sexta turma · 2019. 6. 10. · jurisprudência da sexta turma rstj, a. 31, (253): 817-924,...

108
Sexta Turma

Upload: others

Post on 25-Feb-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Sexta Turma

Page 2: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por
Page 3: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL N. 1.184.410-SP (2017/0258462-3)

Relator: Ministro Nefi Cordeiro

Agravante: M A A DA C C

Advogados: Rafael Serra Oliveira e outro(s) - SP285792

Felipe Longobardi Campana - SP373954

Agravado: Ministério Público do Estado de São Paulo

EMENTA

Penal. Processo Penal. Agravo regimental nos embargos de

declaração no agravo em recurso especial. Crime impossível.

Ocorrência. Conduta praticada por obra do agente provocador.

Súmula 145/STF. Agravo regimental provido.

1. A agravante foi condenada pela prática dos crimes previstos

nos arts. 33 e 35 da Lei 11.343/06, porquanto, na qualidade de médica,

prescreveu 3 caixas de Bromazepam, 6 miligramas, sem prévia consulta,

mediante o pagamento de R$ 10,00.

2. O fato foi noticiado por produção jornalística, mediante

contato telefônico de paciente fictício, integrante da equipe de

reportagem identifi cado com nome falso, a quem foi posteriormente

entregue receituário sem comparecimento ao consultório médico.

3. Configurado crime impossível, na modalidade crime de

ensaio, nos termos do art. 17 do CP e Súmula 145/STF, porquanto

demonstrada fl agrante indução do sujeito ativo do delito por terceiro,

que se passou por falso paciente, a fi m de solicitar prescrição de

medicamento sem prévio exame clínico.

4. Agravo regimental provido para absolver a recorrente, com

efeitos extensivos à corré V C B, ante a ocorrência de crime impossível.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na

Page 4: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

820

conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade,

dar provimento ao agravo, com extensão à corré V C B, nos termos do voto do

Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Laurita

Vaz, Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz votaram com o Sr. Ministro

Relator.

Brasília (DF), 18 de setembro de 2018 (data do julgamento).

Ministro Nefi Cordeiro, Presidente e Relator

DJe 27.9.2018

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Nefi Cordeiro: Trata-se de agravo regimental interposto

em face de decisão que rejeitou os embargos declaração.

Sustenta a hipótese de crime impossível ante a existência de agente

provocador.

Alega a atipicidade, porquanto não houve qualquer ofensa à Portaria

344/98 da Anvisa, na medida em que não exige que o médico autorizado realize

prévia consulta ao paciente para prescrever o medicamento Bromazepan (fl . 1.427).

Requer a reconsideração da decisão atacada ou a apresentação do feito

em mesa para que a Turma dê provimento ao agravo regimental para que

seja reformada para reconhecer a negativa de vigência ao art. 17 do Código Penal

e a contrariedade aos arts. 1º, parágrafo único, 33 e 66, da Lei n. 11.343/06, e,

consequentemente, absolver a Agravante por atipicidade da conduta, com fundamento

no art. 386, inc. III, do CPP (fl . 1.428).

Contrarrazões opostas pelo Ministério Público estadual, pugnando pelo

improvimento do recurso.

Manifestação do Ministério Público Federal pelo provimento do agravo.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Nefi Cordeiro (Relator): Quanto à ocorrência de crime

impossível, o voto condutor assim referiu (fl s. 1.229/1.230):

Page 5: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821

Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por alegado

crime impossível - como sustenta a defesa da acusada Maria Adelaide.

O que se depreende dos autos é que, ao serem instadas pelo suposto paciente,

as rés, que já escavam previamente associadas para a prática de tráfico de

entorpecentes, passaram ao cometimento da infração, esta livremente cometida.

Trazendo à tona procedimento criminoso regularmente adotado pelas agentes

e ao qual já estavam habituadas.

A circunstância de a situação narrada não envolver um paciente real, mas repórter

que se identifi cou como se paciente fosse, não descaracteriza a trafi cância.

Muito pelo contrário, reforça a prova acusatória e torna ainda mais segura a

comprovação do dolo, pois não deixa dúvida de que, sequer havendo paciente ou

mesmo uma pessoa real, com identidade conhecida ou pelo menos verdadeira,

as rés prescreviam drogas controladas a terceiros independentemente de

diagnóstico ou avaliação prévia, mediante pagamento do singelo valor de

R$ 10.00, e, exatamente por isso, em desacordo com determinação legal ou

regulamentar.

Plenamente caracterizadas as infrações penais, pois.

Porque absolutamente nada havia a impossibilitar sua consumação.

Consta do voto condutor, a seguinte fundamentação sobre a autoria (fl .

1.220):

A autoria, por seu turno, é incontestável.

Por primeiro, em razão do teor dos documentos acima mencionados, que

evidenciam a elaboração de peça jornalística sobre os fatos, motivada pela existência

de informações anteriores, dando conta de que a acusada Maria Adelaide fornecia

receitas e atestados médicos, sem prévia consulta, mediante a cobrança de R$ 10.00.

A partir da reportagem (f. 3/5), é possível concluir - e na verdade, a despeito do

esforço da d. defesa, é difícil negar - que a acusada, sem prévio contato pessoal com

o destinatário da receita e desconhecendo completamente seu histórico clínico,

prescreveu-lhe 3 caixas de Bromazepam, 6 miligramas.

Assim agiu em razão de pedido feito, por telefone, pelo produtor do programa

jornalístico - que, naquele contato, identifi cou-se com nome falso, “Carlos G. S. Lima”.

Depreende-se que tal solicitação foi dirigida à acusada Vânia, secretária,

que, no diálogo gravado pelo produtor, mostrou-se disposta a colaborar para

o atendimento do pedido, sem indicar ao suposto paciente a necessidade de

passar por consulta e informando-lhe prontamente o valor de R$ 10.00 para a

elaboração da receita.

Na seqüência, o receituário do medicamento solicitado foi preenchido por

Maria Adelaide, na exata quantidade e dosagem indicadas pelo suposto paciente

Page 6: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

822

à secretária, com o nome fornecido pelo produtor, além de devidamente assinado

pela emitente [f. 13].

De acordo com os documentos, a receita foi entregue ao produtor sem que este

passasse por qualquer consulta médica.

Verifi ca-se, no caso, que a agravante, na qualidade de médica, prescreveu

3 caixas de Bromazepam, 6 miligramas, sem prévia consulta, mediante o

pagamento de R$ 10,00. O fato foi noticiado por produção jornalística, mediante

contato telefônico de paciente fi ctício, integrante da equipe de reportagem

identifi cado com nome falso, a quem foi posteriormente entregue receituário

sem comparecimento ao consultório médico.

O presente caso enquadra-se na hipótese de crime impossível ante a

ocorrência de crime de ensaio, nos termos do art. 17 do CP e da Súmula 145/

STF, porquanto demonstrada flagrante indução do sujeito ativo do delito

por terceiro, que se passou por falso paciente, a fi m de solicitar prescrição de

medicamento sem prévio exame clínico. Nesse sentido:

Processo Penal. Flagrante provocado, crime de ensaio ou delito putativo por

obra do agente provocador. Preliminar de coisa julgada que não se confi gura.

Não enfrentamento da matéria em decorrência da objeção encartada no Verbete

n. 7/STJ. Constrangimento ilegal confi gurado. Art. 317, § 1º, do Código Penal. Ato

de indução praticado por terceiro de forma a tornar inviável a consumação do

fato típico. Crime impossível. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida ex

offi cio.

[...]

4. Indagação do estrangeiro que se revela esvaziada de qualquer dubiedade,

tendo em vista tratar-se de costumeiro turista visitante do Brasil. Art. 12, in fi ne, da

Lei n. 6.815/1990. O ádvena tem ciência de que, via de regra, sua estada no país

terá o prazo de 90 (noventa) dias, podendo ser prorrogado por igual período.

5. A interpelação formulada pelo alienígena, após ser instruído por outros

Agentes de Polícia, sendo inclusive munido de gravador sob suas vestes, denota

patente ato de indução, hábil a confi gurar a hipótese como sendo de fl agrante

provocado.

6. A doutrina intitula o fato decorrente dessa espécie de fl agrante como delito

putativo por obra do agente provocador ou crime de ensaio, em que o ato de indução

praticado por terceiro atrai a aplicação do art. 17 do Código Penal, culminando, por

conseguinte, em crime impossível, visto que inviável sua consumação.

7. As nuances fáticas que antecederam a prisão em flagrante acarretam a

incidência do enunciado n. 145/STF, posto que “não há crime, quando a preparação

do fl agrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

Page 7: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 823

8. Writ não conhecido. Ordem concedida de ofício para, cassando o acórdão

vergastado, absolver a paciente.

(HC 369.178/RJ, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Rel. p/ Acórdão Ministro Antonio

Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 13/12/2016, DJe 16/02/2017.)

De acordo com as lições de Nelson Hungria, no crime de ensaio, somente

na aparência é que ocorre um crime exteriormente perfeito. Na realidade, o seu autor

é apenas protagonista inconsciente de uma comédia. O elemento subjetivo do crime

existe, é certo, em toda a sua plenitude; mas sob o aspecto objetivo, não há violação da

lei penal, sendo uma inciente cooperação para a ardilosa averiguação da autoria de

crimes anteriores, ou uma simulação, embora ignorada do agente, da exterioridade de

um crime. O desprevenido sujeito ativo opera dentro de uma pura ilusão, pois, ab

initio, a vigilância da autoridade policial ou do suposto paciente torna impraticável

a real consumação do crime (HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código

Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, I v., II t., p. 107).

Oportunamente, como bem destacado no parecer ministerial (fls.

1.440/1.441):

Com efeito, conforme descrito na denúncia, a Agravante recebeu uma ligação

em seu consultório de uma pessoa que solicitou lhe fosse fornecida uma receita

do medicamento Bromazepan, de uso controlado. Assim o fez, sem qualquer

contato pessoal com o paciente e sem conhecimento prévio do histórico médico.

Ocorre que o paciente era fictício e integrava uma equipe de reportagem que

pretendia fl agrar a venda de receitas de medicamentos controlados e de atestados

médicos, sem prévia consulta médica. A conduta foi classificada como tráfico de

drogas, na modalidade de prescrever substância entorpecente sem autorização e em

desacordo com determinação legal ou regulamentar.

3. No entanto, a Agravante, como médica, tinha autorização para prescrever o

medicamento de uso controlado, tanto que detinha receituário em seu nome e

com todas as especifi cidades exigidas pela Portaria n. 344/98 da ANVISA (f. 882).

A irregularidade consistente em emitir a receita sem examinar o paciente não

constitui determinação legal ou regulamentar, que complemente o tipo penal,

sendo atípica do ponto de vista penal.

4. Fosse típica a conduta, sua consumação seria impossível diante do fl agrante

preparado ou provocado, pouco importando que o tipo legal seja de perigo abstrato

e de mera conduta, ou notícias de que a médica costumava vender receitas do

referido medicamento, fato que não foi objeto de apuração.

Tratando-se de questão de caráter objetivo, cabível a extensão dos efeitos

benéfi cos do julgado à corré V C B, nos moldes do art. 580 do CPP.

Page 8: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

824

Ademais, considerando o acolhimento da tese de crime impossível, torno

prejudicado o pleito relacionado à atipicidade.

Ante o exposto, voto por dar provimento ao agravo regimental a fi m de

absolver a recorrente ante a prática de crime impossível, com efeitos extensivos

à corré V C B.

HABEAS CORPUS N. 330.559-SC (2015/0174133-9)

Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz

Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina

Advogado: Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina

Paciente: Jose Leo Espindola da Silva (Preso)

EMENTA

Habeas corpus. Tráfico de drogas. Nulidade da sentença.

Depoimento testemunhal. Direito ao silêncio. Amplitude. Advertência

judicial. Refl exos na voluntariedade do depoimento. Prova ilícita.

Prejuízo ao acusado. Anulação da sentença. Ordem concedida em

parte.

1. A busca da verdade no processo penal sujeita-se a limitações

e regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a

atividade jurisdicional, cujo objetivo maior é a descoberta da verdade

processual e constitucionalmente válida, a partir da qual se possa ou

aplicar uma sanção àquele que se comprovou culpado e responsável pela

prática de um delito, ou declarar sua inocência quando as evidências

não autorizarem o julgamento favorável à pretensão punitiva.

2. Uma dessas limitações, de feição ética, ao poder-dever de

investigar a verdade dos fatos é, precisamente, a impossibilidade de

obrigar ou induzir o réu a colaborar com sua própria condenação,

por meio de declarações ou fornecimento de provas que contribuam

Page 9: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 825

para comprovar a acusação que pesa em seu desfavor. Daí por que a

Constituição assegura ao preso o “direito de permanecer calado” (art.

5º, LXIII), cuja leitura meramente literal poderia levar à conclusão de

que somente o acusado, e mais ainda o preso, é titular do direito a não

produzir prova contra si.

3. Na verdade, qualquer pessoa, ao confrontar-se com o Estado

em sua atividade persecutória, deve ter a proteção jurídica contra

eventual tentativa de induzir-lhe a produção de prova favorável ao

interesse punitivo estatal, especialmente se do silêncio puder decorrer

responsabilização penal do próprio depoente.

4. A moldura fática delineada no acórdão impugnado explicita

que o Magistrado, antes de iniciar o depoimento do adolescente,

advertiu-o, após externado seu desejo de permanecer em silêncio, de

que poderia “ser novamente apreendido se não falasse a verdade”.

5. A hipótese retrata situação em que o destinatário da advertência

foi chamado a depor, como testemunha de acusação, e era o adolescente

que acompanhava o paciente quando este foi autuado em fl agrante, por

estar supostamente transportando expressiva quantidade de maconha

dentro do automóvel por ele conduzido.

6. Desde o início da persecução penal, a controvérsia central

cingiu-se à defi nição sobre a propriedade dessa droga, pois nenhum

dos dois ocupantes do automóvel – o paciente e o seu carona, o

referido adolescente – assumiu a posse da embalagem encontrada no

interior do veículo.

7. Assim, e mais ainda por tal circunstância, a advertência da

autoridade judiciária feita ao depoente viciou o ato de vontade e

direcionou o teor das declarações.

8. É ilícita, portanto, a prova produzida e, por ter sido desfavorável

ao réu e ter-lhe causado notório e inquestionável prejuízo, há de ser

afastada, com a consequente anulação da sentença condenatória, de

modo a que seja refeito o ato decisório, sem que conste, do seu teor e

da argumentação judicial, esse depoimento. Isso porque se nota, sem

dúvida alguma, que a sentença faz alusão a outras evidências e a provas

produzidas em juízo, de sorte a não autorizar-se a acolhida do pedido

principal formulado na impetração, de absolvição do paciente.

Page 10: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

826

9. Ordem concedida em parte, a fi m de anular o processo a

partir, inclusive, da sentença. Deve o juiz desentranhar dos autos

o depoimento do adolescente M. S. da C, colhido judicialmente, e

proferir nova sentença, com o conjunto das provas restantes.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade, conceder parcialmente

a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs.

Ministros Nefi Cordeiro, Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e Sebastião

Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 25 de setembro de 2018 (data do julgamento).

Ministro Rogerio Schietti Cruz, Relator

DJe 10.10.2018

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz: Jose Leo Espindola da Silva, paciente

neste habeas corpus, alega sofrer coação ilegal diante de acórdão prolatado pelo

Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina na Apelação n. 2014.082977-1.

Nesta Corte, a defesa sustenta a nulidade da sentença condenatória,

porquanto baseada em depoimento de adolescente não advertido sobre o direito

ao silêncio. Subsidiariamente, assere que deve ser aplicada a minorante prevista

no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas e, por consequência, estabelecido o regime de

cumprimento da pena menos gravoso.

Requer, liminarmente, sejam suspensos os efeitos da condenação. No

mérito, postula a absolvição do réu, “em virtude da ausência de prova válida

para a condenação” (fl . 20, destaque do autor), ou a anulação do “processo desde

a sentença, para que o Juízo de primeiro grau prolate nova decisão, vedada a

utilização da prova ilícita e as dela decorrentes” (fl . 20). De modo subsidiário,

pugna pela redução da pena e pelo abrandamento do regime.

Indeferida a liminar (fl s. 413-415) e prestadas as informações (fl s. 430-

481), o Ministério Público Federal manifestou-se pela denegação da ordem (fl s.

486-497).

Page 11: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 827

VOTO

O Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz (Relator):

I. Contextualização

Extrai-se dos autos que o réu foi condenado à pena de 5 anos e 10 meses

de reclusão, em regime fechado, e 583 dias-multa, como incurso no art. 33, caput,

da Lei n. 11.343/2006. Os autos dão conta da apreensão de 1.040 g de maconha.

O Tribunal de origem, ao se manifestar sobre as provas dos autos que

justifi cam a manutenção do decreto condenatório, salientou o depoimento do

adolescente M. S. da C., nos seguintes termos (fl . 398, grifei):

Nesse passo, o adolescente M. S. da C., sob o crivo do contraditório, disse que

no dia dos fatos pegou uma carona com o apelante na loja Kiko Auto Som e que

estava presente quando ocorreu a prisão em fl agrante. Sustenta que viu a droga

sendo apreendida, porém não sabe dizer aonde estava. Perguntado se a droga

era realmente sua, tal como alega o apelante, o adolescente perguntou se poderia

fi car em silêncio, porém foi advertido da possibilidade de ser novamente apreendido

se não falasse a verdade, pois não estava sendo ouvido na qualidade de réu, mas sim

como testemunha. O adolescente disse que a droga não era sua e que não sabia

em que parte do carro estava, e nem mesmo de quem era a droga apreendida

(mídia de fl . 170).

O Código de Processo Penal, em seu art. 186, prevê que “o acusado

será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de

permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”.

Pela leitura do trecho transcrito, observo que, de fato, a Corte estadual

confi rmou que o Magistrado, ao ouvir o depoimento do adolescente, não só deixou

de lhe informar o direito de permanecer calado como lhe advertiu de sua obrigação de

falar a verdade. Além disso, asseriu que adolescente, depois de haver manifestado

o desejo de fi car em silêncio, “foi advertido da possibilidade de ser novamente

apreendido se não falasse a verdade” (fl . 398, destaquei).

Aparentemente, portanto, o Tribunal a quo entendeu que o adolescente

“não estava sendo ouvido na qualidade de réu, mas sim como testemunha” (fl .

398), e que, nesses termos, incidiria a regra do art. 203 do Código de Processo

Penal, a qual dispõe que “a testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de

dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado”.

A vexata quaestio, todavia, deve atrair outra solução jurídica, como a seguir

explicitado.

Page 12: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

828

II. Limites condicionantes à atividade persecutória

A partir do ideário iluminista inaugurou-se uma nova era do Direito

Criminal, em que a atividade punitiva do Estado passa a vincular-se a valores

como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, motes da Revolução Francesa, no

fi nal do século XVIII. Nesse viés, a liberdade jurídica assume lugar de destaque

na pauta das nações centrais e sujeita-se a sacrifício apenas em casos expressamente

previstos, mediante obediência a regras forjadas pelas progressivas conquistas

civilizatórias.

Gradualmente, portanto, a persecução penal passa a alinhar-se aos

postulados inerentes a um Estado Democrático de Direito e se confi gura não

mais como mero instrumento de realização do Direito Penal, mas, acima de

tudo, um meio civilizado de limitação do poder punitivo do Estado frente ao

indivíduo.

No que concerne à atividade cognitiva judicial, tem-se hoje como

indiscutível que a busca da verdade no processo penal submete-se a limites e regras

precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional.

É inevitável, assim, que o conteúdo informativo de um processo criminal

pautado pelo modelo garantista seja inferior ao reproduzido em um modelo

autoritário. Logo, a atividade jurisdicional criminal tem como objetivo maior

a descoberta da verdade processual e constitucionalmente válida, a partir da qual

se possa ou aplicar uma sanção àquele que se comprovou culpado e responsável

pela prática de um delito, ou declarar sua inocência quando as evidências não

autorizarem o julgamento favorável à pretensão punitiva. Em outras palavras,

o fim do processo “só pode ser a descoberta da verdade e a realização da

justiça”, por meio de uma decisão obtida de modo “processualmente admissível e

válido” (DIAS, Jorge de Figueirado. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra

Editora, 1984, v. 1, p. 43 e 49).

Tal é o preço que se paga por um modelo em que não apenas importam os

fi ns da jurisdição penal mas também se confere atenção aos meios para atingi-

los.

Uma dessas limitações cognitivas ao poder-dever de investigar a verdade

dos fatos é, precisamente, a impossibilidade de se obrigar ou induzir o réu a

colaborar com sua própria condenação, por meio de declarações ou fornecimento

de provas que contribuam para comprovar a acusação que pesa em seu desfavor.

Na observação de Maria Elizabeth QUEIJO,

Page 13: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 829

O princípio nemo tenetur se detegere, como direito fundamental, objetiva

proteger o indivíduo contra excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal,

incluindo-se nele o resguardo contra violações físicas e morais, empregadas para

compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como

contra métodos proibidos de interrogatório, sugestões e dissimulações (O direito

de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2. ed., 2012, p. 77).

Daí por que a Constituição assegura ao preso o “direito de permanecer

calado” (art. 5º, LXIII), cuja leitura meramente literal, como a que empreendeu o

Tribunal local, poderia levar à conclusão de que somente o acusado, e mais ainda o

preso, é titular do direito a não produzir prova contra si.

Assim, todavia, não há de ser. Na verdade, qualquer pessoa, ao confrontar-se

ante o Estado em atividade persecutória deste, deve ter a proteção jurídica contra

a tentativa de forçar ou induzir a produção da prova favorável ao interesse

punitivo estatal.

Na lição de João Claudio COUCEIRO, “as testemunhas podem invocar

o direito ao silêncio, quer para não se auto-incriminar, quer para escapar da

responsabilidade civil e administrativa. [...] Tal direito é amplo, e não depende

da existência de procedimento investigativo para apurar os fatos em que a

testemunha estava envolvida ...” (A garantia constitucional do direito ao silêncio.

São Paulo: RT, 2004, p. 220).

Mais especifi camente sobre a oitiva de adolescentes, pontua COUCEIRO,

que “o adolescente deverá ser lembrado, assim, de seu direito de permanecer em

silêncio toda vez que for ouvido por qualquer autoridade (pouco importando

seja ela policial, membro do Ministério Público ou judicial), ... (idem, p. 260).

Essa é a compreensão moderna, não encontrada, por óbvio, na regra antiga,

já presente no Direito Romano, do nemo tenetur se detegere, e que vem sendo

aperfeiçoada ao longo dos séculos, sobretudo a partir das ampliações conceituais

que lhe vêm dando as Cortes Constitucionais de diversos países centrais.

Na Alemanha, por exemplo, relata Th eodomiro DIAS NETO que:

A posição dominante da doutrina é de que o direito ao silêncio encontra o seu

fundamento no art. 2º, I, CF/88 c/c arts. 1º, I, e 19 II, da CF/88. O direito ao livre

desenvolvimento da personalidade (art. 2º I), na qualidade de principal direito

de liberdade, é ponto de partida de todos os direitos de defesa dos cidadãos

perante o Estado (Seifert, 1991: 45). O art. 19 II determina que nenhum direito

fundamental pode ser violado em seu núcleo essencial (Wesensgehalt). Este

núcleo é intangível, determina um limite absoluto (absolute Eingriff sgrenze) ao

Page 14: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

830

legislador, ao Judiciário e à administração. A referência ao art. 1 I deriva de seu

caráter supremo dentro da Constituição alemã; a proteção da dignidade da pessoa

humana é o mais alto valor da Constituição e permeia todas as demais normas

que a compõem. Tal princípio constitui o núcleo absoluto (absoluter Kernbereich)

e intangível de todos os direitos fundamentais. Em síntese, o direito ao silêncio

é expressão da proibição contra a auto-incriminação, constitui um direito de

personalidade, que por possuir a dignidade humana como seu núcleo, não está

à disposição do legislador” (O direito ao silêncio: tratamento nos direitos alemão e

norte-americano. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 19/179)

Foi, porém, a Suprema Corte dos Estados Unidos que deu maior

amplitude ao tema em apreço, desde os anos 30 do Século XX, quando passou a

tratar da legalidade do interrogatório policial a partir do teste de voluntariedade

(voluntariness test), em razão do qual se entendeu que somente seria válido o

interrogatório do preso se estivesse em conformidade com os requerimentos da

cláusula do devido processo (due process clause) da 14ª Emenda à Constituição, ante

a proteção mais específi ca do privilégio contra autoincriminação de que cuida a 5ª

Emenda à Constituição.

No Direito brasileiro o tema tem sido fertilmente enfrentado pela

doutrina e pela jurisprudência dos tribunais, em especial do Supremo Tribunal

Federal, mormente a partir da Constituição de 1988, que inaugurou uma nova

compreensão acerca das liberdades públicas no processo penal.

Lapidares, nessa direção, foram algumas decisões da Suprema Corte nos

casos que envolviam a convocação de testemunhas para depor em Comissões

Parlamentares de Inquérito, que amiúde se valiam de estratégia, repudiada pelo

STF, de chamar pessoas na qualidade de testemunhas, as quais, todavia, eram, na

essência, suspeitas das práticas ilícitas que estavam sendo objeto de investigação.

Eis, ilustrativamente, um desses importantes julgados:

Comissão Parlamentar de Inquérito. Privilégio contra a auto-incriminação.

Direito que assiste a qualquer indiciado ou testemunha. Impossibilidade de o Poder

Público impor medidas restritivas a quem exerce, regularmente, essa prerrogativa.

Pedido de habeas corpus deferido.

– O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável

perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público

subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha,

de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder

Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

Page 15: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 831

– O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos

estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera

jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental.

Precedentes. O direito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhecido a

qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-

la (nemo tenetur se detegere) – impede, quando concretamente exercido, que

aquele que o invocou venha, por tal específi ca razão, a ser preso, ou ameaçado

de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado.

– Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do

ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito,

decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da

não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento

que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao

indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados

defi nitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.

(HC n. 79.812/SP, Rel. Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 16/2/2001,

grifei)

Também digna de registro a análise, em pedido de liminar requerida nos

autos do HC n. 95.037/SP (DJe 25/6/2008), feita pelo Ministro Celso de Melo,

que assim explicitou a matéria (destaquei):

[...] Tenho enfatizado, em decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, a

propósito da prerrogativa constitucional contra a auto-incriminação (RTJ 176/805-

806, Rel. Min. Celso de Mello), e com apoio na jurisprudência prevalecente no

âmbito desta Corte, que assiste, a qualquer pessoa, regularmente convocada

para depor perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de se manter

em silêncio, sem se expor – em virtude do exercício legítimo dessa faculdade – a

qualquer restrição em sua esfera jurídica, desde que as suas respostas, às

indagações que lhe venham a ser feitas, possam acarretar-lhe grave dano

(‘Nemo tenetur se detegere’). É que indiciados ou testemunhas dispõem, em

nosso ordenamento jurídico, da prerrogativa contra a auto-incriminação, consoante

tem proclamado a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RTJ

172/929-930, Rel. Min. Sepúlveda Pertence - RDA 196/197, Rel. Min. Celso de Mello

- HC 78.814/PR, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.) […] Cabe acentuar que o privilégio

contra a auto-incriminação - que é plenamente invocável perante as Comissões

Parlamentares de Inquérito (UADI LAMMÊGO BULOS, ‘Comissão Parlamentar de

Inquérito’, p. 290/294, item n. 1, 2001, Saraiva; NELSON DE SOUZA SAMPAIO, “Do

Inquérito Parlamentar”, p. 47/48 e 58/59, 1964, Fundação Getúlio Vargas; JOSÉ LUIZ

MÔNACO DA SILVA, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, p. 65 e 73, 1999, Ícone

Editora; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 3, p. 126-127,

1992, Saraiva, v.g.) – traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional,

assegurado a qualquer pessoa pelo art. 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política.

Page 16: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

832

Convém assinalar, neste ponto, que, “Embora aludindo ao preso, a interpretação

da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange toda

e qualquer pessoa, pois, diante da presunção de inocência, que também

constitui garantia fundamental do cidadão (...), a prova da culpabilidade incumbe

exclusivamente à acusação” (ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova

no Processo Penal”, p. 113, item n. 7, 1997, RT - grifei). É por essa razão que o

Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu esse direito também em

favor de quem presta depoimento na condição de testemunha, advertindo,

então, que “Não confi gura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo

como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam

incriminá-la” (RTJ 163/626, Rel. Min. Carlos Velloso - grifei). [...]

III. Violação concreta do direito ao silêncio

Não pode restar nenhuma dúvida, portanto, de que não apenas o preso,

mas qualquer pessoa que seja chamada a depor perante agente estatal, não pode ser

compelida, sob qualquer meio, a prestar declarações, máxime quando, como na hipótese

sob análise, expressamente manifestou o desejo de permanecer em silêncio, motivo por

que o juiz lhe endereçou a advertência de que, “se não falasse a verdade” poderia

“ser novamente apreendido” (fl . 398).

Para contextualizar esse comportamento judicial, registre-se que o

destinatário dessa advertência foi chamado a depor, como testemunha de acusação,

e era o adolescente que acompanhava o ora paciente quando este foi autuado em

flagrante, por estar supostamente transportando expressiva quantidade de

maconha dentro do automóvel por ele conduzido.

Desde o início da persecução penal, a controvérsia central cingiu-se à

defi nição sobre a propriedade dessa droga, pois nenhum dos dois ocupantes do

automóvel – o paciente e o seu carona, o referido adolescente – assumiu a posse da

embalagem encontrada no interior do veículo.

Assim, e mais ainda por tal circunstância, não se revestiu de legalidade

a “advertência” feita pela autoridade judiciária ao depoente, de que poderia

“ser novamente apreendido se não falasse a verdade”, após haver ele expressado a

intenção de permanecer em silêncio.

O resultado foi o depoimento do adolescente, certamente infl uenciado pela

“advertência”, em sentido favorável à acusação e, consequentemente, prejudicial

ao ora paciente, que veio a ser condenado às penas do tipo penal em que foi

incursionado pelo Ministério Público.

Page 17: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 833

Não se está a afi rmar, vale a observação, que o paciente não deveria ser

condenado ou que, sem esse depoimento judicial ora hostilizado, seria ele

absolvido das imputações, mas tão somente que essa prova, por ser formalmente

viciada em sua gênese, é manifestamente ilícita, pois contraria os postulados éticos

de um devido processo penal (em sua acepção substantiva) e, particularmente,

porque viciada a vontade do declarante.

Enfatize-se que o adolescente, na gama de possibilidades que o caso

apresenta, poderia ser de fato o proprietário da droga localizada no interior do

veículo em que estava, na ocasião da abordagem policial, ou então poderia ser

apenas alguém que acompanhava o condutor, sem nenhuma responsabilidade

pela maconha apreendida no automóvel.

Se o adolescente permanecesse em silêncio, como aparentemente era

sua intenção inicial – sempre, insista-se, em conformidade com o que fi cou

assentado no acórdão impugnado –, caberia ao titular da ação penal obter

outras provas para amparar a versão acusatória; depondo e assumindo a autoria

do crime e a responsabilidade pela droga, provavelmente tal comportamento

processual traria difi culdade ao Ministério Público para sustentar a acusação;

e, fi nalmente, depondo e negando qualquer participação no transporte ou na

posse da droga – no sentido, aliás, do depoimento que acabou por prestar – a

tarefa estatal de comprovar os fatos articulados na denúncia fi cou bem facilitada,

porque serviu de contraprova à versão sustentada pelo réu, de que a droga não

lhe pertencia.

