são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos...
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Trabalho Final da Disciplina História da Educação II da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo
Tema: Maioridade Penal no Cenário Educacional: Historicidade da marginalização, escola e
seus (des)encontros.
Aluna: Beatriz de Carvalho Pinheiro
Professora Responsável: Ana Luiza J. Costa
“Artigo 7:
São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou
insalubre a menores de dezoito e de qualquer
trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição
de aprendiz, a partir de quatorze anos”
“Artigo 229:
Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os
filhos menores, e os filhos maiores têm o dever
de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”
“Artigo 208:
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro)
aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive
sua oferta gratuita para todos os que a ela
não tiveram acesso na idade própria.”
“Artigo 228:
São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às
normas da legislação especial.”
Artigos retirados da Constituição Federal vigente. Disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
Acesso em: 21 de Janeiro de 2015.
1. INTRODUÇÃO
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Poucos assuntos são tão polêmicos e discutidos como a maioridade penal no Brasil:
uns acreditam que esse limite (que coincide com a maior idade legal) deve ser diminuído para
16 anos de idade, por outro lado alguns condenam essa reformulação acreditando que ferem
os direitos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo o site Terra, há 50 propostas no
Congresso que tratam do tema onde aproximadamente 20 deputados federais ligados à área de
segurança apoiam a alteração do Código Penal juntamente com 92,7% dos brasileiros a favor.
Dentro dos argumentos para a diminuição temos a acusação de impunidade juntamente com
um suposto grande número de crimes cometidos pelos jovens que agravam exponencialmente
a situação delicada de criminalidade do país.
Olhando pelo outro lado temos as estatísticas que apontam apenas 8% dos crimes
cometidos são de autoria dos jovens, e que dentre esses só 10% são contra a vida, o que de
fato não justifica, mas diminui bastante a gravidade das acusações feitas. No caso da
impunidade, temos o mecanismo do recolhimento de jovens a partir dos 12 anos de idade para
unidades de ressocialização (por exemplo, a Fundação Casa que surge em substituição a
FEBEM: Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), onde teriam de permanecer quando
condenados de alguma infração, e teoricamente receberiam assistência pedagógica,
educacional e assistencialista, ao invés de juntarem-se aos adultos na prisão comum. Porém, o
que frequentemente acontece quando esses jovens são incluídos nesse programa é uma piora
significativa no comportamento quando saem (ou fogem como muitas vezes ocorre) onde
acabam aumentando a gravidade de suas infrações por frustração ou aproximação com outros
indivíduos na mesma situação que revoltam-se contra a punição sofrida ou realidade negativa
compartilhada. Esse retrocesso pode apontar mais uma justificativa para a não diminuição da
maioridade penal, afinal “misturaríamos” pessoas mais velhas, com maior histórico criminal
com os mais jovens de primeira passagem e encaminhá-los definitivamente para um caminho
destorcido e deteriorado.
Dentro de tantos impasses e acusações, além de apoio em estatísticas reveladoras, é
impossível deixar passar as frequentes análises da criminalidade com o nível de escolaridade,
onde é apontado que quanto menos um jovem frequenta a escola mais adentro do mundo de
infrações ele está, e mais grave são seus crimes, o que já foi provado também ser um
equívoco: segunda a Folha UOL: “As estatísticas mostram que os menores que estudaram
menos concentram-se em crimes contra o patrimônio, enquanto os mais escolarizados
envolvem-se em conflitos interpessoais. Furto e roubo são os delitos mais comuns entre os
que não concluíram o ensino fundamental. Já a lesão corporal (agressão) é a principal
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infração dos que chegaram ao ensino médio”. Em contrapartida outra informação levantada
pelo mesmo site indica que quanto maior a instrução escolar do infrator menor é a sua
punição, numericamente falando 3,3% dos adolescente sem ensino fundamental que
cometeram infrações consideradas graves foram internados ou reclusos em semi-liberdade,
enquanto só 0,6% dos que possuíam ensino médio completo e cometeram crimes na mesma
gravidade tiveram sua liberdade restrita de qualquer forma. Essas alternâncias também variam
de acordo com a etnia do indivíduo e histórico trabalhista.
