solilóquio dantesco

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA, LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS SOLILÓQUIO DANTESCO MARCOS JOSÉ MENEZES CURITIBA - PR 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA, LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

SOLILÓQUIO DANTESCO

MARCOS JOSÉ MENEZES

CURITIBA - PR 2006

MARCOS JOSÉ MENEZES

SOLILÓQUIO DANTESCO

Monografia apresentada como requisito parcial para a conclusão do Curso de Letras, Italiano, na modalidade de Bacharelado em Estudos Literários, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientado pelo Prof. Fabiano Dalla Bona

CURITIBA – PR 2006

SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................................................2 Vida e Obra de Dante Alighieri ..................................................................................................5

1.1 Dante e o seu tempo .........................................................................................................6 1.2 Cronologia Sumária .........................................................................................................8

A Divina Comédia ....................................................................................................................12 2.1 O Inferno ........................................................................................................................13 2.2 O Purgatório ...................................................................................................................14 2.3 O Paraíso ........................................................................................................................15 2.4 A Lei do Contrapasso.....................................................................................................15

Influências na Obra de Dante....................................................................................................17 3.1 Amor Cortesão ...............................................................................................................18 3.2 Marianismo.....................................................................................................................19 3.3 Tomismo.........................................................................................................................21

Literatura, sexo, pecado e a imagem da mulher na Idade Média..............................................25 4. 1 Literatura na Idade Média .............................................................................................26 4. 2 Dolce Stil Nuovo...........................................................................................................27 4. 3 Pecado ...........................................................................................................................28 4. 4 Classificação dos pecados .............................................................................................29 4. 5 A imagem da mulher na Idade Média ...........................................................................29

O Canto V do Inferno ...............................................................................................................32 Considerações Finais ................................................................................................................41 Referências................................................................................................................................43

2

INTRODUÇÃO

Parafraseando o título de uma obra muito conhecida de Italo Calvino, “Por que ler

os clássicos?”, podemos nos perguntar “Por que analisar os clássicos?”, tarefa um tanto

quanto árdua, ainda mais após tudo o que já foi dito por tantas ilustres figuras do cenário da

critíca literária em não menos ilustres trabalhos.

O que pretendo, na medida do possível e do aceitável, com a consciência e a

pretensão de trazer um mínimo de novidade e de dizer o não dito, é traçar um esboço de uma

parte delimitadíssima da obra de Dante, levando em consideração certos aspectos sociais,

culturais, políticos e históricos, sem contudo esquecer o reflexo de tudo isso na obra e vice-

versa, e muito menos cair na armadilha das análises tanto histórica quanto sociologicamente

excessivamente orientadas. Lanço mão de uma abordagem multidisciplinar, consciente das

suas facilidades e, sobretudo, das suas limitações.

O foco da análise será a discussão da visão, vigente na época de Dante, da mulher

e sua inter-relação com o pecado e a sexualidade, e de como, na obra do autor, os conceitos

analisados se estruturam e, ou, estruturam a obra de alguma maneira. Arriscamos, também,

uma análise do quanto há de subversão nos conceitos e nos assuntos acima citados, malgrado

as convicções pessoais, culturais, dogmáticas e religiosas de Dante, nos textos do ilustre autor

(acima de tudo) florentino.

Parece óbvio ler a Divina Comédia levando-se em conta os contextos histórico,

social, cultural, religioso e autobiográfico, e afirmamos que isto não poderia ser diferente.

Porém, o que torna a obra singular é a possibilidade de leituras permitidas nas quais entram

em jogo a multiplicidade de sentidos e a intertextualidade com séculos de uma tradição

literária ocidental e, talvez, quem pode afirmar com certeza?, com uma tradição ainda mais

longínqua – referimo-nos aqui aos nem tão recentes estudos que afirmam a existência de um

diálogo entre a tradição islãmica1 e o texto dantesco.

1 Não se pode ainda descartar uma possível influência de fontes muçulmanas sobre Dante, pois naquela época

muito da cultura islâmica estava sendo traduzido e estudado na Cristandade Latina. O próprio Dante diversas vezes citou Averróis e Avicena, comentadores árabes de Aristóteles, através dos quais, aliás, o Poeta tomou contato com boa parte da obra do filósofo grego. De fato, entre os muçulmanos havia várias estórias de viagens ao Céu e ao Inferno, inclusive uma em que o narrador é recebido às portas do Paraíso por uma huri (virgem sagrada) que serve de guia. Noutra obra, Kitab el Isra (Livro da Viagem Noturna), escrita uns oitenta anos antes da Comédia, há notáveis semelhanças com o livro do poeta florentino. Do mesmo místico

3

A presente monografia estrutura-se, com o objetivo de expor conceitos, idéias e

reflexões da maneira mais clara e econômica possível, em quatro módulos básicos: um breve

apanhado histórico e biográfico do autor buscando uma contextualização de vida e obra nas

esferas política, religiosa e cultural, além de uma esquematização resumida dos elementos que

compõe a sua principal obra, a Divina Comédia, no primeiro e segundo módulos; um terceiro

módulo apresenta as influências e os assuntos mais caros ao florentino a ponto de nortearem a

elaboração de sua Comédia, com o objetivo de assentar alguns conceitos, que, embora

expostos de maneira breve, mais uma vez buscando clareza e economia, são fundamentais

para um entedimento mais amplo da obra do poeta; no quarto módulo são apresentados certos

elementos sócio-histórico-culturais que propiciam a formação de um arcabouço contextual

que auxilia na justificativa de determinadas posturas assumidas ao longo da exposição do

assunto; e, finalmente, o quinto módulo, no qual, através da leitura atenta do canto V do

Inferno, tentaremos responder a uma série de questões relacionadas a assuntos como o

pecado, o sexo e a imagem da mulher na Idade Média, e, ainda, analisaremos as possíveis

subervesões de conceitos e, em uma referência ao título deste trabalho, refletiremos, revendo

as marcas deixadas na fração correspondente do texto que narra o diálogo entre o poeta e a

jovem adúltera, sobre o quanto há do autor no personagem, sobre o quanto há de Francesca

em Dante. A preocupação de inserir, apesar do amparo de críticos literários do calibre de um

Francesco de Sanctis, uma leitura e um olhar pessoais, está presente em todo o trabalho, na

medida do possível.

De qualquer maneira, e a despeito de tudo o que já foi dito sobre o poeta

florentino, tendemos, pois, a concordar com T.S. Eliot (1888-1965), ao dizer, no seu ensaio

sobre o autor - no qual discute a “facilidade” da poesia dantesca, numa alusão a uma

universalidade presente na obra do autor e a uma espécie de, na falta de melhor expressão,

paneuropeísmo não tão apreensível em outros autores do continente - que “o que é

surprendente na poesia de Dante é que ela é, em certo sentido, de leitura extremamente fácil.

É uma prova (uma prova positiva, não afirmo que seja sempre válida na negativa) de que a

verdadeira poesia pode comunicar antes de ser entendida”. (ELIOT, 1989, p. 64)

hispano-árabe Mohiddin Ibn Arabi encontramos noutro trabalho uma descrição do Céu e do Inferno como estando acima e abaixo de Jerusalém, com cada um deles dividido em nove círculos. (FRANCO JR., 2000, p. 67)

4

Ballata, i' voi che tu ritrovi Amore, e con lui vade a madonna davante, sì che la scusa mia, la qual tu cante, ragioni poi con lei lo mio segnore. Tu vai, ballata, sì cortesemente, che sanza compagnia dovresti avere in tutte parti ardire; ma se tu vuoli andar sicuramente, retrova l'Amor pria, ché forse non è bon sanza lui gire; però che quella che ti dee audire, sì com'io credo, è ver di me adirata: se tu di lui non fossi accompagnata, leggeramente ti faria disnore. Con dolze sono, quando se' con lui, comincia este parole, appresso che averai chesta pietate: «Madonna, quelli che mi manda a vui, quando vi piacia, vole, sed elli ha scusa, che la m'intendiate. Amore è qui, che per vostra bieltate lo face, come vol, vista cangiare: dunque perché li fece altra guardare pensatel voi, da che non mutò 'l core». Dille: «Madonna, lo suo core è stato con sì fermata fede, che 'n voi servir l'ha 'mpronto onne pensero: tosto fu vostro, e mai non s'è smagato». Sed ella non ti crede, dì che domandi Amor, che sa lo vero: ed a la fine falle umil preghero, lo perdonare se le fosse a noia, che mi comandi per messo ch'eo moia, e vedrassi ubidir ben servidore. E dì a colui ch'è d'ogni pietà chiave, avante che sdonnei, che le saprà contar mia ragion bona: «Per grazia de la mia nota soave reman tu qui con lei, e del tuo servo ciò che vuoi ragiona; e s'ella per tuo prego li perdona, fa che li annunzi un bel sembiante pace». Gentil ballata mia, quando ti piace, movi in quel punto che tu n'aggie onore.

DANTE ALIGHIERI

5

CAPÍTULO I

VIDA E OBRA DE DANTE ALIGHIERI

6

1.1 DANTE E O SEU TEMPO

Dante Alighieri nasce em maio, ou junho, como preferem alguns dos estudiosos

da vida do poeta, no ano de 1265, em uma Florença imersa em intensa movimentação social,

política e cultural. Pertencente a uma família da pequena nobreza, estuda, muito

provavelmente, junto aos dominicanos, em Santa Maria Novella, ou, talvez, junto aos

franciscanos, em Santa Croce, os quais, naquele tempo, tinham acesso aos laicos. A leitura

dos filósofos antigos completa esta educação regular2, além do diálogo mantido com os

intelectuais da sua geração, como os poetas Guido Cavalcanti (1255-1300) e Cino da Pistoia

(1270-1337 c.), entre outros, e com os da geração precedente. Sobre todos, reconhecerá como

mestre, o poeta e preceptor, Brunetto Latini (1220-1294 c.), como atestam os versos do Canto

XV do Inferno. É possível, mas não foi provado, que Dante tenha frequentado os cursos da

Universidade de Bolonha.

