sousa, pedro diniz - um modelo de análise da dramatização na imprensa escrita

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  • 7/25/2019 SOUSA, Pedro Diniz - Um Modelo de Anlise Da Dramatizao Na Imprensa Escrita

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    UM MODELO DE ANLISE DA DRAMATIZAO NA IMPRENSAESCRITA

    Pedro Diniz de Sousa

    Resumo Parte-se de uma definio do conceito de dramatizao e daidentificao das funes que o discurso dramtico pode desempenhar no campodos mdia, para chegar a uma grelha de anlise capaz de captar as diversaspropriedades deste discurso, atravs de instncias como a metfora, a metonmia,a simplificao, a personificao ou o apelo afectivo. Embora a construo domodelo se apoie num objecto situado no campo da imprensa escrita doutrinria

    e num perodo de crise (o chamado PREC), em que vrios factores concorrem parapropiciar o discurso dramtico, procurmos faz-lo de modo a permitir futurasabordagens de outros tipos de mdia, numa transio de sculo em que o temaparece assumir grande actualidade. Como concluso do estudo de caso sugerimosa hiptese de a dramatizao constituir um meio eficaz para inverter os termosde uma frase emblemtica da ideologia da objectividade (facts are sacred, comment isfree): o discurso dramtico viabiliza uma prtica jornalstica em que, semnecessidade de macular a verdade, quaisquer factos so meros adereos de umpalco ideolgico esse sim intocvel (comment is sacred, facts are free).

    Palavras-chave Dramatizao, imprensa escrita, imprensa doutrinria,anlise do discurso.

    Algumas caractersticas atribudas ao discurso meditico, mormente ao das notcias(Traquina, 1988), aproximam-no significativamente do discurso do drama. So os ca -sos da importncia do tempo presente, da simplificao decorrente da necessidade de

    produzir um discurso claro, do carcter apelativo deste discurso (muitas vezes por viaafectiva), da presena, no caso das notcias, de narrativas caracterizadas por uma con-centrao da aco em torno de um pequeno ncleo de personagens.

    O campo de anlise to vasto como mltiplos e distintos so os actuais m -dia. Da imprensa escrita televiso, da rdio Internet, muitos podero ser tam -

    bm os propsitos e as formas de dramatizar, bem como os objectos de dramatiza -o (todo o tipo de acontecimentos no apenas aqueles que pautam as man che -tes dos noticirios , temas e problemticas sociais, ideias e ideologias).

    Um modelo de anlise da dramatizao no discurso dos mdia adquire uma

    utilidade acrescida num tempo em que vingam conceitos como o de sociedade doespectculo (Debord, 1991) ou o de estado-espectculo (Schwartzenberg, 1977):os factos s valem se mediatizados por imagens. Aparentemente desenvolve-seuma civilizao que tende a esbater as fronteiras entre real e virtual, atravs decanais (multi)mediticos capazes de produzir realidade, simulando-a atravs demeios tcnicos cada vez mais sofisticados.

    SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 35, 2001, pp. 79-116

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    Podemos, para cada situao de comunica o mass-meditica, isto , para cadamediume para o respectivo campo social, colocar vrias questes:

    Existe de facto dramatizao? Existindo, como se caracteriza, em que consis te

    exactamente? Os seus suportes so grficos, verbais ou ambos? A que elementosestilsticos ou estruturais do discurso recorre, e em cada caso para qu? Que fun -es desempenha cada uma dessas prticas de dramatizao no seio do campo so -cial em que o mediumse insere mais directamente?

    O nosso estudo incide sobre um tipo particular de comunicao meditica, aimprensa escrita doutrinria ou poltica, no perodo de crise que se seguiu ao 11 deMaro de 1975 (na acepo de Lucien Sfez, 1988: 46). Trata-se de avaliar, neste con -texto muito particular da nossa histria recente, as caractersticas e funes da dra-matizao no discurso da Voz do Povo, jornal que apoiava a UDP, embora se no

    considerasse como rgo do partido.E responder ao desafio analtico lanado por Dominique Pouchin, corres pon -dente do Le Mondeem Lisboa no ps-25 de Abril: () esta Revoluo foi sobre tudoverbalista e teatral. Com uma dupla vantagem: que se tratava de um teatro a srio,sem atingir, salvo raras excepes, nveis de violncia (Pouchin, 1994).

    A ideologia da objectividade e a produo social da realidade

    A abordagem da dramatizao nos mdia implica uma reflexo prvia sobre asideias que se desenvolveram acerca do discurso noticioso e da prtica jornalstica,das quais sobressai a ideologia da objectividade. Tendo surgido no sculo XIX,esta mitologia desenvolveu-se ao longo do sculo XX, associada m xi mafacts aresacred, comment is free(Mesquita e Rebelo, 1994: 114). Segundo ela, o jornalismo se -ria um espelho da realidade, desinteressado e objectivo (Traquina, 1988). A met-fora do espelho evoca tambm o carcter mgico do acto subjacente a este ideal de

    objectividade: o acto de transplantar a realidade do seu espao natural para o espa-o do medium e de a oferecer, intacta, ao espectador.Esta ideologia foi contestada por numerosos autores, como Tuchman (1978)

    ou Saperas (1993), que atribuem aos mdia a funo de produzir realidade, no -meadamente ao seleccionarem e omitirem determinados temas e acontecimentos,ao abordarem esses temas de determinadas formas em detrimento de outras e, fi -nalmente, ao penetrarem na construo social da realidade, na medida em que con -ferem visibilidade social ao acontecimento noticiado,1gerando consequncias des-se acontecimento ao nvel da realidade social.2

    Merton e Lazarsfeld atribuem aos mdia as funes de atribuio e confir -mao de status, produo de normatividade e influenciao e conduta dogosto popular (citados por Paquete de Oliveira, 1988: 85). A sociloga norte-ame -ricana Gaye Tuchman (1978) entende as notcias como realidade construda apartir de enquadramentos (frames); as notcias so como janelas sobre o aconte ci-mento, que chega ao destinatrio depois de filtrado por uma conjugao de

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    factores como a sua posio em relao janela, o formato desta ou os mltiplosconstrangimentos com que o jornalista interage no seu trabalho. Para Bourdieu(1989), a transformao das categorias de percepo do real que molda a prpria

    transformao do real, e nesse sentido que os mdia adquirem um poder efectivosobre a realidade social.

