simmel, georg. a aventura
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A AVENTURA
Georg Simmel
Cada parte de nossa atividade e de nossa experincia tem um duplo
significado: ela gira em torno do prprio ponto central; ela ter tanto em
amplitude e profundidade, em prazer e dor, quanto lhe for concedido pela
experincia imediata; e ela simultaneamente uma parte do decorrer da vida,
no apenas uma totalidade circunscrita, mas tambm um componente de um
organismo completo. Estes dois sentidos configuram diversamente cada
contedo de vida; acontecimentos cujas significaes prprias poderiam ser
muito semelhantes entre si - quando essas se referem a si mesmas - so
extremamente divergentes em funo de suas relaes com a totalidade da
vida; ou, sendo talvez incomparveis com respeito primeira perspectiva, seus
papis como elementos de nossa existncia inteira podem ser quase idnticos.
Se de duas experincias, cujos contedos perceptveis so semelhantes, uma
percebida como "aventura" e a outra no, isto constitui aquela diversividade
da relao com a totalidade da nossa vida, pela qual cabe a esta tal significado,
que outra no se coloca.
A forma da aventura, em sua acepo mais genrica, pode ser assim
expressa: ela extrapola o contexto da vida. Por aquela totalidade de uma vida
entendemos que em seus contedos especficos - por mais que eles se
distingam de uma maneira flagrante e irreconcilivel - circula um processo de
vida unitrio. Contraposto imbricao dos anis da vida, ao sentimento de
que, apesar de todas essas contracorrentes, essas viradas, esses embaraos,
se tece, finalmente, uma linha contnua, est aquilo que chamamos aventura:
uma parte da nossa existncia qual - pela frente e por trs se ligam
imediatamente outras, mas que, ao mesmo tempo, em seu sentido profundo,
corre por fora de qualquer continuidade desta vida. No obstante, ela distinta
do simples acaso, do estranho, do que apenas roa a epiderme da vida. Ao
situar-se fora do contexto da vida, a aventura como que penetra, justamente
com esse mesmo movimento, novamente nele - isso ser paulatinamente
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esclarecido. Ela um corpo estranho em nossa existncia, que, no entanto,
de alguma forma ligado ao centro. O externo , mesmo via um longo e no
habitual desvio, uma forma do interno.
Por essa situao anmica, a aventura recebe facilmente a colorao do
sonho na memria. Todos sabem como os sonhos so rapidamente
esquecidos, em funo de eles se situarem tambm fora do contexto de
sentido da totalidade da vida. O que denominamos "onrico" no outra coisa
seno uma recordao, que se associa com menos fios que as demais
experincias ao processo dinmico e unitrio da vida. Localizamos nossa
incapacidade em ordenar uma experincia a esse processo na representao
do sonho, no qual esta experincia teria se realizado. Quanto mais
"aventureira" for uma aventura, tanto mais seu conceito ser preenchido em
sua acepo mais pura, tanto mais ela ser "onrica" para nossa memria. E
ela freqentemente se afasta tanto do ponto central do Eu e do decurso da
totalidade da vida, por ele firmemente assegurado, que pensamos facilmente
na aventura, como se um outro a tivesse vivenciado; quo distante ela paira no
lado oposto desta totalidade e quo estranha a aventura se lhe tomou,
exprime-se justamente pelo fato de, por assim dizer, ser compatvel com nosso
sentimento, dar a ela um outro sujeito que no aquele.
Em um sentido muito mais preciso do que quando tratamos das outras
formas dos nossos contedos de vida, a aventura tem comeo e fim. Isto
constitui seu desligamento dos entrelaamentos e encadeamentos daqueles
contedos, seu centramento em um sentido prprio. Com respeito aos
acontecimentos cotidianos e aos anuais, percebemos que um termina na
medida em que - ou por que - o outro se coloca. Eles determinam suas
fronteiras entre si, e, com isso, a unidade do contexto da vida configurada ou
expressa. A aventura, porm, segundo seu sentido como aventura,
independente do anterior e do posterior; ela determina seus limites sem
consider-los, Precisamente l onde a continuidade com a vida recusada por
princpio - ou que em verdade sequer precisa ser recusada, porque um
estranhamento, uma intocabilidade e uma existncia parte so dados de
antemo - falamos de aventura. A ela falta aquela penetrao mtua com as
partes vizinhas da vida, pela qual esta forma uma totalidade. O seu comeo e oseu fim so determinados como uma ilha na vida, de acordo com suas prprias
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foras formadoras, e no como um pedao de um continente, determinado
simultaneamente pelo lado de c e pelo lado de l. Esta delimitao decisiva,
com qual a aventura se subtrai da marcha conjunta de um destino, no algo
mecnico, mas orgnico. Assim como o organismo no determina sua forma
espacial simplesmente por meio de obstrues vindas da direita e da esquerda,
mas mediante a fora motriz de uma vida que se forma internamente, tambm
a aventura no termina porque alguma outra coisa se inicia. Antes, sua forma
temporal, seu fim radical, constitui a figura precisa de seu sentido interior.