A cidade de Florença, na época do nascimento de Dante, é o principal centro

econômico e financeiro da Toscana, mas também é um local marcado por discórdias e lutas

entre facções rivais. Se, na sua origem, tudo não passava de lutas entre as famílias florentinas,

velozmente os conflitos assumem um tom político. Assim como em outros lugares do centro-

norte da península italiana, os partidários do Império, os gibelinos, e os partidários do Papado,

os guelfos, disputavam, em Florença, a total e incontestável hegemonia da cidade, fato que, de

tempos em tempos, significava matança e exílio da parte adversária. O poeta faz uma alusão a

estes episódios no canto X do Inferno: Dante encontra Farinata degli Uberti, líder do partido

gibelino, que recorda os anos de violentas discórdias civis em Florença e reconhece em Dante

o descendente de uma das famílias adversárias de seus antepassados e do seu partido. Por

duas vezes, recorda Farinata, os guelfos, juntamente com os Alighieri, foram afastados de

Florença (em 1249 e em 1260, após a sangrenta batalha de Montaperti). Mas por duas vezes –

rebate Dante – eles retornaram (em 1251 e em 1266), ao passo que, observa Dante,

“'Expulsos, respondi, 'mas renitentes/foram, voltando de uma e doutra prova,/e essa arte não 2 Certamente ele cumpriu os dois estágios básicos da educação medieval, o trivium e o quadrivium, que

compunham as chamadas setes ates liberais herdadas de Roma. No primeiro estudava-se gramática (ou seja, língua latina e literatura), retórica (estilística e história) e dialética (na verdade, uma iniciação filosófica). No segundo, aritmética, geometria (incluindo geografia), astronomia (com astrologia e física) e música (conforme a tradição pitagórica, estudo das freqüências e intervalos, das relações de consonância que são relações matemáticas). (FRANCO JR., 2000, p. 52)

7

tiveram vossas gentes'”3. (ALIGHIERI, 1998, p. 81). Após a derrota e a morte do filho de

Frederico II, Manfredi, pelas tropas de Carlos D'Anjou, aliado do papa (1266), os guelfos

triunfaram por toda a Itália: como consequência, os Uberti e os outros líderes gibelinos não

retornaram mais a Florença.

Resolvido o conflito ideológico, no interior de Florença, com o exílio dos

imperiais (gibelinos), a vida da Comuna, ao fim do século XIII, permaneceu, de qualquer

maneira, caracterizada por fortes tensões sociais. A história da época de Dante é, portanto, a

época de um longo conflito para obter poder político, conflito que opôs (e de tempos em

tempos, uniu, em frágeis alianças) o “povo miúdo” dos trabalhadores, reagupados nas “artes

menores”, os “grandes”, constituídos pelos burgueses e pelos grandes comerciantes (trata-se

da parte mais dinâmica e ativa da população, pertencente às “artes maiores”), e “os

magnatas”, isto é, os nobres e proprietários de terras. A superior cultura e o fato de não

pertencer a uma família registrada entre as consideradas “magnatas”, as quais, por vontade do

“povo miúdo”, eram impedidas de assumir os cargos públicos, possibilitam a Dante, na

metade dos anos noventa, participar ativamente no governo da Comuna.

Para Florença este é um tempo de tormentas por causa das lutas entre as facções

dos guelfos Brancos – reunidos em torno da família dos Cerchi – e dos guelfos Negros. Com

os primeiros, defensores do “povo miúdo” e das magistraturas municipais, enfileira-se Dante.

Em um primeiro momento, é um entre tantos, nas assembléias que aproximam o Capitão do

Povo e os Priores; em seguida, com um prestígio crescente, recebe encargos cada vez mais

importantes. Em 1300 é eleito Prior. Em 1301 recebe um encargo muito delicado: o papa

Bonifácio VIII tem na mira a rica cidade de Florença e deseja submetê-la ao seu próprio poder

graças ao apoio interno dos guelfos Negros. Dante é enviado junto a Bonifácio para firmar um

compromisso. Mas durante a sua ausência, os Negros, com as armas do enviado do papa,

Carlos de Valois, tomam posse da cidade e banem os Brancos. Dante é condenado à morte por

contumácia. Jamais retornará a Florença4.

Além dos encargos públicos e das relações com os protagonistas da vida política e 3 “S'ei fur cacciati, ei tornar d'ogne parte”/rispuos'io lui, “l'una e l'altra fiata;/ma i vostri non appreser ben

quell'arte.” (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988.) 4 Porque nem outros contra mim se teriam equivocado, nem eu teria sofrido pena de modo injusto, quero dizer,

a pena do exílio e da pobreza, porquanto foi do agrado dos cidadãos da belíssima e famosíssima filha de Roma, Florença, expulsar-me de seu doce aconchego – no qual nasci e fui nutrido até a plenitude de minha vida e no qual, com a boa vontade daquela, desejo de todo coração repousar a alma cansada e terminar o tempo que me é concedido – e fui vagando por quase todos os lugares em que se fala nossa lingua, peregrino, quase mendigando, mostrando contra minha vontade a chaga da sorte que muitas vezes costuma ser injustamente imputada ao chagado. (Banquete, I, III, p. 20-21)

8

cultural de seu tempo, pouco se sabe da vida privada de Dante. É de estirpe nobre, e o orgulho

por seu nascimento transparece na Comédia, em particular no colóquio com o antepassado

Cacciaguida (Paraíso, canto XV), e nos pesados juízos sobre a realidade social e política de

seu tempo. Dante lamenta a decadência das antigas famílias, a presença nefasta de

provincianos rudes e ignorantes entre os muros de Florença, a difusão da ética mercantilista

contrária às normas tradicionais do viver em retidão.

Casa com Gemma, da família dos Donati, e tem, com ela, pelo menos três filhos:

Antonia, Jacopo e Pietro. Todos partilharão de sua condenação e de seu destino de exilado.

Jacopo e Pietro serão, após a morte do pai, os primeiros comentaristas da Comédia. A partir

do livro entitulado Vida Nova aprendemos, assim, os detalhes sobre o evento crucial da

primeira parte parte da vida de Dante, evento que, até prova em contrário, não é considerado

imaginário ou simbólico, mas real: o encontro com Beatriz, identificável, talvez, com Bice

Portinari. O encontro ocorre quando Dante tem nove anos e segue a paixão por dezoito anos

até a morte desta mulher, em 1290.

O Poeta morre em Ravena, a 14 de setembro de 1321, é sepultado pelos

franciscanos e lá permanece até hoje.

Se pouco se pode tirar dos documentos, escarsos, e das biografias antigas,

repetitivas e, freqüentemente, fantasiosas, a obra poética de Dante, por si só, é uma fonte

preciosa de informações sobre o seu autor. Enquanto é bem difícil encontrar, na poesia da

Idade Média, elementos que permitam depreender, a partir do texto, a experiência concreta do

autor - nome das mulheres amadas, datas, circunstâncias históricas -, a lírica de Dante mostra,

por assim dizer, uma carga de realidade e, portanto, próxima da experiência e bem ao gosto

dos leitores modernos.

1.2 CRONOLOGIA SUMÁRIA 5

1265

Nasce Durante, apelidado Dante, filho do notário Alighiero di Bellincione e de

Bella d'Alighiere.

1274

Primeiro encontro com Beatriz 5 (FRANCO JR., 2000, p. 123-126)

9

1275

Morre a mãe de Dante, e logo seu pai casa-se novamente.

1283

Segundo encontro com Beatriz; morre o pai de Dante

1284-1285

Início da atividade poética, aproximando-se do dolce stil nuovo.

1286-1288

Possível estada na Universidade de Bolonha.

1289

Dante luta na cavalaria guelfa de Florença contro os gibelinos de Arezzo.

1290

Morte de Beatriz Portinari.

1292-1293

Vita Nuova.

1295

Casamento com Gemma Donati; início da participação de Dante na vida pública

de Florença.

1297-1299

Luta entre os guelfos brancos e negros, como Dante tomando o partido dos

primeiros.

1300

O governo florentino, com a participação de Dante, expulsa chefes das duas

facções políticas.

1301

Embaixador em Roma, Dante é ali retido enquanto Carlos d'Anjou, ajudado pelos

guelfos negros, tomava o poder de Florença.

1302

Acusado de corrupção, começa o exílio de Dante.

1303-1304

Primeira estada em Verona; De Vulgari Eloquentia.

1304-1308

Convívio. Inferno.

10

1308-1313

Purgatório

1309-1310

Provável estada na Universidade de Paris

1311

Monarquia.

1312-1316

Residência na gibelina Verona, de Cangrande de la Scala a quem dedica a última

parte da Comédia.

1314-1320

Paraíso.

1314

Composição de canções que reunidas a outras, anteriores, seriam publicadas

postumamente sob o título geral de Rimas.

1317-1321

Estada em Ravena, sob o mecenato de Guido Novello da Polenta.

1319

Éclogas.

1320

Quaestio de situ aquae et terrae.

1321

Morre em Ravena, aos 56 anos de idade.

11

Cavalcando, l'altr'ier per un cammino,

pensoso de l'andar che mi sgradia,

trovai Amore in mezzo de la via

in abito legger di peregrino.

Ne la sembianza mi parea meschino,

come avesse perfuto segnoria;

e sospirando pensoso venia,

per non veder la gente, a capo chino.

Qando mi vide, mi chiamò per nome,

e disse: «Io vegno di lontana parte,

ov'era lo tuo cor per mio volere;

e recolo e recolo a servir novo piacere».

Allora presi di lui sì gran parte,

ch'elli disparve, e non m'accorsi come.

DANTE ALIGHIERI

12

CAPÍTULO II

A DIVINA COMÉDIA

13

A Comédia é a mais importante obra literária da Idade Média ocidental. Entenda-

se “literário”, porém, de um modo bem particular, pois a poesia que há na Comédia é rica em

referências históricas, filosóficas, teológicas, além de científicas.6 Pode causar estranhamento

o fato de que uma obra na qual se narra uma viagem ao além-túmulo se intitule Comédia.

Assim a chamavam não somente os primeiros comentadores do século XIV, mas o próprio

Dante. Muito já se discutiu sobre a razão de tal título: as duas explicações mais plausíveis dão

destaque, uma à forma, outra ao conteúdo da obra. A Comédia, segundo alguns, assim se

chamaria porque escrita em um estilo que podemos chamar de médio e não elevado e elegante

como aquele usado por Vírgilio na Eneida, por exemplo. Segundo outros, a escolha do título

está ligada à trama: na tragédia as coisas vão bem no início, porém se complicam

paulatinamente com o proceder da ação, e acabam mal. No gênero comédia, ao contrário,

assim como na Comédia dantesca, a situação inicial é costumeiramente desfavorável para os

personagens mas melhora no curso da obra, até desembocar em um final no qual todos os

conflitos são resolvidos. Uma explicação não exclui a outra, ou melhor: o nome “comédia” é

adequado tanto pelo motivo do “final feliz” quanto pelo estilo, ou melhor, pela variedade de

estilos empregada.