    Conceitos fundamentais

    O conceito de dramatizao

    Considerando a dramatizao como a aco de dar forma de drama, enten demospor drama uma forma literria ou simplesmente discursiva baseada nalguns atri -

    butos que se combinam para criar a iluso do vivido ou iluso dramtica(Reis, 1995:274). O termo grego originrio remete-nos para a aco, nomeadamente a teatral,que ser o atributo central do drama (Silva, 1969; Reis, 1995).3

    No drama o dilogo entre as personagens que define a aco, o cenrio e asprprias personagens (Hamburger, 1986), no existindo, como noutros gneros li -terrios, a interveno da figura do narrador (Reis, 1995). A aco dramtica sub -

    mete-se a atributos especficos: a concentrao em torno de personagens principaise num tempo limitado; a tenso que decorre dessa concentrao e das relaes con -flituosas que se estabelecem entre essas personagens; a intensidade que pauta oritmo da narrao (Silva, 1969; Reis, 1995). Deste modo, a forma dramtica cons ti -tui um apelo afectividade e s emoes do espectador/leitor, e procura criar nelea iluso do vivido (Silva, 1969; Dawson, 1975).

    As funes da dramatizao

    Com base em diversos contributos tericos, procurmos identificar um conjuntode funes que a dramatizao hipoteticamente desempenha no discurso mediti -co, no intuito de as confirmar ou infirmar pela anlise. Efectivamente, embora nocaso que nos prendeu, a imprensa escrita doutrinria, estas funes assumam sen -tidos mais especficos do campo poltico, elas so extrapolveis para o restante dis-curso meditico, incluindo o audiovisual.

    A funo de conferir visi bilida de. Como sustenta Pierre Bourdieu (1989: 145), a visibili-

    dade condi o sine qua nonpara a existncia social, uma vez que est na origemdas vises do mundo ou das representaes sociais. Para Adriano Duarte Rodri -gues, mesmo a principal caracterstica de qualquer corpo social com legitimidadeinstituinte do respectivo campo social. Por outro lado, o campo dos mdiacons ti-tui-se como campo de mediao entre os restantes campos sociais, desempe -nhando a funo de lhes conferir visibilidade. Quer dizer, os diversos campos

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    sociais utilizam de mltiplas formas o campo dos mdiapara se legitimarem, me-diante processos rituais instituintes (Rodrigues, 1990: 145-146).

    Assim, uma das funes das notcias precisamente dar a ver, tal como um

    palco teatral d a ver aos espectadores uma determinada pea, podendo falar-se deuma dimenso cnica das notcias (idem, 1988: 12).

    A dramatizao tem a vocao de conferir visibilidade. esse o sentido doefeito de iluso dramtica a que j nos referimos: o apelo afectivo, a tenso, a sim -plificao, a concentrao combinam-se para dar visibilidade social ao objecto dra-matizado. Carlos Reis (1995) associa mesmo a iluso dramtica funo ideolgi -co-social do teatro.

    Num estudo relativo ao tema da dramatizao, Maria Augusta Babo (1998:75) nota que a visibilidade ou a exterioridade que a dramatizao confere a um

    objecto o garante da sua prpria existncia. Podemos considerar ento que anotcia dramatizadacontribui de uma forma mais activa para gerar visibilidade.

    A funo de luta pela imposio de uma viso do mundo. Pierre Bourdieu (1998: 90) refe-re-se luta poltica como uma luta quotidiana pela imposio de categorias de per -cepo do mundo social, pela imposio da viso legtima desse mundo. Uma lutaque ultrapassa o mbito ideolgico, visto que a instituio de uma viso do mundolegitima uma interveno directa no mundo social que corrobore essa mesmaviso.

    Estando o discurso dramtico vocacionado para representar a totalidade davida ou o mundo no qual se desenrola a aco (Dawson, 1975: 47), ele cons ti -tui-se como uma forma eficaz de empreender a luta simblica pela imposio deuma viso do mundo.4

    Esta vocao fortalecida pela vocao natural dosmdia para imporemvises do mundo. Se as primeiras tipificaes das funes dos mdia se baseavamna trilogia informar, formar e divertir(Paquete de Oliveira, 1988: 84), enquadrvel naideologia da objectividade, hoje no controverso afirmar que a imprensa ocupaum lugar de destaque no processo de produo, reproduo e sedimentao das re -

    presentaes sociais. E ao produzirem representaes sociais esto tambm a parti-cipar na produo da realidade social. Nelson Traquina (1988: 37) refere a ttulo deexemplo que muitas problemticas s so abordadas por haver notcias, relatos deacontecimentos, que proporcionam essa abordagem.

    A funo remitificadora. Alguns autores constatam que as sociedades modernas secaracterizam por uma desintegrao da identidade colectiva (Lipovetsky, 1989).Segundo Adriano Duarte Rodrigues, os mdia tm a funo de organizar a ex pe -rincia do aleatrio do homem moderno, devolvendo-lhe novos enquadramentos

    explicativos e uma imagem coerente do destino. O autor designa-a como a fun -o remitificadora (Rodrigues, 1988: 14-15).Particularmente em perodos de crise, caracterizados pelo questionar das or -

    dens simblica e social, pela abundncia de signos, torna-se particularmente ne -cessrio o surgimento dessa imagem coerente, que permita repor as ordens simb -lica e social.

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    Sfez considera que, nestes perodos, a encenao de um conflito permite de -sencadear a ruptura em relao desordem e restaurar o mito fundador (1988:46). neste sentido que, em perodos de crise, a dramatizao ela prpria uma

    forma de expor conflitos ou representar situaes de tenso se assume como ummeio de repor o mito fundador, um enquadramento explicativo que resolva de fi -nitivamente a confuso simblica predominante. A dramatizao pode assim en -tender-se como um ritual, uma celebrao ritualizada do mito fundador.

    A funo de agitao poltica. Existem fortes ligaes entre a funo de agitao po lti-ca, entendida como a estimulao de um conflito poltico junto dos destinatrios, eo discurso dramtico.

    Por um lado, porque a forma dramtica passa inevitavelmente pelas noes

    de tenso e de conflito entre as personagens. Por outro, porque diversos atributosda dramatizao, tal como adiante definida em termos operatrios, cumprem afuno de agitao, em especial os relativos ao apelo afectivo.

    Esta funo adequa-se particularmente teoria revolucionria leninista. ParaLenine, uma das tarefas do agitador dramatizar os pequenos factos, situando-osao nvel da luta de classes e procurando suscitar nas massas os sentimentos de des -contentamento, revolta e dio de classe. O propagandista, em contrapartida, teriaum desempenho mais terico, centrado na explicao das contradies do capita -lismo a grupos mais restritos e dotados de maior capital cultural (Domenach,

    1962).