Aqui temos, em primeiro lugar, a relao profunda do aventureiro com o
artista, e talvez tambm o fundamento da inclinao do artista pela aventura,
pois a essncia da obra de arte que ela recorta um pedao da linha
infinitamente contnua da plasticidade e da experincia, o solta da conexo
com este e com aquele lado e lhe d uma forma auto-suficiente, determinada a
partir de um centro interno, e por de mantida unida. O fato de uma parte da
existncia - entrelaada na ininterrupo desta - ser, todavia, sentida como
uma totalidade, como uma unidade acabada, constitui a forma comum obra
de arte e aventura. E em funo dela ambas so sentidas - em toda
parcialidade e casualidade dos seus contedos - como se em cada uma delas
de alguma maneira se resumisse e se esgotasse a vida toda. E isto parece
acontecer no de um modo pior, mas sim de um modo mais perfeito, porque a
obra de arte se coloca do lado oposto da vida, uma realidade, e a aventura se
coloca do lado oposto da vida, como um processo ininterrupto, que entrelaa
compreensivelmente todo elemento com seu vizinho. Justamente porque a
obra de arte e a aventura se opem vida (mesmo que nos mais distintos
significados do oposto),1 uma e outra so anlogas totalidade de uma vida,
como representado em um pequeno corte e na densidade da experincia do
sonho.
Por isso o aventureiro tambm o exemplo mais forte do homem a-
histrico, do ser do presente. De um lado, ele no definido por nenhum
passado, o que determina sua oposio velhice, de outro, no h para ele o
futuro. Uma prova extrema, e bem caracterstica disto, temos no fato de
Casanova, como de se ler em suas memrias, to amide, no decorrer da
1No original, Gegenber, que tambm pode significar "perante", "estar diante de". (N. do T.)
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sua vida ertico-aventureira, pretender seriamente se casar com a mulher que
ele amava naquele momento. Na natureza e na conduo da vida de Casanova
havia algo completamente contraditrio; interna e externamente algo mais
impossvel seria impensvel. Casanova no foi somente um conhecedor
primoroso dos homens, mas especialmente um raro conhecedor de si mesmo;
tendo de dizer a si prprio que no manteria um casamento por mais de
catorze dias e que as conseqncias lastimveis deste passo seriam
totalmente inevitveis, o xtase do momento (quero aqui colocar o acento mais
sobre o momento do que sobre o xtase) engolia a perspectiva de futuro.
Porque o sentimento do presente o dominava incondicionalmente, ele buscava
uma relao para o futuro, o que era impossvel justamente por sua natureza
do presente.
O fato de algo isolado e casual conter uma necessidade e um sentido
diferencia o conceito de aventura de todas as partes da vida que encaixam os
meros desgnios do destino em sua periferia. Uma tal parte da vida s se torna
uma aventura por meio daquela dupla doao de sentido: ela constitui em si
uma configurao de um sentido que de alguma maneira deveras significativo
- configurao que fixada por meio de um comeo e um fim -; ela est, no
obstante toda sua casualidade e toda sua exterioridade perante o fluxo
contnuo da vida, em conexo com a essncia e com a determinao do sujeito
em um sentido amplo - que se alastra aos segmentos racionais da vida - e em
uma necessidade secreta.
