aquele que opera, por outro lado, é coagido por uma causa exterior, ou seja, ele obedece a
uma determinação exterior que, portanto, não advém de sua natureza, podendo
perfeitamente ser contrária à sua natureza. Nas palavras de Macherey, a coisa coagida
“sofre uma coação em virtude de uma razão que lhe é estrangeira” (1992, p.73 e 74).
Todavia, pode-se pôr em questão essa conceituação, lembrando que, como parte da
Natureza, o homem sempre está determinado por qualquer coisa que seja a mover-se no
mundo. Sem dúvida, “na alma” [mente], dita a proposição 48, da parte II, “não existe
vontade absoluta ou livre; mas a alma é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa
que também é determinada por outra, e essa outra, por sua vez, por outra, e assim até o
infinito”. Deflagra-se, mais do que antes, uma cadeia infinita de causas que vigora sobre as
coisas.
Com efeito, o que é livre também é determinado; porém, diz-se que ele age
porquanto conhece as relações de causa e, por conseqüência, não é passivo, ou seja,
obedece a suas próprias leis. Já aquele que opera sofre uma dupla determinação, como
definiu Gueroult (apud Macherey, 1992, p.73), ao observar que na definição 7 o termo
“determinado” aparece três vezes. Assim, a coisa livre é, de certo modo, simplesmente
determinada, enquanto que a coisa coagida é duplamente determinada, pois que ela é
determinada por uma razão que é ela mesma determinada, isto é, ela é determinada a existir
e não só a operar como operar de determinada maneira. Essa dupla determinação acarreta,
portanto, a alteração da ordem interna do indivíduo, ajustando-a a leis externas que
condicionam sua própria natureza.
Como se percebe, a teoria da servidão, segundo Spinoza, desenha-se a partir do
conjunto de conceitos que envolvem, principalmente, uma física de corpos e idéias –
choques, encontros e afetos – e um processo cognitivo – os gêneros de conhecimento –, que
conformam o plano de imanência. Contudo, o foco dessa teoria é a potência do conatus. Os
homens têm sua potência reduzida e, por conseguinte, padecem ou sofrem, na medida em
que o processo de conhecimento das coisas faz com que os homens tenham apenas idéias
inadequadas, ou seja, mutiladas de suas causas, isoladas de uma cadeia de causas e efeitos.
Enquanto não podem assimilar as leis das coisas e da Natureza não podem agir, isto é, estão
à deriva, sem se compreender causas adequadas no mundo. Enquanto sofrem, atestam sua
impotência diante das coisas.
Essa condição de impotência configura, na teoria de Spinoza, a servidão. Em
outras palavras, os homens, enquanto submetidos às forças das paixões, enquanto são
levados a operar por elas, experimentam a impotência humana. Os homens impotentes são
incapazes de governar e refrear as paixões, como define Spinoza nas primeiras linhas do
prefácio do livro IV:
Chamo de servidão a humana impotência para governar e refrear os afetos. Com efeito, o homem, submetido aos afetos, não é senhor de si, mas depende da fortuna, sob cujo poder ele está, de tal modo que é muitas vezes forçado a seguir o pior, vendo muito embora o que é melhor para si.
Desgovernadas, as paixões terminam por dominar o homem. Com efeito, elas
apresentam uma força irresistível aos homens e indomável pela razão. O verso de Ovídio –
“vejo o melhor e o aprovo, e faço o pior”, parafraseado no prefácio e retomado ao final das
17 primeiras proposições dedicadas ao tema da servidão humana, sintetiza essa condição
existencial, em que, arrastados pelas paixões os homens distanciam-se da razão.
Não se trata de, pela intervenção da vontade, fazer agir a razão. Como já se
mencionou aqui, a razão não tem esse poder miraculoso de agir sobre as paixões. Spinoza
sabe também que não está sob o poder do homem agir pela razão. A razão ocorre devido a
um encadeamento de causas que o homem com dificuldade domina. Para que ela ocorra,
como se viu, é necessário que, ao esforçar-se por perseverar na existência, o homem seja
afetado por afetos alegres, componha relações, forme noções comuns e, por conseguinte,
atinja a razão. Nesse processo, enquanto ainda concebe o mundo por causas externas, ou
seja, por causas inadequadas, está freqüentemente submetido a outras potências, pois, como
se sabe, “a força em virtude da qual o homem persevera na existência é limitada e é
infinitamente superada pela potência das causas externas” (Ética, IV, prop.3). Na sua
relação com outras potências, o homem pode alegrar-se, ou seja, aumentar sua potência,
assim como também pode entristecer-se e reduzir sua potência de existir. O homem,
quando determinado a operar por afetos passivos, não deixa de estar, portanto, submetido à
fortuna. Como explica Delbos (1916, p.130),
(...)nossos primeiros afetos são de paixão: o que não quer dizer que nós não passemos por mudanças, muito ao contrário, o que quer dizer que as mudanças numerosas e variadas que se cumprem então em nós dependem, não de nós, mas de causas exteriores representadas ao nosso espírito por idéias confusas.15
Ora, uma vez que o homem faz parte da Natureza – pois que não há como não o
fazer – e, com freqüência, passa por mudanças não compreendidas pela sua natureza, o
homem é afetado por causas externas. Por conseguinte, “o homem está necessariamente
sujeito às paixões” (Ética, IV, prop.4-corol.). Visto isso, entende-se que a paixão que
“acomete” o homem estará determinada a crescer e perseverar na existência pela potência
de causas externas, nesse caso, maior do que a do homem (idem, IV, props.5 e 6). Esse
cenário é bem resumido pelas palavras de Macherey (1994, p.223): “os afetos se
desenvolvem em nós como forças estrangeiras que nos submetem e que nos alienam: eles
tomam, então, a forma de ‘paixões’, em relação as quais nós somos passivos, logo,
impotentes”.
15 Tradução livre a partir da edição francesa.
O verso de Ovídio utilizado por Spinoza manifesta, porém, mais do que a força das
paixões que arrastam os homens, a resistência das representações imaginárias à
manifestação do verdadeiro. Ou seja, através desse verso Spinoza introduz a impotência da
razão diante das paixões.
Como pode ocorrer, pergunta-se o leitor, ser o conhecimento verdadeiro
improfícuo frente ao ilusório? Spinoza concede um exemplo cotidiano e simples para
ilustrar tal impotência do conhecimento verdadeiro: a percepção que se tem do sol. Ele
explica que, quando o homem olha para o sol, imagina uma distância X muito menor que a
verdadeira; sabendo a verdade, ele suprime o erro, mas a idéia do sol persiste e o homem
segue a imaginar que o sol está perto dele. A imaginação, portanto, pode ser suprimida
parcialmente, mas segue coexistindo com o conhecimento do verdadeiro. E reflete ainda
por meio de outro exemplo: “...é verdade, quando nós tememos, sem motivo, algum mal, o
temor desaparece ao ouvirmos uma nova verdadeira; mas, inversamente, também sucede
que, quando tememos um mal que se produzirá com certeza, o temor desaparece também ao
ouvirmos uma notícia falsa” (Ética, IV, prop.1-esc.).
Ora, se as representações imaginárias são tão resistentes ao verdadeiro, quando pode
o homem livrar-se da servidão? Pelos exemplos acima, vê-se que um afeto, ou seja, a
imagem de uma coisa, só pode ser combatido pela geração de outro afeto mais forte.
Spinoza argúi, portanto, que o conhecimento verdadeiro do bem (do que é útil, ou seja, do
que favorece a potência) e do mal (o que impede que seja o homem senhor de um bem, isto
é, algo que impede o favorecimento de sua potência) só pode refrear o afeto produzido pela
imaginação enquanto produz-se como afeto. Pela lei da Natureza, um afeto só pode ser
suprimido por um afeto, sendo que é preciso este ser mais forte (idem, IV, prop.14 e 15).
Assim, Spinoza postula que “as imaginações não desaparecem pela presença da verdade,
enquanto verdade, mas porque se apresentam outras mais fortes que elas” (idem, IV,
prop.1-esc.).
Trata-se, portanto, de perceber em que medida o desejo produzido pelo afeto da
razão pode ser mais forte, isto é, superar o desejo produzido pelo afeto da imaginação.
Como se sabe, o afeto produzido pelo fato de compreendermos verdadeiramente alguma
coisa nada mais é do que um afeto a que se chama ativo, isto é, que se forma em nós
enquanto agimos. Por conseguinte, a sua força define-se só pela potência humana. Em
contrapartida, a força dos afetos passivos por quais somos dominados definem-se pela
potência das causas externas. Já a potência das causas externas supera infinitamente a
potência do homem. Logo, os desejos que nascem dos afetos passivos “podem ser mais
veementes que aqueles que nascem do verdadeiro conhecimento do bem e do mal e, por
isso, poderão refrear ou extinguir este mesmo” (idem, IV, prop.15-dem.).
*
Neste capítulo, ficou portanto caracterizada a condição existencial primitiva que é
a da servidão à qual estão submetidos os homens. Essa caracterização conforma os
obstáculos da própria expressão da potência individual, já que o homem está submetido a
um contexto em que as potências externas superam infinitamente a sua. O segundo capítulo
abrange, entre outras idéias, uma questão fundamental derivada deste capítulo: saber como
pode o homem promover seus encontros de maneira a liberar-se, se os afetos passivos
podem ser mais veementes do que os afetos que nascem do conhecimento verdadeiro.
Essa visão spinozista sobre a servidão humana será essencial, sobretudo, para os
contornos de seu projeto político. Até aqui, tratou-se de abordar, dadas as condições em que
vivem os homens, a gênese da servidão de uma perspectiva individual ou interindividual.
Como se viu, essa servidão se confunde mesmo com a própria condição existencial do
homem. Convém compreender com que intensidade essa servidão se estende ou não ao
corpo social, isto é, à multidão. Ou ainda, esclarecer se, na visão de Spinoza, a servidão
conforma a base de fundação desse corpo social, ou seja, a própria sociabilidade e os
fundamentos da Cidade. Ademais, os conceitos básicos da Ética apresentados aqui, além de
sedimentarem o conteúdo político do TTP e do TP (obras a serem abordadas daqui em
diante), tornam mais fértil a abordagem da servidão e, mais à frente, da obediência na
composição coletiva.
CAPÍTULO II
Corpo político, servidão e obediência
1. Movimentos da multidão: do corpo social ao político
À primeira vista, a mecânica dos corpos, a ontologia e a gnoseologia spinozistas
reveladas nas primeiras partes da Ética, sobretudo nas partes III e IV (até a proposição 18),
apontam para uma dicotomia. De um lado, indicam uma organicidade do indivíduo e do
corpo social e, por outro lado, uma instabilidade nas relações estabelecidas intra e
interindivíduos, já que sujeitas ao sabor das paixões e à mercê da fortuna. Esse jogo de
paixões e associações fortuitas, verdadeiro “labirinto da vida afetiva”, diante do qual a
razão apresenta-se impotente, estabelece a imaginação como condição existencial do
homem e, por conseguinte, impõe-na como terreno comum da política.
A questão política em Spinoza, que decorre de sua concepção ontológica e
“naturalista”, trata de investigar em que medida o corpo social pode vir a se tornar corpo
político nesse terreno pantanoso da servidão, de impotência dos homens no governo de suas
paixões. Pergunta-se: se os homens, à medida que são conduzidos pelas paixões, tendem a
discordar entre si, e, visto que o conhecimento verdadeiro é impotente diante das paixões,
isso significa que estão condenados a serem irracionais e servis? É inviável constituir uma
sociedade de homens livres em vez de um ajuntamento de escravos? São essas
interrogações que levaram Spinoza, em 1665, a interromper temporariamente a elaboração
da Ética para começar a redação do Tratado Teológico-Político (TTP) (Deleuze, 2002, 15).
Tudo indica que, movido por essas obsessões, o filósofo avançou no conhecimento
adequado do homem, concluindo que é preciso ter a noção do que nele é passividade e
fonte de conhecimento confuso e do que nele pode vir a ser ação e conhecimento
verdadeiro.
Com efeito, essa impotência da natureza humana configurou o desafio de todo
projeto político, que é o de lançar-se ao mundo contando com a imaginação, ou seja, tendo
como matéria processos irracionais de conduta e de pensamento dos homens. Na verdade,
esse cenário composto de homens movidos por paixões e processos alucinatórios, tão bem
teorizado por Spinoza, tende a ser considerado na filosofia política ocidental, em maior ou
menor medida, como vício, falha, imperfeição, inconstância ou deformação moral,
individual ou de natureza humana, o que indica uma incompreensão das causas das coisas e
complica sobremaneira um projeto político pragmático. É nesse sentido que ele generaliza
sua crítica filosófica, aplicada sobretudo a Descartes16, estendendo-a aos filósofos em geral,
o que fica explícito no primeiro parágrafo do capítulo I, Tratado Político (TP):
Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios, em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assim, agir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda espécie de louvores a uma natureza humana que em parte alguma existe, e atacando através dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. Daí, por conseqüência, que quase todos, em vez de uma ética, hajam escrito uma sátira, e não tinham sobre política vistas que possam ser postas em prática, devendo a política, tal como a concebem, ser tomada por quimera, ou como respeitando ao domínio da utopia ou da idade de ouro, isto é, a um tempo em que nenhuma instituição era necessária. Portanto, entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos próprios para governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos.
Pode-se dizer que essa incompreensão da natureza humana inscreverá na filosofia
política um traço demofóbico fundamental. Nessa perspectiva, a crença na irracionalidade
como vício dos homens e na incapacidade da multidão em governar a si mesma permeia,
em versões matizadas, grande parte da filosofia política desde Platão e Aristóteles,
passando por Hobbes, Burke, até Pareto e Schumpeter. Esse traço expressa-se tanto nas
16 Um dos trechos mais significativos e evidentes da crítica spinozista a Descartes está no Prefácio da parte III da Ética: “...e aquele que mais eloqüentemente ou mais sutilmente souber censurar a impotência da alma humana é tido por divino. Procuram, portanto, a causa da impotência e da inconstância humana [...] Mas ninguém, que eu saiba, determinou a natureza e as forças dos afetos e, inversamente, o que pode a alma para as orientar. Sei, na verdade, que o celebérrimo Descartes, embora acreditasse que a alma tinha, sobre as suas ações, um poder absoluto, tentou, todavia, explicar os afetos humanos pelas suas causas primeiras e demonstrar, ao mesmo tempo, o caminho pelo qual a alma pode adquirir um império absoluto sobre os afetos. Mas, na minha opinião, ele nada demonstrou...”
vertentes autoritárias da política, que postulam o controle social intenso visando a
supressão do desejo multitudinário, quanto nas vertentes liberais, que embora
pressuponham indivíduos conduzidos por processos racionais de discussão, pleiteiam um
arranjo político da representação e eleição dos “melhores”.
Essa visão justificará, por exemplo, em Platão, a idéia de que o poder deve ser
exercido pelos sábios; em Hobbes, a proposição de que os indivíduos devem abdicar de seu
direito natural e conceder o poder absoluto ao Leviatã; em Pareto, a afirmação do
revezamento das elites no poder em função do reconhecimento da capacidade de
organização de uma minoria, em contraste com a incapacidade da massa em gerir a si
mesma; em Schumpeter, a noção de que as massas não têm como organizar seu desejo,
dado que no aglomerado as pessoas perderiam a contenção desejante característica da
civilidade.
Esse constitui um dos aspectos através do qual Spinoza se distingue da tradição da
filosofia política. Para ele, a inconstância humana não configura vício – ela é um fato ou
traço constitutivo que deve ser entendido de modo científico e desapaixonado, compondo
material para a ciência política. À luz de sua obra, é fundamental compreender as causas da
inconstância e assimilá-la na prática política para não incorrer no erro de construir uma
teoria inaplicável, que concebe os homens “não tais como são, mas como eles [os filósofos]
gostariam que fossem”. Para Spinoza, a função da política é estabelecer, “com razões certas
e indubitáveis, o que concorda com a prática” (TP, I, § 4), concepção essa que traduz a
preocupação com uma práxis política.