    A funo de persuaso atravs da unio espectador/actor. Um dos efeitos do discursodramtico, alm do da unio do grupo de espectadores, o da unio entre esses es -pectadores e os actores em palco (Silva, 1969: 247). No caso do teatro do povo,que consistia em gigantescas encenaes montadas por regimes para assinalar da -tas decisivas, este efeito era conseguido na medida em que no palco se repre sen ta -va o prprio povo, isto , os espectadores reviam-se no palco (Dort, 1971: 267-280).

    Podemos questionar se a comunicao meditica actual, com o seu discurso

    dramtico, no procurar uma unio entre espectadores (neste caso leitores, te les -pectadores, etc.) e actores (os protagonistas da realidade abordada pelo medium).Um efeito que consiste em arrastar o espectador para a cena, informando-o de que,na sua posio de receptor, ele est a ver-se a si prprio a actuar no palco encenadopelo medium. No caso do jornalismo poltico, trata-se de tentar a identificao doleitor com as foras sociais ou polticas que o jornal apoia, ou de levar o leitor a ade-rir implicando-o na aco.

    A dramatizao no contexto do jornalismo polticoA teatralidade do pol tico. A dramatizao encontra no campo poltico um terrenopropcio, perante a teatralidade intrnseca deste campo, conhecida e abun dante -mente teorizada. Podemos evocar a ideia de teatro poltico de Piscator como pa -radigma da dimenso teatral do poltico, entretanto desenvolvida por autores to

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    importantes e heterogneos como Balandier (1999), Bourdieu (1989) ou Li po vetsky(1989). De forma sinttica, Abls (1995) afirma que, no campo poltico, as en cena -es e os processos de ritualizao so constantes.

    Contudo, cabe referir que os principais contributos tericos acerca do temacentram-se essencialmente na teatralidade do exerccio do poder por parte dosseus titulares/representantes, deixando a outros componentes da actividade po l -tica, como o contra-poder ou os destinatrios do poder/representados, uma gran -de margem de desenvolvimento terico. Ao procurar a anlise da dramatizaonum discurso de contra-poder (o da Voz do Povo), o nosso trabalho encontra-se partida desenquadrado das teorias acerca da dramatizao dos rituais de poder, oque lhe confere um interesse adicional.

    Interaco entre os campos poltico e meditico. A teatralidade intrnseca do poltico, apar da capacidade e da propenso dos meios de comunicao de massas para dra -matizar, fizeram destes o instrumento privilegiado de comunicao entre a classepoltica e a populao.

    A relao entre a poltica e os mdia comeou por ser de instrumentalizaodestes por aquela. Os regimes polticos, e com particular visibilidade os esta dos au-toritrios, usaram os mdia (a imprensa escrita, a rdio, o cinema e a televiso)como instrumento de propaganda. Abordagens histricas do fenmeno da propa -ganda, como as de Domenach (1962) e Quintero (1993), ilustram bem esta

    tendncia.Nas ltimas dcadas, nas sociedades democrticas, o panorama transfor -mou-se profundamente, com o extraordinrio aumento da influncia social e po l -tica dos mdia. Auto-suficientes e culturalmente dominantes devido ao seu contro -lo das tcnicas e do mercado da seduo, so estes que passam a instrumentalizaras instituies polticas dependentes desse jogo, no dizer de Alain Minc (1994) oude Lipovetsky (1989).

    O jornalismo doutri n rio. O jornalismo doutrinrio (ou poltico) constitui um tipo

    particular de interaco entre os dois campos, caracterizado por uma instru men ta -lizao poltica tolerada, at no quadro legal dos regimes democrticos. o caso doart. 3. da Lei de Imprensa portuguesa de Fevereiro de 1975, que vincula apenas aimprensa informativa ao respeito pelos princpios deontolgicos da im pren sa ea tica profissional.

    Trata-se tambm de um tipo de jornalismo ligado primeira etapa da his t -ria da imprensa, que se desenrolou no perodo de convulses ideolgicas que atra -vessou o sculo XIX, at I Guerra Mundial (Albertosa, 1974: 71).

    A dramatizao como estratgia de aco revolucio nria. O envolvimento do leitornuma viso do mundo dominada no campo das representaes sociais, o con tri -buir para a visibilidade desta viso, para a agitao poltica, para a unio especta-dor/actor (enfim, as funes que hipoteticamente atribumos dramatizao), avigncia de um perodo de crise, caracterizado pela indefinio da ordem sim bli -ca (Sfez, 1988; Bourdieu, 1998) todos estes factores fazem da dramatizao uma

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    estratgia discursiva ou simblica que favorece a adeso causa revolucionriapor parte do leitor.

    Outro aspecto que a favorece o facto de o discurso e a aco dramticas se ca -

    racterizarem pela simplicidade, necessria para que o pblico acompanhe o enre -do no tempo do palco. Para Trotsky (citado por Domenach, 1962: 25), a condutibi -lidade das ideias um imperativo do xito revolucionrio, e esta exige um discur-so simples, acessvel ao leitor operrio ou campons.

    A prpria teoria marxista defende como estratgia simblica a reconstruodo imaginrio, que passa por liquidar todas as supersties do passado (Marx,1982), pela destruio da tradio e da memria, responsveis pela fabricao deimagens que sustenta o regime capitalista (Sfez, 1988). E como vimos, a dra mati -zao pode ser um meio eficaz para concretizar esta tarefa.

    A Voz do Povo, um jornal doutrinrio em 1975

    No caso do jornalismo doutrinrio, que serviu de base ao nosso trabalho, a questoda dramatizao deve ser recolocada em termos tericos, uma vez que estamos pe -rante um campo muito particular, o poltico, e um tipo de jornalismo divergente do

    informativo. Uma vez que esta especificidade vai determinar a construo domodelo de anlise, impe-se esclarecer o leitor quanto aos principais traos distin-tivos do jornal.

    O jornalismo da Voz do Povo

    Partindo do nosso estudo de caso para caracterizar com mais detalhe o jornalismodoutrinrio, constatamos, pela leitura dos documentos estatutrios do jornal e por

    leituras preliminares do material, que o tipo de jornalismo praticado contrariafrontalmente a ideia de neutralidade veiculada pela ideologia da objectividade.5

    Ao descomprometimento desta ideologia, o jornal ope o comprometimento dosjornalistas com a causa revolucionria. No seu Regulamento interno a Voz doPovoautodefine-se como semanrio informativo de combate e crtica social.