Em decorrência dessas considerações, reputo ilícita referida prova, por ter

sido produzida sob sugestão judicial à testemunha central do processo, e, porque foi

desfavorável ao réu e lhe causou notório e inquestionável prejuízo, há de ser ela

afastada, com consequente anulação da sentença condenatória, de modo a que seja

refeito o ato decisório sem que conste, do seu teor e da argumentação judicial,

esse depoimento.

Isso porque se nota, sem dúvida alguma, que a sentença faz alusão a outras

evidências e provas produzidas em juízo, de sorte a não se autorizar a acolhida do

pedido principal formulado na impetração, de absolvição do paciente.

IV. Dispositivo

À vista do exposto, concedo parcialmente a ordem a fi m de anular o processo,

a partir, inclusive, da sentença. Deve o juiz desentranhar dos autos o depoimento do

Page 18: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

834

adolescente M. S. da C., colhido judicialmente, e proferir nova sentença, com o

conjunto das provas restantes.

Comunique-se, com urgência, o inteiro teor deste decisum às instâncias

ordinárias.

HABEAS CORPUS N. 351.718-PE (2016/0071258-4)

Relator: Ministro Antonio Saldanha Palheiro

Impetrante: Raquel Braga Vieira e outros

Advogado: Erik Limongi Sial e outro(s) - PE015178

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco

Paciente: Ronaldo Iabrudi dos Santos Pereira

Paciente: Luiz Eduardo Falco Pires Correa

Paciente: Jose Luis Magalhaes Salazar

Paciente: Julio Cesar Pinto

Advogado: Roberto Podval e outro(s) - SP101458

Paciente: Paulo Altmayer Goncalves

EMENTA

Habeas corpus. Crime contra a ordem tributária (art. 1º, I, da

Lei n. 8.137/1990) e associação criminosa. Pedido de trancamento

da ação penal. Inépcia da denúncia. Responsabilidade penal objetiva.

Falta de justa causa. Ausência de descrição do elemento fraude.

Constrangimento ilegal evidenciado.

1. A extinção da ação penal na via eleita consiste em medida

excepcional, justifi cando-se somente quando se revelar, de plano, a

atipicidade da conduta, causa extintiva da punibilidade, ou a ausência

de indícios mínimos de autoria. Nesse contexto, a jurisprudência

desta Casa não aceita, ordinariamente, discussões fundadas na

ausência de comprovação do elemento subjetivo do tipo ou na

carência de indícios sufi cientes de autoria do delito, porquanto tais

Page 19: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 835

esclarecimentos demandam, na maior parte das vezes, apreciação

detalhada dos elementos de convicção constantes do processo,

providência manifestamente inconciliável com o rito célere do remédio

constitucional. Precedentes.

2. No caso, a peça acusatória, ao imputar aos pacientes a fraude

à Fazenda Nacional, por meio da apresentação de declarações

inverídicas de modo a suprimir o pagamento de tributos, baseou-se,

apenas, nas funções desempenhadas pelos acusados no âmbito da

pessoa jurídica. Assim, o crime descrito no art. 1º, inciso I, da Lei

n. 8.137/1990 foi atribuído aos pacientes somente por ostentarem a

qualidade de Presidente e Diretores da companhia. O denunciante

não minudenciou a conduta delituosa e o liame dos acusados com

o crime narrado na inicial, imputando-lhes o delito exclusivamente

em razão dos altos cargos ocupados por eles na empresa. Entretanto,

a mera detenção dos postos de Presidente e de Diretores da pessoa

jurídica, sem a descrição das competências desempenhadas pelos réus

em relação aos fatos criminosos, não evidencia a autoria ou eventual

anuência com o crime. Nos termos da orientação desta Corte, não é

necessário ao denunciante elucidar a participação de cada acusado do

crime societário. Porém, no caso, observa-se a absoluta ausência de

descrição do vínculo subjetivo dos acusados com o delito delineado

na peça acusatória. Evidente, portanto, o desrespeito aos princípios do

contraditório e da ampla defesa.

3. De mais a mais, consoante se observa dos documentos

acostados ao processo, embora a Comunicação Fiscal ao Ministério

Público aponte a existência de declaração inverídica da contribuinte,

não asseverou, nem sequer minimamente, à presença de fraude ou

falsifi cação. As indagações referentes a presença de práticas ardilosas

foram todas respondidas negativamente pelos funcionários fi scais.

Assim, embora os pacientes possam ter recolhido de forma errônea o

imposto devido, não descreveram os auditores fi scais nenhuma fraude

ou ardil no procedimento. Além disso, a pessoa jurídica contribuinte

mantinha escorreita escrituração e apresentou todos os documentos

solicitados por ocasião da autuação fi scal. Desse modo, não há nos

autos dados inequívocos bastantes a demonstrar que a supressão

ou a redução do tributo ocorrera mediante fraude ou falsifi cação. A

peça acusatória encontra-se consubstanciada apenas na constituição

Page 20: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

836

defi nitiva do crédito tributário, concluindo o titular da ação penal

pública, a partir daí, que a redução dos valores se deu por meio de uma

das condutas listadas no art. 1º da Lei 8.137/1990. Precedentes.

4. Relativamente ao crime de associação criminosa, o Ministério

Público não descreveu a associação efetiva, tampouco o vínculo

permanente de cada um dos membros com o grupo. A inicial apenas

se refere ao delito previsto no art. 288 do Código Penal no momento

da capitulação legal, porém sem delineá-lo, ainda que sucintamente.

Portanto, evidente o constrangimento ilegal. Precedentes.

5. Ordem concedida para determinar o trancamento da Ação

Penal n. 0007676-60.2014.8.17.0001 relativamente aos pacientes

Ronaldo Iabrudi dos Santos Pereira, Luiz Eduardo Falco Pires Correa, Jose

Luis Magalhaes Salazar, Julio Cesar Pinto e Paulo Altmayer Goncalves.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, conceder a ordem nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os

Srs. Ministros Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior, Rogerio Schietti Cruz e Nefi

Cordeiro votaram com o Sr. Ministro Relator.

Dr. Erik Limongi Sial, pelas partes pacientes: Ronaldo Iabrudi dos Santos

Pereira; Luiz Eduardo Falco Pires Correa; Jose Luis Magalhaes Salazar; Paulo

Altmayer Goncalves

Sustentou oralmente o Adv. Odel Mikael Jean Antun, pela parte paciente:

Julio Cesar Pinto

Brasília (DF), 16 de outubro de 2018 (data do julgamento).

Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Relator

DJe 30.10.2018

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Antonio Saldanha Palheiro: Trata-se de habeas corpus

impetrado em favor de Ronaldo Iabrudi dos Santos Pereira, Luiz Eduardo Falco

Page 21: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 837

Pires Correa, Jose Luis Magalhães Salazar, Julio Cesar Pinto e Paulo Altmayer

Gonçalves, apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado

de Pernambuco.

Foram os pacientes, em 4 de dezembro de 2013, denunciados pela suposta

prática das condutas descritas no art. 1º, inciso I, da Lei n. 8.137/1990, na forma

do art. 71 do Código Penal, bem assim no art. 288 do Código Penal.

Em 17 de março de 2014, a peça acusatória foi recebida, determinando-se

a citação dos réus para responderem à acusação.

Buscando o trancamento da ação penal, impetrou a defesa prévio remédio

constitucional no Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco.

O pedido liminar foi deferido para suspender o processo até o julgamento

defi nitivo do inconformismo.

Entretanto, em sessão de julgamento realizada em 4 de novembro de

2015, a Terceira Câmara Criminal denegou a ordem, cassando a liminar e

determinando o prosseguimento regular da ação penal.

Recebeu o acórdão esta ementa (e-STJ fl s. 39/40):

Penal e Processo Penal. Habeas corpus. Sonegação fiscal e associação

criminosa. Inépcia da denúncia. Improcedência. Presença dos requisitos do

art. 41 do CPP. Ausência de dolo e fraude. Matéria que exige aprofundamento

probatório, inviável pela via estreita do habeas corpus. Trancamento da ação

penal por garantia integral do débito tributário no juízo cível. Impossibilidade.

Independência das esferas cível e penal. Inaplicabilidade do art. 9º da Lei

10.684/2003. Ordem denegada. Liminar cassada. Decisão unânime.

I - Em consonância com a jurisprudência pacífi ca deste Tribunal, o trancamento

da ação penal por meio de habeas corpus, em virtude da sua impossibilidade

de dilação probatória, constitui medida excepcional, que somente é admitida

quando as provas pré-constituídas nos autos demonstram, deforma inequívoca,

a inexistência de elementos indiciários da autoria e da materialidade do

delito, a atipicidade da conduta ou a presença de alguma causa excludente da

punibilidade.

II - Hipótese em que a denúncia cumpre todos os requisitos legais exigidos

pelo art. 41 do CPP, pois descreve o suposto fato delituoso (ausência, reiterada,

de destaque ou recolhimento de imposto sobre prestações tributadas de serviços

de comunicação declaradas isentas pelo contribuinte sem amparo legal); indica

o crime supostamente executado (sonegação fi scal e associação criminosa, em

continuidade delitiva); aponta os supostos autores do delito e suas devidas

qualifi cações (diretores da empresa); e apresenta o rol de testemunhas.

Page 22: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

838

III - Nos casos de infrações penais perpetradas no âmbito da administração

de pessoas jurídicas, é possível ao órgão acusatório ofertar denúncia atribuindo

o delito aos sócios-gerentes e diretores da fi rma, pois são essas pessoas que

se encontram nas condições de praticá-lo ou impedir sua concretização,

controlando assim o iter criminis, segundo a consagrada teoria do domínio do

fato, sem prejuízo, evidentemente, de que no decorrer da instrução criminal fi que

demonstrada a ausência de autoria delitiva.

IV - O fato de ter sido ajuizada ação anulatória de débito fiscal, a qual se

encontra ainda em curso, não tem o condão de impedir o prosseguimento da

ação penal. Isso porque o art. 83 da Lei n. 9.430/96 somente exige decisão fi nal

na esfera administrativa sobre a existência fi scal do crédito tributário, o que já

ocorreu na espécie. Precedentes STJ.

V. In casu, o paciente não efetuou o pagamento do crédito tributário, as

apenas contratou seguro garantia como tentativa de assegurar o seu futuro

adimplemento. Destarte, não operou-se a extinção de sua punibilidade.

Precedentes do STF.

VI. A pendência de discussão acerca da exigibilidade do crédito tributário

perante o Judiciário constitui óbice, tão-somente, à prática de atos tendentes à

cobrança do crédito, não impossibilitando a instauração da ação penal cabível,

dada a independências das esferas cível e criminal. Precedentes do STJ.

VII. Ordem denegada. Liminar Cassada. Decisão unânime.

No Superior Tribunal de Justiça, sustentam os impetrantes, como primeira

tese, a inépcia da denúncia. Ponderam, a propósito, que a jurisprudência desta

Casa, na contramão da fundamentação apresentada pelo acórdão estadual,

assentou o posicionamento de que a peça acusatória deve sim descrever um

liame mínimo sufi ciente a demonstrar de que modo teria se dado a atuação do

sócio ou diretor da pessoa jurídica na execução ou participação no suposto crime

tributário, sob pena de se incorrer em evidente responsabilização objetiva.

Esclarecem que, na espécie, entretanto, a autoria foi imputada aos pacientes

com lastro exclusivamente na condição de ocuparem as posições de presidente

ou diretores da empresa Telemar Norte Leste S/A, sem nenhuma distinção

ou demonstração da efetiva interligação entre o desempenho das funções

exercitadas por cada um dos acusados e a conduta delitiva narrada na inicial.

Sublinham ser da responsabilidade do órgão acusatório perquirir, antes

da formalização da persecução criminal, como teria se dado o procedimento

interno da pessoa jurídica no que concerne aos aspectos fi scais, bem assim se o

presidente e os diretores da empresa possuíam, de fato, ingerência direta ou ao

menos conheciam a forma de proceder do setor fi scal da companhia.

Page 23: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 839

No caso, porém, destacam que a incoativa está lastreada, apenas e

unicamente, na Comunicação Fiscal ao Ministério Público – COFIMP, cujo

questionário, preenchido pela autoridade fi scal, foi respondido negativamente

para todas as indagações concernentes a condutas dolosas.

Reverberam, também, a atipicidade formal da conduta. Destacam, no

particular, que a peça acusatória apenas narrou o ilícito fi scal, sem demonstrar

documentalmente a existência de fraude ou ardil. Elucidam que, conquanto a

Comunicação Fiscal ao Ministério Público indique a existência de declaração

inverídica, não externou fosse a referida declaração fraudulenta.

Afi rmam, a propósito, que a autuação fi scal que deu azo à Comunicação

Fiscal ao Ministério Público – única invocada na denúncia como materialidade

do crime – foi lastreada pelo equivocado cadastramento de fornecedores no

sistema informatizado como isentos, quando haveriam de ser tributados.

Ressalta que tal fato foi confessado pela Telemar Norte Leste durante o limiar

do procedimento fi scal, com o consequente recolhimento da exação devida,

excetuados, apenas, os valores calculados pela Fazenda Nacional pelo método

“por dentro” e a multa confi scatória. Diante disso, argumentam que não houve

recolhimento a menor de tributos, mas lídima insurgência da contribuinte

contra a sistemática do cômputo de ICMS, matéria divergente no âmbito da

própria Administração Fazendária Estadual, de modo que assente a inexistência

de conduta eivada de ardil ou fraude.

Noutro giro, asserem que apenas foi possível ao Fisco Estadual verifi car

as atividades da empresa Telemar Norte Leste S/A, chegando à conclusão do

suposto recolhimento a menor de tributos, em razão da escrituração contábil

formalizada e regularmente apresentada pela pessoa jurídica.

Por fi m, relativamente à afi rmação do Tribunal de Justiça no sentido da

impossibilidade de trancamento da ação penal diante da garantia integral dos

valores, por força do postulado da independência entre as instâncias, anunciam

que não se busca a extinção da punibilidade pelo simples fato da constituição de

seguro-garantia, mas pela manifesta ausência de justa causa, pois o pagamento

será alcançado caso os embargos à execução sejam julgados improcedentes.

Diante dessas considerações, pedem, em tema liminar, seja suspenso

o curso do processo originário até o julgamento definitivo do presente

remédio constitucional. No mérito, buscam a cassação do acórdão estadual,

determinando-se o trancamento da Ação Penal n. 0007676-60.2014.8.17.0001.

O pedido liminar foi indeferido (e-STJ fl s. 1.486/1.489).

Page 24: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

840

Prestadas as informações (e-STJ fls. 1.507/1.518), foram os autos

encaminhados ao Ministério Público Federal, que opinou pela denegação da

ordem.

Recebeu o parecer esta ementa (e-STJ fl s. 1.549/1.556):

Habeas corpus. Sonegação fiscal e formação de quadrilha. Atipicidade

da conduta. Inexistência. Ausência de justa causa não evidenciada de plano.

Trancamento da ação penal. Necessidade de revolvimento e valoração de fatos e

provas. Inviabilidade de análise da tese na restrita via do writ. Constrangimento

ilegal não confi gurado. Denegação da ordem. - Segundo a fi rme jurisprudência

dessa Augusta Corte Superior, a falta de justa causa a ensejar o trancamento

da ação penal só pode ser reconhecida quando, de plano, sem um juízo de

valoração das provas, se evidencie a atipicidade da conduta, a ocorrência de

causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de elementos mínimos de

autoria e materialidade, hipóteses não verifi cadas no presente caso. - Parecer

pelo não conhecimento do writ e, acaso conhecido, pela denegação da ordem de

habeas corpus.

Em 9 de novembro de 2017, deferi o pedido de reconsideração formulado

pela defesa para suspender o curso da ação penal até o julgamento defi nitivo do

presente inconformismo.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Antonio Saldanha Palheiro (Relator): Lembremo-nos

que a extinção da ação penal na via eleita consiste em medida excepcional,

justifi cando-se somente quando se revelar, de plano, a atipicidade da conduta,

causa extintiva da punibilidade ou ausência de indícios mínimos de autoria.

Nesse contexto, a jurisprudência desta Casa não aceita, ordinariamente,

discussões fundadas na ausência de comprovação do elemento subjetivo do

tipo ou na carência de indícios sufi cientes de autoria do delito, porquanto tais

esclarecimentos demandam, na maior parte das vezes, apreciação detalhada dos

elementos de convicção constantes do processo, providência manifestamente

inconciliável com o rito célere deste remédio constitucional.

Feitas essas considerações, passo à apreciação do pedido inicial.

Foram estes os fatos narrados na peça acusatória (e-STJ fl s. 396/399):

Page 25: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 841

Em 05 de dezembro de 2011, por ocasião de fi scalização procedida pelo Fisco

Estadual, foi constatado que os denunciados, nos períodos fi scais do exercício

de 2006, agindo com pleno domínio dos fatos na administração e gerência

da empresa Telemar Norte Leste S/A, CNPJ n. 33.000.118/0014-93 e Inscrição

Estadual n. 0019146-93, localizada na Rua do Brum, 485, Sala 101, nesta cidade,

os denunciados, reiteradamente, fraudaram a Fazenda Estadual, através de

declaração inverídica de modo a suprimir ou reduzir tributos, dando margem ao

Auto de Infração n. 2011.000003483170-53 (fl s. 06/07).

Dita conduta incidiu sobre a falta de destaque e recolhimento do ICMS em

prestações de serviço de telecomunicação legalmente tributadas, importando

na supressão do pagamento de ICMS Normal no valor original de R$ 2.839.880,19

(dois milhões, oitocentos e trinta e nove mil, oitocentos e oitenta reais e dezenove

centavos).

Tal conduta, objeto de autuação ao fi sco, produziu constituição do crédito

tributário, justamente em face da preclusão recursal no âmbito administrativo,

importando em lançamento defi nitivo por força do referido decurso de tempo

em razão da inércia do contribuinte na esfera administrativa resultando no ato de

lançamento do crédito tributário, bem como sua inscrição na Dívida Ativa em 09

de maio de 2012, como bem demonstram os documentos acostados as fl s. 06, 07,

08, 196, 197, 199 e 200.

Consta da peça informativa que os denunciados deixaram de recolher o ICMS

Normal, através da emissão de Notas Fiscais de Saída, escrituradas como isentas

as saídas de prestações de serviços de telecomunicação legalmente tributadas

com alíquota interna de 28% (vinte e oito por cento), reduzindo, sem amparo

legal, o imposto devido.

Tal fato resulta da conduta ilícita dos denunciados em lançar as saídas

tributadas como isentas no Livro de Registro de Apuração do ICMS, reduzindo,

dessa forma, o valor do ICMS Normal a recolher, importando tal procedimento em

supressão do referido imposto em prejuízo da Fazenda Estadual.

Esses fatos foram constatados pela análise das prestações realizadas no

exercício de 2006, que foram apresentadas à fi scalização, em meio magnético,

onde por meio do programa ‘IDEA’ foi identifi cada prestações não tributadas que,

por sua vez, após ser analisada sua regularidade, constatou-se que não houve

o destaque e nem recolhimento do imposto sobre prestações tributadas de

serviços de comunicação, declaradas isentas pelo contribuinte, sem amparo legal.

A prática relatada perdurou, em continuidade delitiva, no período acima

discriminado, resultando em supressão de tributo em detrimento dos cofres

estaduais.

A prova da materialidade encontra se nos autos, representada pela cópia

do Auto de Infração (fl. 06/07), Demonstrativo de Crédito Tributário (fl. 08),

Demonstrativo de Prestações de Serviço de Telecomunicação (fls. 09/11),

Page 26: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

842

Demonstrativo dos Recolhimentos (fl . 12), Quadro resumo do ICMS a recolher

(fl . 13) e DVD-R - Arquivos dos Demonstrativos das Prestações de Serviço de

Telecomunicação, Arquivos do Convênio n. 115/03.

O mesmo se dá em relação à autoria, posto que sendo os denunciados Ronaldo

Iabrudi dos Santos Pereira, Luiz Eduardo Falco Pires Corrêa, José Luís Magalhães

Salazar, Júlio César Pinto e Paulo Altmayer Gonçalves, Presidentes e diretores,

conforme Atas do Conselho Administrativo (fl s. 201/216), detém o domínio do fato,

o poder de determinar, de decidir e de fazer com que seus empregados e contratados

executem o ato, sendo responsáveis pela ocorrência da redução do tributo, de acordo

com as Atas da 79ª Reunião Ordinária do Conselho de Administração e da 90ª

Reunião Extraordinária do Conselho de Administração realizadas em 29 de abril de

2005 e 28 de junho de 2006, respectivamente.

Por fi m, em que pese a alegação de que o crédito tributário estava sendo

discutido e garantido judicialmente (fl s. 39 a 192), há que se observar que a

independência entre as instâncias autoriza a propositura da ação penal, inclusive

porque somente esta interrompe o prazo prescricional (art. 117, inciso I, do

Código Penal), da mesma forma que a garantia do juízo cível não se equivale a

pagamento do crédito tributário, de forma a ensejar a ausência de justa causa

para a sua propositura. Neste sentido:

[...]

Diante de todo o exposto, resta manifesto estarem os denunciados Ronaldo

Iabrudi dos Santos Pereira, Luiz Eduardo Falco Pires Corrêa, José Luís Magalhães

Salazar, Júlio César Pinto e Paulo Altmayer Gonçalves incursos nas penas do artigo

1º, inciso I, da Lei 8.137/90 (sonegação fi scal), art. 71 (continuidade delitiva) e

art. 288 (formação de quadrilha) do Código Penal, motivo pelo qual o Ministério

Público oferece a presente denúncia, para que, recebida, seja instaurado o

processo crime. (Grifei.)

Sustentam os impetrantes, como primeira tese, a ausência de demonstração

de nexo causal entre a conduta dos pacientes e o evento supostamente delituoso,

resultando em imputação objetiva em razão da simples circunstância jurídica de

os acusados ocuparem, à época dos fatos, os cargos de Presidente e Diretores da

empresa Telemar Norte Leste S/A. Ponderam, a propósito, inexistir a mínima

demonstração de liame psicológico entre os pacientes e os funcionários da

empresa responsáveis pelo pagamento dos tributos respectivos.

Sobre o tópico, assim se pronunciou a Corte estadual (e-STJ fl s. 48/49):

No tocante a alegação de inépcia da denúncia, após uma análise dos elementos

constantes na denúncia, verifi ca-se que este pedido não há como prosperar, uma

vez que a exordial cumpre todos os requisitos do art. 41 do CPP.

Page 27: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 843

Com efeito, a denúncia efetivamente descreve o suposto fato delituoso (ausência,

reiterada, de destaque ou recolhimento de imposto sobre prestações tributadas de

serviços de comunicação declaradas isentas pelo contribuinte sem amparo legal);

indica o crime supostamente executado (sonegação fi scal e associação criminosa,

em continuidade delitiva); aponta os supostos autores do delito e suas devidas

qualifi cações (diretores da empresa); e apresenta o rol de testemunhas.

A denúncia, ao apontar os Pacientes como os detentores do domínio do fato,

leva em consideração as funções exercidas por estes dentro da empresa, já que são

eles que detêm o poder de determinar, de decidir e de fazer com os seus empregados

e contratados executem o ato hora tido como delituoso, sendo, portanto, válida a

imputação. (Grifei.)

Diante do modelo de responsabilidade penal adotado em nosso

ordenamento jurídico, bem assim dos princípios constitucionais da ampla

defesa, do contraditório e do devido processo legal, incumbe ao órgão acusatório

delinear, na denúncia, até mesmo no âmbito dos crimes societários, as condutas

que, imputadas aos acusados, evidenciam a norma penal incriminadora.

Na mesma linha, os ensinamentos de Hugo de Brito Machado:

Admitir-se a denúncia na qual alguém é acusado pelo simples fato de ser

gerente, ou diretor, ou até simplesmente sócio ou acionista de uma sociedade,

como se tem visto, é admitir não apenas a responsabilidade objetiva, mas a

responsabilidade por fato de outrem, o que indiscutivelmente contraria os

princípios do Direito Penal de todo o mundo civilizado. (Estudos de direito penal

tributário. São Paulo: Atlas, 2002, p. 136)

Entretanto, em se tratando de crime societário, defronta-se o órgão

acusatório, no momento de oferecer a denúncia, com uma pluralidade de

acusados envolvidos na prática delituosa, tornando demasiadamente penosa a

identifi cação da origem dos atos volitivos. Nessa situação, a narrativa minudente

de cada uma das condutas atribuídas aos vários integrantes da estrutura

empresarial é tarefa bastante árdua, muitas vezes impraticável. Diante de tal

peculiaridade, a jurisprudência desta Casa vem admitindo possa o titular da ação

penal descrever os fatos de forma geral, sem apontar, separadamente, a conduta

atribuível a cada um dos acusados, tendo em vista a incapacidade de se mensurar,

com precisão, em detalhes, o modo de participação de cada um dos réus na

empreitada criminosa. Todavia, “é sempre necessário correlacionar o crime com

as atividades dos acusados (ainda que em decorrência de poderes de gerência

ou de administração, que serão melhor aprofundados no decorrer da instrução

criminal), pois ser diretor ou integrante de pessoa jurídica não constitui, por si

Page 28: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

844

só, fato ilícito. O crime somente é imputável a quem lhe deu causa e a descrição

contida na denúncia deve evidenciar, com grau mínimo de segurança, a intenção do

réu em utilizar sua posição para infringir a norma penal” (HC n. 283.610/ES,

relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 12/12/2017,

DJe 19/12/2017, grifei). Em conclusão, será válida a peça acusatória quando,

a despeito de não delinear as condutas individuais dos acusados, anunciar o

liame entre a atuação do denunciado e a prática delituosa, demonstrando a

plausibilidade da imputação e garantindo o pleno exercício do direito de defesa.

Essa mesma percepção foi registrada por Guilherme de Souza Nucci, cujo

autorizado magistério assim apreciou a questão:

Denúncia genérica: os crimes contra a ordem tributária, cometido em concurso

de agentes, pode admitir a denominada denúncia genérica, a peça acusatória, por

absoluta impossibilidade, indica apenas os coautores e eventuais partícipes do

delito, porém sem precisar, detalhadamente, a conduta de cada um deles. Sabe-

se que A, B e C, com o apoio de D e E, promoveram uma fraude na fi scalização

tributária, inserindo elementos inexatos em livros exigidos pela legislação

fi scal, conseguindo, com isso, a supressão do recolhimento de vários tributos.

Entretanto, embora esta clara a colaboração de todos eles, não se consegue saber,

exatamente, quem fez o que durante a fase executória. Por isso, têm os Tribunais

admitido a apresentação de denúncia genérica. Se assim não ocorresse, haveria

impunidade generalizada. O Ministério Público e as autoridades fazendárias

não possuem o dom da vidência, de forma que, sem a colaboração dos autores

do delito, possam apontar o que cada um dos coautores e partícipes fez para

chegar ao resultado criminoso. Sabe-se, no entanto, que todos atuaram para

a concretização do delito, o que é sufi ciente para a imputação (Leis Penais e

Processuais Penais Comentadas. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 603).

No caso em desfi le, como se observa dos trechos acima, a peça acusatória,

ao imputar aos pacientes a fraude à Fazenda Nacional, por meio da apresentação

de declarações inverídicas de modo a suprimir o pagamento de tributos,

baseou-se, apenas, nas funções desempenhadas pelos acusados no âmbito da

pessoa jurídica. Noutras palavras, o crime descrito no art. 1º, inciso I, da Lei

n. 8.137/1990 foi atribuído aos pacientes somente por ostentarem a qualidade

de Presidente e de Diretores da companhia. O denunciante não minudenciou

a conduta delituosa e o liame dos acusados com o crime narrado na inicial,

imputando-lhes o delito exclusivamente em razão dos altos cargos ocupados

por eles na empresa. Com efeito, a mera detenção dos postos de Presidente e de

Diretores da pessoa jurídica, sem a descrição das competências desempenhadas

pelos réus em relação aos fatos criminosos, não evidencia a autoria ou eventual

Page 29: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 845

anuência com o crime. Não é necessário ao denunciante, repita-se, elucidar

a participação de cada acusado do crime societário. Porém, no caso que se

encontra sob nossos cuidados, observo a absoluta ausência de descrição do

vínculo subjetivo dos acusados com o delito delineado na peça acusatória. É

evidente, portanto, o desrespeito aos princípios constitucionais do contraditório

e da ampla defesa.

No mesmo caminhar:

Habeas corpus. Associação criminosa. Trancamento do processo. Atipicidade

da conduta não demonstrada. Inépcia formal da denúncia. Reconhecimento.

Responsabilização penal objetiva. Vício caracterizado. Habeas corpus concedido

para trancar o processo somente em relação aos pacientes.

[...]

4. A seu turno, a postulada da inépcia da denúncia há de ser reconhecida a

favor dos pacientes, tendo em vista que da narrativa acusatória não se extrai

a necessária indicação da relação de causalidade entre conduta e resultado,

estabelecida no art. 13 do Código Penal.

5. Em tema de idoneidade formal da imputação, há de seguir-se o disposto no

art. 41 do CPP e, em relação a crime de autoria coletiva ou societário, esta Corte

Superior aceita por válida a exordial que, apesar de não pormenorizar a conduta

dos acusados, demonstra nexo entre suas ações ou omissões relevantes e o evento

criminoso, a fi m de estabelecer a plausibilidade da imputação e possibilitar a ampla

defesa.

6. É sempre necessário correlacionar o crime com as atividades dos acusados

integrantes de pessoa jurídica - ainda que em decorrência de poderes de gerência

ou de administração, melhor delimitados no decorrer da instrução criminal -, pois

o mero exercício do cargo de diretor não constitui, por si só, fato ilícito, sob pena

de admitir odiosa responsabilidade penal objetiva.

7. Na espécie, a denúncia é inepta quanto aos pacientes porque lhes atribui o

crime de associação criminosa pela mera detenção de cargos de diretoria em uma

seguradora que possui escritórios em várias unidades federativas, sem especifi car

eventuais atividades de gerência ou de administração que teriam sido exercidas pelos

réus em relação ao fato criminoso ou, mesmo, qual omissão denotaria a mencionada

anuência com o esquema fraudulento.

8. Habeas corpus concedido para trancar o processo em relação aos pacientes,

por inépcia formal da denúncia, sem prejuízo de que nova exordial seja oferecida,

com a correção do vício assinalado.

(HC 283.610/ES, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em

12/12/2017, DJe 19/12/2017, grifei.)

Page 30: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

846

No entanto, vou além.

Assere a defesa, outrossim, a ausência de justa causa para o prosseguimento

da demanda, pois a autuação fi scal que deu ensejo à COFIMP, invocada pelo

órgão de acusação como prova da materialidade do crime contra a ordem

tributária, foi lastreada pelo cadastramento de fornecedores como isentos,

quando haveriam de ser tributados, fato confessado à época pela contribuinte

– Telemar Norte Leste S/A – perante o Fisco, com o recolhimento da exação

devida e dos respectivos encargos, excetuados, apenas, os montantes calculados

pela Fazenda por meio do método “por dentro” – Gross Up –, destacando,

ademais, que a escorreita quantifi cação do tributo devido deveu-se à regular

escrituração fi scal da concessionária, situação bastante a demonstrar a ausência

de má-fé.