Em contrapartida, Spinoza sugere que mesmo os políticos, embora tenham mais
êxito na realização de seus projetos, tendem a considerar a inconstância humana como
vícios. Seus projetos se reduzem a evitar a “maldade humana”, manipulando as paixões,
manipulação essa, de fato, eficaz porquanto testada ao longo do tempo pela experiência. No
entanto, observa Spinoza, o fazem “mais movidos pelo medo do que guiados pela Razão”
(TP, I, §2), de sorte que se ocupam em preparar armadilhas aos homens em vez de dirigi-
los para o melhor. De fato, os políticos podem ter bem observado que idéias inadequadas,
que constituem a impotência, não são erradicadas por idéias adequadas. No entanto, para
Spinoza, não basta um projeto político ser factível e pragmático; ele deve ser coletivo – isto
é, atender a todos – e promover a razão como se verá adiante.
Por enquanto, o que a filosofia spinozista deixa explícito é que o terreno das
paixões se constitui, inelutavelmente, no campo da política. Há que se lidar com essa
realidade. Sob esse aspecto, é importante notar – como se pretendeu no capítulo I deste
estudo – que a imaginação, esse gênero de conhecimento pelo qual se movem os homens
no terreno das paixões, não é pura negatividade. Ela também é positividade, pois os homens
estão sempre determinados a perseverar na existência. Assim, pelo mecanismo da
imaginação, as paixões alegres promovem aumento da potência; a organização dos
encontros e o contato freqüente com corpos aumentam a capacidade de atingir a
propriedade das coisas; a paixão não pode ser reduzida pelo conhecimento adequado, mas
pode ser destruída por uma paixão contrária mais forte. Além disso, pelo menos três outras
proposições, apoiadas nesse mecanismo da imaginação, demonstram que o homem tende a
estabelecer não apenas relações interindividuais, mas um corpo social e, por conseguinte,
um corpo político.
A primeira refere-se ao que Macherey (1994) chama de “imitação afetiva”.
Segundo a Ética III, 27, um homem que imagina algo semelhante a ele ser afetado por
alegria ou tristeza será afetado simultaneamente. Ou seja, mesmo que não experimente em
relação a esse semelhante qualquer afeto – não tenha ódio ou amor por ele – será afetado
por afeto similar (Ética, III, Definição dos Afetos, 33 “emulação”). Essa “contaminação”
ocorre pelo simples fato de haver semelhança entre eles, isto é, de serem da mesma
natureza.
Desse modo, se imaginamos alguém que afeta de alegria uma coisa semelhante a
nós, seremos afetados de amor para com ele; se afeta de tristeza, seremos afetados de ódio
para com ele. Nesse caso, vê-se decorrer da emulação uma comiseração, que é a tristeza
acompanhada da idéia de um mal acontecido a um outro que imaginamos semelhante a nós.
Enquanto afetados por esse afeto, esforçar-nos-emos, tanto quanto possível para libertar o
outro de sua miséria. Isso estabelece um laço ou espécie de pacto afetivo entre os
indivíduos.
A segunda (Ética, IV, prop.18) demonstra, nessa mesma direção, que não existe
nada mais útil ao homem que o próprio homem. Ora, o homem tem necessidade de coisas
que estão fora dele para conservar o seu ser e, por conseguinte, “se, por exemplo, dois
indivíduos, absolutamente da mesma natureza, se unem um ao outro, formam um indivíduo
duas vezes mais poderoso que cada um deles separadamente” (ibidem). Por isso, Spinoza
percebe que não há nada mais vantajoso para os homens do que estarem de acordo,
formando como que uma só alma (mente) e um só corpo, ou seja, uma potência superior, o
que favorece a conservação de seus seres e determina a busca de uma utilidade comum.
De acordo com a terceira proposição (Ética, IV, prop.35), não obstante os filósofos
políticos “ridicularizem e detestem” a condição passional humana, eles percebem, como
ressalta Spinoza, que: a vida solitária leva a dificuldades; da sociedade humana provém
muito mais vantagens do que inconvenientes; somente pela união das forças os homens
podem obter aquilo que necessitam e evitar os perigos e ameaças. Por isso, “a muitos
agrada bastante a definição: o homem é um animal sociável”. Com efeito, esse conjunto de
proposições concede ao projeto spinozista um traço fundamental, uma vez que consagra o
princípio da união do interesse pessoal com o interesse coletivo, impossibilitando qualquer
programa individualista.
As leis desse mecanismo afetivo e imaginativo desvelado por Spinoza configuram,
por conseguinte, o fundamento da política. Por essa razão, o projeto spinozista não visa
abolir ou banir a imaginação, como se ela fosse suprimível; o que Spinoza proporá é uma
reforma da imaginação (Pires Aurélio, 1988, p.81). Spinoza não ignora que a ilusão, a
fantasia, a ficção e a superstição sejam inerentes ao indivíduo e, por isso, o propósito de sua
obra, propósito esse muito presente no TTP, será instituir uma outra ordem imaginativa que
funcione como aprimoramento da condição existencial do indivíduo em direção à sua
libertação. Como observa Pires Aurélio (ibidem),
denunciar a ilusão teológica não significa abolir a ilusão, projeto absurdo num ser finito, já pela constituição ontológica deste, já pela natureza irremediável da sua atuação, que se processa na ignorância das causas e sempre em vista de um fim, em vista de algo que ele rotula como útil à preservação de si mesmo.
Essa reforma da imaginação evita a ilusão teológica, porquanto esta, por mais
eficaz que seja em dirigir os homens, firma-se em um plano de transcendência que não
proporciona o aprimoramento desejado. Ora, a teologia nada tem a ver com a filosofia, ou
seja, ela não visa a formação de idéias adequadas acerca da natureza das coisas. Este é o
principal motivo para Spinoza descartar a ilusão teológica, conforme explícito nesse trecho
do TTP (p.117): “concluo, finalmente, que o conhecimento revelado não tem outra
finalidade senão a obediência e que, tanto pela finalidade como pelos fundamentos e pelo
método, ele é completamente diferente do conhecimento natural, não tendo nada em
comum com este (...)”. Em outros termos, os ensinamentos religiosos obstaculizam o
conhecimento que leva à razão.
Portanto, a reforma da ordem imaginativa seria o primeiro passo para
proporcionar, de acordo com a sociabilidade inscrita na natureza humana, a formação de
uma potência não contraditória, ou seja, uma potência superior que conjugue e associe as
potências dos indivíduos. Como se sabe, é preciso, “na medida em que os homens são
dominados por afetos, que são paixões, podem ser contrários aos outros”, dispor a ordem
imaginativa de tal maneira que os homens concordem entre si. Por definição, a união de
indivíduos na impotência é inconcebível. Eles só podem convir na potência, pois que tem
sua capacidade de compreensão ampliada. Isso significa, portanto, que a potência superior
deve ser sempre uma potência favorecida pela alegria. Essa concepção retira do projeto
político spinozista qualquer fundamento de tristeza17. O desafio político spinozista consiste,
portanto, em saber como dispor a ordem imaginativa de modo a conduzir os homens à
concórdia em um contexto de desgoverno das paixões.
É claro que se estivesse sob o poder dos homens agir pela razão, em vez de operar
pela imaginação, a tarefa política seria simplificada. A Ética revela que, à medida que os
homens vivem sob a razão, eles concordam necessariamente em natureza e fazem o que é
bom para a natureza humana, pois sob o domínio da razão possuem idéias claras e distintas,
ou seja, a compreensão do nexo causal das coisas. E, nesse perspectiva, o sábio torna-se o
cidadão ideal, assim como a sociedade racional consiste na cidade ideal. Mas o projeto de
Spinoza não pretende ser idealista e, sim, naturalista. Por isso, ele assevera (Ética, IV,
props.36 e 37) que um projeto político deve renunciar a fundar a sociedade na razão. As
causas e fundamentos naturais dos poderes públicos devem ser deduzidos da natureza dos
homens, isto é, de sua condição existencial, não dos ensinamentos da razão (TP, I, § 7).
17 Para Deleuze (2002, pág. 61), “daí a luta total de Espinosa, a denúncia radical de todas as paixões tristes, que inscreve Espinosa numa grande estirpe que vai de Epicuro a Nietzsche. É uma vergonha procurar a essência interior do homem do lado de seus maus encontros extrínsecos. Tudo o que envolve a tristeza serve à tirania e à opressão. Tudo o que envolve a tristeza merece ser denunciado como mau, pois nos separa de nossa potência de agir”.
O TTP, conjugado à proposição 37, IV, da Ética, divisa na política a necessidade
de tratar da “comum natureza humana”, ou seja, do “vulgo”18, essa palavra que designa
uma multidão dominada por paixões. Orientando nessa direção o seu projeto político,
Spinoza rejeita não só qualquer traço demofóbico, como qualquer solução que prescreva o
governo dos sábios sobre os ignorantes, o que significaria reinstalar um plano da
transcendência através da elitização ou hierarquização do poder; os sábios ocupariam na
ordem política o lugar equivalente ao dos profetas na ordem teológico-política. Assim
como os profetas, os sábios interpretariam os signos enviados pela vontade divina e
ditariam o que é útil ou não, com intuito de determinar os desejos dos súditos. Estes
continuariam a ignorar o encadeamento das causas e, por conseguinte, tornar-se-iam não só
súditos, como também escravos, impotentes no governo das paixões. Nesse contexto, a
discórdia, portanto, estaria sempre a rondar o corpo político.
Ora, a filosofia spinozista privilegia a imanência em oposição à transcendência, ou
seja, compreende a existência de um interdeterminismo próprio da ordem natural das
coisas, em oposição a qualquer elemento sobrenatural. Isso exprime um projeto político que
funciona por associação e não por subordinação. Por isso, como considera Pires Aurélio
(1988, 19), “o que há de mais original no projeto spinozista é precisamente o considerar a
política como uma instância que pode garantir as condições para o homem se libertar, para
a razão se exprimir, e não como uma instância produtora da liberdade e tradutora da razão”.
Ademais, isso explica porque o TTP se posiciona contra a transcendência laica de
um aparelho de Estado, o que é não só concebível como praticável pelo que se configurou
como tradição liberal. Sob esse prisma, endossa-se a visão de Tosel (1984, p.95), para
quem Spinoza não se contenta com a laicização do Estado, ou seja, a separação entre
Estado e Igreja; seguindo à risca, ou melhor, levado às últimas conseqüências o pensamento
18 A propósito do termo “vulgo”, vale registrar aqui a necessidade de um estudo minucioso dos vocábulos utilizados na obra de Spinoza para designar segmentos da sociedade, tais como multitudo, vulgus e plebs. Isto é, é preciso defini-los em termos teóricos e procurar na língua portuguesa palavras correspondentes. Cabe pensar, por exemplo, em que medida pode-se traduzir multitudo por “multidão” ou em que medida ele se refere à concepção de “massa”. Outro exemplo é o termo vulgus; é preciso examinar a acepção do termo usado na obra de Spinoza e, portanto, verificar se ele designa “turba” ou “populacho”. Seria o vulgo o segmento da sociedade caracterizado pelas paixões desenfreadas, inteiramente mergulhado no reino da imaginação? E a multitudo?
de Spinoza, infere-se que o autor preconiza a promoção da razão prática, sem um Deus da
superstição, ou seja, a favor da promoção do conhecimento de todos19.
2. Servidão passional, pacto social e obediência
Quando renuncia a fundar a sociedade, isto é, o corpo político na razão, Spinoza
indica que o Estado tem origem na própria servidão passional. Pode-se entender que, para
Spinoza, a institucionalização política adviria do próprio movimento da multidão, ainda que
desordenada e arrastada pelas paixões. Esse processo se torna inteligível pelo mesmo
mecanismo que leva os indivíduos a formarem noções comuns; isto é, a força das paixões
atuaria na formação de uma potência superior resultante da união das potências individuais.
Isso significa dizer que o Estado não é obra da livre decisão dos indivíduos; ele
resulta de um equilíbrio entre as paixões de configuração quase ocasional e denota o grau
máximo do esforço da obra de organização dos encontros, ou seja, na terminologia
deleuzeana, do “esforço da Cidade”. Com efeito, ainda que não iluminados pela razão, os
homens tenderiam, movidos pelo esforço de conservação (conatus), a instituir um “pacto
social” (TTP, cap.XVI) de modo a viverem de acordo e ajudarem-se uns aos outros na
conservação de suas existências. No entanto, para que vivam em acordo não só ocasional
como duradouro, é necessário que “assegurem uns aos outros que nada farão que possa
redundar em dano a outrem” (Ética, IV, prop.37-esc.2).
Por ser tratar ainda de uma condição passional em que os indivíduos podem ser
contrários uns aos outros, esse acordo tácito ou expresso determina que os indivíduos
transfiram o seu direito natural para a sociedade – para o todo, parte do todo, ou para um –
criando, assim o direito civil. Por direito natural Spinoza entende “unicamente as regras da
natureza de cada indivíduo, regras segundo as quais concebemos ser como naturalmente
determinado existir e a agir de uma certa maneira” (TTP, p.308). Quando considera as
regras da natureza humana como direito, Spinoza subentende uma noção que não aparece
19 Nesse aspecto, adota-se neste capítulo a interpretação geral de que o capítulo XVII do TTP defende um regime político em busca de uma progressiva expansão do desejo da multidão, expansão essa traduzida pela consolidação e reforma de instituições políticas livres e pela liberdade de pensamento como livre opinião pública, em proveito de uma investigação científica ou filosófica.
na concepção hobbeseana de direito civil, isto é, a idéia de potência universal de toda a
Natureza, que nada mais é do que a potência de todos os indivíduos20 em conjunto. Fica
claro, portanto, que a potência do indivíduo faz parte dessa potência universal da Natureza
e, na medida em que está submetido a ela, existe e age (ou opera) conforme suas leis,
sempre expressando essa potência a sua maneira. Nas palavras de Spinoza, “tudo o que uma
coisa faz segundo as leis da sua natureza fá-lo com todo o direito, pois age conforme foi
determinado pela Natureza e não pode sequer agir de outra forma” (idem, p.309). Seguindo
esse raciocínio, Spinoza anuncia que “cada indivíduo tem pleno direito a tudo o que está em
seu poder, ou seja, o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua exata
potência” (idem, p.308)21.
Nesse momento, Spinoza reintroduz a noção de igualdade entre sábios e
ignorantes, já mencionada em referência à Ética e que é também desenvolvida no TP (caps.
II, § 6, 7 e 8). Ensina, então, que não há diferença entre os homens dotados de razão e os
que ignoram a verdadeira razão pois, “tal como o sábio tem todo o direito de fazer tudo o
que a razão manda, ou seja, a viver segundo as leis da razão, também o ignorante e o
pusilânime têm todo o direito de fazer tudo o que o instinto lhes inspire, isto é de viver
segundo as leis do instinto” (TTP, p.309). De modo que, para Spinoza, o direito natural de
cada homem é determinado, portanto, não pela razão, mas pelo desejo e pela potência.
Cumpre entender que os insensatos apenas seguem as leis da Natureza22, embora
não tenham conhecimento claro disso. Como explica no TP, se a natureza humana estivesse
disposta de tal modo que os homens vivessem seguindo unicamente as prescrições da razão,
e todo seu esforço fosse nesse sentido, o direito natural seria determinado somente pela
capacidade da razão. Mas não é o caso – os homens são mais freqüentemente conduzidos
20 Ressalta-se aqui, assim como já foi feito no capítulo I, que dessa potência universal fazem parte não só indivíduos humanos, mas também indivíduos não humanos. Assim, a Natureza inteira corresponde à soma de todas as potências naturais. 21 Note-se que Spinoza subverte o primado do direito. Ao afirmar que o direito de cada um se estende até onde se estende sua potência, rejeita a tradição liberal segundo a qual o “direito da cada um se estende até onde começa o do próximo”. E isso não é válido apenas para o estado natural – Spinoza conserva essa noção ainda no direito civil, como se verá. Posta nesses termos, a noção do direito não é a de primeira ordem; a noção primeira é a da potência. 22 A reprovação aos filósofos que desprezam as paixões e entendem que está sob o poder dos homens agir sob a razão expressa-se novamente no capítulo II, § 6, do TP: “Todavia, a maioria crê erradamente que os insensatos perturbam a ordem da Natureza mais do que a seguem, e a maioria também concebe os homens na Natureza como um império dentro de um império. Julgam, com efeito, que a alma humana, longe de ser produzida por causas naturais, é imediatamente criada por Deus, e independente do resto do mundo a tal ponto que tem poder absoluto para se determinar a si mesma e para usar do direito da Razão.”
pelo desejo cego, isto é, pelas paixões. Spinoza entende que tanto os desejos que têm
origem na razão como os que têm origem pelas paixões são efeitos da Natureza. O que
significa dizer que tanto o sábio quanto o ignorante expressam sua potência – e a potência,
na Natureza, é o próprio direito. Na Natureza, é portanto inconcebível que os homens
abdiquem de seu direito, pois que ele se traduz pelo próprio esforço de conservação.