    A ideia (sem dvida utpica) de comunicador desinteressado cede lugar de comunicador interessado, oposio que se aplica s funes da prpria ac tivi -dade jornalstica: enquanto no primeiro caso elas so enquadrveis nas tipologiastradicionais, no segundo elas obedecem a uma funo poltica, a uma estratgia ex -

    plcita de tomada do poder poltico. No Estatuto editorial fala-se, por exemplo,de radical democratizao da sociedade portuguesa ou da orientao editorialcontra a escalada reaccionria nas Foras Armadas, no aparelho de Estado, naImprensa, pela melhoria constante das condies de vida da classe operria.

    O jornalista passivo d lugar a um jornalista activo, vigilante, dotado deuma misso poltica ao servio dos sectores mais desfavorecidos da populao

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    na sua luta contra a burguesia, encarregue de efectuar as denncias e re ve la -es polticas preconizadas por Lenine, encarregue de agi tar o leitor e de o instruirquanto s formas de luta a empreender.

    Se um facto que podemos abordar qualquer mass-mediumnas suas funcio na-lidades econmica, poltica e cultural, tambm devemos considerar que em cadamass-me dium h dimenses que so de certa forma dominantes. No caso da lutapelas audincias entre os actuais mdia, provavelmente, a funo econmica terum papel mais determinante no desenrolar do jogo. No caso de um jornal dou trin -rio, a questo do apoio a um movimento e ideologia polticos e da captao dos lei -tores para esse movimento torna-se preponderante.

    Neste contexto jornalstico, a dramatizao pode ser entendida como umatctica para envolver o leitor num determinado cenrio ideolgico, atravs da

    iluso de realidade prpria do drama, e j no como uma prtica que peca por prem causa a leitura objectiva dos factos noticiados. Por outras palavras, a drama ti-zao assume no jornalismo doutrinrio um valor moral que a legitima, em rupturacom a ideologia da objectividade.

    Em todo o caso, de extrema importncia no confundir dramatizao, ouruptura com a ideologia da objectividade, com desvio em relao verdade. Soconceitos diferentes, e cabe referir que, no s ao longo do corpussurge por duas ve-zes a frase de Lenine s a verdade revolucionria, como no prprio Guia docorrespondente se sublinha a necessidade de os correspondentes guardarem um

    respeito absoluto pela verdade dos factos. tambm interessante notar que o jornalismo doutrinrio da Voz do Povopa-rece encontrar no contexto histrico portugus do ps-25 de Abril uma espcie dereminiscncia das pocas revolucionrias do sculo XIX, que o propiciam. O re cur -so a terminologias e tcnicas de agitao poltica praticadas em revolues passa-das cruza-se neste jornal com as tendncias informativa e explicativa, mais re cen -tes, tornando a sua anlise mais aliciante.

    Metonmia originalUma pista para entender o discurso do jornal o seu prprio nome. Efectivamente,Voz do Povoconstitui uma metonmia cujo sentido acompanha a diversos nveis aanlise que levmos a cabo desse discurso.

    Se atentarmos que no Guia do correspondente se diz que os corresponden-tes so os olhos e os ouvidos do jornal, chegamos, atravs do ttulo, a uma uniosimblica entre jornal e povo, por via dos correspondentes, que representam opovo. Note-se que, segundo o mesmo documento, no h limite para o nmero

    de correspondentes, sendo ideal que todos os leitores o sejam.O resultado uma pessoa o povo personificado cu jos olhose ouvidossoos correspondentes e cuja voz (a Voz do Povo) o jornal. Estipulada a unio atravsdo ttulo, ela ser concretizada no discurso, tanto em termos ideolgicos comoestilsticos.

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    Funo primordial

    So as posies defendidas no espao editorial que revelam a funo primordial do

    jornal: o derrube do regime capitalista e das instituies polticas vigentes (que,como veremos, so sistematicamente rotuladas de burguesas) e a instaurao daditadura do proletariado. Numa palavra: a revoluo.

    A ideia de um jornal como impulsionador da revoluo proletria no nova. Em 1900, Lenine fundou a Iskra (a Centelha), jornal que o prprio conside-rou o fio condutor da revoluo e cujo ttulo tambm sugestivo da sua funoprimordial.

    Rede de correspondentes: um dispositivo revolucionrio

    A rede de correspondentes projectada pelos responsveis editoriais da Voz doPovo, cujos contornos so delineados no Guia do correspondente e no Esta -tuto do correspondente, desempenha funes que excedem em larga medida ombito do jornalismo. Encontrando-se explicitadas nestes documentos, cons ta -tamos que estas funes so tambm referidas por Lenine (1966) no seu livroQue fazer?, onde aborda a questo da criao duma rede de correspondentespara o jornal.

    A vigilncia pro le tria a funo mais citada. Procura-se criar uma rede decorrespondentes espalhados por todo o pas, que vigie os movimentos depolticos e de patres, bem como as suas falcatruas. O Guia do cor res -pondente aconselha os correspondentes a recolherem a informao junto daspessoas que a centralizam: barbeiro, porteiro, merceeiro. Ou seja, aoscorrespondentes prescrita a tarefa de efectuar denncias, ideia que en contra -mos tambm em Lenine (1966). Estamos longe do conceito de news netde Tuch-man (1978), referente rede que os mdia lanam sobre a realidade para a cap -tar. Aqui a rede procura efectivamente controlar a realidade e transform-la

    com o apoio do jornal, atravs de um dispositivo que tudo v e tudo sabe: algosemelhante ao dispositivo panptico de visibilidade concebido por Benthamem 1791 (citado por Rodrigues, 1990).

    Outra funo unir as massas. O trabalho de recolha de informao, de co mu-nicao dessa informao redaco, de partilha das notcias de cada nova edio,significa a unio de trabalhadores que participam no processo e a ruptura com oseu isolamento (Lenine, 1966: 225). Estamos perante uma aplicao particular dafuno de cimento social atribuda a todos os mdia (Sfez, 1993).

    Podemos ainda falar da funo de educar fortes organizaes polticas a n -

    vel local, igualmente atravs do trabalho em torno da feitura do jornal: a di vul ga -o das directrizes para uma aco disciplinada e a recolha de informaes no ter -reno (Lenine, 1966: 217-218).

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    Operacionalizao da problemtica

    Analisar a dramatizao na imprensa escrita: operacionalizao

    Inicimos este artigo apontando caractersticas que aproximam o discurso das no -tcias do discurso do drama: importncia do tempo presente, necessidade de sim -plificao e de um estilo apelativo, presena de narrativas caracterizadas por umaconcentrao em torno de um pequeno ncleo de personagens, o facto de serem es -tas a definir a aco.