Esses levantamentos e comparações ressaltam algumas dúvidas: se dizem que a escola
poderia ser a solução para criminalidade infantil, por que os jovens mais escolarizados
alcançam níveis mais graves de infrações? E por que essa escolaridade também ameniza as
possíveis punições, mesmo que a mesma também piore os casos? A maioridade penal, ao
longo da história, em paralelo com a evolução e ampliação da instituição escolar pode mostrar
se realmente há uma raiz muito mais profunda do que parece entre esses dois mundos? É um
dos objetivos do trabalho tentar alcançar alguma conclusão a respeito da marginalização,
criminalidade e escolaridade (e nossa forma escolar) por trás da lente tão famosa das
discussões de maioridade penal e suas vertentes pedagógicas e jurídicas. Variando
constantemente seu personagem de “solução” para “causa” é impossível negar a relação e
importância da educação nesse cenário, onde o drama pendura por muitos anos, e o estudo de
sua história talvez nos traga algumas luzes, ou ao menos, questionamentos relevantes para
respostas futuras muito mais eficazes e justas.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Educação e marginalização: a história e origem do senso comum brasileiro
A mãe diz que Álvaro sempre foi assim (. . .) “Porque ele é inteligente, mas
muito vagabundo; eu queria que ele estudasse, fosse alguém, fizesse até Administração de Empresa que eu sei que ele dá pra isso, mas eu não
consigo com a vida dele e eles na FEBEM me disseram que fariam ele estudar e aprender” (. . .) Álvaro aprendeu que nunca se deve deixar
escapar uma boa oportunidade de furtar objetos de um carro aberto ou
exposto num supermercado. (FERREIRA, p. 98, 1979)
A criminalidade infantil e sua frequente comparação com a participação escolar – ou
melhor, a falta dessa – corre pelos assuntos populares e na tentativa de culpar ou encontrar o
ponto de origem desse déficit, normalmente chegando à conclusão de que a criança teria tudo
para “ser alguém na vida” se frequentasse a escola e levasse os estudos a sério. Quase como
se o ‘mundo do crime’ fosse o antônimo do ‘mundo escolar’, e coubesse ao menor dedicar-se
a engajar-se nesse propósito, pois os direitos de acesso à escola gratuita foram descritos,
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legalizados e defendidos pela transformação em 1988 do conceito de educação como direito
público subjetivo que havia sido abandonado desde a década de 30 como diz José Silvério
Baia Horta em seu texto Direito à educação e Obrigatoriedade Escolar, onde também
explicita a luta de tantos anos para que esse direito não só fosse oficializado como
sumariamente defendido através de pena jurídica caso houvesse negligência da entrada e
passagem escolar de algum menor na instituição escolar até, pelo menos, a conclusão do
ensino fundamental.
A questão do direito de educação não pode ser vista só como uma luta longa e
insistente das classes populares para alcançar, assim como o resto da população elitizada,
oportunidades de recursos da forma mais igualitária possível, mas também pode ser enxergada
como uma corrida impulsionada pelo senso comum – também construído pelas elites – de que
há superioridade daqueles que carregam o capital cultural¹ e só haveria ascensão social
através da educação, portanto, através da instituição escolar como ideal de salvação e
desenvolvimento que existe nos dias de hoje e deixou rastros na história brasileira.