Isso faz lembrar a relao do aventureiro com o jogador. O jogador, na
verdade, est abandonado falta de sentido do acaso; apenas na medida em
que ele conta com o favor deste acaso, na medida em que ele considera
possvel uma vida condicionada por este acaso, e a realiza, o acaso coloca-se
para ele em uma concatenao do sentido. A superstio tpica do jogador no
outra coisa seno a forma palpvel e singular, e por isso infantil, deste
esquema profundo e abrangente de sua vida: que no caso reside um sentido,
um significado, necessrio qualquer - mesmo que este no seja necessrio
segundo a lgica racional. Pela superstio, com a qual o jogador quer atrair o
acaso, via augrios e lances mgicos, para dentro do seu sistema de
finalidade, ele o libera de seu impenetrvel isolamento, ele procura nesseacaso uma ordem vigente segundo certas leis, mesmo que segundo leis
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fantsticas. E assim o aventureiro permite que o acaso, que se situa fora da
linha da vida, que dirigida por um sentido, seja todavia abrangido por este
sentido. Ele introduz um sentimento central da vida, que conduzido por meio
da excentricidade da aventura e produz uma necessidade nova e significativa
de sua vida, justamente na amplitude da distncia entre seu contedo casual
dado pelo exterior e o centro da existncia - unificador e doador de sentido.
Entre acaso e necessidade, entre os fragmentados da realidade exterior e o
significado unitrio da vida desenvolvida a partir de dentro, est em jogo, em
ns, um processo eterno, e as grandes formas, nas quais configuramos os
contedos da vida, so as snteses, os antagonismo e os compromissos destes
aspectos fundamentais. A aventura um deles. Se o aventureiro profissional
faz da ausncia de sistema da sua vida um sistema de vida, se ele busca os
meros acasos exteriores a partir de sua necessidade interior, incorporando
aqueles nesta, com isto ele toma apenas macroscopicamente visvel o que
constitui a forma essencial de toda "aventura", mesmo a do homem no-
aventureiro, pois sempre entendemos por aventura um terceiro termo - alm
tanto do mero acontecimento abrupto, cujo sentido permanece pura e
simplesmente exterior para ns (do mesmo modo como veio do exterior), como
tambm da linha unitria da vida, na qual cada parte complementa a outra,
formando um sentido total. A aventura no uma mistura de ambos, mas a
experincia incomparavelmente colorida, que se deixa interpretar apenas como
abrangncia especial daquele plo casual-exterior pelo plo interior-
necessidade.
Ocasionalmente toda esta relao ainda abarcada por uma profunda
configurao interior. Da mesma maneira como a aventura parece basear-se
numa diferenciao dentro da vida, a vida como um todo pode ser sentida
como uma aventura. Para tanto, no preciso nem ser um aventureiro, nem
vivenciar vrias aventuras especficas. Quem tem esta atitude singular perante
a vida deve sentir, sobre a totalidade daquela vida, uma unidade superior,
como que uma vida superior que se comporta perante aquela como a prpria
totalidade da vida imediata diante das experincias especficas - que so para
ns as aventuras empricas. Talvez pertenamos a uma ordem metafsica,
talvez nossa alma viva uma existncia transcendente, de tal forma que,contraposta a uma inominvel existncia que se completa acima dela, nossa
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vida terrena consciente seja somente uma parte isolada. O mito da
transmigrao de almas pode ser uma tentativa hesitante de exprimir este
carter segmentrio de toda vida dada. Quem sente por meio de toda a vida
real uma existncia atemporal e secreta da alma que ligada a estas
realidades apenas como que de longe - perceber a vida em sua totalidade
dada e limitada como uma aventura, comparada quele destino transcendente
e em si unitrio. Certas motivaes religiosas parecem provocar isto. Onde
nosso trilho terreno considerado um mero estgio anterior do cumprimento do
destino eterno, onde temos sobre a terra apenas uma ligeira estadia de
hspede, mas no um lar, h manifestamente apenas uma colorao especial
do sentimento geral de que a vida como uma totalidade uma aventura; com o
que expresso somente que os sintomas da aventura afluem para ela: que ela
se situa fora do sentido prprio e do decurso contnuo da existncia, mas est,
contudo, ligada a eles por meio de um destino e de uma simblica misteriosa;
que ela um acaso fragmentrio, mas , todavia, coesa como uma obra de
arte, com comeo e fim; que ela, como um sonho, junta em si todas as paixes
e, como este, est fadada ao esquecimento; que ela, como o jogo, se distingue
do srio, mas caminha, como o Va banquedo jogador, em direo alternativa
de um ganho mximo ou da destruio.
