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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
IGOR GUILHERME ROMKO
SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE O USO DA FICÇÃO NO ENSINO DE SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO
CURITIBA
2016
IGOR GUILHERME ROMKO
SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE O USO DA FICÇÃO NO ENSINO DE SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO
Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito à obtenção dos títulos de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, curso de Ciências Sociais, setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná. Prof. Dr. Rafael Ginane Bezerra
CURITIBA
2016
IGOR GUILHERME ROMKO
SOCIOLOGIA E LITERATURA: REFLEXÃO E PRÁTICA SOBRE O USO DA FICÇÃO NO ENSINO DE SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO
Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito à obtenção dos títulos de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, curso de Ciências Sociais, setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná.
Aprovado em: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Professor Dr. Rafael Ginane Bezerra (Orientador) Universidade Federal do Paraná – UFPR
_______________________________________
Professor Ms. Sandro Luís Fernandes Rede de Ensino da Prefeitura Municipal de Curitiba
_______________________________________
Professora Dra. Deisily de Quadros Centro Universitário Internacional - UNINTER
“Todos sabemos que el arte no es la verdad. Es una mentira que nos hace ver la verdad, al menos aquella que nos es dado comprender. El artista debe saber el modo de convencer a los demás de la verdad de sus mentiras.”
Pablo Picasso
RESUMO
O presente trabalho realiza uma análise de documentos oficiais responsáveis por reger o desenho institucional da disciplina de Sociologia no Ensino Básico após a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1996, concluindo que esses documentos se preocupam em pensar o currículo, mais do que a metodologia de ensino. Assim, a necessidade de adequação do ensino às demandas do mundo contemporâneo, postulada pela nova legislação, não encontra reflexos significativos na prática pedagógica. A partir desta constatação, propomos uma metodologia alternativa que consiste em trabalhar noções sociológicas a partir do uso de textos literários, inspirada nas ideias de Michèle Petit e Daniel Pennac. Concluímos o texto com um relato de experiência, baseado na aplicação da metodologia descrita, enfatizando as potencialidades desse recurso.
Palavras-chave: Ensino de Sociologia. Metodologia de ensino. Literatura.
ABSTRACT
This paper analyzes the official documents responsible for the institutional framework of Sociology in the Basic Education, following the publication of the Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (law responsible for the guidelines and basis of the national education) in 1996. We conclude these documents are concerned with curriculum, more than with teaching methodology. The need to adapt education to the contemporary world’s demands, established by the new legislation, does not find a significant parallel in the educational practice. Having this in mind, we propose an alternative methodology that consists in working sociological notions through literary texts, inspired by the ideas of Michèle Petit and Daniel Pennac. As a conclusion, we present an experience report, based on the application of the described methodology, looking to highlight this resource’s potential. Keywords: Sociology Teaching. Teaching Methodology. Literature.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 8 1.1 HISTÓRICO DA DISCIPLINA DE SOCIOLOGIA ................................................. 8
1.2 JUSTIFICATIVA ................................................................................................. 11
1.3 ESTRUTURA E OBJETIVOS DO TRABALHO .................................................. 12
2 ANÁLISE DE DOCUMENTOS OFICIAIS .......................................................... 14 2.1 PANO DE FUNDO PARA A ANÁLISE DOS DOCUMENTOS ........................... 14
2.2 ANÁLISE DOS DOCUMENTOS OFICIAIS ........................................................ 16
3 PROPOSTA METODOLÓGICA ......................................................................... 30 3.1 JUSTIFICATIVA E CONTEXTUALIZAÇÃO ....................................................... 30
3.2 BASE TEÓRICA ................................................................................................. 34
3.3 A LITERATURA ENCONTRA A SOCIOLOGIA .................................................. 40
4 RELATO DE EXPERIÊNCIA ............................................................................. 46 4.1 COLÉGIO ESTADUAL BARÃO DO RIO BRANCO ........................................... 46
4.2 COLÉGIO ESTADUAL ROMÁRIO MARTINS .................................................... 51
5 CONCLUSÃO .................................................................................................... 65 5.1 CONCLUSÃO SOBRE A PRÁTICA ................................................................... 65
5.2 CONCLUSÃO GERAL ........................................................................................ 69
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 71
ANEXO 1 – TODA DOR TEM FIM ..................................................................... 73
ANEXO 2 – A LOTERIA .................................................................................... 74
8
1 INTRODUÇÃO 1.1 HISTÓRICO DA DISCIPLINA DE SOCIOLOGIA
Se olhamos para o histórico da Sociologia no Brasil vemos que no nível do
ensino básico a disciplina sempre apareceu com esta mesma nomenclatura,
enquanto no ensino superior a disciplina aparece dentro da grande área, mais
abrangente, de Ciências Sociais, que se ramifica em diferentes subáreas.
Dependendo do país e da tradição intelectual que levamos em consideração o leque
de disciplinas que são abarcadas pode variar. Além das tradicionais áreas de
Sociologia, Ciência Política e Antropologia podemos ter ainda, dentro do campo
geral, a presença da Economia, da Psicologia Social, da Estatística Social, da
Geografia Social, entre outras.
Como nos mostra a professora Ileizi Luciana Fiorelli Silva em seu histórico
das Ciências Sociais no Brasil1, fomos influenciados pela tradição anglo-americana.
Esse histórico inicia-se no século XIX, ainda sem a institucionalização da disciplina
no Brasil, mas já sendo realizada, em 1891, a primeira proposta formal de inserção
da mesma no nível secundário. O que fica claro, a partir da análise desse histórico, é
que a divisão que temos entre o nível da educação secundária e o da educação
superior ultrapassou uma diferença entre níveis de ensino e pesquisa para uma
distinção qualitativa e distintiva, resultando em dois eixos desarticulados de uma
mesma disciplina. Temos no nível superior (Ciências Sociais) a preparação de
profissionais que irão ocupar cargos públicos e privados, além da formação de
pesquisadores para a área, deixando a formação de professores para a educação
básica em segundo plano.2
Considerando a história mais recente, temos uma expansão da presença da
disciplina nos currículos escolares durante a década de 80, pós ditadura militar. A
tendência começa em alguns estados isoladamente, sendo o estado de São Paulo o
primeiro a reinserir a disciplina nas escolas desde a exclusão da disciplina do nível 1 SILVA, I. L. F. O Ensino das Ciências Sociais/Sociologia no Brasil: histórico e perspectivas. In: MORAES, A. C. (Coord.). Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, Vol. 15. Brasília: Ministério 2 MORAES, A. C. – Ensino de Sociologia: Periodização e Campanha pela Obrigatoriedade. In: Cadernos Cedes. Campinas, vol. 31, n. 85, set-dez, 2011. p. 359-382.
9
secundário em 1942. Em 1989 temos a obrigatoriedade da disciplina nas escolas
nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Só em 1996, com a publicação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica (LDB) foi que essa expansão passou
para o nível nacional. Gradativamente a disciplina passou a ser cobrada em
vestibulares de determinadas universidades estaduais e federais, sendo incluída em
2007 no vestibular da Universidade Federal do Paraná. Consequentemente vemos
as escolas passando a incluir cada vez mais a Sociologia em seus currículos.
Entretanto, com a LDB, não temos ainda a obrigatoriedade da presença da
disciplina no ensino médio. A lei afirma apenas que os alunos, concluindo essa
etapa, deverão apresentar um “domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia
necessários ao exercício da cidadania”3, porém esses conhecimentos ainda eram
passíveis de serem trabalhados de forma transversal, diluídos entre as outras
disciplinas que já possuíam seu espaço no currículo. Essa mesma tendência ainda é
verdade com as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) de
1998, com a proposta da divisão do ensino não por disciplinas, mas por áreas do
conhecimento, e posteriormente com os Parâmetros Curriculares Nacionais do
Ensino Médio (PCNEM) de 1999, que também incluem a Sociologia e a Filosofia na
área das “Ciências Humanas e suas Tecnologias”. Fica claro, portanto, que a
Sociologia ainda é tratada de forma interdisciplinar e não assume o mesmo status de
outras disciplinas já consagradas.
Existe, entretanto, um movimento que fez um extenso trabalho defendendo a
sociologia enquanto disciplina curricular, argumentando que sua presença no ensino
médio não deveria ficar limitada à abordagem transversal. A crítica ao tratamento
que vinha sendo dado à questão ganha materialidade e força em 2004, com o
documento Orientações Curriculares do Ensino Médio, organizado por Amaury
Moraes, Elizabeth Guimarães e Nelson Tomazi, em que defendem que, para além
do clichê, “formar o cidadão crítico”, a importância da sociologia vai além, “quer
aproximando esse jovem de uma linguagem especial que a Sociologia oferece, quer
3 BRASIL. Ministério da Educação. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: MEC, 1996. Seção 4, p. 13.
10
sistematizando os debates em torno de temas de importância dados pela tradição ou
pela contemporaneidade.”4
A abordagem transversal segue sendo aceita até 2006, quando o Conselho
Nacional da Educação aprova o Parecer 38/2006 que estabelece a obrigatoriedade
da disciplina no ensino básico a nível nacional. O parecer argumenta que havia até
então um acesso desigual à sociologia (e à filosofia) no ensino médio nacional. Os
documentos acima mencionados, que serviam de base jurídica para a organização
curricular, deixavam a inclusão da disciplina como facultativa, o que resultava numa
heterogeneidade do tratamento da questão nos diferentes estados da nação. É
verdade que em muitos estados do país, a tendência à introdução da sociologia é
anterior ao parecer, mas a obrigatoriedade vem para torná-la norma, garantindo
assim o acesso aos conhecimentos de sociologia e filosofia para todos os jovens da
educação básica. Posteriormente, estabeleceu-se que o prazo limite para a
adequação dos currículos seria o ano de 2011.
Fica reconhecido, agora na legislação, que as Diretrizes Curriculares
Nacionais do Ensino Médio de 1998 não estavam materializando as expectativas
postas pela LDB, ou seja, que o aluno terminasse o ensino médio com um domínio
da área de Sociologia. A partir desse parecer, a concepção que ganha força é a de
que isso só seria possível quando as ciências de referência fossem valorizadas, e
que, portanto, as Ciências Sociais deveriam ganhar seu espaço no ensino básico,
através da disciplina de Sociologia.
É natural que, passada a fase do debate político, e consequentes tomadas
de decisões burocráticas que regem, no campo legislativo, a estrutura do ensino,
chegamos à fase das considerações sobre o cotidiano escolar da disciplina. Como
implementar a sociologia de fato no Ensino Médio? Novamente temos a demanda
por documentos oficiais, dessa vez esperando algum tipo de instruções de como
proceder. Qual será o conteúdo abordado pela sociologia e a partir de qual material?
Cada um dos documentos oficiais tenta responder essa pergunta de alguma forma,
com mais ou menos ênfase.
4 BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Volume 3 – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2006.
11
1.2 JUSTIFICATIVA
A análise que faremos aqui irá se concentrar em alguns dos documentos
responsáveis pelo desenho da disciplina de Sociologia no Ensino Médio, tentando
avaliar qual a perspectiva de cada um deles, além das mudanças e especificidades
notáveis. Serão abordados aqui os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), as
Orientações Curriculares Complementares (PCN+), e as Orientações Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (OCN).
Procuramos argumentar, como ficará claro no capítulo seguinte, que os
documentos aqui apresentados possuem uma tendência a discutir extensivamente a
questão curricular, em detrimento de questões pedagógicas. Argumentaremos
também que a Sociologia, ao abordar temas delicados, necessita de um cuidado
metodológico bastante específico para que seja trabalhada em sala de aula. Dada
essa fragilidade no campo da metodologia, aliada a essa característica intrínseca
aos temas da Sociologia, o presente trabalho preocupa-se com duas questões
principais: primeiro, a proposição e justificativa teórica de uma metodologia
alternativa para ser usada em sala de aula pelos professores de Sociologia no
Ensino Médio, visando preencher parcialmente a lacuna aqui destacada; segundo,
um relato de experiência baseado na aplicação dessa metodologia.
Tal metodologia, inspirada nos trabalhos de Daniel Pennac5 e Michele Petit6,
consiste em trabalhar os conteúdos curriculares da Sociologia a partir do uso de
textos literários selecionados, numa dinâmica em que os alunos são “convidados” à
leitura coletiva. A leitura é feita em voz alta, e todos acompanham o enredo juntos,
enquanto diferentes colegas dão sequência à narrativa. Terminada, vamos então a
um segundo momento, no qual, a partir da história lida, passamos a uma conversa
na qual os alunos podem relatar seus pensamentos sobre o conto, resultando em
manifestações subjetivas que dialogam com a ficção, com a sociologia, e com a
realidade individual de cada estudante.
5 PENNAC, D. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. 6 PETIT, M. A arte de ler. São Paulo: Ed. 34, 2009.
12
O relato de experiência aqui apresentado deriva de intervenções realizadas
em duas escolas diferentes, durante o primeiro semestre de 2016: a primeira foi
realizada no Colégio Estadual Barão do Rio Branco, em Curitiba, em três turmas do
Ensino Médio, e foi guiada pelo professor orientador deste trabalho. Com ela,
pudemos nos preparar e chegar a conclusões que foram colocadas em prática num
segundo momento, quando fomos ao Colégio Estadual Romário Martins, em
Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba, e aplicamos novamente a atividade em
duas turmas de terceiro ano, desta vez sendo conduzidas pelo autor deste trabalho.
Essas duas atividades resultaram no relato aqui apresentado, e fundamentam as
considerações finais acerca das possibilidades e limites do recurso metodológico
proposto.
No colégio Barão do Rio Branco, o conto utilizado chama-se Toda Dor Tem
Fim, de Maria Valéria Rezende7, que foi trabalhado paralelamente às ideias
sociológicas de “afastamento de pré-noções” e “olhar objetivo”, em oposição ao
“senso comum”. Na escola Romário Martins trabalhamos com o conto A Loteria8, de
Shirley Jackson, paralelamente a noções sociológicas de “coesão social” e
“mecanismos de controle”. Como ficará claro no relato, apesar de termos escolhido
antecipadamente alguns conceitos sociológicos que acreditávamos poderem ser
trabalhados a partir da atividade, cada prática, em função de seu caráter
metodológico, resultou numa manifestação rica e plural por parte dos alunos, que
acabou indo além, possibilitando o trabalho com um grande apanhado de temas.
1.3 ESTRUTURA E OBJETIVOS DO TRABALHO
Dado o conteúdo apresentado até aqui, sumarizamos agora o desenho
formal do trabalho. O tema central aqui trabalhado é metodologia de ensino em
Ciências Sociais, mais especificamente no nível da Educação Básica, na disciplina
de Sociologia. O problema aqui levantado é que os documentos oficiais que servem
de guia aos professores não privilegiam a prática pedagógica de sala de aula. Dito
isso, propomos uma metodologia alternativa, explicada e justificada no nível da 7 REZENDE, M. V. Toda dor tem fim. In: Modo de apanhar pássaros à mão. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2006 8JACKSON, S. The Lottery. The New Yorker, Nova Iorque, 26 de Junho de 1948, p. 25. Tradução própria.
13
teoria, e acompanhada de um relato de experiência. Como pano de fundo temos as
noções de Basil Bernstein9 (apud SILVA, 2007), que nos auxiliam na análise dos
documentos, e noções de Michele Petit10 e Daniel Penac11, que nos auxiliam na
concepção da metodologia esboçada e aplicação. Finalmente, concluiremos o
trabalho com as considerações finais acerca de nossa experiência, refletindo sobre
as possibilidades e limitações dessa metodologia. Quanto aos objetivos, o presente
trabalho procura: 1. Demonstrar, a partir da análise dos documentos, a insuficiência
das preposições oficiais no que diz respeito à pedagogia; 2. Propor uma metodologia
que pode servir de ferramenta pedagógica aos professores de Sociologia; e 3.
Demonstrar, a partir de um relato, a especificidade da metodologia proposta.
Finalmente, O trabalho divide-se nos seguintes capítulos: Capítulo 1 -
Introdução; Capítulo 2 - Análise dos Documentos Oficiais; Capítulo 3 – Proposta
Metodológica; Capítulo 4 – Relato de Experiência; e Capítulo 5 – Conclusão. No
segundo capítulo apresentaremos as ferramentas de análise extraídas de Bernstein
e realizaremos a análise de uma série de documentos que regem a organização da
educação básica. No terceiro abordaremos as considerações pedagógicas de Petit e
Pennac e apresentaremos nossa proposta metodológica, inspirada nos trabalhos
desses autores. No quarto capítulo relataremos nossa experiência em sala de aula
utilizando a metodologia exposta no capítulo anterior. E, finalmente, no último
capítulo traremos as conclusões acerca da aplicação, seguindo com uma conclusão
geral sobre o trabalho.
Fazendo às vezes de pós-escrito dessa introdução, para que o leitor possa
tirar suas próprias conclusões acerca das possibilidades levantas por nossa
experiência, sugerimos que a leitura dos dois contos anexados seja realizada, uma
primeira vez, antes da leitura de nosso trabalho e de suas conclusões.
Posteriormente, concluída a leitura do nosso relato de sala de aula, sugerimos uma
segunda leitura dos contos, para que assim, o próprio leitor seja capaz de avaliar em
que medida nossa atividade é capaz de alterar a percepção inicial dos contos e de
sugerir possíveis associações com noções sociológicas. 9 BERNSTEIN, B. apud SILVA, T. T. Códigos e reprodução cultural: Basil Bernstein. In: Documentos de Identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. P. 71-81. 10 PETIT, M, op. cit. 11 PENNAC, D., op. cit.
14
2 ANÁLISE DOS DOCUMENTOS OFICIAIS 2.1 PANO DE FUNDO PARA ANÁLISE DOS DOCUMENTOS
Para tornar essa análise possível, faremos uso de um leque de proposições
elaboradas por Basil Bernstein, conforme compiladas por Tomás Tadeu da Silva.12
Essa base nos servirá para direcionar o olhar e criar pontos de articulação entre os
diferentes documentos. A tríade pedagogia – currículo – avaliação nos servirá de
bússola, possibilitando extrair leituras de cada documento, e resultando numa
análise comparativa.
Segundo Basil Bernstein13 (apud SILVA, 1999) a educação formal se
concretiza através de três eixos de funcionamento. Temos em primeiro lugar o
currículo, que define qual o conteúdo que deve ser trabalhado em cada uma das
disciplinas; em segundo lugar a pedagogia (ou metodologia) que diz respeito à forma
adequada de transmitir o conhecimento; e por último a avaliação, que define as
formas de expressão do conhecimento por parte dos alunos. As questões que regem
esses três eixos não podem ser tratadas isoladamente, pois as escolhas relativas a
cada um deles influenciam e são influenciadas pelas práticas relativas aos outros
dois eixos. Exemplificando, se definimos que o objetivo final do aluno é ser aprovado
no vestibular, iremos alterar o conteúdo passado em função dessa avaliação, e
otimizaremos a metodologia para que o desempenho do aluno nesta prova
específica seja o melhor possível.
Um segundo grupo de conceitos apresentados por Bernstein diz respeito à
organização estrutural do currículo no que tange o limite mais ou menos claro entre
as disciplinas. De um lado, temos currículos do tipo coleção, de outro o currículo
integrado. No primeiro caso, temos nitidamente traçadas as áreas do conhecimento,
e a permeabilidade e o diálogo entre cada uma delas é baixo. No segundo caso
essas barreiras não estão tão claramente definidas. Temos princípios mais
abrangentes que guiam todas as disciplinas, existindo assim um “norte” comum
entre elas e uma comunicação entre as diferentes áreas. O autor usa aqui a ideia de
12 BERNSTEIN, B, apud SILVA, T. T., op. cit. 13 Id.
15
classificação. Os currículos que obedecem à lógica da coleção são mais
classificados, e os que seguem a lógica da integração são menos classificados.
Ainda seguindo as conceituações de Bernstein vemos um terceiro grupo
conceitual que irá nos auxiliar na tarefa de análise dos documentos oficiais. Aqui
temos as ideias de poder e de controle. Segundo sua visão, o poder é responsável
pela organização curricular: determinar os conteúdos que serão abordados e se
teremos uma organização mais ou menos classificada do currículo. Já o controle
determina a organização prática do dia a dia da sala de aula, estando assim ligado à
transmissão do conhecimento. Ele é responsável por determinar, por exemplo, a
disposição dos alunos na sala, o ritmo com que os conteúdos são trabalhados, e a
relação entre professor e aluno em sala de aula. Esse viés analítico se aproxima de
uma leitura foucaultiana, em que temos o exercício de poder ramificado e espalhado
pelo tecido social, e não concentrado nas mãos de uma instituição centralizadora.
Seja o currículo mais, seja menos classificado, temos sempre escolhas que são
tomadas por diferentes agentes que entram em conflito para a tomada de decisões.