Sobre o tema, sabemos todos que, diante da natureza material dos crimes

contra a ordem tributária descritos no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, somente há

justa causa para a persecução penal com o advento do lançamento defi nitivo do

crédito tributário. A propósito, o teor do enunciado Vinculante n. 24: “Não se

tipifi ca crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a

IV, da Lei n. 8.137/90, antes do lançamento defi nitivo do tributo.”

Registro, também, acerca do assunto, que, de acordo com a orientação

fi rmada pela jurisprudência desta Casa, diante do mencionado lançamento

defi nitivo do crédito tributário, a propositura de embargos à execução buscando

discutir o débito fi scal não impede o prosseguimento da demanda voltada

à apuração do crime contra a ordem tributária, ante a independência das

instâncias.

Nesse sentido:

Processual Penal. Recurso em habeas corpus. Crime contra a ordem tributária.

Pedido de suspensão da ação penal. Pendência de ação anulatória de débito fi scal

em que se discute o crédito tributário, já defi nitivamente constituído, relacionado

com os fatos em apuração. Integridade do lançamento realizado não afetada.

Independência entre as instâncias.

I - “A existência de ação cível anulatória do crédito tributário não impede a

persecução penal dos agentes em juízo, em respeito à independência das esferas

cível e criminal. Precedentes. Ainda que obtido êxito no pedido de antecipação

de tutela na seara cível, a fi m de impedir a inscrição dos agentes em dívida ativa,

condição de procedibilidade da execução fiscal, inadmissível o trancamento

da ação penal, notadamente quando a decisão a eles favorável não afetou

diretamente o lançamento do tributo devido, que, até decisão definitiva em

Page 31: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 847

contrário, não pode ser considerado nulo ou por qualquer outro modo maculado”

(RHC n. 21.929/PR, Quinta Turma, Rel. Min. Jane Silva - Desembargadora

Convocada do TJ/MG -, DJU de 10/12/2007).

II - Não se pode, na hipótese, tomar o fato de existir ação anulatória de débito

fi scal, ainda que como questão prejudicial heterogênea facultativa (art. 93 do

Código de Processo Penal) da questão penal, porquanto, até aqui, o lançamento

do tributo não foi atingido.

III - A prejudicial heterogênea não obriga a suspensão da ação penal. Vale dizer,

não obsta automaticamente a persecutio criminis, ex vi do art. 93 do CPP.

Recurso ordinário desprovido.

(RHC 57.238/RS, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em

02/08/2016, DJe 10/08/2016, grifei.)

O Supremo Tribunal Federal possui idêntica orientação:

Habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Encerramento do procedimento

administrativo-fi scal. Mandado de segurança impetrado posteriormente e sem

efeito suspensivo. Possibilidade de ajuizamento da ação penal. Reclassifi cação

do delito e exclusão da continuidade delitiva. Não-conhecimento dessas

matérias pelo Superior Tribunal de Justiça. Análise reservada à instrução

criminal. Precedentes. 1. Denúncia oferecida após a conclusão do procedimento

administrativo-fiscal, com a constituição, de ofício, do crédito tributário, não

estando, portanto, a decisão questionada em contradição com a jurisprudência

desta Suprema Corte, no sentido de que a ausência de lançamento defi nitivo do

crédito tributário impede o ajuizamento da ação penal pelo crime previsto no art.

1º da Lei n. 8.137/90. 2. A impetração de mandado de segurança, após o lançamento

defi nitivo do crédito tributário, não tem o condão de impedir o início da ação penal,

principalmente porque a ordem foi denegada em 1º grau e a apelação interposta,

ainda pendente de julgamento, não tem efeito suspensivo. 3. (...). 5. Habeas corpus

parcialmente conhecido e, nessa parte, denegado. (HC 95.578, Relator o Ministro

Menezes Direito, DJe 16/04/2009, grifei.)

Contudo, a constituição defi nitiva do crédito tributário é apenas um dos

requisitos para a persecução penal dos crimes contra a ordem tributária.

A norma penal defi ne como criminosa a conduta de suprimir ou reduzir

tributo mediante o emprego de artifício fraudulento, seja pelo descumprimento do

dever de informação imposto ao contribuinte, ou pela apresentação de dados

falsos à autoridade fazendária.

Consoante a melhor doutrina, a mencionada exigência “decorre de

interpretação das disposições incriminadoras que se conforma com a proibição

Page 32: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

848

constitucional da prisão por dívida. Considerando que a Constituição da

República não permite a prisão por dívida (art. 5º, LXVII) e que a Fazenda

Pública dispõe do processo de execução fi scal (Lei n. 6.830/80) como meio para

satisfazer o crédito tributário, é possível identifi car na criminalização da mera

dívida tributária uma inconstitucionalidade”. Nesse palmilhar, a incriminação

prevista na Lei n. 8.137/1990 não se fundamenta na simples inadimplência da

obrigação tributária. “Não se trata de incriminar a conduta do devedor por não

ter quitado sua dívida, mas de incriminar a ofensa ao bem jurídico que se realiza

por meio do uso da fraude. O uso da fraude impede (ou, ao menos, difi culta) o

fi sco de perceber a ilicitude da conduta do sujeito passivo da obrigação tributária,

com repercussão direta na possibilidade de satisfação do crédito tributário, e

constitui o fundamento da incriminação. Tal interpretação deixa claro que, sem

que o sujeito passivo empregue fraude em sua relação com o fi sco não é possível

caracterizar o crime contra a ordem tributária” (GALVÃO. Fernando. Direito

Penal Tributário. Imputação Objetiva dos Crimes Contra a Ordem Tributária.

Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2015, p. 206).

Sobre o tema, os ensinamentos de Hugo de Brito Machado:

O núcleo do tipo, no crime de que se cuida, é suprimir ou reduzir tributo, ou

contribuição social e qualquer acessório. O modo de fazê-lo consiste em uma

das condutas meio, descritas nos incisos do art. 1º, da Lei n. 8.137/90. Assim,

o aperfeiçoamento do tipo penal depende da ocorrência da supressão, ou da

redução do tributo e das condutas desenvolvidas para esse fi m.

[...]

A supressão ou redução de tributo obtida por outro meio que não seja uma

das condutas descritas nos incisos do art. 1º da Lei n. 8.137/90 também não

confi gura o tipo penal em questão.

(Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 328 e 343).

No mesmo sentido, colaciono este precedente:

Habeas corpus impetrado em substituição ao recurso previsto no ordenamento

jurídico. 1. Não cabimento. Modificação de entendimento jurisprudencial.

Restrição do remédio constitucional. Exame excepcional que visa privilegiar a

ampla defesa e o devido processo legal. 2. Inquérito policial. Crime tributário.

Lançamento definitivo do crédito. Pressuposto. Súmula Vinculante 24/

STF. 3. Propositura de ação anulatória. Ausência de óbice à continuidade das

investigações. Independência entre as esferas cível e penal. 4. Peculiaridades do

caso. Dúvida sobre a incidência do tributo. Ação declaratória de inexistência de

Page 33: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 849

relação jurídico-tributária. Propositura anterior à constituição do crédito tributário.

Tributo instituído em 2002. Ação ajuizada em 2003. Exigibilidade do crédito

suspensa em liminar. Auto de infração lavrado em 2008. Ação cível parcialmente

procedente. Existência de valores depositados em juízo e de carta-fiança. 5.

Ausência de mínimas evidências de falso ou fraude. Tipo penal que não se perfaz

com a simples supressão do tributo. Inquérito instaurado exclusivamente em

virtude de dívida de natureza tributária. Constrangimento ilegal. 6. Habeas corpus

não conhecido. Ordem concedida de ofício, para trancar o IP n. 26/2009.

[...]

2. Nos termos da Súmula Vinculante n. 24 do Supremo Tribunal Federal,

somente há justa causa para a persecução penal, pela prática do crime previsto

no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 - por ser delito material ou de resultado -, com o

advento do lançamento defi nitivo do crédito tributário, o que efetivamente se

verifi cou no caso dos autos. No entanto, não se pode descurar que a constituição

defi nitiva do crédito tributário, apesar de ser pressuposto para a persecução

penal, não enseja, por si só, sua defl agração.

3. Havendo lançamento defi nitivo, a propositura de ação anulatória de débito

fi scal não obsta o prosseguimento da ação penal que apura a ocorrência de crime

contra a ordem tributária, haja vista a independência das esferas cível e penal.

4. Contudo, o ajuizamento de ação declaratória de inexistência de relação

jurídico-tributária, em momento anterior à constituição definitiva do crédito

tributário e logo em seguida à entrada em vigor da lei que instituiu o tributo,

demonstra a presença de dúvida sobre a legislação. Foi, inclusive, deferida a

liminar para suspender a exigibilidade do crédito, e, ao fi nal, julgada parcialmente

procedente a ação, consignando-se, ainda, a existência de valores depositados

em juízo e de carta-fi ança.

5. Portanto, a representação fi scal para fi ns penais se deu de forma automática,

sem se perquirir a mínima existência de indícios de crime ou se cogitar de fraude ou

falsifi cação. O procedimento adotado levou em consideração apenas a constituição

definitiva do crédito tributário, ou seja, a existência de uma dívida. No entanto,

não se mostra plausível que toda dívida de natureza tributária, por si só, gere

automaticamente a instauração de um inquérito policial, sem um crivo prévio acerca

da potencial existência de crime. O art. 1º da mencionada lei defi ne ser crime suprimir

ou reduzir tributo, mediante as condutas que enumera, as quais se referem ao

emprego de fraude. Destarte, o simples fato de dever tributo não é crime, razão pela

qual se mostra patente o constrangimento ilegal no prosseguimento do inquérito

policial.

6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para trancar o

inquérito policial n. 26/2009, instaurado perante a Superintendência de Polícia

Especializada - Divisão de crimes contra a Fazenda.

(HC 189.970/ES, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, julgado em

04/06/2013, DJe 11/06/2013, grifei.)

Page 34: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

850

Na espécie, a Comunicação Fiscal ao Ministério Público esclareceu que

a contribuinte Telemar Norte Leste S/A deixou de recolher ICMS Normal,

relativamente ao período de janeiro a dezembro de 2006, oriundo da aplicação

da alíquota sobre serviços de telecomunicações de 28% sobre a base de cálculo

total.

Narrou que o primeiro auto de infração foi consubstanciado pela falta de

recolhimento de ICMS em prestações de serviço de comunicação legalmente

tributadas, apresentadas à fi scalização por meio magnético.

Nesse cenário, a pessoa jurídica contribuinte reconheceu e recolheu

parcialmente o tributo mencionado.

Ato contínuo, procedeu-se ao abatimento do montante da base de cálculo,

resultando no débito de R$ 3.269.457,39 (três milhões, duzentos e sessenta e

nove mil, quatrocentos e cinquenta e sete reais e trinta e nove centavos).

Para o cômputo do tributo a recolher, considerou-se como base de

cálculo o valor total e, sobre este montante, aplicou-se o percentual de 38,89%,

correspondente à inclusão do valor do imposto devido. Sobre esta base de

cálculo devidamente reconstituída, aplicou-se a alíquota de 28%, referente à

prestação de serviços de telecomunicações (e-STJ fl . 150).

Encerrada a discussão do âmbito administrativo, as autoridades

vinculadas à Secretaria de Fazenda lançaram o débito na situação “aguardando

regularização”, comprometendo a regularidade fi scal da concessionária.

Nessa toada, a contribuinte apresentou ação cautelar para o oferecimento

antecipatório de caução, esclarecendo discordar da exigência fiscal, cuja

legitimidade objetivava discutir no âmbito da execução fi scal a ser ajuizada

oportunamente, mediante a oposição de embargos à execução.

Foi concedida a antecipação de tutela pleiteada, após a concordância da

Fazenda Pública Estadual (e-STJ fl . 336).

Promovida a execução fiscal, a concessionária opôs embargos à

execução. Na oportunidade, elucidou que, do total de R$ 5.022.818,26 (cinco

milhões, vinte e dois mil, oitocentos e dezoito reais e vinte e seis centavos),

constituído pela fi scalização estadual por meio de processo administrativo, a

embargante entendeu ser devido o montante de R$ 952.084,08 (novecentos

e cinquenta e dois mil, oitenta e quatro reais e oito centavos), promovendo

a quitação do referido valor. Ponderou a nulidade do remanescente exigido,

Page 35: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 851

pois inconstitucional a forma de cálculo adotada pela fi scalização estadual na

constituição do crédito tributário combatido (e-STJ fl . 363).

Consoante se observa dos documentos acostados ao processo, embora a

Comunicação Fiscal ao Ministério Público aponte a existência de declaração

inverídica da contribuinte, não asseverou, nem sequer minimamente, a presença

de fraude ou falsifi cação. Reparem que as indagações referentes à presença de

práticas ardilosas foram todas respondidas negativamente pelos funcionários

fi scais (e-STJ fl s. 381/382). Noutras palavras, embora os pacientes possam ter

recolhido de forma errônea o imposto devido, não descreveram os auditores

fi scais nenhuma fraude ou ardil no procedimento. De mais a mais, a pessoa

jurídica contribuinte mantinha escorreita escrituração fi scal e apresentou todos

os documentos solicitados por ocasião da autuação fi scal.

Sendo assim, na minha compreensão, não há nos autos elementos ou dados

inequívocos bastantes a demonstrar que a supressão ou redução do tributo

ocorrera mediante fraude ou falsifi cação. Na realidade, a peça acusatória parece-

me consubstanciada apenas na constituição defi nitiva do crédito tributário,

concluindo o titular da ação penal pública, a partir daí, que a redução dos valores

se deu por meio de uma das condutas listadas no art. 1º da Lei n. 8.137/1990.

Porém, como vimos linhas acima, a existência de dívida de natureza

tributária não implica necessária e automaticamente a confi guração de crime.

A relevância típica da conduta depende da constatação de que o agente

atuou com consciência e vontade de causar prejuízos ao erário público. Deve

o titular da ação penal pública, portanto, demonstrar que o sujeito ativo atuou

para evitar, fraudulentamente, o pagamento do tributo que sabia devido.

Repito, o mero inadimplemento da obrigação tributária não confi gura

crime, mas somente um ilícito tributário, parecendo-me importante apartar,

na seara do direito penal da culpabilidade, os conceitos de inadimplência e de

sonegação.

Na dúvida, o dolo não pode ser presumido, pois isso signifi caria atribuir

responsabilidade penal ao contribuinte apenas inadimplente.

Diante desse cenário, “pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que

tampouco existe crime quando o agente encontra-se em erro, equivocando-se

na interpretação e aplicação das normas tributárias que instituem e regulam a

obrigação de pagar” (BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal

Econômico. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 730)

Page 36: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

852

Ainda sobre o assunto, extraio dos autos que a interpretação da legislação

tributária acerca da matéria não é pacífi ca sequer no âmbito da Secretaria de

Fazenda Estadual, tanto que em 24 de maio de 2014 – após a apresentação

de resposta à acusação na ação penal em desfi le – o Tribunal Administrativo

Tributário de Pernambuco reconheceu a ilegalidade do “procedimento do Fisco

de agregar o percentual de 38,89% ao preço do serviço praticado” (e-STJ fl .

1.175).

Nesse caminhar, entendo que mencionada Comunicação ao Ministério

Público cuida de mera divergência de interpretação da legislação tributária no

tocante ao método de cálculo do tributo a ser recolhido pela companhia.

Com efeito, não confi gura declaração falsa, nos moldes do art. 1º, inciso

I, da Lei n. 8.137/1990, aquela que, envolvendo de algum modo o signifi cado

jurídico tributário de algum fato, atribua a este fato um signifi cado diverso

daquele que lhe atribui a autoridade da administração tributária. A falsidade

relaciona-se ao fato e não ao signifi cado jurídico dele.

Portanto, não havendo previsão para a punição do crime em desfi le na

modalidade culposa e não demonstrado o elemento subjetivo necessário para

a caracterização do ilícito em tela, já que atuaram os pacientes com base em

interpretação equivocada da legislação tributária sobre o tema – objeto de

decisões confl itantes do âmbito da própria Secretaria de Fazenda – é inviável

a perfeita subsunção da conduta ao delito previsto no art. 1º, inciso I, da Lei n.

8.137/1990.

A propósito, a lição de Luiz Regis Prado:

A conduta típica descrita no artigo 1º, caput, consiste em suprimir ou reduzir

tributo, ou contribuição social e qualquer acessório. Nos cinco incisos seguinte

são destacadas as várias modalidades pelas quais isso pode ocorrer, de forma

que somente há crime contra a ordem tributária se o agente realiza qualquer das

condutas mencionadas. Portanto, não é sufi ciente para a confi guração do tipo a

supressão ou redução do tributo, mas exige-se também que sejam consequência de

um comportamento anterior fraudulento. (Direito Penal Econômico. 4ª ed. Revista

dos Tribunais: São Paulo, 2011. p. 275.)

O referido autor, ao tratar especifi camente da omissão e da declaração falsa

descritas no inciso I do artigo 1º da Lei n. 8.137/1990, deixa claro:

Na primeira hipótese, tem-se como fi gura típica a omissão de informação,

entendida como qualquer dado considerado relevante do ponto de vista

Page 37: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 853

tributário, por ser gerador de uma obrigação tributária, seja ela principal ou

acessória; na segunda, tem-se a declaração falsa, a infi rmação inverídica, que

não condiz com a realidade dos fatos. Em ambos os casos é indispensável que o

sujeito ativo viole o dever jurídico de prestar informações verdadeiras às autoridades

fazendárias, expresso em norma tributária, que a falsidade seja capaz de enganar

ou que a informação omitida seja relevante, de modo a implicar a supressão ou

redução do tributo devido, e que tenha por objeto dado relacionado ao fato gerador,

seja no tocante ao seu surgimento, seja com relação ao quantum da obrigação

tributária. Não confi gura declaração falsa aquela que, envolvendo de alguma forma

o signifi cado jurídico de um fato, atribua a este um signifi cado diverso daquele que

lhe atribui a autoridade fazendária.

Com o objetivo de esclarecer inteiramente a questão, colaciono estes

precedentes do Superior Tribunal de Justiça:

Habeas corpus substituto de recurso próprio. Inadequação da via eleita. Crime

contra a ordem tributária. Recolhimento de ICMS em operações interestaduais.

Incentivo fiscal concedido pelo Estado de origem. Não reconhecimento do

benefício pelo Estado destinatário das mercadorias. Contexto de guerra fi scal

entre Estados Federados. Lançamento exato de crédito de ICMS com base em lei

estadual presumidamente válida. Posterior declaração de inconstitucionalidade

da lei estadual pelo Supremo Tribunal Federal. Ausência do dolo de fraudar no

momento dos lançamentos. Atipicidade da conduta. Constrangimento ilegal

confi gurado. Trancamento da ação penal. Habeas corpus não conhecido. Ordem

concedida de ofício.

[...]

3. Hipótese em que o paciente foi acusado de sonegar tributo estadual devido

ao Estado de São Paulo, na medida em que teria inserido, em suas escriturações,

entre abril de 2005 e dezembro de 2006, créditos de ICMS não reconhecidos por

esse ente federativo, no valor de R$ 744.146,79, decorrentes de incentivos fi scais

concedidos pelo Estado do Paraná, com base nos art. 2º, § 2º e art. 4º, ambos da

Lei estadual n. 13.212, de 29/6/2001, desse ente estatal.

4. O crime previsto no art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/1990 exige o elemento subjetivo

doloso para a sua confi guração, consistente na efetiva vontade de fraudar o fi sco,

mediante omissão ou declaração falsa às autoridades fazendárias, com o fi m de

suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social.

5. No contexto da chamada “guerra fi scal”, o creditamento de ICMS realizado

pelo contribuinte, com base em benefício fi scal previsto em lei vigente, utilizando-

se de lançamentos exatos, afasta o dolo necessário para a confi guração do ilícito

previsto no art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/1990, pois, nessa hipótese, não há falar em

meio fraudulento para reduzir ou suprimir tributos. Precedentes.

Page 38: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

854

6. A superveniente declaração de inconstitucionalidade da Lei 13.212/2001,

do Estado do Paraná, pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 2.548-1/PR), não retira

a boa-fé do paciente por ocasião dos lançamentos realizados entre abril de 2005

e dezembro de 2006, pois são anteriores à publicidade do acórdão proferido

na referida ação direta de inconstitucionalidade. Com efeito, não obstante

a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo produza, em

regra, efeitos ex tunc, a qual não foi excepcionada no julgamento da referida

ADI, importa considerar que a conduta do paciente pautou-se no princípio

da presunção de legitimidade (ou da constitucionalidade) da lei e dos atos

normativos do Poder Público.

7. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para reconhecer

a atipicidade da conduta imputada ao paciente na ação penal n. 0000671-

90.2013.8.26.0576 e determinar o seu trancamento.

(HC 326.959/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma,

julgado em 01/09/2016, DJe 06/09/2016, grifei.)

Habeas corpus. Sonegação fiscal. Fraude. Elemento do tipo. Inexistência.

Modalidade culposa. Ausência de previsão legal. Atipicidade da conduta. Ordem

concedida.

1. O legislador ordinário, ao descrever abstratamente o crime de sonegação fi scal,

não previu a possibilidade de sua punição pela forma culposa, restringindo-o à regra

prevista no artigo 18, parágrafo único, do Código Penal, segundo o qual “salvo os

casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão

quando o pratica dolosamente”.

2. Para que o delito em comento se caracterize, não basta que o agente

obtenha a redução ou supressão do tributo, mas que tal desiderato tenha sido

alcançado mediante a utilização de um artifício fraudulento, seja por meio da

omissão de um dever de informação que lhe é imposto, ou pela declaração de

informações falsas à autoridade fazendária.

3. Sem que seja necessário o revolvimento do conjunto probatório, constata-se

que, assim como reconhecido pelo próprio Conselho de Contribuintes, a conduta do

paciente, embora tenha importado na supressão ou redução de tributo devido, não

foi praticada com o dolo necessário para a caracterização do ilícito em tela, já que

atuou mediante um conceito equivocado sobre o fato gerador da exação devida, e

não se negou em prestar as informações necessárias para a correta quantifi cação do

tributo.

4. Ordem concedida para reconhecer a atipicidade penal da conduta atribuída

ao paciente, determinando-se o trancamento da ação penal defl agrada.

(HC 135.426/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Rel. p/ Acórdão Ministro Jorge Mussi,

Quinta Turma, julgado em 26/02/2013, DJe 18/04/2013, grifei.)

Page 39: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 855

Habeas corpus. Erro de interpretação da lei tributária. Ausência de fraude.

1. A errônea exegese da lei tributária quanto ao cálculo correto do ICMS no

lançamento de crédito, em face da diferença de alíquotas praticadas no Estado

de destino e no de origem, ausente o elemento fraude, não confi gura a infração

tipifi cada no art. 1º, incisos I e II, da Lei n. 8.137/90.

2. A segurança jurídica não pode nem deve permitir que simples desencontros

interpretativos, ocorrentes muitas vezes até mesmo nas altas esferas do Judiciário

sirvam de pretexto para acionamento da Justiça Criminal, como meio rápido, efi caz e

expedito de incrementar as receitas governamentais.

3. Na operação não houve fraude nem inserção de elementos inexatos em

documentos, mas mero aproveitamento de créditos de ICMS decorrentes de

transações interestaduais.

4. Ordem concedida.

(RHC 7.798/PR, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Sexta Turma, julgado em

25/05/1999, DJ 14/06/1999, p. 227, grifei.)

Sobremais, os documentos acostados ao processo demonstram que foram

opostos embargos à execução com o objetivo de questionar o método de

cálculo empregado pela autoridade fi scal. Como vimos dos esclarecimentos

acima, foi oferecida e aceita garantia integral sobre os valores devidos. Tal o

quadro, comprovado que o tributo era realmente devido, a mencionada garantia,

após o trânsito em julgado da decisão, será entregue à Fazenda Pública – art.

32, § 2º, da Lei n. 6.830/1980. Diante dessas circunstância, notadamente

considerando a orientação desta Casa fi rmada no sentido de que o pagamento

integral do tributo é causa extintiva da punibilidade, não encontro motivos

para o prosseguimento da persecução criminal, pois, diante da garantia integral

dos valores, qualquer solução alcançada no juízo cível acarretará a extinção da

presente demanda criminal.

No mesmo sentido:

Habeas corpus. Crime contra a ordem tributária. Inépcia e falta de justa causa.

Denúncia que descreve fatos típicos de forma a permitir o exercício do direito

de defesa. Investigação iniciada pelo Ministério Público e falta de inquirição dos

acusados. Prescindibilidade para o oferecimento da denúncia. Comprovação

de que os pacientes eram os ordenadores dos documentos fi scais da empresa.

Exame aprofundado do conjunto fático-probatório. Inadequação da via eleita.

Autos de infração contestados em juízo. Garantia integral dos valores devidos.

Trancamento da ação penal. Ordem concedida.

Page 40: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

856

1. Não é inepta a denúncia que apresenta o nexo de causalidade entre o

crime praticado e a conduta dos pacientes, que, na condição de ordenadores

dos documentos fi scais e contábeis da sociedade anônima, determinaram ou se

omitiram de forma a permitir que ocorresse a fraude na fi scalização por meio de

inserção de elementos inexatos em livro fi scal.

2. A denúncia aponta com clareza as infrações cometidas e o liame entre elas

e as condutas dos pacientes que, na qualidade de diretores de sujeitos passivos

de obrigação tributária da empresa, “fraudaram a fi scalização tributária inserindo

elementos inexatos em livro fi scal” e “deixaram de recolher valores a título de

tributo (ICMS - Imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços e acessórios)

totalizando R$ 72.866.995,14 (setenta e dois milhões, oitocentos e sessenta e seis

mil, novecentos e noventa e cinco reais e quatorze centavos)”, de modo a permitir

o pleno exercício da defesa.

3. Nos crimes societários, de autoria coletiva, a doutrina e a jurisprudência têm

procurado abrandar o rigor do disposto no art. 41 do Código de Processo Penal,

dada a natureza dessas infrações, quando nem sempre é possível, na fase de

formulação da peça acusatória, operar a uma descrição detalhada da atuação de

cada um dos denunciados.

4. Verifi cando o dominus litis a materialidade do delito e os indícios sufi cientes

de autoria, deve ele, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, oferecer a

denúncia, que prescinde da prévia instauração de inquérito policial.

5. A alegação de não ter sido comprovado que os pacientes ‘eram os

ordenadores dos documentos fi scais e contábeis da empresa’ requer o exame

aprofundado do conjunto fático-probatório, procedimento vedado na estreita via

do habeas corpus.

6. Diante das peculiaridades do caso concreto em que foram oferecidas garantias

integrais sobre os valores devidos, garantias estas aceitas pelo Juízo e pela Fazenda

Pública, não se justifi ca a manutenção do processo criminal, pois em qualquer das

soluções a que se chegue no juízo cível ocorrerá a extinção da ação penal.

7. Habeas corpus concedido.

(HC 155.117/ES, Rel. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador Convocado

do TJ/CE), Sexta Turma, julgado em 09/02/2010, DJe 03/05/2010, grifei.)

Passo, por derradeiro, à alegação de inexistência de elementos bastantes a

respaldar a imputação do crime descrito no art. 288 do Código Penal.

Um registro: o tema em análise não foi abordado nas razões do remédio

constitucional impetrado nesta Casa. Os impetrantes somente mencionaram

o assunto ao descreverem os pedidos formulados perante a Corte Estadual

(e-STJ fl . 7). Entrementes, considerando o pedido fi nal redigido pela defesa –

Page 41: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 857

trancamento da Ação Penal n. 0007676-60.2014.8.17.0001 –, passo à análise da

questão no intuito de perquirir a existência de constrangimento ilegal.

Como bem destaca Rogério Sanches da Cunha, o art. 288 do Código

Penal pune a associação de três ou mais pessoas para o fim específico de

cometer crimes. Associar-se signifi ca reunir-se em sociedade para determinado

objetivo, havendo uma vinculação sólida, quanto à estrutura, e durável, quanto

ao tempo. A fi nalidade da associação criminosa deve ser a prática de crimes

indeterminados. O elemento subjetivo especial do injusto é justamente a

fi nalidade de cometer crimes, sem a qual o delito não se confi gura. Por fi m, o

delito se consuma, em relação aos fundadores, no momento em que aperfeiçoada

a convergência de vontades entre ao menos três pessoas e, quanto àqueles que

venham posteriormente integrar o grupo, na adesão de cada qual (Manual de

Direito Penal: Parte Especial. 7ª Edição. Editora Juspodivm: Salvador, 2015, p.

621).

Consoante se depreende dos precedentes tópicos da inicial, o órgão

acusatório imputou aos pacientes a conduta de fraudar a Fazenda Estadual por

meio da apresentação de declaração inverídica de modo a suprimir tributos.

Narrou a falta de destaque e de recolhimento de ICMS em prestações de

serviços de telecomunicação legalmente tributadas, importando a redução do

pagamento do imposto mencionado no valor de R$ 2.839.880,19 (dois milhões,

oitocentos e trinta e nove mil, oitocentos e oitenta reais e dezenove centavos).

Esclareceu que os lançamentos das saídas tributadas como isentas no Livro de

Registro de Apuração foram constatados pela análise das prestações realizadas

no exercício de 2006, resultando em supressão de tributo em detrimento aos

cofres estaduais.

Observem: o denunciante não minudencia a associação efetiva, tampouco

o vínculo permanente de cada um dos membros com o grupo. Lendo e relendo

a denúncia verifi co que a inicial apenas se refere ao crime previsto no art. 288 do

Código Penal no momento da capitulação legal, porém sem descrevê-lo, ainda

que sucintamente. A peça acusatória, sabemos todos, há de ser uma exposição

narrativa e demonstrativa, apresentando de forma “clara e completa a acusação,

que deve ser formulada de modo que possa o réu contrapor-se a seus termos. É

essencial, portanto, a descrição do fato delituoso em todas as suas circunstâncias.

Uma descrição incompleta, dúbia, ou que não seja de um fato típico penal gera

a inépcia da denúncia e nulidade do processo. Para que alguém possa preparar

e realizar sua defesa é preciso que esteja claramente descrito o fato de que deve

Page 42: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

858

defender-se” (Vicente Greco Filho. Manual de Processo Penal. São Paulo:

Saraiva, p. 64). Nesse contexto, é evidente a nulidade da incoativa.

A título de amostragem, colaciono estes precedentes:

Processual Penal e Penal. Habeas corpus. Substitutivo de recurso especial,

ordinário ou de revisão criminal. Não cabimento. Art. 121, § 2º, incisos I, III e IV, do

Código Penal; art. 121, § 2º, incisos I, III e IV, c/c art. 14, inciso II, ambos do Código

Penal; art. 163, parágrafo único, inciso II e art. 288, ambos do Código Penal, na

forma do art. 69 do referido diploma legal e art. 1º, inciso I, da Lei n. 8.072/90.

Autoria coletiva. Inicial acusatória que não descreve minimamente as condutas

imputadas ao réu. Inépcia da denúncia. Concessão de ofício da ordem.

[...]