A sntese das grandes categorias da vida - sendo a aventura uma
formao peculiar delas - perfaz-se entre a atividade e a passividade, entre
aquilo que conquistamos, e aquilo que nos dado. Sem dvida, a sntese da
aventura torna a oposio destes elementos extremamente perceptvel. Por um
lado, com ela, abarcamos violentamente o mundo em nosso interior. A
diferena em relao maneira como aproveitamos as ddivas dele no
trabalho deixa isto claro. O trabalho possui, por assim dizer, uma relao
orgnica com o mundo, ele desenvolve continuamente as matrias e foras do
mundo at seu pice, visando a finalidades humanas, enquanto, na aventura,
temos uma relao inorgnica com o mundo; ela traz consigo os gestos do
conquistador, o rpido aproveitamento das chances, no importando se com
isto separamos uma parte harmnica ou desarmnica para ns, para com o
mundo ou para com a relao de ambos. De outro lado, porm, na aventura,
estamos expostos ao mundo, mais desprotegidos e sem reservas do quenaquelas relaes todas, que esto ligadas por mais pontes com a totalidade
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de nossa vida no mundo e que, portanto, nos protegem melhor contra os
choques e perigos, por meio de desvios e adaptaes.
Aqui entrelaamento de ao e sofrimento, no qual decorre nossa vida,
estende seus elementos a uma simultaneidade da conquista, que deve tudo
somente prpria fora e ao esprito do presente, e do completo abandonar-se
s foras e s chances do mundo, que tanto podem nos favorecer como nos
destruir. O fato de a unidade na qual reunimos em cada momento nossa
atividade e nossa passividade perante o mundo - unidade que num certo
sentido constitui a vida - conduzir seus elementos a um aguamento to
extremo e, precisamente com isto, tomar-se mais profundamente perceptvel -
como se eles fossem somente aspectos de uma e da mesma vida
misteriosamente inseparvel - constitui um dos mais admirveis encantos com
o qual a aventura nos seduz.
O fato de a aventura continuar nos parecendo um cruzamento do
momento de segurana da vida com o de insegurana constitui algo mais que o
posicionamento da mesma relao fundamental, sob um outro ponto de vista. A
segurana que - acertada ou equivocadamente - temos com respeito ao xito
confere atividade uma colorao qualitativamente especial. Se, ao contrrio,
no estamos seguros de que alcanaremos o objetivo estabelecido na partida,
se temos conscincia da incerteza com respeito ao xito, isto constitui no
apenas uma segurana quantitativamente menor, mas significa, antes, uma
conduo interna e externamente singular da nossa praxis. O aventureiro, para
diz-lo numa s palavra, trata o que na vida incalculvel, como em geral
tratamos o que pode ser calculado com segurana. (Por isso o filsofo o
aventureiro do esprito. Ele faz a tentativa sem perspectiva, porm no sem
sentido, de formular em termos de um conhecimento conceitual um
procedimento de vida da alma, sua disposio diante de si, do mundo e de
Deus. Ele trata o insolvel como se fosse solvel.)
Onde o entrelaamento com os elementos desconhecidos do destino
torna duvidoso o xito de nossa atividade, cuidamos de limitar o emprego de
nossas foras, de manter abertas as linhas de retirada e damos cada passo
apenas experimentando. Na aventura, procedemos de um modo
diametralmente oposto: apostamos tudo justamente na chance flutuante, nodestino e no que impreciso, derrubamos a ponte atrs de ns, adentramos o
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nevoeiro, como se o caminho devesse nos conduzir sob quaisquer
circunstncias. Este o tpico "fatalismo" do aventureiro. Certamente as
escurides do destino no so mais transparentes a ele que aos outros, mas
ele se comporta como se fossem. A ousadia peculiar com a qual ele sempre se
retira da estabilidade da vida constri de certa maneira, para sua prpria
legitimao, um sentimento de segurana e de necessidade do xito, que em
geral s encontramos na transparncia de acontecimentos calculveis. O fato
de o aventureiro, no obstante, crer que este desconhecido seguro para ele
constitui apenas um afastamento subjetivo da convico fatalista, de que nosso
destino - o qual no conhecemos - com certeza inevitvel; por isso a
atividade do aventureiro freqentemente parece loucura aos olhos do homem
sbrio, porque, para que tenha sentido, ela parece ter como pr-requisito que o
insondvel seja sabido.