    Uma vez que o conceito de dramatizao que nos chega da literatura podeno ser adequado para a anlise do campo dos mdia, precisamos de definir um

    conceito operatrio, adaptado realidade do discurso deste campo, que viabilize amedio dos dados.Pierre Babin (1993), autor que se debruou sobre a dramatizao nos mdia,

    considera cinco procedimentos clssicos de dramatizao: o exageramento; aoposio; a simplificao; a deformao; a amplificao emocional. Esta ideia deexageramento permite-nos uma clarificao importante relativamente ao nossoobjecto de estudo: que ele no constitudo pelo contedo histrico das notcias,mas pelo discurso que lhes serve de suporte. Da preferirmos adoptar o termo en -fatizao, entendida como uma forma estilstica de realar algo e no como uma

    forma de deformar a realidade, o que no nos interessa demonstrar.

    Constituio de uma grelha de anlise

    Com base nestes diversos contributos, passmos ento a elaborar, criticamente,uma grelha de anlise, que consistiu em categorias capazes de medir e caracterizaro discurso dramtico. O objectivo da anlise era apurar em que medida a presenadestas categorias no discurso desempenha ou no as funes anteriormente defini -

    das, ou permite descortinar novas funes.Me t fo ra. A metfora permite transportar uma ideia, um objecto, uma ima -gem do seu universo semntico original para outro, como sugere a palavra em gre -go, que significa transporte.6Podemos mesmo estabelecer a analogia entre met-fora e encenao teatral, na medida em que a encenao teatral constitui sempreuma recriao do guio original, adaptando-o a outros contextos e recorrendo a ou -tros adereos. Os encenadores e actores dizem uma coisa em termos de outra,isto , constroem uma metfora. Esta ideia partilhada por Dawson, para quema relao entre o mundo dramtico da pea e a realidade metafrica (1975: 25).

    As metforas conferem ao discurso as propriedades dramticas da sim plifi ca-o, ao transportarem o discurso para universos mais acessveis, e da iluso dram ti-ca, porquanto a prpria realidade que a metfora transporta para os novos uni -versos; e, em muitos casos, da intensidade, na medida em que muitas metforas en -fatizam o respectivo objecto.

    Outras formas de representao simb lica. A anlise dos dados deve distinguir

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    outras modalidades de representao simblica da realidade que se aproximam dametfora, como o smbolo, o emblema, a alegoria, a hiprbole ou a parbola. A ale -goria merece-nos uma ateno especial na medida em que consiste num sistema

    metafrico recorrentemente usado para expor um determinado tema.7So concei-tos que no faro parte dos procedimentos de anlise directa do corpus, mas que po-dero ser evocados na fase de interpretao dos dados.

    Me ton mia. A metonmia pode definir-se como o acto de tomar a parte pelotodo, ou vice-versa. Segundo o Dicionrio da Literatura, uma metonmia uma fi gu-ra pela qual se designa uma realidade por meio de um termo referente a outra queest objectivamente relacionada com a primeira. A metonmia (sentido lato)pode resultar das seguintes relaes: a parte pela parte; a parte pelo todo; o todopela parte. Assume modalidades distintas, das quais destacamos: o continente em

    vez do contedo ou vice-versa, a causa pelo efeito ou vice-versa, o sinal pelo sig ni -ficado, o abstracto pelo concreto, etc. (Coelho, 1969: 638).Confundindo os termos do real, as metonmias permitem, como veremos, en -

    cen-lo, produzi-lo, o que lhes confere a propriedade da iluso dramtica.A deteco dos processos metonmicos pode tornar-se difcil, na medida em

    que eles desempenham por vezes funes simblicas revestidas de sentidos subtis.Apresentamos de seguida aquelas que pudemos detectar na Voz do Povona sequn-cia das leituras prvias e que procurmos avaliar ao longo da anlise. Aprove ita -mos para conceptualizar estas metonmias em termos genricos, abrindo assim ca -

    minho para a sua utilizao na anlise de outros objectos.Metonmia 1: Identificao entre o mediume outras entidades, sociais ou ide olgi-cas. Vrios autores referem o efeito metonmico entre representante e representadono campo poltico. So os casos de Bourdieu (1989: 157-159) e Abls (1995).8

    No caso da Voz do Povo, uma observao preliminar de alguns trechos do Guiado correspondente e o prprio nome do jornal sugerem-nos a existncia de umametonmia original que identifica o jornal com o povo e que j tivemos ocasio de ca -racterizar com mais pormenor na apresentao daquele.9Esta metonmia ma ni fes-ta-se ao nvel do discurso, atravs de diversas modalidades detectadas mediante lei -

    turas prvias. So formas de o jornal se autodelegar representante do povo: a assinatura de notcias por elementos do proletariado, exteriores ao corpo redacto-

    rial. Constatamos nomeadamente que diversas notcias do corpusso assina-das por operrios e camponeses (correspondentes). Trata-se, quanto a ns, deuma ritualizao da unio simblica entre o jornal e o proletariado. Quandose escreve, no Guia do correspondente, que os correspondentes possuemcarto do Jornal, afirma-se a mesma unio;

    a utilizao da primeira pessoa do plural, por parte dos jornalistas, a propsito de

    colectivos proletrios. Para Abls (1995), esta prtica constitui uma estra t -gia retrica de afectao do sujeito ao todo do grupo; o recurso linguagem do proletariado por parte dos jornalistas: termos, expresses,

    calo populares. Um cdigo popular que detectmos na leitura prvia do cor-puse que permite concretizar a mesma metonmia. Alis, no Guia do corres -pondente diz-se que os correspondentes devem ter a preocupao de

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    transmitir redaco a maneira de falar do povo, e que devem evitar apreocupao vulgar de escrever bem.

    Metonmia 2: Narrao e interpretao de factos concretos atravs de uma ideologia. Umaprtica comum no discurso noticioso da Voz do Povoparece ser a narrao de factosatravs de uma explicao histrica global, interpretando-os, explicando-os siste -maticamente atravs dos seus termos. Trata-se da preocupao, prpria da pro pa -ganda leninista, de situar a realidade ao nvel da luta de classes (Domenach, 1962:22-23).10

    Esta metonmia, em que o todo identificado com a parte, tambm uma pr -tica corrente no teatro de participao poltica (Dort, 1971), e permite apresentaruma viso do mundo como a verdade escondida nos factos noticiados.

    O tomar entidades individuais por entidades colectivas constitui uma moda -lidade particular desta metonmia. o que acontece nos seguintes exemplos, emque as entidades povo e reaco so os elementos da viso do mundo do jornalevocados: o povo decidiu o saneamento da mesa do Hospital ou ningum semanifestou contra, a reaco manteve-se na expectativa.

