sob_o_signo_do_odio

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1 Sob o signo do ódio Marco Antonio Coutinho Jorge A obra de Sigmund Freud adquiriu pleno relevo através do minucioso trabalho de exegese conceitual empreendido por Jacques Lacan durante mais de três décadas. O efeito deste trabalho, hoje, é que a aparente clareza do texto freudiano adquire sentido quando nos valemos das contribuições, por sua vez aparentemente herméticas, de Lacan. Tal indissociabilidade entre Freud e Lacan demonstra-se não apenas positivamente, ao elucidarmos os conceitos do primeiro à luz do segundo, como também, ainda que à revelia, nas críticas feitas ao ensino de Lacan. É o caso do livro de François Roustang, Lacan: do equívoco ao impasse, que repete a investida iniciada em Um destino tão funesto. Em ambos, sob a máscara de uma crítica à teoria lacaniana, tão propícia aos modismos culturais que não se cansam de incensar ídolos para em seguida demoli-los, oculta-se um repúdio à psicanálise aliado a um desconhecimento da obra de Freud. De fato, criticar Freud hoje não faria tanto alarde quanto criticar Lacan... Sugerindo de saída uma inusitada harmonia estilística entre o modo de vestir de Lacan, a forma de sua fala e seu discurso teórico, Roustang evidencia logo ao leitor sua precária perspectiva: demonstrar a impostura teórica de Lacan, que seria perpetuada por uma contínua mistificação, seja da conduta pessoal, seja nas formulações contraditórias. Para o autor, Lacan “escamoteia problemas”, “impede que se ponha à prova seu saber”, faz “afirmações vingativas”, produz alunos “que deviam indefinidamente permanecer nessa situação”, é a “vitrine prestigiosa de uma grande empresa” etc. Seu discurso é o do ressentido que se vale de uma pseudocrítica para veicular o ódio em relação àquele que cria, e o que pretende denunciar em Lacan só serve mesmo para denunciar a si próprio. Assim, o máximo que ele consegue é citar longos trechos de alguns textos de Lacan de forma inteiramente assistemática, seguindo-os de curtos comentários que aliam a estreiteza de reflexão à maledicência da impostação. O mínimo que se exigiria de um autor que pretendesse criticar Lacan seria alguma densidade na elaboração e uma visão de conjunto de sua obra, evidência que o próprio Roustang manifesta ingenuamente ao confessar que “não é o conteúdo do pensamento de Lacan que importa sublinhar aqui, é a maneira como ele opera, seu estilo, fundamentado essencialmente na construção de equívocos”. Na verdade, é o próprio Roustang que acumula equívocos, e isso em relação à teoria freudiana em seus aspectos mais primordiais. Assim, a concepção lacaniana do significante não é uma “petição de princípio”, mas o resultado de uma abordagem rigorosa de textos freudianos para os quais Lacan chamou, pela primeira vez, a atenção dos analistas, como A interpretação dos sonhos, Os chistes e sua 1 Artigo publicado no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, em

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psicanalise

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Page 1: Sob_o_signo_do_odio

1Sob o signo do ódio

Marco Antonio Coutinho Jorge

A obra de Sigmund Freud adquiriu pleno relevo através do minucioso trabalho de

exegese conceitual empreendido por Jacques Lacan durante mais de três décadas. O efeito

deste trabalho, hoje, é que a aparente clareza do texto freudiano adquire sentido quando nos

valemos das contribuições, por sua vez aparentemente herméticas, de Lacan. Tal

indissociabilidade entre Freud e Lacan demonstra-se não apenas positivamente, ao

elucidarmos os conceitos do primeiro à luz do segundo, como também, ainda que à revelia,

nas críticas feitas ao ensino de Lacan. É o caso do livro de François Roustang, Lacan: do

equívoco ao impasse, que repete a investida iniciada em Um destino tão funesto. Em ambos,

sob a máscara de uma crítica à teoria lacaniana, tão propícia aos modismos culturais que não

se cansam de incensar ídolos para em seguida demoli-los, oculta-se um repúdio à psicanálise

aliado a um desconhecimento da obra de Freud. De fato, criticar Freud hoje não faria tanto

alarde quanto criticar Lacan...