Da mesma forma, não é porque os alunos possuem voz na hora de definir a
dinâmica de sala de aula que o controle está ausente. O conflito entre diferentes
agentes ainda está presente, “simplesmente estão em ação outros princípios de
controle, mais sutis, mas nem por isso menos eficazes.” (SILVA, 2007)14
Essas proposições de Bernstein, tal como resenhadas por Tomás Tadeu da
Silva, não tem a pretensão, neste trabalho, de fornecer os elementos que
caracterizam um referencial teórico. Mantida como pano de fundo, ele oferece uma
chave de leitura para compreender porque as discussões sobre currículo
estabelecidas até aqui, tendo como base os textos oficiais, têm um caráter limitado.
Como veremos, os documentos levantados colocam-se mais voltados para o
conteúdo, o que ensinar, do que para a pedagogia e para a avaliação.
Assim, o vocabulário aqui utilizado não busca construir categorias analíticas
com poder explicativo, mas sim trazer palavras chaves que nos auxiliarão na
aproximação de textos, a princípio, heterogêneos. A base de Bernstein serve aqui à
14 BERNSTEIN, B, apud SILVA, T. T., op. cit.
16
tarefa de colocar os diferentes documentos em diálogo, mostrando que posição o
conteúdo de cada um deles assume dentro dessa ferramenta de leitura unificadora.
Ao analisar os documentos aqui apresentados teremos portanto em mente:
1. Os três pilares – currículo, pedagogia e avaliação – que juntos definem o processo
e os resultados obtidos pela educação de nossos alunos; 2. O grau de classificação
do currículo; e 3. Dinâmicas relativas ao poder e ao controle. A análise aqui parte
das proposições oficiais, da forma como a prática escolar é proposta pelos
responsáveis em documentos válidos a nível nacional. Estaremos olhando para as
bases do ensino em seu desenho formal, aquilo que se coloca como o ideal de
educação e como esse desenho foi-se construindo ao longo dos anos, a cada
publicação. Pensar a educação significa mais do que pensar sobre qual o conteúdo
julgamos ser válido ou não válido em nossas disciplinas; significa também pensar
como esse conteúdo será transmitido, e o que esperamos de resposta por parte dos
alunos; significa entender as dinâmicas que aproximam e afastam as diferentes
disciplinas; e também observar a posição que se espera que alunos e professores
ocupem nesse quadro geral.
2.2 ANÁLISE DOS DOCUMENTOS OFICIAIS
Dado os conceitos sugeridos por Bernstein, que aqui servem de pano de
fundo para o desenvolvimento do capítulo, é conveniente iniciar a análise pela
categoria de poder. Se poder implica para Bernstein na capacidade de influência
sobre o conteúdo/desenho do currículo, no caso brasileiro, mais especificamente no
caso do ensino de sociologia, é conveniente destacar que diferentes instâncias de
poder desempenham um papel concorrente.
Num primeiro momento destaca-se o MEC, que de um lado edita os textos
balizadores dos currículos, tal como os parâmetros, por exemplo, e de outro elabora
e executa os editais do plano nacional do livro didático (PNLD). Escapa aos limites
desse trabalho estabelecer em que medida os textos balizadores e os livros
didáticos escolhidos através do PNLD apresentam em alguma medida conformidade
17
paradigmática. A esse respeito Meucci e Bezerra15 (2014) argumentam que essa
conformidade é pequena. Ou seja, no caso do ensino de Sociologia o próprio MEC,
em seu interior, abriga instâncias com disposições curriculares discrepantes. Em
seguida é conveniente destacar o papel do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, que edita a matriz de habilidades e
competências do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), convertendo-a
anualmente em exame aplicado ao universo de alunos que encerram essa etapa de
ensino. Nessa instância, dadas as características da referida matriz, observa-se um
desenho curricular de tipo integrado, dado que a classificação ou fronteira entre as
disciplinas é muito pequena. Trata-se de um documento organizado em função de
áreas de conhecimento e no qual não se encontra a formalização de conteúdos (ou
mais adequadamente, habilidades e competências) identificados com as disciplinas
correspondentes. E finalmente, sem a pretensão de ser exaustivo, é conveniente
destacar o papel desempenhado pelas licenciaturas na formação de novos
professores. Sabe-se que no caso brasileiro os novos professores são formados
segundo uma lógica predominantemente disciplinar, ou seja, que se encontra em
franca oposição ao que é previsto, por exemplo, na matriz do ENEM tal como
observado anteriormente. Apesar dessa disposição de concorrência entre as
diferentes instâncias citadas observa-se que dificilmente a discussão dos conteúdos
e desenhos curriculares é acompanhada pela discussão sobre os procedimentos
metodológicos mais adequados ao trabalho com o conteúdo previsto.
Feito esse comentário inicial acerca das instituições responsáveis pela
educação básica no nível federal, passamos aos documentos que serão analisados
no presente trabalho. O desenho formal da disciplina de sociologia no ensino médio
definiu-se a partir de uma série de documentos oficiais publicados ao longo de um
período de aproximadamente 20 anos, desde meados da década de 90. Se
considerarmos essas publicações, observamos que existem abordagens
heterogêneas e diferentes pontos de vista normativos acerca da organização e
condução da disciplina de Sociologia. A análise aqui irá se concentrar em três
documentos: os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCN-EM);
as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares
15 MEUCCI, S.; BEZERRA, R. G. Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção de currículo. Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 1, p. 87-101, 2014.
18
Nacionais (PCN+); e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCN-EM).
Além disso, aparecerão comentários acerca das Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio (DCN-EM), e utilizaremos a Base Nacional Curricular Comum
(BNCC) para orientar nossa escolha dos temas trabalhados com nossos contos.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio16 (DCNEM),
publicadas em 1998, apresentam alguns princípios que servem de guia à
estruturação desse nível de ensino. Temos aqui um parecer do Conselho Nacional
de Educação que está preocupado em orientar, através de princípios, o que se
espera do Ensino Médio. O documento tem uma visão normativa de um currículo
integrado, interdisciplinar, e a partir desse tratamento, as propostas pedagógicas da
escola devem garantir o domínio de “conhecimentos de filosofia e sociologia
necessários ao exercício da cidadania.”17
Temos já nesse documento a ideia de “competências e habilidades”, que
são colocadas como prioridade, mantendo o “conteúdo” ou a “informação” em
segundo plano. O currículo, espera-se, deverá ser organizado em grandes áreas do
conhecimento, como definido no artigo 10 do documento, sendo a Sociologia
encaixada dentro da área de Ciências Humanas e suas Tecnologias. Enquanto
vemos que a Arte e a Educação Física recebem o tratamento de disciplinas
“obrigatórias”, o mesmo não é verdade para a Sociologia.
Vemos que as DCNEM não tem a pretensão de abordar questões práticas,
mas sim de estabelecer princípios guia, e não cabe aqui uma análise exaustiva
deste parecer. Melhor para nós, conforme os objetivos desse trabalho, é seguir para
a análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM)18
de 1999, que, baseados nos princípios estabelecidos pelas DCN, visa agora abordar
as questões específicas de cada disciplina, interessando-nos especificamente a
parte IV deste documento, que aborda a área das Ciências Humanas e suas
16 BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CEB nº 3, de 26 de Junho de 1998 - Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Conselho Nacional de Educação. Brasília, DF, 26 jun. 1998. 17 Ibid., p. 7. 18 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Parte IV – Ciências Humanas e suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMT, 1999.
19
Tecnologias, trazendo, dentro dessa área, os conhecimentos de Sociologia que
deverão ser trabalhados no Ensino Médio.
Dentro dos PCNEM vemos dois eixos fundamentais que orientam os
“Conhecimentos de Sociologia” no Ensino Médio: 1. A relação entre indivíduo e
sociedade, e 2. A dinâmica social, ou seja, a manutenção ou a transformação da
ordem social vigente. A disciplina é apresentada aqui com pretensões de
instrumentalizar o aluno, que conseguiria, através dela, ser capaz de “decodificar a
complexidade da realidade social”19. Espera-se que o aluno perceba que ele é capaz
de assumir uma posição ativa, capaz de transformar as dinâmicas sociais nas quais
ele está inserido. Novamente, as competências e habilidades aqui são trabalhadas
de uma forma geral e abrangente, pois alcançá-las depende de um trabalho
interdisciplinar, e não de disciplinas isoladas.
O documento traz principalmente orientações relativas ao conteúdo que
deve ser trabalhado em sala de aula, não mencionando em nenhum momento a
forma como trabalhar esse conteúdo, ou de que maneira esse conteúdo deve ser
avaliado. O norte colocado pelo documento aparece quando ele nos apresenta as
competências e habilidades a serem desenvolvidas pela disciplina. Temos uma
preocupação exclusivamente orientada para o “o que ensinar?” e com quais
objetivos, e em nenhum momento a discussão de “como ensinar?” ou “como
avaliar?”, demonstrando que, se considerarmos os três eixos de Bernstein, valoriza-
se o currículo, em detrimento da pedagogia e da avaliação.
Com relação à classificação, como mencionado, o documento é dividido em
grandes áreas, estando a Sociologia incluída na área das “Ciências Humanas e suas
Tecnologias”. Essa opção pela divisão baseada em grandes áreas do conhecimento
já datava do ano anterior, 1998, quando proposta pela primeira vez nas DCNEM. Em
diversos momentos, os PCNEM trazem referências a áreas que não aparecem
enquanto disciplinas no currículo - como a antropologia, a política, o direito, a
economia e a psicologia. Apesar desse fato, considera-se que elas são
indispensáveis para a formação do cidadão, objetivo primordial do ensino. Espera-se
19 Ibid., p. 37.
20
portanto que tais disciplinas apareçam diluídas no corpo daquelas que já compõe o
currículo formal da educação, ficando clara, assim, a orientação interdisciplinar
proposta.
O documento possui uma orientação curricular, no sentido de apresentar um
grande leque de conteúdos que fazem parte da disciplina de Sociologia. Temos a
presença de Marx, Durkheim e Weber, além das categorias “Família”, “Estado”,
“Trabalho” e “Cultura”. A preocupação aqui é de estabelecer temas que sirvam de
uma base comum ao currículo de Sociologia no Ensino Médio, trabalhando uma
diversidade de temas de forma breve, porém não superficial, utilizando-se de um
vocabulário oriundo das áreas de Sociologia, Antropologia e Política.
Após essa apresentação, os PCN retornam novamente à abordagem
interdisciplinar, trazendo as “Competências e Habilidades” que se espera
desenvolver nos estudantes com os temas da disciplina de Sociologia. Apesar do
vocabulário sociológico, este não é fim em si mesmo, pois se deve ter em mente a
formação transdisciplinar do aluno, e como a Sociologia está contribuindo para esta
formação.
As competências desenvolvidas a partir do ensino da Sociologia são
divididas em 3 subáreas. As relativas à Representação e Comunicação incluem a
habilidade de analisar os diferentes discursos sobre a realidade (científico e senso
comum), além da capacidade de produzir novos discursos. As relativas à
Investigação e Compreensão trazem a necessidade de instrumentalização para
compreensão da vida cotidiana, o desenvolvimento de uma visão crítica da indústria
cultural e a habilidade de compreensão e valorização de diferentes manifestações
culturais. Finalmente, nas habilidades relativas à Contextualização Sociocultural
temos a capacidade de compreensão do mundo do trabalho e de construção
identitária, visando ao exercício da cidadania.
Concluímos que num primeiro momento, considerando a Lei de Diretrizes e
Bases (LDB) e as DCNEM, tínhamos uma preocupação voltada para estabelecer as
bases legais e os princípios responsáveis por reger a Educação Básica, e dentro
dela o Ensino Médio, fase final da educação fundamental para o exercício da
21
cidadania. Quando passamos aos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1999,
vemos que a preocupação nesse momento vai além de legislar, e passa a visar
também ao estabelecimento dos temas que deverão guiar a organização individual
das diferentes disciplinas, apesar de, como objetivo central da educação, ainda
termos as Habilidades e Competências gerais, que são colocadas como necessárias
ao exercício da cidadania.
Tendo isso em mente, é possível concluir que o documento não traz
recomendações pedagógicas práticas, ou, da mesma forma, recomendações no que
tange a prática avaliativa. Entretanto, vemos que, no que tange a categoria poder, o
documento tem como princípio oferecer “maior liberdade aos professores e alunos
para a seleção de conteúdos mais diretamente relacionados aos assuntos ou
problemas que dizem respeito à vida da comunidade”.20 Podemos atribuir essa
maior liberdade ao fato de que a legislação agora está mais preocupada com a
instrumentalização do aluno, ou seja, com suas “Competências e Habilidades”, o que
justifica, em princípio, um currículo menos fixo.
Se seguirmos para a análise dos PCN+, as Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais21, publicadas em 2008,
temos comentários dedicados tanto à articulação entre as três grandes áreas quanto
à articulação entre as disciplinas dentro de cada uma das grandes áreas. Essas
articulações trazem objetivos comuns às diferentes disciplinas, pensando, como
anteriormente, no desenvolvimento das Competências e Habilidades gerais dos
alunos. Entre as diferentes disciplinas de uma área deve-se encontrar os pontos de
contato e de afastamento, estabelecer “as pontes e o trânsito entre as disciplinas” e
ao mesmo tempo “analisar e desfazer falsas semelhanças”.22
Vemos que esse documento não dá uma ênfase somente aos benefícios do
trabalho interdisciplinar ou à defesa dos limites e atribuições de cada disciplina; mas
20 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. – Parte 1 – Bases Legais. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 1999. p. 22. 21BRASIL. Ministério da Educação. PCN+ Ensino Médio: Orientações Educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002. 22 Ibid., p. 18.
22
busca uma abordagem em que cada uma das matérias traz contribuições para os
objetivos gerais da grande área de Ciências Humanas. O próprio documento
reconhece que “há nisso uma contradição aparente, que é preciso discutir, pois
específico e geral são adjetivos que se contrapõem”23, mas esse aparente paradoxo
é resolvido quando consideramos que o objetivo do ensino é desenvolver
habilidades e competências, e não a absorção do conteúdo por si só, que, sob esse
ponto de vista, é o meio para o fim maior: a capacitação do aluno. As competências
que estão em jogo aqui se dividem em três grupos, e seguem sendo aquela dos
PCN: Comunicar e Representar; Investigar e Compreender; e a habilidade de
Contextualização Sociocultural. A contribuição da sociologia parte de três conceitos-
base que orientam o que será trabalhado pela disciplina em sala de aula: os
conceitos de Cidadania, Trabalho e Cultura.24
O ensino deve assim partir dos conceitos orientadores da disciplina
específica, e ter como norte as competências gerais. O documento nos apresenta
explicitamente o que será trabalhado para que consigamos chegar a esse objetivo.
Para que o aluno seja capaz de comunicar e representar iremos mostrar como
existem diferentes formas de interpretar o mundo, inclusive a própria sociologia, que
coloca-se como a forma científica, em oposição ao senso comum.25 Para que o
aluno consiga investigar e compreender, cabe a nós fornecer ferramentas
conceituais, capazes de facilitar a análise dos fenômenos sociais, além de debater
os temas da comunicação de massa e de manifestações culturais de minorias.26 Por
fim, o desenvolvimento da habilidade de contextualização será trabalhada pela
análise do mundo trabalho e a identificação de sua própria posição social, que
servirá de auxílio ao exercício da cidadania.27
Além da organização curricular baseada nos princípios acima mencionados,
temos ainda os eixos temáticos apresentados para guiar o trabalho em sala de aula.
Nesse nível organizacional temos o contato mais específico com a disciplina de
sociologia em seu aspecto prático. Saímos aqui dos objetivos mais gerais e
23 Ibid., p. 15. 24 Ibid., p. 88. 25 Ibid., p. 89. 26 Ibid., p. 90. 27 Ibid., p. 91.
23
entramos para o campo do conteúdo prático com o qual devemos trabalhar. Esses
eixos são os seguintes: 1. Indivíduo e Sociedade, 2. Cultura e Sociedade, 3.
Trabalho e Sociedade, e finalmente, 4. Política e Sociedade. Cada eixo divide-se em
temas em subtemas, do mais geral ao mais específico.
Brevemente, vemos que o primeiro eixo busca fazer com que o aluno se veja
como parte do todo social, que ele diferencie o senso comum do conhecimento
sociológico, que ele compreenda o papel das regras e da manutenção da ordem
social, e como ocorrem as mudanças nas estruturas sociais. O segundo eixo objetiva
desenvolver um olhar crítico frente à indústria cultural, entender qual a relação entre
cultura e ambiente escolar, e perceber a relação entre o sistema econômico vigente
e as práticas de consumo cultural. O terceiro eixo trabalha no sentido de mostrar o
papel central ocupado pelo trabalho enquanto organizador social, os possíveis
resultados de desigualdade social advindos dessa organização, e quais as
possibilidades no que tange a mobilidade social e econômica dos indivíduos. Por
último, o quarto eixo aparece para ampliar as concepções do aluno de o que é
política, trabalhando as diferentes formas de Estado, o papel dos movimentos
sociais no jogo político, e por último a legitimidade do poder no âmbito democrático
Através dessa análise do PCN+, percebemos que o documento preocupa-se
com a posição da sociologia em relação às outras disciplinas, e também com a
forma como deve ocorrer o diálogo entre as áreas. Também é possível notar que o
documento, assim como os PCNEM, está voltado para a organização curricular do
ponto de vista do conteúdo a ser trabalhado e com quais objetivos. Considerando o
vocabulário de Bernstein, podemos dizer, novamente, que se preza por um currículo
menos classificado, ou seja, com limites mais flexíveis entre as disciplinas.
Novamente, tendo em mente o aspecto pedagógico, não temos uma ênfase
no aspecto prático do trabalho em sala de aula. Vemos que “professor e aluno
devem executar suas tarefas de maneira inovadora, rompendo a tradição da entrega
de trabalhos escritos”28, mas não somos guiados em como realizar essa quebra. As
orientações são guiadas mais por princípios, e menos por proposições práticas
28 Ibid., p. 91.
24
palpáveis. De fato, os pontos apresentados são válidos e devem ser levados em
consideração, mas a reflexão sobre a prática do ensino no dia a dia ainda deixa
lacunas para o professor preocupado com aspectos metodológicos.
Diz-se que o trabalho deve estar relacionado com o cotidiano do aluno e que
ele deve ter uma voz ativa no processo de aprendizagem, o que, novamente em
concordância com os PCN, traz elementos para a análise relativa à categoria poder.
Nesse sentido, a reflexão retoma a abordagem de que, numa visão tradicional de
escola, professor e aluno têm pouco espaço de tomada de decisão, o que resulta
num distanciamento entre escola e cotidiano do estudante. Assim, temos a
recomendação de que o projeto pedagógico da escola seja aberto à comunidade,
incluindo as necessidades reais e subjetivas dos alunos.
Com a mudança de governo em 2003, há uma reestruturação da esquipe
responsável pelo Ministério da Educação, e em 2004 uma equipe é formada para
analisar e reformular os PCNEM. Nesse contexto passam a ser elaboradas as das
Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM)29, que tem na
figura de Amaury Moraes a representação para a área de Sociologia. No campo
legislativo, um parecer é encaminhado ao Conselho Nacional de Educação em 2005,
e em 2006 temos a aprovação da obrigatoriedade da disciplina de Sociologia no
Ensino Médio.
A tendência para a valorização das especificidades da sociologia adquire
contornos mais concretos com a publicação das OCNEM em 2006. Em comparação
com os PCNEM, vemos que entre uma Sociologia pensada a partir da
interdisciplinaridade e uma sociologia pensada pela ótica da compartimentalização
das disciplinas, pende-se agora para a segunda opção, com a valorização do que
ela tem de específico em contraste com o restante do currículo. No lugar da
comunicação entre as disciplinas, a partir da abordagem de grandes temas
genéricos que seriam trabalhados por todas elas, vemos agora uma abordagem
sobre temas mais específicos e particulares da sociologia. E como consequência
29 BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Volume 3 – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2006.
25
lógica, quanto mais específico e aprofundado o tema dentro de uma dada área de
conhecimento, mais complicado torna-se a comunicação com outras áreas.
Nas Bases Legais dos PCNEM observamos a proposta de revigorar “a
integração e articulação dos conhecimentos, num processo permanente de
interdisciplinaridade e transdiciplinaridade”.30 Já nas OCNEM, pendendo para o
outro lado, vemos que “muitas vezes – e particularmente nas DCNEM – se pensa
que os ‘conhecimentos’ da Sociologia possam ser tratados pelas outras disciplinas
de modo ‘interdisciplinar’. Isso pode constituir um equívoco.”31 Nas Orientações,
considera-se que a Sociologia, tanto quanto disciplina acadêmica quanto como
disciplina na educação básica, é uma área de conhecimento relativamente recente
se comparada às áreas já consagradas.