Ora, tudo que o homem faz, o faz determinado por esse esforço, de sorte que não
se pode fiar nas palavras pelas quais os homens se comprometem a cumprir o pacto e a
seguir as leis, pois caso estes desfavoreçam seu esforço, o descumprimento será natural e
legítimo. Portanto, à luz do direito natural, nenhum indivíduo é obrigado a respeitar os
contratos, o que torna inviável qualquer projeto político de Estado. A noção de obediência,
portanto, não tem lugar no estado de natureza, somente no direito civil, dado que pelo
direito natural ninguém é senhor de algo em decorrência de um consentimento comum e,
sim, pela potência. Com efeito, na medida em que os homens são impotentes para refrear
suas paixões e governar a si mesmos e são passíveis de romper o acordo; por conseguinte,
para que as leis fixadas no pacto civil tenham força, cumpre baseá-las não na razão, que não
entrava as paixões, mas em outras paixões mais fortes. Ou seja, da mesma forma que se deu
o consentimento ao pacto – ou seja, devido ao movimento das paixões e à submissão dos
homens às representações de sua imaginação –, deve-se proceder para que o consentimento
perdure. Trata-se de promover uma “coerção inteligente” capaz de conhecer certas leis da
natureza pelas quais os homens são levados a obedecer (TTP, cap. XVI).
Uma das primeiras leis pelas quais os Estados devem se orientar é que os homens
só se abstêm de causar um dano pelo temor de um dano maior. “Portanto, é sobre esta lei
que a sociedade poderá fundar-se, com a condição de ela reivindicar para si o direito que
cada um tem de se vingar e de julgar do bem e do mal” ( ibidem). Da mesma maneira,
Spinoza observa que a lei universal da natureza humana determina que “ninguém despreza
o que considera ser bom, a não ser na esperança de um maior bem ou por receio de um
maior dano” e, por essa mesma lei, “ninguém aceita um mal a não ser para evitar outro
ainda pior ou na esperança de um maior bem” (TTP, p.311). Por isso, o homem nunca
cederá ao direito que tem sobre todas as coisas, a não ser “por medo de um mal maior ou na
esperança de um maior bem”. Ou seja, é preciso que ele imagine uma potência maior do
que a sua. Não observadas essas condições, o acordo perde sua força e torna-se passível de
rompimento. “É por isso que será insensatez uma pessoa pedir a outra que jure para todo o
sempre, sem tentar, ao mesmo tempo, fazer com que a ruptura desse pacto traga ao que o
romper mais desvantagens que vantagens.” (ibidem)
É por esses meios que Spinoza concebe o direito civil. Não se trata de uma ação
demiúrgica concebida pela decisão de homens razoáveis. Spinoza recusa a idéia de que os
homens possam construir uma ordem fora de sua natureza ou mesmo instaurar “um império
dentro do império”. Por conseguinte, mesmo referindo-se ao direito civil, Spinoza percebe
ser necessário observar as leis da natureza humana. Ou seja, a instauração das leis do
direito civil não suprime em absoluto a lei da natureza, uma vez que está fundada na
expressão do conatus.
Em outras palavras, nota-se que a obediência civil se fundamenta, para usar os
termos de Balibar, em um “complexo afetivo”. Vale ressaltar, portanto, que um Estado será
tanto mais duradouro quanto mais seus agentes políticos – nessa nomenclatura incluímos
toda espécie de soberanos, sejam eles monarcas, aristocratas, ou uma assembléia do povo –
observarem as normas de operação desse complexo afetivo humano. “Ora, isso” –
argumenta Spinoza – “é de importância capital na fundação de um Estado” (ibidem).
Essa idéia sustenta o enunciado de que “o maior poder é aquele que reina sob os
ânimos dos súditos” (TTP, p.323). Nesse sentido, a obediência, enquanto age pelo temor e
ou pela esperança, se apodera do corpo e da alma; enquanto se baseia no aprisionamento ou
na força das armas, diz respeito ao corpo e não à alma. O primeiro caso configura uma
obediência efetiva, enquanto o segundo, apenas a torna formal. “A obediência se faz tanto
mais efetiva quanto o comando seja de tal maneira introjetado e assimilado que, por vezes,
o obediente não tem mais a consciência de obedecer” (Matheron, 1988, p.298).
3. Obediência: contradição ou ambivalência
A obediência constitui um processo fundamental na conformação da sociedade
como Estado, figurando no cerne do problema político. Para Balibar, pode ser considerada
como a “relação social fundamental” em Spinoza (1985, p.106). Mas é também conceito
relevante para outros grandes pensadores políticos como Aristóteles, Hobbes, Descartes,
Hegel e Marx. Aparece no pensamento político e filosófico ocidental sob as mais variadas
formas: senhor-escravo, marido-mulher, pai-criança, príncipe-súdito, burguês-proletário.
Por isso, torna-se mister saber como tal categoria se apresenta no pensamento político de
Spinoza.
Antes, cumpre notar que a obediência se apresenta de um modo um tanto
contraditório: ela é fundamentalmente uma categoria que exprime passividade do indivíduo
e, enquanto passividade, ela é artifício para a sociedade fundar o Estado; ao mesmo tempo,
o Estado é fundado com intuito de viabilizar a liberdade, pois somente através da reunião
dos indivíduos em sociedade se pode almejá-la. Como conciliar esses dois conceitos, à
primeira vista, contraditórios?
Em verdade, essa contradição é aparente. Esses termos devem ser apresentados
como partes de uma ambivalência decorrente do conceito de obediência. Em princípio, a
obediência não se articula com o conhecimento; mas ela, se não produz conhecimento,
pode criar um ambiente propício para ele e, então, liberar a sociedade. Ou seja, a
obediência, como categoria política, pode redundar tanto na manutenção da passividade e
da servidão, nunca vindo a constituir a liberdade dos indivíduos; ou pode designar uma
passagem necessária da passividade para a autonomia, da alienação imaginativa para o
reino da razão. Isso quer dizer que todo projeto político libertário, aos olhos de Spinoza,
deve buscar tornar inteligível os meios de passar a multidão de um estado de paixão para
um de ação. Caso contrário, ter-se-á um Estado de servidão.
Um dos componentes dessa ambivalência indica que a obediência não designa
uma vida controlada pela razão. Isto é, ela não significa “uma vontade constante de regular
as apetências segundo as prescrições da Razão” (TP, II, §20). Só se poderia aceitar esse
conceito se a filosofia spinozista entendesse a liberdade, tal como entende, por exemplo,
Hobbes, como satisfação das apetências. Ou seja, o estatuto da obediência não se refere ao
próprio freio das paixões e ao governo de si, mas, sim, ao próprio estado de paixões. Por
certo, dizer que a prática da obediência implica medo e esperança é dizer que o indivíduo
obediente imagina uma potência superior à sua. Enquanto imagina isso, tem sua potência
entravada ou reduzida. Sob esse aspecto, a redução da potência não deixa de ser a condição
para a obediência; ora, a obediência associa-se à impotência do indivíduo em governar suas
paixões. Segundo o spinozismo, nada que atesta impotência no homem pode se relacionar
com sua liberdade.
Assevera-se ainda que o medo, como sublinha Spinoza no TTP (Prefácio, p.111),
“é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição”. Pode-se dizer o mesmo da
esperança pois que “não há esperança sem medo nem medo sem esperança” (Ética, III,
Definição dos Afetos, 13)23. Com efeito, medo e esperança compõem o fundamento de um
complexo afetivo sob o qual se apóia a obediência. À medida que essas paixões não só
dispõem à superstição, como a conservam, o indivíduo mobilizado pela obediência
distancia-se do conhecimento verdadeiro, ou seja, da razão. É nesse sentido que Spinoza,
no prefácio do TTP, exclama “A que ponto o medo ensandece os homens!”
Ora, não há nada mais contrário à razão do que a superstição, que leva a criar
falsas obrigações, a temer coisas inócuas, a depositar confiança em coisas absurdas, sem
qualquer relação entre causas e efeitos. No entanto, ela é de extrema eficácia para a
obediência: “na verdade (como se prova pelo que já dissemos e como Cúrcio muito bem
observou no Livro IV, cap. X), não há nada mais eficaz do que a superstição para governar
as multidões” (TTP, Prefácio, p.113). Nesse sentido, a superstição, associada à obediência,
pode ser entendida, como supõe Tosel (1984, p.41), como uma regulação do conatus da
multidão, de sorte que a obediência explicitamente se apóia na impotência dos homens em
governar suas paixões; e, enquanto o faz, confunde-se com a própria servidão.
O outro componente da ambivalência indica que a obediência também pode
estabelecer-se como acesso para a razão. Na verdade, ela é o único acesso possível, dado
que é condição necessária para a organização da sociedade – fora da sociedade todo
progresso da razão em direção à liberdade é impossível. Aqui se encontra novamente a
questão que resvala o contraditório: como promover esse progresso em um contexto de
passividade exigido pela obediência?
23 Conforme a explicação dessa definição, “aquele que, com efeito, está suspenso pela esperança e duvida do resultado de uma coisa, supõe-se imaginar qualquer coisa que exclui a existência da coisa futura e, por conseguinte, nessa medida, supõe-se que se entristece (...) e, conseqüentemente, enquanto está suspenso pela esperança, tem medo de que a coisa não aconteça”. O mesmo ocorre com aquele que tem medo: ele experimenta a dúvida, imagina também qualquer coisa que exclua a existência dessa coisa que o faz temer e, por conseguinte, alegra-se e, conseqüentemente, tem esperança de que a coisa não aconteça. Logo, os afetos perdem a relação de polaridade; caracterizados em princípio como afeto triste (medo) e afeto alegre (esperança), ambos têm como efeito tanto a tristeza como a alegria.
A passagem da passividade à ação repousa sobre o mesmo movimento labiríntico
das paixões que leva os homens a formarem noções comuns e idéias adequadas. Nas
palavras de Matheron (1988, p.282), “a dinâmica passional das relações inter-humanas
termina em um estado de equilíbrio que, em medida menor ou maior, permite a razão se
desenvolver”.
Pela lógica da formação das noções comuns, cumpre perceber, portanto, que a
passividade, própria do regime de obediência, não é essencialmente uma paixão triste. Em
contrapartida, é preciso reconhecer que a obediência não tem só uma causa: obedece-se por
medo de um mal ou pela esperança de um bem maior; obedece-se para não ser punido ou
com o intuito de alcançar algum benefício, o que são coisas diferentes. Com efeito, basta
compreender que viver em estado de passividade não significa somente experimentar
paixões tristes, mas também as paixões alegres que favorecem a potência. Nas palavras de
Pires Aurélio (1988, p.90), “obedecer, sendo ineludivelmente manifestação de passividade
e dos limites da potência individual, sendo, em suma, paixão, pode, nesta perspectiva, não
ser forçosamente uma paixão triste”.
Nesse sentido, Spinoza afirma que os indivíduos sujeitos ao complexo afetivo
operado em função da obediência podem, muito mais facilmente que os outros homens
impotentes, serem levados a viver sob a direção da razão (Ética, IV, p.54). Quanto a isso,
Matheron é enfático: seja qual for o regime político, imperfeito ou perfeito, os homens
organizados em sociedade pela obediência têm mais facilmente acesso ao reino da razão. É
claro que há regimes mais favoráveis; mas, em princípio, toda reunião em sociedade torna-
se propícia. Desse ponto de vista, como sugere esse autor, os regimes políticos podem ser
analisados tendo como critério os afetos que cultivam em nós: se afetos de alegria, que
favorecem nossa potência, ou se afetos de tristeza, que as entravam e impedem a formação
de idéias adequadas24.
Sob esse prisma, a obediência pode convir à razão, sendo ela, assim como o pacto
que estatui o direito civil, uma idéia inadequada que se organiza à semelhança das idéias
verdadeiras (Pires Aurélio, 1988, p.90). É porque a obediência pode estar de acordo com a
reta razão que os indivíduos racionais reconhecem utilidade no Estado. Percebe-se que,
mesmo nesse movimento ilusório, movido por paixões, a vida sob o Estado traz mais
vantagens que desvantagens, visto que a consolidação da sociedade, regida pela obediência,
é o campo mais oportuno para a formação de noções comuns e idéias adequadas e,
portanto, para o aumento da potência de compreender.
Além disso, a razão ensina de maneira geral a procurar a paz, o que é impossível
se as leis são violadas e a desobediência instaurada. Por isso, quanto mais livre é, mais o
homem procura observar as leis da cidade. O homem razoável e livre compreende que só
em estado civil pode alcançar a paz e a segurança física e mental dos homens. “É por isso
que, se um homem conduzido pela razão deve por vezes fazer por ordem da cidade o que
sabe ser contrário à razão, este mal é largamente compensado pelo proveito que tira do
estado civil; é próprio da razão escolher o menor entre dois males” (TP, III, § 6).
Nesses termos, a obediência não se confunde com servidão; pelo contrário, ela
pode preparar para a razão e possibilitar a liberdade, desde que o complexo afetivo ou o
movimento labiríntico das paixões favoreça a potência. Pode-se considerar, portanto, que a
obediência como categoria política consiste em um conceito bifurcado, através do qual se
caminha ora para a manutenção da servidão ora para a passagem à liberdade.
Ao atravessar o eixo do pensamento spinozista, a categoria obediência vai ao
encontro da percepção da irredutibilidade e utilidade da imaginação na conduta política.
Por conseguinte, obriga a perceber que o filósofo não ignora toda e qualquer ilusão,
conquanto denuncie e descarte a ilusão teológica. Ora, para se alcançar a liberdade é
necessário atravessar a obediência, tendo em vista o projeto de um Estado. É nesse sentido
que se pode apreender por que Pires Aurélio refuta interpretações da obra de Spinoza –
citando a de Negri – que tendem a ver nesse pensador o filósofo da revolução radical e da
libertação do homem de toda e qualquer dependência.
Na visão de Pires Aurélio, a denúncia da ilusão teológica faz o homem reduzir seu
grau de passividade e impotência, mas não altera seu campo de atuação nem sua condição
finita. Ou seja, ela reduz a impotência, não a erradica. Segue sendo importante, portanto,
organizar diferentemente a atividade da imaginação que permanece como gênero de
conhecimento, o que deve constituir a empreitada da ciência política. Isto é, a obediência e
a passividade – esta, cativa da paixão – se fazem presentes e irredutíveis mesmo que não
mais sob a influência da ilusão teológica (Pires Aurélio, 1988, p.82):
24 Não só a parte III da Ética pode servir de catálogo para essa análise, mas também a parte IV, proposições
“...exorcizar uma tal ilusão [a teológica], apontando o homem, em vez de Deus, como sujeito do seu discurso e desalojando-a da ordem da verdade para a ordem da obediência – o que implica a separação entre teologia, por um lado, e filosofia, por outro –, não leva à supressão da passividade nem da obediência: leva é à sua dedução com base em outras premissas”.
4. Estado: conservação, dissolução e rebelião
Quanto à finalidade do Estado, ou seja, a possibilidade de associar-se à liberdade e
abandonar a servidão, é possível destacar duas ênfases diferentes, uma no TTP e outra no
TP.
