sim 78 sobre o fenômeno das migrações literárias

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OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 7 DE DEZEMBRO DE 2014 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Sobre o Fenômeno das Migrações Literárias S erei eu um original, um origi- nante ou um originado ? Esta pergunta eu sempre me fa- ço às vésperas de lançar um no- vo livro visível de Andara - como vou fazer nesta quinta-feira à noite, no IAP, lançando Breve é a febre da terra. E v ocê, se considera uma pessoa ori- ginal ou igual a todas as outras? Independentemente de como você seja, o que você acha que é melhor para a Humanidade: - Todos serem originais ? – Todos serem diferentes ? – Ou, como as coisas já são: uma mescla de diferenças e semelhanças alternadamente separan- do e unindo os homens? Essa pergunta – o que é melhor? – se nós a aplicamos à vida sendo vivi- da, não se aplica à vida sendo criada. E com isso entramos em nosso assunto desta Sim: a Originalidade & a Imita- ção na Literatura. Um exemplo do que chamo vida criada, como outras artes entre as quais o Cinema, o Teatro, a Pintura, a Música. No caso específico da Literatura, nem pensar em escrever igual a ou- tros – se dizem os grandes escritores que criaram, cada um deles, um mun- do novo através da imaginação verbal. Citemos alguns: Kafka, Beckett, Joyce, Bruno Schulz e o nosso Guimarães Rosa. E como você talvez não conheça alguns deles, é bom dar amostras de suas singularidades: - Quando certa manhã Gregor Sa- msa acordou de sonhos intranquilos, se viu em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso./Kafka, A Metamorfose. - instantes passados velhos sonhos que regressam ou recentes os que pas- sam ou coisa coisa sempre e recorda- ções as digo como as ouço as murmuro na lama/Beckett, Como é. - Os senhores da lua, me disse Te- ósofos, um ignilarânjeo carregamento do planeta Alfa da cadeia lunar, não evocariam duplos etéreos e estes fo- ram por conseguinte incarnados nos rubricoloridos egos da segunda cons- telação./Joyce, Ulisses. - Sentado, o ouço silêncio. O quarto está simplesmente calado. Às vezes apa- rece no teto branco o pé de galinha de uma fenda, às vezes uma pétala de rebo- co cai com um ruído. Bruno Schulz/Sa- natório sob o signo da clepsidra. - Tinha vergonha de frente e de perfil, todo mundo viu, tinha também de alentar internas desordens no espí- rito./ Guimarães Rosa,Tutaméia, Barra da Vaca. Para estes autores, a originalidade é fundamental, pois é através dela que podem ver, transcriar e transmitir aos leitores a vida vista com outros olhos. Liberdade, Igualdade e Originalidade Tantos anos escrevendo & viven- do, eu creio que esse princípio deveria também ser aplicado não apenas nas Artes, mas ao nosso viver cotidiano. singular e raro: ele não pode negar que tem raízes originadas em um autor original, mas por se recusar a deixar de procurar suas próprias raízes, a sua originalidade, se torna um outro tipo de escritor que chamaríamos de: origi- nal originado originante. Foi o caso da relação entre o francês Charles Baudelaire e o norte-america- no Edgar Allan Poe, no século XIX. Sem ocultar sua identificação com o autor original que admirava, Poe, Baudelaire fez a apologia da obra de Poe e a fez repercutir em todo o mun- do, permitindo que ela ecoasse em sua própria obra mas se mantendo profundamente ligada às suas pró- prias raízes. Com o que se tornou um originado original, O que é muito, muito diferente do que fazem os meros e falsos ori- ginados imitadores – que tentam se apropriar da obra de outro, original, e roubá-la para si. E a analogia com qualquer outra espécie de roubo não é gratuita, uma vez que o falso origina- do imitador oculta de todos o seu ato procurando apagar pistas que levem o leitor a rastrear as origens da sua pseu- do-obra. E o mais grave: faz tudo o que pode para ocultar a obra do verdadeiro Autor e anulá-lo. O que permite fazer outra analogia com uma conduta tão sórdida quanto a dele, pois age: - Como alguém que oculta um cor- po que usava uma joia roubada para poder apresentá-la publicamente como sua. Poe & Baudelaire Voltando à devoção de Baudelaire por Poe, podemos ver nela o destemor amoroso de Baudelaire por Poe, a quem ele admira e ao mesmo tempo protege das imitações dos outros escritores e até de si mesmo. Esse Baudelaire que se colocou aos olhos do mundo