O prncipe de Ligne dizia de Casanova: "Ele no acredita em nada,
exceto no que menos plausvel". Evidentemente, aquela relao perversa ou
no mnimo "aventureira" entre o sabido e o ignorado constitui o fundamento
desta afirmao. O ceticismo do aventureiro - o fato de ele "no acreditar em
nada" - manifestamente um correlato disto: para quem o improvvel
provvel, o provvel toma-se facilmente improvvel. O aventureiro confia, de
algum modo, em sua prpria fora; antes de tudo, porm, confia em sua prpria
sorte; no fundo, ele se fia em uma singular unio no diferenciada de ambas. A
fora, da qual ele est seguro, e a sorte, da qual ele no est seguro,
convergem nele - subjetivamente - em direo a um sentimento de segurana.
Se a essncia do gnio caracterizada por uma relao imediata com as
unidades misteriosas, que na experincia e na decomposio operada pela
razo se separam em fenmenos completamente isolados, ento o aventureiro
genial vive, como que com um instinto mstico, no ponto onde a marcha do
mundo e o destino individual por assim dizer ainda no se diferenciaram um do
outro. Por isso o aventureiro tem geralmente feies "geniais". A partir desta
constelao especial, na qual ele faz do mais inseguro e do incalculvel os
pressupostos de sua ao - o que um outro faria apenas do calculvel -, toma-
se compreensvel a "segurana sonmbula" com a qual o aventureiro conduz
sua vida e, mediante a postura inabalvel que este mantm quando vem a serdesmentido pelos fatos, se comprova quo profundamente aquela constelao
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est enraizada nos pressupostos de vida de pessoas desta natureza.
Mesmo sendo a aventura uma forma de vida que pode se concretizar em
uma multiplicidade de contedos de vida no decididos de antemo, o
contedo ertico tende, antes de todos os demais, a assumir esta forma, de tal
modo que nossa linguagem praticamente impede a aventura de ser entendida
como algo diferente de uma experincia ertica. Na verdade, uma experincia
amorosa de curta durao no constitui necessariamente uma aventura. Antes,
para que ela exista, mister que as qualidades anmicas especiais - em cujo
ponto de encontro reside a aventura - se unifiquem com esse momento
quantitativo. Sua tendncia para esta aproximao manifesta-se passo a
passo.
A relao amorosa contm em si a juno clara - que tambm unifica a
forma do aventureiro - desses elementos: a fora conquistadora e a concesso
no-constrangi da, o ganho advindo da prpria capacidade e a dependncia da
sorte, que nos concedida por 11ma instncia incalculvel alheia nossa fora
e capacidade. Talvez uma certa equivalncia destas direes na experincia,
obtidas na base de sua diferenciao profunda, seja encontrvel somente da
parte do homem; talvez se deva a isto a significao exemplar, constatvel no
fato de a relao amorosa normalmente ser considerada apenas para o homem
"aventura", sendo que para a mulher algo idntico enquadrado em outras
categorias. A atividade da mulher em um romance amoroso tipicamente
entremeada de passividade, que foi pela natureza ou pela histria atribuda
sua essncia; por outro lado, o ato de receber e o seu contentamento
constituem imediatamente uma concesso e um presentear. Os dois plos da
conquista e da graa - que podem ser expressos em vrios matizes - esto
muito prximos na mulher e se distanciam decisivamente no homem, e por isso
sua juno na experincia ertica confere ao homem o cunho - pouco dbio -
de "aventura".
O fato de o homem ser a parte pretendente, ativa e amide
impetuosamente abarcadora permite facilmente que, em cada experincia
ertica percebida com displicncia, o momento do destino, ou seja, a
dependncia a algo no previamente determinvel, a algo que se subtrai a
qualquer coao, passa desapercebido. Com isto entendemos no apenas adependncia concesso por parte do outro, mas algo mais profundo.