3. Não descrevendo a denúncia o modo de colaboração do réu para os crimes, sem

sequer mencionar seu nome na descrição fática, deixando de demonstrar qual foi o

liame entre a sua conduta e as práticas delituosas a ele imputadas, não se tem por

atendidos os requisitos do art. 41 do CPP, com prejuízo direto ao exercício da defesa,

sendo reconhecida a inépcia da inicial acusatória.

4. Habeas corpus não conhecido, mas, de ofício, concedida a ordem para

trancar a Ação Penal n. 406.1997.000052-7 em relação ao paciente, diante da

inépcia da denúncia. (HC 161.195/PE, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma,

julgado em 20/10/2015, DJe 06/11/2015)

Penal e Processual Penal. Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Não

conhecimento do writ. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior

Tribunal de Justiça. Trancamento da ação penal. Crimes de esbulho possessório

(art. 161, II, do Código Penal) e formação de quadrilha (art. 288 do Código Penal).

Ausência de justa causa. Superveniência da prescrição da pretensão punitiva,

pela pena em abstrato, quanto ao crime de esbulho possessório. Causa extintiva

da punibilidade. Crime de quadrilha. Ausência de indicação, na denúncia, de

vínculo associativo estável e permanente entre os denunciados. Defi ciência da

narração dos fatos, na inicial acusatória. Constrangimento ilegal demonstrado.

Precedentes. Habeas corpus não conhecido. Concessão da ordem, de ofício.

[...]

VIII. A confi guração típica do crime de quadrilha deriva da conjunção dos seguintes

elementos caracterizadores: a) concurso necessário de, pelo menos, quatro pessoas;

b) fi nalidade específi ca dos agentes, voltada ao cometimento de delitos, e c) exigência

de estabilidade e de permanência da associação criminosa. Diferentemente do

concurso de agentes, que exige, apenas, um ocasional e transitório encontro de

vontades para a prática de determinado crime, a confi guração do delito de quadrilha

pressupõe a estabilidade ou permanência do vínculo associativo, com o fim de

prática de delitos.

Page 43: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 859

IX. O crime de formação e quadrilha ou bando é delito formal, que se consuma

com a reunião ou a associação do grupo, de forma permanente e estável, para

a prática de crimes, e independentemente do cometimento de algum dos crimes

acordados pelos membros do bando, tendo em vista que a convergência de vontades

já apresenta perigo sufi ciente para conturbar a paz pública.

X. Na hipótese, entretanto, não restou minimamente evidenciada, na inicial

acusatória, a existência do crime de quadrilha, à míngua de elementos que

demonstrassem a existência de vínculo associativo estável e permanente entre os

denunciados, com o fi to de delinquir.

XI. Ordem não conhecida.

XII. Concessão da ordem, de ofício, para declarar extinta a punibilidade dos

pacientes, quanto ao delito de esbulho possessório, e reconhecer a inépcia da

denúncia, relativamente ao crime de quadrilha, anulando a inicial acusatória

da Ação Penal 250-53.2010.8.10.0026, em tramitação na 1ª Vara da Comarca de

Balsas/MA, por ausência de justa causa, sem prejuízo de que outra denúncia seja

oferecida, se for o caso, quanto ao delito de quadrilha, atendidos os requisitos do

art. 41 do CPP. (HC 186.197/MA, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Sexta Turma,

julgado em 28/05/2013, DJe 17/06/2013) (grifei)

Diante dessas considerações, concedo a ordem para determinar o trancamento

da Ação Penal n. 0007676-60.2014.8.17.0001 relativamente aos pacientes

Ronaldo Iabrudi dos Santos Pereira, Luiz Eduardo Falco Pires Correa, Jose Luis

Magalhaes Salazar, Julio Cesar Pinto e Paulo Altmayer Goncalves.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 445.325-SP (2018/0084444-8)

Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz

Impetrante: Josimary Rocha de Vilhena

Advogados: Josimary Rocha de Vilhena - SP334889

Aline Cristina de Lima Higino e outro(s) - DF048543

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Paciente: Angelo Invernizzi Lopes

Page 44: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

860

EMENTA

Habeas corpus. Decisão de desembargador. Súmula n. 691 do

STF. Superação inicial. Concessão de liminar. Ordem denegada na

origem. Interesse de agir. Subsistência. Desvio de verbas públicas.

Salário-educação. Quota municipal. Competência. Justiça Estadual.

Cassada liminar e denegada a ordem.

1. Nos termos do art. 15 da Lei n. 9.424/1996, que regulamenta

o § 5º do art. 212 da Constituição Federal, a receita total do

salário-educação, contribuição social destinada ao fi nanciamento de

programas, projetos e ações voltados para a educação pública básica, é

arrecadada – tão somente arrecadada – pela União, que, após a dedução

de 1% destinada ao INSS, retém imediatamente 10% líquido para, por

meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, fi nanciar

projetos programas e ações da educação básica. Os 90% líquidos

restantes são desdobrados em duas diferentes quotas (uma federal e

outra estadual e municipal) e automaticamente disponibilizados aos

seus respectivos destinatários.

2. Nessa quadra, nem todo numerário entregue aos Estados e

Municípios, pela União, por meio do FNDE, conduz ao inequívoco

interesse direto na sua correta aplicação, de maneira a atrair a

competência da Justiça Federal. Em caso de malversação dos recursos,

há de se observar, por exemplo, a sua origem e até mesmo, em

consectário lógico simples, a qual erário deveram ser restituídos os

valores desviados. Inteligência das Súmulas n. 208 e 209 desta Corte

Superior.

3. Assim, consoante entendimento consolidado pela Terceira

Seção do Superior Tribunal de Justiça, “Uma vez verifi cado que os

recursos supostamente desviados do salário-educação integravam a

quota municipal, sem qualquer repasse por parte dos órgãos federais,

não há que falar em conexão direta entre tais delitos a justifi car o

deslocamento de todo o processo à Justiça Federal. (AgRg no CC n.

145.372/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJ 31/5/2006).

4. Sob essas perspectivas, na situação posta sob exame, embora

seja inequívoco que a verba pública foi repassada à Municipalidade

pelo FUNDEF/FUNDEB, há elementos probatórios a demonstrar,

Page 45: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 861

especialmente na origem, que tais recursos correspondiam à quota

municipal do salário-educação, a fi rmar a competência da Justiça

Estadual para o processamento e o julgamento do suposto desvio do

numerário público em questão.

5. Ordem denegada e cassada a liminar, permitindo-se o

prosseguimento da ação penal perante o juízo estadual competente.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade, denegar a ordem,

cassada a liminar, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros

Nefi Cordeiro, Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior

votaram com o Sr. Ministro Relator. Dr(a). Josimary Rocha de Vilhena, pela

parte paciente: Angelo Invernizzi Lopes.

Brasília (DF), 23 de outubro de 2018 (data do julgamento).

Ministro Rogerio Schietti Cruz, Relator

DJe 31.10.2018

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz: Angelo Invernizzi Lopes alega sofrer

constrangimento ilegal ao seu direito de locomoção, em decorrência da decisão

de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que indeferiu a

medida de urgência postulada no HC n. 2027240-03.2018.8.26.0000.

Busca a impetrante, então, em suma, a superação da Súmula n. 691 do STF, a

fi m de que seja reconhecida a nulidade de “todos os atos praticados até o momento” (fl .

25) na Ação Penal n. 0028396-82.2016.8.26.0000 – Operação Sevandija, núcleo

da Terceirização de Mão-de-Obra (CODERP) – e remetidos os autos à Justiça

Federal, sob a assertiva de que as condutas ilícitas ali imputadas ao paciente teriam

ofendido, em tese, bens e/ou interesses da União, considerada a malversação de verba

advinda do FNDE (quotas do salário-educação – QSE).

Por cautela, concedi a liminar, para sobrestar o andamento do feito na origem,

até o julgamento do mérito deste writ (fl s. 1.142-1.147).

Page 46: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

862

Às fl s. 1.160-1.230, com o intuito de reforçar a tese trazida a baila, a

impetrante colacionou novos documentos.

Com as informações prestadas pelo Juízo de primeiro grau (fl s. 1.233-

1.272), o Ministério Público Federal ofertou parecer pelo não conhecimento do

writ (fl s. 1.275-1.279).

Os corréus Marco Antonio Santos e Layr Luchesi Junior, processados nos

três seguimentos da Operação Sevandija e, portanto, interessados no deslinde da

controvérsia consoante vindicado pela impetrante, apresentaram a estes autos,

respectivamente, os documentos de fl s. 1.284-1.324 e 1.332-1.527.

O Ministério Público estadual, de outra parte, procurou trazer os

esclarecimentos que entendeu pertinentes ao caso. Em síntese, rechaçou com

veemência a tese ventilada pela defesa, insistindo, pois, na competência da Justiça

Estadual. Aduziu que empregadas sim, com desvio, quotas do salário-educação,

mas quotas estaduais e/ou municipais (fl s. 1.650-1.693).

Instado a se manifestar novamente nos autos, haja vista a farta

documentação acostada, o Parquet federal ratifi cou o seu posicionamento pela

inadmissibilidade do habeas corpus e, agora, também pelo desentranhamento e/ou

indeferimento dos pleitos formulados incidentalmente pelos corréus, bem como, no

mérito, pela denegação da ordem (fl s. 1.698-1.714).

Em consulta ao sítio eletrônico da Corte de origem, verifi ca-se que, mesmo

após a concessão da liminar neste writ, a ordem foi denegada no habeas corpus

lá impetrado, a revelar a subsistência do interesse no julgamento do mérito deste

mandamus.

VOTO

O Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz (Relator):

I. Contextualização

Pelo que se afere dos autos, pende sob o paciente a acusação de integrar, com

certo protagonismo – uma vez que ocupava o cargo de Diretor do Departamento

Administrativo da Secretaria de Educação e, posteriormente, o cargo de Secretário

Municipal de Educação –, organização criminosa (art. 2º da Lei n. 12.850/2013)

que teria se associado com o escopo de cometer, para proveito de todos eles,

diversos crimes contra a Administração Pública do Município de Ribeirão Preto,

Page 47: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 863

entre os quais desvio de verba pública, fraudes a licitações, corrupção ativa e

passiva, apuradas no âmbito da nominada Operação Sevandija.

Paira a querela posta neste mandamus, em essência, sobre a origem do

dinheiro público empregado pela Prefeitura de Ribeirão Preto, a partir de sua

Secretaria de Educação, para pagamento dos contratos n. 25/2011, n. 59/2015

e n. 79/2016, fi rmados, por meio de suposta dispensa indevida de licitação, com

a CODERP, o qual, por sua vez, teria servido de substrato f inanceiro para o

pagamento dos contratos n. 84/2012, n. 65/2015 e n. 15/2016, pactuados entre a

referida empresa de economia mista (cujo principal acionista é a Prefeitura de

Ribeirão Preto) e a empresa Atmosphera, a partir, nesta ordem, dos Pregões

Presenciais n. 16/2012, n. 11/2015 e n. 04/2016.

Aduz a impetrante, em síntese, que a verba teria origem nas quotas de

salário-educação repassadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da

Educação, vinculado ao Ministério da Educação, motivação bastante, por si só,

a atrair a competência da Justiça Federal para processamento e julgamento do

feito.

Apesar de a defesa não haver apresentado formalmente exceção de

incompetência do juízo, o Magistrado de origem rejeitou essa preliminar, por

mais de uma vez, quando ventilada. Consoante noticiado nas informações que

prestou ao Tribunal paulista, o reproche que desencadeou a impetração do

habeas corpus na origem ocorreu nos seguintes termos (fl s. 30-32):

Em 30 de outubro de 2017 (fl s. 13.107/13.127) e na audiência de instrução,

realizada em 08 de novembro de 2017 (fl s. 13.933/13.934), a defesa do paciente

requereu, em síntese, que este juízo se declarasse incompetente, remetendo

os presentes autos ao Juízo competente, ou seja, a Justiça Federal, tendo em

vista que as verbas QSE (Salário Educação), mencionadas em depoimento de

uma das testemunhas, ouvida no denominado “Núcleo de Honorários”, possuem

caráter Federal, estando sujeitas à fi scalização pela Controladoria Geral da União –

CGU, por meio do informativo anual SIOPE (Sistema de Orçamentos Públicos da

Educação), sendo proferida decisão por este juízo em 09 de novembro de 2017

(fl s. 13.961/13.962), com os fundamentos a seguir expostos:

Acolho o parecer do Ministério Público e indefi ro o pedido. Com efeito,

nos termos da manifestação do Ministério Público, a quota estadual e

municipal repassada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

por força do art. 15 da Lei n. 9.424/96 integra o orçamento do ente

federado destinatário e, portanto, não é considerada receita da União,

propriamente dita, mas sim, receita estadual e municipal.

Page 48: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

864

Além disso, ontem a corré Maria Lúcia Pandolfo, ao ser interrogada,

foi inquirida por este Juízo a respeito das verbas utilizadas pela Prefeitura

Municipal para pagamento à Coderp, tendo ela esclarecido que diferentes

verbas compunham os pagamentos, ou seja, verbas próprias advindas

de tributos municipais, assim como de repasses estaduais e federais.

Desta forma, entendo que não estamos lidando com verbas federais

propriamente ditas, em que haveria interesse da União em sua eventual

recuperação.

Todas as verbas utilizadas para os pagamentos feitos pela Prefeitura

Municipal à Coderp e esta à Atmosphera eram verbas que integravam a

receita municipal, composta de verbas próprias (tributos municipais) e

repasses dos governos estadual e federal, de tal sorte que a competência para

julgar o feito é da Justiça comum estadual.

Assim, indefi ro o pedido de remessa dos autos à Justiça Federal.

A par dessas informações, o Desembargador relator indeferiu pedido liminar,

similar ao formulado neste writ, porque: a) “a zelosa defensora não aforou

pedido de exceção de incompetência na origem” (fl . 34) e inadequado o uso do

habeas corpus para impugnar decisão em que o Juízo de primeiro grau, de certa

forma, reconheceu sua competência para processar o feito (fl . 34); b) inviável

“no sumário momento de cognição provisória, [...] admitir [...] a incompetência

absoluta do Juízo Estadual” (fl . 33); c) já muito adiantado o curso do processo,

não se mostrando oportuno “postergar o sentenciamento do feito que já se

aproxima” (fl . 33).

Em um juízo perfunctório do caso, e diante do quadro fático-probatório

então apresentado, pareceu-me haver certa plausibilidade jurídica no alegado pela

impetrante e, por conseguinte, possível constrangimento ilegal decorrente da

manutenção da ação penal sob a jurisdição estadual.

A fi m de apreciar o caso com mais vagar e evitar futura anulação de atos

processuais, entendi prudente determinar o sobrestamento do feito na origem,

conforme requerido pela impetrante.

II. Fundamentos para a concessão da liminar

Ressalto, de plano, que não descurei do entendimento pacífi co de que,

“prestigiando o sistema recursal ao tempo que preserva a importância e a

utilidade do writ” (HC n. 320.306/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca,

5ª T., DJe 11/10/2016) –, o Superior Tribunal de Justiça na esteira do que decidiu

a autoridade inquinada coatora e do que vem decidindo o Supremo Tribunal

Page 49: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 865

Federal, também não admite que o remédio constitucional seja utilizado com

substitutivo do meio impugnativo próprio, sobretudo quando o intento é dirimir

questões de índole processual, em clara intervenção precoce do Juízo recursal.

Tampouco me olvidei que o habeas corpus, respeitada a sua autêntica

natureza de ação de impugnação autônoma prevista constitucionalmente,

demanda, para o seu conhecimento, a sua admissibilidade, imprescindível

apresentação, ao Juízo competente para o seu julgamento, de ofensa ou previsão de

ofensa direta – e não simplesmente remota – a direito líquido e certo de liberdade,

o que, nas palavras de Pontes de Miranda, é “aquele que não desperta dúvidas,

que está isento de obscuridades, que não precisa ser aclarado com o exame de

provas em dilações, que é de si mesmo concludente e inconcusso” (História e

prática do habeas corpus, p. 325).

Assinalei que, mesmo se identifi cada a incompetência do Juízo estadual,

os atos praticados não são, de plano, declarados nulos. Ao revés: permanecem

hígidos até que a autoridade reconhecida competente decida sobre a sua

convalidação ou revogação. Nesse sentido, trouxe à colação os seguintes julgados:

[...] As duas Turmas que compõem a Terceira Sessão desta Col. Corte de Justiça,

fi rmaram entendimento no sentido de que a modifi cação da competência não

invalida automaticamente os atos instrutórios já praticados. Assim, é sufi ciente

a remessa dos autos para a autoridade competente, que poderá ratificá-los,

notadamente em razão do disposto no art. 102, I, “c”, da CF e no art. 567, do CPP,

a saber: “a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo

o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente”.

(RHC n. 82.698/MT, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª T., DJe 21/2/2018)

[...] O entendimento - que passou a ser denominado teoria do juízo aparente

- surgiu como fundamento para validar medidas cautelares autorizadas por

Juízo aparentemente competente que, em momento posterior, fora declarado

incompetente. Contudo, a partir do julgamento do HC 83.006/SP (Tribunal Pleno,

Relatora Ministra Ellen Gracie, julgado em 18/6/2006, DJ 29/8/2003), passou-

se a entender que mesmo atos decisórios - naquele caso, a denúncia e o seu

recebimento - emanados de autoridades incompetentes rationae materiae, seriam

ratifi cáveis no juízo competente. Precedentes do STF. (AgRg no HC n. 393.403/TO,

Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 16/2/2018)

Sem embargo, consoante a fi rme jurisprudência desta Corte Superior, de

fato, “Compete à Justiça Federal processar e julgar crime relacionado ao desvio de

verbas provenientes do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE.

Súmula 208/STJ” (HC n. 335.512/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª T., DJe

25/5/2016).

Page 50: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

866

Ademais, nos termos da hodierna jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça:

[...] havendo entre os delitos, no mínimo, uma conexão teleológica e probatória

(art. 76, II e III, do CPP), é recomendável o deslocamento da competência para

[...] a Justiça Federal, em atenção ao enunciado n. 122 da Súmula desta Corte,

segundo a qual “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unifi cado dos

crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do

art. 78, II, ‘a’ do Código de Processo Penal” (CC n. 149.026/CE, Rel. Ministro Reynaldo

Soares da Fonseca, Terceira Seção, DJe 2/3/2017)

Assim, diante de todo esse quadro, malgrado não seja o habeas corpus a via

escorreita para suscitar conflito de competência, tampouco para discutir a

origem dos recursos fi nanceiros em questão e a sua incorporação ou não ao

patrimônio municipal, a proximidade da prolação de sentença, por Juízo que poderia

vir a ser declarado incompetente para o julgamento de alguma ou algumas das

condutas imputadas ao paciente, levou-me a determinar, ad cautelam, a suspensão da

ação penal na origem.

A partir de um minucioso cotejo entre os argumentos embasadores da

pretensão e tudo o mais que dos autos passou a constar, revi a compreensão

inicial, de sorte a propor que a ordem seja denegada e, por conseguinte, cassada a

liminar.

III. Caso concreto

Como já relatado, aduz a impetrante que as condutas imputadas ao paciente

envolveriam a malversação de recursos da União, integrantes do FNDE, a atrair

a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da lide

penal, consoante a pacífi ca jurisprudência desta Corte Superior.

No ponto, insiste a impetrante que “as provas carreadas nos autos originários

em que se aponta o constrangimento ilegal, frisa-se, após o oferecimento da

denúncia e a apresentação da resposta à acusação, deixam claro que os contratos

foram pagos com recursos da União, cuja fi scalização é submetida aos órgãos federais”

(fl . 4).

Alega que “a defesa do Paciente [...] requereu, por meio de certidão pública, via

Sistema Eletrônico do Serviço ao Cidadão, solicitação n. 378 – informação sobre

a existência ou não de verbas federais constantes nos contratos objetos da Ação Penal”

(fl . 5). E ressalta haver respondido “A municipalidade, de forma detalhada, [...]

Page 51: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 867

que a favorecida CODERP Cia de Desenvolvimento Econômico de Ribeirão

Preto no período de 2010 a 2016 utilizou os recursos federais da verba QSE –

quota salário educação – para pagamento dos contratos – objeto da ação penal

em discussão – no valor de R$ 27.070.390,11” (fl . 5).

Exalta a jurisprudência deste Superior Tribunal e também precedentes da

Excelsa Corte, que confi rmam a competência da Justiça Federal para processar

e julgar persecuções penais que envolvam o mau uso, a dilapidação de verba

federal proveniente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação,

vinculado ao Ministério da Educação.

De fato, a compressão resumida no verbete sumular n. 208 desta Corte

Superior é a de que “Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito

municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão

federal”.

No ponto, parte a impetrante, todavia, de premissa equivocada, uma vez que

nem todo numerário entregue aos Estados e Municípios, pela União, por meio do

FNDE conduz ao inequívoco interesse direto na sua correta aplicação, de maneira

a atrair a competência da Justiça Federal. Em caso de malversação dos recursos

há de se observar, por exemplo, a sua origem constitucional e até mesmo,

em consectário lógico simples, a qual erário devem ser restituídos os valores

desviados.

Com efeito, o salário-educação é uma contribuição social destinada ao

fi nanciamento de programas, projetos e ações voltados para a educação pública

básica, prevista no § 5º do art. 212 da Constituição Federal, que assim dispõe:

Art. 212. [...]

§ 5º. A educação básica pública terá como fonte adicional de fi nanciamento a

contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.

Nos termos do art. 15 da Lei n. 9.424/1996, que regulamenta esse

mandamento constitucional, a receita total dessa contribuição social é arrecadada

– tão somente arrecadada – pela União, que, após a dedução de 1% destinada ao

INSS, retém imediatamente 10% líquido para, por meio do Fundo Nacional

de Desenvolvimento da Educação, fi nanciar projetos programas e ações da

educação básica. Os 90% líquidos restantes são desdobrados em duas diferentes

quotas (uma federal e outra estadual e municipal) e automaticamente disponibilizados

aos seus respectivos destinatários, na seguinte proporção:

Page 52: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

868

Art. 15.

[...]

I – Quota Federal, correspondente a um terço do montante de recursos, que será

destinada ao FNDE e aplicada no fi nanciamento de programas e projetos voltados

para a universalização do ensino fundamental, de forma a propiciar a redução

dos desníveis sócio-educacionais existentes entre Municípios, Estados, Distrito

Federal e regiões brasileiras;

II – Quota Estadual e Municipal, correspondente a 2/3 (dois terços) do montante

de recursos, que será creditada mensal e automaticamente em favor das Secretarias

de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para fi nanciamento

de programas, projetos e ações do ensino fundamental.

Assim, tanto os referidos 10% do total líquido da contribuição social em

questão quanto a quota federal correspondente a 1/3 dos 90% líquidos restantes

integram receita da União. Constitui, pois, inequivocamente, verba federal,

sujeita a fi scalização dos órgãos públicos federais competentes, inclusive quando

“doadas” aos demais entes da Federação para aplicação em projetos específi cos.

A quota estadual e municipal do salário-educação, por sua vez, nos termos

do que dispõe o § 6º do art. 212 da Constituição Federal, regulamentado

pelo art. 2º da Lei n. 9.766/1998, será distribuída proporcionalmente ao número

de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino,

conforme apurado pelo censo educacional realizado pelo Ministério da

Educação. E, consoante o Decreto-Lei n. 1.805/1980, que dispõe sobre as

transferências aos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios das parcelas ou

quotas-partes dos recursos tributários arrecadados pela União, esses recursos “ser-

lhes-ão automaticamente entregues pelo Banco do Brasil S.A., observados os

percentuais de distribuição ou índices de rateio defi nidos pelos órgãos federais

competentes (art. 1º).

Estabelece, ainda, o Decreto-Lei n. 1.805/1980 que:

Art. 2º Os órgãos federais responsáveis pela fixação das alíquotas ou

percentagens dos fundos ou transferências, a que se refere o artigo anterior,

comunicarão ao Banco do Brasil S.A, até o último dia útil do mês ou do trimestre

seguinte ao do recolhimento, conforme o caso, os percentuais de distribuição ou

índices de rateio atribuídos aos Estados, ao Distrito Federal, aos Territórios e aos

Municípios.

§ 1º Recebida a comunicação de que trata este artigo, o Banco do Brasil S.A.

creditará, imediatamente, nas contas especiais nele mantidas pelas entidades

credoras, as quantias devidas com base nos respectivos percentuais de distribuição

ou índices de rateio.

Page 53: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 869

[...]

Art. 3º Na aplicação dos recursos provenientes das parcelas ou quotas-partes

de que trata este Decreto-Lei, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios e os

Municípios respeitarão exclusivamente as vinculações a funções de Governo previstas

na legislação específi ca, observadas as peculiaridades locais e as normas, diretrizes

e prioridades estabelecidas pela Presidência da República.

[...]

Art. 4º A fi scalização da entrega, às entidades credoras, dos recursos de que

trata este Decreto-Lei será feita pelo Tribunal de Contas da União [...].

[...]

Art. 6º A fi scalização da aplicação dos recursos de que trata este Decreto-Lei será

exercida pelo órgão legislativo competente com o auxílio:

I - dos Tribunais de Contas dos Estados, ou dos Conselhos de Contas dos

Municípios, quando houver, ou, ainda, dos Tribunais de Contas Municipais,

consoante o disposto nos artigos 13, item IV, e parágrafos, da Constituição

Nessa quadra, o Superior Tribunal de Justiça também tem entendimento

consolidado em Súmula, a de n. 209, segundo a qual “Compete à Justiça Estadual

processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao

patrimônio municipal”.

Veja-se, ilustrativamente, a ementa do CC n. 13.574/RS que, julgado pela

3ª Seção deste Superior Tribunal, em 26/9/1995, sob a relatoria do Ministro Cid

Flaquer Scartezzini, entre outros, deu origem à edição do enunciado em questão,

há 23 anos:

Compete ao Tribunal de Justiça do Estado apreciar e julgar originariamente,

os crimes de malversação de verba publica praticado por ex-prefeito municipal no

exercicio da função.

Como bem relembrado naquela oportunidade:

“O entendimento já pacificado desta eg. Corte é no sentido de que,

havendo a verba federal sido repassada ao município, a ele compete geri-la e

fi scalizá-la, bem como responsabilizar os que deram a ela destino diverso do

que o devido, o que implica na competência da Justiça Comum estadual para

apuração dos possíveis crimes” (DJ 23/10/1995).

Trago, ainda, à colação julgado mais recente, também da Terceira Seção

desta Corte Superior, a demonstrar a persistência do entendimento:

Page 54: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

870

[...] Uma vez verificado que os recursos supostamente desviados do salário-

educação integravam a quota municipal, sem qualquer repasse por parte dos

órgãos federais, não há que falar em conexão direta entre tais delitos a justifi car o

deslocamento de todo o processo à Justiça Federal. (AgRg no CC n. 145.372/RS, Rel.

Ministro Nefi Cordeiro, Terceira Seção, DJ 31/5/2016)

Desse mesmo valioso precedente, extraio o seguinte trecho, de relevo para o

deslinde da controvérsia posta neste mandamus: “o desvio de verbas provenientes

do salário-educação, as quais, apesar de serem arrecadadas pela Receita Federal

do Brasil, por força do art. 15 da Lei n. 9.424/96 integra o orçamento do ente

federado destinatário e, portanto, não é considerada receita da União (art. 2º, inciso

IV, alínea a, da LC 101/00), mas receita estadual e municipal”.

No ponto, ressalto apenas que tal numerário, de fato, não é aglutinado

a todo o orçamento municipal, pois não é de livre aplicação; sua destinação

é o investimento em ações voltadas à educação básica. De toda forma, em

caso de não utilização do numerário naquele ano, os recursos permanecem

depositados na conta especial, isto é, continuam à disposição da municipalidade

para aplicação no ano seguinte; não voltam para a União.

O TCU, inclusive, tem entendimento consolidado de que a competência

de fi scalização da União recai tão somente sobre a quota federal de 1/3 do salário

educação; sobre os 2/3 da quota estadual e municipal, à União cabe fi scalização tão

somente da entrega desse montante à respectiva esfera benefi ciada. Com o aporte

desses recursos nos cofres públicos pertinentes, cabe aos Tribunais de Contas

dos Estados, aos Conselhos de Contas dos Municípios, quando existentes, e/ou

aos Tribunais de Contas Municipais, auxiliar o órgão legislativo competente no

supervisionamento da devida aplicação desses recursos.

Nesse sentido, à guisa de exemplo (grifei):

Tomada de contas especial. Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande

do Sul. Prefeitura Municipal de Canoas/RS. Aquisição de uniformes escolares.

Irregularidades. Recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

FNDE. Processo arquivado sem julgamento do mérito. Unanimidade.

1. A matéria encaminhada não se insere na competência do Tribunal de

Contas da União, uma vez que os valores utilizados para o custeio do objeto em

questão correspondem ou a recursos oriundos do tesouro do próprio município

(Fonte 0001) ou à quota municipal de 2/3 do salário educação que, transferida

automaticamente pelo FNDE, passa a integrar o patrimônio municipal (Fonte

1006);

Page 55: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 871

2. Consoante os termos da Decisão 51/2002-TCU-Plenário e do Decreto-Lei

1.805/80, os recursos provenientes da Fonte 1006 são estaduais ou municipais,

a depender da esfera beneficiária, cuja fiscalização compete ao respectivo

tribunal de contas;

3. Ainda em conformidade com a Decisão 51/2002-TCU-Plenário, a

competência de fiscalização da União recai sobre a quota federal de 1/3 do

salário educação e, sobre os 2/3 da quota estadual e municipal, realiza-se tão

somente a fi scalização de entrega desse recursos aos respectivos credors, estados

e municípios, mas não quanto à destinação final desses recursos no âmbito da

esfera benefi ciária da transferência automática, consoante disposto no art. 4º do

Decreto-Lei 1.805/80. (Acórdão n. 3.173/2014, Plenário/TCU, Rel. Ministro Bruno

Dantas, sessão de 19/11/2014).

Nesse diapasão, há de se ressaltar: embora a malversação de verbas

complementares, oriundas do FUNDEF/FUNDEB, acarrete a competência

da Justiça Federal, havendo, na origem, elementos a demonstrar que os recursos

supostamente desviados do salário-educação correspondiam à quota municipal, é da

competência da Justiça Estadual o processamento e julgamento do suposto desvio

dessas verbas.

Diante desse quadro, na situação posta sob exame, não identifi co ilegalidade no

processamento e julgamento da causa pela Justiça Estadual, se os recursos supostamente

desviados não foram transferidos voluntariamente pelo FNDE à Municipalidade

a partir da quota federal do salário-educação – ou de outra fonte de recursos

federais –, mas transferidos por constituírem um direito, constitucionalmente

previsto, a uma quota-parte da contribuição social estabelecida no § 5º do art. 212

da Constituição Federal.