2.1 O INFERNO

O Inferno é representado por Dante como um gigantesco cone subterrâneo cuja

base coincide com a superfície do hemisfério boreal, com o centro em Jerusalém, e cujo

vértice encontra-se no centro da terra. Tal abismo foi causado pela queda do anjo que ousou

rebelar-se contra Deus: Lúcifer. A enorme massa de terra deslocada pelo seu corpo criou, em

local diametralmente oposto, a montanha do Purgatório. No cume de tal montanha encontra-

se o Paraíso terrestre. Dali partindo, após atravessar o Inferno e o Purgatório, Dante,

6 Dante afirma, na obra Banquete (p. 49-50), que “as escrituras podem ser entendidas e devem ser expostas em

quatro sentidos máximos. Um é chamado literal e é aquele que não se estende para mais além da letra das palavras que exprimem imagens, como são as fábulas dos poetas. O segundo se chama alegórico e é aquele que se esconde sob o manto dessas fábulas, configurando-se uma verdade oculta sob bela mentira. [...] O terceiro sentido se chama moral e é aquele que os leitores devem procurar colher com pronfunda atenção nas escrituras, para sua utilidade e de seus discentes. [...] O quarto sentido é chamado anagógico, isto é, supra-sentido e este ocorre quando se expõe com propósitos espirituais uma escritura que, embora seja também verdadeira no sentido literal, por meio das coisas expressas se refere ao significado das supremas coisas da glória eterna.

14

juntamente com Beatriz, alça vôo através dos dez céus nos quais, segundo o pensamento

medieval, subdividia-se o universo: uma viagem da Terra ao Empíreo, isto é, ao céu que

abarca todos os outros e no qual residem os anjos, os beatos e Deus.

Os pecadores do Inferno estão distribuídos em círculos e em cada um deles é punido um

diferente pecado. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, havia classificado os vícios e as culpas

pelos quais o homem pode se macular, e Dante recupera, de maneira fiel, esta ordem. Ao

descermos em direção ao centro da Terra, os pecados, gradativamente, tornam-se mais graves

e as penas mais cruéis. No Vestíbulo, uma zona do além-túmulo que precede o vale infernal,

encontram-se os ignavos, isto é, aqueles incapazes em vida de escolher entre o bem e o mal,

“que a Deus despraz e ao inimigo seu” (Inferno, canto III, verso 65), isto é, rejeitados tanto

por Deus quanto por Satanás, formando, por esta razão, um grupo à parte, nos confins dos

reinos ultraterrenos. O Limbo, em seguida, hospeda os mortos não batizados e, entre eles, os

espíritos pagãos que, mesmo vivendo virtuosamente, não tiveram meios de tomar

conhecimento de Deus. Este lugar é ainda a sede habitual de Vírgilio que de lá partiu para ir

ao auxílio de um Dante perdido na selva do pecado. Seguem os incontinentes, distribuídos em

quatro círculos: luxuriosos, gulosos, avaros e pródigos, iracundos e rancorosos. Em seguida os

heréticos, os violentos, os fraudulentos e os traidores. Encontram-se entre os traidores, mais

embaixo de todos porque mais culpados de todos: Lúcifer, confinado ao centro da Terra, por

ter traído Deus, Judas por ter traído Jesus e Brutus e Cassius por terem traído César.

2.2 O PURGATÓRIO

No Purgatório os pecadores estão distribuídos de acordo com o mesmo princípio

seguido no Inferno, porém há duas importantes diferenças. Primeiramente, enquanto o

Inferno, assim como o Paraíso, é eterno, o Purgatório está destinado a esvaziar-se: as almas

que expiam os pecados serão um dia eleitas ao Paraíso, ou porque, em vida, arrependeram-se

a tempo de seus pecados ou porque a sua existência, contrariamente àquela dos danados, não

foi inteiramente dominada pelo pecado. Em segundo lugar, a ordem é invertida: a partir da

culpa mais grave, que se expia na base da montanha, sobe-se em direção aos pecados menos

graves, até alcançar o Paraíso terrestre.

15

2.3 O PARAÍSO

No Paraíso, enfim, não há uma verdadeira e própria hierarquia de beatitude: todos

os beatos vivem no Empíreo e contemplam Deus em eterna condição de felicidade. Mas

razões de simetria com os outros dois reinos e de estratégia narrativa sugerem a Dante, de

qualquer modo, uma subdivisão: o Poeta imagina, assim, que as almas desçam do Empíreo

para irem ao seu encontro, cada uma no céu que tem uma influência maior nas suas vidas,

como, por exemplo, os espíritos amantes encontram Dante no céu de Vênus ou os

combatentes pela fé no céu de Marte.

2.4 A LEI DO CONTRAPASSO

No Inferno e no Purgatório, as penas são aplicadas pelo contrapasso: o pecador é

punido de modo tal que a sua pena lembre a culpa cometida em vida ou o vício que

determinou seu destino. Assim, no canto V do Inferno, um turbilhão terrível agita as almas

que, em vida, eram vítimas da paixão amorosa. Assim, no canto X do Inferno, os heréticos,

que não mostraram fé na ressurreição, são condenados a serem encerrados pela eternidade em

um túmulo aberto. Ainda mais transparente é o caso do poeta provençal Bertran de Born

(1140-1215 c.), que Dante encontra no final do canto XXVIII do Inferno. O famoso trovador,

durante a sua vida, havia instigado Henrique, o Jovem, depois Henrique III, à revolta contra o

pai Henrique II, rei da Inglaterra:

139 Por ter desfeito um laço tão cerrado, ora de seu princípio se apresenta, que é este tronco, o meu cérebro apartado. 142 Esta é a retribuição que em mim se atenta”. 7

(ALIGHIERI, Inferno, canto XXVIII)

ou seja, Bertrand de Born deve carregar, como condenação, a cabeça arrancada do corpo,

porque, durante a vida, separou dois parentes consangüíneos, pai e filho, e este é o

7 Perch'io parti' cosí giunte persone,/partito porto il mio cerebro, lasso!,/dal suo principio ch'è in questo

troncone./Cosí s'osserva in me lo contrapasso”. (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988.)

16

contrapasso que lhe é imposto.

17

Deh peregrini che pensosi andate,

forse di cosa che non v'è presente,

venite voi da sì lontana gente,

com'a la vista voi ne dimostrate,

che non piangete quando voi passate

per lo suo mezzo la città dolente,

come quelle persone che neente

par che 'ntendesser la sua gravitate?

Se voi restare per volerlo audire,

certo lo cor de' sospiri mi dice

che lagrimando n'uscirete pui.

Ell'ha perduta la sua beatrice;

e le parole ch'om di lei pò dire

hanno vertù di far piangere altrui.

DANTE ALIGHIERI

18

CAPÍTULO III

INFLUÊNCIAS NA OBRA DE DANTE

19

Encontramos reunidas na obra de Dante as três concepções de amor em

voga na sua época, resultado da influência do fortalecimento do movimento marianista,

exercida pelos anos de educação no convento dominicano de Santa Maria Novella, então um

dos principais redutos do marianismo na Itália, da doutrina tomista, com a qual travou maior

contato na sua provável permanência na Universidade de Paris, na qual o próprio São Tomás

de Aquino (1225-1274 c.) dedicou-se ao ensino e ao estudo de questões filosóficas e

teológicas, e da lírica trovadoresca. FRANCO JR. (2000) afirma que:

O conhecimento enciclopédico de Dante levou-o a ter uma visão do amor que reunia, filtrados pela sua sensibilidade, elementos provenientes das concepções amorosas aristrocática, popular e intelectual. A primeira delas, desenvolvida inicialmente nas cortes feudais da Provença, no sul francês, era conhecida por isso como cortesã. A segunda, ligado ao substrato folclórico, à espiritualidade popular e às transformações sócio-econômicas ocorridas desde o século XII, era a corrente mariana, de valorização do culta à Virgem. A terceira, ligada às Universidades e ao reaparecimento do aristotelismo, teve seu maior representante em Tomás de Aquino, daí ser chamada de tomista.

3.1 AMOR CORTESÃO8

Fala-se em “amor cortesão”, pela primeira vez, em meados do século XII, na

produção lírica dos trovadores pronveçais, nos poemas de amor nos domínios da língua d'oc,

para, em seguida, afirmar-se na literatura em língua d'oïl, nas intrigas romanescas, no norte da

França. Quanto mais a vida cavalheiresca vai se tornando cada vez mais gentil, tanto mais vai

amadurecendo este novo ideal de amor. O amor é entendido como um princípio superior que

educa, aperfeiçoa e eleva a alma, também como estímulo à perfeição do homem e fonte de

toda a bondande e beleza. O “amor cortesão” firma-se na idéia da contínua ambivalência entre

o desejo a ser saciado e o medo de tornar efetiva, de tal maneira, a anulação de tal desejo:

explica-se, assim, o sentimento complexo próprio do amor, feito de sofrimento e prazer, de

angústia e exaltação. O próprio conceito de “amor cortesão” é extremamtente ambivalente,

8 A expressão “amor cortesão “, designando a relação entre um homem e uma mulher, foi usada pela primeira

vez por Gaston Paris, em 1883, em um artigo sobre O cavaleiro da charrete, de Chrétien de Troyes, romance que relata o amor mais que perfeito de Lancelote por Guinevere, esposa do rei Artur. Esse laço o faz praticar proezas espantosas e prestar ilimitada obediência às ordens de sua dama. (RÉGNIER-BOHLER, 2002, p. 47)

20

como sugere RÉGNIER-BOHLER (2002):

À época da gênese dos textos, o amor cortesão não é um conceito unânime. Esta representação plural define ora o amor de um cavaleiro por uma dama casada e inacessível, ora um amor mais carnal, portanto adúltero, ora, ainda, o vínculo entre jovens que aspiram ao casamento.

Em boa parte da produção lírica da época, entretanto, o “amor cortesão” é por

definição adúltero, não podendo ser resolvido pela instituição do casamento. Recorremos a

RÉGNIER-BOHLER (2002) uma vez mais:

Na lírica, o amor cortesão aparece como uma relação virtualmente adúltera: a dama é casada, é objeto de uma corte amorosa e de uma súplica cujos mensageiros são os poemas. A súplica amorosa é calcada no modelo feudo-vassálico. “Minha Senhora” (mi dona, “meu senhor” em occitânico), tal é o termo de requerimento: o poeta está ao serviço da dama como o vassalo ao do senhor.

Dante expressa em sua obra, na mesma linguagem feudo-vassálica dos poetas

franceses, seu amor submisso, declarando-se, seguidas vezes, “servo” de sua “senhora”, em

um processo de total entraga, partilhando tanto do sofrimento quanto das alegrias desta “sua

senhora”, ou seja, à Beatriz e à própria Virgem.