explicitamente em seu amor por Poe, sem temer ser apon- tado como um escritor dependente de Poe e sacrificou as Tentações de uma possível vaidade à plena revelação de Poe ao mundo. Essas suas condutas – a de Baude- laire e dos milhares de escritor falsi- ficadores de obras originais – têm se revezado ao longo dos séculos, desde as origens da Literatura e da obra de arte como um todo, em todas as suas manifestações. É o que veremos na Sim do próximo domingo. Enquanto esperamos por ela, cito aqui, completa, para sua reflexão, a fra- se de Shitao, o Monge Abóbora Amar- ga, do século XVII: Eu existo por mim mesmo e para mim mesmo. As barbas e sobrancelhas dos mestres da Antiguidade não po- dem crescer no meu rosto, nem as suas entranhas se instalar no meu ventre: tenho as minhas próprias entranhas e barbas. E mesmo quando a minha obra seja afim da de algum mestre, é ele que me segue, e não eu que o busca. Literatura dos seus vícios estagnados e convenções, como que instiga outros autores a percorrer esses caminhos que ele, Joyce, abriu. Um exemplo, ainda que parcial, é o francês Michel Simon, que adotou abolir a pontuação como Joyce fez em Ulisses e sobretu- do, posteriormente, em Finnegans Wake, e recebeu o Prêmio Nobel que Joyce jamais viu. Simon seria então um escritor originado de Joyce? Sim & não: a originação não depende apenas da linguagem usada, passa também por temas preferenciais, personagens típicos, ambientações pessoais e, por baixo disso tudo, principalmente pela natureza humana, como se diz, de ca- da escritor. Porque, apesar de tudo, um homem único adormece em cada um de nós, no obscuro oceano das seme- lhanças massificadoras e sempre luta para vir à tona. Na Arte como na Vida. Infelizmente, a relativizada interde- pendência de Michel Simon não é co- mum a todos os escritores originados. Imensa maioria se limita a copiar seus modelos, com o que todo mundo perde: o autor original, o escritor origi- nado e principalmente o leitor – este, pois a vida sonhada da ficção se torna uma massa amorfa, sem revelações, surpresas, espantos, novas belezas e uma visão revitalizadora da Vida. Como se dão essas perdas nos ou- tros dois? O autor original tem desgastada a sua originalidade pela vulgarização das repetições banalizantes. O escritor originado passa a viver sob a sombra de um outro, negando a sua própria possível originalidade. Elogios de admiração Este título, que remete à obra homô- nima do romeno-francês Cioran, nos introduz a um tipo de escritor bastante acima citadas. Mas, apesar de parecer deslizar como uma sequência, não se trata de um fenômeno simples e sim bastante complexo. Vejamos isso, agora: O irlandês Samuel Beckett é um original mas jamais um originante – porque ninguém conseguiria escre- ver como ele. O também irlandês James Joyce é um original originante – sua revelação de novas linguagens, que libertaram a Vejamos: andando na rua e vendo as outras pessoas, apesar das diferen- ças visíveis – existem infinitas seme- lhanças invisíveis. No campo da vida vivida o fenôme- no tem seus estágios: primeiro se dá no parecermos iguais – depois, movidos por uma necessidade irresistível de sabermos quem de fato somos, alguns de nós buscam sua originalidade, sua identidade única, singular – e quanto mais cada um imerge nessa identidade própria, esses mais se diferenciam uns dos outros. Até atingirem o fundo, isto é: a originalidade única de cada um. E é nessa profundidade que se realiza o mais belo: cada um, agora – não mais sendo uma semelhança coletiva super- ficial – imerso em sua originalidade profunda, todos percebem que é justa- mente nela, Originalidade, que somos essencialmente iguais. É onde todos os homens se encontram e compõem ver- dadeiramente uma Humanidade. É nesse ponto, após fazerem suas descidas em busca de si mesmo, que Bach, na Música, Van Gogh, na Pintura, Kafka, na Literatura, por exemplo, com- põem um fundo comum a todos os ho- mens, e, justamente por isso, tocam bem profundamente cada um de nós, através de nossas superficiais diferenças. Originais: Originantes: Originados O fenômeno das migrações literá- rias – de estilos & temas – de um escri- tor para os outros, passa pelas etapas E mesmo quando a minha obra seja afim da de algum mestre, é ele que me segue e não eu que o busca. SHITAO Edgar Allan Poe Charles Baudelaire Galáxia: Bilhões de estrelas semelhantes mas diferentes