Além disso, Sônia Câmara em seu livro Sob a Guarda da República apresenta a ideia
de “comunidade imaginada” que surgiu em 1924 e visava unir a vida dos indivíduos com o
destino nacional, ou seja, a participação da população nas mudanças do país era essencial, e
para isso deveria haver investimento na educação com instrumentos de nacionalismo, onde
todos seriam ensinados da importância de onde vivem e aprenderiam a lutar pelos direitos e
honras de sua nação, e aqueles que não seguissem essa linha estaria indo contra o objetivo de
progresso e desenvolvimento de todo o resto. Mais uma vez a educação aparece como
salvação social:
A educação pretendida deveria proporcionar o aperfeiçoamento intelectual,
a grandeza ética, o desenvolvimento físico capaz de revogar, na criança,
tendências adquiridas e herdadas que acabavam por impulsioná-la em
direção a uma vida desregrada e corrompida (. . .) Nessa perspectiva,
buscaram redimir a população em direção à construção de uma nova
identidade social conformada com os padrões de beleza, de saúde e de
educação. (CÂMARA, 2010, p. 127)
O meio urbano e industrial era o maior foco dessa crítica social, aonde as famílias
cuidavam e educavam seus filhos ao mesmo tempo em que trabalhavam fábricas e industrias e
deixavam os menores em casa, ou seja, nas ruas. Dentro desse mesmo cenário existia uma
maior desigualdade social, então a diferença entre as crianças estavam em maior nível.
Para os jovens “menos favorecidos” a inércia – ou seja, a não frequência da instituição escolar
- conduziria para o mundo de delinquência, abandono, criminalidade e analfabetismo², e na
¹ O termo “capital cultural” criado pelo sociólogo Pierre Bourdieu é basicamente a ideia que categorizava certos
níveis de cultura como os ideais e exigidos pela sociedade vigente pelas classes sociais ‘dominantes’, os quais
diferenciariam e contrastariam ainda mais desigualdades socioeconômicas. A instituição escolar foi/é uma das
maiores produtoras dessas diferenças.
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época o número de crianças que frequentavam a escola era bastante diminuto, segundo os
dados apresentados pelo Recenseamento da Diretoria Geral de Estatística, em 1926, a
porcentagem de crianças fora da escola variava de 98,51% (Piauí) a 54,57% (Rio Grande do
Sul), o que mostra que em todo o Brasil a maioria dos jovens não tinha acesso a educação.
Nessa época, a criminalidade geral (individual ou coletiva) era diagnosticada como
anomalia de uma inferioridade intelectual, desvios afetivos e aberrações sociais. Todas seriam
de berço e congênitas, portanto poderiam já ser reconhecidas na infância e prever o seu futuro
social (CÂMARA, 2010, p. 138). Essa hipótese juntamente com o objetivo de
‘modernização’, higienização, progresso e desenvolvimento nacional a partir da educação
base fez com que a escola fosse considerada oficialmente a cura para a marginalização e
delinquência, onde seriam oferecidos e ensinados princípios morais e éticos, além de
fundamentos nacionalistas e conhecimentos adequados e favoráveis para a suposta formação
de um bom cidadão, que era o oposto da criança na rua largada a própria ‘sorte’ da vida
urbana que caminharia provavelmente para o lado mais negativo possível. Dessa afirmação
também se pode entender que não existiria influência nenhuma, somente positiva, da
instituição escolar na delinquência infantil e esse argumento perpetuou-se, ou seja, evoluiu e
trouxe ao presente o senso comum do antagonismo “criminalidade e escolaridade”.
Ao mesmo tempo, a própria sociedade estava cada vez mais circunscrevendo a
produção comercial com o avanço da complexidade dos sistemas desenvolvidos, e algo
complexo demanda funcionamento complexo numa variação diretamente proporcional a mão
de obra utilizada no mesmo, assim estudos especializados e maior nível educacional para
engrenar esse mecanismo eram cada vez mais exigidos e desejados por aqueles que visassem
um bom trabalho e futuras boas condições financeiras. O sonho de mudança de vida através
desse caminho era notadamente o mais perseguido pelos mais pobres que sofriam na sua
situação socioeconômica, eram cada vez mais apontados como os culpados da degradação
nacional e viviam as margens do ideal popular, consequentemente mais lutavam pelos direitos
que tomavam consciência que tinham. Era sabido por muitos que quanto mais baixa a classe
econômica e social, mais distante o indivíduo fica da administração da justiça (HORTA,
1998, p. 7), e para que ocorresse uma mudança nesse aspecto a primeira procura deveria ser
² A alfabetização começa a tornar-se assunto de destaque, mesmo que nessa época ainda estava fora da
Constituição de 1891 a gratuidade e a obrigatoriedade escolar. Segundo Cury, esses dois fatores só seriam
possíveis se a organização federativa abrisse espaço para a organização estadual, porém a maioria dos
Estados não conseguiria arcar com os custos das instituições escolares, então na Constituição não foram
adicionadas a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino.