3.2 MARIANISMO

Segundo a Enciclopedia Cattolica9, o culto mariano, considerado em si mesmo,

ou seja, na sua íntima constituição, compreende as questões que tratam da sua natureza, dos

seus elementos constitutivos, da sua legitimidade, da sua utilidade e da sua necessidade.

Quanto à natureza do culto mariano, ela é expressa pelo termo técnico iperdulia, o qual

significa uma honra especial, superior àquela que se dá aos santos, tributado à Virgem

Santíssima pela sua singular excelência, de Mãe de Deus e de Rainha dos Santos. Três,

principalmente, são os atos ou elementos constitutivos ou integrantes do culto mariano,

correspondentes aos três principais títulos de excelência próprios da Virgem Santíssima, a

9 ENCICLOPEDIA Cattolica. 1ª ed. Firenze: Sansoni Editore, 1951.

21

saber, a veneração, a invocação e a imitação. Como Mãe do Criador e das criaturas, ela é

digna de uma especial veneração. Como mediadora entre Deus e as criaturas, ela pode ser

invocada com a mais ilimitada confiança. Como Toda Santa, por antonomásia, cheia de graça

e de virtude, ela deve ser imitada de modo particular. O culto de especial veneração, fundado

sobre a singular grandeza de Maria, tem como base tanto a Sagrada Escritura quanto a

tradição. O Evangelho mostra que tanto o anjo Gabriel (Lc, 1, 28)10 quanto santa Isabel (Lc,

1, 42)11 dirigem a ela palavras cheias de veneração profunda, palavras que repercutem por

todos os séculos cristãos nas pinturas toscas das catacumbas, na liturgia, nos vários templos

erguidos, em sua honra e, de modo especial, nos escritos dos Padres e dos Doutores de cada

século. O culto especial de invocação, fundado sobre o singular poder de intercessão de

Maria, encontra sólidas bases na antiga tradição da Igreja. O culto de especial imitação,

fundado sobre a singular santidade de Maria, foi posto em relevo por Santo Ambrósio (340-

397 c.), o qual afirmou que “a vida de Maria de per si é escola para todos” e, assim, exorta

todos a imitá-la (De Virgin., II, c. 2, n. 9, 15; c. 3, n. 19: PL 16, 221-23). De modo particular,

a Virgem Santíssima, na antiguidade cristã, foi proposta como modelo das virgens. Assim,

nas catacumbas de Priscila, sobre a Via Salaria, em um cubículo do século III, há a

representação de um bispo, o qual, no momento da imposição do véu sagrado a uma virgem,

aponta, como modelo, a Virgem Santíssima, ali pintada com o menino Jesus ao seio. Não

faltou quem, como Erasmo de Roterdã, seguido por Lutero e por outros, acentuando este

elemento de culto, chegasse a dizer que a atual imitação da Virgem Santíssima pertencia à

essência do culto mariano. Os católicos comumente acreditam que, ainda que o verdadeiro

culto de Maria sem o propósito ou um certo desejo de imitá-la não seja nem mesmo

concebível, a sua imitação, todavia, não é essencial ao seu culto e é, antes, fruto deste mesmo

culto.

A legitimidade do culto prestado à pessoa de Maria manifesta-se pela singular e

inigualável excelência dela mesma, sendo Mãe de Deus, “cheia de graça”, “bendita entre

todas as mulheres”. Quanto à legitimidade do culto prestado às relíquias da Virgem, supondo

que fosse provada a sua autenticidade, negado com particular acrimônia pelos protestantes,

manifesta-se pela lei psicológica que impele a venerar não só a pessoa, mas também as coisas

que lhe pertecem (Sum. Theol., 3ª, q. 25, a. 6). Com relação à legitimidade do culto às

10 Entrando, o anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo. 11 E exclamou em alta voz: Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre.

22

imagens de Maria Santíssima, negado pelos iconoclastas12 no século VIII e, depois, pelos

protestantes, além do que pelas decisões dos concílios Niceno II (787) e Tridentino (1545-

1563), pelo uso antiqüíssimo da Igreja e pelos prodígios por elas operados, apresenta-se

legitimado pelo fato que as imagens, enquanto imagens, e não enquanto uma coisa material,

constituem uma única coisa com aquilo que representam.

A utilidade do culto mariano provém claramente dos inumeráveis benefícios

individuais e sociais derivados do mesmo. Os benefícios individuais se estendem à vida (fonte

de graça, sinal de predestinação), à morte (assistência especial) e post mortem. Os benefícios

sociais, ao contrário, dizem respeito à sociedade doméstica (fonte de Graça), à sociedade civil

(progresso do verdadeiro, do belo e do bom, mediante o progresso das ciências, das artes e

dos bons costumes) e à sociedade religiosa, ou seja, à Igreja (progresso e custódia da

verdadeira fé e dos bons costumes). Mas, além de útil, o culto mariano mostra-se moralmente

necessário para alcançar-se a salvação eterna.

Desde o século XII, o movimento de crescente e gradual revalorização da mulher

coincidia com um momento de forte marianismo: nesta relação de interdependência é

impossível afirmar qual dos processos foi o inaugural, alavancando e possibilitando o outro.

Entre os traços acentuados pelo cristianismo, o papel de protetora e intercessora privilegiada

junto a Deus, bem como a imagem de grande defensora da alma humana, “perene fonte da

esperança”13, protegendo os homens das forças malignas, acabou por estabelecer um estreito

vínculo entre a Virgem e a mulher idealizada e cantada pela lírica trovadoresca, tornando-a a

Dama, a Senhora por excelência dos trovadores, amada longínqua e servida por muitos

vassalos.

Na obra de Dante, podemos ver em Beatriz uma representação da Virgem, pois

mais do que uma mulher de carne e osso ela é “a gloriosa senhora da minha mente”, “dela

podia se dizer a palavra do poeta Homero: 'Não parecia filha de homem mortal, mas de

Deus'”, “anjo juveníssimo” (ALIGHIERI, 2003, p. 91-92), ou ainda, “dama celestial”

(Purgatório, canto XXXII, verso 92).

12 Qualquer dos que, nos séculos VIII e IX, apoiaram o movimento contrário à adoração de imagens nas igrejas

cristãs do Oriente, ou que, nos séculos XVI e XVII, em nome de princípios protestantes, tiveram atitude análoga em relação às imagens das igrejas católicas.

13 Na oração de São Bernardo a Virgem, no Paraíso, canto XXXIII.

23

3.3 TOMISMO

São Tomás de Aquino nasce no feudo dos condes d'Aquino no ano de 1224 ou

1225 e morre no convento de Fossanova no ano de 1274. É enterrado nas proximidades do

convento dos Jacobinos, em Toulouse, França. Filho de Landolfo, nobre de origem lombarda,

e Teodora, o pequeno Tomás, com apenas cinco anos, é enviado à abadia de Monte Cassino

para receber a educação religiosa. Aos quatorze anos transfere-se a Nápoles, onde dedica-se

ao estudo das artes na Universidade, junto ao convento de San Domenico Maggiore. É assim,

que, mesmo sem contar com o apoio da família, faz um pedido, em 1244, para ser admitido

na Ordem Dominicana. Os seus superiores, ao perceberem o talento precoce, e para

proporcionar a conclusão dos seus estudos, o enviam a Paris, mas o jovem, antes de atingir o

seu destino, é capturado pelos familiares e reconduzido ao castelo paterno de Monte San

Giovanni. O período de confinamento, que dura aproximadamente um ano, foi marcado pelas

pressões familiares com o intuito de fazê-lo renunciar ao hábito dominicano, e terminou, pela

intercessão do papa Inocêncio IV, com a liberação, ou, segundo alguns biógrafos, com a fuga,

de Tomás. Após breves visitas, primeiro a Nápoles e depois a Roma, em 1248 chegou a

Colônia para seguir os ensinamentos de Alberto Magno (1193-1280), filósofo e teólogo

alemão que tentou conciliar o Cristianismo com o Aristotelismo, e, em seguida, manifestou o

desejo de ser o executor do projeto de seu mestre. A partir do ano de 1252 ensinou na

Universidade de Paris, e, depois de quatro anos, pode ministrar a sua primeira lição na

cátedra. Combateu, nesse meio-tempo, os averroístas (seguidores do filósofo árabe

Averroes14, que havia dado uma particular interpretação para De Anima de Aristóteles), que

consideravam a fé inconciliável com a razão: “A fé é para as almas simples, a filosofia para as

pessoas cultas”. Tomás enfrentou também os agostinianos que consideravam o Aristotelismo

inconciliável com a fé. Segundo ele, pensamento e razão podem ser conciliáveis, antes, a

razão serve para planificar alguns dos enigmas da fé, mesmo sendo o intelecto humano

limitado. O escopo da fé e da razão é o mesmo, mas se a razão encontra-se em contraste com

a fé, deve ceder a ela.

O fato que Deus exista nos é dado pela fé e as suas provas da existência de Deus

14 Averroísmo: doutrina do médico e pensador árabe Averroes (1126-1198), voltada para uma interpretação

pessoal do aristotelismo que, muito embora tenha influenciado decisivamente a cultura intelectual do medievo europeu, se mostrou hostil à ortodoxia católica (tal como ocorre, p.ex., em sua afirmação da finitude da alma humana individual), sendo por isto duramente combatida pela filosofia escolástica e duas vezes condenada pela Igreja (1240 e 1513)

24

são cinco: ex motu, isto é, “do movimento”, ou seja, tudo aquilo que se move exige uma causa

primeira porque, como ensina Aristóteles, “não se pode ir ao infinito na procura das causas”;

ex causa, isto é, “da causa”, ou seja, todo efeito pressupõe uma causa; ex contingentia, isto é,

“da contingência”, ou seja, uma vez que todas as coisas existem, mas poderiam não existir,

não têm em si a razão da sua existência e, conseqüentemente, remetem a um ser necessário; ex

gradu, isto é, “do grau”, ou seja, as coisas têm diversos graus de perfeição, mas somente um

grau máximo de perfeição torna possível os graus intermediários; e ex fine, isto é, “do fim”,

ou seja, todas as coisas no universo são ordenadas segundo um fim, portanto, deve haver uma

inteligência que a ordena assim.

São Tomás de Aquino, sustentava, também, que o conhecimento é conquistado

somente através da sensibilidade, rejeitava a visão de conhecimento de Agostinho, que

pensava que este era possível através da iluminação divina.

