sistema móvel de resp civil

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A IDEIA DE UM SISTEMA MÓVEL, EM ESPECIAL NO DOMÍNIO RES- PONSABILIDADE CIVIL. APRESENTAÇÃO DA TRADUÇÃO DO TEXTO DE WALTER WILBURG «DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA MÓVEL NO DIREITO CIVIL» [Publicado em DJ, XIV, 2000, Tomo 3] Raul Guichard O texto que aqui se analisa (e a seguir se traduz) constitui, assim se lhe pode chamar, o «manifesto» do pensamento metodológico de WALTER WILBURG. Nele, em extrema concisão e com ajuda de alguns exemplos mais representativos retirados do direito dos con- tratos e do direito delitual, o insigne jurista dá-nos uma súmula do método designado como «sistema móvel», cuja primeira explana- ção já sugira nos Elementen des Schadensrecht (1941). Sabe-se que WILBURG chegou ao fundamental da sua «descoberta» metodológica através do direito comparado, partindo da constata- ção dos diferentes fundamentos ou critérios que, em diversas ordens jurídicas, subjazem ao direito da responsabilidade extracon- tratual. Na base do seu método estiveram concretas indagações (de índole «dogmático-prática») sobre o ilícito civil e o enriquecimento sem causa. No plano propriamente metodológico, o próprio Autor não deixou de assinalar algumas afinidades do seu pensamento com a «jurisprudência dos interesses». Mas o que ressalta é sobre- tudo a preocupação de traçar uma «terceira via» entre a Freirechts- lehre (em distanciação também de uma orientação pela equidade; não é por acaso, como é notado, que WILBURG designa a sua con- cepção por «sistema») e o acrítico e ilusório convencimento da vin- culação do juiz a um sistema legal «pleno» e «fechado» (mas, cer-

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Page 1: Sistema Móvel de Resp Civil

A IDEIA DE UM SISTEMA MÓVEL, EM ESPECIAL NO DOMÍNIO RES-

PONSABILIDADE CIVIL. APRESENTAÇÃO DA TRADUÇÃO DO TEXTO

DE WALTER WILBURG «DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA

MÓVEL NO DIREITO CIVIL»

[Publicado em DJ, XIV, 2000, Tomo 3]

Raul Guichard

O texto que aqui se analisa (e a seguir se traduz) constitui, assim

se lhe pode chamar, o «manifesto» do pensamento metodológico

de WALTER WILBURG. Nele, em extrema concisão e com ajuda de

alguns exemplos mais representativos retirados do direito dos con-

tratos e do direito delitual, o insigne jurista dá-nos uma súmula do

método designado como «sistema móvel», cuja primeira explana-

ção já sugira nos Elementen des Schadensrecht (1941).

Sabe-se que WILBURG chegou ao fundamental da sua «descoberta»

metodológica através do direito comparado, partindo da constata-

ção dos diferentes fundamentos ou critérios que, em diversas

ordens jurídicas, subjazem ao direito da responsabilidade extracon-

tratual. Na base do seu método estiveram concretas indagações (de

índole «dogmático-prática») sobre o ilícito civil e o enriquecimento

sem causa. No plano propriamente metodológico, o próprio Autor

não deixou de assinalar algumas afinidades do seu pensamento

com a «jurisprudência dos interesses». Mas o que ressalta é sobre-

tudo a preocupação de traçar uma «terceira via» entre a Freirechts-

lehre (em distanciação também de uma orientação pela equidade;

não é por acaso, como é notado, que WILBURG designa a sua con-

cepção por «sistema») e o acrítico e ilusório convencimento da vin-

culação do juiz a um sistema legal «pleno» e «fechado» (mas, cer-

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2

tamente, não dará conta da concepção do Autor a simples e, por-

ventura, trivial indicação da «abertura» do sistema).

O essencial do «sistema móvel» reside em que os «elementos» ou

«forças» que o compõem tem um peso distinto e são, de algum

modo, «fungíveis» ou permutáveis. Mais precisamente, os funda-

mentos de determinado efeito jurídico assumirão, entre si, diversa

ponderação ou peso (no limite, a particular acuidade de um poderia

levar a prescindir da verificação de outro) e interferirão também

com a medida da consequência (logo ocorrerá, a este propósito, a

fórmula da glosa: quia eadem est ratio vel major, ergo idem ius).

Particular ênfase pôs WILBURG na necessidade de, em tal procedi-

mento, exaurir (mas ao mesmo tempo circunscrever) todos os fun-

damentos valorativos capazes de justificar certa consequência legal

ou que contra esta deponham.

E também distinguiu claramente, quanto ao domínio de aplicação,

por um lado, o plano da conformação das normas pelo legislador

(e, eventualmente, da sua desenvolução pela doutrina e jurispru-

dência), da legística – uma «questão de técnica legislativa» e de

«temperamento jurídico» –, e, por outro, o plano da aplicação do

direito (constituído) – em que o método ganhará «significado dog-

mático». Quanto ao primeiro, acentua WILBURG a possibilidade de o

legislador expressar, «exemplarmente», a valoração dos diferentes

elementos ou «forças» através de (grupos de) casos típicos ou

representativos. Aliás, de um modo mais geral, e posteriormente,

aparecerá sugerida a aplicação da ideia de «sistema móvel» e de

«jogo de diferentes elementos» no âmbito das «tipologias» ou do

«discorrer mediante tipos». No que respeita ao segundo plano refe-

rido, ocorre constatar, circunstância, aliás, de que WILBURG estava

seguramente consciente, que muitas normas legais não consentem,

enquanto numa estrutura (rígida) estabelecem bem determinados

pressupostos como condição necessária de certa consequência ou

efeito, que se trabalhe com um sistema móvel. O que, de resto, se

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3

há-de admitir mesmo quando estejam em causa princípios jurídicos

e a sua compatibilização ou «composição»: assim sucede se tais

princípios já se encontram concretizados pelo legislador numa

determinada regulamentação ou em normas imediatamente aplicá-

veis, das quais resulta o respectivo alcance.

Em termos gerais, é mais que intuitivo que o Direito, nas socieda-

des hodiernas, por razões de vária ordem (mormente, jurídico-

constitucionais, «funcionais»), que aqui omitimos enunciar, não

pode, pelo menos em áreas significativas, prescindir de um sistema

«rígido» ou «fixo» de normas estruturadas segundo a implicação

hipótese-estatuição, as quais permitem ao aplicador seguir um pro-

cedimento subsuntivo. E esse constitui um limite para o sistema

móvel. Mas, mesmo aí, perante normas estritas, este será suscep-

tível de preencher uma função de controlo (racional) do resultado

obtido. Tem também sido aventado que, em casos-limite, quando

uma situação concreta caia no «halo conceitual», estando o aplica-

dor remetido para a sua valoração ou juízo pessoal quanto ao

preenchimento de um dos pressupostos da hipótese, seria legítimo

recorrer a uma «apreciação móvel», designadamente haveria que

levar em conta a eventual particular «intensidade» que assumis-

sem, no caso, os demais pressupostos normativos.

Por outro lado, conforme é frequentemente notado, mesmo em

«domínios de predilecção» do «método móvel», seja o preenchi-

mento de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, seja, em

geral, a concretização de «conceitos valorativos» e de «conceitos

comparativos», o aplicador não pode deixar de se munir previa-

mente de uma «base de valoração» (ou de comparação), a qual

deve extrair (indutivamente) do direito vigente.