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dos próprios interessados, e nesse segmento sabia-se que deveriam exigir a educação num
aspecto democrático para terem todos a mesma chance de progredir crescer no universo em
que viviam.
Em conclusão, o senso comum da educação e da criminalidade foi construído em
bases plásticas: quando não manipuladas e conferidas de sua resistência parecem firmes e
pouco moldáveis, mas quando investigasse profundamente com as variáveis possíveis
descobre-se menos confiabilidade do que aquela depositada pela maioria. No livro Meninos
de Rua de Rosa Maria Ficher Ferreira conseguimos perceber através de um gráfico
comparativo de “Ano por Número de casos de infratores” fornecido pela FEBEM em 1975
que ao longo dos anos houve um decréscimo momentâneo para depois um aumento
significativo de jovens infratores (FERREIRA, 1979, p. 52), e conforme os anos passavam
também se chegava mais perto da gratuidade e obrigatoriedade escolar defendidas e
garantidas pela lei federal, o que pode, de certa forma, apontar que a escola formou-se um
exemplo de salvação pra marginalização, mas isso não significa, como pudemos observar, que
ela realmente seja a “cura” dessa insistente problematização.
2.2 As crianças
“Margerith, você não tem ideia do que podia ter te acontecido! Esses
meninos eles são...” disse Pérola.
“Eu sei. Eu sei.” Margerith assentiu com a cabeça.
“Tem menino que sai do caminho, Margerith, e o Roberto é um desses. Eu
lembro quando ele chegou aqui: pequenininho, assustado... Ai foi crescendo
e caiu do lado errado. Fugiu com uma turma de meninos mais velhos,
descobriu a rua. A mãe vinha visitar e ele nunca tava, isso acabou separando
ele muito mais da família... E isso acontece toda hora”. (Trecho do filme O
Contador de Histórias com direção de Luiz Villaça, 2009).
O filme nacional de Luiz Villaça conta a história de Roberto, o caçula de 10 filhos que
vive precariamente com sua família em um barraco na periferia de São Paulo, até o momento
que sua mãe é seduzida por propagandas e boatos de que a FEBEM abrigaria menores e lhes
daria boas condições de vida e uma educação promissora para que se formassem
academicamente e pudessem ter um emprego no futuro. Convencida disso, deixa Roberto
recluso na instituição onde poderia visitá-lo frequentemente para que ele não perdesse a
referencia familiar e não se separasse totalmente de sua mãe. Após algum tempo em que
Roberto precisa juntar-se ao grupo de jovens mais velhos – onde muitos estão lá não pelo
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mesmo motivo que ele, mas também por terem cometido crimes e/ou infrações – e dentro
desse novo cenário ele sofre abusos e agressões, e além de traumatizado começa a ser
influenciado e muitas vezes obrigado a se comportar de forma rebelde e agressiva contra os
outros e principalmente contra o sistema implantado em que foi compulsoriamente inserido. A
fundação não possui boa estrutura nem organização, e trata a maioria dos menores de forma
negligente e desesperançosa: passam dos famosos “eles não tem jeito”, “são casos perdidos”,
“não tem o que fazer” para o início de conflitos travados entre os dois lados, onde na verdade
deveria haver união e confiança.