E, consoante as informações prestadas a esta Corte Superior, esclareceu o

Juízo de primeiro grau – com a propriedade que lhe compete na imersão vertical

sobre fatos e provas, incabível nesta ação constitucional de cognição sumária

–, que (fl s. 1.238-1.239, acompanhada dos documentos de fl s. 1.263-1.271,

destaquei):

[...] as testemunhas Carmem Lúcia Gouveia Zeoti e Rosemeire Buosi,

(funcionárias da Secretaria Municipal da Fazenda, ouvidas em Juízo no dia

27/07/2017), ao serem inquiridas a respeito de quais verbas eram utilizadas nos

pagamentos realizados à CODERP, afi rmaram expressamente que as notas fi scais

emitidas pela CODERP eram pagas com recursos próprios (ou seja, do Município)

e recursos estaduais (fl s. 8.811/8.819), conforme depoimentos abaixo transcritos:

Testemunha de acusação Carmem Lúcia Gouveia Zeoti:

Page 56: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

872

[...] Tinha recurso do ensino, com recurso próprio, da receita de impostos,

e também tinha do Estado, com o QESE. Então pagava uma parte com

recurso próprio da Prefeitura, da educação, e o recurso do Estado, QESE.

Testemunha de acusação Rosemeire Buosi:

[...] Como já vinha liquidado dentro do recurso, muitas vezes,

normalmente, da Prefeitura o volume era pequeno, que era recurso próprio,

só podia sair do recurso próprio, os tributos municipais. Mas, dentro

desse montante, tinha notas da educação, que saía do recurso próprio da

educação, que seria os 25% que a Prefeitura, por lei, tem que depositar na

conta da educação. Tem o recurso do QESE e, normalmente, do Federal

não saía. Geralmente pagava sempre com esses recursos, municipais e

estaduais.

Na data de 11 de maio de 2018, o Ministério Público juntou aos autos cópia

do requerimento que formulou junto à Secretaria Municipal de Assuntos Jurídicos

pedindo informações a respeito das verbas do Salário Educação que foram utilizadas

para pagamento dos contratos 25/11, 59/15, 79/16, fi rmados entre a Secretaria da

Educação e a CODERP, tendo o Secretário Municipal da Fazenda (Manoel de Jesus

Gonçalves) e a Diretora do Departamento de Despesa e Orçamento da Prefeitura

Municipal de Ribeirão Preto (Ednéa Eliana dos Santos), informado que nos três

contratos acima referidos foram utilizadas apenas Recursos Municipais e

Quota Estadual do Salário Educação-QESE da Lei n. 10013/1998, não havendo

uso ou mesmo recebimento da Quota Federal do Salário Educação, (que

corresponde a 1/3 dos recursos gerados em todas as Unidades Federadas, o qual é

mantido no FNDE, que o aplica no fi nanciamento de programas e projetos voltados

para a educação básica), não havendo, nos três contratos acima referidos, prestação

de contas per ante o Tribunal de Contas da União, sendo que as contas foram

prestadas exclusivamente ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

Note-se Sr. Ministro, que não havia convênio específico ou projeto

desenvolvido pelo Município com verbas Federais e que estivessem sujeitos à

prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União-TCU.

S.M.J. os repasses obrigatórios (artigo 212 da Constituição Federal) do Salário-

Educação, recolhido ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação-FNDE

feitos aos Estados e Municípios (Quota Estadual e Municipal) fi cam sujeitos à

fi scalização do Tribunal de Contas do Estado ou do município, onde houver e aos

órgãos do Ministério Público estadual.

Segundo a Súmula 208 do STJ, somente será da competência da Justiça

Federal, quando houver desvio de verba sujeita a prestação de contas perante

órgão Federal, o que, S.M.J., não é a hipótese dos autos.

[...]

Page 57: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 873

Concluo, portanto, pela sufi ciência de elementos de convicção a atestar

a competência da Justiça Estadual para processar e julgar a ação penal a que se

refere este writ.

IV. Dispositivo

À vista do exposto, casso a liminar concedida e denego a ordem.

RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 95.595-PR (2018/0050896-0)

Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior

Recorrente: Alex Sandro Magalhaes dos Santos

Advogado: Fernando Jorgeto da Silva - PR076369

Recorrido: Ministério Público Federal

EMENTA

Recurso em habeas corpus. Operação fronteira/resposta integrada.

Roubos com emprego de arma de fogo e em concurso de agentes,

latrocínio, sequestro ou cárcere privado. Crimes iniciados por

brasileiro(s) no exterior (Paraguai) e continuados em solo pátrio

com prática de novos crimes graves. Alegação de incompetência da

Justiça Federal nacional e de negativa de prestação jurisdicional. Não

ocorrência. Parecer acolhido.

1. Caso em que o Juízo Federal julgou improcedente a exceção

de incompetência arguida pela defesa do ora recorrente, acusado de

praticar os crimes tipifi cados nos arts. 157, § 3º, e 7º, II, b (roubo

circunstanciado e latrocínio) e 148 (sequestro ou cárcere privado), do

Código Penal, ao fundamento de que os fatos praticados no Brasil,

enquanto desdobramentos do latrocínio inicialmente perpetrado no

Paraguai, justifi cariam a fi xação da competência na Justiça Federal

de Foz do Iguaçu/PR, com jurisdição sobre os locais onde se deram

os aludidos confrontos e a prática das outras infrações (art. 70 do

Page 58: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

874

CPP). Também motivou seu decisum na existência de conexão entre

os crimes supostamente praticados pelo recorrente e pelos corréus

(art. 76, I, II, e III, do CPP), devendo ainda ser avaliada a questão

da continência, pois todos os acusados nos autos da ação penal são

acusados pela mesma infração (art. 77, I, do CPP).

2. Diante do complexo contexto dos fatos que deram ensejo à

ação penal, não há falar em negativa de prestação jurisdicional por não

ter o Tribunal a quo conhecido do writ ajuizado para questionar aquele

decisum. De fato, a ilegalidade apta a justifi car a impetração do habeas

corpus deve ser manifesta, de constatação evidente, restringindo-

se a questões de direito que não demandem incursão no acervo

probatório constante de ação penal. E, na espécie, para se concluir pela

incompetência da Justiça Federal de Foz do Iguaçu seria imprescindível

o revolvimento de fatos e de provas.

3. No caso, não há constrangimento ilegal evidente, pois há

jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça dispondo que aplica-se

a extraterritorialidade prevista no art. 7º, inciso II, alínea b, e § 2º, alínea

a, do Código Penal, se o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro

e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional e que o crime

cometido, no estrangeiro, contra brasileiro ou por brasileiro, é da competência

da Justiça Brasileira e, nesta, da Justiça Federal, a teor da norma inserta

no inciso IV do artigo 109 da Constituição Federal, por força dos princípios

da personalidade e da defesa, que, ao lado do princípio da justiça universal,

informam a extraterritorialidade da lei penal brasileira (Código Penal,

artigo 7º, inciso II, alínea b, e parágrafo 3º) e são, em ultima ratio,

expressões da necessidade do Estado de proteger e tutelar, de modo especial,

certos bens e interesses.

4. Recurso em habeas corpus improvido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário nos termos do voto do

Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Rogerio Schietti Cruz, Nefi Cordeiro,

Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

Page 59: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 875

Sustentou oralmente o Dr. Fernando Jorgeto da Silva pelo recorrente, Alex

Sandro Magalhaes dos Santos.

Brasília (DF), 18 de setembro de 2018 (data do julgamento).

Ministro Sebastião Reis Júnior, Relator

DJe 2.10.2018

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior: Trata-se de recurso em habeas corpus

interposto por Alex Sandro Magalhaes dos Santos contra o acórdão proferido

pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região no Agravo Regimental no HC n.

5061277-84.2017.4.04.0000, cuja ementa é a seguinte (fl . 46):

Agravo regimental. Decisão que negou seguimento a habeas corpus. Ausência.

Constrangimento ilegal.

Não é possível, em sede de habeas corpus, ação constitucional que tem como

escopo resguardar a liberdade de locomoção contra ilegalidade ou abuso de

poder, de rito célere e cognição sumária, afi rmar constrangimento ilegal em razão

de decisão que rejeitou exceção de incompetência, máxime quando a análise da

questão demandar incursão na seara fático-probatória, vedada na via estreita do

writ.

Alega o recorrente que ocorreu negativa de prestação jurisdicional e aponta

a incompetência do Juízo Federal a quo para processar e julgar a Ação Penal n.

5004772-19.2017.7.4.04.7002.

Argumenta, em síntese, que, da análise do material angariado e colacionado

aos autos, a Defesa percebe, e por oportuno requer, que seja analisada a devida

competência territorial para o exercício da jurisdição com relação aos fatos apontados

pela acusação em sua denúncia – ou aditamento (fl . 101).

Assevera que, muito embora seja o Juízo Federal de Foz do Iguaçu/PR aquele

em que seguem tramitando os autos, o que se percebe, no entanto, é que, conforme a

narrativa ministerial, os fatos do crime mais grave, qual seja, o latrocínio, ocorreram

em Ciudad del Este, no vizinho estado nacional paraguaio. Assim, [...] torna-se

competente o estado paraguaio para a apuração, investigação, tramitação e eventual

execução de pena dos imputados (fl . 105).

Page 60: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

876

Defende que não basta que seja consolidada uma operação envolvendo os dois

estados nacionais para que se atraia a competência em matéria penal para o Brasil. A

investigação, ou operação, não é critério modifi cativo de competência (fl . 106).

Para o recorrente, caso não se admita a proposta regra da incompetência

territorial ora suscitada, os autos devem ser remetidos à capital do estado sul mato-

grossense para a persecução penal (fl . 108), ante a aplicação do art. 88 do Código de

Processo Penal.

Sustenta que tal regra também se amolda perfeitamente à hipótese, visto

que o delito fora cometido fora do território brasileiro, pois em Ciudad del Este-

Paraguai, confi gurando outro critério mais idôneo para a determinação de competência

do que aquele fi rmado pela autoridade coatora de 1ª instância (fl . 108). Tendo o

imputado residido em Ponta Porã/MS, ele deve ser processado e julgado em

Campo Grande/MS. Caso entendam que o imputado residira por último no

estado do Paraná, devem, portanto, ser os autos remetidos ao juízo da capital deste

estado membro da federação, mas em hipótese algum ser processado na comarca de Foz

do Iguaçu, ante a ausência de previsão legal para a determinação desta competência à

cidade fronteiriça (fl . 109).

Requer o imediato sobrestamento do feito principal e, ao fi nal, busca o

provimento do recurso reconhecendo a incompetência do juízo de Foz do Iguaçu/

PR, ante o critério da territorialidade, da natureza da infração e do último local

em que residira o Recorrente, por serem os únicos critérios idôneos para a fi xação de

competência ao caso dos autos (fl . 110).

Sem contrarrazões (fl . 182), o recurso foi admitido na origem (fl s. 185/186).

Indeferi o pedido liminar (fl s. 200/201).

Opinou o Ministério Público Federal pelo desprovimento do recurso,

conforme este resumo (fl . 205):

Penal. Processo Penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Roubos qualifi cados,

latrocínio, sequestro ou cárcere privado. Crimes iniciados por brasileiro(s) no

exterior (Paraguai) e continuado em solo pátrio com prática de novos crimes graves.

Competência da Justiça Federal nacional. Artigo 7º, inciso II, alínea b, e § 2º, do

CP. Natureza do crime. Existência de interesse nacional (artigo 109, da CF/88).

Necessidade de trâmite da ação penal perante a Justiça Federal, in casu a 4ª Vara

da Subseção Judiciária Federal em Foz do Iguaçu/PR, local de consumação de vários

crimes conexos. Artigo 70, do CPP. Jurisprudência assente. Parecer pelo desprovimento

do recurso.

Page 61: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 877

Na origem, os autos da ação penal estão conclusos para sentença desde

18/7/2018.

Os presentes autos foram a mim distribuídos por prevenção. Confi ram-se,

por exemplo, os seguintes feitos que estão vinculados à denominada Operação

Fronteira/Resposta Integrada: HC n. 430.263, RHCs n. 96.597, 95.614, 95.613 e

88.721, este já julgado pela Sexta Turma.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior (Relator): De início, verifi quei que

prestação jurisdicional houve, mas contrária à pretensão do ora recorrente.

A defesa do recorrente opôs a Exceção de Incompetência Criminal n.

5007939-44.2017.4.04.7002, que foi julgada improcedente pelo Magistrado a

quo no dia 9/10/2017.

Diante dessa decisão, optou por impetrar habeas corpus, ao qual o

Desembargador Federal Leandro Paulsen negou seguimento, entendendo que

(fl s. 25/26):

[...]

o magistrado de origem julgou improcedente a exceção de incompetência,

ao fundamento de que os fatos praticados no Brasil, enquanto desdobramentos

do latrocínio inicialmente perpetrado no Paraguai, justificariam a fixação da

competência na Justiça Federal de Foz do Iguaçu/PR, com jurisdição sobre os

locais onde se deram os aludidos confrontos e a prática das outras infrações (art.

70 do CPP).

Ressaltou o Juízo a quo, também, a conexão entre os crimes supostamente

praticados pelo paciente e pelos corréus (art. 76, I, II, e III, do CPP), devendo ainda

ser avaliada a questão da continência, pois todos os acusados nos autos da ação

penal supracitada são acusados pela mesma infração (art. 77, I, do CPP).

A ilegalidade apta a justificar a impetração do habeas corpus deve ser

manifesta, de constatação evidente, restringindo-se a questões de direito que não

demandem incursão no acervo probatório constante de ação penal e inviável no

âmbito estreito do writ, o que não ocorre na hipótese em tela.

[...]

Nesse contexto, inadmissível o conhecimento da ação mandamental.

[...]

Page 62: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

878

A Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confi rmou

essa conclusão ao negar provimento ao agravo regimental.

Embora não tenham sido juntados a estes autos nem a denúncia nem o

respectivo aditamento, levando em consideração as palavras do Magistrado

de piso, é possível descrever assim os fatos que derem ensejo à ação penal em

questão e à acusação do recorrente pela prática dos crimes tipifi cados nos arts.

157, § 3º, e 7º, II, b (roubo circunstanciado e latrocínio) e 148 (sequestro ou

cárcere privado), do Código Penal (fl s. 152/153):

[...]

A referida Ação Penal versa sobre os fatos relacionados ao noticiado assalto à

transportadora de valores “Prosegur”, ocorrido na madrugada do dia 24/04/2017,

em Ciudad Del Este/Paraguai, quando criminosos fortemente armados invadiram

a sede daquela transportadora e roubaram elevada quantia em dinheiro (mais de

US$ 11 milhões de dólares).

Na ação em comento, além de armas de grosso calibre (fuzis de longo alcance,

pistolas etc.), foram utilizados explosivos para ter acesso ao dinheiro e barricadas

com carros incendiados para conter a polícia. Quando da fuga do local em

direção a Hernandarias/Paraguai, os assaltantes espalharam nas ruas dispositivos

conhecidos como “miguelitos” - utilizados para furar pneus de veículos/viaturas -,

incendiaram vários automóveis, trocaram tiros com a polícia e acabaram por ferir

de morte um policial paraguaio.

Ato contínuo, parte dos envolvidos no assalto se deslocou, via Lago de Itaipu,

utilizando embarcações, até as cidades de São Miguel do Iguaçu/PR e Itaipulândia/

PR (que margeiam o Lago de Itaipu). Durante as buscas realizadas na região,

houve diversos confrontos e trocas de tiros entre policiais (Policiais Federais,

Policiais Rodoviários Federais, Policiais Militares e Policiais Civis) e bandidos,

tomada de cidadãos da região como reféns e, também, roubo de veículos. Alguns

dos supostos envolvidos foram presos, tendo havido, ainda, a apreensão de

diversas armas de grosso calibre, grande soma em dinheiro, celulares, explosivos,

munições etc. os envolvidos, quando de suas fugas, havia se embrenhado em

matagais e plantações agrícolas da região, ali permanecendo por alguns dias,

justamente para se furtarem da ação policial.

Segundo relata a denúncia, o excipiente Alex Sandro foi preso (no IPL n.

5003330-18.2017.4.04.7002) por suposto envolvimento no assalto praticado no

Paraguai, bem como por ter, em tese, mantido em cárcere privado uma família

residente na zona rural do município de Itaipulândia/PR.

As circunstâncias da prisão em fl agrante e os depoimentos dos condutores,

das testemunhas e da vítima, bem como o interrogatório do fl agrado em sede

policial, além de diversos laudos de exame pericial, permitiram que o Ministério

Page 63: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 879

Público Federal concluísse pelo envolvimento dele nos fatos descritos acima,

motivo pelo qual ofereceu denúncia em seu desfavor na Ação Penal n. 5004772-

19.2017.4.04.7002.

Conforme consta nos supramencionados autos, Alex Sandro foi preso em

Cascavel/PR, quando policiais militares que estavam prestando apoio à captura

de suspeitos do roubo à Prosegur abordaram um ônibus, na Avenida Tancredo

Neves, naquela cidade. Na ocasião, as suspeitas em relação ao excipiente foram

motivadas porque ele tinha vários arranhões nas pernas, pés, mãos e braços, além

de hematomas no braço.

Ainda segundo consta dos autos, posteriormente, foram recebidas informações

de que, no município de Itaipulândia/PR, uma família havia sido mantida

como refém por um indivíduo com as características físicas do denunciado

(ora excipiente). Em razão disso, uma equipe de policiais militares se deslocou

até Itaipulândia/PR e mostrou para uma das vítimas uma foto dele, o qual foi

imediatamente reconhecido como sendo a pessoa responsável pela manutenção

deles em cativeiro e também por ter obrigado um dos integrantes da família a

levá-lo até a rodoviária da cidade de Medianeira/PR.

Por fi m, a denúncia narra que, na residência da família mantida em cárcere

privado, foram deixados pelo réu (ora excipiente) um fuzil AK-47, carregadores,

munições e uma jaqueta camufl ada.

Como se vê, os fatos que deram supedâneo ao oferecimento da denúncia

perante este Juízo são complexos e envolvem análise mais aprofundada quanto à

competência para processá-los e julgá-los.

[...]

Mesmo diante de tão complexo contexto, o Juízo Federal a quo chegou à

conclusão – respaldado pela manifestação do Parquet – de que estão preenchidos,

no caso concreto, todos os requisitos previstos no art. 7º, II, “b”, c/c § 2º, do Código

Penal, restando autorizada, portanto, a aplicação da lei brasileira ao crime cometido

no estrangeiro (fl . 156).

Para S. Exa., é descabido cogitar do encaminhamento dos autos ao Paraguai,

vez que plenamente possível o processamento do feito pela jurisdição nacional.

Tanto mais porque o crime de latrocínio pelo qual Alex Sandro foi denunciado –

conforme suas próprias palavras – ocorreu em linhas gerais no exterior, mas, seus

desdobramentos se deram principalmente no Brasil, nesta região (afeta à competência

da Justiça Federal de Foz do Iguaçu/PR). Com efeito, segundo relatado na peça

acusatória da ação penal em comento, durante a fuga, após o assalto em Ciudad

Del Este/Paraguai, enquanto o excipiente e os demais envolvidos adentravam em

território nacional, houve confrontos com autoridades brasileiras (policiais militares,

Page 64: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

880

federais, rodoviários federais) e, inclusive, no caso do excipiente, o sequestro/cárcere

privado da família em Itaipulândia/PR, entre outras ocorrências (fl . 156).

O Magistrado de piso levou em conta também o fato de que o caso do

ora recorrente não poderia ser separado dos demais denunciados, visto que há nítida

conexão entre os crimes (art. 76, I, II, e III, do CPP). Há, ainda, continência a ser

avaliada, visto que todos os acusados nos autos da ação penal supracitada são acusados

pela mesma infração (art. 77, I, do CPP) (fl . 157). E resume (fl . 157):

[...] tem-se que os fatos praticados no Brasil, enquanto desdobramentos

do latrocínio inicialmente perpetrado no Paraguai, justificariam a fixação da

competência na Justiça Federal de Foz do Iguaçu/PR, com jurisdição sobre os

locais onde se deram os aludidos confrontos e a prática das outras infrações (art.

70 do CPP). Nesse sentido, aliás, destaque-se que, além do excipiente, outros réus

na Ação Penal n. 5004772-19.2017.4.04.7002 são acusados de crimes praticados

integralmente em território brasileiro (roubo de veículos, uso de documentos

falsos e sequestro ou cárcere privado), tudo na linha de continuidade da fuga

iniciada no Paraguai.

[...]

Não discordo da conclusão da Corte Regional de que o writ não é o meio

próprio para se debater a competência na hipótese sob exame. Realmente, as

circunstâncias fáticas são muito peculiares e para se chegar a alguma conclusão

diferente da exposta pelo Juízo Federal a quo seria imprescindível esquadrinhar

fatos e provas.

De qualquer maneira, vale registrar o substancioso parecer do

Subprocurador-Geral da República, que trata da temática de forma bem

percuciente. Com esta manifestação estou de pleno acordo (fl s. 207/209):

[...]

A defesa requer a declaração de incompetência da Justiça brasileira e remessa

dos autos ao país vizinho para prosseguimento da ação penal instaurada (embora

a denúncia e seu aditamento não tenham sequer sido juntados) por crimes

cometidos por cidadão brasileiro com base no artigo 69, inciso I, do CPP que

determina competência jurisdicional para crimes no Brasil ao juízo do lugar da

infração.

Ora, ictu oculi verifi ca-se que a norma invocada aplica-se a crimes cometidos

em território pátrio, e na presuntiva descrição fática que deva constar na opinio

delicti há de se asseverar constarem crimes graves praticados em solo brasileiro,

descabendo trazer regra de extraterritorialidade de delitos cometidos por

nacionais, já que determina a lei sujeição de brasileiros à jurisdição nacional

Page 65: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 881

ainda que os crimes sejam perpetrados no exterior, ut artigo 7º, inciso II, alínea

b, da CP, cujo parágrafo segundo alinhava requisitos a que se opere transferência

de competência para o Brasil de crimes cometidos em outro país, o que afasta

a tese defensiva, aliás já dirimida/rejeitada na exceção de incompetência supra

mencionada.

In casu os crimes iniciaram no Paraguai, na fronteira, prosseguindo fuga e

novos crimes graves em solo brasileiro até para manter impune a “cinematográfi ca

ação” criminosa, com troca de tiros com autoridades policiais tanto lá quanto cá

e roubos, sequestro e cárcere privado de civis locais; a regra geral pátria é apurar-

se o crime no local em que ocorreu, similar ao artigo 168, 1º, do Código Penal

paraguaio ao dispor sobre roubo com resultado morte; permitindo-se extradição

nos termos do artigo 2º, inciso, do Decreto n. 4.975/94 (acordo de extradição

entre Estados Parte do Mercosul).

Não há notícia nos autos de que tenha havido condenação, absolvição, perdão

ou extinção da punibilidade delitiva em prol do ora recorrente, quer pela Justiça

paraguaia, quer brasileira, não havendo justa causa a que se coarcte ação penal

regular e devidamente instaurada no juízo nacional competente, não cabendo

vislumbrar ou defender hipóteses inexistentes de bis in idem, litispendência,

prevenção ou incompetência da Justiça Federal brasileira, por patente inexistir

violação aos artigos de lei invocados.

Cumpridos os requisitos do artigo 7º, inciso II, alínea b, e seu § 2º,

do CP, não existe óbice a que prossiga a apuração de fatos criminosos e de

responsabilidade(s) penais na jurisdição federal pátria, por aplicar-se in casu a

lei brasileira a crimes cometidos no estrangeiro cujos efeitos (além de outros

graves crimes ocorridos em solo nacional) terem alcançado o Brasil, revelando-se

despiciendas as renitentes teses defensivas. Veja-se, exemplifi cativamente, este

precedente:

Conflito negativo de competência. Homicídios qualificados. Crimes

perpetrados por brasileiro, juntamente com estrangeiros, na Cidade de Rivera

- República Oriental do Uruguai. Região fronteiriça. Vítimas. Policiais civis

brasileiros. Residentes em Santana do Livramento/RS. Extraterritorialidade.

Agente brasileiro, que ingressou no País. Último domicílio. Cidade de Ribeirão

Preto/SP. O iter criminis ocorreu no estrangeiro. 1. Os crimes em análise

teriam sido cometidos por brasileiro, juntamente com uruguaios, na cidade

de Rivera - República Oriental do Uruguai, que faz fronteira com o Brasil.

2. Aplica-se a extraterritorialidade prevista no art. 7º, inciso II, alínea b, e § 2º,

alínea a, do Código Penal, se o crime foi praticado por brasileiro no estrangeiro

e, posteriormente, o agente ingressou em território nacional. 3. Nos termos

do art. 88 do Código de Processo Penal, sendo a cidade de Ribeirão Preto/

SP o último domicílio do indiciado, é patente a competência do Juízo

da Capital do Estado de São Paulo. 4. Afasta-se a competência da Justiça

Federal, tendo em vista a inexistência de qualquer hipótese prevista no art.

Page 66: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

882

109 da Carta da República, principalmente, porque todo o iter criminis dos

homicídios ocorreu no estrangeiro. 5. Confl ito conhecido para declarar a

competência de uma das Varas do Júri da Comarca de São Paulo/SP.

(STJ, 3ª Sc, CC 104.342/SP, rel. Min. Laurita Vaz, DJe 26/08/2009, gizado).

Eventual entendimento contrário, ademais, implicaria obrigatória extradição

de nacional, o que se configura inconstitucional por frontalmente chocar-se

contra preceito fundamental inserto no artigo 5º, inciso LI, da CF/88, que veda a

extradição de qualquer cidadão brasileiro, excetuando o naturalizado.

Por outro viés, alega a defesa – caso se mantenha a competência da Justiça

brasileira – dever-se atender à regra do domicílio do acusado, nos termos do

artigo 88, do CPP, sendo competente o juízo estadual da comarca de Ponta Porã/

MS, onde presuntivamente residi(r)a o ora recorrente, haja vista falta de interesse

da União nos termos do artigo 109, inciso I, da CF/88; ora, a regra interna aplica-se

como segundo critério de defi nição de competência jurisdicional, olvidando-se

a defesa de que não há como afastar o primeiro inciso quanto à regra geral que

afi rma ser competente o juiz do foro do local do crime, e mesmo in casu não se

trata de mera competência territorial mas material, haja vista a natureza dos

crimes cometidos, segundo leciona Carlos Frederico Coelho Nogueira:

O art. 88 do CPP soluciona o problema da competência nos casos em

que é aplicável a lei penal brasileira a crimes perpetrados no Exterior (...).

Essas regras devem ser conjugadas com as que estabelecem a competência

material das diversas justiças em que se divide o Poder Judiciário brasileiro.

Assim sendo, se o crime for de competência da Justiça Federal (art. 109

da CF), competente será qualquer das varas criminais federais situadas

na seção ou subseção judiciária à qual pertencer a capital do Estado em

que por último tiver residido o acusado. Se nunca tiver residido no Brasil,

competente será qualquer das varas criminais federais existentes em

Brasília. A distribuição (art. 75 do CPP) determinará a competência em

havendo mais de uma vara criminal federal na mesma seção ou subseção

judiciária. Tratando-se de delito de competência da Justiça comum local, o

foro será o de qualquer das varas criminais estaduais da capital do Estado

em que residiu o acusado ou qualquer das varas criminais locais da Justiça

do Distrito Federal.

Patente o interesse do Estado Brasileiro (União) haja vista a transnacionalidade

ínsita à “cinematográfi ca ação” criminosa, sendo inegável a obrigação perante

outros Estados de processar brasileiros que cometam delitos no exterior e

busquem eximir-se de responsabilidade adentrando solo pátrio, pois é a

República Federativa do Brasil que tem personalidade de Direito Internacional

Público; nos moldes do artigo 109, IV da CF/88, ademais, “cabe ao Estado Nacional

responder perante a comunidade internacional pelos ilícitos nas quais incorre”.

Page 67: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 883

Novamente lapidar se mostra este aresto da Corte Superior:

Habeas corpus. Penal e Processual Penal. Competência. Homicídio cuja

execução se iniciou no Brasil e o resultado se ultimou no exterior. Princípio

da extraterritorialidade. Competência da Justiça Federal. 1. O crime cometido,

no estrangeiro, contra brasileiro ou por brasileiro, é da competência da Justiça

Brasileira e, nesta, da Justiça Federal, a teor da norma inserta no inciso IV do

artigo 109 da Constituição Federal, por força dos princípios da personalidade

e da defesa, que, ao lado do princípio da justiça universal, informam a

extraterritorialidade da lei penal brasileira (Código Penal, artigo 7º, inciso II,

alínea b, e parágrafo 3º) e são, em ultima ratio, expressões da necessidade

do Estado de proteger e tutelar, de modo especial, certos bens e interesses. O

atendimento dessa necessidade é, precisamente, o que produz o interesse

da União, em detrimento do qual o crime cometido, no estrangeiro, contra

ou por brasileiro é também praticado. 2. Por igual, compete à Justiça

Federal julgar os crimes “previstos em tratado ou convenção internacional,

quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter

ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente.” (Constituição Federal, artigo

109, inciso V). 3. Julgados já os executores do homicídio, a competência

para o julgamento do mandante, quando questionada isoladamente, resta

insulada no tema da continência. 4. Ordem denegada. (STJ, 6ª T, HC 18.307/

MT, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 10/03/2003, p. 313, gizado).

[...]

Pelo exposto, restando descabido alegar competência alienígena e por restar

patente o interesse da União, mister ratifi car-se a competência do juízo da 4ª Vara

Federal Criminal da Subseção Judiciária Federal de Foz do Iguaçu/PR por ser o

lugar em que se desdobrara o latrocínio iniciado no Paraguai e terem acontecido

outros crimes graves afetos a sua jurisdição nos moldes do artigo 70 do CPP.

[...]

Por todo o exposto, nego provimento ao recurso em habeas corpus.

RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 99.735-SC (2018/0153349-8)

Relatora: Ministra Laurita Vaz

Recorrente: A C DA C

Recorrente: D C DA C

Page 68: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

884

Advogados: Henrique Labes da Fontoura - SC012033

César Castellucci Lima e outro(s) - SC022369

Recorrido: Ministério Público do Estado de Santa Catarina

EMENTA

Recurso ordinário em habeas corpus. Penal e Processo Penal.

Tráfi co de drogas e associação ao tráfi co. Autorização judicial de

espelhamento, via WhatsApp Web, das conversas realizadas pelo

investigado com terceiros. Analogia com o instituto da interceptação

telefônica. Impossibilidade. Presença de disparidades relevantes.

Ilegalidade da medida. Reconhecimento da nulidade da decisão

judicial e dos atos e provas dependentes. Presença de outras

ilegalidades. Limitação ao direito de privacidade determinada sem

indícios razoáveis de autoria e materialidade. Determinação anterior

de arquivamento do inquérito policial. Fixação direta de prazo de 60

(sessenta) dias, com prorrogação por igual período. Constrangimento

ilegal evidenciado. Recurso provido.

1. Hipótese em que, após coleta de dados do aplicativo WhatsApp,

realizada pela Autoridade Policial mediante apreensão judicialmente

autorizada de celular e subsequente espelhamento das mensagens

recebidas e enviadas, os Recorrentes tiveram decretadas contra si

prisão preventiva, em razão da suposta prática dos crimes previstos

nos arts. 33 e 35 da Lei n. 11.343/2006.

2. O espelhamento das mensagens do WhatsApp ocorre em

sítio eletrônico disponibilizado pela própria empresa, denominado

WhatsApp Web. Na referida plataforma, é gerado um tipo específi co

de código de barras, conhecido como Código QR (Quick Response), o

qual só pode ser lido pelo celular do usuário que pretende usufruir do

serviço. Daí a necessidade de apreensão, ainda que por breve período

de tempo, do aparelho telefônico que se pretende monitorar.