Historicamente, é uma disciplina que teve que lutar contra a
interdisciplinaridade para assumir sua posição e demonstrar que a relação entre
sujeito do conhecimento e o objeto do conhecimento necessitam de uma
epistemologia própria. Portanto, para que a sociologia assuma sua posição é
necessário ressaltar primeiramente o que há de específico nela. Como ela possui
características próprias que a justificam enquanto disciplina isolada da história, da
geografia, da economia, etc. Esse ponto de vista supõe que um ambiente que
ressalta a interdisciplinaridade de abordagens não contribui para essa afirmação da
Sociologia, mantendo o estudo das relações sociais diluídos em outras disciplinas e
abordagens.
Portanto, no que diz respeito à classificação, vemos que este é o primeiro
documento que pende contrário ao tratamento interdisciplinar da Sociologia,
buscando marcar sua posição de obrigatoriedade no currículo. Mais que isso,
sugerindo possíveis pontos de conexão entre as disciplinas, o documento nos
lembra que a Sociologia é a única das disciplinas que possibilita tomar a escola (e
as outras matérias) como objeto de análise.
30 BRASIL, 1999, op. cit., p. 17. 31 BRASIL, 2006, op. cit., p. 111.
26
Justifica-se a presença da sociologia no currículo não só pela tradicional
leitura de que ele é capaz de contribuir para o exercício crítico da cidadania, mas
também por ela tornar possível a compreensão de “um modo de ser de uma
sociedade, classe, grupo social e mesmo comunidade” (p.105). A expectativa de que
a escola forme cidadãos críticos toma formas mais concretas com sua presença na
grade curricular, que irá trabalhar através da sociologia, da política e da
antropologia, temáticas que abrangem desde as mudanças associadas à revolução
industrial até questões sobre a política contemporânea. Mas não apenas isso, a
Sociologia contribui também, na pluralidade do mundo contemporâneo, para a
compreensão identitária, nossa, e de outros grupos.
Ela é, em seu princípio fundamental, uma área do conhecimento que se
coloca em oposição ao senso comum, a concepções infundadas (ou fundadas no
conhecimento não-científico) sobre a sociedade e os fenômenos sociais. As OCN
colocam dois princípios como pontos de partida para o trabalho do professor de
Sociologia. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que ela busca realizar uma
“desnaturalização das concepções ou explicações dos fenômenos sociais.”32 e em
segundo lugar, deve-se produzir um estranhamento com relação a esses mesmos
fenômenos.33
O primeiro ponto, relativo à desnaturalização, tem como princípio colocar em
evidência que as “relações sociais, as instituições, os modos de vida, as ações
humanas, coletivas ou individuais, a estrutura social, a organização política possuem
uma historicidade”.34 Ou seja, deve haver uma quebra com a visão que naturaliza
instituições e fenômenos sociais, colocando em seu lugar a visão sociológica de que
as formas com que as relações sociais operam também são guiadas por princípios
sujeitos à passagem do tempo e a transformações, e mais importante, esse
processo de transformação pode ser objetivamente analisado por meio da
Sociologia. Nada pode ser tomado como natural, como dado; tudo é construído
socialmente e passível de ser analisado.
32 Ibid., p. 105. 33 Ibid., p. 106. 34 Id.
27
O segundo ponto, o estranhamento, diz respeito a uma mudança na forma
como olhamos para os fenômenos sociais à nossa volta. Salienta-se aqui a
pretensão de objetividade que orienta a prática científica. O objeto de estudo da
Sociologia não é algo que está alheio à vida das pessoas; pelo contrário, muitas
vezes é o que há de comum e o que nos une: o trabalho, a escola, a etnia. São
temas sobre os quais, sociólogos ou não, costumamos construir opiniões. A
constância dos fenômenos sociais em nossas vidas não tem como consequência
direta um entendimento do funcionamento desses fenômenos. A Sociologia afirma
então que existe essa outra forma de ver o mundo, a da análise científica da
sociedade, que é possível e distinta do senso comum. Citando o exemplo da análise
de Durkheim sobre o suicídio, o autor nos diz que:
Suas causas estão fora do indivíduo, constituindo um fato social tal como o autor o define: exterior, anterior, coercitivo aos indivíduos. Estranhar o fenômeno ‘suicídio’ significa, então, tomá-lo não como um fato corriqueiro, perdido nas páginas policiais dos jornais ou boletins de ocorrência de delegacias, e sim como um objeto de estudo da Sociologia. (MEC, 2006)35
Segundos as OCNEM o trabalho do professor deve estar assentado na
interlocução de três recortes em sala de aula: conceitos, temas e teorias. Na prática
da sala de aula, esses três recortes serão trabalhados em diálogo, e não
isoladamente. Conceitos (como burguesia ou ideologia) são palavras chave que
buscam traduzir a realidade social, atribuir nomes e uma qualidade abstrata ao
mundo dos fenômenos sociais.36 Eles possuem uma história e referências teóricas,
podendo ter diferentes definições de acordo com a época em que estão sendo
trabalhados e autor de referência utilizado. Por sua vez, a opção de trabalhar a partir
de temas (como violência e globalização) aproxima a sociologia de problemas
concretos que estão presentes na realidade dos alunos.37 Por fim, as teorias são
“modelos explicativos”, os paradigmas que buscam explicar o fenômeno social. No
documento, são considerados no nível do ensino médio principalmente as teorias de
Marx, Weber e Durkheim.38 Cabe salientar que é necessário ser feito um recorte:
35 Ibid., p. 107. 36 Ibid., p. 117. 37 Ibid., p. 121. 38 Ibid., p. 123.
28
Não parece razoável e exequível, ou mesmo interessante, percorrer todos os
pressupostos de uma teoria, nem todos os conceitos que ela encerra ou seus
desdobramentos. Aqui cabe sempre uma seleção, pode-se dizer que a
“reconstrução” de uma teoria científica, nas ciências humanas ou naturais, que deve
atender aos fins didáticos específicos do nível de ensino em que se insere.39
Nos três documentos analisados até aqui temos pela primeira vez uma
preocupação metodológica, pensando a prática de sala de aula. Além da
metodologia sugerida acima, assentada nas ideias de Conceito, Temas e Teorias,
argumenta-se contra o formato de aula “palestra”, onde temos a aula reduzida a uma
transmissão de conhecimento sentido professor-aluno, e somos lembrados que o
meio com que se apresenta a mensagem é tão importante quanto a mensagem em
si. Ora, essa é uma afirmação que exige uma preocupação pedagógica: exige
pensar sobre a metodologia com que vamos trabalhar em sala de aula. Vemos que
esse é o primeiro dos documentos que traz esse tipo de preocupações, fugindo do
debate meramente curricular, e aproximando-se do pedagógico.
Ao final do documento temos, na sessão “Práticas de Ensino e Recursos
Didáticos”, uma lista de sugestões de recursos pedagógicos.40 São eles: 1. Aula
expositiva, 2. Seminários, 3. Excursões, visitas a museus e parques ecológicos, 4.
Leitura e análise de textos, e 5. O uso de cinema, vídeo ou DVD, e TV, 6. Fotografia,
e 7. Charges, cartuns e tiras. Especificamente sobre o tema número quatro, leitura e
análise de textos, que interessa mais ao presente trabalho, nos diz o autor que os
textos (acadêmicos ou didáticos):
...não "falam" por si sós, dependem de ser contextualizados e analisados no conjunto da obra do autor, precisando da mediação do professor. Ou seja, os alunos precisam saber quem escreveu, quando e em vista do que foi escrito o texto, a fim de que este não seja tomado como verdade nem tenha a função mágica de dizer tudo sobre um assunto. A leitura e a interpretação do texto devem ser encaminhadas pelo professor, despertando no aluno o hábito da leitura, a percepção da historicidade e a vontade de dizer algo também sobre o autor e o tema abordado. (MEC, 2006)41
39 Ibid., p. 124. 40 Ibid., p. 127. 41 Ibid., p. 128.
29
São citados princípios básicos que devem orientar cada uma dessas
possibilidades, mas o documento não chega a propor rotinas concretas de trabalho.
Os recursos apresentados são comentados brevemente, e o foco da apresentação
caminha mais no sentido de nos mostrar os benefícios de cada um deles, e portanto
não temos propostas metodológicas aprofundadas. Na prática, um professor não
conseguiria usar este documento para preparar uma aula, por exemplo. Ele teria
sugestões de como fugir da tradicional aula expositiva, mas dependeria de seus
próprios esforços para desenvolver do zero um recurso pedagógico.
Em suma, seja no campo de princípios orientadores, seja no campo da
prática de sala de aula, os documentos pouco contribuem para guiar o professor que
deseja pensar em metodologia de ensino. A adaptação do ensino ao mundo
contemporâneo, objetivo tácito dos documentos que dão sequência à publicação da
Lei de Diretrizes e Bases, não encontra uma discussão metodológica que a
sustente, pois, como observado, as publicações oficiais limitam-se a pensar
currículo. Uma nova proposta educacional que leve em conta a subjetividade do
estudante, torna-se mais fácil se fizermos uma reflexão acerca da pedagogia, pois
de outra forma, os professores seguirão a ensinar conteúdos revistos, através de
metodologias ultrapassadas.
30
3 PROPOSTA METODOLÓGICA 3.1. JUSTIFICATIVA E CONTEXTUALIZAÇÃO
A atual organização da educação nacional tem como referência central a
publicação, em 1996, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica. A lei, que
passa a incluir o Ensino Médio dentro daquilo que é considerado Educação Básica,
surge num contexto em que se discute a transformação de paradigmas, nos quais
vemos estilhaçados os discursos educacionais que sustentavam as antigas
concepções de ensino. (BRANDÃO, 1999). O período pós-LDB é marcado, portanto,
por uma multiplicidade de discursos normativos acerca da educação e da
pedagogia, que apesar de heterogêneos, concordam que o modelo tradicional de
escola deveria ser revisto e atualizado, conforme as novas concepções de ensino, e
a função deste na sociedade.
Art. 2º . A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1996)42
Tem-se em mente um novo modelo de sociedade, em que a valorização do
indivíduo e da pluralidade de crenças deve ser respeitada em levada em
consideração. Não basta a formação para o mercado, deve-se formar o cidadão,
capaz de refletir criticamente e ter voz ativa nesse mundo plural. A escola tradicional,
segundo essa lógica, não seria capaz, seja pela sua organização estrutural e
curricular, seja pelas metodologias pedagógicas utilizadas, de dar conta dessa
formação exigida pela nova realidade.
É responsabilidade do governo federal legislar acerca do padrão de ensino,
garantindo a uniformidade da educação básica ao longo do território nacional,
através do estabelecimento de “competências e diretrizes” que norteiam a prática, e
prestando assistência, técnica e financeira, aos estados e municípios. Seguindo a
publicação da LDB, a tendência é cada vez mais que o ensino seja pensado a partir
da lógica de “Habilidades e Competências”, e o desenvolvimento destas é colocado
42 BRASIL, 1996, op. cit., Art. 2°
31
acima da lógica do conhecimento como fim em si mesmo. Não se coloca mais como
objetivo que o aluno conheça os conteúdos de cada uma das disciplinas, mas sim
que, a partir do trabalho disciplinar, ele se instrumentalize, tornando-se um cidadão
capacitado e competente, capaz de exercer a cidadania e achar seu lugar no mundo
do trabalho.
Esta constatação, enquanto princípio orientador, muda o foco das análises
que se fazem do ensino. Torna-se menos importante discutir qual o conteúdo que
será ensinado, e mais importante pensar acerca de metodologias capazes de
desenvolver tais competências nos alunos. A pedagogia tradicional, por estar muito
preocupada com o conteúdo que seria transmitido, acomodou-se com o modelo
expositivo, no qual era incumbência do professor transmitir todo o conteúdo que era
considerado essencial à educação. Agora, sob a nova ótica, fica em segundo plano
que o aluno “aprenda algo”, e ganha espaço a lógica do “aprender a aprender”.
O problema reside no fato, como apontado por João Valdir Alves de Souza43
(2008), de que essa mudança de ótica, que se configura no plano legislativo e tem
grandes impactos sobre a organização da estrutura de ensino a nível nacional, não
encontra correspondência dentro da formação dos professores no ensino superior.
Esse descompasso pode ser apontado em dois planos diferentes, porém
complementares. Em primeiro lugar, não há uma valorização da área da licenciatura,
e o campo da pesquisa é mais reconhecido, recebendo mais investimentos e
orientando a estruturação das grades curriculares dentro dos diferentes cursos. Em
segundo lugar, os professores universitários, presos à metodologia tradicional da
aula expositiva, não abrem a imaginação dos alunos para novas possibilidades, não
servindo de exemplo para os futuros professores, que assistem durante quatro ou
cinco anos a aulas tradicionais. No limite, expõem-se a metodologia alternativa
passando o conteúdo no quadro negro, para que seja copiado pelos alunos.
Essa tendência é apresentada por Ángel Oliva, Ángel Martínez e Rosa del
43 SOUZA, J. V. A. Formação de professores para a Educação Básica – Dez anos de LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
32
Pozo44 (2016), que argumentam que os estudantes universitários de licenciatura,
ensinados no cotidiano da prática universitária o que é que se entende por "aula",
levam as técnicas de ensino expositivas para a Educação Básica. Assim, apesar da
mudança de ótica proposta a partir da LDB, e presente nos documentos oficiais
subsequentes, em termos de metodologia assistimos a um conservadorismo e
resistência à transformação que é propagado dentro da academia e reproduzido
dentro das escolas.
Os mesmos autores apontam para alguns princípios capazes de facilitar a
aprendizagem, e que devemos ter em mente se temos a pretensão de pensar em
metodologias alternativas. Em primeiro lugar, uma mudança de foco, em que a aula
não está centrada no professor, como aquele responsável por expor o conteúdo,
mas no aluno, como aquele que está ali para aprender, e que deve ter suas ideias,
afetos e necessidades valorizados. Segundo, deve-se favorecer um ambiente de
aprendizagem baseado nas interações e trocas. E por último, o conhecimento deve
construir-se a partir de uma "negociação democrática", que implica em questionar a
ideia de um professor que detém um conhecimento puro, que está ali para iluminar
seus alunos. Isso implica num "relativismo epistemológico", em que as opiniões e
concepções de mundo dos alunos não podem ser simplesmente descartadas e
substituídas pelas "corretas".45 (OLIVA, MARTÍNEZ, POZO, 2016)
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC)46 aponta como um dos objetivos
da área das Ciências Humanas no ensino básico “problematizar o papel e a função
de instituições sociais, culturais, políticas, econômicas e religiosas”47, e somos
lembrados mais uma vez da importância das ideias de “desnaturalização” e
“estranhamento” estarem presentes no currículo de Sociologia.
Um ponto importante que deve ser levado em consideração, e que tem
impactos evidentes sobre nossas opções metodológicas, é que as “instituições” que
44 OLIVA, A. J., MARTÍNEZ, A. E., POZO, R. M. Tendencias metodológicas en los docentes universitarios que forman al profesorado de primaria y secundaria. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 65, abr-jun 2006. p. 391-409. 45 Ibid., p. 394. 46BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2015.47 Ibid., p. 237
33
nossa disciplina busca problematizar são ocupadas justamente pelos estudantes
com os quais devemos dialogar. Cada um deles, com suas diferentes origens,
carrega uma trajetória específica e participa de diferentes grupos. Devemos estar
atentos ao fato de que, por exemplo, quando tratamos o tema da homofobia em sala
de aula, teremos nessa sala, muito possivelmente, alunos que vem de um convívio
familiar no qual relações homoafetivas são tratadas como condenáveis. Este é um
exemplo, mas podemos pensar em situações semelhantes quando tratamos grande
parte dos temas da Sociologia.
Tendo isso em mente, podemos levar nossa reflexão acerca da pedagogia
além. Considerando os conceitos que norteiam a sociologia, as competências da
área no ensino médio, e os eixos temáticos que devem ser trabalhados em sala,
cabe a pergunta: como trabalhar os conteúdos sugeridos de forma significativa?
Como tornar possível, inclusive para o aluno que assistiu durante toda sua vida à
condenação moral da homoafetividade, uma reflexão sobre o tema em concordância
com o “afastamento de pré-noções” defendido pela Sociologia? Como realizar a
"negociação democrática" que comentamos acima?
Olhando por essa perspectiva podemos dizer que temos um grande desafio
em sala de aula ao tratar com esses temas “delicados”. Qual seria a abordagem
correta, se estabelecemos que o objetivo de nossa aula é que o aluno “problematize”
essas questões? Devemos ter clareza nesse objetivo. Estamos ali para afastar o
aluno do senso comum e de crenças que, possivelmente, encontram nele próprio um
representante. Dito de outra forma, o professor deve encontrar maneiras de baixar a
guarda do aluno, de contornar a resistência que o aluno traz de outras esferas
sociais, se quiser proporcionar uma aprendizagem significativa.
Apesar das considerações metodológicas que vimos nas OCN, fica claro que
essas são insuficientes, além de não levarem em conta este argumento relativo à
especificidade dos temas da Sociologia. A partir dessa constatação, passamos
então à busca por alternativas, um dos objetivos do presente trabalho.
Argumentaremos aqui a favor da metodologia da leitura de textos literários como
uma – mas não a única – possível forma de abordar temas delicados em sala de
34
aula. Essa abordagem, como veremos, evita um choque direto das interpretações
sociológicas com os pontos de vista pré-concebidos de nossos alunos.
3.2 BASE TEÓRICA
O texto literário consegue evitar o choque, baixando a guarda de nossos
alunos, na medida em que ele não tem pretensões de verdade objetiva, como pode
ser o caso da teoria sociológica. A literatura traz o ar lúdico, imaginativo, e somos
levados para um mundo que não é mais o nosso, e, consequentemente, abrimos
nossa imaginação ao novo, ao absurdo, ao fantástico. Por outro lado,
argumentamos, é possível que esse exercício de imaginação, que parte de um
mundo imaginado, possibilite conclusões, bastante concretas, sobre o mundo real.
A importância da leitura para a educação do indivíduo, seja ela formal ou
não, já foi extensamente discutida. Dentre os autores que trabalham com o tema,
tomaremos Michèle Petit48 e Daniel Pennac49 como referências. Ambos os autores
trazem uma visão compatível, em muitos aspectos, sobre o uso do texto literário
como um fim em si mesmo. Não temos no presente trabalho a pretensão de esgotar
a teoria dos dois autores, ou de nos aventurarmos no debate teórico sobre o tema.
Limitamo-nos a reconhecer a inspiração que pudemos encontrar nos textos desses
autores, e trazemos, a seguir, os pontos que julgamos importantes para nosso
trabalho. Ficará claro no capítulo seguinte, a partir do relato de nossa experiência,
como os argumentos apresentados nos auxiliaram com nossa prática.
Para começar, trazemos um princípio apresentado por Daniel Pennac: o
verbo “ler”, assim como os verbos “amar” e “sonhar”, é um verbo que “não suporta o
imperativo.”50 (PENNAC, 1993). A afirmação, a princípio inocente, foi a fundação
sobre a qual nossa prática se assentou. Nossa metodologia parte de uma quebra,
um afastamento daquilo que os alunos definem tradicionalmente como sendo
educação. Não faz parte do ambiente escolar, normalmente, a possibilidade de
escolha, e quando pretendemos trabalhar com textos, como Pennac nos lembra,
48 PETIT, M., op. cit. 49 PENNAC, D., op. cit. 50 Ibid., 13.
35
essa é a única opção: não podemos obrigar nossos alunos a ler e esperar que
teremos bons resultados; devemos convidá-los à leitura.
No mesmo sentido, Michèle Petit nos diz que “a leitura é uma arte que se
transmite, mais do que se ensina”.51 (PETIT, 2009) A partir dessa afirmação, ao lado
do argumento de Pennac, fica claro que podemos realizar uma mudança de
perspectiva da forma como encaramos a leitura, e, mais ainda, a educação como um
todo. Não devemos partir da leitura forçada e não podemos correr o risco de manter
o fluxo de transmissão de conhecimento professor-aluno, tradicional de uma aula
expositiva, e esperar uma reprodução dos textos lidos ao final da atividade. Quando
Petit troca o “ensinar” pelo “transmitir”, é justamente para fugir da ausência de
diálogo que estamos tão acostumados a presenciar em sala de aula.
De um lado, Pennac (1993) coloca o entusiasmo acima da prova de
competência, o aprender acima do recitar, o perder noites acima do ganhar tempo, e
finalmente o prazer acima do dever.52 Do outro, Petit (2009) sugere que devemos
colocar o “emocional” do leitor acima do “cognitivo”.53A leitura deve ser proposta
deixando claro que não estamos ali para passar um “conteúdo” de Sociologia. Não
esperamos que os alunos memorizem trechos do enredo para que possamos cobrá-
los mais tarde, esperando que escolham a alternativa certa num exercício de
múltipla escolha.