Roberto inicia sua vida nas ruas de forma criminosa e perde contato com sua mãe e
família. Mistura-se aos ‘invisíveis’ com histórias próximas a suas e juntos emergem-se numa
realidade de fugas, furtos, agressões e disparidades, que não é só um desejo incomum da
chamada liberdade para eles como, na verdade, a única opção que eles conseguem enxergar
em condições de origem tão infeliz. Após muito fazer, muito aprender – e nesse caso
‘aprender’ não significa o que é comumente dito com a relação de educação escolar, mas sim
por uma educação de rebeldia e oposição – e principalmente, muito sofrer, Roberto encontra
em sua vida a pedagoga francesa Margerith, que está no Brasil a procura de relatos de
histórias dos meninos da FEBEM³ para uma pesquisa que organiza. Durante esses encontros
eles criam certos laços afetivos e ela dispõe-se a ensiná-lo a ler e escrever em troca de alguns
depoimentos para seu trabalho. Nessa troca e após muitos altos e baixos Margerith adota o
jovem, que sai das ruas, dedica-se e forma-se não só academicamente, mas também supera
suas más condições sociais e traumáticas e usa delas para distanciar-se oficialmente do mundo
do crime e infrações.
A história de Roberto, infelizmente, é incomum dentro de tantas ao longo dos anos no
Brasil, e por isso mereceu destaque através de uma produção cinematográfica. Mas explicita
que a opinião de muitos dos organizadores e responsáveis por esses jovens está errada, e que o
caminho não é único e depressor, apesar de ser mais comum do que deveria, e por isso há
tanta preocupação e repercussão do assunto. A linha de pensamento, assim como todo
fenômeno social, tem origem e vertentes históricas muito longas e complexas, é necessário
explorar algumas delas pra entender, agora com o foco na própria criança, o caminho até aqui.
2.2.1 O olhar em foco na infância
Nikolas Rose em seu texto O olhar do psicólogo explora o trajeto da separação da
criança em um universo único de comportamento e observação, ou seja, são separadas dos
³ FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) teve mudança de nomenclatura para a atual
Fundação CASA/SP. A alteração se deu por meio da Lei Estadual 12.469/06, aprovada pela Assembleia
Legislativa de São Paulo em Dezembro de 2006, teve por objetivo adequar a instituição ao que prevê o ECA
(Estatuto da Criança e Adolescente) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
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adultos em relação aos desdobramentos sociais e psicológicos, passiveis de uma maior
compreensão e métodos e tratamentos exclusivos para entender, explorar e interferir nos seus
processos de desenvolvimento mental, físico e moral. Segundo o autor, esse tipo de estudo
com limitação e separação, no século XIX, se dava para “o criminoso, o louco, o pobre, o
defeituoso” (ROSE, p.1) onde pesquisadores buscavam entendimento mais profundo e futura
categorização de diferentes casos; paulatinamente começaram a buscar nesses casos alguma
origem que fizesse sentido, e para isso desviaram suas atenções para o início das vidas, que
era a infância, e, portanto, a criança como protagonista.
Durante os anos essa separação criou um espaço perigoso para o tratamento dos
jovens, a própria criação da FEBEM, a maioridade penal e a educação como único direito
legal e federal que também é uma obrigação são resultado desse causo histórico. Porém, a
individualização infantil serve de ajuda para analisar a marginalização, criminalidade e o nível
que atingimos nessa comparação, e com essa ideia que Rosa Maria Fischer Ferreira trabalha
em seu livro Meninos de Rua: através de depoimentos de crianças que vivem nessas
condições há uma tentativa de explorar mais adentro desse universo infantil e suas próprias
visões de vida e futuro.