Sugerindo de saída uma inusitada harmonia estilística entre o modo de vestir de Lacan,

a forma de sua fala e seu discurso teórico, Roustang evidencia logo ao leitor sua precária

perspectiva: demonstrar a impostura teórica de Lacan, que seria perpetuada por uma contínua

mistificação, seja da conduta pessoal, seja nas formulações contraditórias. Para o autor, Lacan

“escamoteia problemas”, “impede que se ponha à prova seu saber”, faz “afirmações

vingativas”, produz alunos “que deviam indefinidamente permanecer nessa situação”, é a

“vitrine prestigiosa de uma grande empresa” etc. Seu discurso é o do ressentido que se vale

de uma pseudocrítica para veicular o ódio em relação àquele que cria, e o que pretende

denunciar em Lacan só serve mesmo para denunciar a si próprio. Assim, o máximo que ele

consegue é citar longos trechos de alguns textos de Lacan de forma inteiramente

assistemática, seguindo-os de curtos comentários que aliam a estreiteza de reflexão à

maledicência da impostação. O mínimo que se exigiria de um autor que pretendesse criticar

Lacan seria alguma densidade na elaboração e uma visão de conjunto de sua obra, evidência

que o próprio Roustang manifesta ingenuamente ao confessar que “não é o conteúdo do

pensamento de Lacan que importa sublinhar aqui, é a maneira como ele opera, seu estilo,

fundamentado essencialmente na construção de equívocos”. Na verdade, é o próprio Roustang

que acumula equívocos, e isso em relação à teoria freudiana em seus aspectos mais

primordiais.

Assim, a concepção lacaniana do significante não é uma “petição de princípio”, mas o

resultado de uma abordagem rigorosa de textos freudianos para os quais Lacan chamou, pela

primeira vez, a atenção dos analistas, como A interpretação dos sonhos, Os chistes e sua

1 Artigo publicado no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, em

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relação com o inconsciente, e A psicopatologia da vida cotidiana. Neles, Lacan destacou as leis

de funcionamento do significante expostas amplamente por Freud ao falar, por exemplo, no

último, do deslocamento feito numa palavra “sem levar em conta o significado ou os limites

acústicos das sílabas”. Mas o seminário lacaniano sobre As formações do inconsciente, é claro,

Roustang não cita.

Se a conceituação do inconsciente “estruturado como uma linguagem” caminha, em

Lacan, do simbólico para o real, é porque quando Freud compara o inconsciente àquela

superfície do jogo infantil do “bloco mágico”, ele o faz precisamente para designar como real o

núcleo do simbólico, vendo aí a estrutura do furo. Do mesmo modo, ao definir o objeto da

pulsão (que Lacan chama de objeto a) enquanto indiferente, Freud apenas demonstrou a

compatibilidade entre o inconsciente e o real, ressaltando a essencialidade da pulsão.

O projeto de fornecer cientificidade à psicanálise, criticado por Roustang como uma

ambição desmedida de Lacan, é, na verdade, o grande projeto de Freud, seja em Mais além do

princípio de prazer, através de uma contínua referência à Biologia; seja na posterior

observação de que via nas próprias forças de atração e repulsão da matéria as mesmas leis

que regem as pulsões de vida e de morte. Ainda aqui, a referência à Física, tão criticada por

Roustang na obra de Lacan, é freudiana.

Para criticar Lacan, Roustang dá todas as provas de que é necessário justamente

desconhecer na íntegra a especificdade e a radicalidade do pensamento freudiano, através do

que ele só reafirma a indissociabilidade entre Freud e Lacan. Resta a pergunta para a qual não

se tem até agora uma única linha de Roustang: o que é para ele a psicanálise? Se não é obra

de Freud, nem de Lacan, será a de um Roustang, ex-jesuíta, que escreve sob o signo do ódio?