Não obstante as restrições assinaladas, o método concebido por

WILBURG conheceu notório sucesso. O que, se releva algumas vezes

de um «latente sincretismo metodológico» (o próprio pensamento

«tópico» o incluiu nas suas fileiras, embora WILBURG seguramente

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4

defendesse uma circunscrição dos critérios ou elementos de decisão

e se opusesse ao seu alargamento ad hoc; e tão-pouco o «pensa-

mento tipológico» e a elaboração, tout court, da categoria e das

especificidades dos «conceitos comparativos» se devem identificar

com a concepção de WILBURG), é sobretudo expressão de uma

grande proficuidade. Incitando, nodalmente, e em bases renova-

das, a repensar a relação, na realização do Direito, entre a dogmá-

tica, a decisão jurisdicional e a lei.

A sua utilização alcançou aliás domínios muito diversos. A título

meramente exemplificativo: a explicitação dos elementos da Ideia

de Direito; o procedimento analógico; a concretização de cláusulas

gerais (v.g., os «bons costumes»); a relação entre os elementos da

interpretação da lei; a «combinação» ou «harmonização» de princí-

pios jurídicos; os «elementos» subjacentes ao princípio da confian-

ça; o exercício da discricionariedade administrativa; a relacionação

das diferentes finalidades das penas; a concretização da moldura

penal; os «elementos» do princípio da autonomia privada; o institu-

to do enriquecimento sem causa; o «conceito» de dano; a pondera-

ção da conculpabilidade do lesado; a figura do negócio usurário e

os seus pressupostos.

Igualmente na doutrina portuguesa, não passaram desapercebidas

as virtualidades do método móvel. Dele se reclama expressamente

MENEZES CORDEIRO (na esteira de CANARIS) para a compreensão

(«redução») dogmática da boa fé e do sistema de protecção da

confiança (quanto aos respectivos elementos ou pressupostos).

Mais recentemente, também MENEZES LEITÃO invoca a ideia de sis-

tema móvel a fim de proceder à «construção dogmática» do institu-

to do enriquecimento sem causa, mais concretamente, enquanto

«quadro» para aplicação da cláusula geral do art. 473.º, n.º 1. E,

seja-nos permitida a observação, algumas indicações e fórmulas

utilizadas no conhecido estudo de MANUEL DE ANDRADE sobre a inter-

pretação das leis, nomeadamente no que toca à «hierarquização» e

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5

«conciliação» dos critérios de interpretação, tocam de perto o

método do sistema móvel.

Possa de alguma maneira esta tradução contribuir para um maior

divulgação entre nós da obra de WILBURG (sobretudo no domínio do

direito civil – «escola do pensamento jurídico» lhe chamou o nosso

Autor)… e porventura, sirva para reverenciar um homem que, além

de ter sido um investigador exímio e um habilíssimo docente, deu

provas de coragem e de virtudes cívicas quando quase todos se

deixaram envolver pelas «trevas emergentes».

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TRADUÇÃO DO ALEMÃO PARA PORTUGUÊS DO TEXTO DE WALTER WIL-

BURG «ENTWICKLUNG EINES BEWEGLICHEN SYSTEMS IM BÜRGERLI-

CHEN RECHT»

DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA MÓVEL NO DIREITO CIVIL

Oração inaugural proferido na investidura como Rector magnificus da

Universidade Karl-Franzens de Graz, a 22 de Novembro de 1950, pelo

Prof. Dr. Walter Wilburg

O antigo costume de o novo reitor, na sua tomada de posse, abor-

dar um tema da sua especialidade significa, conforme eu o enten-

do, que ao orador será consentido explanar perante o elevado audi-

tório algumas ideias que, no âmbito do seu trabalho científico, se

lhe afiguram particularmente significativas. Neste sentido, seja-me

permitido dar aqui expressão a uma convicção pessoal concernente

à estrutura fundamental do direito civil. Todavia, tenho inteira

consciência, a este respeito, que cada um, ainda que almeje «apa-

nhar as estrelas do céu», no melhor dos casos apenas encontrará

um pequeno «grão de verdade», devendo dar-se por feliz se de

novo não o perder na «poeira do caos».

No decurso de mais de 2 mil anos, o direito civil construiu laborio-

samente um edifício de conceitos reconhecido por toda a ciência

jurídica como «escola» do pensamento jurídico. Porém, a crise na

qual a jurisprudência se encontra actualmente parece pôr também

em causa tal construção. Não faltam vozes que pretendem substi-

tuir uma actividade jurisdicional orientada por regras gerais pela

Traduzido do original alemão por DORA MOREIRA SOUSA e RAUL GUICHARD.

Agradece-se penhoradamente à Senhora GRETE WILBURG por ter autorizado a publi-

cação. E ainda ao Prof. Doutor WILLIBALD POSCH pelo posfácio, que muito amavel-

mente se dispôs a escrever e a cuja tradução também se procedeu.

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livre decisão de juízes juridicamente desvinculados.

Este propósito deve ser entendido como reacção à incompletude do

ordenamento vigente, o qual – não pode ser negado – em muitos

casos não satisfaz as necessidades da vida e da sensibilidade jurídi-

ca. À tensão assim existente subjaz, em primeira linha, a «mutação

dos tempos» que, na (r)evolução técnica e social que lhe é própria,

coloca a ciência jurídica constantemente perante novos problemas.

Uma maré cheia de leis, em permanente compita com a realidade,

procura vãmente superá-la.

Tal «inflação legislativa» desencadeou justificadas críticas, enquan-

to produziu leis que, sem uma conexão orgânica com o sistema

fundamental do direito civil, só muito insuficientemente resolvem

os problemas suscitados pela complexidade da sua matéria. Cada

uma destas leis, comportando um número assustador de artigos,

seria contudo susceptível de ser reduzida a uma bem menor

dimensão, houvesse uma organização conveniente das ideias.

Uma parcela da culpa neste insucesso deve todavia ser atribuído ao

próprio sistema tradicional do direito civil, cuja estrutura propicia

muito poucas conexões a uma desenvolução ulterior. A deficiência

radica, porém, mais fundo. O sistema actual, mesmo no seu domí-

nio originário, não está em condições de solucionar total e comple-

tamente relevantes hipóteses, desde há muito objecto de discus-

são.

A antítese entre o sistema tradicional e a tendência para a livre

aplicação do direito constitui um profundo e sério problema. À ciên-

cia jurídica compete, na minha opinião, a tarefa de a superar por

via de uma conformação mais móvel ou flexível do direito, e de

desenvolver, sempre que o tráfico jurídico não exija regras ou pre-

ceitos formais – como acontece no direito registal e no direito cam-

bial –, normas mais elásticas do que as existentes. Mostra-se, pois,

necessário libertar a estrutura do direito civil, em muitas das suas

áreas, de uma certa rigidez.

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A teoria do direito privado, partindo de concretas hipóteses e deci-

sões, desenvolveu conceitos gerais, os quais, segundo a concepção

da «escola histórica», constituem verdadeiros «entes» jurídicos.

RUDOLF VON IHERING atribui-lhes mesmo existência e qualidade de

«corpos naturais» 1. Nesses moldes, foram, por exemplo, encara-

dos o direito de propriedade ou os direitos de crédito. Imagem esta

que, se pode descrever de modo sugestivo a constituição, extinção

e muitas características dos direitos, facilmente induz a conclusões

erróneas.

Assim, afigura-se natural que aquele que utiliza uma coisa alheia

para seu próprio proveito, ainda que sem culpa, seja obrigado a

compensar o proprietário. Porém, já que o direito de propriedade

se extingue com o perecimento da coisa ou com a sua alienação a

um adquirente de boa fé, a doutrina não descortinou qualquer fun-

damento para semelhante dever e, com isso, acabou, ocasional-

mente, por o pôr em dúvida. A rigidez do conceito de propriedade

obstou aqui à simples constatação de que o dever indemnizatório,

enquanto «prolongamento» ou efeito ulterior do direito de proprie-

dade, deriva afinal do próprio escopo deste2.