3. Para além de permitir o acesso ilimitado a todas as conversas

passadas, presentes e futuras, a ferramenta WhatsApp Web foi

desenvolvida com o objetivo de possibilitar ao usuário a realização de

todos os atos de comunicação a que teria acesso no próprio celular.

O emparelhamento entre celular e computador autoriza o usuário, se

Page 69: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 885

por algum motivo assim desejar, a conversar dentro do aplicativo do

celular e, simultaneamente, no navegador da internet, ocasião em que

as conversas são automaticamente atualizadas na plataforma que não

esteja sendo utilizada.

4. Tanto no aplicativo, quanto no navegador, é possível, com total

liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens

antigas (registradas antes do emparelhamento) ou recentes (registradas

após), tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido

recebidas de algum contato. Eventual exclusão de mensagem enviada

(na opção “Apagar somente para Mim”) ou de mensagem recebida

(em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no

aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não

pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal,

tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em

razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena em

nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários.

5. Cumpre assinalar, portanto, que o caso dos autos difere da

situação, com legalidade amplamente reconhecida pelo Superior

Tribunal de Justiça, em que, a exemplo de conversas mantidas por

e-mail, ocorre autorização judicial para a obtenção, sem espelhamento,

de conversas já registradas no aplicativo WhatsApp, com o propósito

de periciar seu conteúdo.

6. É impossível, tal como sugerido no acórdão impugnado,

proceder a uma analogia entre o instituto da interceptação telefônica

(art. 1º, da Lei n. 9.296/1996) e a medida que foi tomada no presente

caso.

7. Primeiro: ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito

da qual o investigador de polícia atua como mero observador de

conversas empreendidas por terceiros, no espelhamento via WhatsApp

Web o investigador de polícia tem a concreta possibilidade de atuar

como participante tanto das conversas que vêm a ser realizadas quanto

das conversas que já estão registradas no aparelho celular, haja vista

ter o poder, conferido pela própria plataforma online, de interagir

nos diálogos mediante envio de novas mensagens a qualquer contato

presente no celular e exclusão, com total liberdade, e sem deixar

vestígios, de qualquer mensagem passada, presente ou, se for o caso,

futura.

Page 70: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

886

8. O fato de eventual exclusão de mensagens enviadas (na

modalidade “Apagar para mim”) ou recebidas (em qualquer caso)

não deixar absolutamente nenhum vestígio nem para o usuário nem

para o destinatário, e o fato de tais mensagens excluídas, em razão

da criptografi a end-to-end, não fi carem armazenadas em nenhum

servidor, constituem fundamentos sufi cientes para a conclusão de

que a admissão de tal meio de obtenção de prova implicaria indevida

presunção absoluta da legitimidade dos atos dos investigadores,

dado que exigir contraposição idônea por parte do investigado seria

equivalente a demandar-lhe produção de prova diabólica.

9. Segundo: ao contrário da interceptação telefônica, que

tem como objeto a escuta de conversas realizadas apenas depois

da autorização judicial (ex nunc), o espelhamento via Código QR

viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a toda

e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização,

operando efeitos retroativos (ex tunc).

10. Terceiro: ao contrário da interceptação telefônica, que é

operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou

domiciliar para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via

Código QR depende da abordagem do indíviduo ou do vasculhamento

de sua residência, com apreensão de seu aparelho telefônico por breve

período de tempo e posterior devolução desacompanhada de qualquer

menção, por parte da Autoridade Policial, à realização da medida

constritiva, ou mesmo, porventura – embora não haja nos autos

notícia de que isso tenha ocorrido no caso concreto –, acompanhada

de afi rmação falsa de que nada foi feito.

11. Hipótese concreta dos autos que revela, ainda, outras três

ilegalidades: (a) sem que se apontasse nenhum fato novo na decisão,

a medida foi autorizada quatro meses após ter sido determinado o

arquivamento dos autos; (b) ausência de indícios razoáveis da autoria

ou participação em infração penal a respaldar a limitação do direito

de privacidade; e (c) ilegalidade na fi xação direta do prazo de 60

(sessenta) dias, com prorrogação por igual período.

12. Recurso provido, a fi m de declarar a nulidade da decisão

judicial que autorizou o espelhamento do WhatsApp via Código QR,

bem como das provas e dos atos que dela diretamente dependam

Page 71: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 887

ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes,

revogando, por conseguinte, a prisão preventiva dos Recorrentes, se

por outro motivo não estiverem presos.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário,

nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Sebastião Reis

Júnior, Rogerio Schietti Cruz, Nefi Cordeiro e Antonio Saldanha Palheiro

votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 27 de novembro de 2018 (data do julgamento).

Ministra Laurita Vaz, Relatora

DJe 12.12.2018

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Laurita Vaz: Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus,

sem pedido liminar, interposto por A. C. DA C. e D. C. DA C. contra acórdão

proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina no HC n. 4011613-

76.2018.8.24.0000.

Consta dos autos que, após coleta de dados do aplicativo WhatsApp,

realizada pela Autoridade Policial mediante apreensão do celular de A. C.

DA C. e subsequente espelhamento, via QR Code, das mensagens recebidas e

enviadas, os Recorrentes tiveram, em 22/02/2018, decretadas contra si prisão

preventiva, em razão da suposta prática dos crimes previstos nos arts. 33 e 35 da

Lei n. 11.343/2006.

O habeas corpus impetrado perante o Tribunal de origem foi denegado, em

acórdão assim ementado (fl . 147):

Habeas corpus Crimes contra a saúde e a administração públicas. Tráfi co ilícito

de substâncias entorpecentes. Associação para tal fi nalidade e corrupção ativa (Lei

11.343/2006. Arts. 33, caput, e 35, caput combinado com art. 40, III, e Código Penal.

Art. 333, parágrafo único). Decretação da prisão preventiva. Alegada nulidade da

decisão que determinou interceptação de mensagens transmitidas e recebidas por

Page 72: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

888

aparelho celular de um dos pacientes. Improcedência. Possibilidade de captação

de comunicações telefônicas de qualquer natureza. Requisitos presentes. Razoáveis

indícios da autoria de injustos sancionados com pena de reclusão e impossibilidade de

obtenção de provas por outros meios. Estipulação de prazo para a diligência superior

àquele previsto na Lei 9.296/1996 que, em princípio, não macula o monitoramento,

face à possibilidade de sucessivas prorrogações. Representação da autoridade policial

e decisão que a defere devidamente fundamentadas. Pedido de dilatação temporal

da providência não assinado digitalmente pelo Delegado de Polícia. Irrelevância.

Utilização de endereço de correio eletrônico funcional. Inexistência de dúvida sobre a

identidade do remetente. Ordem denegada.

No presente recurso, a Defesa reitera integralmente as teses suscitadas no

writ originário, a saber:

(I) ofensa aos princípios da reserva legal, estrita legalidade, segurança

jurídica e moralidade, em razão da ausência de previsão legal do espelhamento de

mensagens em outro aparelho quando o código QR é originado pelo mecanismo

alvo e submetido a leitura, mediante acesso físico do aparelho alvo (fl . 175);

(II) inviabilidade de analogia com a interceptação telefônica, por se tratar

de acesso remoto a todo o aplicativo do WhatsApp, ou seja, conversas passadas,

presentes e futuras, “podendo, inclusive, serem editadas, alteradas, enviadas,

excluídas, enfi m” (fl . 177);

(III) falta de advertência “do direito constitucional de fi car calado e não

produzir prova contra si mesmo e muito menos do direito de não permitir que

os policiais acessem seu aparelho celular para espelhamento (para a própria

operacionalização já há violação da privacidade e intimidade)” (fl . 179);

(IV) ausência de indícios razoáveis de autoria ou participação em infração

penal, tendo em vista que já havia sido deferido, pelo Juízo, o pedido ministerial de

arquivamento do inquérito policial;

(V) insufi ciência de denúncia anônima com o objetivo de implementar, sem

qualquer diligência prévia, a medida de espelhamento do WhatsApp;

(VI) vedação de investigação por prospecção, haja vista “a medida

de penetração da privacidade e vida privada da pessoa, como ultima ratio,

somente [ser] possível para fi ns de investigação criminal; não para prospecção,

arapongagem ou bisbilhotagem para saber se a pessoa está ou não cometendo

crime” (fl . 185), mormente quando há prévio arquivamento do inquérito policial;

(VII) ausência de demonstração no sentido de que a prova não poderia ter

sido obtida por outro meio;

Page 73: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 889

(VIII) ofensa ao art. 244 do Código de Processo Penal, por ter a Autoridade

Policial abordado o Recorrente A. C. DA C. sem que este estivesse “praticando

qualquer ilícito e sem indício concreto e contemporâneo da prática de crime” (fl .

187);

(IX) ausência de autorização, por parte da decisão do Juízo de primeira

instância, de interceptação de comunicações telefônicas, de fluxo de

comunicações em sistemas de informática e telemática, por ter sido utilizada a

expressa “quebra dos dados do celular” e por não terem sido indicados meios de

operacionalização e execução das medidas;

(X) falta de fundamentação na decisão constritiva, por não terem sido

demonstrados indícios de autoria ou participação em infração penal, tampouco

de materialidade do delito;

(XI) ausência de pedido de prorrogação do prazo, pois formulado via correio

eletrônico, sem assinatura digital e sem qualquer arquivo anexo;

(XII) ausência de fundamentação na decisão que determinou a prorrogação

da medida, tendo em vista que a Lei da Interceptação Telefônica, por analogia,

exige, para a prorrogação, relatório circunstanciado dos elementos colhidos,

devidamente instruído, sufi cientes a justifi car a dilação;

(XIII) excesso de prazo da medida, por ter a medida sido fi xada diretamente

pelo período de 60 (sessenta) dias, com prorrogação por mais 60 (sessenta);

(XIV) contaminação das demais provas, por aplicação da teoria dos frutos

da árvore envenenada.

(XV) ofensa ao Pacto de San José da Costa Rica e ao caso Escher e outros

v. Brasil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a revelar

necessidade de controle de convencionalidade.

Requer o provimento de recurso, para que seja declarada a nulidade do

meio de obtenção de prova consistente no espelhamento de mensagens via

WhatsApp Web, da decisão judicial que autorizou a medida, do correio eletrônico

utilizado para solicitar a prorrogação da medida, e do prazo do prazo de 60

(sessenta) dias fi xado para a execução da medida.

Requer, ainda, seja declarado “contaminado o ato seguinte, bem

como indiciamento, prisão preventiva e busca e apreensão dos recorrentes,

contaminando-se todos os elementos informativos colhidos, desentranhando-os

dos autos, trancando-se o inquérito policial ou a ação penal, por falta de justa

causa” (fl . 203).

Page 74: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

890

O Ministério Público Federal opinou pelo parcial conhecimento do

recurso, e, nessa extensão, pelo seu desprovimento, em parecer assim ementado

(fl s. 236-237):

Ementa: Recurso em habeas corpus. Quebra de sigilo de dados telefônicos.

WhatsApp. Acesso remoto. Origem em denúncia anônima. Vedação de

investigação baseada em prospecção. Desrespeito ao art. 244 do CPP.

Determinação de interceptação telefônica de ofício. Matérias que não foram

objeto de debate no Tribunal a quo. Supressão de instância. Não conhecimento.

Medida prevista no ordenamento jurídico. Decisão fundamentada. Prazo (60

dias) e prorrogação deferidos à margem da legislação. Inexistência de limite legal

quanto à duração do monitoramento. Constrangimento ilegal não caracterizado.

1. A ausência de exame pelo Tribunal a quo das teses de que a quebra

de sigilo de dados telefônicos se deu com base em denúncia anônima, com

objetivo de investigação prospectiva, em desrespeito ao art. 244 do CPP, e de

que foi determinada indevidamente interceptação telefônica de ofício, em tese,

inviabiliza a apreciação dos pleitos pelo Superior Tribunal de Justiça, por implicar

supressão de instância.

2. Não deve ser declarada nulidade da prova produzida com amparo legal,

mediante quebra de sigilo de dados telefônicos, por ausência de fundamentação

da decisão, se está motivada no pedido da autoridade policial, que aponta, de

forma detalhada e com base em elementos concretos, a necessidade da medida

para o desbaratamento de organização criminosa voltada à prática de diversos

crimes graves.

3. A repetição dos motivos da quebra na decisão de prorrogação não constitui,

por si só, inidoneidade na fundamentação. Precedentes do STJ e do STF.

4. Diferentemente da interceptação telefônica, não há previsão legal limitando

o prazo, bem como a prorrogação, para a quebra de sigilo de dados telefônicos,

sendo lícito o lapso de 60 (sessenta) dias, prorrogado pelo mesmo período.

5. Ainda que se apliquem todas as regras da Lei n. 9.296/96 à quebra de

sigilo de dados telefônicos, eventual nulidade, em razão do prazo superior ao

estabelecido na legislação, não atingiria os primeiros 15 (quinze) dias permitidos

por lei, razão pela qual é inviável analisar, no âmbito deste writ, a permanência dos

motivos que fundamentaram a defl agração da persecução penal dos recorrentes.

6. O controle de convencionalidade é aplicável ao ordenamento jurídico

interno desde que o precedente guarde similitude com o caso examinado e assim

seja demonstrado.

7. Parecer pelo parcial conhecimento do recurso e, nessa extensão, pelo seu

desprovimento.

É o relatório.

Page 75: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 891

VOTO

A Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora): Conforme relatado, o presente

recurso dirige-se à desconstituição da decisão judicial que autorizou a

Autoridade Policial a apreender o celular do Recorrente A. C. DA C. com o

propósito de efetuar o espelhamento das mensagens enviadas e recebidas dentro

do aplicativo WhatsApp.

A decisão do Juízo de primeiro grau de jurisdição tem o seguinte teor (fl .

72):

Trata-se de representação formulada pela autoridade policial, visando a

quebra do sigilo dos dados telefônicos do aparelho celular alvo, de propriedade

do investigado Antônio Carlos da Costa (Caio) e seus interlocutores.

Instado, o Ministério Público opinou peto deferimento do pedido.

É o relatório. Decido.

In casu, está-se diante de investigação criminal justamente para angariar

elementos probatórios acerca da prática dos crimes de tráfico de drogas e

associação para o tráfi co, apurados no Inquérito Policial n. 112.2017.00107.

Dito isso, em um juízo de prelibação. a quebra do sigilo de dados telefônicos é

necessária à elucidação dos fatos.

Ante o exposto, defiro a quebra do sigilo dos dados do celular alvo do

investigado Antônio Carlos da Costa (Caio) e seus interlocutores em especial do

aplicativo WhatsApp da forma como solicitada pela autoridade policial.

Autorizo ainda, pelo prazo de 60 (sessenta) dias, o monitoramento e captura

de arquivos (mensagens e conseqüente gravação de telas de conversas e áudio,

para utilização como meto de prova da prática de delitos de tráfi co de drogas e

outros.

Aproveito o ensejo para transcrever, igualmente, a decisão que prorrogou a

medida (fl . 76):

Considerando o ofício de fl . 18, considerando ainda o parecer ministerial de

fl s. 22/23, defi ro a prorrogação da interceptação telefônica e telemática e quebra

de sigilo de dados telefônicos, pelo prazo de 60 (sessenta) dias, nos termos da

decisão de fl . 16.

Por tratar-se de medida vinculada a recente evolução tecnológica,

entendo que a solução jurídica deste caso demanda a compreensão prévia das

características do mencionado espelhamento, de como deve ser operacionalizado

Page 76: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

892

na prática, das possibilidades que abre ao investigador criminal e das difi culdades

jurídicas e probatórias que enseja.

No caso dos autos, o Poder Judiciário deferiu pedido da Autoridade

Policial no sentido de apreender o celular de A. C. DA C. Diante da autorização

judicial, o Recorrente foi abordado em 17/11/2017 pelo Delegado de Polícia e

por policiais, os quais operacionalizaram a medida (fl . 175, nota de rodapé).

O espelhamento das mensagens do WhatsApp ocorre em sítio eletrônico

disponibilizado pela própria empresa, denominado WhatsApp Web (https://

web.whatsapp.com/). Na referida plataforma, é gerado um tipo específi co de

código de barras, conhecido como Código QR (Quick Response), o qual só pode

ser lido pelo celular do usuário que pretende usufruir do serviço. Daí a necessidade,

enfatizada pela Autoridade Policial, de apreensão, ainda que por breve período

de tempo, do aparelho telefônico de A. C. DA C.

A leitura do Código QR pode ser realizada com a opção “Mantenha-me

conectado”, hipótese em que o emparelhamento entre o celular e o computador

ocorrerá por tempo indeterminado, até que o usuário, via celular ou via WhatsApp

Web, decida encerrar o mencionado aparelhamento.

Na hipótese dos autos, após a apreensão do celular, a Autoridade Policial

procedeu em sigilo – isto é, sem comunicar ao Recorrente – ao emparelhamento

das plataformas, tendo, logo após, devolvido a ele a posse do aparelho.

Isso permitiu aos investigadores não apenas o acesso a todas as conversas

– conteúdo das mensagens e dados anexados – que já estavam registradas

no WhatsApp do Recorrente (ex tunc), independentemente da antiguidade ou do

destinatário, como também o acompanhamento, dali para frente (ex nunc), de

todas as conversas que fossem iniciadas pelo Recorrente ou por algum de seus

contatos.

Mas não é só.

Para além de permitir o acesso ilimitado a todas as conversas passadas,

presentes e futuras, a ferramenta WhatsApp Web foi desenvolvida com o objetivo

de possibilitar ao usuário a realização de todos os atos de comunicação a que teria

acesso no próprio celular. O emparelhamento entre celular e computador

autoriza o usuário, se por algum motivo assim desejar, a conversar dentro do

aplicativo do celular e, simultaneamente, no navegador da internet, ocasião em

que as conversas são automaticamente atualizadas na plataforma que não esteja

sendo utilizada.

Page 77: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 893

Ainda mais relevante para a discussão presente nestes autos é o seguinte

detalhe: tanto no aplicativo, quanto no navegador, é possível, com total liberdade,

o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes

do emparelhamento) ou recentes (registradas após), tenham elas sido enviadas

pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato.

Não bastasse, eventual exclusão de mensagem enviada (na opção “Apagar

somente para Mim”) ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não

deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador

emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de

prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora

do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena

em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários.

Sobre esse último aspecto, mostra-se relevante a explicação de Tercio

Sampaio Ferraz Junior, Juliano Maranhão e Marcelo Finger, em texto intitulado

“WhatsApp mostra a necessidade de regulação da criptografi a”, publicado em

16/08/2016 na revista online Consultor Jurídico:

A possibilidade de criptografar mensagens existe há milhares de anos. A

tecnologia moderna permite que cada usuário do WhatsApp tenha uma chave

pública, comunicada a todos que desejem lhe endereçar mensagens. Todos

podem codificar e enviar mensagens de acordo com esse recurso, com a

privacidade garantida.

Só quem possui a chave de decodifi cação (armazenada no celular de cada

usuário) pode ler as mensagens. O provedor do aplicativo cria a possibilidade de

codifi cação e decodifi cação, mas não possui nem tem como acessar as chaves.

Portanto, a questão crucial não é se o WhatsApp (ou outro aplicativo do

gênero) teria a obrigação de revelar o teor das mensagens, pois isso é impossível,

mas se as empresas de tecnologia estão autorizadas a comercializar produtos que

proporcionem ao usuário ambientes de informação absolutamente inacessíveis.

Cumpre assinalar, portanto, que o caso dos autos difere da situação, com

legalidade amplamente reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça, em que,

a exemplo de conversas mantidas por e-mail, ocorre autorização judicial para a

obtenção, sem espelhamento, de conversas já registradas no aplicativo WhatsApp,

com o propósito de periciar seu conteúdo.

Exemplifi cativamente:

Penal e Processo Penal. Recurso em habeas corpus. Receptação e adulteração

de sinal identifi cador de veículo automotor. Alegada ilicitude da prova. Prisão em

Page 78: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

894

fl agrante. Elementos probantes colhidos no curso da diligência. Perícia no celular.

Autorização judicial. Manipulação das conversas do WhatsApp pelos policiais.

Inocorrência. Instrução deficiente. Ausência de comprovação da nulidade

alegada. Recurso não provido.

[...].

3. A quebra do sigilo do correio eletrônico somente pode ser decretada,

elidindo a proteção ao direito, diante dos requisitos próprios de cautelaridade que

a justifi quem idoneamente, desaguando em um quadro de imprescindibilidade

da providência. (HC 315.220/RS, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta

Turma, julgado em 15/9/2015, DJe 9/10/2015).

4. Com o avanço tecnológico, o aparelho celular deixou de ser apenas um

instrumento de comunicação interpessoal. Hoje, é possível ter acesso a suas

diversas funções, entre elas, a verifi cação de mensagens escritas ou audíveis,

de correspondência eletrônica, e de outros aplicativos que possibilitam

a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia

convencional.

5. Por se encontrar em situação similar às conversas mantidas por e-mail, a

cujo acesso é exigida prévia ordem judicial, a obtenção de conversas mantidas pelo

programa WhatsApp, sem a devida autorização judicial, revela-se ilegal, o que não

ocorreu na espécie.

6. No caso em exame, é lícita a apreensão do celular, pois efetuada no bojo de

prisão em fl agrante, bem como o acesso aos dados neles contidos, dada a existência

de autorização judicial para perícia do seu conteúdo, de modo que não há falar em

ilicitude das provas que suportam o decreto condenatório. [...] (RHC 90.276/MG, Rel.

Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/03/2018, DJe 21/03/2018 –

sem destaque no original.)

A meu ver, a análise feita acima, acerca de como funciona o espelhamento

do WhatsApp, demonstra ser impossível, tal como pretendido no acórdão

impugnado, proceder a uma analogia entre o instituto da interceptação telefônica

(art. 1º, da Lei n. 9.296/1996) e a medida que foi tomada no presente caso.

O argumento analógico, conforme ensina a teoria, é uma “representação

de uma forma de raciocínio analógico que cita similaridades aceitas entre dois

sistemas a fi m de dar suporte à conclusão de que alguma outra similaridade

existe” (Tradução livre do verbete “Analogy and Analogical Reasoning”,

disponível na Enciclopédia de Filosofi a de Stanford).

Sendo assim, para que ao caso de espelhamento via QR Code fosse aplicável,

por analogia, a legislação atinente às interceptações telefônicas, com o propósito

de dar suporte à conclusão de que as duas medidas são admitidas pelo direito,

Page 79: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 895

seria impescindível a demonstração, por parte do intérprete, de similaridades

entre os dois sistemas de obtenção de provas, sobretudo no que diz respeito à

operacionalização e ao acesso às comunicações pertinentes.

Tais similaridades, todavia, não existem.

Em primeiro lugar, ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito

da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas

empreendidas por terceiros, no espelhamento via WhatsApp Web o investigador

de polícia tem a concreta possibilidade de atuar como participante tanto das

conversas que vêm a ser realizadas quanto das conversas que já estão registradas

no aparelho celular, haja vista ter o poder, conferido pela própria plataforma

online, de interagir diretamente com conversas que estão sendo travadas, de

enviar novas mensagens a qualquer contato presente no celular, e de excluir, com

total liberdade, e sem deixar vestígios, qualquer mensagem passada, presente ou

futura.

Nesse ponto específi co, insta registrar que, por mais que os atos praticados

por servidores públicos gozem de presunção de legitimidade, doutrina e

jurisprudência reconhecem que se trata de presunção relativa, que pode ser

ilidida por contra-prova apresentada pelo particular. Não é o caso, todavia,

do espelhamento: o fato de eventual exclusão de mensagens enviadas (na

modalidade “Apagar para mim”) ou recebidas (em qualquer caso) não deixar

absolutamente nenhum vestígio nem para o usuário nem para o destinatário,

e o fato de tais mensagens excluídas, em razão da criptografi a end-to-end, não

fi carem armazenadas em nenhum servidor, constituem fundamentos sufi cientes

para a conclusão de que a admissão de tal meio de obtenção de prova implicaria

indevida presunção absoluta da legitimidade dos atos dos investigadores, dado

que exigir contraposição idônea por parte do investigado seria equivalente

a demandar-lhe produção de prova diabólica (o que não ocorre em caso de

interceptação telefônica, na qual se oportuniza a realização de perícia).

Cito, por oportuno, o seguinte precedente:

[...] 3. Dada a presunção de legitimidade da degravação das escutas telefônicas

realizada por órgão público, cabe à defesa requerer, uma vez comprovada

dúvidas quanto à veracidade dos áudios, a realização da perícia respectiva com

a finalidade de afastar a prova contra os acusados. [...] (HC 218.742/AM, Rel.

Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 03/04/2014, DJe

15/04/2014.)

Page 80: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

896

Em segundo lugar, ao contrário da interceptação telefônica, que tem como

objeto a escuta de conversas realizadas apenas depois da autorização judicial (ex

nunc), o espelhamento via QR Code viabiliza ao investigador de polícia acesso

amplo e irrestrito a toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada

autorização, operando efeitos retroativos (ex tunc). Em termos técnico-jurídicos,

o espelhamento seria melhor qualifi cado como um tipo híbrido de obtenção

de prova consistente, a um só tempo, em interceptação telefônica (quanto às

conversas ex nunc) e em quebra de sigilo de e-mail (quanto às conversas ex tunc).

Não há, todavia, ao menos por agora, previsão legal de um tal meio de obtenção

de prova híbrido.

Por fi m, ao contrário da interceptação telefônica, que é operacionalizada

sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar para apreensão de

aparelho telefônico, o espelhamento via QR Code depende da abordagem do

indíviduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de seu aparelho

telefônico por breve período de tempo e posterior devolução desacompanhada

de qualquer menção, por parte da Autoridade Policial, à realização da medida

constritiva, ou mesmo, porventura – embora não haja nos autos notícia de que

isso tenha ocorrido no caso concreto –, acompanhada de afi rmação falsa de que

nada foi feito.

Esses fundamentos são sufi cientes, por si sós, para o provimento do recurso,

a fi m de declarar a nulidade da decisão que autorizou a medida.

Devo registrar, todavia, que existem outras três fl agrantes ilegalidades que

corroboram a solução pretendida no recurso.

Como bem salientou a Defesa, sem que se apontasse nenhum fato novo

na decisão, a medida de espelhamento via QR Code foi autorizada seis meses

após ter sido determinado o arquivamento dos autos, em razão da inexistência

de indícios sufi cientes de autoria e materialidade delitiva relativamente a A. C.

DA C.

Confi ra-se a decisão de arquivamento, proferida em 10/07/2017 (fl . 43,

sem destaque no original):

I - Será adotado o procedimento descrito na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/06).

Notifiquem-se os réus para apresentarem defesa, no prazo de 10 (dez) dias,

deprecando-se se necessário.

II - Quanto ao investigado Antônio Carlos da Costa, razão assiste ao

Ministério Público, porquanto da leitura do caderno processual não exsurgem

elementos bastantes para a defl agração da ação penal.

Page 81: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 897

Assim, acolho integralmente o parecer ministerial, e determino o arquivamento

do presente caderno investigativo, ressalvada a hipótese contida no artigo 18 do

Código de Processo Penal.

O entendimento das instâncias ordinárias está em desacordo com a

orientação do Superior Tribunal de Justiça, de que, “Após o arquivamento do

inquérito policial, por ordem da autoridade judiciária e a requerimento do

Ministério Público, a retomada da persecução estatal, seja pelo desarquivamento

do inquérito policial, seja pelo oferecimento de denúncia, fi ca condicionada

à existência de outras provas” (RHC 41.933/SP, Rel. Ministro Felix Fischer,

Quinta Turma, julgado em 11/06/2015, DJe 19/06/2015 – sem destaque no

original).

Considerando que o inquérito policial já estava arquivado e que o

espelhamento foi a primeira medida decretada com o objetivo de reabrir a

investigação, há violação, igualmente – caso se entenda, como o fez o Tribunal

de origem, pela viabilidade de analogia com a interceptação telefônica –, da

exigência, prevista no art. 2º, inciso I, da Lei n. 9.296/1996, de existência de

“indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal” a respaldar a

limitação do direito de privacidade.

Não bastasse, conforme argumentou a Defesa, foi fi xado diretamente o

prazo de 60 (sessenta) dias para a execução da medida, bem como a prorrogação

por igual período, “em manifesta contrariedade e negativa de vigência ao artigo

5º da Lei n. 9.296/1996, que fi xa o prazo de 15 (quinze) dias” (fl . 195).

Esclareço, por fim, que as prisões preventivas dos Recorrentes foram

decretadas com base na medida interventiva que agora se declara inválida,

inclusive com inserção de captura de tela (printscreen) de conversa monitorada

mediante o emparelhamento (fl . 104), razão pela qual devem ser revogadas, tal

como pleiteado pela Defesa.

Diante da complexidade da investigação, que se dirige a diversas outras

pessoas e abrange outros inquéritos, caberá ao Juízo de primeiro grau de

jurisdição identifi car as demais provas e atos que dependem diretamente ou

que são consequência do ato ora declarado nulo (art. 573, § 1º, do Código de

Processo Penal).

Ante o exposto, dou provimento ao recurso ordinário, a fi m de declarar a

nulidade da decisão judicial que autorizou o espelhamento do WhatsApp via

QR Code, bem como das provas e dos atos que dela diretamente dependam

Page 82: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

898

ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes, revogando,

por conseguinte, a prisão preventiva dos Recorrentes, se por outro motivo não

estiverem presos.

É o voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.719.933-MG (2018/0009825-6)

Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior

Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Recorrido: Arthur Borges da Costa

Advogado: Elias Ferreira Nunes Pires e outro(s) - MG124393N

Recorrido: Hugo Alves Marques

Advogados: Adriano Parreira de Carvalho - MG084920

Danilo Severino Oliveira Faria e outro(s) - MG097239

Emiliano Edson Silva - MG084032N

Recorrido: Robson de Azevedo

Advogado: Robson Jose de Oliveira - MG046914

EMENTA

Penal e Processual Penal. Recurso especial. Homicídios

qualifi cados tentados. Tribunal do Júri. Nulidade reconhecida de

ofício pelo Tribunal de Justiça. Mídia digital. Volume do áudio. Sessão

de julgamento. Art. 231 do CPP. Transcrição da mídia produzida

espontaneamente pela acusação juntada aos autos. Possibilidade.

Documento que não possui caráter protelatório ou tumultuário.

Celeridade e efetividade ao processamento do feito. Precedentes.

Ausência de demonstração de efetivo prejuízo pelas partes. Pas de

nullité sans grief. Cerceamento de defesa não caracterizado.

1. O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o preceito

contido no art. 231 do Código de Processo Penal, fi rmou em diversas

oportunidades a orientação de que o pedido de juntada de documentos

Page 83: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 899

é permitido em qualquer fase processual, cabendo ao magistrado

indeferir a providência caso tenha caráter irrelevante, protelatório

ou tumultuário, nos termos do art. 400, § 1º, do Código de Processo

Penal.

2. Na hipótese, o documento apresentado pelo Ministério

Público não possui natureza protelatória ou tumultuária; longe disso,

os autos evidenciam situação peculiar, qual seja, a demonstração de

que, apesar da baixa qualidade da gravação da sessão de julgamento,

por conta do baixo volume do áudio, a mídia apresenta compreensão

das declarações, tanto que o seu conteúdo foi objeto de degravação por

empresa especializada, contratada às expensas do próprio representante

do Ministério Público.