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Certamente todo amor correspondido um presente que no pode ser
"merecido", independente da proporo do amor, porque o amor se esquiva de
qualquer exigncia e pagamento e, por princpio, pertence a uma categoria
totalmente distinta do acerto mtuo de contas; um ponto que mostra uma de
suas analogias com a relao religiosa profunda. Alm daquilo que recebemos
do outro como doao livre, existe ainda em cada felicidade amorosa um favor
do destino - como portador mais profundo e impessoal daquela doao
pessoal. Ns o recebemos no apenas do outro, antes, o fato de recebermos
dele constitui uma graa dos poderes incalculveis. No acontecimento mais
orgulhoso e autoconfiante deste campo reside algo que devemos tomar com
humildade. E na medida em que a fora, que deve seu sucesso a si mesma e
que d a toda conquista amorosa algum tom de vitria e triunfo, se casa com
aquela outra da graa do destino, temos de certa maneira a constelao da
aventura.
Em solos profundos enraza-se a relao do contedo ertico com as
formas gerais de vida da aventura. A aventura o enclave do contexto da vida,
o recorte abrupto, cujo incio e fim no tm ligao com a corrente de algum
modo unitria da existncia e no obstante, ela, como que por sobre esta
corrente e prescindindo de sua mediao, se conecta com os instintos mais
misteriosos e com uma inteno ltima da vida e se diferencia, em funo
disto, do mero episdio casual, do que nos "acontece" apenas exteriormente.
Onde a experincia amorosa tem uma durao curta, ela vive justamente neste
entrelaamento de um carter meramente tangencial com um carter central.
Ela pode dar nossa vida um brilho simplesmente momentneo, como um raio
que lana, em um ambiente interior, uma luz externa, deslizante, efmera;
todavia, com isto satisfeita uma necessidade, ou, em outros termos, a
aventura s possvel em funo de uma necessidade chamem-na fsica,
psquica ou metafsica - que existe como que atemporalmente no fundamento
ou no centro de nossa essncia e que to ligada experincia fugaz, quanto
aquela claridade casual prontamente extinguvel o com a nossa nostalgia da
luz.
A possibilidade de existncia desta dupla relao no mbito do ertico
espelha-se em seu duplo aspecto temporal: o xtase momentaneamenteculminante e abruptamente cadente e a eternidade, em cuja idia se cria uma
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expresso temporal para o fato de duas almas serem de uma forma mstica
determinadas uma para a outra e ainda para uma unidade superior. E isto
poderia ser comparado com a dupla existncia de contedos espirituais, que
emergem de fato apenas na fugacidade do processo anmico, no ponto sempre
instantneo de incandescncia da conscincia, mas cujo sentido lgico possui,
porm, uma validade atemporal, uma significao ideal, totalmente
independente daquele instante da conscincia, na qual estes contedos
espirituais se tornam reais para ns. O fenmeno da aventura - com sua marca
abruptamente pontiaguda, que empurra o final para o campo de viso do incio
e com sua relao simultnea com um centro da vida, que a distingue do mero
acontecimento casual (relao cuja ausncia implicaria a impossibilidade de
existncia do "risco de vida" no estilo da aventura) deste modo um forma
que, pelo seu simbolismo temporal, aparece como predeterminada para a
recepo do contedo ertico.
Estas analogias e formulaes comuns ao amor e aventura j
prenunciam o fato de a aventura no pertencer ao estilo de vida da velhice. O
que decisivo para este fato que a aventura, segundo sua essncia e
encanto especficos, uma forma da experincia. O contedo do acontecer
no constitui ainda a aventura: o fato de existir um risco de vida ou de uma
mulher ser conquistada para uma breve felicidade; o fato de elementos
desconhecidos, com os quais se ponderou o jogo, terem trazido ganho ou
perda surpreendente; o fato de a pessoa com um disfarce fsico ou psquico se
encontrar em esferas da vida, das quais se regressa ao mundo familiar como
que vindo de um mundo estranho - tudo isto no constitui ainda
necessariamente uma aventura. Esta se caracterizar somente por meio de
uma certa tenso do sentimento de vida, com a qual aqueles contedos se
realizam; somente quando uma corrente, indo e vindo entre a parte mais
exterior da vida e a sua fonte central de energia, abarca aquela em si, e
quando aquela colorao, temperatura e ritmo especiais do processo de vida
constituem o que verdadeiramente decisivo, o que de certa maneira acentua
o contedode um tal processo de vida, o acontecimento deixar de ser uma
simples experincia e se tornar uma aventura.