Diferentemente, no espírito de uma conformação móvel, conside-

rar-se-ão as entidades jurídicas não como «corpos» mas como

resultado da actuação de distintas forças – comparação que dá con-

ta da mutabilidade do jogo ou articulação conjunta das forças e da

relatividade do seu efeito.

A impostação metodológica referida está, aliás, próxima de uma

nova e reputada corrente3 que se denomina «jurisprudência dos

1 IHERING, Geist des römisches Rechts, II, págs. 359 e ss. 2 Cfr. o meu trabalho «Die Lehre von der ungerechtfertigten Bereicherung», págs.

27 e ss.; e ainda, especialmente, Ernst Rabel, Z. AuslPrR., 1936, pág. 424. 3 Os mais proeminentes representantes desta corrente são MAX RÜMELIN, MÜLLER-

ERZBACH, PHILIPP HECK e HEINRICH STOLL. No direito austríaco, está próximo desta cor-

rente ARMIN EHRENZWIEG, que no «System» combate a «jurisprudência dos concei-

tos»; cfr, especialmente, HECK, Gesetzauslegung und Interessenjurisprudenz, Arch-

ZivPr. 1914, págs. 11 e ss., e do mesmo autor, Begriffsbildung und Interessenjuris-

prudenz, 1932.

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interesses». Procura esta investigar e aperfeiçoar o direito, num

método de cunho sociológico, partindo dos motivos que foram

determinantes para o legislador. A concepção por mim apresenta-

da, pretendendo conformar o direito com base nas «forças cau-

sais», toca de perto na sua raiz a teoria referida; mas diferencia-se

dela fundamentalmente porque não trata as forças móveis apenas

como causas pré-jurídicas, «deslocando-as» antes para «dentro»

das próprias normas e hipóteses legais.

A ciência jurídica não se poupou a esforços para apreender as

ideias basilares nas quais assentam as normas ou preceitos jurídi-

cos. A este propósito, especialmente os filósofos jusnaturalistas

protagonizaram acérrimas controvérsias sobre os princípios do

direito. A incerteza daí resultante prejudicou a própria imagem do

direito natural. Mas não há qualquer dúvida que o confronto de

ideias naquela altura constituiu de vários modos o começo de um

novo desenvolvimento.

São, contudo, muito diversas as ideias surgidas na doutrina jurídi-

ca. De algumas delas se dirá que avançam pelo campo de batalha

fora como verdadeiras tropas de combate, cada uma munida das

suas armas. Exemplos disso são o «princípio da fidelidade ao con-

trato» ou o «princípio de que ninguém se deve enriquecer com o

dano de outrem». Sobre tais princípios discutiu-se longa e viva-

mente. A maior parte das vezes, partidários e adversários separa-

ram-se irreconciliados e sem aclararem a situação.

O ABGB (Código Civil Austríaco) manteve-se habilmente distancia-

do de tais extremos. Os seus redactores tomaram como princípio

orientador a ideia de justiça. Esta, não sendo – é certo – facilmente

apreensível no seu conteúdo, aponta claramente para uma decisão

que analise segundo parâmetros gerais o «merecimento de protec-

ção» das partes num litígio jurídico.

A justiça é, nessa medida, um princípio superior, constituindo para

a lei e para o juiz um arrimo psicológico na ponderação dos interes-

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ses. Ela conduziu os redactores do ABGB a soluções de fina sensibi-

lidade e equilíbrio. E o seu respeito e cuidado representam hoje,

semelhantemente, enquanto base da formação do direito, uma exi-

gência imperiosa.

Também a ideia de equidade contribuiu valiosamente para o

desenvolvimento do direito. Amiúde permitiu «romper» formas rigi-

dificadas. Todavia, seria perigoso institui-la como princípio geral

válido para o julgador, já que carece de «fundamentalidade». O seu

conteúdo permite, no máximo, reconhecer razões de natureza

social; para além disso, implicaria um passo no sentido da «livre

descoberta» do direito.

Igualmente perigoso seria, ao invés, o desenvolvimento de princí-

pios com conteúdo fixo, os quais, cristalizados em falsas generali-

zações, adquiririam um domínio incontrolado e seriam tomados

como axiomas.

Assim, desde há séculos, no direito falimentar vigora o princípio de

que todos os credores comuns ou quirografários devem ser trata-

dos igualmente, os seus créditos ser satisfeitos com uma quota

igual (scl., proporcionalmente). O «princípio da igualdade» (par

conditio creditorum) desenvolveu-se para contrariar a «livre com-

petição» entre os credores, a qual remeteria a decisão para a habi-

lidade destes, para o «favor» do devedor ou mesmo para o mero

acaso.

Nesta disputa, a ideia da igualdade entre os credores preencheu

uma função legítima. Porém, no fundamental, tem carácter negati-

vo, representa um princípio de recurso surgido da falta de outros

pontos de vista, permanecendo por demonstrar, de todo o modo, a

sua pretensão a vigorar incondicionalmente.

Ao «princípio da igualdade» pode sobretudo contrapor-se a ideia da

«persecução de valor». A qual tentei, numa prelecção perante a

sociedade de juristas de Viena, expor da seguinte forma: um cre-

dor, de quem o devedor obteve um valor ainda presente no patri-

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mónio deste, deve ter o direito de se satisfazer por esse valor pre-

ferentemente aos demais credores4.

Um exemplo pode ilustrar esta ideia: um ladrão compra um anel

com dinheiro furtado. Se o ladrão é declarado falido, o anel integra-

rá a massa insolvente e assim aproveitará aos outros credores,

ainda que estes, provavelmente, tenham emprestado durante anos

a fio dinheiro ao ladrão, dinheiro esse que, desde há muito, se per-

deu numa actividade ou num empreendimento gorado.

A reacção dos juristas perante casos semelhantes é muito diversa.

Em parte, admitem que, com os meios de que dispõe, o sistema

vigente não está em condições de oferecer uma solução satisfató-

ria. Muitos, porém, de modo algum consideram o resultado aludido

insatisfatório, parecendo sugestionados pelo sempre repetido mote

da «igualdade».

Na minha opinião, constitui um imperativo da sensibilidade jurídica

que o anel proveniente do dinheiro furtado, apenas seja atribuído à

vítima do furto, com exclusão dos restantes credores. O que, por

regra, parecerá óbvio a quem aprecie a questão desprovido de pre-

conceitos e de conhecimentos jurídicos, não deixando de lhe susci-

tar admiração que aqui possa surgir qualquer dúvida ou dificuldade.

A resistência oferecida pelo sistema vigente a esta «decisão natu-

ral» é tanto maior quanto por detrás do princípio da igualdade está

um outro princípio, igualmente antigo e enraizado: o de que o direi-

to de um credor enquanto «direito pessoal» apenas obriga o deve-

dor e não possui qualquer eficácia perante terceiros. Este princípio

obsta ainda a que se acolha a ideia de que a especificidade de um

crédito, no caso de concurso com outros credores, possa conceder

preferência em face destes.

Na realidade, contudo, também os «direitos pessoais» tendem a

ganhar eficácia, em maior ou menor escala, perante um terceiro

(que não mereça tutela). A impugnação pauliana é disso um exem-

4 Gläubigerordnung und Wertverfolgung, Juristische Blätter, 1949, págs. 29 e ss.

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plo representativo. Na minha opinião, vai também no sentido desta

evolução introduzir no processo de falência o «privilégio da perse-

cução do valor» acima referido. A sua adopção e delimitação são

todavia possíveis em graus diversos.