3. Busca-se, no processo penal, a verdade real, cabendo ao Juiz ir

ao encontro de todos os elementos que possam retratar a realidade dos

fatos, com adoção de meios ou providências que garantam a celeridade

de sua tramitação e a razoável duração do processo, compreendendo-

se as facilidades tecnológicas atualmente disponíveis, ainda que

promovidas por uma das partes interessadas.

4. O princípio do pas de nullité sans grief exige, em regra, a

demonstração de prejuízo concreto à parte, podendo ser ela tanto a

nulidade absoluta quanto a relativa. Precedentes.

5. Extrai-se dos autos que os réus e seus defensores não cogitaram

a existência de vícios na sessão de julgamento do Tribunal do Júri, nem

na ata de julgamento ou mesmo em seus recursos de apelação, sendo o

caso de aplicação do princípio do pas de nullité sans grief.

6. Recurso especial provido para afastar a nulidade da sessão de

julgamento do Tribunal do Júri, cabendo ao Tribunal a quo determinar

a juntada aos autos da documentação apresentada pelo Ministério

Público, abrindo-se vistas às partes, para fi ns do contraditório e da

ampla defesa, prosseguindo na análise das manifestações e do recurso

de apelação, como entender de direito.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

Page 84: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

900

unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto do Sr.

Ministro Relator. Os Srs. Ministros Rogerio Schietti Cruz, Nefi Cordeiro,

Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

Sustentou oralmente o Exmo. Sr. Dr. SPGR Nicolao Dino de Castro e

Costa Neto pelo Ministério Público Federal.

Brasília (DF), 18 de setembro de 2018 (data do julgamento).

Ministro Sebastião Reis Júnior, Relator

DJe 1º.10.2018

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior: Trata-se de recurso especial

interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais, com fundamento na alínea

a do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça local

proferido na Apelação Criminal n. 1.0702 13.014130-3/001, assim ementado

(fl . 700):

Apelação criminal. Tribunal do Júri. Homicídios qualificados tentados.

Preliminar. Nulidade do julgamento. Mídia eletrônica inaudível. Ofensa aos

princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. Prejuízo

evidente para os acusados. Nulidade absoluta declarada. Preliminar suscitada de

ofício para declarar a nulidade do julgamento.

- A sessão do Tribunal do Júri Popular ao qual foram submetidos os recorrentes

deve ser anulada, de ofício, por ofensa aos princípios constitucionais do devido

processo legal e da ampla defesa, pois o DVD contendo a mídia de gravação

magnética das provas produzidas durante a sessão de julgamento está inaudível,

o que impossibilita a análise das teses defensivas expostas no apelo.

- No processo penal, quando a defesa é de tal modo omissa e defi ciente, em

condições que não asseguram o mínimo de diligência e de iniciativa, incorrendo

em prejuízo do interesse processual do acusado, a situação deve ser equiparada

à falta de defesa, com a conseqüente nulidade absoluta, nos termos da Súmula

523 do STF.

- Questão prejudicial suscitada, de ofício, para que os réus sejam submetidos a

novo julgamento perante o Tribunal do Júri.

A acusação opôs, por duas vezes, embargos de declaração. Ambos foram

rejeitados (fl s. 744/753 e 816/820).

Page 85: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 901

Nas razões recursais, aponta o recorrente negativa de vigência aos arts.

231, 405, §§ 1º e 2º, 475, caput e parágrafo único, 479, 563, 565 e 571, VIII, do

Código de Processo Penal.

Sustenta, de início, a audibilidade do CD que contém a gravação da sessão

do Tribunal do Júri, sendo possível, embora a gravação não apresente áudio de

boa qualidade, a compreensão da maior parte do conteúdo do disco. Registra

que foram feitas transcrições por empresa especializada, as quais, apesar de

anexadas em sede de embargos declaratórios, foram desentranhadas dos autos

por determinação do Tribunal mineiro. Aduz que, não obstante a Central de

Taquigrafi a do Tribunal de Justiça de Minas Gerais afi rme ser inaudível a

gravação, verifi ca-se o contrário, constando, ainda, do acórdão recorrido, que a

referida coordenadoria não dispõe de mecanismos, softwares ou aparelhagem

que possa melhorar, ou mesmo amenizar, o elevado nível de ruídos presentes na

gravação (fl s. 837/839).

Defende a possibilidade de juntada de documentos em qualquer fase do

processo penal e que, ainda que haja vedação no Regimento Interno do TJMG,

deve prevalecer o disposto na lei processual penal, não incidindo, no caso, a

vedação prevista no art. 479 do Código de Processo Penal, já que, embora os autos

versem sobre crime de competência do Tribunal do Júri, a degravação em comento não

foi lida durante a sessão de julgamento, até porque estava sendo produzida naquele

momento, por tratar-se de transcrição dos depoimentos colhidos na própria sessão, e

registrados em gravação magnética (fl s. 840/843).

Assevera que a transcrição de mídia eletrônica constitui faculdade da parte,

sendo admissível a sua realização mesmo sem autorização judicial (fl s. 546/548).

Entende que a ausência de transcrição dos depoimentos e alegações

prestados na sessão de julgamento realizada pelo Tribunal do Júri não tem

o condão de anular a decisão, constituindo-se mera nulidade relativa, sendo

prescindível a sua juntada, consoante dispõe o art. 2º da Resolução n. 105/2010

do Conselho Nacional de Justiça, tanto que nem mesmo as defesas dos acusados

levantaram a mencionada defi ciência do CD, limitando-se a arguir a ausência

de prova da autoria (acusado Robson) e a pleitear a redução das reprimendas (fl s.

848/854).

Requer, ao fi nal, a cassação do acórdão recorrido, com o prosseguimento

da análise do recurso de apelação interposto pelos acusados. Subsidiariamente,

postula a anulação do acórdão que julgou os embargos ministeriais e determinou

o desentranhamento da degravação ofertada, de forma que seja juntada a

Page 86: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

902

referida transcrição ao feito, aberta vista à defesa e, em seguida, julgados os

aclaratórios, com análise da referida degravação (fl . 855).

Oferecidas contrarrazões (fl s. 906/912; 935/937 e 977/979) e admitido o

recurso na origem (fl s. 981/982), manifestou-se o Ministério Público Federal

pelo provimento do recurso, nos seguintes termos (fl . 919):

Recurso especial. Homicídio qualifi cado. Pelo provimento.

1. Admite-se a valoração de provas a fi m de analisar contrariedade e negativa

de vigência a regras jurídicas no campo probatório.

2. Essa Corte Superior de Justiça, ao interpretar o art. 231 do Código de

Processo Penal, tem admitido a juntada de documentos em qualquer fase

processual, somente sendo possível o indeferimento pelo órgão julgador na

hipótese de os documentos apresentados terem caráter meramente protelatório

ou tumultuário.

3. Parecer pelo provimento do apelo.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior (Relator): Extrai-se dos autos que

os recorridos Arthur Borges da Costa e Robson de Azevedo, juntamente com

Hugo Alves Marques, pronunciados e submetidos a julgamento pelo Tribunal

do Júri, foram condenados, o primeiro, à pena de 8 anos e 9 meses de reclusão,

em regime fechado, pela prática dos crimes previstos no art. 121, § 2º, II e IV,

c/c o art. 14, II, na forma do art. 70, por duas vezes, todos do Código Penal, e o

segundo à pena de 9 anos, 10 meses e 27 dias de reclusão, também em regime

inicial fechado, como incurso no art. 121, § 2º, IV, c/c o art. 14, II, na forma do

art. 70, por duas vezes, todos do Código Penal.

As defesas apelaram. No julgamento dos recursos, o Tribunal de Justiça

de Minas Gerais decretou, de ofício, a nulidade da sessão de julgamento do

Tribunal do Júri, por afronta aos princípios constitucionais do devido processo

legal e da ampla defesa, determinando a submissão dos réus a novo julgamento,

mediante os seguintes fundamentos (fl s. 702/706 – grifo nosso):

[...] De inicio, tenho preliminar de ofi cio para suscitar, com relação à nulidade

do julgamento realizado, por ofensa aos princípios constitucionais do devido

processo legal e da ampla defesa, previstos no artigo 5º, incisos LIV e LV, da

Page 87: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 903

Constituição Federal, bem como por falta de fórmulas ou termos do processo,

nos termos do que prevê o art. 564, IV, do CPP (por omissão de formalidade que

constitua elemento essencial do ato).

Explico.

O Júri Popular ao qual foram submetidos os recorrentes deve ser anulado,

na medida em que o DVD contendo a mídia de gravação das provas produzidas

durante a sessão de julgamento, acostado à fl . 443 dos autos, está inaudível, o que

impossibilita a análise das teses de defesa expostas nos apelos, principalmente

a alegação de que a condenação dos acusados é contrária ao acervo probatório

produzido.

Registro que, diante da impossibilidade de escutar qualquer dos depoimentos

fornecidos pelas testemunhas e interrogatório dos réus, bem como o que foi dito

pela acusação de defesa quando do plenário, tentei solucionar o problema quando

converti o julgamento em diligência e determinei a remessa dos autos ao Setor de

Taquigrafi a deste TJMG, a fi m de que fosse realizada a degravação do referido DVD.

Porém, a Coordenadoria da Central de Taquigrafia do TJMG, em resposta à

determinação acima narrada, consignou que: “conforme a mídia (DVD) juntada à fl .

443, o áudio do referido disco não se encontra em condições de ser reduzido a termo,

em virtude da baixa qualidade de som, e que a Central de Taquigrafi a não dispõe

de mecanismos, softwares ou aparelhagem que possam melhorá-la, bem como

amenizar o elevado nível de ruídos presentes na gravação” (fl . 543).

Em seguida, à fl. 549, despachei no seguinte sentido: “Por ocasião do

documento da fl . 543, ofi cie-se o juízo da Comarca de origem para que informe se foi

feita cópia do CD constante à fl . 443, já que, considerando-se que os depoimentos

das testemunhas referidas às fl s. 434/439 e os interrogatórios de fl s. 440/441

foram registrados por meio audiovisual, a degravação do referido CD é medida

necessária para o julgamento do presente feito”, quando foi juntada aos autos a

mídia de fl . 559, da mesma forma completamente inaudível.

Novamente remetido ao Setor de Taquigrafia deste TJMG, que é o órgão

especializado nesta tarefa, obtive a mesma resposta à fl . 562, dando conta de que

o referido disco também não se encontrava em condições de ser reduzido a termo

em virtude da baixa qualidade de som e do elevado nível de ruídos presentes na

gravação.

Por fi m, foi juntada aos autos certidão proferida pelo escrivão da Vara Judicial

de Crimes Contra a Pessoa da instância a quo (comarca de Uberlândia), na qual foi

por ele declinado que “os arquivos da gravação audiovisual da instrução plenária

da Sessão do Tribunal do Júri datada de 13/03/2014, referente ao processo acima

reportado, fi caram inaudíveis, mesmo com o emprego de recursos de amplifi cação e

de equalização” (fl . 576).

Assim, a meu sentir, é de se anular o julgamento realizado perante o Júri, uma vez

que a ausência do áudio dos depoimentos das testemunhas e do interrogatório dos

Page 88: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

904

réus presentes no DVD, colhidos durante a realização do julgamento, acarreta a sua

quase inexistência, devendo, portanto, ser declarada a nulidade do Júri, sob pena

de ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla

defesa, previstos no artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal.

O prejuízo advindo aos réus é patente, uma vez que ambos restaram

condenados a penas acima de oito anos de reclusão, em regime fechado. Ora, se

a gravação em fi ta magnética é inaudível por defeito do meio ou demais elementos

externos, as partes e o Tribunal de Justiça estão sem acesso aos dados nela registrados

e que deveriam ser públicos, mas não o são. Isso equivale dizer que estamos diante

da inexistência do Julgamento ocorrido em plenário, ferindo garantias do Estado

Democrático de Direito, porque materialmente não se tem acesso aos termos e ás

palavras proferidas pelas partes, testemunhas, réus, advogados, etc.

Nesse contexto, lembremos que dispõe a Súmula 523 do STF:

“No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua

defi ciência só o anulará se houver prova do prejuízo para o réu.” Explicando a

Súmula acima transcrita surge a doutrina de Fernando Capez, em sua obra Curso

de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 626:

“Trata-se de exceção aos critérios acima indicados, pois, no caso de

ofensa à ampla defesa, embora se trate de princípio constitucional, sua

ofensa acarretará nulidade absoluta somente quando a violação importar

em total aniquilamento da defesa do acusado.” Itálico nosso.

Isto posto, é absolutamente nulo o julgamento, já que a ausência do áudio

dos depoimentos das testemunhas e do interrogatório dos réus presentes no DVD,

colhidos durante a realização do julgamento, acarreta a sua inexistência material,

ainda que a gravação (inválida) tenha ocorrido.

Destarte, tratando-se de nulidade absoluta, pode ser ela declarada a qualquer

tempo, e por eiva processual insanável e evidente prejuízo aos acusados.

Neste sentido, o aresto a seguir transcrito:

“No processo penal, quando a defesa é de tal modo omissa e defi ciente,

em condições que não asseguram o mínimo de diligência e de iniciativa,

incorrendo em prejuízo do interesse processual do acusado, a situação deve

ser equiparada à falta de defesa, com a conseqüente nulidade absoluta, nos

termos da Súmula 523” (RT 542/438).

E ainda, decisões proferidas em igual sentido:

[...]

Nesse contexto, restam prejudicadas as teses de defesa.

Por fi m, deve ser estendido ao corréu Hugo Alves Marques o benefício do

novo julgamento, com fundamento no artigo 580 do CPP, embora ele não tenha

recorrido da sentença penal condenatória.

Page 89: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 905

Por estas razões, suscito preliminar de nulidade da sentença e anulo a sessão

de julgamento do Tribunal do Júri, “ab initio”, bem como os atos posteriores, nos

termos do art. 573 e parágrafos do CPP.

[...]

Seguiu-se a oposição de embargos de declaração pelo Ministério Público

estadual, suscitando a existência de obscuridades e omissão no acórdão. Aduziu

que, embora o CD juntado aos autos contendo a gravação da sessão de julgamento

em comento não apresente áudio de boa qualidade, é sufi cientemente audível,

sendo poucos os trechos ininteligíveis, o que teria sido inclusive comprovado

por uma empresa privada especializada em transcrições de áudio, contratada

por iniciativa do próprio representante do Ministério Público, que, até mesmo,

juntou aos autos as degravações por ela realizadas.

A Quarta Câmara Criminal rejeitou os embargos de declaração. Foram

estes os fundamentos apresentados pelo Colegiado (fl s. 746/751 – grifo nosso):

[...] Conheço dos embargos, aos seus pressupostos.

Ressalta-se, a principio, que os embargos declaratórios visam sanar

ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão, nos termos do art. 619, do

CPP.

Cumpre salientar que o recurso apresentado pelo embargante visa à reapreciação

de questões já decididas e rebatidas à exaustão, por ocasião da apelação criminal,

não se vislumbrando, destarte, quaisquer vícios passíveis de serem sanados, sendo

desnecessário tecer nesta oportunidade, maiores considerações, uma vez que os

fundamentos que levaram à decretação da nulidade da sessão de julgamento do

tribunal do Júri popular estão estritamente pautados nos fatos constantes dos

autos e na lei.

Portanto, tenho que a análise objetiva das questões suscitadas já se realizara

no acórdão guerreado, e como é curial, os embargos declaratórios não se prestam

a esclarecer ou alterar os fundamentos de uma decisão de mérito, mas, sim,

dirimir ambiguidades, obscuridades, contradições e omissões, a meu sentir,

inexistentes na espécie.

Neste diapasão, a ementa abaixo transcrita:

[...] Cumpre ainda salientar que o embargante está se utilizando dos presentes

embargos com a pretensão fi nalística de modifi car essencialmente a decisão

embargada, o que não se justifi ca nem tem amparo amparo legal.

Todavia, não se admite o efeito infringente aos declaratórios, já que a sua

função é apenas a de esclarecer algum ponto omisso, obscuro ou contraditório

do julgado.

Page 90: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

906

Neste sentido, os seguintes julgados:

[...] Portanto, a meu sentir, inexiste no acórdão embargado qualquer omissão,

contradição ou obscuridade, como procura fazer crer o culto Procurador de Justiça,

posto que toda a matéria dos autos foi exaustivamente analisada, em todas as

suas circunstâncias, e não há como modifi car o acórdão dada a sua clareza no

exame das provas.;

Isso porque o referido acórdão foi claro ao consignar que:

[...] De início, data venia, registro que não é permitida a juntada de documentos

aos autos na fase em que o processo se encontra, nos termos do que prevê o

CPP e o Regimento Interno deste Tribunal de Justiça, devendo, portanto, serem

desentranhadas dos autos a documentação constante nas fl s. 619/665.

De outro lado, a afi rmação de que as gravações constantes no DVD de fl . 443

estão inaudíveis não foi conclusão isolada deste Relator, mas de toda a Turma

Julgadora, que não só observou a impossibilidade de escutar o conteúdo do referido

DVD, como também verifi cou o parecer técnico do setor competente deste Tribunal

de Justiça especializado em gravações e degravações, sendo o responsável legal para

executar esse tipo de serviço.

Ademais, as próprias informações trazidas pelo i. Procurador de Justiça nos

presentes Embargos reforçam a certeza da sensata decisão proferida pela Turma

Julgadora, pois à fl . 614 confessa ser “baixa a qualidade do áudio”, bem como

afi rmou que “as poucas partes ininteligíveis não impedem, nem difi cultam, a

intelecção do todo” (fl . 615), tanto que necessitou recorrer a órgãos estranhos ao

poder Judiciário e ao próprio Ministério Público, diga-se de passagem, sem a devida

autorização judicial para tal, a fi m de proceder à degravação do conteúdo do DVD.

Portanto, ainda que se pudesse juntar documentos novos na fase dos

Embargos Declaratórios (o que não é legalmente previsto), a documentação

juntada às fl s. 619/665 não tem qualquer valor jurídico e não substitui as oitivas,

depoimentos e alegações das partes constantes no DVD oriundo da sessão do

Tribunal do Júri, remetidas a este Tribunal pelo Juiz de 1º Grau.

Reafi rmo que foi impossível ouvir diretamente e de forma justa e plena o conteúdo

do DVD de fl . 443, bem como de degravá-lo, conforme os já citados ofícios remetidos

pela Coordenadoria da Central de Taquigrafia do TJMG (fls. 543 e 562) e pelo

escrivão da comarca de Uberlândia (fl . 577), que deram conta que “em virtude da

baixa qualidade de som, e que a Central de Taquigrafi a não dispõe de mecanismos,

softwares ou aparelhagem que possam melhorá-la, bem como amenizar o elevado

nível de ruídos presentes na gravação”.

Além disso, cumpre ressaltar que, contraditoriamente, inexiste nos autos

qualquer investigação ou denúncia contra o referido Setor de Taquigrafi a deste

Egrégio Tribunal de Justiça por parte do Ministério verdade.

Page 91: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 907

Importante frisar, ainda, que a publicidade que constitucionalmente se exige

do processo e do julgamento realizado perante o Tribunal do Júri deve ser de

modo irrestrito e acessível ao cidadão comum e a qualquer pessoa, não podendo

a gravação da sessão de julgamento constar nos autos de forma tão inaudível

el ininteligível a ponto de necessitar de alto grau de tecnologia externa ou da

intervenção de empresa especializada em “traduzir” parte dos autos do processo.

Se a decisão ora embargada não correspondeu à correta aplicação do Direito

ou à melhor interpretação das provas, como cediço, esta via não se apresenta

apropriada para sua reapreciação.

Ora, pude verifi car que nem mesmo a d. Procuradoria de Justiça se insurgiu

contra o acórdão na ocasião da sessão de julgamento neste TJ MG.

Conforme doutrina e jurisprudência fartamente majoritárias, a via eleita não

se presta para o reexame de matéria de mérito já debatida em tempo oportuno,

não merecendo provimento, ainda que impetrado com o objetivo de pré-

questionamento, se não vislumbrada, na decisão recorrida, as hipóteses previstas

no artigo 619, do CPP.

Nesse sentido:

Público, muito embora a d. Procuradoria Geral de Justiça tenha dado a

entender, por meio dos presentes embargos, que os supracitados ofícios de fl s.

543 e 562 não estão corretos e não representam a

[...]

Novos aclaratórios foram opostos pela acusação, os quais foram novamente

rejeitados (fl s. 816/820).

Todavia, entendo que a irresignação merece acolhida, como bem expôs o

parecer ministerial, cujos fundamentos também adoto como razões de decidir,

pois em conformidade com a orientação que tem sido estabelecida por esta

Corte (fl s. 997/1.006 – grifo nosso):

[...] 11. No mérito, a pretensão merece prosperar.

12. Na espécie, por ocasião da sessão de julgamento das apelações interpostas

pelos recorridos, a Corte de Justiça Estadual suscitou, de ofício, preliminar de

nulidade da sessão de julgamento realizada pelo Tribunal do Júri ao seguinte

argumento:

(...) O DVD contendo a mídia de gravação das provas produzidas durante

a sessão de julgamento acostado à fl. 443 dos autos, está inaudível, o

que impossibilita a análise das teses de defesa expostas nos apelos,

principalmente a alegação de que a condenação dos acusados é contrária

ao acervo probatório produzido. (fl . 702 e-STJ)

Page 92: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

908

13. Em suas razões, aponta o Parquet Estadual contrariedade ao art. 475 do

Código de Processo Penal, uma vez que embora o aúdio do referido CD não

apresente muito boa qualidade, é sufi cientemente audível, podendo, inclusive,

ser compreendido seu conteúdo com singelos fones de ouvido (informa que a

audição é melhor com fones de ouvido e volume baixo).

14. Em razão da baixa qualidade do aúdio, o representante do Ministério

Público Estadual enviou o conteúdo digital do áudio, via internet, à empresa Steno

do Brasil Importação e Exportação Comércio Assessoria Ltda, a qual, segundo afi rma,

realiza todas as transcrições das reuniões dos órgãos colegiados da Administração

Superior do MPMG, para a degravação do conteúdo da mídia dos presentes autos.

15. Destacou o órgão ministerial mineiro que “tal empresa possui vários

contratos fi rmados com o setor público, como, por exemplo, com o Supremo

Tribunal Federal - para a audiodescrição e implantação de legenda oculta na

programação da TV Justiça -, com o Tribunal Regional Federal da 3ª Região -

para prestação de serviços de estenotipia para audiências e interrogatórios em

processos judiciais -, e com a Escola Superior do Ministério Público do Estado de

São Paulo (documentos anexos)” (fl s. 838/839 e-STJ).

16. Acrescenta, neste aspecto, que, a mencionada empresa contratada para

realizada a degravação dos autos “verifi cou ser possível a compreensão da maior

parte do conteúdo do disco, sendo certo que as poucas partes ininteligíveis não

impedem, nem difi cultam, a intelecção do todo” (fl . 839 e-STJ).

17. Após realizadas as transcrições, foram enviadas ao Parquet Estadual e

anexadas aos primeiros embargos declaratórios opostos pelo ora recorrente.

Contudo, o Tribunal a quo, ao julgar os segundos aclaratórios ministeriais,

determinou o desentranhamento da mencionada degravação, violando o

disposto nos arts. 231, 405, §§ 1º e 2º, 475, caput, e parágrafo único, 479, 563, 565

e 571, inc. VII, todos do Código de Processo Penal. Razão lhe assiste.

18. Com efeito, o art. 231 do Decreto-Lei n. 3.689/41 estabelece que “salvo os

casos expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer

fase do processo”. Ora, se não há qualquer ressalva legal quanto à juntada de

documentos em determinadas fases do processo, o desentranhamento realizado pela

Corte de origem afronta diretamente o referido preceito legal.

19. Acerca do tema, essa Corte Superior de Justiça, ao interpretar o art. 231 do

Código de Processo Penal, tem admitido a juntada de documentos em qualquer

fase processual, admitindo-se, entretanto, o indeferimento pelo órgão julgador na

hipótese de os documentos apresentados terem caráter meramente protelatório ou

tumultuário. Nesta diretriz:

Processual Penal. Agravo regimental no agravo em recurso especial.

Atentado violento ao pudor. Alegada nulidade pelo desentranhamento

de laudo produzido pela defesa. Apontada violação ao art. 231 do CPP.

Inocorrência. Pleito de absolvição. Necessidade de reexame do acervo

probatório. Vedação da Súmula 7/STJ. Agravo não provido.

Page 93: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 909

1. “O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o preceito contido no

art. 231 do CPP, fi rmou entendimento de que é facultada às partes a juntada

de documentos em qualquer fase processual, admitindo-se, entretanto,

o indeferimento pelo órgão julgador na hipótese de os documentos

apresentados terem caráter meramente protelatório ou tumultuário” (HC

151.267/PR, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em

25/05/2010, DJe 14/06/2010).

2. Por outro vértice, a desconstituição do entendimento fi rmado pelo

Tribunal de piso diante de suposta contrariedade a lei federal, buscando

a absolvição, não encontra campo na via eleita, dada a necessidade de

revolvimento do material probante, procedimento de análise exclusivo das

instâncias ordinárias - soberanas no exame do conjunto fático-probatório -,

e vedado ao Superior Tribunal de Justiça, a teor da Súmula 7/STJ.

3. Agravo regimental não provido. (g.n.) (AgRg no AREsp 13.573/RS,

Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 15/10/2013, DJe

23/10/2013)

20. No caso em comento, resta patente que o novo documento apresentado pelo

ora recorrente não tem caráter meramente protelatório ou tumultuário, uma vez

que buscou-se comprovar que a mídia tida como inaudível e que foi determinante

para a declaração de nulidade do julgamento realizado pelo Tribunal do Júri era

perfeitamente audível, podendo ser escutada com singelos fones de ouvidos.

21. Ademais, sabe-se que o Parquet afi gura-se como órgão legitimado à colheita

de elementos probatórios essenciais à formação de sua opinio delicti, não havendo

cogitar-se de qualquer nulidade da prova juntada por ocasião da oposição de

embargos declaratórios, conforme autoriza o art. 231 do Código de Processo Penal.

Neste sentido:

Recurso ordinário em mandado de segurança. Processual Penal.

Pedido ministerial de juntada de documentos indeferido. Prova obtida em

investigação promovida pelo Ministério Público. Legitimidade. Providência

assegurada pelo art. 231 do Código de Processo Penal. Recurso provido.

1. O Ministério Público tem legitimidade para a colheita de elementos

probatórios essenciais à formação de sua opinio delicti. Não havendo

nulidade na prova colhida diretamente pelo órgão ministerial, nada impede

sua juntada ao autos nos termos do art. 231 do Código de Processo Penal,

que assegura às partes apresentar documentos em qualquer fase do

processo.

2. Basta para assegurar o cumprimento dos postulados constitucionais

da ampla defesa e do contraditório, que o julgador intime a parte contrária

para se manifestar a respeito.

Page 94: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

910

3. Recurso provido para determinar a juntada dos documentos. (g.n.)

(RMS 31.878/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em

06/11/2012, DJe 16/11/2012)

22. Ainda acerca do tema, dispõe o art. 479 do Estatuto Processual Penal que

“durante o julgamento não será permitida a leitura de documento ou a exibição

de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de 3

(três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte. Parágrafo único. Compreende-se

na proibição deste artigo a leitura de jornais ou qualquer outro escrito, bem como

a exibição de vídeos, gravações, fotografi as, laudos, quadros, croqui ou qualquer

outro meio assemelhado, cujo conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida

à apreciação e julgamento dos jurados”.

23. Não obstante, como bem ressalvou o recorrente, “não incide a vedação

prevista no artigo 479 do CPP, já que, embora os autos versem sobre crime de

competência do Tribunal do Júri, a degravação em comento não foi lida durante a

sessão de julgamento, até porque estava sendo produzida naquele momento, por

tratar-se de transcrição dos depoimentos colhidos na própria sessão, e registrados em

gravação magnética” (fl . 843 e-STJ).

24. Lado outro, ao revés do entendimento perfi lhado no acórdão estadual,

a realização de transcrição da mídia consitui faculdade da parte, inexistindo

qualquer obrigatoriedade de degravação no caso de depoimentos registrados em

meio audivisual. Tanto que esse Superior Tribunal de Justiça, em conformidade com

orientação do Conselho Nacional de Justiça, tem orientação no sentido de que cabe

ao interessado promovê-la, às suas expensas. Confi ra-se:

Habeas corpus substitutivo de recurso próprio. Descabimento. Homicídio.

Tribunal do Juri. Audiência na primeira fase do procedimento do júri

realizada por meio audiovisual. Degravação. Desnecessidade. Orientação

do CNJ. Art. 475, parágrafo único do CPP. Incidência no fase do Plenário do

Júri. Ausência de ilegalidade manifesta. Ordem denegada.

- O Superior Tribunal de Justiça, na esteira do entendimento fi rmado

pelo Supremo Tribunal Federal, tem amoldado o cabimento do remédio

heróico, adotando orientação no sentido de não mais admitir habeas corpus

substitutivo de recurso ordinário/especial. Contudo, a luz dos princípios

constitucionais, sobretudo o do devido processo legal e da ampla defesa,

tem-se analisado as questões suscitadas na exordial a fi m de se verifi car a

existência de constrangimento ilegal para, se for o caso, deferir-se a ordem

de ofício.

- Consoante o art. 405, § 2º do CPP, bem como orientação do Conselho

Nacional de Justiça não há necessidade de degravação no caso de

depoimentos registrados em meio audiovisual, cabendo ao interessado

promovê-la, a suas expensas e com sua estrutura, se assim o desejar,

“ficando vedado requerer ou determinar tal providência ao Juízo de

primeiro grau”.

Page 95: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 911

- Tratando-se de processo da Competência do Tribunal do Júri, a colheita

da prova efetuada na primeira fase poderá ser repetida em Plenário,

podendo, nessa etapa, incidir o art. 475, parágrafo único do CPP.

Ordem denegada. (g.n.) (HC 247.920/RS, Rel. Ministra Marilza Maynard

(Desembargadora Convocada do TJ/SE), Sexta Turma, julgado em

03/06/2014, DJe 18/06/2014)

25. De mais a mais, a simples ausência de transcrição dos depoimentos

e alegações prestados na sessão de julgamento realizada pelo Tribunal do Júri,

contido no CD acostado aos autos, não enseja, por si só, a declaração de nulidade

do julgamento popular, haja vista que o art. 405 c/c art. 475, ambos do Código de

Processo Penal, objetivam promover maior celeridade ao processo.

26. Corroborando tal prescindibilidade, cito a ressalva do § 2º do art. 405

daquele diploma, legal, que exclui, expressamente, a obrigatoriedade de

transcrição da gravação contida na mídia. Veja: “§ 2º No caso de registro por

meio audiovisual, será encaminhado às partes cópia do registro original, sem

necessidade de transcrição” (g.n.).

27. Não é outra a orientação do art. 2º da Resolução n. 105/2010 do Conselho

Nacional de Justiça, in verbis:

Art. 2º Os depoimentos documentados por meio audiovisual não

precisam de transcrição.