Este princpio de acentuao, porm, se distancia da velhice. De formageral, somente a juventude conhece tal preponderncia do processo sobre os
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contedos da vida, enquanto para a velhice, quando o processo da vida
comea a desacelerar e a enrijecer, importam os contedos, que so de certo
modo atemporais e indiferentes ao ritmo e paixo de sua experincia. Na
velhice, ou se vive totalmente centralizado, e neste caso os interesses
perifricos decaem e perdem a ligao com a vida essencial e com sua
necessidade interna, ou o centro se atrofia, em decorrncia do que a existncia
passa a se limitar to-somente aos detalhes isolados e passa a haver a
acentuao da importncia do que meramente exterior e casual. Em nenhum
dos dois casos possvel a relao entre o acontecimento exterior e as fontes
de vida interna, na qual se fundamenta a aventura, em nenhum deles se pode
chegar sensao de contraste da aventura: onde uma atividade retirada
totalmente do contexto geral da vida, mas deixa, no obstante, fluir em si a
fora e a intensidade totais da vida.
Esta oposio entre juventude e velhice - por meio da qual a aventura se
torna prerrogativa da primeira, o que acentua l o processo da vida, seu ritmo e
suas antinomias e aqui os contedos, para os quais a experincia aparece
cada vez mais como uma forma comparativamente casual - pode ser expressa
como aquela entre o esprito romntico e o esprito histrico da vida. Para a
atitude romntica importa a vida em sua imediaticidade, na individualidade de
sua forma momentnea, em seu aqui e agora; ela sente a fora total da
corrente da vida com mais intensidade precisamente na pontualidade de uma
experincia arrancada do curso normal das coisas, mas qual se estende,
contudo, um nervo proveniente do corao da vida. Toda esta ao da vida
lanando-se fora de si, esta amplitude da oposio dos elementos penetrados
por esta ao, pode alimentar-se somente do excesso e da alegria incontida da
vida, como ocorre na aventura, no romantismo e na juventude.
A disposio histrica mais prpria da velhice, se esta como tal tem
uma atitude importante e caracterstica de recolhimento. O fato de esta
disposio histrica ampliar-se para uma viso do mundo ou restringir seu
interesse ao prprio passado irrelevante; em todo caso ela corresponde, em
sua objetividade e meditao retrospectiva, imagem dos contedos da vida,
da qual a imediaticidade da vida em si desapareceu. Toda histria como
imagem, em um sentido cientfico restrito, gerada por meio destasobrevivncia dos contedos alm do processo de seu presente, que
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vivenciado, porm indizvel. A ligao que este processo construiu entre eles
desintegrou-se e precisa ser agora reconstruda na forma de uma imagem
ideal, por meio de linhas totalmente diferentes. Com este deslocamento do
acento, deixam de existir todos os pressupostos dinmicos da aventura. Sua
atmosfera , como j foi indicado, a contemporaneidade incondicional, a
acelerao do processo da vida at um ponto que no possui nem passado
nem futuro - e que por isso rene a vida em si com intensidade - e que se torna
com freqncia relativamente indiferente matria do processo.
Assim como para a verdadeira natureza do jogador o motivo decisivo
no ganhar esta ou aquela quantia em dinheiro, mas sim o jogo como tal, a
violncia do sentimento rasgado pela oscilao entre a felicidade e o
desespero, a proximidade, como que palpvel, das foras sobrenaturais, que
decidem entre ambos, tambm a seduo da aventura inmeras vezes no se
encontra no contedo que ela nos oferece - e que, oferecido de outra forma,
seria talvez menos reparado - mas sim na forma aventureira de sua experin-
cia, na intensidade e no suspense, com os quais ela, exatamente nestes casos,
nos permite sentir a vida. Justamente isso liga a juventude aventura. O que
se chama de subjetividade da juventude somente isto: a matria da vida em
seu significado objetivo no para ela to importante quanto o processo que a
conduz, quanto a prpria vida. O fato de a velhice ser "objetiva", o fato de ela
formar, a partir dos contedos que a vida passada deixou restar de um modo
especialmente atemporal, uma composio nova: da contemplatividade, da
ponderao objetiva, do que est livre da inquietao com a qual a vida se
torna presente - precisamente isto o que aliena a aventura da velhice, o que
faz do velho aventureiro um fenmeno repulsivo e sem estilo; no seria difcil
desenvolver toda a essncia da aventura pelo fato de ela simplesmente no ser
uma forma de vida em conformidade com a velhice.