    Recursos discursivos de simplifi cao. A simplificao , como vimos, uma dasexigncias do discurso dramtico, relacionada com o seu ritmo e o tipo de co muni -cao que estabelece com o pblico. No caso da imprensa, Babin considera mesmoa simplificao como um dos procedimentos clssicos de dramatizao. Encontra -

    mos dois recursos de simplificao conceptualmente importantes e mensurveis:as oposies e associaes binrias, por um lado, e um conjunto de termos re cor -rentes usados para a codificao do real, a que chamamos rtulos de codificao.

    Oposies e associaes bin rias. A oposio binria constitui, segundoLvy-Strauss, o processo universal fundamental da produo de sentido. Uma re -gra ditada, segundo este autor, pelo carcter binrio das prprias trocas de in for -mao entre as clulas do crebro humano (citado por Fiske, 1993: 158).

    Em relao ao discurso ideolgico marxista, patente no nosso objecto de es tu -do, a lgica binria de percepo do real assume um significado particular, que se

    prende com o facto de ser a ideologia marxista fundada num conjunto de oposiesbinrias a perspectiva preto-no-branco do universo poltico de que fala JeanCharlot (1974) determinadas a partir da oposio burguesia-proletariado quedefine a luta de classes. Alm da simplificao, as oposies binrias tm a funo deestabelecer relaes de tensoentre as personagens (Babin, 1993), conferindo aodiscurso essa propriedade dramtica.

    A oposio binria define um oposto igualmente simplificador, a associao bi-nria, que ao longo do corpusinclui situaes como reunies, cooperao, copartici-pao em aces polticas, concordncia ou solidariedade.

    Oposies e associaes binrias so recursos analticos que nos podero aju -dar a reconstruir uma estrutura de representaes que constituir a viso do mun -do social e poltico veiculada pelo medium. Para viabilizar uma anlise sistemticadesta categoria, captaremos cada ocorrncia de oposio ou associao atravs dasvariveis entidade A e entidade B.

    Rtulos de codificao. Chamamos rtulos de codificao a um conjunto de

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    termos ou expresses que se aplicam recorrentemente para designar entidades ousituaes, permitindo codific-las de uma forma simples e valorativa. Este recurso detectado numa leitura prvia das notcias da Voz do Povo. Os membros do MRPP

    so regularmente qualificados de aventureiros; o PCP designado por rtuloscomo os revisionistas, o partido de Cunhal ou PCP; a linha sindical de fen -dida pelo PCP, reunindo no mesmo sindicato operrios e tcnicos, designada porcaldeirada de classes. Estamos perante outra verso dos signos distintivos queBabin (1993) reconhece nos heris da banda desenhada, como a fuso homem-mor -cego de Batman.

    Por hiptese, o rtuloposiciona a entidade-objecto no quadro da viso domundo que o jornal pretende impor, criando a iluso de um determinado real econtribuindo para essa imposio.

    Alm de simplificar pela omisso, ou pela reduo de entidades complexas deuma sociedade em convulso a uma mera definio-sntese, os rtulos possuem, namaior parte dos casos, assim nos parece, umjuzo de va lor associado, uma componentevalorativa decisiva na caracterizao da entidade. atravs dessa propriedade de va-lorao que devemos entender o poder simplificador do rtulo: o juzo de valor sim -plifica ao libertar o leitor do trabalho de valorao. Por outro lado, leva-o a recolocar aentidade no espao simblico, orientando a sua descodificao.

    A anlise exaustiva destes rtulos pode levar-nos a: identificar as entida -des/personagens em destaque nos espaos poltico e social definidos no espao

    noticioso; identificar as caractersticas e funes que o jornal atribui a estes actoresatravs dos rtulos e dos juzos de valor que eles contenham; reconstituir a visodo mundo pela qual luta a Voz do Povo.

    O apelo afecti vo. O apelo afectivo uma das traves mestras do drama, consis-tindo em procurar no espectador um envolvimento emocional. O jogo de sen ti -mentos entre as personagens em cena, mas tambm o ritmo tenso e intenso do dra -ma e os processos de enfatizao, suscitam por sua vez sentimentos no espectadorque, afectivamente envolvido, se torna mais vulnervel a assimilar o almejado efe i-to de iluso de realidade.

    Sen ti mentos. Pierre Ansart (1983; 1997) analisa os processos polticos en quan-to processos de manipulao dos sentimentos e sensibilidades colectivos. A re co -lha dos sentimentos nomeados no corpuspermitir-nos- incorrer nessa perspectivado jogo poltico, que se relaciona directamente com a dramatizao.

    Quais so as funes que os sentimentos desempenham na viso do mundodo jornal? Que formas de envolvimento afectivo procuram suscitar no leitor? Queentidades da realidade noticiada permitem os sentimentos relacionar e em quesentidos?

    A resposta a estas questes e o trabalho de anlise so valorizados pela de -

    composio desta categoria em trs variveis, captveis em todas as ocorrncias: osentimento, o seu sujeito e o seu objecto ou causa.Enfatiza o. Consideramos as situaes discursivas de enfatizao como for -

    ma de apelo afectivo, na medida em que, ao realar-se ou intensificar-se um deter -minado objecto, se estabelece com o leitor uma comunicao que dispensa a inter -pretao racional do texto:11

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    Oponto de exclamao. A simples utilizao deste sinal confere a qualquer fra -se, independentemente do seu sentido, o estatuto de exclamao, o que cons -titui uma forma de enfatizao. A linguagem exclamativa juntamente com a

    interrogativa e a imperativa so, de resto, caractersticas do drama (Dawson,1975: 37). A enfatizao pelo ponto de exclamao no deve ser consideradasempre que ele culmine uma frase j de si enftica;

    O recurso a advrbios de intensidade(j, muito, sempre, nunca, to ou tanto) ouagraus superla tivos de adjectivos e advrbios (muitssimo, pobrssimo, imen -so, pessimamente);

    A ironia. Uma forma de enfatizar particularmente difcil de identificar. A iro -nia subliminar por definio e o seu registo depende da habilidade de quemobserva para descortinar a inteno irnica do jornalista, por vezes imposs -

    vel de comprovar; A enfatizao semntica. Quando encontramos uma situao discursiva queidentificamos como enftica pelo seu contexto semntico, mas que no con -tm as formas discursivas de enfatizao a que acabmos de nos referir. ocaso das hiprboles, que constituem o tipo de enfatizao mais frequente.Ressalve-se que a avaliao das situaes de enfatizao por via semnticaenvolve em muitos casos subjectividade: a enfatizao resulta duma interac -o das palavras e do seu sentido com os contextos, podendo interpretar-sesob diferentes perspectivas.