Basta pensarmos em como é comum no ambiente escolar que
apresentemos aos alunos, assim que iniciada determinada temática ou atividade, a
data do vestibular ou da avaliação que se coloca no horizonte próximo. Junto a
textos clássicos da literatura, temos o guia de leitura que os acompanham,
certificando-se de que o aluno “entendeu bem o que se gostaria que ele
entendesse”.54 (PETIT, 2009) Essa é uma prática recorrente em todas as disciplinas
do ensino médio, e muitas vezes esperamos que essa cobrança sirva de motivação
à leitura e à participação, ou, pelo menos, à decoreba.
51 PETIT, M., op. cit., p. 23. 52 PENNAC, D., op. cit., p. 55. 53 PETIT, M., op. cit., p. 58. 54 PENNAC, D., op. cit., p. 43.
36
Em um ambiente onde os alunos muitas vezes não têm o costume, a
motivação necessária, ou a mínima vontade de ler os textos que estamos
apresentando, é um desafio achar o melhor caminho para abordar a leitura.
Pensamos, em consonância com os autores aqui citados, que essa abordagem de
cobrança não seja o melhor caminho. Se estamos lidando com alunos que, por
diferentes motivos, possuem de saída uma dificuldade com a leitura, não é possível
imaginarmos que teremos bons resultados pedindo ao estudante que ele se engaje
numa atividade com a qual ele não se sente confortável, e mais, esperando que ao
final ele realize uma prova que comprovará, com uma nota de zero a cem, o seu
(in)sucesso.
Tradicionalmente a leitura é apresentada como um dogma, algo a que todo
aluno deve se submeter, e seria inconcebível pensar o contrário. Nesse visão, o
conhecimento resultante dos estudos é necessariamente fruto do sofrimento, e
prazer e educação são, a princípio, incompatíveis.55 (PENNAC, 1993). Aqui
encontramos um ponto importante para nossa atividade. E se a leitura não for
obrigatória? E se apresentarmos a leitura como algo prazeroso? Quando realizamos
essa abordagem, ao aluno acostumado a associar educação a sofrimento, parece
até que não estamos ali para ensinar alguma coisa; mas obviamente estamos. Está
aí o segundo princípio de nossa atividade. Além do caráter de convite, estamos ali
para propor um momento no qual, dentro da escola, é possível uma conduta distinta
da que é usualmente esperada da escola.
Apenas para termos uma ideia dessa leitura nada convencional (leia-se:
nada obrigatória) proposta por Pennac, serve-nos de inspiração seu guia de “10
direitos do leitor”, no qual encontramos o “direito de pular páginas”, o “direito de não
terminar um livro”, e acima de todos o “direito de não ler”.56 (PENNAC, 1993). Este
último, veremos em nosso relato, foi explicitamente colocado para nossos alunos ao
início das atividades. Todos os presentes, nas diferentes ocasiões, tinham o direito
de ignorar o texto que havíamos entregue a eles. Felizmente, este direito parece ter
o efeito contrário, estimulando os alunos a participarem da atividade. A mudança
proposta vale para ambas as partes: professores e alunos. Esperar uma relação
55 Ibid., p. 78. 56 Ibid., p. 139.
37
diferente dos alunos com os livros implica em propostas diferentes de como
trabalhar a literatura, estas últimas, responsabilidade do professor.
Sobre a importância da leitura na formação, Petit, que trabalha com a leitura
em contextos traumáticos, nos diz:
...as leituras abrem para um novo horizonte e tempos de devaneio que permitem a construção de um mundo interior, um espaço psíquico, além de sustentar um processo de autonomização, a construção de uma posição do sujeito. Mas o que a leitura também torna possível é uma narrativa: ler permite iniciar uma atividade de narração e que se estabeleçam vínculos entre os fragmentos de uma história, entre os que participam de um grupo e, às vezes, entre universos culturais. Ainda mais quando essa leitura não provoca um decalque da experiência, mas uma metáfora.57 (PETIT, 2009)
Esse poder de metáfora ao qual a autora se refere é o potencial da literatura
de dar nomes às nossas emoções e angústias. Ao escutar uma história,
conseguimos nos identificar, nos colocar na posição dos personagens sem que seja
necessário que a experiência narrada tenha ocorrido conosco. Pensamos nas
formas como as emoções “ficcionais” são expressas pelas palavras e aprendemos a
lidar melhor com nossas emoções “reais”. Ou seja, a leitura nos dá ferramentas
para pensarmos sobre quem somos e sobre como lidamos e podemos lidar com
nossa realidade e com o outro.
Por um momento somos levados a um mundo abstrato e suspendemos a
materialidade do mundo à nossa volta para darmos lugar à imaginação. Existe aí um
aspecto paradoxal: somos capazes, numa leitura solitária, de ir ao encontro de um
mundo que até então não imaginávamos, de nos identificarmos com personagens,
de sentirmos compaixão por um autor que só conhecemos através de suas palavras,
e finalmente de nos identificarmos como uma comunidade de leitores com a qual
julgamos ter algo em comum.58 (PETIT, 2009). Pennac (1993) tem a mesma
interpretação, dizendo que é na abstração do mundo realizada através da leitura que
atribuímos um sentido a ele.59
57 PETIT, M., op. cit., p. 32.58 Ibid., p. 80. 59 PENNAC, D., op. cit., p. 19.
38
O foco aqui não é uma fuga da realidade, no sentido de esquecer nossos
males, utilizando o livro como um analgésico em meio a possíveis dores do dia a dia.
A leitura responde menos pelo “fechamento” de nossa realidade, e mais pela
“abertura” de novas possibilidades em nossas vidas. Exercitamos nossa imaginação
e a construção de novos mundos, aprendemos a lidar com o que conhecemos
através de formas até então inimagináveis. Nos ensina também a liberdade, a
autonomia, dado que é uma escolha consciente que tomamos quando decidimos
mergulhar nesses mundos imaginados: “ler tem a ver com a liberdade de ir e vir,
com a possibilidade de entrar à vontade em outro mundo e dele sair”.60 (PETIT,
2009)
Esperamos então que nossa atividade ative essas possibilidades nos alunos.
Esperamos que eles acessem os mundos fictícios que estamos trazendo a eles com
nosso convite, e que desse mundo eles consigam tirar novas possibilidades de
imaginação de seus próprios mundos. Veremos em nosso relato como isso torna-se
possível. Nós, enquanto guias da atividade, estamos ali para buscar traçar esses
pontos de conexão. Indagamos aos nossos alunos: “vocês já estiveram nessa
posição em que se encontra o personagem?”. Ouvimos, repetidamente, que sim,
eles já estiveram nessa posição, e está gerada a identificação, não só com o
personagem, mas com os colegas que também responderam afirmativamente.
São centrais esses dois momentos, e eles devem caminhar paralelos. Ao
invés de irmos direto à posição do aluno, buscando trazer análises sobre sua vida e
os grupos do qual ele faz parte, gerando resistência por nossa intrusão, realizamos
um contorno através da metáfora (primeiro momento). Damos a eles uma história,
personagens e um mundo fantástico, onde a realidade dos estudantes não é, a
princípio, o alvo de nossa análise. Mesmo assim, a identificação com esse universo
(segundo momento), possibilita trabalharmos os importantes e delicados temas que
capacitam os alunos a refletir sobre suas próprias vidas.
A literatura é capaz de nos ensinar que aquilo que sentimos, os dramas que
vivemos, são compartilhados com o restante das pessoas, nesse caso, com nossos
60 PETIT, M., op. cit., p. 92.
39
colegas de turma. O livro é capaz de criar uma identificação, de fazer-nos perceber
que possuímos uma conexão com o “outro”, e através dessa conexão, de aproximar.
Essa conexão inicia-se ainda antes, durante a leitura em voz alta, quando ouvimos
as vozes de nossos colegas, talvez de uma maneira que nunca havíamos ouvido
antes. Como nosso relato deixará claro, ouvir nosso colega lendo, ou, mais tarde,
contando um relato próprio, gera um grande interesse, pois passamos a conhecer
algo novo sobre aquele que estava ao nosso lado o tempo todo, mas que, por
motivos distintos, não havíamos parado para dar ouvidos.
Essa dinâmica de leitura em voz alta tem como ponto importantíssimo de
apoio, talvez contra intuitivamente, o silêncio. Quando lemos aprendemos a ouvir e
ser ouvidos. Percebemos através dessa prática que nossa voz tem valor, indicado
pelo silêncio de nossos colegas que acompanham a leitura. Mais que isso, entre
aqueles que não possuem o costume da leitura, a leitura em voz alta vem como uma
estratégia de “emprestar uma voz” ao livro. Aos poucos o suporte impresso vai
sendo desvendado, mas até lá, a familiaridade da voz de um colega é capaz de
carregar sentido e obter resultados expressivos.61 (PETIT, 2009).
Petit, ao abordar os fundamentos psicanalíticos que sustentam a leitura e a
narrativa, considera as vantagens e possíveis resultados positivos que elas podem
trazer para os indivíduos. Percebe-se que muitas vezes a importância da narrativa
está no narrar, na prática em si, mais que no conteúdo sendo narrado. Ou seja, a
experiência da narrativa, o lidar com as palavras é capaz de trazer benefícios, por
vezes independente do conteúdo que está sendo trabalhado. Um exemplo
interessante apresentado pela autora é o caso do debriefing, uma conversa com fins
terapêuticos realizada logo após uma experiência traumática. O que se percebeu foi
que os resultados positivos das sessões eram obtidos não devido ao tema das
conversas, mas devido ao fato da presença de uma pessoa disposta a escutar e
relatar sem julgamentos. Vale mais a confiança que é transmitida do que o relato
especificamente.62 (PETIT, 2009)
61 Ibid., p. 59. 62 Ibid., p. 129.
40
As origens desse poder da narrativa, segundo a autora, podem ser
associadas à nossa relação ainda bebês com nossas mães, ainda quando estamos
aprendendo a nos comunicar. Antes de atribuirmos sentido e cognição às palavras,
estamos atribuindo ritmo e sentindo compaixão pela mãe que porta a voz
responsável por nosso conforto e segurança. Nos primeiros meses a narrativa nos
ensina a lidar com o espaço ausente, com a separação que inicialmente não
entendemos. Damos nome àquilo que está ausente, e consequentemente
aprendemos que também existe o retorno. A narrativa tem portanto um poder
confortador central para o bebê que está aprendendo a lidar com as idas e vindas de
sua mãe.63 (PETIT, 2009)
3.3 A LITERATURA ENCONTRA A SOCIOLOGIA
Dadas essas virtudes que os autores atribuem à leitura, partimos então às
possibilidades que nós, enquanto professores de Sociologia, podemos imaginar para
a sala de aula a partir delas. O objetivo prático de nosso trabalho consiste em tomar
essas virtudes e utilizá-las no ensino da Sociologia, resultando numa metodologia
alternativa à aula expositiva tradicional, e que, como veremos, possibilita um
contexto de interação favorável à construção do conhecimento através de
aprendizagens significativas.
A estratégia consiste em valer-se da literatura para que não entremos em
choque direto, de um lado nossas noções sociológicas, do outro as concepções pré-
estabelecidas de nossos estudantes, oriundas do senso comum. Através da
literatura, contornamos a guarda emocional que dificulta o trabalho de certos temas,
e alcançamos, com mais sutileza, um ponto que possibilita um trabalho menos
conflituoso, gerando resultados que vão muito além do entendimento de Sociologia,
mas que também trazem benefícios no campo da leitura, da comunicação, do
trabalho em grupo, da capacidade de expressão, e que contribuem para gerar
respeito mútuo, através da prática coletiva de ouvir e ser ouvido.
63 Ibid., p. 123.
41
Apresentamos agora os passos que seguimos para desenvolver essa prática
em sala de aula. Ainda na fase preparatória, devemos escolher os textos literários
que serão trabalhados, e aqui tivemos alguns cuidados específicos. Primeiro, o texto
deve trazer um enredo que possibilite a abordagem de temas da sociologia e, claro,
deve ter um conteúdo, abordagem e estilo literário apropriados para o nível de leitura
dos alunos com os quais estamos trabalhando. Para os dois textos que escolhemos,
nos valemos das temáticas sociológicas que estavam presentes nos documentos
oficiais apresentados aqui. Também, tendo em mente que estaríamos tendo um
primeiro contato com as turmas, prezamos pelos temas introdutórios e fundadores
da Sociologia.
Com o conto Toda dor tem fim64 (REZENDE, 2006), prezamos pelas noções
de “afastamento de pré-noções” e “olhar objetivo”, em oposição ao olhar baseado
nas paixões e no “senso comum”. Tal abordagem está em conformidade com a Base
Nacional Comum Curricular, que coloca, dentre os componentes curriculares da
Sociologia no Ensino Médio, “compreender os princípios que tornam uma
abordagem sociológica diferente do senso comum”.65 (MEC, 2015).
Com o conto A loteria66 (JACKSON, 1948), trabalhamos as noções de
“coesão social”, “mecanismos de controle social” e “instituições” assentadas na
“tradição”, em conformidade com o componente curricular de “problematizar os
fenômenos sociais de modo a desnaturalizar modos de vida, valores e condutas
sociais”, e também com o componente “problematizar processos de mudança de
diferentes instituições sociais, tais como família, igrejas e escola”, ambos presentes
na BNCC.67 (MEC, 2015)
A rotina inicia-se com a apresentação dos professores responsáveis e do
projeto, e devemos esclarecer, já nesse momento, que nossa atividade tem
metodologias distintas e objetivos distintos daquilo que os alunos estão
acostumados. Realizamos um convite à participação, e os alunos que não estiverem
afim de participar podem manter-se em silêncio, dedicando-se a outra atividade 64 REZENDE, M. V., op. cit. 65 BRASIL, 2015, op. cit., p. 298. 66 JACKSON, S., op. cit. 67 BRASIL, 2015, op. cit., p. 298.
42
qualquer. De início, garantimos que os alunos não serão cobrados acerca da leitura,
e não teremos uma nota para atribuir à atividade realizada.
Encaminhamos então a leitura do texto: a leitura será realizada em voz alta,
iniciada pelo professor, e seguida pelos alunos que quiserem participar. A única
coisa que pedimos nesse momento é o respeito pela leitura do colega, e todos têm
total liberdade para interromper, tomar a voz da leitura para si, e dar continuidade.
Alguns “encontrões” podem ocorrer, com duas ou mais pessoas iniciando trechos
juntas, mas isso não constituí um problema, e a dinâmica deve seguir seu ritmo até a
conclusão do texto. Concluída a leitura, seguimos com uma conversa bastante
informal e aberta, em que, novamente, o convite à participação é estendido a todos
os estudantes.
Como fomos ensinados por Michèle Petit, a pergunta que dá início a
discussão demonstra a fuga à cobrança e à exigência puramente cognitiva, indo
para o lado emocional: “Vocês gostaram do conto?”. A pergunta estimula a
participação, pois não estamos exigindo conhecimentos específicos sobre
determinado assunto, ou solicitando informações sobre a narrativa. Pedimos apenas
que os alunos manifestem as sensações levantadas pela leitura, não existindo o
certo ou o errado.
Na sequência, passamos à identificação, perguntando se os alunos
conseguem imaginar, ou passaram por situações como aquelas narradas pelos
contos. Nesse momento podemos lembrar de outras histórias, ou nos colocar na
posição dos personagens, imaginando suas alegrias e angústias. Se o personagem
do conto é julgado e condenado pelas outras pessoas, num momento em que ele
precisaria de alguém que o ouvisse e entendesse sua situação, perguntamos aos
nossos alunos se eles já passaram por isso, se já foram julgados, já julgaram ou já
deram atenção a alguém que passava por necessidade.
Importante nesse momento é demonstrar aos alunos que as experiências
subjetivas deles podem contribuir para o desenvolvimento da dinâmica, e que toda
contribuição é bem-vinda. Aos poucos, constrói-se um ambiente de diálogo, onde as
vozes se multiplicam e encontram, em seus colegas, um reflexo. A identificação com
43
o conto logo gera uma identificação entre todos aqueles que participam da dinâmica,
e, aos poucos, mais e mais alunos devem sentir-se confortáveis para falar.
O professor atua como guia, mantendo a conversa nos trilhos, em direção ao
objetivo final da dinâmica, quando conseguimos aproveitar tanto o conto trabalhado,
quanto os relatos dos estudantes, para abordar noções sociológicas. Quando
trabalhamos os relatos de forma informal, antes de tentar teorizar sobre eles,
estamos buscando colocar em evidência situações em que é possível encontrar
manifestações concretas daquilo que a teoria Sociológica descreve. Ao apresentar o
exemplo concreto antes da conceituação científica, evitamos o choque sobre o qual
comentávamos anteriormente.
Ao final, chegamos às noções sociológicas, apresentadas não através de
definições conceituais abstratas, próximas do universo acadêmico e distantes da
realidade daqueles jovens; mas sim através dos exemplos concretos que eles
mesmos apresentaram ao grupo. A frieza da objetividade científica impessoal é
quebrada com o calor da subjetividade de cada um deles, que nos trazem diferentes
ângulos possíveis, que unidos, tornam possível o reconhecimento de fenômenos
sociais, conforme definidos pela Sociologia.
Abaixo apresentamos um quadro com as equivalências que estabelecemos
previamente entre os textos literários e os seus equivalentes sociológicos. Cabe
ressaltar que durante a prática acabamos abordando temas que vão muito além dos
componentes curriculares citados acima, pois a leitura subjetiva dos alunos abriu
portas para que um leque de temas fosse trabalhado.
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Trechos de “A Loteria” Noções sociológicas mobilizadas
“Sr. Summers frequentemente comentava com os habitantes da vila a ideia de fazer uma caixa nova, mas ninguém queria abandonar nem mesmo aquele resto de tradição que era representado pela caixa preta.” (p.2)
Tradição: Resistência à transformação.
“ ‘Andam dizendo por aí’, disse o Sr. Adams para o Velho Warner, que estava ao seu lado, ‘Que pros lados da vila norte eles tão pensando em acaba com a loteria’.O Velho Warner resmungou. ‘Bando de maluco’ (...) ‘Desse jeito vamo acaba todo mundo comendo ensopado de moruge e noz de carvalho. A loteria sempre existiu’ “ (p.7)
Tradição, Controle: Resistência à mudança e justificativa baseada na tradição. Controle discursivo – classifica-se o diferente como anormal.
“Tessie Hutchinson berrou para o Sr. Summers: ‘Você não deu tempo suficiente pra ele tira o papel que ele queria! Eu vi tudo! Não foi justo!’.‘Não exagera, Tessie’, respondeu a Sra. Delacroix, e o Sr. Graves disse, ‘Todo mundo teve a mesma chance’.‘Cala a boca, Tessie’, falou Bill Hutchinson num tom seco.” (p.8)
Controle, Conformidade: conforma-se aos mecanismos sociais de controle, mesmo que eles voltem-se contra nós mesmos.
“O Sr. Graves pegou a mão do garotinho, que foi de boa vontade com ele até a caixa. ‘Pegue um papel de dentro da caixa, rapazinho’, disse o Sr. Summers. O menino colocou a mão pra dentro da caixa e abriu um sorriso. ‘Pegue só um papel’, orientou o Sr. Summers.” (p.10)
Socialização; Coesão: Desde criança as normas sociais são aplicadas, coagindo à normalidade.
“e ela levantava suas mãos desesperada enquanto os moradores da vila iam para cima dela. ‘Não é justo!’, ela gritava. Uma pedra atingiu a lateral de sua cabeça.” (p.12)
Coesão; Mecanismo de controle: O grupo agindo como unidade para assegurar o cumprimento dos mecanismos de controle.
Tabela 1 – Relação entre trechos do conto “A Loteria” e possíveis noções sociológicas para serem trabalhadas com os alunos.
Trecho de “Toda Dor Tem Fim” Noções Sociológicas Mobilizadas
“meus olhos sempre foram claros, completamente videntes, porque nunca houve em mim sentimento soberano que os turvasse, nem desejos prementes que distorcessem os objetos e os fatos” (p.1)
Objetividade do olhar: O olhar objetivo da sociologia em oposição ao senso comum.
“é preciso que alguém, em algum lugar, contenha o repertório inteiros das paixões humanas sem se deixar aniquilar por elas. Alguém que as conheça e as olhe sem paixão” (p.1)
Afastamento de pré-noções: O afastamento das paixões necessário ao olhar sociológico.
“Digo-te tudo isso agora não para recriminar-te, mas apenas para provar-te que de fato tudo vejo e tudo sei” (p.2)
Análise sociológica: A Sociologia tira conclusões, mas não julga o fato social analisado.
Tabela 2 - Relação entre trechos do conto “A Loteria” e possíveis noções sociológicas para serem trabalhadas com os alunos.
Para concluir, no campo da avaliação, desenvolvemos uma atividade para
ser aplicada entre os alunos, que pode ser encontrada entre os anexos. Pensando a
45
partir das ideias de Petit e Pennac, relativas ao “convite” à leitura, não nos pareceu
justo incluir uma atividade obrigatória, pela qual os alunos receberiam uma nota. A
atividade avaliativa que desenvolvemos, portanto, também foge do tradicionalismo.