O consenso majoritário descoberto durante a pesquisa – realizada em 1979 - foi que a
maior influência das preocupações e alcance de visão de futuro traçados pelas crianças
entrevistadas é a autoimagem projetada pelo senso comum de delinquência dos jovens que
vivem nas ruas. Crianças e principalmente adolescentes tem uma grande riqueza de detalhes e
desejos ambiciosos a respeito do que querem ou pretendem fazer e ser, sonhos que até
ultrapassam os limites sociais em que os mesmos estão inseridos. Mas no caso dos meninos
de rua não há esse privilégio, pois são comprometidos com a realidade em que vivem desde
seu nascimento, não criam uma escapatória opcional que fuja da sua vivencia imediata, mas
sim adaptam-se ao seu modelo de sobrevivência e acabam por aceitar e considerar até uma
certa ‘liberdade’ viver do jeito que vivem. Aqui temos dois discursos coletados por Rosa
Maria que exemplificam essa crítica:
Depoimento de Nilton, 14 anos:
“Eu acho que isso que eu faço é trabalho; os homens (a Polícia) é que
acham que não. Eu não quero mudar minha situação, não, mudar pra quê? (.
. .) Depois, aqui não tem horário e eu não tenho que acatar ordem de
ninguém, tenho muito mais liberdade... Eu não quero ser nada não, assim tá
bom” (FERREIRA, 1979, p. 130).
Depoimento de Walter, 13 anos:
“Eu queria ser doutor, médico, advogado ou engenheiro, porque daí a gente
faz o bem pras pessoas e pra gente (ganhando dinheiro), mas a gente precisa
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estudar e isto eu acho que não vai dar... As pessoas acham que somos
trombadinhas só porque ficamos na rua (. . . ) Mas sabe, dona, se eu fosse
inteligente, não taria aqui não, se eu tivesse cabeça estava estudando”
(FERREIRA, 1979, p. 131)
Por meio desses depoimentos também é possível traçar um paralelo com a primeira
passagem desse trabalho que explorou o senso comum que opunha a vida na rua com a vida
na escola, e visualizar nos depoimentos que até mesmo os jovens têm essa delimitação quando
perguntado o que eles querem da vida. Junto a isso temos os dados fornecidos pela FEBEM
em 1975 (FIGURA 1 e FIGURA 2 que se encontram anexadas nas ultimas páginas do trabalho) onde
há um número surpreendentemente grande se infrações cometidas na mesma época, e apesar
de muitos estarem matriculados na escola, quase nenhum frequentava, pois as exigências (já
expostas por Sônia Câmara em sua obra Sob a Guarda da República) de controle
comportamental, higienização e padronização social eram incompatíveis da realidade dos
meninos de rua, e como qualquer tentativa de modelagem de habitus, o processo de adaptação
era longo e doloroso.
Além disso, a ideia de que a frequência na escola construiria pontes sólidas para um
futuro promissor e de rendimento econômico apreciável e confortável era precocemente
destruída a partir do momento em que esses jovens decidiam tentar explorar esse caminho:
demoraria demais, demandaria muitos esforços por um modelo muito rígido, não existia
garantia de sucesso e enquanto estavam dentro de sala de aula não poderiam trabalhar e
constituir a renda que construiriam se ficassem nas ruas.
Em conclusão, quando averiguamos dentro do próprio recém-criado universo infantil e
a visão de um dos setores do mesmo (o dos jovens das ruas) enxergamos que há um reflexo
fortíssimo do que a população julga dentro dos próprios julgados, a culpabilização das vítimas
de um emaranhado de conflitos e contextos históricos virou não mais uma procura pela
solução, mas sim um combustível pra esse processo que parece infinito e impossível de
encontrar uma solução, até porque não conseguimos ultrapassar o ideal da instituição escolar
nem enxergar as crianças como seres humanos sem necessidade de atenção especial: fechados
na nossa visão minimizada e pessimista acabamos, depois de anos de lutas e decadências,
hipnotizados pela promessa de uma mudança, sem de fato arrancar o cabresto da ilusão de que
a origem e o caminho são únicos.