Quanto às caraterísticas do amor tomista, ou seja, quanto a visão de amor

concebida por São Tomás, podemos assim condensá-la:

A primeira característica do amor tomista é, na sua prórpia linguagem, ser complementativo, isto é, sendo uma paixão, portanto um apetite que busca o apetecível, o amor implica associação com seu objeto. [...] Em segundo lugar, o amor é intelectivo, pois a própria noção do bem desejado está no intelecto. [...] Outro elemento do amor tomista é a inerência, o fato de o amado estar no amante e vice-versa. Mas para tanto é preciso harmonizar o amor a si próprio com o amor a outrem, o que só é possível através de Deus, ao mesmo tempo objeto de amor e fonte de amor. (FRANCO JR., 2000, p. 99-100)

Estão presentes na obra de Dante, ecos da filosofia tomista, que dá consistência e

coerência as concepções do amor mariana e cortesã que diziam mais à visão poética que

Dante tinha das coisas.

25

Tutti li miei pensier parlan d'Amore; e hanno in lor sì gran varietate, ch'altro mi fa voler sua potestate, altro folle ragiona il suo valore, altro sperando m'apporta dolzore, altro pianger mi fa spesse fiate; e sol s'accordano in cherer pietate, tremando di paura che è nel core. Ond'io non so da qual matera prenda; e vorrei dire, e non so ch'io mi dica: così mi trovo in amorosa erranza! E se con tutti voi fare accordanza, convenemi chiamar la mia nemica, madonna la Pietà, che mi difenda.

DANTE ALIGHIERI

26

CAPÍTULO IV

LITERATURA, SEXO, PECADO E A IMAGEM DA MULHER NA IDADE MÉDIA

27

4. 1 LITERATURA NA IDADE MÉDIA

Grande parte da produção literária medieval pode ser fixada em dois pontos, em

duas posições opostas: o que era literatura clerical, geralmente realizada em língua latina, e o

que era literatura vulgar, que, em vernáculo, apropriava-se de temas folclóricos e de cultura

popular. Paradoxalmente, na literatura latina da época, ao lado de uma produção claramente

clerical, como, por exemplo, crônicas e poesias de cunho clássico, havia uma literatura,

também feita em latim, porém de característica e tom popular, como a hagiografia15, e outra

erudita ainda que anticlerical, como a literatura goliárdica16. Havia ainda uma literatura escrita

em vernáculo que fazia menção à chamada “matéria antiga”, ou seja, tratavam-se de longos

poemas cuja temática recuperava e remetia a assuntos ligados à Antiguidade. Existiam,

também, as canções de gesta, além da literatura calcalda na chamada “matéria da Bretanha”,

ou seja, nas narrativas folclóricas e lendas celtas.

O século XII viu florescer a lírica trovadoresca, talvez um dos melhores

exemplos de uma cultura intermediária entre a popular e a clerical, pois exaltava o amor no

seu aspecto espiritual, decalcando para o plano amoroso as estruturas de vassalagem,

concebendo o amor como uma variante das obrigações de um vassalo ao seu senhor. Porém,

contraditoriamente, uma certa sensualidade e, às vezes, um tom declaradamente erótico

transparecia naquela poesia. Assim como a lírica trovadoresca, aparecia também uma

literatura formalmente simples que adotava, no mais das vezes, um tom grosseiro e obsceno,

representada pelos fabliaux medievais. Os fabliaux eram manifestadamente antifeministas,

indo no sentido oposto de uma certa recuperação da imagem da mulher alavancada pelo culto

à Virgem e, também, pela lírica trovadoresca.

Finalmente, no século XIII, tomou corpo um tipo de literatura que pode,

devido ao fato de pretender reunir o que havia de essencial no conhecimento da época, ser

15 Narrativa da vida de um santo. Tipo de literatura muito difundido na Idade Média e uma das principais fontes

de se conhecer a mentalidade da época. Ela era um dos importantes pontos de encontro da cultura erudita com a cultura vulgar, como se vê na mais célebre coletânea medieval, a Legenda Aurea, de meados do século XIII. (FRANCO JR. Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. 2ª ed. São Paulo-SP: Brasiliense, 2006, p. 183)

16 Goliardos: termo derivado de um líder fictício, Golias (na etimologia simbólica ligado à “gula” e ao Diabo), para designar estudantes pobres e clérigos errantes que na Idade Média Central criticavam a sociedade estabelecida. (FRANCO JR. Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. 2ª ed. São Paulo-SP: Brasiliense, 2006, p. 183)

28

chamada de enciclopédica, com uma abordagem que oscilava tanto para a cultura vulgar

quanto para a clerical. Como maior exemplo do primeiro tipo está O Romance da Rosa17 e do

segundo, seguramente, a Divina Comédia. Sobre este assunto, ZINK (2003) comenta:

As duas maiores obras alegóricas da literatura medieval são O Romance da Rosa e A Divina Comédia. Porém, apenas a primeira parte de O Romance da Rosa, a de Guilherme de Lorris, extrapolação da ideologia cortesã despida de prentesão expeculativa, respeita a coerência da alegoria. João de Meung subverteu-a maliciosamente, mas ele faz de personificações como Natureza e Gênio, herdadas de seus predecessores de língua latina, os porta-vozes de sua filosofia do amor. O primeiro verso da Divina Comédia aponta a obra como alegórica, mas sua complexidade impede que a classifiquemos pura e simplesmente nessa categoria, quando menos pela ambigüidade conferida ao sentido literal em realação à verdade e à ficção. Entretanto, a alegoria, de que Dante se fez em outros lugares e várias vezes o teórico, está presente em todo o lugar e sob todas as formas: exegese, leitura alegórica de poetas antigos, auto-alegoria e convite explícito ou indireto a uma interprestação alegórica de diversos episódios. Assim, a alegoria escapa da trivialidade por sua abundância e por seus enigmas.

4. 2 DOLCE STIL NUOVO

Irrompe, entre o final do século XIII e os primeiros anos do XIV, uma nova escola poética: o

Dolce Stil Nuovo. Nascida em Bolonha com a obra de Guido Guinizelli (1240-1276), o

mentor intelectual do movimento, por assim dizer, o novo estilo desenvolve-se na Toscana,

principalmente em Florença, cidade na qual encontra os seus maiores representantes em

Guido Cavalcanti e Dante Alighieri. Apresentam-se como inovadores tanto na forma quanto

no conteúdo. O estilo é definido como nuovo justamente por sua linguagem e por sua

temática. Os poetas do Dolce Stil Nuovo conceberam o amor e a mulher de um modo

inteiramente novo no que diz respeito aos poetas anteriores, em particular os da “escola

siciliana”. O amor, aqui, assume uma dimensão espiritual: é entendido como aperfeiçoamento

moral e somente pode nascer em um coração “gentil”, isto é, nobre e virtuoso. A mulher é

considerada um anjo, uma criatura perfeita, capaz de suscitar no homem sentimentos

profundos e de elevar a alma até Deus, libertando-a, assim, de toda a miséria e degradação

17 A rosa branca, muito usada simbolicamente pelos alquimistas e vista por Dante no Paraíso, talvez tivesse

alguma relação com o Roman de la Rose, popularíssima obra de fins do século XIII, de forte sentido alquímico e que fora traduzida para o italiano por um tal de Ser Durante Fiorentino, provavelmente um pseudônimo usado por Dante. (FRANCO JR., 2000, p. 83)

29

terrenas. Um novo conceito de vida e de sentimentos demanda dos poetas do Dolce Stil

Nuovo, na mesma medida, uma forma lingüística nova e original, ou seja, substituem, então, a

língua áspera e densa de conceitos dos seus predecessores por outra graciosa, elegante, gentil,

harmoniosa e clara.

4. 3 PECADO

O pecado, segundo a Enciclopedia Cattolica18, significa a queda ou a ruína moral,

o ato humano mau, isto é, o ato através do qual o homem se distancia da realização do fim, a

transgressão da lei que o homem deve respeitar e o estado daquele que capitulou frente a sua

dignidade ou a perfeição moral.

Os homens e mulheres da Idade Média “aparecem dominados pelo pecado. A

concepção do tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção do saber, a idéia de

trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações sociais, a instituição de práticas

rituais, toda a vida e visão de mundo do homem medieval gira em torno da presença do

pecado”. (CASAGRANDE; VECCHIO, 2003, P. 337)

O batismo, a confissão, o jejum e tantas outras práticas rituais, sejam individuais

ou coletivas, tem a sua origem intimamente ligada ao pecado, e, além disso,

a vida social parece-lhe dirigida, em todos os níveis e em todos os seus mecanismos, por esse laço de solidariedade criminosa na qual está baseada: as relações entre homem e mulher são dominadas pela luxúria, o exercício do poder gera ambição e vaidade, a atividade econômica transforma-se em avareza, a corrente de subordinações alimenta a inveja. (CASAGRANDE; VECCHIO, 2003, P. 338)

A noção de que é a concupiscência carnal que deflagra a propagação do pecado é

um legado de Santo Agostinho ao pensamento medieval, pois no momento da transmissão da

vida, também o pecado seria transmitido uma vez que todo homem nasce contaminado pelo

pecado no qual é gerado. Há, portanto, uma identidade entre o Pecado Original e a

concupiscência carnal, conceito que será rechaçado, a partir do século XII, por Anselmo de

Aosta (1033-1109), arcebispo da Cantuária, e que, embora na sombra por algum tempo, será

recuperado pelos teólogos escolásticos, no século XIII.

18 ENCICLOPEDIA Cattolica. 1ª ed. Firenze: Sansoni Editore, 1951.

30

4. 4 CLASSIFICAÇÃO DOS PECADOS

Dentre todos os esquemas de classificação dos pecados imaginados pelo homem,

desde há muito tempo, merece especial consideração, pela sua importância, o sistema dos

pecados capitais. O esquema, aprimorado no século V por Cassiano (360-435 c.), e

readaptado por Gregório Magno (535-604), na forma de uma árvore invertida, pressupõe oito

pecados principais, tendo o orgulho como ponto de partida para sete outros vícios, a saber, a

vaidade, a inveja, a cólera, a preguiça, a avareza, a gula e a luxúria, os quais, por sua vez,

conduzem a uma infinidade de pecados secundários e outros pecadilhos. Apesar das inúmeras

modificações sofridas ao longo dos séculos, o sistema gregoriano permance, até o final da

Idade Média, como o mecanismo mais produtivo, além de mais propagado, de classificar os

pecados.