Todas aquelas determinaes e situaes da vida que so no s
estranhas mas mesmo hostis sua forma de aventura no impedem que a
aventura, em um aspecto mais geral, aparea misturada a toda existncia
humana prtica como elemento encontrado por todo lado, que apenas
comparece reiteradamente nas distribuies mais sutis como que
macroscopicamente invisvel e encoberta por outros elementos no fenmeno.Independente daquela representao que se aproxima da metafsica da vida,
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ao sentido. Em cada sucesso que se nos depara, h tanto de algo
simplesmente dado, exterior e eventual, que se reduz somente a uma questo
de quantidade saber se a totalidade pode ser considerada algo razovel, algo
que possa ser compreendido conforme um sentido, ou se sua indissolubilidade
com respeito ao passado e sua incalculabilidade com respeito ao futuro devem
determinar a colorao do todo. Entre o empreendimento burgus mais seguro
e a aventura mais irracional h uma srie contnua de manifestaes da vida,
nas quais o compreensvel e o incompreensvel, o provocado e a graa
concedida, o calculvel e o casual se misturam em uma infinitude de graus. Na
medida em que a aventura indica um extremo nesta srie, o outro tem tambm,
justamente por isso, uma parcela em seu carter. A insero de nossa
existncia em uma escala, na qual cada marca simultaneamente determinada
por uma atuao de nossa fora e por um abandono s coisas e poderes
impenetrveis - esta problemtica de nossa colocao no mundo que assume
uma conotao religiosa na questo insolvel sobre a liberdade do homem com
respeito s determinaes divinas - permite que nos tornemos todos
aventureiros. No mbito de nossa circunscrio de vida e de nossas tarefas
nela, que definem nossos objetivos e nossos meios, no poderamos viver
sequer um dia, se no tratssemos o incalculvel como se fora calculvel; se
no confissemos nossa fora o que ela no pode produzir sozinha, mas
apenas em sua enigmtica atuao conjunta como as foras do destino.
Os contedos de nossa vida so continuamente compreendidas por
formas que se misturam e que deste modo realizam sua totalidade unitria: h
por toda parte formao artstica, concepo religiosa, colorao de valores
morais e reciprocidade de sujeito e objeto. Talvez no haja nenhuma dimenso
da corrente deste rio, na qual cada um destes tipos de configurao, e muitos
outros ainda, no formariam pelo menos uma gota de suas ondas. Porm,
somente quanto elas, a partir da escala e da situao fragmentria e misturada
nas quais a vida mediana as deixa submergir e emergir, alcanam um domnio
sobre a matria da vida, elas se tomam formaes puras, correspondendo
ento s denominaes da linguagem. Assim que a atmosfera religiosa cria
puramente de si sua formao, o Deus, ela vem a ser "religio"; assim que a
forma esttica faz de seu contedo algo de importncia secundria, com o queela vive sua vida baseada somente em si, ela se toma "arte"; somente quanto o
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dever moral cumprido apenas porque ele um dever - no importando quo
cambiante sejam os contedos com os quais ele se preenche e que antes, por
seu lado, determinaram a vontade - ele se toma "moralidade".
Com a aventura no diferente. Somos os aventureiros da Terra, nossa
vida perpassada a cada passo pelas tenses que constituem a aventura.
Apenas quando estas tenses ficam de tal modo violentas, que elas passam a
dominar a matria na qual se perfazem, surge a "aventura", pois ela no se
baseia nos contedos, que com ela so ganhos ou perdidos, desfrutados ou
sofridos: tudo isto nos acessvel tambm em outras formas de vida. Antes, o
fato de o radicalismo estar ali, radicalismo pelo qual ela sentida como tenso
da vida, mudana de ritmo do processo de vida, independente de sua matria e
de suas diferenas; o fato de a quantidade destas tenses ser grande o
suficiente para a vida arrancar-se daquela matria - isto faz da mera
experincia uma aventura. Ela decerto apenas uma parte da existncia,
paralela a tantas outras, pertencente porm quelas formas que - alm de sua
mera participao na vida e alm de toda casualidade de seus contedos es-
pecficos - possuem a fora misteriosa de deixar a totalidade da vida ser
sentida em um instante. Instante no qual a vida se perfaz e que constitui um
suporte que estaria ali apenas para sua realizao.
Extrado de: SOUZA, Jess e ELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Braslia:
UnB. 1998. p. 171-187.