Reconhecemos que, se passarmos a pensar essa metodologia como componente
curricular padrão numa escola, atenção extra deverá ser dada ao quesito avaliação,
no sentido de imaginar como adaptar a atividade para que possamos aferir uma nota
para cada aluno dentro do padrão de provas e testes hoje vigente no sistema de
ensino.
As questões presentes na atividade foram todas, de uma forma ou de outra,
baseadas na parte prática da atividade, e não aparecem novidades para além
daquelas acima já descritas. O que temos é a transcrição de algumas das questões
que já apareceram, agora apresentadas na forma escrita. Nosso intuito aqui foi mais
de ter um registro escrito daquilo que os alunos nos disseram verbalmente do que
atribuir uma nota a eles. Dito isso, recomendamos a leitura da atividade anexa para
que depois, durante o relato da experiência, leia-se os relatos escritos dos alunos
sabendo que foi dessa atividade que eles foram retirados.
46
4 RELATO DE EXPERIÊNCIA 4.1 COLÉGIO ESTADUAL BARÃO DO RIO BRANCO
O projeto de leitura de contos em sala de aula não é inteiramente novidade.
Já foi aplicado por alunos do PIBID de Ciências Sociais em diversas salas de aula,
num trabalho envolvendo o conto A noite dos feios de Mario Benedetti, buscando
trabalhar a ideia de estigma a partir da discussão do conto. Pude acompanhar essa
prática algumas vezes, e daí surgiu a inspiração para o trabalho que estou
desenvolvendo atualmente. Um dos responsáveis pelo trabalho realizado pelo PIBID
foi o professor orientador deste trabalho, Rafael Ginane Bezerra, que portanto já
possui experiência com esse tipo de atividades.
Em maio deste ano, desta vez desligado do PIBID, Rafael realizou
novamente a atividade de leitura em sala de aula, utilizando o conto Toda dor tem
fim, de Maria Valéria Rezende. A atividade foi realizada no colégio Barão do Rio
Branco no centro de Curitiba, em três turmas de Sociologia cedidas pelo professor
Alexandre. Pude acompanhar a prática como observador, o que me serviu de
preparo para o exercício que eu viria a desenvolver em breve. A descrição dessa
parte, para mim mais preparatória, será mais breve e abordará principalmente as
questões metodológicas, e portanto não abordarei extensivamente as falas dos
alunos como farei num momento posterior.
O conto de Maria Rezende é uma narrativa em primeira pessoa, em que a
narradora, uma “velha tia silenciosa e apagada” dirige suas palavras a uma pessoa
que possui um “olhar dolorido”. Sabemos de início apenas que alguém passa por
uma situação difícil, e as palavras da narradora estão ali para servir de consolo. A
característica que marca o olhar da narradora é a objetividade, o olhar desprovido de
paixão, que é capaz de enxergar e entender, sem julgamentos, a tristeza que assola
nosso personagem sem nome. Ao fim descobrimos que a origem da mágoa deve-se
a uma paixão incestuosa de um irmão por sua irmã. Hoje, no dia do casamento dela
com outro homem, o sentimento melancólico toma conta do rapaz, que é então
consolado pela narradora.
47
O exercício aqui realizado por Rafael serviu-me de modelo para a atividade
que eu viria a realizar na semana seguinte, e através da observação pude tirar
conclusões sobre qual seria a melhor forma de realizá-lo e reunir um leque de
“ferramentas” que poderiam ser utilizadas para um bom andamento da prática futura,
coordenada por mim.
O conto trabalhado era relativamente curto. Possui três páginas e pode ser
lido em até cinco minutos. A apresentação feita por Rafael seguiu um modelo
comum para todas as turmas. Ele já havia acompanhado algumas aulas nas turmas
em semanas anteriores e portanto já sabia o nome de alguns alunos e conhecia o
perfil de cada uma das turmas, mesmo assim fez questão de perguntar o nome dos
alunos individualmente ao entregar as cópias dos contos. Esse esforço visando a
quebra com o anonimato e a demonstração de interesse em conhecer os estudantes
traz bons resultados e parece deixar os alunos mais dispostos a participar da
atividade proposta. Durante todo o período eles eram chamados pelo nome, e creio
que esse pequeno gesto traz grandes contribuições, ainda mais considerando que
somos professores que estão ali de passagem e não possuímos a intimidade do dia
a dia para auxiliar com o trabalho.
O caráter de “convite” à participação foi deixado sempre bastante claro.
Ninguém seria forçado a participar, e aqueles que assim o desejassem estavam
livres para apenas ouvir a leitura dos colegas ou dedicar-se a outra atividade. A
única regra, ressaltada com ênfase nas três salas, é que os alunos não poderiam
tirar sarro de seus colegas durante a leitura, independente das possíveis
dificuldades e gaguejos dos colegas. A rigor, essa regra foi seguida por todos, e não
surgiram problemas nesse sentido em nenhumas das três turmas. Apesar do
“convite” deixar aberta a possibilidade a não participação, logo ficou claro que
pouquíssimos alunos não se interessavam pela atividade, e, em salas de
aproximadamente trinta alunos, tínhamos, em cada uma delas, uma média de dois
ou três que pareciam menos interessados, não acompanhando a leitura ou mexendo
em seus celulares.
Pude perceber a importância de deixar claro aos alunos que esperávamos a
participação deles na leitura. Na primeira turma, apesar do convite à participação,
48
Rafael leu o conto sem que os alunos o interrompessem. Na segunda, parece-me
que ele deixou mais claro esse convite, esclarecendo que eles possuíam total
liberdade para interrompê-lo, e logo uma das meninas resolveu fazer isso e dar
sequência à leitura, seguida por outros colegas. A partir desse fato pude concluir a
importância de frisar no momento da apresentação a dinâmica de constante troca de
vozes que deveríamos ter durante a leitura, gerando assim mais envolvimento.
Também na primeira turma, tivemos a sensação de que os alunos não
conseguiram acompanhar com exatidão o enredo da narrativa. Em partes isso deve-
se ao estilo de escrita e ao vocabulário do conto de Maria Rezende, porém esse
fator não resultou em grandes complicações, pois após o término da leitura, foi feita
uma recapitulação dos pontos da narrativa, releitura de alguns trechos e discussão
acerca dos possíveis pontos que geraram confusão, até que os acontecimentos do
conto ficassem claros a todos os participantes. Tendo isso em mente, e agora ciente
dos pontos que poderiam gerar interpretações divergentes, na segunda e terceira
turmas em que trabalhamos a atividade, fez-se questão de reler alguns pontos do
conto junto com eles assim que a primeira leitura foi concluída, e os resultados foram
positivos, pois as duas turmas posteriores pareciam em maior sintonia quanto à
estrutura da narrativa.
Perceber isso também trouxe encaminhamentos para o conto que
escolhemos trabalhar na atividade futura. O conto A Loteria possui uma linguagem e
estrutura narrativa mais simples, apesar de ser mais longo. Mais ainda, nesse caso
tínhamos a vantagem de que eu mesmo fui responsável pela tradução do conto do
inglês para o português, e portanto pude fazer determinadas escolhas no momento
da tradução, que levavam em conta o perfil dos leitores para quem o conto estava
dirigido. Nesse sentido, existindo sinônimos mais acessíveis, ou formas que eu
julgava serem mais claras e objetivas de construir determinadas frases, pude chegar
a um resultado final que estava de acordo com o perfil dos alunos que estaríamos
encontrando em sala de aula.
Acompanhando a atividade tive a primeira percepção da importância da
quebra com a imagem tradicional que temos de uma aula e do professor. A pergunta
após o término da leitura foi a mesma que, há alguns anos, Rafael fazia durante a
49
atividade do PIBID: “Vocês gostaram do conto?”. Apesar de ser um questionamento,
essa pergunta tem um peso de afirmação. Com ela, colocada como marco de
abertura da conversa, declaramos aos nossos alunos que não estamos ali para
cobrar deles determinado conteúdo. Não esperamos uma reprodução de algo que foi
memorizado, mas sim a exposição de suas motivações subjetivas. Quando
perguntamos se alguém gosta ou não de determinada história, obviamente não
podemos atribuir um “certo” ou “errado” à resposta, daí a importância dessa simples
pergunta. Fica demonstrado então que nós, enquanto professores, estamos
dispostos a receber uma resposta distinta (para uma pergunta também distinta) da
tradicional resposta memorizada. Posteriormente voltarei a tocar nesse ponto,
paralelamente a outras rupturas com um modelo habitual de educação que creio
termos alcançado com essas atividades.
Uma das perguntas que seguiram, e que também revela muito sobre a
abordagem metodológica aqui proposta, foi quando Rafael perguntou a eles se eles
já haviam se visto na posição de algum dos personagens do conto: seja na posição
da narradora, conselheira que é capaz de escutar um relato sem julgar; seja na
posição do irmão incestuoso, uma vítima que atravessa uma situação delicada e que
necessita de alguém capaz de entender sem taxar. Ela demonstra como é possível a
aproximação do mundo fictício oferecido pela literatura com a vida dos estudantes. É
possível notar que quando o aluno começa seu relato, já o conto que possibilitou
aquele momento desloca-se para segundo plano, pois foi utilizado apenas como
premissa para acessar aquilo que é mais significativo: a subjetividade do aluno.
Relato aqui a fala de um dos alunos, que por si só é capaz de certificar a
eficácia do método. Um dos rapazes que se sentava na última cadeira do canto
esquerdo da sala relatou, de forma extensa e bastante passional, a leitura em voz
alta, realizada num ônibus lotado, de uma declaração de amor para a garota por
quem ele estava apaixonado. Cegado pela paixão que lhe atingia, o rapaz resolveu
desabafar dentro do “santa cândida/pinheiro, porta 4”. Agora, olhando
retrospectivamente, ele nos confessou que agia por impulso, e que como resultado
do amor não correspondido sofreu muito e passou por um longo período de mágoas.
Nessa estado, encontrando-se “sem um alicerce”, uma base que lhe servisse de
apoio para seguir em frente, ele precisava seriamente de alguém que o ouvisse,
50
como a narradora de nosso conto. O relato do rapaz prendeu a atenção dos colegas,
que estavam visivelmente surpresos com a capacidade de articulação e uso de
vocabulário do colega. Claramente aquelas eram palavras de alguém apaixonado –
pela leitura, como ele mesmo revelou ao fim de sua exposição.
O ponto mais interessante do episódio, entretanto, ficou para o fim da aula,
quando conversamos com o professor Alexandre: o rapaz não havia se manifestado
uma única vez sequer durante as aulas até aquele momento. Era a primeira vez que
o professor ouvira a voz do garoto. Este caso ocorreu na primeira turma de que
acompanhei o relato, e após essa mesma aula ouvi de Alexandre que ele nunca
havia presenciado um grau de envolvimento daquele nível por parte dos alunos.
Ficou claro que a aceitação da proposta não limitou-se aos alunos, pois foi notável a
satisfação que o exercício trouxe ao professor, que nos apresentou de forma muito
mais entusiasmada nas duas turmas que vieram em seguida.
O momento final de cada uma das aulas ficou reservado para a aproximação
de ideias oriundas da Sociologia à discussão. O objetivo sociológico por traz do
conto aqui trabalhado está no olhar capaz de analisar sem julgamentos da
narradora. Assim como ela, que possui a habilidade de colocar suas paixões e olhar
objetivamente para a situação do rapaz, a Sociologia também é capaz de olhar para
a realidade e descrevê-la, apoiada no afastamento das pré-noções, como nos
ensina Durkheim. Um ponto central de nossa abordagem metodológica aparece
aqui. A partir de um texto literário, trabalhado em paralelo aos relatos do cotidiano
dos alunos possibilitados por ele, podemos tornar mais fácil a absorção de noções
sociológicas.
Ficou evidente para mim que a atividade proposta era riquíssima em
possibilidades. Os alunos participavam animados; ela funcionou em turmas de
diferentes perfis; o potencial foi reconhecido pelo professor regular da escola; e os
alunos, ao fim, tinham um contato com temáticas da sociologia que podiam
assentar-se, não na memorização e na leitura de textos técnicos, mas nas
experiência reais que haviam sido trocados por eles durante nossa conversa. Outro
ponto que facilitou nosso trabalho: aproximar-se da Sociologia – ou de qualquer
outra disciplina – com uma turma vibrante e alegre é tarefa consideravelmente mais
51
fácil do que apelar para uma aula expositiva numa turma que está desanimada e
entediada com o ambiente monótono e repetitivo da escola, e isso por si só bastaria
para convencer-me do sucesso da atividade.
Com essas temáticas em mente, segui para a preparação da atividade que
relato a seguir, agora mais detalhadamente, e aprofundando os elementos até aqui
deixados em segundo plano.
4.2 COLÉGIO ESTADUAL ROMÁRIO MARTINS
Desde o início do projeto tínhamos em mente que o que era proposto por
nossa atividade era uma quebra. A atividade aconteceu dentro do ambiente escolar,
dentro de uma sala de aula, e portanto ainda estávamos sujeitos às limitações – e
possibilidades – que esse ambiente nos impõe. A quebra com a visão de uma visão
tradicional de educação era condição necessária, acreditávamos, para os bons
resultados que esperávamos encontrar.
O início das diferentes aplicações foram bastante similares nesse sentido.
Na quarta-feira, 25 de maio, fomos recepcionados pela professora Andressa na
escola Romário Martins em Piraquara, região metropolitana de Curitiba. A “aula”
nessa ocasião teria início às oito e quarenta da noite, véspera de feriado, numa
turma de terceiro ano. Conseguimos na ocasião organizar para que tivéssemos
aproximadamente uma hora e vinte de tempo disponível. Como nos outros casos,
tivemos uma breve apresentação. Nessa ocasião, fui apresentado como colega de
curso, e Rafael como professor. A apresentação durou pouco, e sugeria uma
“atividade diferenciada”. Em todas as ocasiões, os professores pediam a
colaboração dos alunos e a receptividade dos mesmos frente aos desconhecidos
que ali chegavam. Enquanto distribuíamos os textos que seriam trabalhados, os
responsáveis pela turma faziam a chamada, que de fato esteve presente em todas
as atividades realizadas, mas pela qual nós nunca ficamos responsáveis.
Quanto à turma desse dia, soubemos de antemão que era considerado um
excelente grupo, com um alto nível de participação nas atividades propostas. O 3°A
estava bastante cheio, com 34 presentes de um total de 38 alunos. Considerando a
52
véspera de feriado chuvosa pela qual passávamos, ficou claro que o
comprometimento dos alunos ali era alto. Devemos agradecer nesse sentido
também à professora Andressa, que os avisou com antecedência sobre nossa vinda
e há uma semana já pedia a eles que se esforçassem para estar ali no dia da
atividade. Enquanto distribuíamos os textos, mais alguns alunos iam chegando, de
modo que quando finalmente iniciamos a leitura poucas mesas haviam sobrado e
cinco alunos posicionaram cadeiras próximas à entrada da sala, dificultando a
entrada e saída.
O Colégio Estadual Romário Martins foi a primeira instituição de ensino de
primeiro grau do município de Piraquara, e foi fundado em março de 1950.68 É uma
escola central, frequentada por alunos de diferentes origens e perfis sociais. Alguns
vêm de bairros mais distantes, mais pobres, outros possuem maior poder aquisitivo,
carregando celulares recém lançados e usando roupas de marca. Nessa turma em
particular, existia um bom entrosamento entre todos, e as conversas entre grupos
isolados não foi um problema durante o decorrer do exercício. Ao entregar as cópias
do texto, também fiz questão de perguntar o nome de cada um deles, tentando
quebrar com o desconhecimento completo, e dar brechas às apresentações
informais. Um dos rapazes, mais receptivo, disse que eu e Rafael éramos “sérios e
bonitos”, o que foi recebido com risadas e deixou o ambiente mais leve. Retribuí o
elogio e seguimos a distribuição do material.
Tendo a palavra, o esforço de nossa parte, era sempre o mesmo: mostrar já
de início aos alunos que não estávamos ali para desenvolver uma atividade que se
encaixava nos moldes daquilo que eles já conheciam como escola ou educação.
Nós não estávamos ali para avaliar os estudantes. Não teríamos um questionário
que deveria ser obrigatoriamente respondido por eles ao final da atividade, e
consequentemente não teríamos uma nota atribuída a cada um. A leitura do texto,
seguindo as instruções de Pennac, não seria obrigatória; participariam aqueles que
estivessem interessados, e estavam livres para ignorar a leitura os que assim o
desejassem. Ao final da leitura teríamos uma conversa aberta, em que todos
68 Histórico disponível em: <http://www.pqaromario.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=9> acessado em 17 de maio de 2016.
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estariam convidados a participar. O caráter de convite era imprescindível. Fizemos
sempre questão de deixar claro que eles estavam sendo convidados a participar, e
possuíam total liberdade para negar.
O primeiro dos convites era o chamado à leitura. Ela seria feita em voz alta,
e cada um dos alunos tinha uma cópia do texto em mãos. Eu iria iniciá-la, e todos os
alunos estavam autorizados a “intrometer-se”, tomar a palavra, e dar sequência ao
texto, lendo em voz alta para que todos acompanhassem. Se durante a primeira
página do texto tínhamos um ou dois alunos se arriscando na leitura, com pequenos
momentos de silêncio entre os parágrafos enquanto esperávamos para ver quem
seria o próximo a se arriscar; chegando à última página eram comum os risos
decorrentes dos encontrões, quando dois alunos iniciavam juntos o parágrafo
seguinte, logo após o término do anterior. Ficou claro o progressivo envolvimento de
todos os presentes. A leitura de “A loteria” levou pouco menos de vinte minutos, e
por vezes levantei os olhos do texto para avaliar o nível de envolvimento e
concentração dos alunos e alunas ali presentes. Dos mais de trinta que ali estavam,
apenas três meninos pareciam estar menos interessados até o momento, sentados
no canto esquerdo ao fundo da sala. Ainda assim, pude ver que eles
acompanhavam por vezes a leitura de trechos do texto com as cópias que haviam
recebido.
A leitura seguiu com um ótimo ritmo. Meninos e meninas participavam
igualmente e todos liam muito bem, de forma audível, e eram respeitados pelos
colegas, que se mantinham em silêncio. Alguns risos surgiram, porém, quando
aconteciam deslizes na pronúncia dos nomes de alguns dos personagens. Nomes
estrangeiros como “Hutchinson”, “Graves” e “Dellacroix” causavam alguma
dificuldade entre alguns, mas retornaremos em breve a esse ponto.
A conclusão inesperada do conto definitivamente os pegou desprevenidos.
“A loteria” nos conta a história de um sorteio que acontece em uma pequena cidade
americana genérica. Esse vilarejo possui cerca de trezentos moradores que se
reúnem periodicamente para a realização da “loteria”. Não sabemos, durante o
decorrer da história, qual o prêmio que o vencedor irá receber, mas passamos a
perceber, conforme progride a narração, que nenhum dos moradores deseja ser o
54
vencedor, e já no final, a ganhadora, Sra. Hutchinson, reclama que o sorteio foi
injusto e que deveria ser recomeçado. Enquanto leitores, o que motiva a leitura do
conto é a curiosidade crescente sobre qual será o “prêmio” dessa loteria, enquanto a
possibilidade de uma premiação tradicional se afasta a cada parágrafo. Finalmente,
nas últimas linhas do texto, descobrimos que o “vencedor”, aquele que tirasse o
único papel marcado de dentro da caixa, seria apedrejado e morto pelos outros
moradores. Um dos últimos momentos do conto é o filho pequeno da vítima
recebendo suas pequenas pedras para participar do apedrejamento de sua mãe.
A reação inicial demonstrou o envolvimento dos alunos na leitura. De súbito
a sala inteira foi do silêncio, padrão durante a leitura, à explosão de
questionamentos e à discussão tumultuada enquanto cada aluno tentava arrancar
conclusões de seu colega mais próximo. Eles pareciam querer confirmar o absurdo
que tinham acabado de ler. Perguntas como “Foi isso mesmo?”, “Será que ela
morreu?” e “Eles mataram ela?” surgiram em meio à agitação, e eu continuei em
silêncio por algum tempo enquanto eles digeriam as últimas linhas do conto.
Entre eles, os próprios alunos respondiam que sim, a Sra. Hutchinson havia
sido apedrejada, e que não, ela não havia sobrevivido. As primeiras perguntas dos
alunos após a leitura foram no sentido de elucidar a forma pela qual o sorteio havia
sido realizado: primeiro ocorria um sorteio entre os chefes de família, todos homens,
e depois disso um sorteio entre os membros da família sorteada. Dentre os cinco
familiares de Bill Hutchinson, a sorteada foi sua esposa, Tessie Hutchinson, pois foi
ela quem tirou o papel marcado pelo ponto preto, enquanto os outros membros
tiraram papéis em branco de dentro da caixa de sorteio. O conto usa uma linguagem
acessível, e pareceu-me, naquele momento, que as dúvidas quanto à narrativa
deviam-se mais ao desfecho e à incredulidade dos alunos, do que a possíveis
entraves com a leitura. “A loteria estava sorteando a morte?!”, eles perguntavam em
tom descrente.