Curiosamente, a partir do século XIII, temos uma reavaliação de alguns pecados

na medida em que ocorrem diversas transformações sociais e econômicas. A avareza, por

exmplo, “parece claramente disputar com o orgulho, pecado tipicamente feudal, a primazia da

gravidade: é impossível não relacionar esta mudança à crescente importância do dinheiro e à

ascensão de uma classe mercantil que assenta no dinheiro suas chances de reconhecimento

social”. (CASAGRANDE; VECCHIO, 2003, p. 349)

Fenômeno semelhante ocorre em relação à luxúria, sempre em posição de

destaque na cultura do pecado. A partir do século XII, uma nova doutrina matrimonial imputa

aos leigos uma rígida normatização da sexualidade, de agora em diante submetida tão-

somente a fins reprodutivos, cumprindo ressaltar que “nesse contexto, compreende-se que a

ênfase recaia sobre pecados como o adultério ou a sodomia”. (CASAGRANDE; VECCHIO, 2003,

p. 349)

4. 5 A IMAGEM DA MULHER NA IDADE MÉDIA

A presença da mulher como força produtiva numa época de muitas, e profundas,

mudanças sociais, comerciais e econômicas - como, por exemplo, a expansão demográfica das

cidades européias, as novas técnicas agrícolas, revigoramento do comércio e o

desenvolvimento das cidades - e a consequente inserção da mulher no mercado de trabalho

sinalizavam um laceamento dos conceitos sobre a própria questão feminina, numa época na

qual, até então, as posições em relação à mulher eram extrema e indiscutivelmente misóginas.

31

O senso comum medieval imaginava a mulher, costumeiramente, de duas formas,

a saber, aquela clerical: na qual a mulher é representada como alguém que nada mais é do que

um ser submetido aos seus desejos físicos, aos quais é incapaz de manifestar qualquer

resistência, escrava dos desmandos de seu corpo porque insubmissa à razão – representada em

certos gêneros líricos não cortesãos e, preponderantemente, nos fabliaux – pois não passavam

de um

reflexo do corpo de Adão, mas invertido, como em um espelho (especialemente no que se refere aos orgãos sexuais, que são de mesma estrutura, mas revirados, introvertidos, mais secretos, portanto mais privados, mas também, como aquilo que se oculta, suspeitos), o corpo feminino, mais permeável à corrupção porque menos fechado, requer uma guarda atenta, e é ao homem que cabe a sua vigilância. (ARIÈS; DUBY, 1990, p. 518)

e aquela idealizada pela lírica cortesã: a imagem da mulher que após alcançar um tal grau de

elevação torna-se refretária a quaisquer desejos de ordem física.

Seguiam, pois, par a par, duas imagens bem contrastantes da mulher: uma delas, a

imagem social recuperada em grande parte devido ao sucesso do culto à Virgem e da lírica

trovadoresca; outra, uma imagem assumidamente antifeminista.

32

Amor e 'l cor gentil sono una cosa, sì come il saggio in suo dittare pone, e così esser l'un sanza l'altro osa com'alma razional sanza ragione. Falli natura quand'è amorosa, Amor per sire e 'l cor per sua magione, dentro la qual dormendo si riposa tal volta poca e tal lunga stagione. Bieltate appare in saggia donna poi, che piace a gli occhi sì, che dentro al core nasce un disio de la cosa piacente; e tanto dura talora in costui, che fa svegliar lo spirito d'Amore. E simil face in donna omo valente.

DANTE ALIGHIERI

33

CAPÍTULO V

O CANTO V DO INFERNO

34

No canto V, Dante e Virgílio encontram-se à entrada do segundo círculo infernal,

o primeiro dos cinco círculos nos quais são punidos os incontinentes, diante da grotesca figura

de Minós, mítica imagem do juiz infernal na tradição clássica, que simboliza a justiça divina

imparcial e eterna, reforçando a condição de imutabilidade que sela o destino dos danados

deste e dos demais cantos do Inferno. No segundo círculo infernal são castigados os

luxuriosos, ou seja, aqueles cuja culpa consiste em ter cedido, de alguma forma, em algum

grau, ao desejo carnal:

37 Entendi que essa é a pena resultante da transgressão carnal, que desafia a razão, e a submete ao seu talante.19

As almas dos luxuriosos são arrastadas por um turbilhão violentissímo e

constante, numa clara alusão aos que se entregam insanamente às suas paixões e às tentações

da carne. Em concordância ao pensamento usual em relação à imagem da mulher na Idade

Média, não é, certamente, mera coincidência, o fato das quatro primeiras personagens a serem

apontadas por Vírgilio, que as mostra e identifica a Dante, serem mulheres. A primeira a ser

apontada é Semíramis, mulher de Nino, fundador do império assírio-babilônico, a quem

sucedeu reinando de 1356 a 1314 a.C. Citada, com unanimidade, pelos escritores medievais

como exemplo de luxúria: Giovanni Villani20 a define como “a mais cruel e dissoluta mulher

do mundo” (Crônicas, I, 2). É com ela que Dante abre a série de nove personagens, ao todo,

acusados do pecado da luxúria e mortos por amor:

52 “A primeira”, iniciou o meu Mestre, “delas que me perguntas quem foram em vida foi imperatriz de muitas cidadelas. 55 Por sua luxúria foi tão possuída que líbito fez lícito em sua lei, Pra escapar da censura merecida; 61 Semíramis ela é, que lembrarei que a Nino sucedeu, sendo sua esposa,

19 Intesi ch'a cosí fatto tormento/enno dannati i peccator carnali,/che la ragion sommettono al

talento(ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988, p. 38) 20 Escritor florentino, nascido provavelmente no último quarto do século XIII e morto em 1348.

35

na terra onde o sultão agora é rei.21

A segunda personagem apresentada é Dido, filha de Belo, antigo rei de Tiro, e

mulher de Siqueu. Após a morte do marido, morto pelo irmão de Dido, Pigmaleão, ela foge

para a África e funda a cidade de Cartago, da qual torna-se rainha. Dido, segundo consta,

teria se matado para não trair a memória de Siqueu contratando novo matrimônio. Vírgilio dá

ao mito toda uma nova versão: na Eneida, narra o amor entre Dido e Enéias apresentando o

suícidio como consequência do abandono do herói amado (Eneida, IV). Dante relembra a

morte de Dido nos seguintes versos:

61 Aquela outra é a que se matou, amorosa, rompendo o voto às cinzas de Siqueu;22

E o próprio poeta interpreta, segundo o cânone exegético medieval, o trágico fim

de Dido como uma alegoria do contraste entre a razão e a paixão23. Comum à Semíramis e a

Dido é a temática da desmesura, da loucura, do desatre a que leva uma paixão irrefreável.

A seguir, logo após Dido, Dante menciona Cleópatra, rainha do Egito de 51 a 30

a.C. e amante, primeiramente, de Júlio César e, em seguida, de Marco Antônio, concedendo-

lhe, explicitamente, o atributo de “luxuriosa”, como verificamos no verso:

63 Cleópatra após vem, luxuriosa.24

Em seguida, Helena, cuja beleza mítica é apontada como causa da guerra de

Tróia, é apresentada. Filha de Zeus e de Leda, esposa de Menelau, rei de Esparta, tornou-se

21 “La prima di color di cui novelle/tu vuo' saper”, mi disse quelli allotta,/”fu imperatrice di molte favelle./A

vizio di lussuria fu sí rotta,/che libito fé licito in sua legge,/per tòrre il biasmo in che era condotta./Ell' è Semiramís, di cui si legge/che succedette a Nino e fu sua esposa;/tenne la terra che l' Soldan corregge. (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988, p. 38)

22 L'altra é colei che s'ancise amorosa,/e ruppe fede al cener di Sicheo; (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988, p. 38)

23 Nosso maior poeta, Virgílio, mostra que Enéias estava desse modo sob freio, na parte da Eneida em que essa idade é representada. Essa parte compreende os livros quarto, quinto e sexto da Eneida. E quanto estava sob freio, pode ser notado quando, após ter recebido de Dido todos os prazeres que serão descritos mais adiante no sétimo tratado e após ter sentido por ela todo o amor possível, teve de partir para percorrer honesto, louvável e frutífero caminho, como é descrito no quarto livro da Eneida. (ALIGHIERI, Banquete, p. 207)

24 poi è Cleopatrás lussuriosa. (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988, p. 39)

36

amante de Páris, filho de Príamo, e com ele fugiu para Tróia. O mito clássico a apresenta

como a maior responsável pelo sangrento conflito entre gregos e troianos que duraria dez

anos. Dante, que menciona Helena no verso 64 do canto V, como exemplo de luxúria, segue

esta tradição e a culpa da imensa tristeza devido a infinitas mortes provocadas pelo cruel

enfrentamento.

64 Helena vês, por quem tanta ocorreu desgraça, (...)25

Todas personificam a mítica imagem da mulher forte e dominante que apela, em

maior ou menor grau, ao seu encantamento e aos seus dotes sensuais e, portanto,

perfeitamente identificáveis, no imaginário medieval, com a mulher escrava submissa do

desejo carnal em detrimento do comportamento reto e racional. Dante cita, ainda, Aquiles,

Páris e Tristão26, entre “damas e cavaleiros antigos” que o amor conduziu à morte. O Poeta

estabelece, aqui, uma mútua relação entre personagens históricos, lendários e literários, e o

trinômio amor, paixão e desastre, mais do que unicamente movido pela piedade, como

atestam os versos seguintes,

70 De antigos cavaleiros tendo ouvido, e damas, do meu mestre o chamamento, piedade me deixou quase esvaído.27

e, assim, prepara o leitor para a trágica história de amor dos dois amantes

adúlteros.

Nos versos seguintes do canto, são apresentados os amantes Francesca da Rimini

e Paolo. A história dos dois adúlteros, pungente e comovente tanto ao Poeta quanto aos

leitores da Divina Comédia, dado que o canto V é um dos que mais popularidade atingiu entre

público e crítica especializada, ocupa aproximadamente a metade do canto, que está assim

estruturado: do verso 1 ao 24, é apresentado o horrendo personagem Minós; do verso 25 ao 51

é dado um panorama do segundo círculo, dos luxuriosos; do verso 52 ao 72 são apresentados 25 Elena vedi, per cui tanto reo/tempo si volse, (...). (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão:

Ulrico Hoepli, 1988, p. 39) 26 Tristão e Páris são mencionados juntos também no Roman de Renart; Páris e Helena são apresentados juntos

também em Brunetto Latini (Tresor, I 28 4). 27 Poscia ch'io ebbi 'l mio dottore udito/nomar le donne antiche e'cavalieri,/pietà mi giunse, e fui quase

smarrito.(ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988)

37

“as damas e os cavaleiros antigos”, cuja vida foi, de alguma forma, maculada pelo pecado da

luxúria; e nos versos restantes, a saber, do verso 73 ao 142, ocorre o diálogo emocionado

entre Francesca e o Poeta.