Por sua vez, para os credores impossibilitados de invocar a «perse-

cução do valor» haverá que ponderar outros critérios de repartição.

Assim, por exemplo, a circunstância de um credor ter concedido de

modo incauto crédito para um empreendimento arriscado ou preju-

dicial poderá ser tomada em conta para que aquele, no caso da

perda do dinheiro emprestado, receba menos do remanescente

património do devedor do que os restantes credores5.

Todavia, no direito da falência, paralelamente a este ponto de vista

da «concessão prejudicial de crédito», deveria igualmente encon-

trar mais atenção do que até agora a ideia – de «cariz social» – de

privilegiar os pequenos credores. No conjunto, a repartição deveria

ser conformada mais elasticamente com base na actuação concor-

rente das diversas razões que justificam a tutela. É minha convic-

ção que o princípio da igualdade não satisfaz a ideia de justiça e as

necessidades de circulação do crédito.

Um outro princípio, que alcançou uma influência quase mística,

diz-nos que a ninguém deve ser permitido invocar o seu próprio

ilícito – no brocardo romano: nemo turpitudinem suam allegans

auditor. Esta regra encerra em si forças distintas: podendo actuar

de maneira benéfica, já acarretou consequências nefastas. Benéfica

será, no aludido princípio, a ideia político-jurídica de que ninguém

deve beneficiar com uma sua actuação ilícita. Tal ideia, que tam-

bém no direito penal assume relevância, poderia todavia ser con-

cretizada muito para além do que até agora aconteceu6.

5 Se um credor piora consciente ou negligentemente a solvabilidade do devedor em

prejuízo dos demais credores, então deverá perder também as garantias com que

previdentemente se muniu. Para o que se recorrerá às normas da responsabilidade

civil ou da impugnação pauliana. Cfr. RGZ. 136, pág. 253. 6 Semelhante a esta ideia é a exigência político-jurídica de que o possuidor de má

fé não seja colocado em melhor posição do que o possuidor de boa fé; cfr. EHRENZ-

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Porém, a proibição de invocar o seu próprio ilícito é, em primeira

linha, de tal modo concebida que a justiça não concede qualquer

protecção a quem actuou ilicitamente, nem em face dos cúmplices,

nem em face de qualquer terceiro, e fecha os seus olhos perante o

comportamento censurável daquele. Esta tese, demasiado primiti-

va, não se mostra adequada quando se trata de regular em termos

correctos as complicadas questões sobre que incide.

A aplicação mais conhecida deste princípio é a regra de que ao sol-

vens não se veda repetir aquilo que prestou se, ao efectuar a sua

prestação, actuou de modo reprovável. Os romanos estabeleceram

tal regra tendo em vista aqueles casos em que alguém paga a

outrem incitando-o, desse modo, a praticar um acto proibido ou

ilícito, como, por exemplo, no «assassínio encomendado» ou no

suborno de testemunhas.

Em conformidade, e prudentemente, o § 1174 ABGB apenas excluiu

o direito de repetição no que respeita à «recompensa» paga para a

realização de uma actuação ilícita. Mas, mesmo neste âmbito restri-

to, os resultados suscitam dúvidas. A proibição da condictio leva a

que o accipiens, inclusive quando se comportou censuravelmente,

possa reter a «recompensa» e, desse modo, lucrar com a punição

do solvens.

A prática recente tende a estender a exclusão do direito de repeti-

ção igualmente ao pagamento resultante do jogo ilícito7. À primeira

vista, isto pode até parecer satisfatório. Contudo, uma análise mais

detalhada altera essa impressão. Na minha opinião, revela-se sim-

plesmente inaceitável que quem ganhou se enriqueça com base no

jogo ilícito, pois a proibição de jogos de sorte e azar pretende jus-

tamente impedir uma semelhante (desaprovada) deslocação patri-

monial. Donde, ao vedar-se a repetição do que foi pago, perverter-

WEIG, NotZ., 1910, pág. 99. Para uma ampla exposição dos princípios associados ao

preceito de que a ninguém deve ser permitido invocar o seu próprio ilícito, KLANG,

Komm. zum ABGB, Neueauflage, § 1174. 7 Cfr. Sz. XIX, 184.

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se o fim da lei, o qual, ao invés, por esse modo se deveria servir.

Se o legislador decide punir o solvens com a perda daquilo que ele

reprovavelmente prestou, então, nos casos enunciados, a única

solução correcta consiste em atribuir o que foi pago ao «Estado», à

«Caixa de Beneficência» ou a uma pessoa afectada pela actuação

ilícita para seu ressarcimento8.

Já o § 817 II do BGB (Código Civil Alemão) elevou a princípio geral,

em concordância com a doutrina do direito comum, a proibição da

condictio quando a prestação violou a lei ou os bons costumes. As

consequências que daí advêm são, contudo, grotescas. Segundo tal

regra, deveria ser retirado, em qualquer caso, ao usurário o direito

de pedir a restituição do capital emprestado. O que representa uma

sanção totalmente desproporcionada.

De resto, os tribunais alemães apenas em casos pontuais se decidi-

ram a extrair tal consequência. A verdade é que a jurisprudência e

a doutrina dominantes souberam contorná-la através de hábeis

estratagemas dialécticos9.

A «legislação teresiana» aplicava inclusivamente contra a vítima da

usura a norma de que ninguém pode invocar o seu próprio ilícito.

Tratava, pois, tal pessoa como participante do delito do qual tinha

sido vítima e dispunha que, não apenas a soma emprestada, tam-

bém os juros usurários pagos não podiam ser repetidos. As objec-

8 Assim decidia o «Código Teresiano» 3, XX, 24. O ABGB remete apenas para even-

tuais normas de caducidade; as quais, contudo, não existem na maior parte dos

casos; ver, porém, § 1031 ABGB. 9 HECK, num bem estruturado estudo, ArchZiv.Prax., 124, págs. 1 e ss., tentou

alcançar um resultado adequado restringindo a aplicação do § 817/2 aos casos em

que a repetição se sustenta na reprovabilidade do comportamento do accipiens. A

exclusão da repetição pela reprovabilidade do solvens não se fundamentaria no

intuito de o sancionar, mas na ideia de que a condictio, concebida como sanção

para o accipiens, não se aplica precisamente porque, no caso de igualdade de «tur-

pitude», o possuidor se encontra em situação privilegiada. Contudo, não se vê que

a sancionabilidade do accipiens, considerada por HECK como fundamento da condic-

tio, fique eliminada pelo facto de também o solvens agir de modo reprovável. HECK

deveria, mais coerentemente, ter chegado ao resultado de considerar irrepetível

tudo quanto tivesse sido indevidamente recebido.

Na realidade, a condictio ob turpem causam não se baseia no ponto de vista da

sanção, mas apenas é explicável atendendo à necessidade de protecção do solvens.

Em pormenor, sobre isto, cfr. H. KLANG, Kommentar, § 1174.

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15

ções levantadas a tal disposição foram postas de lado pela comis-

são de redacção da lei com a mera observação de que a proibição

de invocar o seu próprio ilícito não consente qualquer excepção10.

Este último princípio constitui mais um exemplo de quão fácil é as

normas jurídicas «escaparem de uma mão razoável» e, então,

como os utensílios e instrumentos nos contos e lendas, animados

de vida própria, prosseguirem um curso maléfico. Muitas ideias,

alteadas pelos seus partidários até às nuvens, revertem à realidade

em queda livre.