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Escritores originais, originantes e originados

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Page 1: Sim 78 Sobre o Fenômeno das Migrações Literárias

O LIBERALBELÉM, DOMINGO, 7 DE DEZEMBRO DE 2014 MAGAZINE 11

sim [email protected] CECIM

Sobre o Fenômeno das Migrações Literárias

Serei eu um original, um origi-nante ou um originado?Esta pergunta eu sempre me fa-ço às vésperas de lançar um no-

vo livro visível de Andara - como vou fazer nesta quinta-feira à noite, no IAP, lançando Breve é a febre da terra.

E você, se considera uma pessoa ori-ginal ou igual a todas as outras?

Independentemente de como você seja, o que você acha que é melhor para a Humanidade: - Todos serem originais? – Todos serem diferentes? – Ou, como as coisas já são: uma mescla de diferenças e semelhanças alternadamente separan-do e unindo os homens?

Essa pergunta – o que é melhor? – se nós a aplicamos à vida sendo vivi-da, não se aplica à vida sendo criada. E com isso entramos em nosso assunto desta Sim: a Originalidade & a Imita-ção na Literatura. Um exemplo do que chamo vida criada, como outras artes entre as quais o Cinema, o Teatro, a Pintura, a Música.

No caso específico da Literatura, nem pensar em escrever igual a ou-tros – se dizem os grandes escritores que criaram, cada um deles, um mun-do novo através da imaginação verbal. Citemos alguns: Kafka, Beckett, Joyce, Bruno Schulz e o nosso Guimarães Rosa. E como você talvez não conheça alguns deles, é bom dar amostras de suas singularidades:

- Quando certa manhã Gregor Sa-msa acordou de sonhos intranquilos, se viu em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso./Kafka, A Metamorfose.

- instantes passados velhos sonhos que regressam ou recentes os que pas-sam ou coisa coisa sempre e recorda-ções as digo como as ouço as murmuro na lama/Beckett, Como é.

- Os senhores da lua, me disse Te-ósofos, um ignilarânjeo carregamento do planeta Alfa da cadeia lunar, não evocariam duplos etéreos e estes fo-ram por conseguinte incarnados nos rubricoloridos egos da segunda cons-telação./Joyce, Ulisses.

- Sentado, o ouço silêncio. O quarto está simplesmente calado. Às vezes apa-rece no teto branco o pé de galinha de uma fenda, às vezes uma pétala de rebo-co cai com um ruído. Bruno Schulz/Sa-natório sob o signo da clepsidra.

- Tinha vergonha de frente e de perfil, todo mundo viu, tinha também de alentar internas desordens no espí-rito./Guimarães Rosa,Tutaméia, Barra da Vaca.

Para estes autores, a originalidade é fundamental, pois é através dela que podem ver, transcriar e transmitir aos leitores a vida vista com outros olhos.

Liberdade, Igualdade e Originalidade

Tantos anos escrevendo & viven-do, eu creio que esse princípio deveria também ser aplicado não apenas nas Artes, mas ao nosso viver cotidiano.

singular e raro: ele não pode negar que tem raízes originadas em um autor original, mas por se recusar a deixar de procurar suas próprias raízes, a sua originalidade, se torna um outro tipo de escritor que chamaríamos de: origi-nal originado originante.

Foi o caso da relação entre o francês Charles Baudelaire e o norte-america-no Edgar Allan Poe, no século XIX.

Sem ocultar sua identificação com o autor original que admirava, Poe, Baudelaire fez a apologia da obra de Poe e a fez repercutir em todo o mun-do, permitindo que ela ecoasse em sua própria obra mas se mantendo profundamente ligada às suas pró-prias raízes. Com o que se tornou um originado original,

O que é muito, muito diferente do que fazem os meros e falsos ori-ginados imitadores – que tentam se apropriar da obra de outro, original, e roubá-la para si. E a analogia com qualquer outra espécie de roubo não é gratuita, uma vez que o falso origina-do imitador oculta de todos o seu ato procurando apagar pistas que levem o leitor a rastrear as origens da sua pseu-do-obra. E o mais grave: faz tudo o que pode para ocultar a obra do verdadeiro Autor e anulá-lo.

O que permite fazer outra analogia com uma conduta tão sórdida quanto a dele, pois age:

- Como alguém que oculta um cor-po que usava uma joia roubada para poder apresentá-la publicamente como sua.

Poe & Baudelaire Voltando à devoção de Baudelaire

por Poe, podemos ver nela o destemor amoroso de Baudelaire por Poe, a quem ele admira e ao mesmo tempo protege das imitações dos outros escritores e até de si mesmo.