A história28 de Francesca, filha de Guido da Polenta, o Velho, senhor de Ravena, e

Paolo, irmão de Giovanni, filhos de Malatesta da Verucchio e de Concordia, mescla fatos

históricos àqueles de origem literária resultando, no mais das vezes, numa versão suspeita e

improvável. Algumas cartas de arquivo testemunham a indubitável existência de Giovanni

(nascido talvez em 1245, manco de nascença, mas valente homem de armas e de governo),

marido de Francesca, e de Paolo, o Belo (nascido por volta de 1282, casado com Orabile

Beatrice di Ghiaggiolo), dos quais, entretanto, temos poucas informações, que não

mencionam, porém, nem o adultério nem o duplo homicídio. Se sabemos tão pouco sobre os

homens que viveram tal tagédia, menos ainda sabemos sobre Francesca da Rimini, esposa de

Giovanni Malatesta, e amante de seu irmão, Paolo, protagonista do drama passional

imortalizado por poetas, escritores, pintores e músicos das mais diversas épocas29. O nome de

sua mãe é ignorado, assim como se ignora a sua data de nascimento (talvez por volta de

1260), e é graças a Dante, que foi o primeiro entre os seus contemporâneos a escrever sobre a

tragédia, que viemos a saber o nome e o local de nascimento, Ravena. Sabemos ainda que

teve uma irmã mais jovem, Samaritana, e, entre legítimos e bastardos, oito irmãos. Através de

testemunhos pouco após a sua morte, sabemos que era belíssima em seu aspecto e também

28 Quanto à história dos dois amantes, consta que Giovanni Boccaccio, no seu comentário à Comédia,

sustentava a versão de que Francesca teria sido perfidamente enganada, pois fizeram-na crer que o esposo seria Paolo e não Giovanni, e, de fato, foi Paolo quem a conduziu ao altar, porém para desposá-la por procuração, e somente na manhã seguinte da noite de núpcias ela teria se dado conta de que casara com Giovanni. Mas, ao que tudo indica, se trata de uma invenção, pois é difícil acreditar que Francesca não conhecesse Paolo e Giovanni, uma vez que as duas famílias, ambas partidárias dos guelfos, mantinham estreito contato entre si, o que praticamente desacredita a versão de Boccaccio de que Francesca nada soubesse da troca de maridos. Mesmo porque Dante poderia ter citado o fato para diminuir a culpa de Francesca. Ainda, segundo a versão de Boccaccio, foi um servo quem avisou Gianciotto da traição que, ao descobrir a mulher e o irmão em flagrante adultério, iracundo e desesperado assassinou os dois amantes. De qualquer modo, a versão de Boccaccio, de assassinato em flagrante delito, foi considerada oficial, corroborando com a construção da imagem de mulher provocadora e pecadora de Francesca, bem ao gosto do que pregava a moral medieval, ao passo que Giovanni é visto como um exemplo de resignação e tolerância, até a descoberta da traição que o armou de agressividade.

29 Podemos contabilizar, entre outras, as seguintes obras relacionadas à Francesca da Rimini: as tragédias escritas por Silvio Pellico, em 1818, e por Grabriele D'Annunzio, em 1901, ambas intituladas Francesca da Rimini; a peça Francesca da Rimini (1853), de autoria George Henry Boker; as óperas de autoria de Sergei Rachmaninoff, de 1906, e de Riccardo Zandonai, de 1914, ambas intituladas Francesca da Rimini; a escultura de autoria de Auguste Rodin, O Beijo, de 1888, inspirada na personagem; a sinfonia de autoria Pyotr Ilyich Tchaikovsky, intitulada Francesca da Rimini, de 1876; e as pinturas Paolo e Francesca (1819) e A Morte de Francesca da Rimini e Paolo Malatesta (1870), de autoria de Jean-Auguste-Dominique Ingres e Alexandre Cabanel, respectivamente.

38

altiva, e que, como era hábito entre as jovens da Idade Média, atravessou a juventude

tranqüilamente, avessa à diversão e muito dedicada às práticas religiosas. De acordo com os

costumes da época, casou-se, talvez em 1275, ou seja, quando tinha quinze ou dezesseis anos,

por meio de uma união arranjada, com Giovanni (Gianciotto) Malatesta, ao qual deu,

seguramente, dois filhos: Concordia e Francesco, morto em tenra idade. No que diz respeito a

sua relação adulterina - e, em consequência da mentalidade da época, também incestuosa, já

que um cunhado era considerado um irmão - com Paolo, não há um só documento de arquivo

que a mencione, seja direta ou indiretamente, assim como nem menos é citado o assassinato

por parte de Giovanni, mas sabe-se que o marido casou-se novamente no mais tardar em

1286, fato que permite afirmar que a morte de Francesca ocorreu entre 1283 e 1285, quando

ela tinha entre 23 e 26 anos. Os documentos da época, possivelmente por pressão exercida

pelas famílias poderosas, nada falam do trágico acontecido, e o único narrador do fato na

época é Dante. Podemos afirmar que de certo há somente a identidade dos protagonistas do

adultério dos cunhados e o assassinato de ambos por parte do marido traído.

A partir do verso 73, o casal que unido vai, como uma só pessoa, podemos assim

dizer, chama a atenção de Dante:

73 E comecei: “Poeta, a meu contento a esses dois falaria que unidos vão, e tão leves parecem ser ao vento”. 76 Respondeu ele: “Espera, já estarão mais próximos de nós, então lhes pede, pelo amor que os conduz, e eles virão”. 79 Numa hora então em que a tormenta cede, a voz movi: “Ó almas combalidas, falai conosco, se outrem não o impede”. 82 Tal como pombas quando amor convida-se, asas firmes abrindo, ao compartido ninho revoam, pelo querer trazidas,30

Cumpre lembrar, que a pomba

30 I' cominciai: “Poeta, volontieri/parlerei a quei due che 'nsieme vanno,/e paion sí al vento esser leggeri”,/Ed

elli a me: “Vedrai quando saranno/più presso a noi; e tu allor li priega/per quello amor che i mena, ed ei verranno”,/Sí tosto come il vento a noi li piega,/mossi la voce: “O anime affannate,/venite a noi parlar, s'altri nol niega!”,/Quali colombe dal disio chiamate/con l'ali alzate e ferme al dolce nido/vegnon per l'aere, dal voler portate; (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988, p. 39-40)

39

ao longo de toda a simbologia judaico-cristã – que, com o Novo Testamento, acabará por representar o Espírito Santo – é, fundamentalmente, um símbolo de pureza, de simplicidade, e também, quando trás o ramo de oliveira para Noé, na arca, de paz, de harmonia, esperança, felicidade recuperada”. Entretanto, na acepção pagã, que valoriza de modo diverso a noção de pureza, não a opondo ao amor carnal mas associando-a a ele, a pomba, ave de Afrodite, representa a realização amorosa que o amante oferece ao objeto do seu desejo. Essas acepções, que só divergem na aparência, fazem com que a pomba represente muitas vezes aquilo que o homem tem em si mesmo de imorredouro, quer dizer, o princípio vital, a alma. [...] O amoroso não chama à sua amada minha alma? (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2003, p. 728)

É principalmente a partir desta parte do texto, no diálogo com Francesca da

Rimini, que a palavra, e por que não dizer, o sentimento, que se torna mais perceptível, que

delineia o canto e que desenha os seus traços gerais, é a piedade. Mais de uma vez, ao longo

dos versos, a piedade transtorna o Poeta – sentimento que é percebido por Francesca no verso

93 - deixando-o em um estado de confusão ou perturbação como atestam diversos dos seus

versos (grifos nossos):

44 nem a esperança lhes concede alento, não já de pouso, mas de menor pena [...] 70 De antigos cavaleiros rendo ouvido, e damas, do meu Mestre o chamamento, piedade me deixou quase esvaído. [...] 91 se fosse amigo o rei do Universo a ele reazaríamos por tua paz, pois que te apieda o nosso mal perverso. [...] 115 Depois voltei-me novamente ao par, e perguntei: “Francesca, o teu tormento até às lágrimas move o meu pesar;

O texto nos permite levantar algumas hipóteses, nenhuma de caráter conclusivo, é lógico,

levando-se em conta a multiplicidade de leituras que a obra permite, acerca das questões

relacionadas ao pecado e à imagem da mulher na Idade Média. Francesca e Paolo eram

40

amantes, porém o seu amor estava longe de ser platônico, longe daquele tipo de amor

intelectualizado e que nega qualquer nobreza às relações materiais e carnais, como bem

preferiria o poeta, e, é importante lembrar que além de adúlteros, os amantes eram também

incestuosos para a mentalidade medieval, posto que eram quase como irmãos. Ao Dante da

tradição cristã e observante dos princípios religiosos da fé católica a única coisa a ser feita era

destinar o inferno aos amantes, mas ao Dante homem era impensável e impossível não sentir-

se impelido por comoção diante da sorte do casal. Em contrapartida, o fato dos dois amantes

estarem juntos e juntos permanecerem pela eternidade, ainda que não na alegria, mas na

tristeza, dá um tom de melancólica vitória, validando as suas crenças no amor, independente

da orientação de tal amor. Ainda que este amor, não obstante a nobreza de alma do Poeta e os

pontos de convergência com a sua própria história, seja passível de condenação, segundo a

moral da época, ao colocar Francesca, e, conseqüentemente, Paolo, no segundo círculo dos

luxuriosos no Inferno, Dante reafirma e respeita as convicções do credo religioso que segue.

Entretanto, cumpre notar, o tratamento dado por Dante à Francesca no mencionado canto. A

voz que fala é a dela. Francesca é, aparentemente, apresentada, como uma espécie de

antípoda, real e humana, da figura feminina de maior destaque na obra e, porque não dizer, da

vida do poeta florentino, a mulher angelical cantada pelos poetas do dolce stil nuovo,

idealizada e inatingível. Ao contraste entre as duas personagens femininas de relevante

importância na Divina Comédia podemos, ainda, estabelecer um paralelo com o embate

pessoal do autor ao colocar lado a lado os seus dogmas religiosos presentes e a força

inexorável do amor tão bem representada nos célebres tercetos, que resumem de maneira

exemplar o conjunto de idéias fundamentais do amor cortês, cada um introduzido pela mesma

palavra e que certamente figuram, não há como negar, entre os mais belos já compostos em

todos os tempos:

100 Amor, que alma gentil pronto apreende,31 este prendeu pela bela pessoa de mim levada, e o modo ainda me ofende. 103 Amor, que a amado algum amar perdoa, tomou-me, pelo seu querer, tão forte, que como vês ainda me agrilhoa.