Nas duas obras, o projeto político tange tanto à segurança e à paz social como à
liberdade. No TTP, porém, o fim do Estado é, em última instância, a liberdade – não
obstante figure em sua exegética a compreensão da necessidade da segurança e da paz
social como condição para a liberdade, essa necessidade não consiste na finalidade última
da instituição. O TTP vislumbra, por conseguinte, a possibilidade da passagem da
obediência, ou seja, da organização sob o Estado, para a liberdade. Conferindo o trecho, na
página 367, capítulo XX:
Dos fundamentos do Estado, já aqui expostos, resulta com toda a evidência que o seu fim último não é dominar nem subjugar os homens pelo medo e submetê-los a um direito alheio; é, pelo contrário, libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo para si ou para o outro, o seu direito natural a existir e a agir. O fim do Estado, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autômatos: é fazer com que sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles possam usar livremente a razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se manifestem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim do Estado é, portanto, a liberdade.
Em contrapartida, no TP, o objetivo do Estado é promover a segurança e a paz
social, tendo em segundo plano a liberdade. Essa promoção funcionaria como salvaguarda
41 a 58, nas quais Spinoza apresenta os afetos que favorecem ou entravam o exercício da razão.
para que a mente e o corpo possam exercitar suas funções (TP, I, §6 e TP, V, §2),
principalmente a liberdade de expressão e opinião, que, em progressão, pode resultar na
liberdade spinozista. No entanto, Spinoza julga muito difícil estabelecer a razão através do
Estado, não obstante considere que um homem é tanto mais senhor de si próprio quanto
mais vive sob a conduta da razão – e, conseqüentemente, uma cidade é mais poderosa e
senhora de si quando fundada e governada segundo a razão. Como expõe (TP, I, §5):
mostramos (...) o que a Razão pode em conter e governar as emoções, mas vimos ao mesmo tempo que o caminho ensinado pela Razão é muito difícil; aqueles que, por isso, se persuadem ser possível levar a multidão, ou os homens ocupados com os negócios públicos, a viver segundo os preceitos da Razão, sonham com a idade de ouro dos poetas, isto é, comprazem-se na ficção.
Nessa perspetiva, Spinoza chega a considerar a passagem da obediência para a
liberdade uma utopia; para ele, aqueles que crêem nessa hipótese “comprazem-se na
ficção”. Sob esse prisma, sugere mesmo que obediência e liberdade sejam antitéticas (TP,
IV, §5) ou que os homens, “uma vez libertados do medo pela paz, tornam-se, pouco a
pouco, os selvagens e bárbaros que eram, em vez de civilizados e humanos” (TP, X, §4) .
As diferentes ênfases empregadas nas duas obras explicam-se, na visão de Balibar,
pelo contexto histórico vivido por Spinoza. Segundo ele, a redação do TTP foi marcada
pela perseguição religiosa sofrida pelo autor e, por conseguinte, tendia a projetar um Estado
fora dos domínios da religião e da superstição, em prol da liberdade da opinião. Já o TP
teria sido marcado pelo assassinato dos irmãos de Witt, em 167225, o retorno do poder ao
25 Após a morte de Guilherme II de Orange, Jan de Witt assume o poder de facto na República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos em 1653. Dá então continuidade ao florescimento comercial conhecido por aquela República desde a sua fundação (ocorrida durante a Guerra dos Oitenta Anos [1568-1648] contra Espanha). Entusiasta do republicanismo, de Witt não poupou esforços para evitar a volta ao poder de qualquer membro da Casa de Orange (no caso, Guilherme III, filho de Guilherme II). Contava então com o apoio dos comerciantes e calvinistas liberais e a oposição dos calvinistas ortodoxos (facção Orangista). Os primeiros defendiam a tolerância religiosa, a supremacia do poder civil sobre a autoridade religiosa, declarando que esta não tinha direito de legislar em assunto de fé e de moral. Por outro lado, os ortodoxos eram partidários da dominação do Estado pela Igreja e condenavam o desenvolvimento econômico como contrário à Bíblia – em geral, essa doutrina era compartilhada por todas as camadas sociais prejudicadas com o florescimento mercantil e com a nascente indústria (camponeses, artesãos, operários, portuários e nobreza, que constituíam clientela da Casa de Orange). Apesar de simpático aos franceses, de Witt se recusa a cooperar com estes na destruição e divisão dos Países Baixos Espanhóis (região que compreende a atual Bélgica, Luxemburgo e partes da França). Irritados, os franceses declaram guerra às Províncias Unidas e invadem o país por terra. De Witt tenta negociar a paz, mas não obtém sucesso. Perde o poder para Guilherme III, que retorna como vice-rei. Seus inimigos levantam suspeitas de que tenha traído a República. Os indícios causam a ira da população
partido orangista e o fracasso de uma república mais liberal. Segue-se daí que o TTP teria
como perspectiva o tema da liberdade; enquanto no TP prevaleceria o tema da conservação
do Estado pela paz e segurança.
Essas duas perspectivas – a do Estado como promovedor da liberdade (TTP) e a da
conservação do Estado pela paz (TP) –, levadas às últimas conseqüências, permitem divisar
duas hipóteses.
Pode-se dizer que a primeira perspectiva – a do Estado, cujo objetivo é, através da
obediência, tornar os homens livres – resultaria no desaparecimento do aparato estatal, pois
que os homens movidos pela razão acordariam espontaneamente, não sendo necessária a
força estatal, como cogita Spinoza. Em contrapartida, o Estado em que a obediência visa
tão-somente a conservação dessa instituição sofre o risco de apoiar-se no medo de tal
maneira a consolidar a servidão, em vez de romper com ela. Compartilhando essa
interpretação, Hampshire (1982,p.144) considera que Spinoza não previu que a maior
ameaça para a liberdade de pensamento poderia vir da superstição e do fanatismo
puramente políticos, utilizados como meios de ampliar o poder.
De fato, tal cenário contraditaria o aparato filosófico de Spinoza. Para Spinoza, a
obediência dos súditos tendia sempre a se dissolver no caso de desvantagem. Na linguagem
de Spinoza, súdito designava “aquele que faz, por ordem da autoridade soberana, o que é
útil ao bem comum e, conseqüentemente, também útil a si próprio”, não se confundindo
com o escravo, “aquele que é obrigado a obedecer às ordens do dono, que não visam senão
o que é útil para quem manda”. Para Spinoza, portanto, a conservação do Estado, isto é, a
ordem – esse é outro tema que perpassa a teoria política ocidental – não poderia ser
mantida a qualquer custo. Ela só é mantida quando o Estado é bem-sucedido na
organização do complexo afetivo.
Assim, para Spinoza, a causa fundamental tanto dos “vícios” dos cidadãos quanto
de suas virtudes reside no movimento das instituições, o que implica reconhecer que
obedecer, assim como desobedecer, é viver sob a dominação do complexo afetivo (Balibar,
e dos calvinistas ortodoxos, que barbaramente lincham os irmãos de Witt. Em 20 de agosto de 1672, Jan de Witt e seu irmão, o Almirante da frota holandesa Cornelius de Witt (preso por suspeita de traição), foram retirados à força da prisão em Haia por uma multidão atiçada por orangistas e calvinistas. Os dois homens de Estado foram linchados, despedaçados e comidos (sic) por essa “multidão” ensandecida. Spinoza tentou sair às ruas com um cartaz em que se podia ler ultimi barbarorum, mas foi, felizmente (pois teríamos sido privados do Tratado Político), impedido fisicamente pelo seu locatário, um pintor de paredes.
1985, p.107). À luz do TP, a desobediência – assim como a obediência – explica-se não
pela livre decisão dos indivíduos, mas pela má conduta do regime, isto é, um arranjo
político desfavorável às potências: “É certo que, com efeito, as sedições, as guerras e a
violação ou desprezo pelas leis são imputáveis, não tanto à malícia dos súditos, quanto a
um vício do regime instituído” (TP, V, §2). Em outros termos, isso significa que o regime
não foi capaz de sanar as causas da discórdia na Cidade, não promovendo, assim, vantagens
que induzam os indivíduos a cumprir o pacto e que mantenham o sentido da obediência:
“Com efeito, um estado civil que não suprimiu as causas da sedição e onde a guerra é
constantemente de recear, onde as leis são freqüentemente violadas, não difere muito do
estado natural em que cada um, com maior perigo para a sua vida, age segundo a própria
compleição” (ibidem).
A condição para a obediência cívica, isto é, para eliminar as causas da
desobediência e da sedição oferecida no TP consiste, exatamente, na promoção de um
Estado que ofereça segurança e paz social. Mas também é necessário que seja um Estado
forte, não no sentido autoritário, mas que concentre toda a potência, o que significa
envolver a multidão nas decisões do Estado. O Estado, portanto, deve ser “absolutamente
absoluto” (Balibar, 1985, p.69), isto é, não deve temer a massa, mas incorporá-la, pois ela é
o fundamento do poder do Estado. Sem ela, o Estado é impotente, dado que o Estado é a
união das potências individuais e quanto mais numerosa for essa união, mais condições
haverá de maiores serem essas potências. Em suma, essa noção designa a necessidade da
democratização do poder, noção essa que Spinoza aplica à análise dos regimes monárquico
e aristocrático. A problemática típica da teoria política que se traduz por uma procura
obsessiva das formas de conter a multidão é subvertida na obra de Spinoza: para conter a
multidão, isto é, o furor de suas paixões, é preciso liberá-la, ou seja, não aliená-la e, sim,
promover o máximo possível de idéias adequadas. Questão de certa forma inédita para o
seu tempo26. Pode-se concluir que a conservação do Estado se faz à semelhança da
conservação do indivíduo.
É por essa razão que, ao mesmo tempo em que considera indispensável a
conservação do Estado, Spinoza considera lícito o rompimento do pacto. Os indivíduos
26 Para Balibar (1985, 69), a noção de um Estado absolutamente absoluto conduz “a uma questão não colocada nem por Hobbes, nem mesmo por Maquiavel, e que o TTP não tinha tratado senão de uma forma unilateral: aquela dos fundamentos populares da força dos Estados, nos movimentos da própria ‘multidão”.
esforçam-se para conservar o seu ser e, sempre que essa condição não for respeitada pelo
Estado, haverá desobediência. Spinoza rejeita a oposição hobbeseana entre direito natural e
direito civil; o direito natural, expresso pelo conatus, é mantido mesmo no estado civil:
“não há dúvida que os contratos, ou as leis, pelos quais o conjunto dos cidadãos transfere o
seu direito para um conselho, ou para um homem, devem ser violados quando essa violação
importa ao interesse comum”(TP, IV, §6). Essa desobediência cívica só terá efeito, será
legítima e resultará em uma outra composição de forças mais favorável à potência, caso
seja coletiva, pois “(...) a nenhum particular compete julgar, isto é, decidir se é do interesse
comum violar as leis estabelecidas ou não” (ibidem).
*
Em suma, mesmo que “o agir de acordo com uma ordem, quer dizer, a obediência,
retira, é um fato, até certo ponto, a liberdade”(TTP, p.314), a obediência não pode ser lida
apenas na chave da servidão. Para Spinoza, o homem que vive sob obediência não se torna
um escravo. A obediência só pode ser lida como manutenção da servidão quando não
indica utilidade para “quem a pratica, mas para aquele que a ordena”. Quando isso ocorre,
rebelião e desobediência são conseqüências naturais. Da mesma forma, um regime político
mantido pela obediência não denota que todos sejam impotentes; ao contrário, em
sociedade eles compõem uma potência superior e, na condição de sujeitos ou súditos,
devem ser levados não só a obedecer por motivo de medo de um mal, mas também por
anseio de um bem maior.
O próximo capítulo será dedicado a uma questão latente e ainda pouco esclarecida
neste texto: que razões conduzem os homens a lutar por sua servidão com a mesma
tenacidade com que lutariam por sua liberdade? Em outras palavras, por que eles se
orgulham de sua própria escravidão? Essas questões, que nortearam a obra do TTP, aludem
à hipótese da servidão voluntária, hipótese essa elaborada no século anterior a Spinoza pelo
jurista Étienne de La Boétie. Tais indagações aproximam Spinoza e La Boétie, indicando
que ambos compartilhavam do desejo de formar uma sociedade de homens livres ao invés
de um “ajuntamento de escravos”. Cabe, então, cotejar as concepções de servidão em
Spinoza e em La Boétie, além de refletir em que medida pode-se falar em “servidão
voluntária” no terreno spinozista.
CAPÍTULO III
Obediência civil e risco da servidão voluntária
1. Spinoza, La Boétie e a questão da servidão
A produção intelectual de La Bóetie e a de Spinoza são muito distintas. La Boétie
legou à filosofia política apenas uma obra – o Discurso sobre a Servidão Voluntária –, cujo
estilo especulativo e abstrato desenvolve-se, com grande eloqüência, potente como
manifesto, em algumas poucas dezenas de páginas. Spinoza, por outro lado, deixou uma
obra mais ampla, experimentando em sua linguagem uma exposição didática (como na
Ética), uma argumentação exegética (como no TTP) e uma exposição sintética (como no
TP). Por essa razão, Spinoza apresenta um aparato intelectual mais complexo e difuso,
enquanto Boétie apresenta um pensamento mais conciso e concentrado, rico nas entrelinhas
e, por isso, matéria para diversas interpretações.
Distinções à parte, os dois pensadores compartilham de uma mesma inquietação, a
de compreender por que o homem se submete à servidão. Por conseguinte, constitui um
objetivo para esses autores pavimentar o caminho para a liberação do indivíduo em
sociedade. É esse o móbil principal que obriga a aproximar suas teorias neste estudo. Nessa
tarefa, o contexto político vivido por esses filósofos, muito embora mais de um século os
separe, revela algumas semelhanças importantes para compreender, em parte, a motivação
de suas obras. Esse contexto relaciona-se, principalmente, ao jugo monárquico e às disputas
e conflitos religiosos que convulsionaram a Europa.
Na França de La Boétie, a repressão, após a Revolta das Gabelas27, toma conta de
Bordeaux e Guyenne em 1549; ocorre o saque do campo pelos exércitos de Henrique II;
desencadeia-se a ruína dos camponeses; cresce o número de execuções na cidade; fecha-se
o Parlamento; espraia-se a agitação religiosa dos huguenotes. Na Holanda de Spinoza,
desencadeava-se a guerra contra a Espanha; explodem os conflitos entre o calvinismo em
sua forma liberal e o calvinismo ortodoxo; o povo despreza a república liberal e permanece
fiel à Casa de Orange; os irmãos de Witt, expressões do calvinismo liberal e defensores do
republicanismo28, são cruelmente linchados e assassinados. Essa contextualização, no
entanto, não faz com que a questão de Spinoza e a de La Boétie atinjam o leitor com menos
vigor na atualidade. Na verdade, a questão desses autores é “transhistórica”, isto é, se
desdobra no tempo, sendo sempre retomada e revisada sob novos olhares.
Em La Boétie a questão é apresentada nos seguintes termos: ele se pergunta como
a maioria obedece a um só; não somente obedece, mas também o serve. E não o serve
simplesmente, mas deseja servi-lo. Isto é, La Boétie não se refere a uma servidão
consentida mediante a força do jugo ou da coerção do tirano. O filósofo divisa nessa
servidão à qual se submetem os súditos um caráter inédito: o da voluntariedade. A servidão
voluntária conformaria, então, um desejo humano de se submeter mesmo quando são as leis
injustas e degradantes.
Com efeito, em Spinoza, a questão assemelha-se a de La Boétie. O filósofo
indaga-se porque o homem se orgulha de sua própria escravidão. Por que os homens lutam
por sua escravidão como se lutassem por sua liberdade (TTP, Prefácio). Por que é tão difícil
não apenas conquistar, mas suportar a liberdade? (Deleuze, 2002, p.15). A servidão, tal
como em La Boétie, também não se exerce por meio da força. Obcecado por essa questão,
o filósofo constrói sua obra, atravessando-a pelo tema da servidão: no TTP, na Ética e no
27 Segundo Wendy McElroy (2003), foi inspirado na Revolta das Gabelas que La Boétie escreveu o Discurso. A gabela, ainda segundo McElroy, era um imposto muito impopular cobrado sobre o sal, o qual era não somente uma necessidade humana como também um monopólio governamental. Os manifestantes assassinaram o diretor geral da gabela e, em represália, 140 plebeus foram mortos e muitos outros açoitados. Além disso, foram impostas multas exorbitantes. Nas palavras de McElroy, “La Boétie era um observador perspicaz das demandas concorrentes sobre a obediência do povo. Quando os indivíduos finalmente se rebelaram, observava e se perguntava por que o Estado parecia ser capaz de fazer qualquer coisa que desejava, sem importar quão tirânico fosse. Por que as pessoas não se levantavam novamente, desta vez em massa?”. 28 Ver nota 25.