O centro nevrálgico do direito privado encontra-se no instituto da

responsabilidade civil. O qual apresenta, contudo, uma imagem

confusa, tendo-se tornado palco de renhido debate de ideias. O

direito natural descobriu o princípio da culpa, ainda hoje aceite de

modo geral: um dano deverá ser ressarcido por aquele cuja culpa o

fez surgir. Porém, tal princípio mostra-se, por si só, insuficiente.

Daí a doutrina ter-se esforçado por estabelecer, em numerosas e

doutas obras, outros princípios que haveriam de valer paralelamen-

te ou em vez da regra da culpa.

A ideia que mais longe foi pretende que a causação de um dano

obriga à sua reparação por quem o originou. Este «princípio da

causação» foi objecto de uma acérrima controvérsia na doutrina do

direito natural. Nesse contexto, avultou principalmente a questão

de saber se os inimputáveis devem responder por danos por eles

causados.

Os redactores do ABGB decidiram-se, a este último propósito, por

uma posição de compromisso. O § 1310 ABGB remete para a pru-

dente apreciação do juiz a fixação do dever de indemnizar, aten-

dendo nomeadamente à situação patrimonial do autor do dano e à

do lesado. Em geral, contudo, a lei evitou tomar uma posição defi-

nida e inequívoca sobre o «princípio da causação». O § 1311

determina que um dano fortuito recaia sobre aquele em cuja pes-

10 Ver Harrasowky, Cod. Ther., III, pág. 339, anotação 4.

Page 16: Sistema Móvel de Resp Civil

16

soa ou património se verificou.

Equivocadamente, o redactor principal do ABGB julgava introduzir

com essa disposição o «princípio da causação». Porém, hoje em

dia, a doutrina dominante interpreta-a no sentido de que ninguém

é responsável por um dano surgido fortuitamente. E, nessa medida,

decide-se pelo «princípio da culpa».

Na doutrina mais recente aparece sobretudo defendido o «princípio

do risco» como fundamento para um dever de indemnizar indepen-

dentemente da culpa. Segundo aquele, «actividades perigosas»,

por força da sua perigosidade intrínseca, responsabilizam por danos

ocasionados no seu exercício. Este princípio pretende, em primeira

linha, esclarecer as regras estritas que vigoram para o dever de

indemnização respeitante aos meios de transporte básicos – cami-

nhos-de-ferro, automóveis e aeronaves.

Todos os princípios enunciados têm um sentido útil e razoável. A

sua falha consiste, no entanto, no facto de aspirarem a um domínio

exclusivo e reclamarem uma vigência irrestrita. As antinomias, que

daí surgiram, acabaram por conduzir à resignação da doutrina e à

renúncia a uma solução de princípio.

A maior parte das legislações – o direito russo constitui uma excep-

ção – partem da regra da culpa. Contudo, esta é quebrada por

numerosos desvios plasmados em complicadas normas previstas

para áreas específicas.

Ao invés, eu tentei encontrar uma «ordem interna» para o direito

da responsabilidade civil pressupondo que tal instituto não se deixa

reconduzir a uma ideia unitária, mas antes resulta de um jogo de

pontos de vista, que podem ser apreendidos científica e legalmente

como elementos ou, como doravante o quero formular, como forças

móveis11.

Esses pontos de vista são os seguintes:

11 Cfr. o meu trabalho «Die Elementen des Schadenrechtes», especialmente págs.

26 e ss. e págs. 283 e ss.; ainda KLANG, JBl., 1946, pág. 330, e ESSER in Deutsche

Page 17: Sistema Móvel de Resp Civil

17

1. Uma deficiência causal para a ocorrência do dano, residindo na

esfera do responsável. Esta deficiência tem diferentes pesos, con-

soante tenha resultado de culpa do responsável ou dos seus auxi-

liares ou ocorrido, de todo, independentemente de culpa (como,

por exemplo, por um irreconhecível defeito material de uma

máquina).

2. O perigo originado pelo lesante através de uma actividade ou da

posse de uma coisa e que tenha conduzido à ocorrência do dano.

3. O grau de proximidade do nexo causal existente entre o evento

que deu lugar à responsabilidade e o dano ocorrido.

4. A ponderação social da situação patrimonial do lesado e da do

lesante.

De acordo com os pontos de vista ou critérios enunciados, cada

caso assume uma configuração especial resultante do correspon-

dente encontro das várias forças e da respectiva intensidade. Estas

últimas não constituem grandezas absolutas e constantes, sendo,

sim, decisivo o efeito conjunto da sua articulação variável.

Quando um elemento assume uma especial intensidade, pode

suceder que seja só por si suficiente para justificar a responsabili-

dade pelo dano. Assim, por exemplo, a utilização de um avião, ao

qual se atribui uma perigosidade excepcional, implica uma respon-

sabilidade por acidentes, sem que haja que atender a se estes

resultaram de um defeito ou falha ou se são reconduzíveis a um

caso de força maior.

Diferentemente, um veículo automóvel, demonstrando uma menor

perigosidade, apenas fundamentará uma responsabilidade por um

dano causado quando o seu detentor não prove que nem um defei-

to nem uma falha concorreram para o surgimento do dano.

Sendo a perigosidade de uma actividade ainda menor, não será

adequada uma responsabilidade por uma deficiência de funciona-

mento não culposa, mas já o será se tiver por base a culpa dos

Rechtswissenschaft, 1942, págs. 65 e ss.

Page 18: Sistema Móvel de Resp Civil

18

auxiliares. Parece equitativo que, por exemplo, o dono da obra res-

ponda quando os seus trabalhadores causem negligentemente

danos a um transeunte.

Deste modo, a controvertida questão da responsabilidade por actos

dos auxiliares, que nos vários sistemas jurídicos ora é recusada ora

aceite em termos gerais, é susceptível de ser resolvida sem o

recurso a fórmulas rígidas e de um modo que se enquadra por si

próprio no jogo dos diversos pontos de vista.

Na actuação conjunta dos elementos ocorrerá que algumas das for-

ças se dirijam contra o lesado onerando-o. Assim, a culpa ou uma

qualquer deficiência na sua esfera e, em casos de dúvida, uma

situação patrimonial comparativamente favorável deporão, even-

tualmente, contra a pretensão de indemnização.

Como resultado global, pode o juiz determinar que a responsabili-

dade está total, parcialmente fundamentada, ou deve mesmo ser

excluída.

Semelhante sistema consegue compreender todos os casos possí-

veis nas respectivas especificidades. E, ao contrário dos princípios

anteriores, revela-se elástico, não se estilhaçando como um objecto

de vidro quando se altera, ao longo do tempo, o juízo de valor

sobre a força dos vários elementos, designadamente, sobre a peri-

gosidade duma actividade. Simultaneamente, propicia-se o surgi-

mento de novos pontos de vista e forças. E os elementos que

assumem relevância no direito da responsabilidade civil podem

também operar noutros domínios e aí constituírem o fiel da balan-

ça.

Por exemplo, um acérrimo confronto de opiniões tem lugar, na dou-

trina do enriquecimento sem causa, quanto à situação em que

alguém, de boa fé e sem olhar a despesas, despende totalmente

numa viagem de recreio uma soma em dinheiro que lhe foi paga

por engano, como contrapartida, suponha-se, de um serviço na

realidade não executado por ele, ou, porventura, por virtude de um

Page 19: Sistema Móvel de Resp Civil

19

legado inválido. Segundo uma das teses em discussão, não existe

por parte do enriquecido um dever de restituição porque o seu

enriquecimento entretanto desapareceu. Segundo outra tese,

inversamente, o desaparecimento do enriquecimento não afecta o

dever de restituição.