    Vitimizao. No estudo da dramatizao, a vitimizao, ou a apresentao de de ter -minada entidade como vtima, constitui um recurso importante. Por um lado, uma forma de apelo afectivo, ao estimular no leitor sentimentos como a comiseraopara com os vitimados e o dio aos agressores. Por outro, ajuda-nos a precisar a es -trutura de relaes entre os actores sociais que ocupam o espao simblico domedium, ao estabelecer um conjunto de oposies binrias. Finalmente, ela permi -te-nos caracterizar o conflito social e poltico representado pelo medium.

    Podemos decompor cada situao de vitimizao em trs variveis, cujos va -

    lores devero ser atribudos no acto de recolha dos dados: 1) a vtima, 2) o tipo deagresso e 3) o agressor. A forma como estas variveis se relacionarem definir osentido da vitimizao.

    As palavras de ordem. Muitas das notcias da Voz do Povoculminam com umasequncia de palavras de ordem, que constituem um caso particular de apelo afec -tivo: um apelo enftico aco revolucionria ou uma forma enftica de apoiar ouatacar uma entidade.

    Segundo os tericos, a palavra de ordem um dos pilares da propaganda le -ninista. Para Domenach (1962), trata-se da traduo verbal de uma fase do com ba te

    revolucionrio ou da expresso dum objectivo importante. A eficcia desta formade comunicao reside no efeito multiplicador da sua difuso, na medida em queutiliza como meio difusor aqueles mesmos a quem dirigida (Quintero, 1993).

    Perso nifi cao. Muito mais do que sucede noutros gneros discursivos, a pre -sena de personagens vital no drama. o dilogo que estabelecem entre si que de -fine a sua personalidade e o prprio enredo (Hamburger, 1986).

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    Num discurso como o das notcias de um jornal doutrinrio, temos que con si -derar no apenas as personagens antropomrficas (pessoas nomeadas), como tam -

    bm as personagens no antropomrficas constituintes da viso do mundo do jor -

    nal, isto , grupos sociais, entidades e sentimentos colectivos ou categoriasideolgicas.

    Se o apuramento destas ltimas depende da interpretao de outras catego -rias de anlise, como os rtulos ou as metforas (a metfora do corpo um exemplode personificao), o apuramento das personagens antropomrficas pode fazer-seatravs da recolha de todas as nomeaes do corpus. Para que a recolha seja con se-quente em termos analticos, dever incluir no s a varivel pessoa nomeada,mas tambm as variveis entidade de pertena da pessoa nomeadae sinal davalorao; como veremos, as caractersticas do material legitimam a utilizao

    desta ltima varivel.

    Definio do corpuse dos procedimentos de anlise

    Escolha do perodo de anlise

    Optmos por fazer incidir a anlise sobre um perodo tpico de crise, compreendi -do entre o 11 de Maro e o 25 de Novembro de 1975. Escolhemo-lo, por um lado, porse tratar de um perodo de dinmica revolucionria, caracterizado pelos extremis-mos e uma intensa conflitualidade, no qual o poder constituinte da linguagem mais acentuado e em que a dramatizao do discurso ser mais premente e de con -tornos mais claros (Bourdieu, 1982, 1998; Sfez, 1988); por outro, porque essa si tua -o permitir-nos-ia confrontar o objecto com teorizaes j feitas acerca do discursoem perodos de crise.

    Desse perodo seleccionmos o compreendido entre 11 de Maro e 19 de Ju lho

    de 1975, dia do discurso de Mrio Soares na Alameda, em Lisboa, que ter consti -tudo um suporte poltico e ideolgico importante da reaco contra o chamadoprocesso revolucionrio em curso (iniciado a 11 de Maro) e marcado o princpiodo declnio da influncia do PCP e da extrema-esquerda na sociedade (Reis, 1994:32-33).

    Escolha do gnero jornalstico

    Na sua condio de jornal doutrinrio, a Voz do Povocontm vrios tipos de artigos:editoriais, artigos de opinio, notcias, comunicados e notas de imprensa de foraspolticas; por sua vez, os objectos de notcia abrangem mltiplas situaes do quo -tidiano social, poltico e cultural e, no caso da dimenso poltica, muitas delas re su-mem-se quase s a transcries de longos discursos em comcios, manifestaes,etc.

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    Escolhemos a notcia por se tratar de um espao privilegiado de drama ti za -o; nele o jornalista reconstri ou encena a realidade, dispondo para isso de umagrande liberdade a nvel narrativo e vocabular.

    O conceito de notcia. Ao eleger a notcia como objecto de observao, impe-seuma definio fundamentada e precisa do conceito. Para Albertosa (1974: 88), a not cia um facto verdadeiro comunicado a um pblico numeroso. Mas parece-nos impor -tante, para o estudo da dramatizao, assumir a notcia como uma forma de produosimblica e mesmo social da realidade. Assumindo a perspectiva de Tuchman (1978),entendemos a notcia como uma construo baseada no enquadramento (frame) quefiltra a comunicao dos factos ao receptor: em vez de espelhar o real, ela recria-o,participando assim a um nvel simblico na coproduo da realidade social.

    Quanto ao nosso estudo de caso, do mbito do jornalismo doutrinrio, im -

    porta ter em ateno que estamos perante um caso particular de notcia. Dado queaqui o comentrio poltico acompanha quase sempre a notcia, parece prudente in -cluir na sua definio a crnica, a reportagem, ou at certos artigos de opinio, des -de que, evidentemente, relatem factos objectivos a par dos comentrios. De resto,este procedimento no se afasta da definio de notcia de Albertosa (1974).

    Quanto aos enquadramentos que moldam a notcia, eles tm no caso do jor -nalismo doutrinrio um carcter eminentemente ideolgico e obedecem a uma es -tratgia poltica.

    Opes metodolgicas para a anlise

    O estudo da dramatizao no discurso de um jornal em tempo de crise deve levar procura dos traos que o individualizam e no apenas dos que eventualmente re -sultem desse contexto e sejam comuns a outros agentes do jornalismo doutrinrio.Nestas condies, torna-se muito importante obter um ou mais termos decomparao.

    A opo recaiu num segundo jornal doutrinrio ou poltico, em detrimento

    de um jornal de referncia que por motivos vrios poria em causa a comparabilida -de. O facto de se tratar de um jornal de um partido (o PS), com funes polticas cla -ramente diferentes das do partido apoiado pela Voz do Povo, permitiu uma ver da-deira confrontao da relao de duas ideologias diferentes com a dramatizao.Finalmente, todos os nmeros do Portugal Socialistano perodo considerado es ta-vam disponveis, ao contrrio do que sucedia com diversos outros jornais.