TP, são lançadas as bases para configurar uma coletividade de homens livres e não um
conjunto de escravos.
As respostas a essas questões revelam dois sistemas de pensamentos muito
particulares e originais – o pensamento político de La Boétie confronta as doutrinas
naturalistas e teológicas da servidão, tais como as de Aristóteles e Agostinho29, e o de
Spinoza se opõe, em maior medida, à escola estóica, aristotélica, cartesiana e mesmo à
teoria jusnaturalista de que faz parte.
A principal propriedade das teorias boétiana e spinozista a ser destacada neste
estudo refere-se à associação do conceito de servidão à noção de vontade ou de desejo. Essa
associação constitui o caráter essencial das obras desses autores e, por conseguinte, permite
perceber a diferença fundamental de seus argumentos, qual seja, a de que a servidão em La
Boétie é voluntária e, em Spinoza, não pode ser assim nomeada. No caso de Spinoza,
poder-se chamá-la voluntária tão-somente quando se quer apresentar um sentido “largo” da
acepção spinozista, tal como procedem alguns teóricos abordados adiante.
2. Servidão: a vontade e o arbítrio
Aos olhos de Boétie, dois motivos determinam que a servidão seja entendida como
voluntária. Em primeiro lugar, a servidão nega a condição natural do homem. Segundo ele,
“não há dúvida de que somos todos naturalmente livres, visto sermos todos iguais” (La
Boétie, 1997, p.26), sendo esse o traço fundamental que distingue o homem do animal.
Fundadas as sociedades políticas e efetivada a divisão social, os homens teriam perdido a
memória de sua condição natural, “embora não haja coisa que o homem deva desejar com
mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixando, por assim dizer, a condição
alimária para voltar a ser homem” (ibidem, p.23). Ao considerar tal imemoriável condição,
Boétie deixa subentendido, portanto, que o homem, enquanto sujeito político, recusa sua
29 Como explica Laurent Gerbier (apud Jean Pierre Cavaillé, artigo on-line publicado na Revue Philosophique sobre a publicação do Discurso em Paris, Vrin, 2002), a afirmação de La Boétie de que a servidão é contra a natureza mostra “de um lado, a oposição do Discurso à concepção da servidão tal como ela é entendida pela tradição cristã pela condição pecadora do homem (e julgada necessária) e, do outro, à tentativa aristotélica que consiste em fundar a servidão como primeiro modelo do laço civil da própria natureza”.
própria natureza. Ou seja, sua desnaturação estabelece-se por decisão do próprio homem
que, sujeito político, opta pela servidão.
Em segundo lugar, o poder daquele que subjuga é concedido pelos subjugados e,
visto que o número destes é infinitamente superior ao daquele, que é somente um, torna-se
simples recusar a submissão. Assim, a busca de liberdade e banimento da servidão
apresenta-se como uma questão de querer. Por isso, parece inconcebível que um povo se
deixe humilhar diante de um tirano, que é somente um, que ele consinta em sua submissão.
“Só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os
mais ínfimos habitantes das nossas cidades não possuem também” (ibidem, p.25). Desse
modo, se são os súditos em maior número, não há razão que explique por que um povo
inteiro se curva diante de apenas um só homem, senão a vontade ou decisão de servir.
Para La Boétie, a questão se torna ainda mais obscura quando se considera que
para banir a servidão não é preciso sequer defender-se ou combater o tirano. Basta recusar-
se a obedecer-lhe para que ele seja destruído: “não é necessário tirar-lhe nada, basta que
ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si
próprio, basta que nada faça contra si próprio” (ibidem, p.22). A servidão, tão fácil de ser
desarticulada, passa a ser vista, portanto, como dependente da vontade e do querer. Nas
palavras de Pierre Clastres (1999, p.115), os homens obedecem e se submetem, “não
forçados ou constrangidos, não sob o efeito do terror, não por medo da morte, mas
voluntariamente” (grifo do autor). Nessa perspectiva, não resta outra hipótese a La Boétie a
não ser a de que os homens não querem ser livres (La Boétie, 1997, p.22):
São, pois, os próprios povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem maltratados, pois deixariam de o ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.
Em La Boétie, o servir está associado à vontade, que por sua vez é diretamente
associada ao querer. Ou melhor, a vontade é entendida como faculdade de querer, de
escolher, de livremente praticar ou deixar de praticar certos atos – ela é mesmo uma força
interior regida pela mente que impulsiona o indivíduo a agir.
Entendida como faculdade, a vontade passa a depender da capacidade racional do
indivíduo. Homens dotados de espírito educado e clarividente, acostumados ao exercício do
raciocínio, podem vir a desejar a liberdade, mesmo aqueles que só conheceram a servidão.
(La Boétie, 1997, p.39). Por conseguinte, a razão é apresentada na obra de La Boétie como
semente existente na alma de cada um. Se bem cultivada, resulta na virtude, se mal
cultivada, torna os homens incapazes de resistir ao vício (idem, p. 26). Como contrária à
condição natural e racional do homem, a servidão voluntária constitui esse vício a que os
homens não resistem: “Que nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício
será este: um número infinito de pessoas não só a obedecer mas a servir, não governadas,
mas tiranizadas (...)” (idem, p.19); “Que vício monstruoso é este então que nem sequer
merece nome vil de covardia? Que a natureza nega ter criado, a que a língua recusa pôr
nome?” (idem, 20).
Do ponto de vista da teoria de Spinoza, a servidão não pode ser concebida como
voluntária, uma vez que a relação que estabelece com a vontade é outra. Nada mais
inapropriado do que considerar uma atitude humana como vício. Como visto no capítulo II
deste estudo, La Boétie figuraria, então, entre os filósofos que em vez de compreender,
desprezam a natureza humana.
Como sugere Clastres, não é que o homem desnaturado, isto é, desprovido de sua
natureza, tenha perdido a vontade: “essa vontade mudou de sentido, orientando-se para o
objetivo contrário” e, a partir de então, ele não visa mais à liberdade, mas aprecia a
servidão. Esse homem desnaturado desvelado por La Boétie é “ainda livre, pois escolhe a
alienação” (Clastres, 1999, p.115). Sob esse ângulo, pode-se dizer que a vontade é a causa
da servidão em La Boétie – ela é livre para escolher e querer, e contraditoriamente, não
escolhe a liberdade. “Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria
ser resgatado a preço de sangue?”, pergunta La Boétie (1997, p.23).
Já para Spinoza, a relação que a servidão estabelece com a vontade não pode ser a
de causa livre: “a vontade não pode ser chamada causa livre, mas somente causa
necessária” (Ética, I, prop.32), ou seja, a vontade carece de uma causa pela qual seja
determinada. Ora, a mente é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que
também é determinada por outra e, assim, sucessivamente, de modo que a vontade não é
absoluta ou livre, ela não configura uma faculdade absoluta de querer ou não querer (Ética,
II, prop.48).
Quando a liberdade é concebida como poder de uma vontade de escolher ou,
voluntariamente, de introjetar modelos pelos quais se pretende pautar, o homem é levado a
crer na contingência, ou seja, na possibilidade de que algo aconteça ou não. O homem
passaria a crer que a decisão é tomada pela sua vontade, e ele pode ter vontades diversas.
Para Spinoza, nada na Natureza é contingente (Ética, I, prop.29), tudo está determinado em
decorrência de um nexo infinito de causas. A crença na contingência e em possíveis é
sintoma da ignorância das causas, assim como da convicção da ação voluntária da alma
sobre o corpo (Ética, I, Apêndice; II, 35, esc.; III, 2, esc.; V, Prefácio). Para Spinoza,
entender a liberdade como vinculada à vontade constitui uma ilusão fundamental do
indivíduo (Deleuze, 2002, p.66).
Nesse sentido, a servidão voluntária boétiana, à medida que se associa ao processo
de deliberação e escolha, implica na percepção do livre arbítrio, inconcebível em Spinoza,
já que, para ele, não há possíveis ou opções – tudo está determinado a existir pelo nexo das
causas, de tal maneira que tudo é dedutível de uma lei da natureza. A crença de que um
indivíduo poderia agir de maneira diferente ou ter escolhido fazer de outro modo é ignorar
o encadeamento de causas regidas pelas leis da Natureza.
Os indivíduos só se crêem livres por ter consciência de seus desejos; consideram
que tal consciência constitui conhecimento que os habilita a compreender aspectos ou a
totalidade de seu mundo interior, da sua essência. Para Spinoza, no entanto, isso não
configura liberdade; é apenas sua ilusão. Pelo contrário, “só somos conscientes das idéias
que temos nas condições que temos”, isto é, de acordo com o modo que nosso corpo está
disposto. Por conseguinte, a consciência retém apenas efeitos cujas causas ela ignora, o que
significa que ela é “naturalmente consciência de idéias inadequadas, mutiladas e truncadas
que temos” e, como tal, é sede de algumas ilusões, entre elas a ilusão da liberdade
(Deleuze, 2002, p.66). Na verdade, “homens se julgam livres apenas porque são
conscientes das suas ações e ignorantes das causas pelas quais são determinados(...)”, ou
seja, das causas que os dispõem a querer e a desejar (Ética, III, prop.2-esc.).
Portanto, as decisões da alma nada mais são do que os próprios apetites, o que
significa que a alma decide, ou melhor, é levada a agir sem conhecer verdadeiramente.
Como os apetites variam conforme as disposições do corpo (Ética, III, prop.2-esc.), as
decisões seguem essas variações. Ou seja, as decisões são tomadas com base em idéias
inadequadas, em representações confusas, ou melhor, os indivíduos não decidem, mas, sim,
são arrastados pelas paixões que neles se produzem. Como ensina Hampshire (1951,
p.108), “a ‘hipótese monstruosa’ de Spinoza e a única parte da sua filosofia que se fez
imediatamente famosa, foi que tal critério para caracterizar os seres humanos, através do
exercício da vontade e escolha racionais, é mera superstição: uma superstição que deve ser
rechaçada ao se avançar na escala do conhecimento natural”.
Ora, a superstição é constituída enquanto o conhecimento inadequado determina
nosso pensamento a conceber uma ação como contingente ou sem causa, ao passo que o
conhecimento adequado permite entender as ações como efeito necessário de uma causa,
como elo necessário de uma cadeia infinita de causas (Hampshire, 1951, p.109). Para
Spinoza, o homem é livre quando entra na posse da sua potência de agir, ou seja, quando
seu conatus é determinado pelas idéias adequadas das quais decorrem afetos ativos, que se
explicam por sua própria essência (Deleuze, 2002, p.90). Se o homem só se torna livre
através da produção de noções comuns e afetos ativos, que decorrem de idéias adequadas, é
de se deduzir que o homem não nasce livre, mas, antes, torna-se livre ou liberta-se. Logo,
para o spinozismo, a liberdade não pode ser concebida como uma qualidade inata, tal qual
em La Boétie. Ademais, a liberdade não denota apenas a ausência do desejo de submeter-se
ao jugo e a leis injustas. A liberdade significa deixar-se guiar por idéias adequadas, isto é,
pela razão.
Importante notar que tanto La Boétie como Spinoza destoam, cada qual a sua
maneira, da tradição filosófica da política liberal, segundo a qual a ausência de coerção da
sociedade sobre a vontade individual, ou seja, a falta de constrangimentos e obstáculos
externos, configura a liberdade, conhecida na teoria política como liberdade negativa. No
entanto, La Boétie e Spinoza destoam também um do outro.
A visão boétiana vincula a liberdade e a servidão à vontade. Em Spinoza, nem a
liberdade nem a servidão podem ser concebidas como voluntárias, e se relacionam com o
conhecimento adequado e inadequado, respectivamente. Ora, enquanto tem idéias
inadequadas, o indivíduo é passivo, ou seja, por não compreender seu lugar no nexo infinito
das causas tende a submeter-se às paixões e depender da fortuna. Isso configura a própria
servidão, que é, por definição, a impotência humana em refrear e governar as paixões
(Ética, IV, Prefácio).
Ao longo do Discurso, La Boétie expõe alguns motivos que explicam o fenômeno
da servidão voluntária, motivos esses incorporados como ferramentas da tirania, qual
sejam: o costume e o hábito de servir transmitidos de geração à geração; os espetáculos, os
jogos, as farsas, os teatros, os gladiadores as feras exóticas, as bugigangas, as celebrações,
os passatempos e os prazeres da boca, chamados de “engodos da servidão”; a superstição,
as lendas, o disfarce da religião e da mistificação; e a ânsia de ter bens, de desfrutar do
espólio, da fortuna, dos favores, dos ganhos e dos lucros, o que produz uma densa estrutura
de colaboradores, espécies de “tiranetes” que se deixam escravizar pelo tirano na esperança
por recompensas – estrutura essa que consiste no “segredo e mola da dominação”, “apoio e
alicerce da tirania”30.
Para espanto de La Boétie, essas pequenas “paixões” são capazes de ludibriar uma
multidão disposta a ceder ao tirano sua liberdade. Aos seus olhos (1997, p.43), “atrair o
pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é menos fácil do que atrair os povos
para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante. É espantoso
como eles se deixam levar pelas cócegas”.
Pode-se argumentar que essa identificação das variações dos motivos da servidão
voluntária traduz, em consonância com Spinoza, uma impotência dos homens diante das
paixões, que figuraria, por conseguinte, como causa primeira e cerne da servidão. Malgrado
essa identificação, deve-se notar que a servidão não perde seu caráter voluntário no
Discurso. Isto é, as paixões aparecem subordinadas à vontade, sem a qual a servidão não se
realizaria. À medida que os indivíduos, a despeito do valor da liberdade, escolhem
30 La Boétie associa a variação dos motivos da servidão voluntária a determinados segmentos de súditos. Assim, o costume, os passatempos e prazeres da boca, e a superstição referem-se à “arraia miúda” ou ao vulgo: “Tudo, pois, o que até aqui disse sobre o hábito de as pessoas serem voluntariamente escravas aplica-se apenas às relações entre os tiranos e a arraia miúda e embrutecida” (1997, 49). O segmento que compõe a classe burocrática e o alicerce da tirania – segmento esse não referido por nenhum termo específico - teria outros motivos para servir. Ainda, aqueles que não se despojam da liberdade que a natureza lhes deu são chamados de “espíritos esclarecidos”. Pode-se dizer, então, que a população de servis se divide nesses três segmentos: vulgo, elite colaboracionista (a partir da qual se forma uma cadeia de pequenos tiranos) e esclarecidos.
satisfazer essas paixões, eles instauram o desejo de servir como causa da servidão, que
seria, então, chamada de voluntária. A considerar a definição de Chauí (1999, p.191) o
desejo servil é a causa eficiente da servidão em La Boétie. “Que haja móbeis para esse
desejo, La Boétie não o nega; pelo contrário, os descreve – ‘querem servir para ter bens’.
Todavia, os motivos não operam como causas eficientes ou finais, mas como
preenchimento ilusório da causa desejante.” Ou seja, enquanto escolha, enquanto vontade, a
servidão decorre do próprio arbítrio. “Vontade de servir aparece desta vez não mais como
heteronomia apenas, mas como seu efeito, isto é, como puro arbítrio” (idem, p.193).
3. Governo de um, governo de muitos, obediência civil e servidão voluntária
Na obra de La Boétie, a obediência civil aparece freqüentemente relacionada à
idéia de servidão voluntária. Essa relação obediência-servidão fica muito patente na leitura
do Discurso, em grande medida devido ao emparelhamento constante dos verbos obedecer
e servir ao longo da obra e, sobretudo, pela idéia ali sustentada, segundo a qual, para deixar
de servir, basta não obedecer. “Se nada se lhes der [aos tiranos], se não se lhes obedecer,
eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres, reduzidos a
nada...”(1997, p.23).