A controvérsia chegou, porém, a um ponto morto, por falta de vias

de entendimento. A decisão está no fio da navalha. Em minha opi-

nião, há-de aqui recorrer-se, como meios auxiliares, aos critérios

da responsabilidade civil12. Assim, a solução dependerá do modo

como surgiu o erro, da atribuição da culpa ou, tão só, da imputação

da deficiência de comportamento não culposa a um dos sujeitos.

Em casos duvidosos, deverá também atender-se ao património de

ambos e ponderar uma redução do dever de restituição.

Uma outra hipótese, que tão-pouco encontrou solução satisfatória

na doutrina e na jurisprudência, é a de alguém executar uma obra,

por exemplo, o trabalho de construção de uma casa, por incumbên-

cia de um terceiro e, porque este se mostra insolvente, vir depois a

demandar o proprietário.

Aqui opõem-se duas ideias fundamentais: por um lado, o proprietá-

rio parece estar obrigado, pelo ponto de vista do enriquecimento, à

restituição do valor recebido proveniente de bens alheios, isto é, do

material e do trabalho do empreiteiro; por outro lado, ninguém tem

o direito de impor a outrem prestações onerosas, e o empreiteiro

que realizou a obra deverá ater-se àquele de quem recebeu a

incumbência.

Esta última concepção deve, em princípio, prevalecer. Quando, por

exemplo, um carpinteiro, a quem o arrendatário encarregou da

remodelação de uma casa particular, pretenda fazer valer os seus

direitos perante o proprietário, terá de acautelar-se celebrando

previamente um contrato com este. Se não o faz, actua por sua

12 Cfr. Die Lehre von der ungerechtfertigten Bereicherung, págs. 141 e ss., espe-

cialmente pág. 154, e Komm. zum ABGB, Neuauflage, §§ 1431 a 1437, págs. 480 e

Page 20: Sistema Móvel de Resp Civil

20

conta e risco, assumindo que eventualmente nada receberá do

arrendatário insolvente. Existem, contudo, casos nos quais as cir-

cunstâncias são diferentes; e, repetidamente, os tribunais esfor-

çam-se por ir em auxílio do empreiteiro lesado, quando o trabalho

realizado se revele útil ao proprietário da casa.

Uma sentença justa apenas se pode obter sopesando todas as cir-

cunstâncias do caso. Importa saber, por um lado, em que medida o

empreiteiro agiu sem autorização do dono da casa ou até conscien-

temente o ignorou e, por outro, em que medida se pode dizer ter

sido negligente na apreciação da situação económica da pessoa que

o incumbiu da obra. Mas, também o comportamento do proprietário

é de levar em conta. Se este conhecia a insolvência do arrendatá-

rio, esperar-se-á dele que não ignore a obra, avisando o empreitei-

ro e prevenindo-o de que não pretende tolerar o referido trabalho

ou de que, pelo menos, não o quer pagar.

Antes do mais, é de ponderar se a obra realizada corresponde às

condições e planos do proprietário e se, segundo a sua situação

patrimonial, lhe seria exigível uma despesa para o efeito.

Todos estes pontos de vista conjugados concedem a cada caso o

seu cunho específico e podem decidir se se justifica ou não uma

obrigação de indemnização total ou parcial.

Uma questão actual é a das empreitadas atribuídas na última guer-

ra pelas «repartições públicas» para reparação dos danos provoca-

dos por bombas. Estas «repartições públicas» já não existem e, por

isso, o empreiteiro procura obter o pagamento do proprietário da

casa. O qual, porém, invoca que não encomendou os trabalhos e

que não está contratualmente vinculado com o empreiteiro.

Neste caso, ocorreu uma alteração das circunstâncias com cujas

consequências o empreiteiro não contava ou em face das quais não

se poderia ter protegido. Com frequência, a execução do trabalho

foi-lhe ordenada sem que ele tivesse tido a possibilidade de a recu-

ss.

Page 21: Sistema Móvel de Resp Civil

21

sar. Seria injusto afastar liminarmente uma eventual pretensão a

uma compensação face ao proprietário.

Na minha opinião, também aqui, tudo depende da conformação em

concreto do caso na perspectiva do já exposto efeito conjunto dos

diversos pontos de vista. Neste contexto, mostra-se relevante a

circunstância de se ao empreiteiro teria sido possível fazer-se pagar

atempadamente pelo seu trabalho por quem o incumbiu da tarefa.

Mas, em primeira linha, é decisivo saber em que medida a utilidade

da execução da obra corresponde à situação patrimonial e aos

desideratos do proprietário da casa e até que ponto lhe é exigível

uma alienação ou oneração do edifício cujo valor objectivo foi

aumentado.

A ideia do jogo ou articulação de diversas forças, possuindo todas

intensidades diferentes, poderá também contribuir para desenvol-

ver mais livre e de modo mais perfeito o direito dos contratos.

A doutrina tradicional parte do «princípio da fidelidade ao contra-

to», de acordo com o qual aquele que conclui um contrato a ele fica

vinculado. Este princípio comporta, porém, tantas excepções que

muitos e ilustres jusnaturalistas, como LEIBNIZ e FICHTE13, puseram

em dúvida a sua vigência (jurídica).

Um contrato pode ser inválido se, aquando da sua conclusão, existe

um erro, medo ou dolo, se uma das partes se revela negocialmente

incapaz, se depois da sua conclusão as circunstâncias se alteraram

radicalmente, ou se o seu conteúdo viola os bons costumes, desig-

nadamente, apresentando uma desproporção usurária.

Todos estas causas de invalidade foram inseridas em categorias

fixas, tratadas de modo isolado umas das outras. Daí resultou uma

rigidez que toma insuficientemente em conta a articulação dos

vários pontos de vista.

O «princípio da vinculação ao contrato» constitui uma «força jurídi-

13 Cfr. STEINWENTER, Vertragstreue im bürgerlichen Recht, Juristische Blätter, 1950,

pág. 198.

Page 22: Sistema Móvel de Resp Civil

22

ca» que, conformes as circunstâncias, desenvolve diferentes

«energias de actuação». Se valesse incondicionalmente, poderia

tornar-se uma base para o pior abuso – pense-se, por exemplo, em

Schylock no «Mercador de Veneza». Na maior parte dos ordena-

mentos, a doutrina exige, para um contrato ser válido, que se sus-

tente num fundamento jurídico suficiente.

Contra a validade do contrato deporá, sobretudo, a existência de

uma situação de facto atinente a uma das partes que a haja impe-

dido de prosseguir adequadamente os seus interesses por ocasião

da conclusão. Um tal «impedimento» ocorre, por exemplo, quando

falta a capacidade negocial, ou quando existe uma fraqueza de

entendimento, inexperiência, erro ou uma situação de necessidade

da parte de quem pretende impugnar o contrato.

Estas forças revelam-se eficazes, opondo-se à validade do contrato,

na medida da necessidade de tutela que determinam. Porém, ape-

nas quando surgem no maior grau da sua força podem sobrepor-

se, por si só, ao princípio da vinculação ao contrato – princípio que

«serve» a segurança do tráfico jurídico.

Uma outra força conducente à anulabilidade residirá no facto de um

dos contraentes dele retirar vantagens, de modo injusto, à custa da

outra parte. Aqui intervém o famoso princípio de que ninguém se

deve locupletar com um dano alheio. Com um valor supremo para

os defensores do direito natural, este princípio perdeu hoje o seu

«prestígio jurídico», já que a sua vigência incondicional restringiria

em demasia o tráfico negocial.