31 “Amor, ch'al cor gentil ratto s'apprende”, é citação explícita e direta da célebre canção, considerada o

“manifesto” do dolce stil nuovo, “Al cor gentil rempaira sempre amore”, de Guido Guinizelli.

41

106 Amor nos conduziu a uma só morte; Caína terá quem deliu nosso alento”. Co' estas palavras resumiu sua sorte.32

O tratamento dado a Francesca e Paolo denota uma cumplicidade de orientação

emotiva do Poeta com os dois amantes, remetendo-o, talvez, à sua juventude e aos seus ideais

amorosos. Fechando de forma brilhante o canto, Dante se compraz de tal maneira, diante da

comoção que a dolorosa história provoca em Paolo, com o desafortunado e humano destino

do jovem casal, e nos surpreende, leitores, com a sua extremada reação:

139 Enquanto uma dizia seu amargor, chorava a outra alma e, como que se esvai em morte, eu me esvaí de pena e dor, 142 e caí como corpo morto cai.33

32 Amor, ch'al cor gentil ratto s'apprende,/prese costui de la bella persona/che mi fu tolta; e 'l modo ancor me

offende./Amor, ch'a nullo amato amar perdona,/mi prese del costui picaer sí forte,/che, come vedi, ancor non m'abbandona./Amor condusse noi ad una morte./Caina attende chi a vita ci spense.”/Queste parole da lor ci fuor porte. (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988)

33 Mentre che l'uno spirto questo disse,/l'altro piangea, sì che di pietade/io venni men così com'io morrisse;/e caddi come corpo morto cadde. (ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. 21ª ed. Milão: Ulrico Hoepli, 1988)

42

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o processo de assimilação de alguns conceitos, a produção de um arcabouço

teórico e a reflexão sobre obra e opção poética do autor, parece-nos lógico sustentar que a

questão central do canto analisado é justamente a ambigüidade que transpassa o diálogo entre

o Poeta e o casal de amantes - representado por Francesca, uma vez que é ela quem fala – uma

vez que a tensão narrativa é mantida através de um jogo constante de sugeridas experiências

emotivas em comum. É concebível, para um possível leitor desantento, a confusão entre as

palavras do Poeta e aquelas de Francesca, pois é pertinente alertar que, em alguns

determinados momentos, o que é dito por um caberia perfeitamente ao outro. O

reconhecimento dos seus próprios ideiais de juventude desperta no Poeta a emoção e a

piedade, justamente porque criatura humana: a fragilidade da própria natureza do homem, a

inexorabilidade dos sentimentos, a inflexibilidade dos desejos, a implacabilidade das paixões

e a influência perniciosa dos vícios o comovem.

Uma vez mais podemos mencionar a compaixão do Poeta pelo sofrimento alheio,

porém devemos nos perguntar qual a gênese de tal sentimento. Ora, Francesca, embora real,

verdadeiramente humana e, como tal, falível, ainda assim é dama de coração gentil - pela

postura, pela atitude, pelas palavras melífluas, porém firmes, em alguns momentos, quando a

ação assim o requer, com que responde ao poeta, ao ser indagada sobre as causas e razões de

seu sofrimento – e pode, deste modo, ser considerada uma espécie de Beatriz em construção:

o seu destino seria certamente o da grande musa do Poeta, não fosse a falha, o pecado, o

tropeço no meio do caminho da selva escura. De qualquer maneira, entretanto, quem ganha é

a literatura, recompesandos somos nós, leitores, visto que não é sempre que somos brindados

com um personagem literário, embora decalcado de personagem real, da envergadura de uma

Francesca da Rimini. Cumpre destacar com que tamanha habilidade Dante introduz o

elemento ficcional literário como estopim de um amor irrevogável: o relato de Lancelote e

Guinevere é a história dentro da história, situação metalingüística por excelência, a vida

imitando a arte e a arte imitando a arte, sempre de maneira ambígua, assim como a situação

dos amantes que unidos em vida pelo amor que não perdoa, continuam desta forma, como um

só, após a morte e na danação eterna.

É através do comovente diálogo com Francesca que Dante, de maneira genial,

43

explora a literatura cortesã e o stil nuovo. Mesmo porque poeta deste estilo novo, ele

compreende como ninguém a questão da gentileza de espírito, sendo capaz de apiedar-se ao

mesmo tempo em que condena, mostrando sempre uma extraordinária clareza de idéias. Para

o Poeta, agora mais maduro, é um outro tipo de amor que enobrece a alma e o espírito: o amor

virtude.

44

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47

ANEXOS

CANTO V34 1 Do círculo primeiro fui descendo ao segundo, onde o espaço se restringe e cresce a dor, em brados irrompendo. 4 Lá está Minós que horrendamente ringe; as culpas examina já na entrada, julga e despacha conforme se cinge. 7 Digo, que quando a alma malfadada se lhe apresenta, toda se confessa, e ele, que bem conhece, para cada 10 culpa, o lugar do inferno que a mereça, tantas vezes co' a cauda então se enrola quantos graus determina que ela desça 13 De almas, da densa turba, uma se arrola por vez pra submeter-se ao julgamento, e fala, e escuta, e logo abaixo rola. 16 “Ó tu que vens ao último aposento”, disse, ao ver-me entre as almas derrelitas, Minós, sustando o seu cometimento: 19 “vê como entras e a quem tua fé creditas, não te engane a amplitude desta entrada”. Então meu Mestre: “Por que ainda gritas? 22 Não impeças a sua fatal jornada, pois lá, onde se pode o que se quer, isto se quer, e não peças mais nada”. 25 Os tristes sons começo a perceber do lugar aonde eu vim, onde queixume e muito pranto vêm me acometer; 28 vim a um lugar mudo de todo lume que muge como mar que, em grã tormenta de opostos ventos o conflito assume.

34 In: ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Tradução: Italo Eugenio Mauro. São Paulo – SP: editora

34, 1998. p. 43-54.

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31 A procela infernal, que nunca assenta, essas almas arrasta em sua rapina, volteando e percutindo as atormenta. 34 Quando chegam em face à sua ruína, aí pranto e lamento e dor clamante, aí blasfêmias contra a lei divina. 37 Entendi que essa é a pena resultante da transgressão carnal, que desafia a razão, e a submete a seu talante. 40 Como estorninhos que, na estação fria, suas asas vão levando, em chusma plena, aqui as almas carrega a ventania, 43 e a revolver pra cá e pra lá as condena; nem a esperança lhes concede alento, não já de pouso, mas de menor pena. 46 E, como grous cantando o seu lamento, que longa trilha formam no ar passando, assim, trazidas pelo negro vento, 49 sombras eu vi passar se lamentando; e ao Mestre perguntei: “Quem são aquelas gentes que o vento assim vai castigando?”. 52 “A primeira”, iniciou o meu Mestre, “delas que me perguntas quem foram em vida, foi imperatriz de muitas cidadelas. 55 Por sua luxúria foi tão possuída que líbito fez lícito em sua lei, Pra escapar da censura merecida; 58 Semíramis ela é, que lembrarei que a Nino sucedeu, sendo sua esposa, na terra onde o sultão agora é rei. 61 Aquela outra é a que se matou, amorosa, rompendo o voto às cinzas de Siqueu; Cleópatra após vem, luxuriosa. 64 Helena vês, por quem tanta ocorreu desgraça, e o grande Aquiles, que ora vês, por amor combatendo pereceu.

49

67 Depois, Páris, Tristão”; e, vez por vez, mais de mil indicava-me, entretido, sombras a quem amor vida desfez 70 De antigos cavaleiros tendo ouvido, e damas, do meu Mestre o chamamento, piedade me deixou quase esvaído. 73 E comecei: “Poeta, a meu contento a esses dois falaria que unidos vão, e tão leves parecem se ao vento”. 76 Respondeu ele: “Espera, já estarão mais próximos de nós, então lhes pede, pelo amor que os conduz, e eles virão”. 79 Numa hora então em que a tormenta cede, a voz movi: “Ó almas combalidas, falai conosco, se outrem não o impede”. 82 Tal como pombas quando amor convida-as, asas firmes abrindo, ao compartido ninho revoam, pelo querer trazidas 85 saíram da região que acolhe Dido, vindo até nós pelo vento maligno, tão do meu grito o afeto foi entendido: 88 “Ó ser que assim generoso e benigno vens visitar, neste negrume imerso, nós que o mundo tingimos de sanguino; 91 se fosse amigo o rei do Universo a ele rezaríamos por tua paz, pois que te apieda o nosso mal perverso. 94 Toda palavra que falar te apraz ou ouvir, será por nós falada ou ouvida, quando o vento calar, como ora faz. 97 Repousa a terra na qual fui nascida sobre a marinha onde o rio Pó descende, e pra sua paz seu séquito convida. 100 Amor, que alma gentil pronto apreende, este prendeu pela bela pessoa de mim levada, e o modo ainda me ofende.

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103 Amor, que a amado algum amar perdoa, tomou-me, pelo seu querer, tão forte, que vês ainda me agrilhoa. 106 Amor nos conduziu a uma só morte; Caína terá quem deliu nosso alento”. Co' estas palavras resumiu sua sorte. 109 Ao ouvir dessas almas o tormento, baixei o rosto, e quedei-me, até meu guia me perguntar: “Que tens no pensamento?”. 112 Em resposta exclamei: “Ah! que ironia! quanto desejo, quão ledo pensar ao doloroso passo os levaria!”. 115 Depois voltei-me novamente ao par, e perguntei: “Francesca, o teu tormento até doloroso passo os levaria!”. 118 mas dize: dos suspiros no momento, com que e como concedeu-te amor do secreto desejo o entendimento?” 121 E ela a mim: “Não há tão grande dor qual lembrança de um tempo feliz, quando em miséria, e o sabe o teu mentor. 124 Mas, se de conhecer desde a raiz o nosso amor demonstras tal anseio, eu contarei, como quem chora e diz. 127 Líamos um dia nós dois, para recreio, de Lancelote e do amor que o prendeu; éramos sós, e sem qualquer receio. 130 Vezes essa leitura nos ergueu olhar a olhar, no rosto desmaiado, mas um só ponto foi que nos venceu. 133 Ao lermos o sorriso desejado ser beijado por tão perfeito amante, este, que nunca seja-me apartado, 136 tremendo, a boca me beijou um instante. Foi Galeoto o livro, e o seu autor; nesse dia não o lemos mais adiante”.

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139 Enquanto uma dizia seu amargor, chorava a outra alma e, como quem se esvai em morte, eu me esvaí de pena e dor, 142 e caí como corpo morto cai.