Por conseguinte, alguns teóricos, em suas interpretações do Discurso, extraem da
obra ensinamentos acerca da natureza não só da tirania, mas implicitamente do aparato do
Estado. Na visão de Murray Rothbard (1975), por exemplo, o pensamento político de La
Boétie teria penetrado no mistério da obediência civil a partir do momento em que este
pensador revela que toda tirania deve necessariamente ser apoiada por uma aceitação
popular, ou seja, demanda um consentimento de sua sujeição. De acordo com Rothbard,
tratar-se-ia de investigar “por que as pessoas, em todos os tempos e lugares, obedecem aos
comandos do governo, que sempre constitui a pequena minoria da sociedade?” (idem,
p.14).
Alguns historiadores do anarquismo, levando esse argumento às últimas
conseqüências, deduziram do Discurso um conteúdo anarquista. Entenderam, assim, que La
Boétie se referia à servidão voluntária como toda e qualquer dominação política, isto é, toda
e qualquer sujeição ao aparato estatal, generalizando o apelo à desobediência civil. A
propósito dessa acepção, em 1907, Gustav Landauer escrevia: “esse ensaio anuncia o que
dirão mais tarde, em outras línguas, Goldwin e Stirner, Proudhon, Bakunin e Tolstoi: é em
vocês, não fora, está em vocês mesmos: os homens não deveriam ser ligados pelo poder,
mas ser unidos enquanto irmãos. Sem poder: An-archie” (apud Phillippe Coutant, 2000).
Na percepção de Rothbard, a leitura do Discurso como uma apologia da ausência
de chefe ou governo é “incorreta”, visto que “La Boétie nunca estendeu sua análise do
governo tirânico ao governo per se” ( idem, p.20). Ainda na análise do biógrafo de La
Boétie, Paul Bonnefon (apud Murray, 1975, p.20), essa leitura equivocada sustentou-se
principalmente porque o autor “falhou” em distinguir autoridade legítima de autoridade
ilegítima:
Após ter falhado em distinguir a autoridade legítima da ilícita, e tendo imprudentemente atacado até mesmo o princípio de autoridade, Boétie engendrou uma ingênua ilusão. Ele parece acreditar que o homem pode viver em um estado de natureza, sem sociedade e sem governo, e descobrir que essa situação poderia ser satisfeita com felicidade para a humanidade. Esse sonho é pueril...
Essa “falha” na distinção da autoridade legítima e ilegítima abre a possibilidade de
estender a noção de tirania a todas as formas de governo. Essa possibilidade se torna mais
plausível quando, em passagem do Discurso, La Boétie sugere haver tantas espécies de
tiranos quantos tipos de regime, o que não restringiria a tirania à monarquia31 (1997, p.29):
“Há três espécies de tiranos. Uns reinam por eleição do povo, outros por força das armas,
outros sucedendo aos da sua raça.” Ou seja, o que caracteriza um tirano não são os meios
ilícitos de alçar-se ao poder; esses podem diferir. Importa a forma de governar, que é
31 Na análise de Pierre Mesnard (apud Rothbard, 20 e 21), a tirania boétiana poderia ser traduzida simplesmente por todo exercício pessoal de poder, inferindo-se daí que, em geral, todas formas de monarquia são tirânicas, já que se fundamentam no poder de um. Nesse caso, a monarquia seria, por princípio, um regime que tende à tirania.
sempre a mesma: se assenhorar dos recursos, perpetuar-se no poder e impor a servidão ao
povo. Isto é, a chancela de um tipo de regime – seja ele monárquico, aristocrático ou
democrático – não evita que um governo se deteriore em tirania. A noção que merece ser
retida é a de que a tirania define-se por governante(s) que governa(m) para si, e não para os
súditos.
Atendo-se ao início do Discurso, extrai-se a sugestão de que a servidão poderia
persistir em um comando político exercido por muitos. Questionando o verso de Homero,
retirado do capítulo II da Ilíada – “muita gente a mandar não me parece bem / Um só chefe,
um só rei, é o que mais nos convém” – La Boétie inverte a proposição, ao considerar que
“não há infelicidade maior do que ter um chefe (...) pois só dele e só dele depende o ser
mau quando assim lhe aprouver” e, pior ainda, “ter vários amos é ter outros tantos motivos
para se ser extremamente desgraçado”.
Todavia, não se sabe ao certo em que medida essa generalização pode ser
realizada, isto é, de que maneira ela convém com o pensamento político de La Boétie, pois
a discussão sobre outras formas de governar a coisa pública é interrompida pelo autor que
pretende dedicar-se à questão de sua época, a monarquia. “Não quero por enquanto levantar
o discutidíssimo problema de saber se as outras formas de governar a coisa pública são
melhores do que a monarquia. A minha intenção é antes interrogar-me sobre o lugar que à
monarquia cabe, se algum lhe cabe, entre as formas de governar” (La Boétie, 1997, p.18).
Remetendo-se justamente a esse verso de Homero utilizado por La Boétie, Lefort objeta
(1999, p.133): La Boétie o teria lembrado se quisesse apenas condenar o poderio do
monarca? Para Lefort, a crítica boétiana à dominação pode ser estendida a todos os regimes
(ibidem):
Nessa passagem, sugere ao leitor que não siga o caminho aberto por Platão e Aristóteles. Ora, o autor de A Política citava justamente o primeiro verso de Homero durante seu exame de diversas formas de constituição. Estranha era a sua interpretação, pois aventava a hipótese de que o julgamento do poeta aplicava-se ao caso de uma democracia liberta das leis, onde o poder supremo pertence às massas, e o povo transforma-se em monarca. Não se poderia supor que La Boétie associa deliberadamente a reminiscência de Aristóteles à de Homero, e rejeita o critério da lei tanto quanto o da autoridade, para interrogar a dominação em todos os regimes?
A propósito da leitura de Lefort (1999) e Chauí (1999), a questão do Discurso
pode ser convertida na seguinte proposta: a de que os próprios indivíduos sejam capazes de
dispensarem uma autoridade e ditarem suas próprias regras e leis; ou seja, estabelecerem
sua autonomia em vez de consentirem a dominação. Utilizando-se das palavras de Chauí, a
propósito de seu artigo sobre o Discurso, “teria bastado que cada um se conservasse senhor
de si e servo de ninguém para que o desejo heterônomo não pudesse advir” (p.208).
Outro trecho do Discurso, no entanto, não autoriza descartar qualquer tipo de
obediência civil. Ele abre a perspectiva para a construção de uma sociedade em que o verbo
obedecer não equivalha à sujeição do verbo servir. Desse modo, o Discurso guardaria,
ainda que implícita, uma diferença entre obedecer e servir, diferença essa que poderia ser
aplicada a toda forma de governo. Essa distinção convergiria para o argumento de
Rothbard, para quem La Boétie não estendeu sua crítica do governo tirânico ao governo per
se. Ou seja, a preocupação de La Boétie voltar-se-ia não para o aniquilamento de qualquer
forma de dominação estatal, mas para uma forma de governo em que os indivíduos não
abdiquem de sua autonomia, não entreguem seu destino, de olhos fechados, nas mãos do
governante. Essa abdicação da autonomia e entrega de seu futuro consistiriam no próprio
desejo de servir, isto é, na própria servidão voluntária.
Nessa perspectiva, a chave para compreender o Discurso não seria a da recusa de
toda autoridade, vista como irremediavelmente nociva; isto é, não seria a da rejeição a
qualquer obediência civil, vista como permanente subserviência. O Discurso tenderia a ser
visto como uma admoestação acerca do risco da servidão voluntária desenvolver-se no
processo de obediência, como sugere a passagem abaixo (1997, p.19). Nesse caso, poder-
se-ia entender que La Boétie não despreza a obediência civil, mas, sim, evoca uma
obediência moderada, distinta da obediência cega e absoluta que engendra a servidão:
É justo amarmos a virtude, estimarmos as boas ações, ficarmos gratos aos que fazem o bem, renunciarmos a certas comodidades para melhor honrarmos e favorecermos aqueles a quem amamos e que o merecem. Assim, também, quando os habitantes de um país encontram uma personagem notável que dê provas de ter sido previdente a governá-los, arrojado a defendê-los e cuidadoso a guiá-los, passam a obedecer-lhe em tudo e a conceder-lhe certas prerrogativas; e isto é uma prática reprovável, porque vão acabar por afastá-lo do bem e empurrá-lo para o mal. Mas em tais casos julga-se que poderá vir sempre bem e nunca mal de quem algum dia nos fez bem.
A leitura que identifica na obra boétiana a distinção entre obediência civil e
servidão voluntária coadunar-se-ia, a despeito do caráter voluntário, com o pensamento
político de Spinoza. Isto é, também Spinoza entende que obediência não deve significar
servidão; não obstante a obediência se desenvolva com base na servidão, ela se organiza à
semelhança de uma idéia adequada. Em outras palavras, todo Estado extrai consentimento e
obediência de seus cidadãos, tendo em vista a condição existencial primitiva dos
indivíduos, isto é, a condição de servidão, enquanto ela é entendida como impotência em
governar as paixões. Isso não significa, entretanto, que todo regime de obediência tenha
como intuito manter os homens sob servidão. É preciso ter em mente que a obediência,
celebrada a partir do pacto social, estabelece-se justamente como um artifício para que em
sociedade os indivíduos alcancem progressivamente um maior conhecimento das coisas e,
tornem-se, assim, homens livres.
Como já observado, o estabelecimento da obediência civil configura uma
ambivalência na teoria spinozista. A partir de sua dinâmica, desencadeia-se ou um estado
social de passividade constante, baseado em paixões tristes, ou uma predisposição à ação
através das paixões alegres. Como o propósito do projeto político em Spinoza é claramente
libertário, ou seja, visa ampliar o conhecimento humano e, por conseguinte, sua presença
no mundo, ele tende a divisar um Estado direcionado à alegria. Por certo, a possibilidade de
que um sistema político oriente-se para a consolidação da servidão não estava excluída da
dinâmica societária concebida por Spinoza – afinal, compreender por que os homens se
orgulham da sua servidão constitui um dos propósitos de sua obra. No entanto, essa
possibilidade reduz-se sobremodo em seu sistema porquanto Spinoza compreende a
sociedade política como único meio de alcançar a liberdade.
Aos olhos de Spinoza, a obediência funciona como instrumento de regulação da
sociedade política, buscando favorecer a potência do indivíduo e, ao mesmo tempo,
combiná-la com as de outros indivíduos. Ou seja, o sistema político ocorre em função da
potência do conatus. Isso implica que quando um sistema político não mantiver condições
favoráveis para a expressão do conatus, gera-se insatisfação e, por conseguinte,
desobediência civil. Como formulado no capítulo II, para que a obediência civil seja
mantida, deve-se seguir a lei universal da natureza humana, segundo a qual “ninguém
despreza o que considera bom, a não ser na esperança de um maior bem ou por receio de
um maior dano” e “ninguém aceita um mal a não ser para evitar outro ainda pior ou na
esperança de um maior bem” (TTP, p.311). Para Spinoza, essa lei estabelece-se como
critério para a conservação de qualquer Estado, seja qual for o regime político. A não
observação dessa lei universal implica a desobediência civil. Em outras palavras, a
desobediência decorre do direito natural, irreprimível na condição civil, pelo qual ninguém
é obrigado a respeitar os contratos a que se comprometeu quando esses se tornam
desvantajosos. Cumpre lembrar que essa desobediência só será legítima e terá efeito e
respaldo se for coletiva, uma vez que “a nenhum particular compete julgar (...) se é do
interesse comum violar as leis estabelecidas”. Ou seja, é preciso que todos estejam
implicados na desobediência.
Isso significa que a consolidação e a permanência da servidão em um regime
político aparecem ameaçadas na teoria política spinozista. O cerne da obediência é a
utilidade oferecida pela vida na comunidade política; a servidão configura-se somente
quando não há utilidade para quem pratica a obediência, mas apenas para aquele que a
ordena. Na visão de Spinoza, esse cenário não é sustentável por muito tempo. Neste caso, a
desobediência civil apareceria como efeito quase natural.
Todavia, pode-se considerar que uma comunidade política se aprisiona na servidão
quando ela não satisfaz a lei universal da natureza humana, não consegue guiar-se pela
razão e, além disso, seus cidadãos não se organizam na promoção da desobediência. É esse
cenário factível no pensamento político de Spinoza? Sim, seria o caso, por exemplo, do
regime em que a obediência visa tão-somente à conservação do Estado, apoiando-se no
medo de tal maneira a consolidar a servidão. Ou então, no caso da população submetida
pela força – e não por resultado de um complexo afetivo-político –, o que dificulta a
comparação com a hipótese boétiana, formulada com base em uma servidão não
constrangida pela força (TP, V, § 6):
(...) o Estado a que refiro como instituído com o fim de fazer reinar a concórdia deve ser entendido como instituído por uma população livre, e não como estabelecido por direito de conquista sobre uma população vencida. Sobre uma população livre a esperança exerce maior influência que o medo; sobre uma população submetida pela força, pelo contrário, é o medo o grande móbil, não a esperança. Da primeira pode-se dizer que tem o culto da vida, da segunda, que procura apenas escapar à morte; uma, digo que se esforça por viver por si mesma, a outra obedece constrangida à lei do vencedor. É o que exprimimos ao dizer que uma é escrava e a outra livre.
Ou ainda, a servidão na comunidade política poderia advir e conservar-se mesmo
através da dinâmica do complexo afetivo exercido pela obediência. Todavia, a Cidade que
se fundamenta na servidão, dirá Spinoza, merece mais o nome de solidão, ou seja,
distancia-se do propósito político da sociedade, que é o libertário. No trecho abaixo,
Spinoza aventa a hipótese de um regime político manter-se sob constante servidão (TP, V,§
4):
Se numa cidade os súditos não tomam as armas porque estão dominados pelo terror, deve-se dizer, não que aí reina a paz, mas, antes, que a guerra aí não reina. A paz, com efeito, não é a simples ausência de guerra, é uma virtude que tem a sua origem na força da alma, pois que a obediência (...) é uma vontade constante de fazer o que, segundo o direito comum da cidade, deve ser feito. Uma cidade, é preciso dizê-lo ainda, em que a paz é efeito da inércia dos súditos conduzidos como um rebanho e formados unicamente na servidão, merece mais o nome de solidão que o de cidade.
Como se nota, essa passagem expõe não só o despropósito de uma obediência
dedicada à servidão, como também a desqualificação política da Cidade, que mais merecia
ser chamada de solidão. Como conjecturou Hampshire (1982, p.144), Spinoza não previu
que a maior ameaça para a liberdade de pensamento e, portanto, para uma estratégia
política libertária, poderia vir da superstição e do fanatismo puramente políticos, e não só
teológicos, manejados como meios de ampliar o poder. De fato, o problema teológico-
político era a questão de sua época e, nesse sentido, Spinoza não deixou de ser um homem
marcado por seu tempo. No entanto, pode-se dizer que essa ameaça não figura como
problema em seu pensamento político porque a solução, de certa maneira, já estava
prevista. É que se segue do aparato político spinozista que a instituição da liberdade de
expressão ou a própria desobediência civil dissolveriam gradualmente a tirania e a servidão.
Ou seja, para Spinoza, no caso de regimes que contrariassem a lei universal da natureza, a
obediência dos súditos tenderia, em última instância, a dar lugar à desobediência civil e a
formação de outra ordem política.
Após a impossibilidade do uso do termo “voluntário” em Spinoza, essa pronta
dissolução da ordem servil remete a uma segunda dificuldade, a saber, a de refletir com o
aparato spinozista sobre a questão da servidão boétiana. A manutenção de tal ordem só
seria possível se, em sociedade, o indivíduo compreendido por Spinoza escolhesse de dois
males o maior; se, sob obediência, submetesse-se às desvantagens do regime sem recorrer à
desobediência; se preferisse a guerra à paz. O pensamento político spinozista está, no
entanto, direcionado à construção da verdadeira Cidade, à vida, avesso a todo complexo de
tristeza que atesta apenas a passividade do indivíduo. Na análise de Deleuze (2002, p.32) “a
verdadeira cidade propõe aos cidadãos o amor da liberdade de preferência à esperança das
recompensas ou mesmo a segurança dos bens; pois ‘é aos escravos, não aos homens livres,
que damos recompensas por boa conduta’(TTP, cap.X)”.