Também na discussão sobre estes princípios, ao pensar-se a partir

de posições extremas, obstruiu-se o reconhecimento de que, pelo

menos conjugado com outras forças, o enriquecimento assume

relevância para se julgar o contrato anulável. Não actuando, é cer-

to, como uma força absoluta, mas conjuntamente com outros pon-

tos de vista, segundo as circunstâncias do caso.

Page 23: Sistema Móvel de Resp Civil

23

Um outro elemento de anulabilidade pode consistir no comporta-

mento das partes na altura da conclusão do contrato, sobretudo

numa actuação culposo. Actuou, por exemplo, de modo negligente

aquele que incorreu em erro, então isso deporá no sentido de que o

contrato permaneça válido ou, se a anulabilidade mesmo assim se

impuser, que seja indemnizado o dano sofrido pelo outro contraen-

te por ver defraudada a sua confiança. Ao invés, um comportamen-

to deficiente, especialmente a culpa da contraparte, constitui uma

força que favorece a anulabilidade.

Estes pontos de vista actuam em combinações distintas que em

parte já encontraram expressão no ABGB. Assim, por exemplo, o

dolo e o medo apenas darão lugar à anulabilidade se existir culpa

da contraparte. Esta é uma solução que associa a «ideia» de vício

da vontade com o «elemento» do ilícito.

O erro mereceu à lei um tratamento diferenciado segundo a sua

modalidade. Um erro sobre os motivos, exterior ao negócio, apenas

será tomado em conta no caso do dolo ou tratando-se de negócios

gratuitos. A necessidade de segurança e de vinculação incondicional

à palavra dada é, aos olhos da lei, menor nas doações do que nos

negócios onerosos.

Mais terminantemente se impõe o erro na declaração. Ele pode

também compreender, segundo o § 871, os negócios gratuitos

quando amparado por outras forças ancilares. Nomeadamente,

conduz à invalidade do contrato se a contraparte o causou de

maneira culposa, quando, mesmo sem culpa, o deveria ter reco-

nhecido ou dele tenha sido atempadamente avisado. Aqui a lei atri-

bui, de modo digno de nota, valor a diferentes forças, o que lhe

valeu então a dura crítica de um partidário da jurisprudência dos

conceitos14.

De modo especialmente claro se revela a diversidade das forças

que se conjugam na hipótese da usura. Esta pressupõe, por um

Page 24: Sistema Móvel de Resp Civil

24

lado, uma manifesta desproporção das prestações, portanto, um

enriquecimento excessivo, por outro, uma situação de necessidade

ou fraqueza de entendimento, inexperiência, leviandade por parte

do explorado, e, finalmente, uma culpa grosseira da contraparte.

Não existe consenso na ciência jurídica quanto a saber se a invali-

dade também abrange um contrato em que estão reunidos vários,

mas não todos, os pressupostos do negócio usurário. É possível

chegar aqui a uma solução recorrendo à ideia da relatividade das

forças, segundo a qual, por exemplo, uma culpa (ainda que leve)

daquele que lucrou com o negócio é suficiente quando a situação

de necessidade do lesado se mostra especialmente grave e a des-

proporção das prestações apresenta um grau particularmente

excessivo.

Se uma das partes não recebe por força do contrato sequer a

metade do valor daquilo que prestou à contraparte (laesio enor-

mis), então o § 934 ABGB concede-lhe uma possibilidade aparen-

temente autónoma de anulação. O direito de anulação desaparece,

porém, quando ela conhecia o verdadeiro valor das prestações e,

portanto, inexiste um erro da sua parte como causa coadjuvante da

anulabilidade.

Também outras ideias afins podem contribuir para uma solução.

Existem acordos que encerram em si, segundo a própria natureza,

o perigo de precipitação. Essa é a razão para que, por exemplo,

cláusulas penais convencionadas para o caso de não cumprimento

de um contrato possam ser reduzidas pelo juiz. Na compra e venda

a prestações, a qual se revela especialmente perigosa para os

compradores, são proibidas de todo tais cláusulas.

Partindo do mesmo ponto de vista, preceitos de direito estrito pro-

tegem o devedor, que haja constituído um penhor, contra a even-

tualidade de o credor obter, em caso de não cumprimento, uma

vantagem injustificada.

14 UNGER, System des österreichischen allgemeinen Privatrechts, II, pág. 125

Page 25: Sistema Móvel de Resp Civil

25

Especial influência assumiram no direito contratual a ideia de pro-

tecção social e a regulamentação económica, global, das prestações

e dos preços. Também nesta matéria terá a «arte jurídica» de pon-

derar todos os pontos de vista de um justo equilíbrio e harmonizá-

los com as exigências económicas. Uma das questões mais melin-

drosas do direito contratual surge quando as circunstâncias pressu-

postas no momento da conclusão se alteram posteriormente. Este

problema – a cláusula rebus sic stantibus – reveste igualmente um

papel importante no direito internacional público.

A doutrina dominante encara a resolução do contrato por alteração

das circunstâncias como excepcional, apenas admissível em casos

especiais e desde que tal seja exigível à contraparte. O que aponta

para uma ponderação abrangente dos interesses, de forma que

também aqui a actuação conjunta das forças é decisiva.

A ocorrência imprevista de uma nova situação é análoga à hipótese

de um erro na conclusão do contrato. Tudo depende de saber em

que medida a alteração excede o risco normalmente associado ao

contrato. Acresce, como outra força de anulabilidade, o maior ou

menor dano que quem pretende impugnar o negócio sofreria, e

ainda a circunstância de que a contraparte possivelmente se locu-

pletaria com esse dano.

Algumas leis surgidas no contexto da última guerra ponderaram,

em vez da resolução do contrato, uma modificação adequada deste

e, além disso, um ressarcimento do «dano da confiança» surgido

para a contraparte. Esta constitui uma solução razoável e elástica.

Os elementos, que segundo o exposto valem para a anulabilidade

de um contrato, podem também sustentar as acções de restituição

de uma prestação realizada por erro.

Até hoje, a ciência jurídica esforçou-se debalde por construir tais

acções (de restituição) com base em fórmulas sem conteúdo,

amparando-as em «muletas». Diz-se que a repetição de uma pres-

Page 26: Sistema Móvel de Resp Civil

26

tação será admissível quando esta carece de uma causa jurídica15.

Por outro lado, veda-se o direito de repetição – e com razão –

àquele que realizou uma prestação consciente da inexistência de

uma correspondente causa. Mas, desse modo, quebra-se o princí-

pio.

O direito de repetição resulta, na minha opinião, da articulação da

ideia de enriquecimento com o erro, medo e dolo e outras forças

semelhantes.

O âmbito do meu discurso não permite desenvolver esta ideia mais

detalhadamente. Sirvam as referidas áreas, até agora expostas,

como começo de prova do que representaria o trabalho de uma

vida e cuja consecução apenas constitui uma esperança. Eu vejo a

deficiência da doutrina dominante no facto de ela pensar demasia-

do segundo princípios absolutos e «atar» as forças referidas a

determinados contextos históricos. Ela assemelha-se a um general

que não dispõe de uma forma soberana e ágil dos seus meios

estratégicos.

O método aqui proposto destina-se a conformar o sistema do direi-

to privado de tal modo que, sem perda da sua consistência interna,

adquira a aptidão de receber em si mesmo as múltiplas forças da

vida16. Isto tem, antes de mais, um significado dogmático. A sua

utilização para o direito positivo é uma questão de «técnica legisla-

tiva» e, na medida em que a doutrina e a praxis contribuem para o

desenvolvimento do direito, uma questão de «temperamento jurídi-

co».