Sim, ela estava sorteando a morte. E esse foi um dos motivos pelo qual o
conto em questão foi escolhido. O absurdo com que encaramos o fato é uma das
sensações que buscávamos trazer aos alunos com esse conto. Como seria possível
justificar ato tão repugnante aos nossos olhos? O que motivava os moradores da vila
55
a matarem a sangue frio um dos membros de sua própria vila, ainda mais através de
um sorteio aleatório, realizado periodicamente? E, claro, o que seria possível
concluir sobre nossa própria realidade a partir daquele trabalho de ficção?
O limite entre ficção e realidade não é algo dado. Uma das primeiras
perguntas que foi feita por uma das alunas foi: “Isso aconteceu de verdade?”. Não
era dado de antemão àqueles alunos que um texto literário como aquele retratava
uma ficção, um mundo inventado a partir da imaginação da escritora (porém
baseado nas inspirações bastante reais que ela possuía). Tínhamos já de início ao
nosso favor essa questão. Por mais asqueroso que fosse o ato, por mais alheio à
nossa realidade, a possibilidade de que aquele conto retratava um acontecimento
real passou pela imaginação daquela aluna e de seus colegas.
Assim estava iniciada nossa conversa. Logo uma aluna ressaltou a
importância do “olhar” na interpretação do conto. A reflexão dela trouxe dois olhares
possíveis: em primeiro lugar o nosso, que julgava absurda e inconcebível a tradição
de apedrejamento sustentada pelos moradores da vila retratada. O olhar que causou
o choque inicial nos alunos e que torcia para que aquela fosse uma obra de ficção
que não encontrasse paralelos no mundo real. Porém, a mesma aluna considerou
um segundo olhar, o olhar dos próprios moradores da vila, que, mergulhados em
suas próprias crenças, haviam naturalizado aquele ritual e viam-no como algo
perfeitamente normal e aceitável. A aluna ressaltou que da mesma forma que nós
olhávamos para eles e éramos incapazes de entender o motivo que levava os
moradores a repetir, periodicamente, aquele ato bárbaro; era perfeitamente possível
imaginar uma situação oposta, no qual os fictícios moradores olham para os nossos
próprios rituais e tradições e chegam à mesma conclusão que nós chegamos: “Isso
não faz sentido”.
Indo além, a aluna lembrou aos seus colegas o exemplo da mutilação genital
feminina, prática comum em grande número de países africanos, Oriente Médio e
Ásia. Assim como o apedrejamento irreal que encontramos em nossa leitura, este
também era um ritual assentado na tradição e possuía raízes antigas, sendo
passado de geração em geração até que se torna justificável por não conhecermos
um mundo sem essa prática. Assim nos lembra o personagem Velho Warner no
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conto: “A loteria sempre existiu”, e logo ele segue reclamando sobre a ideia absurda
de tentar acabar com ela. Com a reflexão da aluna, já temos um claro exemplo de
como a ficção nos traz ferramentas para explorarmos o real. O texto literário nos traz
uma infinidade de analogias e comparações possíveis de serem trabalhadas em sala
de aula, e aos poucos elas começaram a aparecer e enriquecer nossa conversa.
Passaram a pensar então sobre seus próprios rituais. Todos nós temos
nossas celebrações, comemoradas ano a ano, que não sabemos ao certo quais são
suas origens, e não sabemos explicar com exatidão os propósitos aos quais elas
servem. O Natal e outras festas religiosas apareceram na discussão. Alguém
poderia dar uma simples explicação dizendo que o Natal serve para dar e receber
presentes, assim como a loteria serve para apedrejar um membro da vila. Mas
poderíamos muito bem dar presentes em qualquer outra data, e mesmo assim
aguardamos a chegada de um momento específico para que isso seja feito. Da
mesma forma que a extinção da loteria parecia absurda aos membros da vila, a ideia
de extinguir a comemoração do Natal também poderia causar choque entre nós.
Exemplos concretos como esse mostraram aos alunos que não poderíamos olhar
para o apedrejamento como fim em si mesmo. Existia algo por traz dele que o
justificava, que fazia com que todos os membros daquele grupo participassem do
evento e que fazia com que fosse inimaginável deixá-lo de lado.
Assim chegamos ao tópico da coesão social, aproximando a ficção da teoria
sociológica. Todos pertencemos a grupos que são regidos por determinadas regras
de conduta. Espera-se e impõem-se determinado comportamento aos seus
membros, existindo uma coesão social, como nos explica Durkheim, que mantém a
unidade de um grupo. Os que decidem ir contra às crenças morais que sustentam
essa unidade são punidos, ou no limite, excluídos do grupo. A tradição aliada à
coesão possibilita com que os grupos sigam praticando rituais considerados
absurdos, sem que ninguém consiga se opor a essas práticas.
Durante nossas conversas consideramos também o ambiente escolar.
Jovens de diferentes origens, com diferentes pontos de vista, posicionados dentro
dessa engrenagem. O modelo escolar que se organizou visando aos interesses da
organização econômica industrial, e à sua imagem e semelhança, espera um
57
determinado comportamento de seus alunos.69 A organização por diferentes
matérias, com alunos de determinadas idades em cada série, seguindo a
acumulação de conhecimentos a cada ano, muito nos lembra uma linha de produção
de uma fábrica, e para que essa fábrica funcione cada um de seus trabalhadores,
alunos e professores, precisa ocupar uma posição que está de acordo com a
organização geral. Quando avaliamos que um aluno está fora do padrão esperado –
e essa constante avaliação faz parte da lógica dessa organização – ele é reprovado,
se isso não solucionar o problema, ele pode eventualmente ser expulso. Essas
considerações foram levantadas pelo professor Rafael para demonstrar que, mesmo
nesse ambiente no qual eles estavam inseridos, a lógica da coesão social exercia
seu papel. Há, dentro desse ambiente, pouco espaço para questionarmos a lógica
que o rege, assim como na vila do conto, onde não há margem para questionar a
loteria e sua lógica.
A reflexão acima serviu-nos a dois propósitos. Primeiramente, trabalhar a
ideia de coesão social analisando um ambiente familiar aos alunos, aproximando
teoria social da realidade próxima a eles. Em segundo lugar, relembrar a lógica
responsável pelo funcionamento daquele ambiente, deixou mais claro, esperamos, a
posição que a atividade que nós havíamos trazido para eles ocupava. Nosso
exercício alimentava-se da diversidade de pensamentos, e não de sua
padronização. Tivemos, durante a prática, muitas formas de interpretar as perguntas
que surgiam, e, mais importante, muitas formas de respondê-las. Desde o princípio,
a lógica não avaliativa da atividade tinha como consequência direta a ausência de
respostas certas e erradas: o aprendizado que esperávamos obter era fruto de uma
conversa e da reflexão, aliada à pluralidade de opiniões ali manifestadas.
Dois outros paralelos apareceram. Primeiramente, com a história do filme
Jogos Vorazes, em que anualmente jovens de diferentes distritos são selecionados
para batalharem uns contra os outros até que apenas um deles sobreviva, e em
segundo lugar, o paralelo com o evangelho bíblico, quando Jesus impede o
apedrejamento de uma mulher que havia cometido adultério. Fomos de referências
contemporâneas a referências religiosas rapidamente, e a cada debate que brotava
69 ROBINSON, K. Changing Education Paradigms. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zDZFcDGpL4U> Acesso em: 17 de maio de 2016.
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por meio dessas associações o choque inicial transformava-se em reconhecimento e
familiaridade. Tínhamos de um lado o sacrifício em função do desvio frente ao
comportamento moralmente aceitável, e do outro o sacrifício tradicional ritualístico.
De um lado o sacrifício devido à fuga à normalidade, e do outro o sacrifício, ele
próprio, como a normalidade.
Chegamos a conclusão que a coesão social está disseminada por nossas
vidas, como numa simples prova que busca avaliar e nivelar, e que quando não nos
adequamos às exigências delas, somos, cada um a sua maneira, apedrejados.
Sofremos castigos e punições por agirmos ou sermos diferentes de uma norma
padrão. Perguntamos nesse momentos aos estudantes se eles já haviam passado
por isso, se já haviam sido castigados por não se adequarem às expectativas.
Começamos com um relato mais leve: uma das alunas contou-nos que
costumava ser excluída dos jogos de vôlei do colégio por não ser muito boa no
esporte. Terminou, entretanto, em tom animado, dizendo que estava praticando e
que aos poucos estava superando o problema. Para ela, a decisão dos colegas de
manterem-na fora das quadras revelava as exigências impostas por aqueles mais
experientes, que comandavam as dinâmicas do jogo. Aos poucos as temáticas
caminharam no sentido dos conteúdos curriculares da Sociologia, e os alunos e
alunas compartilhavam momentos de constrangimento vivenciados por eles ou por
colegas.
Uma menina negra contou-nos que desde pequena ela passava pela
experiência de ser chamada por apelidos pejorativos, e que havia se sentido
“apedrejada” muitas vezes devido à cor de sua pele. Por ser diferente dos demais
em determinados contextos, por não se enquadrar na estética “normal”, ela foi
repetidas vezes tratada de uma forma desrespeitosa, inclusive dentro do ambiente
escolar.
Mais um relato de exclusão teve como tema a homofobia. Um rapaz relatou
o que ocorreu com um colega dele, que depois de muito tempo escondendo sua
orientação sexual decidiu contar a verdade aos colegas. O rapaz em questão fazia
parte de um grupo de amigos que, depois da revelação, passou a afastá-lo,
59
deixando-o de fora dos encontros do grupo. Rapidamente ele não mais fazia parte
do grupo, pois o comportamento dele não estava de acordo com o que aquele grupo
considerava aceitável.
Cada exemplo que era apresentado para o grupo deixava clara a metáfora
do apedrejamento. Os mecanismos de controle social saem do nível da abstração e
se materializam nas experiências cotidianas dos alunos. Eles percebiam a existência
de algo semelhante em todos os casos que estavam sendo narrados. Tínhamos
sempre um grupo, coeso, em que existe um padrão, seja ele estético ou de
comportamento, que exige que seus membros o sigam. Esse controle faz com que
aqueles que já fazem parte do grupo não se arrisquem em fugir da norma, pois
correm o risco de perderem legitimidade e no limite serem excluídos. Por outro lado,
esse mesmo controle mantém afastados aqueles de fora do grupo, que, não
possuindo as características exigidas, não conseguem se misturar com seus
integrantes.
As pedras podem ser entendidas, portanto, como a forma como afastamos e
excluímos. O absurdo que parecia àqueles alunos o apedrejamento de uma pessoa,
agora com um olhar metafórico, não soava mais tão absurdo. Vemos, diariamente, a
dinâmica de exclusão, por vezes como vítimas, outras como testemunhas.
Entendendo isso, ressaltamos também que devemos estar atentos às pedras que
nós próprios lançamos. Cabe sempre refletir sobre nossas próprias ações, quando
nós próprios agimos no sentido de recriminar e excluir. A reflexão começa num plano
geral e aproxima-se aos poucos de nossas próprias vidas e ações pessoais.
Repetimos a atividade na quinta-feira da semana seguinte, dia 2 de junho,
quando novamente fomos ao colégio Romário Martins em Piraquara, dessa vez no
3° ano B. A professora Andressa alertou-nos que a turma era mais agitada, e por
vezes menos participativa. Novamente ela fez o trabalho de pedir com antecedência
à turma a colaboração, e novamente chegamos como desconhecidos tendo o
primeiro contato com a turma apenas no momento da atividade. A turma não estava
tão cheia quanto a última, e, durante a atividade, ficou evidente que as meninas
eram mais participativas. Os meninos, apesar do interesse aparente, manifestaram-
se menos.
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Iniciamos novamente com as apresentações e logo fomos à leitura. Essa
sala pareceu-me mais confortável com a leitura em grupo. Desde o início a
participação era bastante generalizada e todos mantiveram-se em silêncio,
respeitando a voz de seus colegas. Novamente ressalto que as meninas
participaram mais, tanto nesse momento de leitura quanto na discussão que a
seguiu. Concluindo o conto a reação foi bastante semelhante à que já havíamos
presenciado na outra turma. O espanto espalhou-se pela turma, que foi pega de
surpresa pela morte da Sra. Hutchinson. No final da atividade uma das meninas
ressaltou que gostou bastante da leitura coletiva, pois ela tinha a sensação de que
eles estavam fazendo algo coletivamente. Ler e ouvir a voz de seus colegas, em
silêncio, trazia a ela um sentimento de colaboração e unidade.
Essa turma possuía duas meninas mais velhas que o restante da turma, que
pareciam mais confortáveis desde o princípio, e exprimiam suas opiniões com
naturalidade, participando ativamente ao longo de toda a atividade. Uma delas foi
responsável pela primeira fala, registrando como era inesperado e chocante a ideia
de um sorteio que tem como prêmio algo negativo. O conto quebra com nossas
expectativas ao trazer um evento que costumamos enxergar como positivo.
Segundo nossa visão, um sorteio terá necessariamente um prêmio positivo como
resultado.
Inicialmente a leitura deles ficou atrelada à ideia de sacrifício, e eles
lembraram da fala do Velho Warner, concluindo que o que motivava os moradores a
cometerem aquele sacrifício periodicamente estava associada à crença de que ele
era necessário para que a colheita fosse bem-sucedida. As ideias de fé e crença
apareceram de diferentes formas, e um dos meninos perguntou qual seria a fé
desses moradores, acreditando que a solução para entendermos as ações deles
estaria no campo da esfera religiosa.
Rapidamente a ideia de tradição apareceu e passamos a trabalhar com ela.
Os alunos concordaram que por vezes fica difícil achar explicações racionais para os
fenômenos que vemos a nossa volta. Justificar a existência daquele ritual parecia
muito mais fácil se considerarmos o aspecto tradicional do mesmo. Lembramos
61
então das passagens do conto que traziam à tona esse aspecto. As atribuições do
responsável pela loteria aparecem conectadas com o aspecto histórico, e a narrativa
nos diz, que apesar de eles terem esquecido partes do ritual, os moradores ainda se
prendiam a determinados aspectos que só se explicavam pelo aspecto tradicional.
Aqueles que haviam sido abandonados, foram deixados de lado com alguma
resistência.
Conversamos sobre como um dos aspectos que marcam rituais tradicionais
é a resistência à transformação, e em nosso texto ela ficava ilustrada pela fala do
Velho Warner, que chamava os moradores das vilas que pensavam em acabar com
a loteria de “bando de maluco”. Essa resistência é a mesma sobre a qual estávamos
conversamos com o 3°A, quando abordamos os mecanismos de controle que
operavam nos diferentes grupos. Perguntamos então se eles conseguiam identificar
momentos quando eles fizeram ou disseram algo que foi encarado como impróprio
por algum dos grupos de que eles faziam parte.
Uma menina nos contou sobre a relação dela com a família de seu marido.
Ela relatou um caso em que ela estava tendo uma discussão com seu parceiro,
numa ocasião em que a família dele estava presente. A “raiva” da moça foi
contestada por sua sogra, que tinha uma leitura do papel da mulher assentada na
visão evangélica tradicional. A mulher deveria ser submissa ao homem, e nada
justificava que ela se impusesse ao marido daquela forma. O ato dela foi
repreendido. A aluna reconheceu que ela estava indo contra a visão tradicional do
papel da mulher na sociedade, e que essa era a ideia corrente na família do rapaz.
Logo outras meninas da sala manifestaram-se, lembrando que é bastante comum
que mulheres que exprimem sua opinião e opõem-se a alguma ideia tradicional são
taxadas de “malucas”, “doidas”, e que estão “surtando”.
Outra moça, mais velha que as outras, trouxe um caso que ocorreu com ela
numa empresa em que trabalhava. Ela era responsável por um setor da empresa e
possuía colaboradores pelos quais ela era responsável. Associando à discussão que
estávamos tendo, ela reconheceu o tradicionalismo na cultura de gestão da
empresa. Alguns dos empregados estavam chegando atrasados ou não
comparecendo em seus turnos, e esperava-se dela, enquanto responsável, que
62
fosse rigorosa, aplicando punições e tratando do problema com rigidez. A empresa
funcionava a partir de uma cultura de autoridade e subordinação. Ela sofreu
objeções quando tentou argumentar que seria melhor ter conversas mais flexíveis
com os empregados, a fim de entender o problema e dar espaço para que eles
manifestassem suas opiniões.
Um terceiro exemplo veio de outra aluna que relatou sua experiência dentro
de um grupo de jovens da igreja de qual ela fazia parte. O tradicionalismo em
questão aqui também envolvia uma questão de gênero, ligada às vestimentas das
mulheres. Dentro da visão do grupo, as mulheres não podiam se vestir de uma
maneira considerada “ousada”. Isso incluía a proibição tácita do uso de joias,
maquiagem e determinado tipos de roupas “vulgares”. Porém, essa jovem nos
explicou, assim como tentou explicar ao grupo em questão, que as roupas que uma
pessoa usa não influenciam no caráter, e que ela acreditava que aos olhos de Deus
isso não seria relevante. A jovem continuou usando seus brincos, e como resultado
foi afastada do grupo, perdendo o relacionamento com os antigos colegas.
Essa mesma jovem alegrou sua professora de Sociologia, que
acompanhava em silêncio o desenrolar da atividade. Após a discussão sobre
coerção social, a aluna, sem que houvéssemos tocado no assunto até então,
associou a discussão que fazíamos aos três tipos de dominação legítima de Weber,
pensando mais especificamente na dominação tradicional, em que o poder se
exerce pelo respeito e fidelidade, diferentemente da dominação legal. A conversa
seguiu com uma fala do professor Rafael, que concordou com a aluna, e fez uma
breve descrição dos tipos de dominação, enquanto os alunos acompanhavam em
silêncio o desenvolvimento de sua explicação.
A surpresa, entretanto, apareceu quando uma das alunas deu sequência à
conversa, tomando a dominação “legal” como exemplo. Para ela, esse tipo de
dominação aparecia, por exemplo, em festas de casamento, pois, nesse caso,
temos algo que todos aceitam por acharem “legal”, divertido. A aluna tomou o
conceito weberiano, ligado à legalidade, à lei, e, através de sua leitura subjetiva,
transformou o “legal” no divertido, bacana. Obviamente, a leitura da aluna é
incorreta; mas podemos aproveitar esse episódio para argumentar que a
63
metodologia que usamos leva os alunos a exporem as suas ideias, argumentos e,
inclusive, leituras subjetivas de conceitos sociológicos. Nesse sentido, encontramos
uma possibilidade concreta de corrigir a leitura equivocada sem a necessidade de
recorrer ao argumento de autoridade. Concluímos o ocorrido fazendo apenas um
reparo para esclarecer o que o autor pretendia mostrar com o tipo puro de
dominação legal e demos sequência.
Em todos os relatos ficava claro que a relação entre tradição, mecanismos
de controle e as consequências do pensamento divergente adquiriam contornos
reais, baseados nas experiências pessoais concretas. A conversa que tivemos foi
proveitosa no sentido de tomar ideias e conceitos da Sociologia, que por vezes
podem parecer distantes aos alunos, ainda mais quando tratados através de
definições abstratas ou quando tratados em relação à “sociedade”, tratada como um
todo, que também contribui para a intangibilidade da discussão. Em nossa atividade,
eles eram encorajados a apresentarem as suas histórias, e os contornos de
definições conceituais eram moldados por cada relato. O resultado de cada um dos
confrontos relatados deixava mais claro para todos que ouviam como os grupos dos
quais fazemos parte têm uma força de coesão que está ligada a uma lógica de
unidade de crenças, e que estamos sujeitos a determinados mecanismos de
controle se queremos fazer parte desses coletivos.
Nessa turma, assim como havia acontecido no 3°A, também a própria escola
foi colocada como objeto de análise. No quadro negro víamos uma fórmula da área
de eletrofísica, deixada pelo professor que havia dado a aula anterior, e a partir
disso pude fazer alguns questionamentos, tendo como objetivo mostrar que mesmo
no ambiente escolar, que frequentamos diariamente, estamos sujeitos ao controle e
às regras. As individualidades eram deixadas de lado naquele ambiente e devíamos
nos adequar a regras de comportamento pré-determinadas. Podíamos observar a
tradição ao olhar para o modo como a sala estava disposta, ou mesmo se
tomássemos o próprio conteúdo disciplinar; ou algum deles havia escolhido por livre
vontade aprender a fórmula que estava exposta agora no quadro? Tradicionalmente
os conteúdos são trazidos pelos professores, que se apoiam num currículo
construído ao longo de anos de idas e vindas, mas não se espera que os alunos
opinem sobre o assunto. Os mecanismos de controle para lidar com os desviantes
64
também são evidentes: começamos com as provas e notas, chegamos
eventualmente a uma reprovação, e por fim, no limite, temos a expulsão do aluno,
tudo para assegurar o enquadramento e a normatização.