Pode-se argumentar ainda que o homem orientado pela razão submete-se a uma
servidão voluntária, à medida que se submete a uma lei que contraria seu conhecimento
verdadeiro. Tal argumento, porém, é inapropriado para o sistema spinozista. Antes de tudo,
a vontade também não se pode configurar como causa livre da submissão do homem
orientado pela razão, por mais que ele domine a cadeia de causas decorrentes da Natureza.
Ademais, o homem da razão obedece à lei não porque esteja movido pelo desejo irresistível
de servidão, mas porque segue do seu conatus a tendência em perseguir o menor dos males.
Como assevera Spinoza, “(...) é por isso que, se um homem conduzido pela Razão deve por
vezes fazer por ordem da cidade o que sabe ser contrário à Razão, este mal é largamente
compensado pelo proveito que tira do estado civil; é próprio da Razão escolher o menor
entre dois males” (TP III, § 6).
Quanto às considerações acerca da servidão nos regimes políticos, assim como em
La Boétie, o governo de um só também é associado à tirania em Spinoza. Para ele, a
sociedade que confere a somente um o poder da multidão torna-se vulnerável aos humores
e paixões dele, tem mais utilidade para aquele que ordena obediência do que para aquele
que obedece. Ora, para Spinoza, o Estado deve ser dirigido de tal maneira que implique o
bem-estar de todos, o que significa fazer com que todos vivam segundo os preceitos da
razão. “Será assim quando os negócios do Estado forem ordenados de tal maneira que nada
do que respeita ao bem-estar comum for entregue ao arbítrio de um só”, assevera Spinoza
(TP, VI, § 3). A concentração de poder nas mãos de um só tornaria a Cidade muito mais
apta à instabilidade e às sedições; e não há nada mais contrário à razão do que ausência de
paz. Isso ocorre não em razão de uma disputa pelo poder, na qual todos querem o lugar do
príncipe, como na perspectiva de Maquiavel; ocorre tanto por causa da invulnerabilidade do
governo dirigido pelas paixões de somente um, como pela posição alheia do súdito em
relação ao governo da Cidade. Isto é, quanto mais alheio, mas a lei se torna obscura ao seu
entendimento, o que aumenta, por conseguinte, a condição de servidão do súdito. Ademais,
o direito de uma Cidade é definido pelo poder da multidão, donde se deduz que o governo
de um só homem é incapaz de sustentar uma Cidade. Por isso, o governo de um só resvala
facilmente na servidão (idem, VI, §3), ou seja, a impotência dos homens em governar suas
paixões:
Ninguém, com efeito, é tão vigilante que não adormeça por vezes, e ninguém teve jamais o espírito tão poderoso e firme, de uma tal têmpera, que não tenha por vezes quebrado e não tenha sofrido derrota quando maior necessidade havia de força de alma. E é certamente insensato exigir de outro o que ninguém pode obter de si mesmo, isto é, que cuide da salvação do outro mais do que da sua própria, que não seja ávido, nem invejoso, nem ambicioso etc., quando está, sobretudo, cotidianamente exposto às solicitações da sensibilidade.
No parágrafo seguinte, Spinoza argumenta contrariamente à experiência, ou seja,
aos compêndios de história, segundo os quais o governo pertencente a um só foi mais
estável e inalterado que governos populares e democráticos. Aos olhos de Spinoza, a falta
de alteração no poder não denota paz, ao contrário, “(...) se a paz tem de possuir o nome de
servidão, barbárie e solidão, nada há mais lamentável para o homem do que a paz” (idem,
VI, §4). Em outros termos, essa paz que camufla a barbárie não denota concórdia32, que é o
objetivo de uma cidade. A associação entre monarquia e servidão fica explícita (idem, VI,
§4): “É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo o poder esteja nas mãos de um
só; tal como já dissemos, a paz não consiste na ausência de guerra, mas na união das almas,
isto é, na concórdia”.
Em outros termos, pode-se dizer, com base em Spinoza, que a servidão estará tão
menos presente quanto mais um governo democratizar-se. A democratização é quase uma
conseqüência lógica do aparato político de Spinoza; um governo superior – e, nesse
sentido, é significativo que o regime democrático seja o último analisado no TP. Isso ocorre
porque a democracia é a que melhor reconhece a massa como potência originária, enquanto
32 TP, V, § 5: “Quando dizemos que o melhor Estado é aquele em que os homens vivem na concórdia, entendo que vivem uma vida propriamente humana, uma vida que não se define pela circulação do sangue e
a monarquia traduz a supressão desse poder originário. É orientado por essa premissa que
Spinoza estabelecerá princípios para a conservação dos Estados monárquicos e
aristocráticos, denotando uma forte necessidade de democratização interna dos regimes,
isto é, necessidade de se tornarem absolutos, como revelam os trechos abaixo (TP, VIII,
§13; VIII, §4; VII, §29):
A primeira lei de tal Estado deve ser a que estabelece uma relação entre o número dos patrícios e a massa popular. Esta relação deve ser tal que, crescendo a massa, o número de patrícios aumente proporcionalmente (...) É unicamente no seu excessivo pouco número que reside o perigo...
Visto que o poder detido por uma aristocracia nunca retorna à massa do povo(...), mas que qualquer vontade da assembléia tem absolutamente força de lei, tal poder deve ser considerado como absoluto e por conseqüência tem os seus fundamentos unicamente na vontade, no juízo da assembléia, não na vigilância da massa da população, pois esta não penetra nos conselhos e não é chamada a votar. A razão que faz com que na prática o poder não seja absoluto é, portanto, a de que a massa da população permanece temível para os detentores do poder; esta conserva, por conseqüência, uma certa liberdade que não tem expressão legal, mas que nem por isso é menos tacitamente reivindicada e mantida.
Todos hão de reconhecer comigo que mais vale o inimigo conhecer os desígnios honestos de um Estado do que permaneçam ocultos dos cidadãos os maus desígnios de um déspota. Ao que podem tratar secretamente dos negócios do Estado o mantêm inteiramente em seu poder, e, em tempo de paz, estendem armadilhas aos cidadãos, como as estendem ao inimigo em tempo de guerra. Que o silêncio seja freqüentemente útil ao Estado, ninguém haverá de negar; mas ninguém provará também que o Estado não possa subsistir sem o segredo. Entregar a alguém, sem reserva, a coisa pública e querer preservar, ao mesmo tempo, a liberdade, completamente impossível, e é loucura querer evitar um mal menor para admitir um grande mal. O mote daqueles que ambicionam o poder absoluto foi sempre que é do interesse da Cidade que seus negócios sejam tratados secretamente (...) Quanto mais se cobrem com o pretexto da utilidade, mas perigosamente tendem a instituir a servidão. (grifo nosso)
Esse sentido expressa-se também na necessidade apontada por Spinoza de
governar-se às claras, de fazer com que os governados se reconheçam no regime, de fazê-
los compreender as leis, de modo que nada se torne obscuro ao entendimento do súdito, isto
é, de modo que cada um participe do governo como cidadão. A democracia, em
realização das outras funções comuns a todos os animais, mas principalmente, pela Razão, a virtude da alma e
consonância com o próprio direito da Cidade (definido pelo poder das massas), deve
proporcionar a expressão dessa potência originária. Essa democratização social e política
vai ao encontro do propósito da Cidade em Spinoza, que é o da organização dos encontros,
da formação das noções comuns e idéias adequadas, ou seja, da própria liberdade do
indivíduo. A política, então, se encontra com a ontologia da qual decorre.
Nesse arranjo político democrático, tende a ocorrer uma “transformação positiva
dos mecanismos produtores de obediência” (Tosel, 1984, p.294). Isto é, a obediência, tão
decisiva a qualquer projeto societário, “não será mais obtida pelo terrorismo intelectual,
pela unanimidade ideológica, porém por uma esperança e um amor positivos” (idem,
p.294). Assim, a sociedade fundar-se-á mais sobre paixões alegres do que tristes. Por
conseguinte, em uma sociedade em que o poder de fato pertence a todos e as leis são
estabelecidas pela participação e consentimento comum, a obediência constrangida perde
sentido de ser. A democracia designa, então, uma antecipação de uma comunidade que vive
sob a razão, em que os indivíduos concordam quase que espontaneamente.
Com efeito, a democracia é o regime, na concepção spinozista, mais “natural”, isto
é, que convém com a natureza humana. O homem pode ser livre em qualquer regime
político, uma vez que ser livre designa deixar-se guiar pela razão; no entanto, é no regime
democrático que encontra as condições mais favoráveis para isso, pois ele realiza mais
facilmente a paz, tão necessária para o projeto do homem livre. É por isso que Spinoza
divisa na democracia um “Estado que media a partir de uma individualidade real os desejos
de todos, de tal modo que todos possam nele se reconhecer e satisfazer seu conatus” (Tosel,
1984, p.287). Sob esse aspecto, da democracia bem gerida nunca pode advir a servidão,
pois que decorre dela a própria realização do conatus. Como explica Spinoza (TTP, p.315),
Se preferi falar dele (regime democrático) em vez de falar de outros, é porque me parece o mais natural e o que mais se aproxima da liberdade que a natureza reconhece a cada um. Em democracia, com efeito, ninguém transfere o seu direito natural para outrem a ponto de este nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria do todo social, de que ele próprio faz parte e, nessa medida, todos continuam iguais tal como acontecida anteriormente no estado de natureza. Em segundo lugar, quis falar expressamente só deste regime porque é o que melhor se presta ao objetivo que me propus, a saber, mostrar a utilidade para o Estado da manutenção da liberdade.
a vida verdadeira”.
*
Percebe-se, então, que a comparação entre o pensamento político de La Boétie e o
de Spinoza apresenta um problema fundamental: o uso do termo “voluntário”. Esse termo
não ganha qualquer significado em Spinoza, já que a teoria do livre-arbítrio não tem
qualquer efeito. O próprio conceito de servidão tem acepção distinta nos dois autores: em
La Boétie, ela se define pela submissão voluntária de alguém ao jugo de outro e a leis
injustas, enquanto em Spinoza a servidão tem como causa primeira a impotência no
governo das paixões – a mente do indivíduo é de tal maneira povoada por idéias
inadequadas, que se vê passivo diante das coisas, arrastado pela fortuna, restrito a operar
em vez de agir (ou seja, está duplamente determinado pelas causas das coisas)33.
É por essa razão fundamental que a utilização do termo servidão voluntária só
pode ser compreendida no seu sentido mais largo, frouxo ou vulgar, isto é, menos
compromissado com a acepção dos conceitos e mais preocupado com o sentido acessível ao
leitor leigo, uma vez que a noção de livre-arbítrio está muito consolidada na cultura
ocidental. É nessa perspectiva que se compreende a utilização do termo em autores como
Tosel (1984, p.166)34 , Matheron (1988, p.299)35 , Chauí (2003, p.281)36. Nesses autores, o
33 Cf. capítulo I. 34 “Trata-se portanto de estabelecer a distinção fundamental entre a Lei de obediência teológico-política e a Lei no sentido filosófico e natural de expressão da inteligibilidade da natureza e da natureza humana. Trata-se de garantir essa distinção recorrendo como se fosse um termo de passagem, um termo-meditador (sic), à determinação da lei de obediência, imposta na servidão voluntária, de ordem teológico-política, em lei de obediência desejada, amada, de ordem ética, em consideração a um Deus que não é mais somente a divindade antropomórfica da superstição, mas a expressão da potência coletiva do ‘conatus’ em busca de uma regra de composição, libertada praticamente do ‘furor teológico.” (grifo nosso) 35 “(...) a dependência não nos faz jamais sair da esfera do direito natural. O prisioneiro dessas correntes age como ele quer e como ele pode, simplesmente, ele não pode grande coisa. Quanto àquele que cede à esperança ou ao medo, a exigência estrangeira a qual ele obedece é eficaz somente na medida em que ela a assume: a relação de forças, interiorizada, se torna servidão voluntária. Sem dúvida, quando a ‘ação psicológica’ exercida sobre nós não é perfeita (e é esse quase sempre o caso), nós temos a impressão de nos inclinar diante de uma norma que nos ultrapassa; de onde precisamente, a ilusão de um direito que não se reduz ao fato: nós desejamos uma coisa, nós temos os meios materiais disso conquistar, e nós nos sentimos no entanto ‘obrigados’ de não o fazer. Mas se nós nos abstemos, é que o desejo de obter os bens que nos promete ou escapar ao mal do qual nos ameaça prevaleceu, em definitivo, sobre nosso desejo inicial. O desejo mais forte torna-se a todo momento a instância suprema.” (grifo nosso) 36 “É assim que o prefácio e o capítulo XX, do Teológico-Político, ao descreverem o que chamaremos de sistema do medo, insistem na figura do vulgar, encarnada tanto no devoto supersticioso como no teólogo manipulador e no governante violento, descritos como habitados pela ambição: o supersticioso despreza a
termo subentende a idéia do acordo, isto é, do pacto social, a partir do qual os homens se
comprometem com a obediência civil. Ou seja, o momento em que os homens, ainda
submetidos a um complexo afetivo – e, portanto, em circunstância de servidão – , fundam o
Estado e assentem a dominação política.
Em última instância, conceber uma servidão voluntária no aparato spinozista
torná-lo-ia incompreensível, visto que essa hipótese contraria uma das noções fundamentais
da obra de Spinoza, que é a noção de conatus, isto é, o esforço de perseverar e conservar-se
na existência. Ora, a acepção da servidão voluntária boétiana designa o próprio
aniquilamento da existência do homem, uma vez que guiado pela vontade de servidão o
homem tende a perseguir o que não lhe é útil ou vantajoso, o que significa sua própria
destruição. Para La Boétie, uma só coisa tem o tirano mais do que os súditos, que é o poder
de destruí-los; e esse poder é o que os próprios súditos lhe concedem. Ademais, sob esse
aspecto, a servidão voluntária boétiana denota, antes de tudo, uma “renúncia de si” (F. Lillo
apud Cavaillé, 2002). Tal reflexão não pode derivar da teoria spinozista, visto que, pela lei
da natureza e a regra do conatus, nenhuma coisa pode ser destruída a não ser por uma causa
exterior.
Um dos principais pontos que aproxima a teoria desses autores é a ambivalência
da obediência e o caráter central que ela adquire no arranjo político. Em La Boétie, a
obediência pode consolidar a servidão, quando ela se equipara ao ato de servir ao tirano,
aquele que exige a obediência; mas também pode significar compromisso com o bom
governo, quando moderada, isto é, não absoluta e irrestrita. Para Spinoza, a obediência
pode assentar-se tanto na tristeza, quanto na alegria, isto é, pode tanto reproduzir-se na
passividade e na servidão como pode renovar-se pela razão. Contudo, como ferramenta
razão, a virtude e a liberdade, por desejar imoderadamente os ‘bens incertos da fortuna’, que teme não ganhar; o teólogo perverte a Escritura Sagrada por desejar imoderadamente fama e autoridade, temendo os ataques e o sucesso de seus adversários; e o governante violento, por sua vez, é arrastado pelo desejo imoderado de dominar corpos e mentes dos governados, mas teme que os deuses não o favoreçam nessa empresa. O primeiro torna-se presa fácil do poder monárquico e tirânico, que lhe prometem saciar o desejo, desde que obedeça incondicionalmente e aceite dar a própria vida para servir à ambição de um só. O segundo, por seu turno, buscando satisfazer sua própria sede de dominação sobre os espíritos, oferece ao poder monárquico e tirânico, em troca de alguma participação na autoridade, o mais eficaz instrumento para conseguir a obediência cega e suicida do vulgar: a superstição, que alimenta e conserva o medo dos que se colocam sob o jugo da incerta e caprichosa fortuna. Como conseqüência, o governante violento ou tirânico, também oscilando entre o medo e a esperança, obriga-se a submeter-se à autoridade teológica, instrumento de que precisa para obter a servidão voluntária dos súditos. Dessa maneira, desde o Teológico-Político, o vulgar, em suas várias fisionomias de opressor e oprimido, é constitutivo do campo político.” (grifo nosso)
política, ainda que apoiada na dinâmica do complexo afetivo, ela tende a assemelhar-se às
idéias adequadas, isto é, alinhar-se junto à razão.