Parágrafo único. O magistrado, quando for de sua preferência pessoal,

poderá determinar que os servidores que estão afetos a seu gabinete

ou secretaria procedam à degravação, observando, nesse caso, as

recomendações médicas quanto à prestação desse serviço.

28. É também a jurisprudência desse Egrégio Tribunal, conforme os seguintes

julgados:

Penal. Processual Penal. Agravo regimental em agravo em recurso

especial. Homicídio qualifi cado. Pronúncia. Nulidade. Confi ssão mediante

tortura. Verifi cação. Impossibilidade. Súmula 7 do STJ. Prova oral colhida por

tecnologia audiovisual. Prescindível a degravação. Princípio da celeridade

processual. Precedentes. Agravo regimental não provido.

(...) 2. Predomina no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de,

em respeito ao princípio da celeridade processual, ser prescindível a

degravação da prova oral colhida por meio de tecnologia audiovisual.

Precedentes.

3. Agravo regimental não provido. (g.n.) (AgRg no AREsp 501.650/AP, Rel.

Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 04/11/2014, DJe

17/11/2014)

Page 96: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

912

Processual Penal. Habeas corpus. Homicídio qualifi cado. (1) Impetração

substitutiva de recurso ordinário. Impropriedade da via eleita. (2) Tribunal

do Júri. Primeira fase. Degravação da audiência. Desnecessidade. Art.

405, § 2º do CPP e orientação do CNJ. (3) Art. 475, parágrafo único do

CPP. Incidência apenas na segunda fase do Júri. Ausência de ilegalidade

manifesta. (4) Writ não conhecido.

1. Tem-se como imperiosa a necessidade de racionalização do emprego

do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia

constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi

impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso ordinário.

2. Há determinação legal no sentido de não ser necessária a degravação

de depoimentos colhidos por meio audiovisual, nos termos no artigo 405,

§ 2º do CPP. Há mais, o Conselho Nacional de Justiça orienta no mesmo

sentido.

3. A colheita da prova efetuada na primeira fase do Júri, caso dos autos,

poderá ser repetida em plenário, podendo, nessa etapa, incidir o art. 475,

parágrafo único do CPP.

4. Habeas corpus não conhecido. (g.n.) (HC 239.454/RS, Rel. Ministra

Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 18/06/2014, DJe

04/08/2014)

29. Por derradeiro, sabe-se que, em se tratando de nulidade, predomina, em

nosso ordenamento jurídico, o “sistema da instrumentalidade das formas”, em que

se dá o maior valor à fi nalidade atingida pelo ato, mesmo viciado, bem como

ao prejuízo causado pelo ato atípico, cabendo ao magistrado verifi car, diante

de cada situação, a conveniência de retirar-se a efi cácia do ato praticado em

desacordo com o modelo legal.

30. Segundo o escólio de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes

Filho e Antonio Scarance Fernandes, destacam-se, na ótica da instrumentalidade

das formas, os princípios do prejuízo, da causalidade, do interesse e da

convalidação. Acerca do princípio do prejuízo, confi ra as seguintes lições dos

renomados juristas:

A decretação da nulidade implica perda da atividade processual já

realizada, transtornos ao juiz e às partes e demora na prestação jurisdicional

almejada, não sendo razoável, dessa forma, que a simples possibilidade

de prejuízo dê lugar à aplicação da sanção; o dano deve ser concreto e

efetivamente demonstrado em cada situação.

31. In casu, se a baixa qualidade do aúdio do CD da sessão de julgamento do

Tribunal do Júri pudesse gerar sua nulidade, deve-se considerar que se trata de

nulidade relativa, cujo prejuízo aos ora recorridos deveria ter sido comprovado. Não é

outro o entendimento dessa Corte Superior de Justiça:

Page 97: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 913

Processo Penal. Ofensa ao art. 619 do CPP não confi gurada. Ausência de

provas em relação a qualifi cadora e julgamento contrário à prova dos autos.

Incidência da Súmula 7/STJ. Nulidade. Não demonstração do prejuízo.

Agravo regimental desprovido.

(...) 3. O eventual reconhecimento da nulidade por não observância do

art. 475 do CPP demanda a efetiva comprovação do prejuízo.

4. Agravo regimental desprovido. (g.n.) (AgRg no AREsp 555.360/SP, Rel.

Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 27/09/2016, DJe

10/10/2016)

32. A propósito, conclui o recorrente que, “se os réus, nem na ata de julgamento

do Júri, nem em seus recursos, sequer arguiram tal nulidade (contribuindo para o

suposto vício), é porque não houve prejuízo, aplicando-se o disposto nos arts. 563,

565 e 571, VII (preclusão), todos do Código de Processo Penal” (fl . 853 e-STJ).

[...]

De fato, o Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar o preceito contido

no art. 231 do Código de Processo Penal, fi rmou em diversas oportunidades a

orientação de que o pedido de juntada de documentos é permitido em qualquer

fase processual, cabendo ao magistrado indeferir a providência caso tenha

caráter irrelevante, protelatório ou tumultuário, nos termos do art. 400, § 1º, do

Código de Processo Penal.

Ilustrando esse entendimento:

Habeas corpus. Tráfico e associação para o tráfico. Absolvição. Juntada de

laudo pericial após o oferecimento, pela defesa, de contrarrazões ao recurso do

Ministério Público. Ausência de manifestação das partes. Documento utilizado na

condenação. Constrangimento ilegal.

1. De acordo com o art. 231 do Código de Processo Penal, salvo os casos

expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do

processo.

2. Embora seja possível a juntada de documentos até mesmo na fase recursal,

é certo que, em obediência aos postulados constitucionais da ampla defesa e do

contraditório, deveria a defesa ter sido intimada a se manifestar.

3. No caso presente, houve a juntada de laudo da perícia realizada no aparelho

celular apreendido por ocasião da prisão em fl agrante dos corréus quando já

interposta a apelação e oferecidas contrarrazões a tal recurso. Não se procedeu,

posteriormente, à oitiva da defesa, para que pudesse se manifestar sobre o novo

documento trazido aos autos.

4. De se ver, ainda, que o referido documento foi efetivamente utilizado pela

Corte de origem quando do julgamento da apelação, que culminou na reforma

da sentença e consequente condenação do paciente.

Page 98: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

914

5. “Acórdão condenatório que se louvou, entre outras provas, em peças

técnicas inseridas nos autos após as contra-razões oferecidas pela defesa, que

sobre elas não foi chamada a pronunciar-se. Alegada violação ao princípio do

contraditório. Alegação de todo procedente”. (STF, HC 69314/RJ, Relator Ministro

Ilmar Galvão, DJ de 4.9.92).

6. Ordem concedida para, de um lado, anular o julgamento da apelação,

determinando que outro seja procedido, após abertura de vistas às partes, com o

intuito de se manifestarem acerca do documento juntado em momento posterior

às contrarrazões oferecidas pela defesa; de outro lado, assegurar possa o paciente

aguardar em liberdade o desfecho do processo.

(HC n. 88.765/SP, Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, DJe 14/12/2009)

Não tem sido diversa a orientação jurisprudencial adotada pelo Supremo

Tribunal Federal:

Processual Penal. Agravo regimental em habeas corpus. Condenação por crime

de concussão. Execução provisória. Possibilidade. Alegação de nulidade em razão

do não oferecimento de defesa prévia. Ausência de comprovação de prejuízo.

Desentranhamento de documentos. Ausência de ilegalidade fl agrante.

[...]

2. “O princípio do pas de nullité sans grief exige, em regra, a demonstração de

prejuízo concreto à parte que suscita o vício, podendo ser ela tanto a nulidade

absoluta quanto a relativa, pois não se decreta nulidade processual por mera

presunção” (HC 132.149-AgR, Rel. Min. Luiz Fux)

3. “O pedido de juntada de documentos é permitido (art. 231, do CPP), cabendo

ao relator indeferir a providência, caso tenha caráter irrelevante, impertinente,

protelatório ou tumultuário, nos termos do art. 400, § 1º, do CPP” (Inq 3.998-AgR,

Rel. Min. Edson Fachin).

4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgR no HC n. 149.890 AgR, Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe

25/4/2018)

Na espécie, é evidente que o documento apresentado pelo Ministério

Público não possui natureza protelatória ou tumultuária; longe disso, os autos

evidenciam situação peculiar, qual seja, a demonstração de que, apesar da baixa

qualidade da gravação da sessão de julgamento, por conta do baixo volume do

áudio, a mídia apresenta compreensão das declarações, não obstante, repito, a

pouca qualidade, tanto que o seu conteúdo foi objeto de degravação por empresa

especializada, contratada às expensas do próprio representante do Ministério

Público.

Page 99: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 915

Imperioso registrar que, se no processo penal se busca a verdade real,

cabendo ao Juiz ir ao encontro de todos os elementos que possam retratar

a realidade dos fatos, a sua validade também depende, sobretudo, do bom

andamento do feito, com adoção de meios ou providências que garantam a

celeridade de sua tramitação, assegurando a razoável duração do processo.

Esta Turma, ao examinar aspecto semelhante, já se posicionou no sentido

de que a mera alegação de juntada inoportuna de prova documental aos autos,

desprovida de qualquer fundamentação tendente a demonstrar o prejuízo da

irregularidade advindo, ou, mesmo, a interferência no conhecimento da verdade

substancial da causa, não determina a nulidade do processo (HC n. 18.568/RS,

Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, DJ 25/2/2002).

Além disso, nem sequer seria o caso de nulidade absoluta.

De um lado, é certo que o § 2º do art. 405 do Código de Processo Penal,

visando assegurar a razoável duração do processo e celeridade em sua tramitação,

permite o registro das provas em mídia eletrônica sem necessidade de transcrição.

Isso porque eventual prejuízo deve ser arguido e provado oportunamente, já que

ensejaria nulidade de natureza relativa, o que não ocorreu na hipótese dos autos.

Extrai-se facilmente dos autos que os réus e seus defensores não cogitaram

a existência de vícios na sessão de julgamento do Tribunal do Júri, nem na ata

de julgamento ou mesmo em seus recursos de apelação, sendo o caso de aplicação do

princípio do pas de nullité sans grief.

A esse respeito, inúmeros julgados:

Agravo regimental no habeas corpus. Fraude à licitação e desvio de verbas

públicas. Inobservância de rito processual. Supressão de instância. Prejuízo não

demonstrado. Princípio da consunção. Independência entre os delitos. Matéria de

prova. Elevação da pena base. Agravante era proprietário da empresa vencedora.

Fundamentação inidônea. Pena reduzida ao mínimo legal. Aplicação das penas

de reclusão e detenção. Somatório para fi ns de defi nição de regime. Modo aberto.

Suspensão da execução da pena autorizada. Execução da pena restritiva de

direito somente após o trânsito em julgado. Agravo regimental provido em parte.

1. Segundo a jurisprudência desta Corte de Justiça e do Supremo Tribunal

Federal, tanto nos casos de nulidade relativa como nos de nulidade absoluta,

aplica-se o princípio pas de nullité sans grief, sendo imprescindível a efetiva

demonstração de prejuízo (AgRg no REsp 1.525.861/SP, Rel. Ministro Gurgel de

Faria, Quinta Turma, julgado em 30/06/2015, DJe 04/08/2015).

2. No caso, a inobservância do rito processual invocado não pode ser julgada

nesta Corte, porque não foi impugnada na instância anterior.

Page 100: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

916

Ademais, não se reconhece, no processo penal, nulidade da qual não tenha

acarretado prejuízo, conforme disciplina o art. 563 do Código de Processo Penal.

3. No caso, o agravante foi condenado nos dois crimes, porque restou

comprovado que os agentes se associaram para fraudar caráter competitivo

de procedimento licitatório, com o intuito de obter vantagem decorrente da

adjudicação do objeto do certame, e depois, que ainda obtiveram a vantagem

indevida, sendo necessária uma incursão probatória para desconstituir essa

conclusão.

[...]

7. Agravo regimental provido em parte para alterar a pena base dos crimes

para o mínimo legal (2a + 2a), totalizando 4 anos de reclusão, no regime aberto,

devendo ser substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de

direito, a serem estabelecidas pelo Juízo das execuções, devendo o agravante

aguardar em liberdade o trânsito em julgado da ação penal.

(AgRg no HC n. 451.520/SP, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta

Turma, DJe 15/8/2018)

[...] 4. Quanto ao pleito subsidiário de anulação do feito, a jurisprudência

desta Corte Superior de Justiça firmou entendimento no sentido de que o

reconhecimento de nulidade no curso do processo penal, seja ela absoluta ou

relativa, reclama efetiva demonstração de prejuízo, à luz do art. 563 do Código

de Processo Penal, segundo o princípio pas de nullité sans grief, o que não restou

comprovado pelo impetrante na espécie.

[...] 6. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no HC n. 223.667/SP, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe

14/8/2018)

Agravo regimental no recurso especial. Homicidio tentado. Nulidade do

julgamento pelo Júri. Matéria preclusa. Prejuízo. Demonstração. Ausência. Agravo

regimental não provido.

1. Nos termos da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, é

inadmissível o recurso especial que arrosta acórdão alinhado à orientação desta

Corte Superior ou que demande imersão fático-probatória.

2. Pacífico o entendimento de que eventuais irregularidades ocorridas no

julgamento do Tribunal do Júri devem ser impugnadas no momento processual

oportuno e registradas na ata da sessão do Conselho de Sentença, sob pena de

preclusão.

3. Havendo sido impugnada a leitura de trechos do relatório de sentença

condenatória ao qual o recorrente respondia em outro processo, e pelo qual já se

encontrava preso, somente após a votação dos quesitos pelos jurados, escorreito

o reconhecimento de que a insurgência, realizada a posteriori, já estava fulminada

pela preclusão.

Page 101: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 917

4. Não bastasse, para rechaçar a tese de nulidade aventada pelo recorrente,

apontou o Tribunal de origem que o conteúdo lido em Plenário pela acusação

nem sequer tinha relação direta com a matéria de fato submetida à apreciação e

julgamento do Conselho de Sentença. Tratava-se apenas de informações acerca

do histórico criminal do recorrente, o qual, inclusive, já era de conhecimento dos

jurados e, mais ainda, da defesa.

5. A legislação penal em vigor, quando se trata de alegação de nulidade de

ato processual, seja ela relativa ou absoluta, requer a demonstração do concreto

prejuízo sofrido pela parte, em consonância com o princípio pas de nullité sans

grief, disposto no art. 563 do CPP.

6. Não havendo a defesa se desincumbido do ônus que lhe cabia - o qual não

se infere apenas pela condenação do acusado -, a sua constatação por esta Corte

Superior demandaria o revolvimento do acervo fático-probatório dos autos,

providência inviável, consoante já sumulado no verbete n. 7/STJ.

7. Agravo regimental não provido.

(AgRg no REsp n. 1.413.229/RO, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma,

DJe 2/8/2018)

Penal e Processo Penal. Agravo regimental no agravo em recurso especial.

Homicídio qualifi cado. Nulidade absoluta decorrente de violação do art. 422 do

CPP. Pas de nullité sans grief. Ausência de comprovação de efetivo prejuízo. Súmula

83/STJ. Recurso que não infi rma todos os fundamentos do acórdão recorrido.

Súmula 283/STF. Agravo regimental improvido.

1. A Lei Processual Penal em vigor adota, em sede de nulidades processuais,

o princípio pas de nullité sans grief, segundo o qual somente há de se declarar a

nulidade se, alegada em tempo oportuno, houver demonstração ou comprovação

de efetivo prejuízo para a parte, o que, conforme as premissas delineadas no

acórdão, não ocorreu, na espécie. Incidência da Súmula 83/STJ.

[...]

3. Agravo regimental improvido.

(AgInt no AREsp n. 1.208.397/RS, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe

15/5/2018)

Processo Penal. Habeas corpus. Tráfico de drogas. Nulidade em razão da

destituição de advogado constituído e nomeação de defensor público para

apresentar alegações fi nais, em razão da inércia da defesa. Não demonstração de

prejuízo. Art. 563 do CPP. Súmula n. 523 do Supremo Tribunal Federal.

1. Consoante dispõe o art. 563 do CPP, não se declara a nulidade de ato

processual sem que haja efetiva demonstração de prejuízo, em observância ao

princípio pas de nullité sans grief. No mesmo sentido, preconiza o enunciado n.

523 da Súmula do Supremo Tribunal Federal que, “No processo penal, a falta de

Page 102: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

918

defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua defi ciência só o anulará se houver

prova de prejuízo para o réu”.

2. Na hipótese, não se desincumbiu a impetrante de comprovar a existência

de prejuízo decorrente da desconstituição do defensor e nomeação de defensor

público para apresentação de alegações fi nais, não se revelando sufi ciente, para

tal desiderato, a mera alegação de que “foi tolhido do paciente o direito de ser

devidamente assistido por defensor constituído de sua confi ança”, ou de que “a

Defensoria Pública apresentou tese genérica, bem distante da tese alinhavada

pelo Dr. Gildásio”. Não se vislumbra, pois, o alegado constrangimento ilegal por

cerceamento de defesa.

3. Ordem denegada.

(HC n. 425.965/SP, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe

5/4/2018)

Ressalto que esta Sexta Turma, por ocasião do julgamento do AgRg no

AREsp n. 714.484/MT, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti, deixou claro

o entendimento consagrado nesta Corte Superior, segundo o qual a degravação

da audiência de instrução e julgamento, em meio magnético ou audiovisual, só se

justifi ca em casos excepcionais e devidamente comprovada a sua necessidade, de

forma que, para ser declarada a nulidade do art. 475 do Código de Processo Penal,

deve haver a demonstração inequívoca do prejuízo sofrido pela parte, sob pena de

convalidação.

No caso dos autos, considero não ter havido demonstração de prejuízo

decorrente do possível defeito na gravação da sessão de julgamento, por conta

do baixo volume do áudio, uma vez que o réu e seus defensores estiveram presentes

em audiência, sendo conhecedores do teor das mídias juntadas aos autos, não sendo a

condenação sufi ciente para demonstrar a existência de prejuízo.

Sendo assim, deve ser afastada a ilação do Tribunal de Justiça quanto à

nulidade da sessão de julgamento do Tribunal do Júri, porquanto contrária

à jurisprudência desta Corte Superior, cabendo ainda ao Tribunal a quo, a

fi m de se dar maior celeridade e efetividade ao processamento da ação penal,

determinar a juntada aos autos da documentação apresentada pelo Ministério

Público em sede de embargos de declaração, abrindo-se vistas às partes, com

o intuito de se manifestarem acerca do referido documento, prosseguindo, ao

fi nal, na análise do recurso de apelação e das manifestações dos acusados, como

entender de direito.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para afastar a nulidade

da sessão de julgamento do Tribunal do Júri, cabendo ao Tribunal a quo

Page 103: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 919

determinar a juntada aos autos da documentação apresentada pelo Ministério

Público, abrindo-se vistas às partes, para fi ns do contraditório e da ampla defesa,

prosseguindo na análise das manifestações e do recurso de apelação, como

entender de direito.

RECURSO ESPECIAL N. 1.753.563-MG (2018/0171181-9)

Relator: Ministro Nefi Cordeiro

Recorrente: T V DA S

Recorrente: L J N DE S

Advogado: Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais

Recorrido: Ministério Público do Estado de Minas Gerais

EMENTA

Processo Penal. Recurso especial. Ato infracional análogo ao

delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/2006. Aplicação de medida

socioeducativa de semiliberdade. Desproporcionalidade. Preceito

secundário que não impõe ao maior imputável restrição à liberdade.

Reconhecida a ofensa ao princípio da proteção integral. Recurso

provido.

1. Confi gura ofensa ao princípio da proteção integral, a aplicação

de semiliberdade ao adolescente pela prática de ato infracional

análogo ao crime previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, na medida

em que a aludida medida socioeducativa se mostra mais gravosa do

que o preceito secundário do crime de posse de drogas para consumo

próprio, aplicável aos maiores de 18 anos. Precedentes desta Corte e

do STF.

2. Recurso especial provido para restabelecer a medida de

prestação de serviços à comunidade, na forma estipulada pelo Juízo

singular.

Page 104: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

920

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na

conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, dar

provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os

Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior e

Rogerio Schietti Cruz votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 02 de outubro de 2018 (data do julgamento).

Ministro Nefi Cordeiro, Presidente e Relator

DJe 16.10.2018

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Nefi Cordeiro: Trata-se de recurso especial interposto em

face de acórdão assim ementado:

Ementa: ECA. Ato infracional análogo ao crime de tráfi co de drogas. Reiteração.

Internação. Medida adequada ao caso. Ato infracional análogo ao crime de uso de

drogas. Reiteração. Medida adequada ao caso. Semiliberdade.

Diante da média gravidade do ato praticado, da reiteração na prática de atos

infracionais e do descumprimento pelo adolescente de medidas anteriormente

impostas, há que ser tentada a semiliberdade, como forma de reintegrá-lo à

sociedade, antes de ser-lhe aplicada a medida extrema de internação.

Mostrando-se a internação necessária para a reeducação do adolescente, face

à gravidade do ato infracional e do fato de se encontrar ele fortemente inserido

no mundo do crime, não há falar em substituição da medida socioeducativa

imposta.

Sustenta o recorrente violação dos arts. 100, parágrafo único, II, 120, § 2º, e

122, todos do ECA e 28 da Lei 11.343/06.

Argumenta que se mostra desproporcional impor aos Recorrentes medida

restritiva de liberdade, por violação ao princípio da proteção integral do menor

inimputável, sob pena de sujeitar o adolescente à situação mais gravosa que o adulto

autor da infração prevista no artigo 28, da Lei 11.343/06 (fl . 251).

Requer, assim, a reforma o acórdão recorrido, a fi m de que seja restabelecida

a medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade.

Page 105: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 921

Contra-arrazoado e admitido na origem, manifestou-se o Ministério

Público Federal pelo provimento do recurso.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Nefi Cordeiro (Relator): Consta dos autos que foi

julgado procedente o pedido para aplicar a medida de prestação de serviços à

comunidade por ato infracional análogo ao delito previsto no art. 28 da Lei

11.343/06. Interposto recurso pelo Ministério Público, o Tribunal de Justiça deu

provimento para fi xar a medida socioeducativa de semiliberdade.

No tocante à medida socioeducativa, o voto condutor assim referiu (fl s.

224/226):

Lado outro, quanto a MSE de prestação de serviços à comunidade, imposta

aos menores T.V.S. e L J.N.S., consiste na prestação de serviços comunitários,

por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais,

hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como programas

comunitários ou governamentais e não governamentais.

Tal medida deve ser gratuita e levada a efeito em estabelecimento de serviços

públicos ou de relevância pública, governamentais ou não, federais, estaduais

ou municipais. Devendo o seu período de cumprimento, respeitado o prazo

máximo de seis meses, ser proporcional à gravidade do ato praticado, podendo

ser aplicada em qualquer dia da semana, mas sem prejudicar a frequência à

escola ou a jornada normal de trabalho.

Após a análise da Certidão de Antecedentes dos Menores T.V.S. e L.J.N.S. (f. 63/66),

contudo, os quais já foram condenados inúmeras outras vezes e cumpriram, sem

êxito, outras medidas socioeducativas, concluo que a aplicação da referida medida

não se mostra suficiente para afastá-los do mundo do crime, devendo ser-lhes

imposta, consequentemente, a MSE de semiliberdade, a qual é uma alternativa

ao regime de internamento que priva, parcialmente, a liberdade do adolescente,

colocando-o em contato com a comunidade.

O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, que defi ne os princípios e

parâmetros da ação e gestão pedagógicas das medidas socioeducativas, confi gura

a semiliberdade como uma medida restritiva de liberdade, mas que admite a

coexistência do adolescente com o meio externo e institucional, estabelecendo

a obrigatoriedade da escolarização e de atividades profi ssionalizantes, numa

interação constante entre a entidade responsável pela aplicação da medida e a

comunidade, utilizando-se, preferencialmente, dos recursos desta.

Page 106: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

922

A principal característica da semiliberdade, portanto, e que a difere do sistema

de internamento, é que admite a existência de atividades externas e a vigilância

é a mínima possível, não havendo aparato físico para evitar a fuga, pois tal

medida funda-se, precipuamente, no senso de responsabilidade do adolescente

e em sua aptidão para ser reinserido na comunidade, contribuindo, assim, para o

fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Nos mesmos moldes da liberdade assistida, é elaborado um programa de

atendimento individual do adolescente, que será cumprido através de fases.

Entretanto, na semiliberdade o adolescente acaba ficando mais tempo na

instituição, o que não ocorre com a liberdade assistida, em que o adolescente só

comparece à instituição nos dias determinados para atendimento.

O período da semiliberdade não poderá exceder três anos, devendo o

adolescente, durante o período do cumprimento da medida imposto pelo juiz,

se submeter a avaliações periódicas realizadas, no máximo, a cada seis meses,

levadas a efeito pela equipe interdisciplinar, a qual poderá sugerir, inclusive, a

progressão para o cumprimento em meio aberto, nas modalidades liberdade

assistida ou prestação de serviços à comunidade, ou mesmo o seu desligamento

definitivo do programa de atendimento, por ter cumprido satisfatoriamente,

todas as fases, e se encontrar apto para conviver, pacifi camente, na sociedade e

exercer plenamente a sua cidadania.

O juiz poderá aplicar a medida socioeducativa de semiliberdade como resposta a

qualquer ato infracional praticado pelo adolescente, principalmente aqueles similares

aos crimes de médio potencial ofensivo, desde que, analisadas as circunstâncias, a

gravidade e as condições pessoais do adolescente, seja considerada a medida mais

adequada ao caso concreto.

Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso, a fi m de impor ao menor

P.H.S. a medida socioeducativa de internação e aos menores T.V.S. e L.J.N.S. a

medida socioeducativa de semiliberdade, nos termos da lei.

Considerando que o tipo penal previsto no 28 da Lei 11.343/06 não traz

qualquer sanção de privação de liberdade, não se mostra adequada a imposição

de medida socioeducativa de semiliberdade, incorrendo em sentido oposto aos

princípios da proteção integral e da proporcionalidade, previstos nos arts. 100,

parágrafo único, II e VIII, c/c art. 113, ambos da Lei 8.069/90, na medida em

que a semiliberdade se mostra mais gravosa do que o preceito secundário do

crime de posse de drogas para consumo próprio, aplicável aos maiores de 18

anos. A propósito:

Habeas corpus substitutivo de recurso próprio. Impropriedade de via eleita.

Aplicação de medida socioeducativa de internação. Ato infracional equiparado

ao delito previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 - uso de entorpecentes. Delito

Page 107: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 923

para o qual não se prevê, para o maior imputável, pena privativa de liberdade,

mas restritiva de direitos. Princípio da proteção integral do menor inimputável.

Internação que se apresenta mais gravosa e desproporcional. Constrangimento

ilegal confi gurado. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício.

[...]

- Seguindo o referido princípio, a internação, meio mais gravoso de restrição

à liberdade do menor infrator, deve ser imposta apenas quando nenhum outro

meio se mostrar adequado ao caso, nas hipóteses taxativas do art. 122 do ECA.

- O art. 28 da Lei n. 11.343/2006, ao punir a posse de entorpecentes para consumo

próprio, não autoriza a privação da liberdade do condenado, pessoa adulta e

plenamente imputável, mas prevê tão somente a aplicação de penas restritivas de

direitos. Diante disso, se o menor ou o adolescente gozasse de plena imputabilidade

penal, não seria submetido a medida privativa de liberdade, como ocorre na

internação.

- É manifesto o constrangimento ilegal, por violar o princípio da proteção integral

do menor inimputável, a imposição, ao paciente, da medida excepcional e mais

gravosa de internação pela prática de ato infracional análogo ao delito previsto

no art. 28 da Lei de Drogas que, se cometido por adulto, não autorizaria a privação

da liberdade do autor. Precedentes desta Corte e de ambas as Turmas do Supremo

Tribunal Federal.

- Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para afastar a

aplicação da medida socioeducativa de internação ao paciente, sem prejuízo da

imposição de qualquer medida prevista no art. 112 da Lei n. 8.069/90, desde que

não implique a privação, mesmo que parcial, da liberdade de ir e vir do paciente.

(HC 338.851/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma,

julgado em 23/02/2016, DJe 04/03/2016.)

Nesse mesmo sentido é a posição da Suprema Corte:

Ementa: “Habeas corpus”. Impetração deduzida contra decisão monocrática

de Ministro de Tribunal Superior da União. Hipótese de incognoscibilidade do

“writ” constitucional. Diretriz jurisprudencial fi rmada por ambas as Turmas do

supremo Tribunal Federal. Ressalva da posição pessoal do relator desta causa, que

entende cabível o “writ” contra decisões monocráticas. Confi guração, entretanto,

de evidente situação de injusto constrangimento ao “status libertatis” do paciente.

Imposição de medida socioeducativa de internação a adolescente que praticou

ato infracional equiparado ao delito previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006, para

o qual não se comina pena privativa de liberdade, mas, tão só, pena meramente

restritiva de direitos. Situação de injusto constrangimento confi gurada. “Habeas

corpus” não conhecido. Ordem concedida de ofício. – A criança e o adolescente

recebem especial amparo que lhes é dispensado pela própria Constituição da

Page 108: Sexta Turma · 2019. 6. 10. · Jurisprudência da SEXTA TURMA RSTJ, a. 31, (253): 817-924, janeiro/março 2019 821 Não há tampouco como se cogitar a atipicidade da conduta, por

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

924

República, cujo texto consagra, como diretriz fundamental e vetor condicionante da

atuação da família, da sociedade e do Estado (CF, art. 227), o princípio da proteção

integral. – O sistema de direito positivo, ao dispor sobre o menor adolescente

em situação de confl ito com a lei, nas hipóteses em que venha ele a cometer ato

infracional – a cuja prática se estende o princípio da insignifi cância (HC 102.655/

RS, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.) –, objetiva implementar programas e planos de

atendimento socioeducativo, cuja precípua função – entre aquelas defi nidas na

Lei n. 12.594/2012 – consiste em promover a integração social do adolescente,

garantindo-lhe a integridade de seus direitos, mediante execução de plano

individual de atendimento, respeitados, sempre, o estágio de desenvolvimento

e a capacidade de compreensão do menor inimputável. – Revela-se contrário ao

sistema jurídico, por subverter o princípio da proteção integral do menor inimputável,

impor ao adolescente – que eventualmente pratique ato infracional consistente

em possuir drogas para consumo próprio – a medida extraordinária de internação,

pois nem mesmo a pessoa maior de dezoito anos de idade, imputável, pode sofrer

a privação da liberdade por efeito de transgressão ao art. 28 da Lei n. 11.343/2006.

Precedente.

(HC 124.682, Relator(a): Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em

16/12/2014, Processo Eletrônico DJe-037 divulg 25/02/2015 public 26/02/2015.)

Oportunamente, como bem destacado no parecer ministerial, tratando-

se de ato infracional análogo à posse de entorpecentes para uso próprio, mostra-se

excessiva e desproporcional, por desrespeitar o Princípio da Proteção Integral, a

imposição de medida socioeducativa privativa de liberdade a adolescente que incorra

em ato infracional análogo a delito que, se cometido por adulto, como é o caso do art. 28

da Lei de Drogas, não autoriza a privação da liberdade (fl . 278).

Ante o exposto, voto por dar provimento ao recurso especial para

restabelecer a medida de prestação de serviços à comunidade, na forma

estipulada pelo Juízo singular.