Vamos a um último ponto antes de passarmos às conclusões sobre a
experiência. Já destacamos em diferentes momentos a receptividade dos alunos, e
agora comento como foi o final da atividade nas diferentes turmas. Na primeira
turma, 3°A, eu e o orientador desse trabalho terminamos a aula sendo aplaudidos
pelos alunos, o que, às dez e pouco da noite de uma noite gelada e chuvosa como
aquela definitivamente me trouxe uma sensação de tarefa cumprida e a motivação
extra para escrever o relato aqui exposto. Depois de mais de uma hora de atividade
os alunos ainda pediram para que ficássemos mais tempo com eles – se eles
gostavam ou não da professora que daria a aula seguinte não cabe a nós julgarmos
– e, quando perguntamos se eles gostariam que voltássemos para realizar mais
atividades semelhantes àquela, tivemos um grito de “sim” geral como resposta.
Tivemos um retorno semelhante na segunda turma. Os alunos do 3°D também
pediram para que voltássemos com novas atividades, e a professora Andressa
passou-me a seguinte mensagem que ela recebeu, no mesmo dia da atividade, de
uma de suas alunas:
“Oi prof
Td bem?
Então queria dizer que amei a aula de hj
Gostei mt
Sabe posso dizer que fiquei fascinada com a aula
Bom era isso
Boa noite prof”
65
5 COCLUSÃO 5.1 CONCLUSÃO SOBRE A PRÁTICA
No total, as atividades de leitura e discussão foram realizadas em cinco
turmas diferentes: três turmas no colégio Barão do Rio Branco, com o conto Toda
dor tem fim, e duas no colégio Romário Martins, com o conto A loteria. Agradecemos
ao professor Alexandre, por nos ceder as aulas no colégio Barão do Rio Branco em
Curitiba e à professora Andressa, por nos ceder as aulas no colégio Romário Martins
em Piraquara. Acima de tudo, agradecemos aos alunos e alunas que nos receberam
cheios de disposição e que aceitaram nosso convite, participando de nossas leituras
e conversas.
Ficou evidente, a cada atividade que realizávamos, que tínhamos uma
aceitação bastante elevada entre os alunos. No Barão do Rio Branco ouvimos do
professor Alexandre que aquele era o nível mais alto de envolvimento que ele já
havia presenciado em uma das salas. No Romário Martins, ouvi de uma das alunas
que ela nunca havia visto toda a sala em silêncio daquela forma, com todos os
colegas participando da atividade. De fato, apenas em uma das salas, que era mais
concentrada em “panelinhas”, pude notar alguma dispersão dos alunos no momento
do bate-papo, quando eles viravam-se para seu próprio grupo de colegas e
continuavam o debate num círculo mais fechado. Ainda assim, nada que tenha
atrapalhado o desenvolvimento da atividade.
Durante a leitura, rigorosamente, os alunos ficavam em silêncio e ouviam
seus colegas de boa vontade. Foi interessante notar em uma das ocasiões de leitura
de Toda dor tem fim, um aluno que aparentava estar desinteressado quando o
Rafael iniciou a leitura do conto. Ele estava com o conto em mãos, mas brincava
com seu cabelo e parecia bastante interessado no teto da escola. Isso até uma de
suas colegas assumir a leitura. A partir desse momento, o mesmo aluno grudou os
olhos no texto, e pude vê-lo acompanhar a leitura, mexendo seus lábios para
acompanhar quem quer que estivesse lendo no momento.
66
Existe na leitura em conjunto um fator que inevitavelmente desperta atenção
na maioria dos estudantes. Vendo a atitude daquele rapaz, e escutando os
comentários deles sobre a leitura, penso em algumas possibilidades. Primeiramente,
não estamos acostumados a ouvir nossos colega dessa forma. A leitura em voz alta
revela algo de novo sobre aquela pessoa que vemos todos os dias, mas que nunca
havíamos visto naquela posição. Há uma auto-exposição por parte daquele lê, e um
interesse por parte daqueles ao seu redor. Segundo, os estudantes identificam-se
em seus colegas. Se um deles é capaz de ler, todos são capazes. Assim entendi o
comportamento do rapaz que passou a acompanhar a leitura quando uma de suas
colegas resolveu arriscar-se. Se um de meus colegas, alguém que possui as
mesmas capacidades que eu, consegue fazer isso, logo eu também consigo, e
assim consigo colocar-me naquela posição. Percebendo, na imagem de meu colega,
que sou capaz de participar, encurto a distância que leva à participação de fato.
Outro fator de motivação são todas as quebras com aquilo que os alunos
estão acostumado, o fator novidade, que julgo ter um peso considerável. No atual
estágio só podemos imaginar o que seria uma disciplina de Sociologia ministrada
exclusivamente a partir do método aqui utilizado, mas por enquanto nossas
intervenções ainda tem o ar de não-convencional, de oposição ao cotidiano de sala
de aula que eles estão acostumados, e isso acaba nos favorecendo, pois creio que
para os alunos mudanças e tentativas de transformação são naturalmente bem-
vindas.
Dito isso, a primeira quebra evidente é a metodológica. Não temos uma aula
expositiva, em que temos um fluxo de conteúdo sentido professor-aluno – o primeiro
como emissor, o segundo como receptor. O material utilizado, a princípio, não é um
texto sociológico, e não foi pensado inicialmente para o trabalho que realizamos a
partir dele. É, antes de tudo, um texto de literatura, um trabalho no campo da arte, e
não cabe aqui pensar qual seria a finalidade, em essência, de tal trabalho. O que
sabemos é que, excluindo talvez as aulas de literatura e língua portuguesa, textos
como esse não costumam ser levados para sala de aula, e, excluindo agora todas
as disciplinas, pensamos que deve ser um alívio aos alunos ouvir que não serão
cobrados quanto ao texto. Não iremos elaborar questões sobre o enredo, não
estamos interessados nas classificações do tipo de narrador, não teremos respostas
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A, B, C ou D, e, consequentemente, não teremos uma nota ao final da atividade. O
que esperamos deles – e deixamos isso claro desde o início – é uma participação na
leitura e na conversa que a segue. E só. O material é diferente, o que esperamos
deles é diferente, e a dinâmica entre professor e aluno também.
O caráter de conversa, com ares informais, é outro fator que vale ser
comentado. Qual seria o papel do professor quando deixamos claro que não temos
um conteúdo sociológico curricular fixo, um conhecimento, que será transmitido de
professor para aluno, devendo o segundo absorver, registrar, memorizar e reproduzir
esse conteúdo num momento posterior? Baseando-se nas experiências que tive,
acompanhando meu orientador, e eu mesmo desenvolvendo a atividade, posso dizer
que enxergo, nessas situações, o professor como um mediador: alguém que está ali
para manter um norte mais ou menos fixo. De cada comentário surgem mais
perguntas, a cada pergunta que surge, mais envolvimento, e dos relatos descritos
pelos estudantes chegamos a pontos comuns de identificação. O professor está ali
para conectar os pontos, tornar evidente o lugar comum, mais do que criá-lo. Talvez,
mais próxima da ideia convencional que temos de um professor, está o papel de
trazer alguma nomenclatura da área da sociologia, como “coesão social” e
“mecanismo de controle social”, mas essa nomenclatura não é trabalhada a partir de
definições pré-estabelecidas, e sim construída a partir das experiências subjetivas
trazidas para dentro da sala de aula.
Claro, aqui caberiam críticas, se entendermos que o objetivo da Sociologia
em sala de aula é fazer com que o aluno conheça os autores, teorias e conceitos da
área de Ciências Sociais. Pela nossa concepção, entretanto, mais do que conhecer
o vocabulário sociológico, pensamos que a presença da Sociologia no Ensino Médio
está mais associada a trabalhar a capacidade de reflexão do aluno, estando essa
voltada para a realidade vivida por ele em seu cotidiano. Nesse sentido, interessa-
nos menos que um estudante de Ensino Médio seja capaz de nos dar as diferentes
formas como as Ciências Sociais definem a relação entre indivíduo e sociedade, e
mais que ele seja capaz de enxergar, no universo conhecido por ele, como essa
relação ocorre, e que ele tenha consciência de que é possível refletir sobre ela.
Ficou claro para nós que os alunos conseguiram perceber, por exemplo, a
resistência à transformação nos grupos dos quais eles fazem parte, seja na igreja,
68
na família, na escola ou em qualquer outro ambiente. A partir dos diferentes relatos,
ficou evidente que todos eles eram capazes de identificar essa resistência, e unindo
suas vozes, foram capazes de perceber sua disseminação constante e irrestrita.
Seguindo os comentários sobre os diferentes momentos de quebra, cabe
mencionar a humanização do professor que deixamos evidente, beirando a inversão
de papéis em alguns casos. Quando dizíamos que não iríamos avaliá-los,
comentávamos que quem estava sendo avaliado naquele momento éramos nós
mesmos, professores. No meu caso, eu explicava minha posição de aluno dentro da
universidade, e que aquele projeto que eu estava desenvolvendo resultaria numa
nota para mim; e não para eles. De forma descontraída dizia que o professor Rafael
estava ali para me avaliar e pedia a colaboração deles para que eu não fosse
reprovado. Da mesma forma, quando Rafael desenvolvia sua atividade, na minha
presença, do professor Alexandre, e de mais uma aluna da universidade, ele
salientava que nós estávamos ali para avaliá-lo. Essa inversão de papéis parece
algo banal, mas humaniza o professor, gera sorrisos entre os alunos, e uma
identificação, pois estamos falando de um sentimento com o qual eles estão
acostumados.
A quebra com a figura de autoridade do professor, nesse contexto, pareceu-
me bastante benéfica para o andamento da atividade. Frequentemente, pensando
numa aula tradicional, temos a imagem do professor pedindo para que os alunos
fiquem quietos, não interrompam a aula, mantenham-se atentos e concentrados.
Uma das primeiras coisas que falamos, quando estamos prestes a iniciar a leitura, é
que aquele aluno que quisesse poderia inadvertidamente interromper o professor, e
dar sequência ao texto por si mesmo. Novamente temos a inversão, com o aluno
interrompendo o mestre, tirando a palavra e tomando-a para si. Tal comportamento
não é censurado; pelo contrário, é encorajado e acontece durante toda a atividade.
Um último ponto, e talvez o pilar central que guia todo o processo, é a
valorização da subjetividade do aluno. Não é comum para o aluno que suas
experiências pessoais tenham tamanha serventia para o desenvolvimento de uma
aula. Talvez isso seja menos verdade para as disciplinas da área de humanas do
que para as da área de exatas, mas de qualquer forma, a aula expositiva,
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independente da área do conhecimento, pouco contribui para que essa valorização
aconteça. É imensurável a motivação e o impulso adicional que isso traz para o
aluno no decorrer da atividade. A sensação de que a aula está sendo construída a
partir daquilo que ele e seus colegas estão dizendo gera resultados singulares.
Destaco aqui dois resultados possíveis gerados por essa sensação de ser
ouvido. Primeiro o envolvimento já mencionado acima. A cada fala ressurge o ânimo
em levar a discussão adiante. Em segundo lugar, algo que pude perceber nas
diferentes turmas, é que quando somos ouvidos, temos, em contrapartida, alguém
que nos ouve. Aprendemos assim que para sermos ouvidos devemos também ouvir
o que os outros têm a dizer, e isso fica claro já nos primeiros momentos da leitura. O
respeito que os alunos demonstraram pelos seus colegas foi fundamental para o
bom funcionamento de nossa atividade. Cada voz teve seu espaço e foi respeitada.
Nada mais necessário para que um diálogo pleno ocorra: alguém disposto a falar;
outro disposto a ouvir.
5.2 CONCLUSÃO GERAL
O presente trabalho se propôs a elaborar um relato de experiência. A
atividade elaborada, inspirada em metodologia de ensino alternativa, buscou
trabalhar temas sociológicos através da leitura de textos literários.
Num primeiro momento, efetuou-se a análise de documentos oficiais com o
objetivo de argumentar que os mesmos dedicam mais atenção a questões
curriculares do que a questões metodológicas. Sobre isso, acrescente-se, também
argumentamos que o conteúdo específico de Sociologia, dada a sua natureza
delicada, demanda cuidados metodológicos mais atentos. Num segundo momento,
mantendo em mente o aspecto estratégico da metodologia para o trabalho com tais
temas delicados, com o auxílio dos argumentos de Daniel Pennac e Michèle Petit,
elaboramos uma proposta metodológica para fundamentar o trabalho de leitura com
os estudantes.
No caso do relato, trabalhamos com os contos Toda dor tem fim e A loteria,
nesta conclusão julgamos pertinente salientar como principais aspectos positivos: 1.
70
O alto nível de envolvimento e participação dos alunos; 2. A potencialidade contida
na construção do conhecimento a partir da subjetividade do aluno; e 3. Os bons
resultados que uma quebra com metodologias tradicionais de ensino traz para a
educação.
Ao invés de aspectos negativos, podemos apontar limitações: 1. A escola
segue organizada em função do encadeamento linear de conteúdos, incompatível
com nossa metodologia; 2. Trabalhamos com a precariedade do tempo, pois uma
atividade como essa demanda mais do que cinquenta minutos, duração padrão de
uma aula; e 3. Trata-se de atividade cuja a natureza é evidentemente interdisciplinar,
no entanto, as disciplinas permanecem distribuídas de maneira demasiadamente
isolada (a ruptura dessa barreira depende muito mais da boa vontade dos
professores do que de processos institucionalizados).
Ressaltamos que a atividade aqui relatada pressupõe que cada aluno tenha
acesso ao texto que está sendo lido. Trabalhamos com a produção e distribuição de
cópias dentro de uma lógica que dificilmente poderia ser suportada pela estrutura de
nossas escolas públicas. Isso nos leva a perceber que a biblioteca escolar é um
espaço que, ausente deste trabalho, merece a nossa atenção em trabalhos futuros.
Encerrando, cabe uma observação em relação à metodologia no que diz
respeito ao processo de formação de novos professores. Dentro de nosso curso, o
desenvolvimento e o estímulo a metodologias como essa ainda dependem de
motivações individuais, mais que do contato que temos com elas em nossa grade
curricular. Sem esse apoio institucional, continuarão sendo raras as oportunidades e
os futuros professores interessados em trilhar esse caminho.
71
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília:
MEC, 2015. BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Volume 3 – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2006. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. – Parte I – Bases Legais. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 1999. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Parte IV – Ciências Humanas e suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMT, 1999. BRASIL. Ministério da Educação. PCN+ Ensino Médio: Orientações Educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Humanas e Suas Tecnologias. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002. BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CEB nº 3, de 26 de Junho de 1998 - Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Conselho Nacional de Educação. Brasília, DF, 26 jun. 1998. MEUCCI, S.; BEZERRA, R. G. Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção de currículo. Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 1, p. 87-101, 2014. MORAES, A. C. – Ensino de Sociologia: Periodização e Campanha pela Obrigatoriedade. In: Cadernos Cedes. Campinas, vol. 31, n. 85, set-dez, 2011. p. 359-382. BRASIL. Ministério da Educação. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: MEC, 1996. Seção 4, p. 13. OLIVA, A. J., MARTÍNEZ, A. E., POZO, R. M. Tendencias metodológicas en los docentes universitarios que forman al profesorado de primaria y secundaria. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 65, abr-jun 2006. p. 391-409. PENNAC, D. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. SILVA, I. L. F. O Ensino das Ciências Sociais/Sociologia no Brasil: histórico e perspectivas. In: MORAES, A. C. (Coord.). Coleção Explorando o Ensino – Sociologia, Vol. 15. Brasília: Ministério da Educação, 2010.
72
SILVA, T. T. Códigos e reprodução cultural: Basil Bernstein. In: Documentos de Identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. SOUZA, J. V. A. Formação de professores para a Educação Básica – Dez anos de LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
73
ANEXO 1 – Toda dor tem fim – Maria Valéria Rezende Conto retirado do livro do livro Modo de apanhar pássaros à mão. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2006.
Nunca fiz isto antes, mas o teu olhar dolorido desatou meu silêncio. Só eu vi,
só eu sei, sei a profundidade, a altura e a amplitude da tua dor. Eu, sim, a velha tia silenciosa e apagada, tranqüila como uma poça d’água que, não, nunca sofreu sua própria dor de amor, nem ardor de paixão, nunca sentiu punhal de ciúme, só sentimentos muito tênues, ínfimos encantos, pequenos dolorimentos em surdina, dos que nem arranham a pele da alma. Por isso mesmo meus olhos sempre foram claros, completamente videntes, porque nunca houve em mim sentimento soberano que os turvasse, nem desejos prementes que distorcessem os objetos e os fatos, nem expectativa ou ambição que me perturbassem a intenção do olhar; pude permanecer sempre atenta ao mundo fora de mim e por isso sempre vi os pequenos sinais, os detalhes que ninguém mais vê, laivos, leves traços, eflúvios, indícios, alusões, sutilezas, segredos. Vi, compreendi e guardei no meu próprio coração coisas belíssimas e coisas terríveis , tão belas e tão terríveis como só se encontram nos corações humanos. Muitas vezes me perguntei por que fui feita assim, que sentido teme essa minha invencível placidez, essa equanimidade, palavra que encontrei por acaso, num dicionário qualquer, e me ajudou a explicar-me a mim mesma. Sou assim, talvez, porque é preciso que alguém, em algum lugar, contenha o repertório inteiros das paixões humanas sem se deixar aniquilar por elas. Alguém que as conheça e as olhe sem paixão, apenas compaixão, talvez o único sentimento forte o bastante em mim para garantir minha humanidade.
Eu vi, durante anos, fugazes luzes de adoração nos teus olhos antes que
eles baixassem de novo ao chão no seu modo costumeiro, vi discretos rubores, cada vez mais freqüentes à medida que tu crescias, repentina palidez, rápido bater de pálpebras contendo lágrimas quando ela começou a freqüentar festas e grupos de amigos, ouvi teus passos hesitantes diante da porta do quarto dela e soluços abafados atrás da tua própria porta, vi leve roçar de mãos, beijos imperceptivelmente prolongados, seguidos de fugas inexplicadas, vi o brilho do suor em tuas palmas quando ela, inconseqüente, sentava-se no braço da tua poltrona e descansava a mão displicente na tua nunca, vi-te recolher furtivamente guardanapos de papel marcados de batom, frascos de perfume vazios, fotografias rasgadas na cesta de papéis, uma luva abandonada, um nada, vestígios, relíquias. Vi como depois do noivado buscaste o atordoamento naquela música ruidosa e irritante, vi como baixava da noite para o dia o nível do uísque nas garrafas da sala de jantar, como depois tentaste evadir-te mergulhado nos livros ou entregando-te com fúria às lutas de boxe, voltando para casa ferido, castigado. Vi tua angústia cada vez que teu irmão zombava da tua castidade e insinuava suspeitas sobre a tua masculinidade, vi teu amor, teu medo e tua culpa. Digo-te tudo isso agora não para recriminar-te, mas apenas para provar-te que de fato tudo vejo e tudo sei, para que me creias quando te digo que esta dor um dia passa, toda dor tem fim, e os amores loucos também passam. Sabia que te encontraria aqui, no quarto que era dela, e vim correndo, logo que percebi que não estavas na igreja para o casamento de tua irmã.
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Anexo 2 – A Loteria – Shirley Jackson Título original: The Lottery (Tradução: Igor Romko) Publicado originalmente no jornal The New Yorker em 26 de junho de 1948.
A manhã do dia 27 de junho estava sem nuvens e ensolarada, com o fresco calor de um pleno dia de verão. As flores desabrochavam em abundância e a cor da grama era de um verde vívido. Por volta das dez horas, os moradores do vilarejo começaram a se reunir na praça, entre a agência dos correios e o banco. Em algumas vilas existiam tantas pessoas que a loteria levava dois dias e tinha que começar no dia 20 de junho, mas nesse vilarejo, onde só moravam mais ou menos trezentas pessoas, a loteria inteira levava menos de duas horas, então ela podia começar às dez horas da manhã e acabar a tempo de os moradores irem para casa almoçar.
As crianças se reuniam primeiro, claro. As férias de verão da escola haviam iniciado recentemente, e o sentimento de liberdade ainda trazia uma agitação para a maioria delas. Reuniram-se calmamente, no início, mas acabaram, ao fim, explodindo em uma gritaria e brincadeiras por todos os lados. As conversas ainda eram sobre a sala de aula e os professores, sobre livros e castigos. Bobby Martin já tinha enchido seus bolsos de pedras, e os outros garotos logo seguiram seu exemplo escolhendo as pedras mais lisas e redondas. Bobby e Harry Jones e Dickie Delacroix – os moradores pronunciavam o nome como “Dellacroa” – finalmente juntaram uma grande pilha de pedras em um canto da praça e montaram guarda contra o ataque dos outros meninos. As garotas não se misturavam, conversavam entre elas, espiando os meninos por cima dos ombros, enquanto parte das crianças menores rolavam no chão e outras ficavam agarradas às mãos de seus irmãos ou irmãs mais velhas.