Esse Baudelaire que se colocou aos olhos do mundo explicitamente em seu amor por Poe, sem temer ser apon-tado como um escritor dependente de Poe e sacrificou as Tentações de uma possível vaidade à plena revelação de Poe ao mundo.

Essas suas condutas – a de Baude-laire e dos milhares de escritor falsi-ficadores de obras originais – têm se revezado ao longo dos séculos, desde as origens da Literatura e da obra de arte como um todo, em todas as suas manifestações.

É o que veremos na Sim do próximo domingo.

Enquanto esperamos por ela, cito aqui, completa, para sua reflexão, a fra-se de Shitao, o Monge Abóbora Amar-ga, do século XVII:

Eu existo por mim mesmo e para mim mesmo. As barbas e sobrancelhas dos mestres da Antiguidade não po-dem crescer no meu rosto, nem as suas entranhas se instalar no meu ventre: tenho as minhas próprias entranhas e barbas. E mesmo quando a minha obra seja afim da de algum mestre, é ele que me segue, e não eu que o busca.

Literatura dos seus vícios estagnados e convenções, como que instiga outros autores a percorrer esses caminhos que ele, Joyce, abriu. Um exemplo, ainda que parcial, é o francês Michel Simon, que adotou abolir a pontuação como Joyce fez em Ulisses e sobretu-do, posteriormente, em Finnegans Wake, e recebeu o Prêmio Nobel que Joyce jamais viu. Simon seria então um escritor originado de Joyce? Sim & não: a originação não depende apenas da linguagem usada, passa também por temas preferenciais, personagens típicos, ambientações pessoais e, por baixo disso tudo, principalmente pela natureza humana, como se diz, de ca-da escritor. Porque, apesar de tudo, um homem único adormece em cada um de nós, no obscuro oceano das seme-lhanças massificadoras e sempre luta para vir à tona. Na Arte como na Vida.

Infelizmente, a relativizada interde-pendência de Michel Simon não é co-mum a todos os escritores originados.

Imensa maioria se limita a copiarseus modelos, com o que todo mundo perde: o autor original, o escritor origi-nado e principalmente o leitor – este, pois a vida sonhada da ficção se torna uma massa amorfa, sem revelações, surpresas, espantos, novas belezas e uma visão revitalizadora da Vida.

Como se dão essas perdas nos ou-tros dois?

O autor original tem desgastada a sua originalidade pela vulgarização das repetições banalizantes. O escritor originado passa a viver sob a sombra de um outro, negando a sua própria possível originalidade.

Elogios de admiração

Este título, que remete à obra homô-nima do romeno-francês Cioran, nos introduz a um tipo de escritor bastante

acima citadas.Mas, apesar de parecer deslizar

como uma sequência, não se trata de um fenômeno simples e sim bastante complexo.

Vejamos isso, agora:O irlandês Samuel Beckett é um

original mas jamais um originante – porque ninguém conseguiria escre-ver como ele.

O também irlandês James Joyce é um original originante – sua revelação de novas linguagens, que libertaram a

Vejamos: andando na rua e vendo as outras pessoas, apesar das diferen-ças visíveis – existem infinitas seme-lhanças invisíveis.

No campo da vida vivida o fenôme-no tem seus estágios: primeiro se dá no parecermos iguais – depois, movidos por uma necessidade irresistível de sabermos quem de fato somos, alguns de nós buscam sua originalidade, sua identidade única, singular – e quanto mais cada um imerge nessa identidade própria, esses mais se diferenciam uns dos outros. Até atingirem o fundo, isto é: a originalidade única de cada um. E é nessa profundidade que se realiza o mais belo: cada um, agora – não mais sendo uma semelhança coletiva super-ficial – imerso em sua originalidade profunda, todos percebem que é justa-mente nela, Originalidade, que somos essencialmente iguais. É onde todos os homens se encontram e compõem ver-dadeiramente uma Humanidade.

É nesse ponto, após fazerem suas descidas em busca de si mesmo, que Bach, na Música, Van Gogh, na Pintura, Kafka, na Literatura, por exemplo, com-põem um fundo comum a todos os ho-mens, e, justamente por isso, tocam bem profundamente cada um de nós, através de nossas superficiais diferenças.

Originais: Originantes: Originados

O fenômeno das migrações literá-rias – de estilos & temas – de um escri-tor para os outros, passa pelas etapas

E mesmo quando a minha obraseja afim da de algum mestre,é ele que me seguee não eu que o busca.SHITAO

Edgar Allan Poe

Charles Baudelaire

Galáxia: Bilhões de estrelas semelhantes mas diferentes