O legislador poderia, por exemplo, configurar no sentido exposto o

direito da responsabilidade civil, resultando a responsabilidade do

lesante do «quadro conjunto» de determinados elementos cuja

valoração seria expressa de modo exemplar mediante casos típicos.

15 Ver Komm. zum ABGB, Neuauflage, §§ 1431 a 1437, págs. 480 e ss. 16 Para cada uma das forças, por exemplo para o ponto de vista da consideração

social, surgem aspectos novos e ulteriores da ideia da sua aplicação móvel. Daqui

Page 27: Sistema Móvel de Resp Civil

27

Nestes termos, o juiz seria chamado a tomar livremente a sua deci-

são segundo uma «discricionariedade orientada», mas não, como

KLANG17 objectou, de modo livre. É este justamente o sentido da

minha proposta: evitar que o tribunal seja remetido apenas para a

equidade, para o respectivo sentimento jurídico, para os bons cos-

tumes ou para conceitos semelhantes desprovidos de conteúdo.

Uma lei definindo elasticamente os pontos de vista decisivos pode

mesmo constituir um suporte mais forte, tal como um «ligame

elástico» muitas vezes se mantém melhor do que uma estrutura

rígida que não possui a capacidade de acompanhar os movimentos.

A conformação móvel parece, todavia, aumentar a responsabilidade

do juiz. A posição deste é, porém, muito mais difícil quando tem de

aplicar princípios que conduzem a consequências inaceitáveis. Em

tal caso, a lei revela-se, não só desprovida de valor, mas até um

obstáculo que lhe dificulta a decisão. Repetidamente haverá que

lançar mão a artifícios de interpretação, os quais representam, afi-

nal, uma «velada» correcção à lei, ou a outros «meios forçados» no

apuramento da situação de facto. Amiúde, o tribunal não se inibe

de aceitar como provada uma culpa leve porque sente como dema-

siado severa a imposição de um dever de indemnizar a totalidade

do dano, mas não lhe é concedida pela lei a faculdade de decidir

por uma indemnização parcial.

As leis que prescrevem um dever de indemnização, independente-

mente da culpa, para determinadas actividades ou coisas têm,

porém, em si mesmas um carácter lacunoso. Elas introduziram, por

exemplo, uma responsabilidade pelo resultado (objectiva) para os

veículos automóveis, mas não para os veículos puxados por cava-

los. Isto é, em termos gerais, compreensível. Porém, quem anda

pelas ruas com um cavalo de corrida não actua de modo menos

perigoso que um automobilista.

resulta uma análise compreensiva, conquanto diferenciada para os distintos contex-

tos, desses pontos de vista.

Page 28: Sistema Móvel de Resp Civil

28

De forma bastante generosa, o ABGB18 concedeu ao juiz, numa

disposição que se tornou modelo para legislações estrangeiras, o

poder de resolver casos, que o legislador não tomou em considera-

ção, com o recurso à analogia e segundo os «princípios gerais

(comuns) do direito». A ciência jurídica pode, neste domínio, con-

formar livremente as forças e ideias sem que sejam necessárias

novas leis. Uma evolução móvel corresponde ao espírito da lei, à

qual, de modo algum, é estranha a concepção de um jogo de for-

ças.

Seja-me permitido terminar com uma imagem. A ciência jurídica é

uma «arte» cuja tarefa é captar as manifestações da vida em

comunidade dos homens e conformá-las. Ela há-de ser clara, mas

também rica em pensamentos, como a luz solar o é em cores. E

deve, consequentemente, aspirar a identificar todas as cores e

tonalidades sob pena de permanecer alheada da realidade.

17 KLANG, JBl., 1946, pág. 330. 18 ABGB § 7.

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29

WALTER WILBURG E A SUA CONCEPÇAO DE UM «SISTEMA

MDVEL» NO DIREITO PRIVADO

WALTER WILBURG (1905-1991), originário de Graz e tendo ensinado

até à sua jubilação na Universidade Karl-Franzens, é hoje conheci-

do entre os juristas muito para além das fronteiras do espaço lin-

guístico alemão sobretudo em razão dos seus significativos contri-

butos para o desenvolvimento do direito das obrigações (no domí-

nio das relações obrigacionais de origem legal). Ainda apenas com

a idade de vinte e sete anos publicou o Autor explanações essen-

ciais «[s]obre a teoria da compensação dos lucros com os danos»

(«Zur Lehre der Vorteilausgleichung»). Surgido em 1934, o seu

estudo «[s]obre a teoria do enriquecimento sem causa segundo o

direito austríaco e alemão» («Zur Lehre von der ungerechtfertigten

Bereicherung nach österreichischem und deutschem Recht»), no

qual definiu em moldes originais a relação entre a «acção baseada

num enriquecimento sem prestação» (scl., dirigida à restituição

das vantagens resultantes do uso e fruição de um bem alheio –

«Verwendungsklage») e casos de «incumprimento» (em sentido

lato, «Leistungsstörungen), teve influência persistente na teoria e

na praxis, influência que perdura até hoje.

Publicada em 1941, em Leipzig, a sua obra sobre os «[e]lementos

da responsabilidade civil» («Elemente des Schadensrecht») não

pôde então alcançar a atenção que realmente merecia devido às

adversas circunstâncias políticas ao tempo dominantes. O mesmo

ocorreu com a prelecção reitoral de Granz, proferida em 1950, logo

depois do fim da guerra, de que se imprimiu um número reduzido

de exemplares (e da qual já existe também uma tradução, ao cui-

dado de HAUSMANINGER, em língua inglesa). Neste estudo, numa

exposição concisa e com ajuda de exemplos seleccionados em

sequência metodológica, WILBURG desenvolve o por ele designado

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30

«sistema móvel» – que subjaz à sua concepção do direito da res-

ponsabilidade civil – enquanto esquema de pensamento e ordena-

ção do direito privado.

Como elementos do direito da responsabilidade civil, que num jogo

variável, segundo o concreto grau da sua intensidade, poderiam

num determinado caso servir como fundamento de uma indemniza-

ção total ou parcial, WILBURG (já em 1941) tinha destacado: a «uti-

lização de esfera jurídica alheia através de intromissão ou exposi-

ção ao perigo»; a «causação da ocorrência do dano através de cir-

cunstâncias da esfera do responsável»; a «censura de um defeito

na esfera do responsável»; «a força ou o poderio económico do

responsável ou a exigibilidade de este celebrar um contrato de

seguro incluindo os eventuais danos».

No desenvolvimento e, simultaneamente, superação da jurispru-

dência dos interesses, WILBURG generalizou então na sua prelecção

reitoral a ideia de que as consequências jurídicas resultam de um

jogo de «elementos móveis»: situando (ou deslocando) as «forças

móveis» identificadas como decisivas nas hipóteses das normas e,

atendendo ao respectivo peso, propôs «soluções elásticas» dirigidas

às especificidades de cada caso. No que apresentou sucintamente

as consequências do seu ponto de partida através de uma série de

exemplos retirados não só do direito delitual mas também, como a

hipótese do negócio usurário, do direito contratual. Desde modo, foi

reconhecido o significado normativo dos enunciados ou proposições

comparativas no direito e abriu-se a possibilidade de substituir os

rígidos enunciados «regra/excepção» por flexíveis e abertas rela-

ções «quanto mais/mais».

Em tempos de uma cada vez mais deplorada avalancha legislativa,

este acesso metodológico para a superação de complexas questões

jurídicas, é – agora como antes, e em alto grau – actual, pois mos-

tra um caminho para «evitar a inevitável casuística» de normas

Page 31: Sistema Móvel de Resp Civil

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rígidas conformadas segundo o esquema da conexão entre hipótese

e consequência.