Logo os homens começaram a se reunir, de olho em suas próprias crianças, falando de plantio e chuva, tratores e impostos. Agruparam-se num canto, longe da pilha de pedras. As piadas eram quietas e eles sorriam; mais do que davam risadas. As mulheres, usando velhos vestidos desbotados e suéteres, chegaram logo após os companheiros. Todos cumprimentavam uns aos outros e trocavam uma fofoca ou outra enquanto elas se juntavam aos maridos. Logo, as mulheres, ao lado dos maridos, começaram a chamar seus filhos e filhas, e eles vieram de má vontade, tendo que ser chamados quatro ou cinco vezes. Bobby Martin esquivou-se dos braços da mãe e correu dando risada em direção à pilha de pedras. O pai dele ergueu a voz com um tom ríspido, e Bobby voltou rapidamente e meteu-se no seu lugar, entre o pai e o irmão mais velho.
A loteria era conduzida – assim como as danças na praça, o clube de
jovens, o programa de Halloween – pelo Sr. Summers, que tinha tempo e energia para dedicar às atividades cívicas. Ele era um homem alegre de rosto arredondado, responsável pelo negócio de carvão, e as pessoas sentiam pena dele porque não tinha filhos, e sua esposa era uma mulher mal-humorada. Quando chegou à praça, carregando a caixa preta de madeira, os moradores do vilarejo trocaram sussurros entre eles, e ele acenou e cumprimentou. “Um pouco atrasado hoje, pessoal.” O diretor dos correios, Sr. Graves, seguia-o, carregando um banquinho de três pernas, que foi posicionado no centro da praça, e o Sr. Summers colocou a caixa preta em cima dele. As pessoas mantiveram uma certa distância, deixando um espaço entre elas e o banco, e quando o Sr. Summers disse, “Algum de vocês quer me dar uma mão?”, houve um pouco de hesitação até que dois homens, o Sr. Martin e seu filho
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mais velho, Baxter, se juntaram a ele seguraram a caixa em cima do banco, enquanto o Sr. Summers remexia os papéis dentro dela.
Toda a parafernália que era originalmente usada para a loteria tinha se
perdido muito tempo atrás, e a caixa preta que agora estava em cima do banco tinha começado a ser utilizada mesmo antes de ter nascido o homem mais velho da vila, o Velho Warner. Sr. Summers frequentemente comentava com os habitantes da vila a ideia de fazer uma caixa nova, mas ninguém queria abandonar nem mesmo aquele resto de tradição que era representado pela caixa preta. Existia uma história de que a caixa atual tinha sido feita com alguns pedaços da antiga caixa que era usada antes dela, a caixa que havia sido construída quando as primeiras pessoas se estabeleceram na região para fundar aquele vilarejo. Todo ano, após a loteria, o Sr. Summers começava a falar de novo sobre uma caixa nova, mas o assunto sempre acabava sendo deixado de lado sem que nada fosse feito. A caixa preta ficava mais gasta a cada ano: agora ela não era mais completamente preta, e sim lascada ao longo de uma das laterais, tornando possível ver a cor original da madeira, além de ela estar desbotada e manchada em outros pontos.
O Sr. Martin e seu filho mais velho, Baxter, seguraram firme a caixa preta em
cima do banco até o Sr. Summers terminar de revirar completamente os papéis lá dentro. Como grande parte do ritual tinha sido esquecido ou deixado de lado, o Sr. Summers tinha conseguido substituir os pedaços de madeira que haviam sido usados por gerações por pedaços de papel. Ele argumentava que pedaços de madeira eram bastante válidos quando a vila era pequena, mas agora que a população ultrapassava trezentas pessoas e provavelmente seguiria crescendo, era necessário usar algo que caberia mais facilmente dentro da caixa preta. Na noite anterior à loteria, o Sr. Summers e o Sr. Graves tinham cortado os pedaços de papel e os colocado dentro da caixa, que foi então levada para o cofre da empresa de carvão do Sr. Summers e trancada até a manhã seguinte, quando ele estava pronto para levá-la para a praça. Durante o resto do ano ela era guardada, às vezes em um canto, às vezes em outro. A caixa havia passado um ano no celeiro do Sr. Graves e outro ano encostada numa sala dos correios. Por vezes ela era colocada numa prateleira da mercearia Martin e deixada lá.
Havia muitas coisas que deviam ser feitas antes de o Sr. Summers declarar
a loteria iniciada. As listas deviam ser montadas – de chefes de família, chefes das casas de cada família, membros de cada casa em cada família. Também havia o juramento do Sr. Summers enquanto representante oficial da loteria, que deveria ser ouvido pelo diretor dos correios. Tempos atrás, algumas pessoas lembravam, também havia algum tipo de recital encarregado ao oficial da loteria. Um canto descuidado e desafinado era sempre recitado, ano a ano. Algumas pessoas acreditavam que o oficial da loteria tinha que ficar parado enquanto narrava ou cantava os versos, outros acreditavam que ele devia caminhar entre as pessoas, mas há muitos anos essa parte do ritual havia sido abandonada. Também já havia existido uma saudação ritual que o oficial da loteria tinha de usar ao se dirigir a cada pessoa que vinha sacar da caixa, mas isso também havia mudado com o tempo, e agora as pessoas acreditavam que era apenas necessário que o oficial falasse com cada pessoa que se aproximava. O Sr. Summers era muito bom em tudo isso, vestindo sua limpa camisa branca e calça jeans azul, com uma das mãos
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descansando relaxada sobre a caixa preta, ele parecia bastante adequado e importante enquanto conversava sem parar com o Sr. Graves e com a família Martin.
Assim que o Sr. Summers finalmente parou de falar e se virou para os
moradores reunidos, a Sra. Hutchinson surgiu correndo no caminho que levava até a praça, com o suéter jogado por cima dos ombros, e enfiou-se no fundo do grupo reunido. “Esqueci completamente que dia era hoje”, ela disse olhando para a Sra. Delacroix, ao seu lado, e ambas abriram leves sorrisos. “Achei que meu marido tava nos fundos empilhando lenha”, a Sra. Hutchinson continuou, “Olhei pela janela e as criança tinha sumido, aí que lembrei que era dia vinte e sete e saí correndo”.
A Sra. Hutchinson esticou o pescoço para enxergar por cima da multidão e
avistou o marido e os filhos de pé à frente do grupo. Ela deu um tapinha no braço da Sra. Delacroix para se despedir e começou a se enfiar entre as pessoas, indo em direção à sua família. De bom humor as pessoas abriam caminho para que ela passasse: duas ou três pessoas falaram, erguendo as vozes para que fossem ouvidas pelos outros moradores, “Aí vem sua patroa, Hutchinson!”, e “Bill, ela apareceu finalmente!”. A Sra. Hutchinson alcançou seu marido, e o Sr. Summers, que estava aguardando, disse animado. “Achei que a gente ia ter que seguir sem você, Tessie.” Com um largo sorriso a Sra. Hutchinson respondeu: “Você queria que eu deixasse a louça suja na pia, Joe?”, e um leve riso correu entre os habitantes da vila que voltavam para suas posições depois da chegada da última moradora.
“Vamos lá”, disse Sr. Summers em tom sério, “É melhor começar, acabar
com isso de uma vez, aí a gente consegue voltar pro trabalho. Tá faltando alguém?” “Dunbar”, várias pessoas disseram. “Dunbar. Dunbar.” O Sr. Summers consultou sua lista. “Clyde Dunbar”, ele leu. “É verdade. Ele
quebrou a perna, não foi? Quem vai tirar pra ele?” “Acho que eu”, uma mulher respondeu, e o Sr. Summers se virou para
conseguir enxergá-la. “Esposa tirando no lugar do marido”, disse Sr. Summers. “Você não tem um filho crescido pra fazer isso por você, Janey?” Embora o Sr. Summers e todo o resto dos moradores soubessem a resposta perfeitamente, era atribuição do oficial da loteria fazer esse tipo de perguntas explicitamente. O Sr. Summers esperou com um ar educado e de interesse enquanto a Sra. Dunbar respondia.
“O Horace só tem dezesseis anos”, disse a Sra. Dunbar desanimada. “Acho
que tenho que ir no lugar do marido esse ano.” “Certo”, concordou o Sr. Summers. Ele fez uma anotação na lista que tinha
nas mãos e então perguntou: “Garoto Watson vai tirar esse ano?” Um rapaz alto levantou a mão no meio da multidão. “Aqui”, ele chamou. “Vou
tirar pra mim e pra minha mãe.” Ele piscou nervosamente os olhos e abaixou a cabeça enquanto várias vozes se erguiam no meio do grupo dizendo coisas como: “Bom rapaz, Jack” e “Bom ver que tua mãe tem um homem pra fazer isso”.
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“Bem”, disse o Sr. Summers, “Acho que agora acabou. O Velho Warner apareceu?”.
“Aqui”, respondeu uma voz, e o Sr. Summers assentiu balançando a cabeça. Um silêncio brusco tomou conta da multidão. O Sr. Summers pigarreou e
analisou a lista. “Todos prontos?”, ele perguntou. “Pois bem, vou ler os nomes – chefes de família primeiro – e os homens vem até aqui e tiram um papel de dentro da caixa. Fique com o papel dobrado na sua mão sem olhar até que todos tenham tirado também. Tá claro?”
As pessoas haviam feito isso tantas vezes que eles mal prestavam atenção
nas instruções – a maioria estava quieta, molhando os lábios, sem olhar ao redor. Então o Sr. Summers levantou uma das mãos pro alto e disse: “Adams”. Um homem se separou do resto da multidão e foi até ele. “Olá, Steve”, disse Sr. Summers, e o Sr. Adams respondeu: “Oi, Joe”. Eles sorriram um para o outro em tom sério e com certo nervosismo. Na sequência o Sr. Adams esticou o braço para dentro da caixa preta e tirou um papel dobrado. Ele o agarrou firmemente por um dos cantos enquanto voltava apressado para o seu lugar no meio dos outros, parando próximo à sua família, sem olhar para a mão.
“Allen”, chamou o Sr. Summers. “Anderson ... Bentham.” “Parece que nem existe mais intervalo entre as loterias”, disse a Sra.
Delacroix para a Sra. Graves na fileira do fundo. “Parece que foi semana passada que a gente passou pela última loteria.” “O tempo passa ligeiro mesmo”, respondeu a Sra. Graves. “Clark... Delacroix.” “Lá vai meu marido”, disse a Sra. Delacroix. Ela prendeu a respiração
assistindo ao marido caminhar até a frente. “Dunbar”, disse o Sr. Summers, e a Sra. Dunbar caminhou com passos
firmes até a caixa enquanto uma das mulheres disse “Vamo, Janey”, e outra disse, “Lá vai ela”.
“Nós somos os próximos”, falou a Sra. Graves. Ela assistia enquanto o Sr.
Graves se aproximou pela lateral da caixa, cumprimentou o Sr. Summers de forma solene e selecionou um pedaço de papel de dentro dela. Agora já se viam, espalhados pela multidão, homens com pequenos pedaços de papel dobrados em suas grandes mãos, revirando-os entre os dedos com ansiedade. A Sra. Dunbar e seus dois filhos estavam juntos, ela segurando o pedaço de papel.
“Harburt... Hutchinson.” “Vai logo, Bill”, disse a Sra. Hutchinson, e as pessoas ao redor dela riram.
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“Jones.” “Andam dizendo por aí”, disse o Sr. Adams para o Velho Warner, que estava
ao seu lado, “que pros lados da vila norte eles tão pensando em acaba com a loteria”.
O Velho Warner resmungou. “Bando de maluco”, ele disse. “Esses jovem,
nada tá bom pra eles. Logo eles vão tá querendo volta a mora numa caverna, ninguém trabalha mais, e segue vivendo assim um tempo. Tinha um ditado que dizia: ‘Loteria acontece, colheita floresce’. Desse jeito vamo acaba todo mundo comendo ensopado de moruge e noz de carvalho. A loteria sempre existiu”, e ainda adicionou de mau humor, “já tá ruim vê esse moleque Joe Summers, lá de brincadeira com todo mundo”.
“Tem lugar que já acabô com a loteria”, retrucou o Sr. Adams. “Isso aí só dá problema”, falou o Velho Warner decidido. “Bando de
moleque maluco.” “Martin.” E Bobby Martin assistiu seu pai ir à frente. “Overdyke... Percy.” “Queria que eles apurasse”, falou a Sra. Dunbar para seu filho mais velho.
“Queria que eles apurasse.” “Eles tão quase no fim”, respondeu o filho dela. “Fica pronto pra corre contá pro pai”, disse a Sra. Dunbar. O Sr. Summers chamou seu próprio nome e deu um passo firme à frente,
tirando um papel de dentro da caixa. Então ele chamou: “Warner”. “Já tem setenta e sete anos que participo da loteria”, falou o Velho Warner
enquanto atravessava a multidão. “Setenta e sete.” “Watson.” O garoto alto atravessou desajeitado a multidão. Alguém disse,
“Não fique nervoso, Jack”, e o Sr. Summers disse, “Vá com calma, rapaz”. “Zanini.” Depois disso houve uma grande pausa, todos seguraram a respiração, até
que o Sr. Summers, erguendo seu pedaço de papel no ar, disse, “Certo, pessoal”. Por um momento ninguém se mexeu, e então todos os pedaços de papel foram abertos. De repente todas as mulheres começaram a falar de uma só vez, perguntando, “Quem foi?”, “Quem tirou?”, “Foram os Dunbars?”, “Foram os Warsons?”. Logo as vozes começaram a dizer, “É o Hutchinson. É o Bill”, “Bill Hutchinson tirou o papel”.
“Vai contá pro seu pai”, a Sra. Dunbar ordenou ao filho mais velho.
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As pessoas começaram a esticar os pescoços para encontrar os Hutchinsons. Bill Hutchinson estava parado, quieto, encarando o papel em sua mão. Do nada Tessie Hutchinson berrou para o Sr. Summers: “Você não deu tempo suficiente pra ele tira o papel que ele queria! Eu vi tudo! Não foi justo!”.
“Não exagera, Tessie”, respondeu a Sra. Delacroix, e o Sr. Graves disse,
“Todo mundo teve a mesma chance”. “Cala a boca, Tessie”, falou Bill Hutchinson num tom seco. “Certo, pessoal”, disse o Sr. Summers. “Chegamos até aqui bastante rápido,
e agora temos que nos apressar um pouco mais pra acabar na hora.” Ele consultou sua próxima lista. “Bill”, ele disse, “Você tira para a família Hutchinson. Tem alguma outra casa na família?”.
“Tem Don e Eva!”, se intrometeu a Sra. Hutchinson. “Eles também tem que
tira a sorte!” “Filhas participam com as famílias dos maridos, Tessie”, disse o Sr.
Summers gentilmente. “Você e todos aqui sabem muito bem disso.” “Não foi justo”, reclamou Tessie. “Acho que não, Joe”, respondeu finalmente Bill Hutchinson desanimado.
“Minha filha tira com a família do marido dela, é assim mesmo. E eu não tenho mais família fora as crianças.”
“Então, no que diz respeito ao sorteio da família, só tem você”, explicou o Sr.
Summers, “E no que diz respeito às casas da família, também é só você. Certo?”. “Certo”, respondeu Bill Hutchinson. “Quantas crianças, Bill?”, perguntou o Sr. Summers formalmente. “Três”, respondeu Bill Hutchinson. “Tem o Bill Jr., a Nancy e o pequeno Dave. E a Tessie e eu.” “Está certo então”, falou Sr. Summers. “Harry, você pegou os bilhetes deles
de volta?” O Sr. Graves concordou com a cabeça e levantou os pedaços de papel.
“Pode colocar eles dentro da caixa então”, ordenou o Sr. Summers. “Pegue o do Bill e coloque aí também.”
“Acho que tem que começa tudo de novo”, disse num tom calmo a Sra.
Hutchinson, se segurando pra não elevar a voz. “Tô te falando que não foi justo. Você não deu tempo suficiente pra ele escolhê. Todo mundo viu.”
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O Sr. Graves já havia juntado os cinco pedaços de papel e os colocado dentro da caixa, e assim ele jogou todos os papéis restantes no chão, que foram pegos pela brisa e levados embora junto com o vento.
“Escuta, todo mundo”, a Sra. Hutchinson suplicava às pessoas à sua volta. “Pronto, Bill?”, perguntou o Sr. Summers, e Bill Hutchinson, olhando de
relance para a esposa e os filhos, concordou com a cabeça. “Lembre”, disse Sr. Summers, “peguem os papéis e fiquem com eles
dobrados até que cada pessoa tenha pegado um. Harry, você ajuda o pequeno Dave”. O Sr. Graves pegou a mão do garotinho, que foi de boa vontade com ele até a caixa. “Pegue um papel de dentro da caixa, rapazinho”, disse o Sr. Summers. O menino colocou a mão pra dentro da caixa e abriu um sorriso. “Pegue só um papel”, orientou o Sr. Summers. “Harry, você segura pra ele.” O Sr. Graves pegou a mão da criança e tirou o papel dobrado do punho apertado e o segurou enquanto o pequeno Dave, parado ao seu lado, olhava para ele tentando entender o que estava acontecendo.
“Agora a Nancy”, disse o Sr. Summers. Nancy tinha doze anos, e seus
colegas de classe respiravam fundo enquanto ela foi até a frente balançando a saia e tirou um papel com delicadeza de dentro da caixa. “Bill Jr.”, disse o Sr. Summers, e Billy, com o rosto vermelho e os pés desajeitados, quase derrubou a caixa quando foi tirar o papel. “Tessie”, disse Sr. Summers. Ela hesitou por um momento, olhando à sua volta com um olhar desafiador, e então apertou os lábios e foi até a caixa, arrancou um papel de dentro dela e o segurou com as mãos para trás.
“Bill”, disse Sr. Summers, e Bill Hutchinson colocou a mão dentro da caixa,
tateou um pouco, e finalmente tirou a mão de dentro, segurando o último pedaço de papel.
A multidão estava quieta. Uma garota sussurrou: “Espero que não seja a
Nancy”, e o som do sussurro atravessou a multidão. “Não é do jeito que era antes”, disse o Velho Warner claramente. “Esse povo
não é mais como era antes.” “Certo”, continuou Sr. Summers. “Abram os papéis. Harry, você abre o do
pequeno Dave.” O Sr. Graves abriu o pedaço de papel e um suspiro generalizado passou
pela multidão quando ele levantou o papel, e todos conseguiram ver que estava em branco. Nancy e Bill Jr. abriram seus papéis ao mesmo tempo e ambos ficaram alegres e sorriram, virando-se para a multidão e erguendo seus pedaços de papéis acima das cabeças.
“Tessie”, disse o Sr. Summers. Houve uma pausa, e então o Sr. Summers
olhou para Bill Hutchinson, e Bill desdobrou e mostrou seu papel. Estava em branco.
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“Sobrou a Tessie”, disse o Sr. Summers, e sua voz ficou calma. “Nos mostre o papel dela, Bill.”
Bill Hutchinson foi até a esposa e arrancou à força o pedaço de papel da
mão dela. Havia uma marca preta nele, a marca preta que o Sr. Summers tinha feito na noite anterior com um lápis grosso no escritório da empresa de carvão. Bill Hutchinson ergueu o papel para que os outros pudessem ver, e todos ficaram agitados.
“Certo, pessoal”, disse o Sr. Summers. “Vamos acabar logo com isso.” Embora os moradores da vila tivessem esquecido do ritual e perdido a caixa
preta original, eles ainda se lembravam de como usar pedras. A pilha de pedras que os garotos haviam juntado antes estava preparada. Havia pedras no chão junto dos pedaços de papel tirados de dentro da caixa, que eram aos poucos levados pelo vento. Delacroix escolheu uma pedra tão grande que teve que usar as duas mãos para levantá-la, e então se virou para a Sra. Dunbar. “Vamo lá”, ela disse. “Se apresse.”
A Sra. Dunbar carregava pequenas pedras nas duas mãos e disse,
respirando com dificuldade, “Sem chance de eu consegui corrê. Você vai tê que ir na frente e eu te alcanço depois”.
As crianças já estavam com suas pedras, e alguém entregou ao pequeno
Dave Hutchinson algumas pedras menores. Nesse momento Tessie Hutchinson já estava no centro de um espaço que
havia sido liberado pelos outros, e ela levantava suas mãos desesperada enquanto os moradores da vila iam para cima dela. “Não é justo!”, ela gritava. Uma pedra atingiu a lateral de sua cabeça. O Velho Warner dizia, “Vamo, vamo lá, pessoal!”. Steve Adams estava à frente da multidão com o Sr. Graves ao seu lado.
“Não é justo, isso não tá certo!”, gritava a Sra. Hutchinson, e logo eles a
cercaram por todos os lados.