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3. CONCLUSÃO
3.1 A maioridade em destaque
A penalidade dos jovens ao longo dos anos no Brasil sofreu certas alterações referente
ao que era considerado maioridade e o que era ser responsável pelos próprios atos a ponto de
responder penalmente aos atos cometidos e tornarem-se infratores “puníveis”. Por exemplo,
na época do império era facultado ao Juiz atribuir aos menores infratores com idade de 14 a
17 anos a pena de cumplicidade, que equivalia a 2/3 da pena que caberia a um adulto, e os
maiores de 17 anos e menores de 21, eram beneficiados com a atenuante pela maioridade
(CURRY apud OLIVEIRA e FUNES, 2002, p. 2). Já depois do decreto de lei em 10 de
Outubro de 1979 a maioridade penal foi atribuída para os 18 anos e “Segundo Wilson Liberati
“Duas eram as categorias de menores: os abandonados (vadios, mendigos e libertinos) e os
delinqüentes, independente da idade que tinham desde que fosse inferior a 18 anos”
(OLIVEIRA e FUNES, 2002, p. 3) e as sanções eram determinadas de acordo com a categoria
que o jovem se encaixasse, sendo a mais grave de todas a internação, ou seja, o cárcere. Mas a
mesma lei impedia que as crianças e adolescentes fossem internados junto aos adultos, pois
deveriam receber tratamento especial e diferenciado desses últimos.
Nessas passagens que circunscrevem a criminalidade e a criança, desbravamos certos
aspectos educacionais e sociais para atingir a crítica a maioridade penal que vem sendo
discutida e sempre foi de grande repercussão pelo seu caráter delicado e perigoso de
argumentar, justamente pela separação das questões infantis do resto das questões trabalhadas
e da ideia de formação de caráter e moral pelo o que se vive nos primeiros anos de vida,
juntamente com o senso comum construído por sociedades complexas que buscam sempre
modernização e avanço e consideram essencial que para isso exista controle e padronização
de comportamento e modos de vida.
É claro que cabe a nós tentar desvendar problemáticas que podem nos atingir, como os
índices de criminalidade que envolve roubos, furtos, agressões e até assassinatos, e se essas
também envolvem as crianças e sua postura diante a sociedade, é com elas que temos que
trabalhar. Mas há uma divergência quando é lembrado que estamos tratando de um assunto
primordialmente social e isso envolve pessoas, indivíduos, assim como nós, capazes de tomar
decisões e de aceitar ou não mudanças, o que quero dizer é que ao longo do trabalho e da
análise histórica da educação e da marginalização prolongadas por crimes juntamente aos
depoimentos analisados e casos separados podemos perceber que a questão é muito mais
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ampla do que uma simples observação de fatos, leis e modificações socioeconômicas de
espaço e tempo.
Junto ao senso comum do antagonismo educação e criminalidade temos também a
ideia de que nós sim somos capazes de mudar o rumo dessas pessoas e consequentemente o
rumo da nossa história. Nós seriamos teoricamente capazes de alterar as estatísticas através de
estudos e pesquisas elaboradas (mais uma vez temos a supervalorização do setor educacional),
e nada disso teria problema nenhum se não causasse também a impressão de que as crianças
pelas quais tratamos, as famílias que estão por trás delas e toda a história que carregam em
dificuldades e traumas são objetos manipuláveis e passiveis de qualquer tipo de alteração, que
somos nós muito mais aptos para tomar decisões do futuro daqueles que estão inseridos nesse
universo, como uma espécie de vitrine em que somos separados por um vidro grosso de
desigualdade, ou brincássemos de boneca com os personagens escolhidos para padronizar as
relações, personalidades e estilos de vida, sem muito se aproximar de fato, e principalmente:
sem nunca entender por completo o que eles vivem, pois nós nunca vivemos algo próximo o
suficiente desse segmento. Com essa conclusão não tenho intenção de abrir mão do meu papel
ou possível contribuição para o entendimento ou modificação desse cenário, e sim tentar,
através de alguns razos princípios sociológicos diagnosticar a complexidade que a própria
pesquisa tem, o que quer dizer que talvez a vigilância do próprio assunto pareça inalcançável.