Nesse sentido, pode-se considerar que a argumentação de La Boétie privilegia a
conjugação servidão voluntária e desobediência civil, enquanto em Spinoza, prevalece a
conjugação servidão passional e obediência civil. Não que Spinoza ignore a desobediência
– ela decorre de seu sistema como conseqüência de certa maneira natural –, mas a
obediência se estabelece como cerne de seu pensamento, uma vez que é a partir da sua
conjugação com o pacto social que pode surgir o Estado, pois ela se orienta pelo menor dos
males. Já em La Boétie, não há uma teoria de obediência ao Estado e, sim, da
desobediência civil.
No que tange aos regimes políticos, a rejeição à monarquia aparece explícita na
obra de ambos os autores. Como poder pessoal, ela tende a se aproximar da tirania e, por
conseguinte, configurar uma sociedade de servidão. Para Spinoza, a democracia, como
governo da massa, apresenta-se como regime mais “natural” ou que mais convém à razão.
E embora La Boétie, assim como Spinoza, identifique a origem multitudinária do poder do
governante, ele não chega a formulá-la em termos de regime político, isto é, não apresenta
projeto político de uma “demos-cracia”.
Imprescindível notar que os esforços de ambos autores destinam-se a desvelar os
mecanismos de poder que submetem os indivíduos e, ao mesmo tempo, desnaturalizar a
opressão. Cada um a sua maneira revela que o segredo da dominação está em fazer os
dominados participarem de sua dominação política. Em La Boétie, o espanto da servidão
voluntária é o espanto de quem divisou essa participação. Sobre a teoria spinozista, vale
fazer lembrar as palavras de Deleuze (2002, p.31), para quem
nunca, desde Epicuro e Lucrécio, se mostrou melhor o vínculo profundo e implícito entre os tiranos e os escravos: ‘O grande segredo do regime monárquico e seu profundo interesse consistem em enganar os homens, dissimulado, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação’. [citação TTP, Prefácio]
Conclusão
As noções de servidão e obediência, objetos de análise deste estudo, constituem
aspectos essenciais no pensamento político de Spinoza. Esses aspectos do intricado
pensamento político spinozista foram explorados ao longo dos três capítulos desenvolvidos
neste estudo.
O primeiro capítulo buscou revelar, através da abordagem de conceitos básicos da
Ética, como é a servidão uma condição existencial primitiva do indivíduo, caracterizada,
essencialmente, pelo limite cognitivo, isto é, pela maneira de se perceber no mundo e
perceber o mundo através da imaginação. Perceber o mundo e a si mesmo pela via da
imaginação significa não dominar a cadeia de causas e conseqüências das coisas, não se
enxergar como parte dessa cadeia e ignorar as leis da natureza, isto é, as leis pelas quais as
coisas são levadas a existir e a se mover.
No entanto, Spinoza ensina que o homem não é só imaginação. Suas paixões
também podem, através de um “complexo afetivo” baseado em paixões de alegria, vir a
ceder espaço para um outro gênero de conhecimento, que é a razão. Essa razão, que aos
olhos de Spinoza é com freqüência impotente diante da paixão, não se realiza nunca na
solidão, apenas através do esforço da Cidade. Isso preenche a ontologia spinozista com uma
sociabilidade inerente, intrínseca ao indivíduo, afastando qualquer projeto individualista de
sociedade. Além disso, o cenário de antagonismo existente entre as potências – a potência
externa supera infinitamente a potência de um indivíduo – dissolve-se no spinozismo ao
perceber-se que não há nada mais útil ao homem do que outro homem, isto é, as paixões
produzidas entre eles podem ser paixões alegres (não somente tristes), propiciadoras de
noções comuns e fortalecedoras da potência. Só através da formação social pode o homem,
aumentando continuamente sua potência, vir a conceber idéias adequadas e verdadeiras que
compõem o próprio gênero de conhecimento da razão.
Todavia, como visto no segundo capítulo, fazer os homens conduzirem-se pela
razão é muito difícil. O Estado e, por conseguinte, a obediência, só podem ser fundados na
própria servidão. Para Spinoza, muito embora Estado e obediência advenham da servidão,
eles assemelham-se a idéias adequadas, isto é, convém à razão. Como conciliar essas
idéias? Cumpre compreender que a categoria da obediência insere-se no pensamento
político spinozista como um artifício organizativo, ou melhor, auto-organizativo. Isto é, ela
advém do próprio mecanismo social, resulta do movimento de composição das paixões,
deriva do complexo afetivo, em que tem relevo o sistema do medo e da esperança. Por isso,
a obediência só se estabelece como mecanismo válido quando observa a lei universal da
natureza, que faz com que o indivíduo, defrontando-se com dois males, tenda sempre a
aderir ao menor, isto é, obedeça por medo de um mal maior ou na esperança de um maior
bem. Ou seja, a obediência sustenta-se através de um mínimo de conhecimento das causas.
Para que os homens em sociedade possam vir a estabelecer relações de
composição, ou seja, para que dêem partida à formação de uma potência superior ao invés
de uma potência contraditória, torna-se fundamental a edificação do Estado por meio da
obediência. Ainda que a multidão imersa em idéias confusas e no universo de suas paixões,
dificilmente divise espontaneamente a formação dessa potência superior, ela poderá
instituir a obediência, já que esta se apóia sobre um complexo afetivo. A partir daí, tendo
pelo artifício da obediência instituído o Estado, resta saber em que medida pode a
obediência estabelecer-se como mera manutenção da servidão, sobre a qual foi erigida – de
fato, a servidão pode até ser intensificada – ou como transformação dessa condição
passional de modo a propiciar o desenvolvimento da razão.
Este é um caminho para entender a preocupação de Spinoza com a conservação do
Estado. Quando, no TP, Spinoza se dedica a definir as maneiras de conservar o Estado tanto
nos regimes monárquico e aristocrático quanto no democrático, preocupa-se, na verdade,
com os meios de garantir uma política de paz e segurança, condições que considera
fundamentais para o exercício da razão e, portanto, para viabilizar a liberdade. Logo, o
interesse spinozista na conservação do regime não é “conservador”; isto é, o que Spinoza
leva em conta não é a manutenção da arquitetura institucional de um regime estático, mas a
capacidade do regime de liberar a multidão. Spinoza abstém-se, portanto, de projetar
qualquer arquitetura institucional, e, mesmo quando defende a democracia como o governo
mais “natural”, o faz preocupado com “a expressão e a gestão da potência” coletiva, e, não,
com “a definição e o exercício do poder” (Negri, 1993, p.28). Frisa-se: expressão e gestão
da potência e não contenção da potência. Daí, não haver em Spinoza uma teoria como, por
exemplo, a da divisão institucional dos poderes37. Ainda nas palavras de Matheron (1993,
p.17),
o problema não é encontrar a melhor forma de governo: é o de descobrir, em cada tipo de sociedade política dada, as melhores formas de liberação, isto é, as estruturas que permitirão a multitudo reapropriar-se de sua potência, desdobrando-a ao máximo – e que por isso, mas apenas por isso, conhecerão uma auto-regulação ótima.
O terceiro capítulo questionou, à luz da hipótese boétiana da servidão voluntária,
as possibilidades de a obediência configurar apenas um aprisionamento da sociedade na
servidão, o que não deixa de envolver a exploração do problema formulado acima por
Matheron, o de encontrar uma forma de liberação dos homens, uma auto-regulação ótima.
Ora, para solucionar esse problema, Spinoza precisou deslindar o motivo por que os
homens lutam pela sua servidão como se lutassem por sua liberdade. Para tanto, sua obra
desvelou o mecanismo da superstição, apoiado sobre o gênero limitado do conhecimento,
que é a imaginação, e toda sorte de paixões que obstaculizam o conhecimento e, por
conseguinte, mantém a passividade do homem. Daí, a servidão designar, essencialmente, a
impotência dos homens em governar suas paixões e, enquanto são governados por elas, são
arrastados por causas que ignoram. Sob esse mecanismo, os homens, ignorantes das causas
e imersos em idéias inadequadas, crêem lutar por sua liberdade enquanto, na verdade, lutam
por sua servidão.
Esta é a diferença essencial entre o pensamento de La Boétie e Spinoza: o primeiro
identifica a vontade do homem como causa da servidão (daí a chamar de servidão
voluntária), isto é, para La Boétie, os homens, diante de todas possibilidades de liberação,
são servis porque o desejam ser; o segundo divisa a servidão como resultante da força das
paixões, sendo o livre-arbítrio uma ilusão de liberdade de escolha. Dois autores, dois
sistemas de pensamento, uma diferença fundamental (a do livre-arbítrio) e algumas
intenções similares: ambos buscam liberar o homem em sociedade, reconhecer a origem
multitudinária do poder do governante, indicar a participação do indivíduo em sua própria
37 Pierre Manent considera que a divisão dos três poderes de Montesquieu aplicada à democracia produz, em certa medida, uma impotência na capacidade da sociedade de autogovernar-se. Cf. Manent (2001), Cours familier de philosophie politique. Paris, Gallimard.
servidão, desvelar os mecanismos de poder político que submetem os indivíduos e,
sobretudo, apontar os germes da servidão no regime de monarquia. Essas intenções se
expressam de maneiras distintas em cada autor. Vale ressaltar, sobretudo, que, aos olhos de
Spinoza, a sociedade política, formada em decorrência do próprio mecanismo da potência
do conatus, só pode significar uma forma de conservação do homem e não de destruição.
Visto que promover a autodestruição contraria o princípio do conatus revelado por Spinoza,
o fato de o homem manter-se sobre a servidão não decorre da potência de seu conatus, mas
apenas de sua impotência diante de causas externas.
A questão da servidão passional spinozista, à medida que se sustenta no
conhecimento imaginativo, sugere uma teoria da representação ou mesmo uma filosofia da
história. Como se pode extrair da leitura do Tratado Teológico-Político (TTP), o caráter
“naturalista” da obra de Spinoza e sua concepção de causas necessárias (em consonância
com a não aceitação do livre-arbítrio) não eliminam uma concepção da história; sua obra
revela uma nova maneira de pensar a história, de acordo com “um método de explicação
racional que visa à explicação pelas causas” (Balibar, 1985, p.48). Esse método consistiria
na distinção entre narração e ciência da história. Se a narração histórica busca seus
elementos na imaginação da multidão – e tende, paralelamente, a produzir um efeito sobre
ela, efeitos de imaginação –, a ciência da história ou conhecimento da história tem um
duplo objeto. Balibar distingue, em primeiro lugar, o encadeamento necessário dos
acontecimentos, na medida em que se pode reconstituí-lo e, em segundo lugar, a maneira
pela qual os atores históricos, inconscientes da maioria das causas que os afetam, imaginam
o sentido de sua história. Ou seja, como define Matheron (apud Balibar, 1985, p.50), trata-
se de uma teoria da história das “paixões do corpo social”.
Essa teoria configuraria, à luz do TTP (caps.VII a X), a natureza singular (ou
ingenium) de uma comunidade, constituída por leis e costumes próprios, de modo muito
semelhante à singularidade de um indivíduo. Nesse sentido, Spinoza já adiantava uma
concepção que mais tarde seria recorrente em alguns autores, por exemplo, Marx, para
quem os homens, como autores de sua própria história, são ignorantes das causas que os
levam a agir e não dominam as conseqüências de suas ações. Para Marx, os homens “não o
sabem, mas fazem-no” (O Capital) e, ainda, “os homens fazem sua própria história, mas
não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob
aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado” (O 18
Brumário).
A propósito da visão de Hampshire, segundo a qual “Spinoza foi muito menos
original como filósofo político do que como metafísico”, pode-se, após o estudo de
aspectos do spinozismo, invocar a perspectiva de Negri, para quem a “ verdadeira política
de Spinoza é sua metafísica”. Prevalece no spinozismo uma dificuldade em separar o
indivíduo de sua condição política. Em verdade, Spinoza pensa em termos de multidão, não
de indivíduo. O indivíduo tende sempre a estabelecer relações de composição, fazendo
derivar das potências individuais uma potência coletiva, o que caracteriza a sociedade
política, nas palavras de Matheron (1993), como resultado quase mecânico – e não
dialético – das interações de potências individuais. Ademais, a sociedade política
estabelece-se como única forma de romper a condição existencial primitiva de servidão e
alcançar a liberdade. A ontologia spinozista é, portanto, uma ontologia essencialmente
política.
Pode-se perceber, portanto, que o Estado, visto como determinação natural pelo
spinozismo, é desprovido de uma “obrigação transcendente” (Matheron, 1993). Ou seja, ele
não é imposição do exterior aos desejos individuais, muito menos conseqüência de um
contrato ou transferência de direito – ele é imanente, resultado do conatus coletivo, e
sustenta-se por leis universais da natureza que estabelecem a obediência. Por isso, nada
mais impróprio ao spinozismo do que a concepção liberal de uma sociedade bipartida, isto
é, dividida em sociedade civil e Estado ou, como observa Negri, a de um Estado de Direito.
Nota-se, portanto, que a própria concepção da constituição ontológica e coletiva,
isto é, a espontaneidade e a dinâmica sociais não permitem fundamentar o Estado no
contrato jurídico. O desejo e a potência constituem o direito natural individual, o que destoa
da idéia de obrigação transcendente que caracteriza o conjunto de obras jusnaturalistas. A
ausência dessa obrigação e a presença da espontaneidade constituem, para Negri, a
principal dificuldade de incluir Spinoza na linha jusnaturalista. Para ele, Spinoza não é um
jusnaturalista senão por acidente.
Ao fim da tarefa a que se propôs este estudo, cabe ressaltar ainda a necessidade de
atualização do problema spinozista da servidão. Hoje, a tão preconizada democracia
apresenta-se como principal modelo para as sociedades da modernidade e a tolerância
religiosa, ainda que precária, é muito maior do que nos tempos vividos por Spinoza. À luz
dos conceitos de servidão e liberdade spinozistas, cabe, então, indagar: são livres os
homens das democracias contemporâneas? A obediência nessas democracias dá passagem à
razão ou aprofunda a servidão? Os Estados conservam-se promovendo a paz ou apenas a
ausência de guerra?
Pode-se dizer que para que vigore uma democracia de homens livres e não um
ajuntamento de escravos, é preciso reduzir gradualmente todo modo de superstição ou
mistificação do conhecimento, isto é, tudo que obstaculiza o conhecimento das coisas. Por
exemplo, deve-se elucidar em que medida a separação entre Estado e Igreja liberou a
potência política38; se os meios de comunicação tais como configurados propagam
conhecimentos adequados; se a concepção jurídica guarda o sentido radical da potência
como direito civil. A configuração liberal e burguesa das sociedades democráticas não
assimila as premissas democráticas libertárias de Spinoza. E aqui, a tarefa do estudo de
Spinoza renova-se, transformando-se em um outro estudo.
38 Para Manent, por exemplo, a Igreja interfere no poder político: “Por um lado, ela [a Igreja] libera o espaço profano, isto é, ela deixa as sociedades políticas livres de modo a se organizarem como bem entendem – a Igreja, diferentemente da Sinagoga, não produz a lei política. Ao mesmo tempo, e em sentido contrário, ela desvaloriza as sociedades políticas. Criticando seu princípio – o amor de si até o menosprezo de Deus – em nome de seu princípio – o amor de Deus até o menosprezo de si – ela erode sua legitimidade. O resultado expresso dessa ambivalência, desse duplo movimento contraditório, poderia ser formulado brutalmente assim: a Igreja, recusando governar os homens, mas desvalorizando aqueles que se encarregam desta responsabilidade, consegue impedir os homens de se governarem convenientemente” (grifo nosso) (2001, 48 e 49).
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