Dizer que tratar profundamente do assunto é algo inalcançável não quer dizer que não
seja discutível, muito pelo contrário, é através da discussão que averiguamos a dificuldade de
trato desse assunto, e entendemos enfim o porquê é tão polêmico e vulgarizado. Por exemplo,
durante os estudos é concluído que a relação da educação escolar com a marginalização e,
portanto com a maioridade penal é fortíssima e inevitável, acusá-la de ser uma construção
manipulada é redundante dentro de um pacote de tantas outras com os mesmos sintomas, e
diminuir sua credibilidade por isso é equívoco pelo mesmo motivo.
Os (des)encontros dessa realidade são justamente (uma das) possíveis causas das
mesmas. Não basta criticar a relação da frequência escolar com o número de passagens de
menores infratores na FEBEM sem conseguir problematizar a forma da escola
institucionalizada, sem notar que internação pra “reconstrução” social nesses institutos pode
estar sim degradando mais ainda a percepção dos jovens, e pior: sem pensar nos próprios
jovens como alguém sem ser um número a ser superado, mas sim como uma criança que gosta
de bolo de chocolate, andar de bicicleta e sonha em ser jogador de futebol. Sem levar em
conta sua carência emocional, sua desestrutura familiar, profunda em que, como vimos na
história de Roberto, o que lhe falta é um olhar de carinho. Não penso com isso, generalizar
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casos e diagnosticar finalmente que o que falta para todos é somente atenção e afeto, muito
menos que a subjetividade é o principal ingrediente para entender essa complexa relação de
causa e consequência. O que concluo, na verdade é que assim como tudo que se cabe entender
nesse âmbito, menos se entende, e mais se encontram novos aspectos de análise.
A maioridade penal caminha de lei em lei, de década em década, com suas crianças
nas costas, que por sua vez levam consigo a bagagem de uma realidade degradado e
pouquíssimo digna. E logo atrás vamos nós com princípios pedagógicos, noções precipitadas
de uma sociologia complexa, ou somente como cidadãos preocupados e atentos. O que se
espera afinal, não é que nossos estudos os encontrem, mas que nós nos encontremos lado a
lado para estudar nossa realidade juntos. Por fim, encerro com o que considerei mais próximo
da minha percepção pessoal do assunto que não necessariamente traduz todos os pontos
influentes, mas serve de encerramento para a pluralidade de pontos de vista a serem
considerados, respeitados e levados em conta na generalidade:
A Comissão Justiça e Paz de São Paulo fixa uma posição forte em coerência
com sua linha de atuação cristã: o problema do menor é prioritário em
nossas preocupações porque nele incide a maior ofensa à dignidade de
pessoa humana; o problema do menor, nos meus contornos sociais, revela
um regime de exploração que deve ser denunciado desde as suas origens até
as últimas consequências; o menor é destinatário do nosso amor e assim
deve ser tratado, não sendo tolerável que seja tornado instrumento para
recrudescimento de esquemas de repressão contra o povo.
(Participação de José Carlos Dias, Presidente da Comissão Justiça e
Paz de São Paulo, no livro Meninos da Rua de Rosa Maria Fischer
Ferreira, 1979).
E que assim seja.
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Bibliografia:
FERREIRA, Rosa Maria Fischer; Meninos da Rua: expectativas e valores de menores
marginalizados em São Paulo. São Paulo: IBREX, 1979.
Folha UOL; Punição varia com cor, estudos e vínculo de trabalho
Disponível em:< http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2512199913.htm >, Acesso em:
21 de Jan. 2015, São Paulo.
CAMARA, Sônia; Sob a Guarda da República: A infância menorizada no Rio de Janeiro da
década de 1920. Rio de Janeiro: Editora Quartet, 2010.
FALCÃO, Daniela; Crime juvenil varia com a escolaridade. Folha UOL
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2512199912.htm >, Acesso
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14
FIGURA 1 (FERREIRA, 1979, p. 52)
15
FIGURA 2 (FERREIRA, 1979, p. 53)