    Desigual distncia dos dois dis cur sos. A anlise comparativa dos dois discursosdebate-se com uma dificuldade: o facto de o discurso do Portugal Socialistae as suascategorias de apropriao do real estarem mais prximos, tanto do discurso do

    senso comum de hoje, como do prprio discurso cientfico, o que se deve ao factode essas categorias terem sado vitoriosas do conflito simblico particularmenteviolento que se viveu no ps-25 de Abril (Matos, 1992).

    Assim, no devemos confundir a normalidade de certo discurso ou vo ca -bulrio do Portugal Socialista com iseno, objectividade ou profundidade deanlise.

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    Da anlise de contedo anlise do dis curso. Na perspectiva da anlise de conte -do, importa definir as unidades de registo a usar na recolha dos dados. Este tipode anlise considera como unidades de registo entidades homogneas, como a

    palavra, a frase, o acontecimento ou o documento. Acontece que estas en-tidades, obedecendo regra da exclusividade, uma das condies prescritas porBardin (1979), no se ajustam ao nosso objecto de estudo.

    Procurmos no discurso situaes como enfatizao, vitimizao, metforas,metonmias ou oposies binrias, isto , as situaes discursivas e lingusticas de-finidas como caractersticas da dramatizao e que nos permitiriam confirmar ouinfirmar as funes teoricamente atribudas ao discurso dramtico. Esta varieda dede categorias de anlise impe ao texto um ca rcterpolissmico. Por exemplo, umamesma frase pode ser uma metfora, constituir uma oposio binria, conter r tu -

    los de codificao, e estar ainda contida num pargrafo que assuma o sentido deuma metonmia entre os factos noticiados e a sua explicao histrica. Essa mesmafrase pode desempenhar mltiplas funes ao nvel do discurso e deve ser re gista -da (ela ou partes dela) tantas vezes quantas as categorias de anlise que serve.

    As unidades de registo so assim unidades de sentido, correspondentes a ocor-rncias das categorias de anlise, o que implica que a sua dimenso no seja fixa.12

    Refira-se que o tema do nosso trabalho relativo forma, ao estilo do dis cur -so, e no tanto ao seu significado decorrente do seu contedo; a dramatizao nodecorre da estrutura semntica do discurso, mas duma forma particular de a trans -

    mitir. Isto no significa que a anlise que nos propomos procure concluses na reada lingustica aplicada.13Ela procura antes relacionar as categorias de anlise defi-nidas com a problematizao interdisciplinar que elabormos.

    A este respeito, Maingueneau (1976: 4) chama a ateno para a falsidade queconstitui a extrapolao de uma terminologia especfica de uma cincia para outra.No caso do nosso objecto de estudo, devemos ter o cuidado de no extrair con clu -ses do mbito da cincia poltica ou da sociologia histrica de um universo anal ti-co que nos situa no mbito do espao simblico e das representaes sociais.

    Propomo-nos desenvolver uma anlise do discurso, mtodo que tem a van ta -

    gem de se situar na interseco dos universos da lingustica e de outras cincias so -ciais (Maingueneau, 1976; Fairclough, 1996).A noo de discurso que assumimos basicamente a de Maingueneau (1976):

    um enunciado (sequncia de frases inscrita numa lngua) considerado do ponto devista das suas condies sociais de produo e integrado numa situao de co mu -nicao especfica. portanto uma noo de discurso mais abrangente do que a as -sumida na rea da lingustica e criticada por Dominique Memmi.14

    Complementaridade das dimenses quantitativa e qualitativa da an lise. Pro cu rare-mos ao longo da anlise evitar a identificao da frequncia de utilizao das uni -

    dades de registo com a sua importncia no sentido geral do corpus. Greimas re fe-re-se a esta identificao como absurda e adverte que a frequncia pode muito bemocultar mais do que revelar os sentidos mais importantes do discurso (Memmi,1986).

    As contagens so importantes e indispensveis, mas constituem uma etapaentre vrias no processo de recolha e anlise dos dados. s contagens deve suceder

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    a utilizao de medidas estatsticas e a implementao de tcnicas de anlise de da-dos quantitativos.

    A interpretao dos resultados, o equacionamento de novas hipteses, osprprios trabalhos de recodificao e agregao dos dados em modalidades no

    prescindem de uma abordagem qualitativa e crtica do material, que evoque a pro -blemtica, recorra a saberes tericos, e valorize atravs de exemplos o particularque o quantitativo no conseguiu captar. por isso muito importante que no sedeixe de ter em vista o material em bruto os dados primrios depois das pri -meiras fases do processamento quantitativo desse material.

    Decomposio das categorias de anlise em vari veis. A anlise da dramatizaono corpuspartiu da recolha das ocorrncias das categorias de anlise an teri or mentedefinidas. Como tambm j dissemos, estas ocorrncias podero ser palavras, fra -ses ou mesmo conjuntos de frases.

    Tendo todas as categorias sentidos traduzveis em variveis, procedemos respectiva decomposio. Ela valoriza a interpretao dos dados e as conclusesduma forma inestimvel, ao viabilizar a aplicao de tcnicas de anlise quantitati-va, ao conferir rigor conceptual ao prprio discurso analtico. A partir desta de -composio, o sentido de cada categoria de anlise passa a ser dado pela relao en -tre as variveis que a constituem e o sentido de cada ocorrncia a depender das mo -dalidades presentes nela.

    Veja-se no quadro 1 o conjunto de variveis definidas para cada categoria.Agregao dos dados em modalidades. Da recolha dos dados resultaram cerca de

    6500 ocorrncias. Seguiu-se um longo processo de codificao e recodificao, noqual procurmos reduzir a mole de entidades sociais, polticas ou ideolgicas queintervieram nas notcias a um nmero mais reduzido de modalidades que se pu -dessem constituir como entidades comuns s vrias categorias de anlise.

    Como se calcula, este procedimento era obrigatrio para que as modalidadestivessem um peso estatstico aceitvel. O reverso da medalha deste processo de

    96 Pedro Diniz de Sousa

    Categoria de anlise Variveis

    Rtulos de codificao Rtulo atribudo; entidade codificada

    Oposies binrias Entidade A; entidade BAssociaes binrias Entidade A; entidade BSentimentos Sentimento; sujeito; objecto/causa

    Enfatizao Topos da enfatizaoVitimizao Vtima; tipo de agresso; agressorNomeao de pessoas Pessoa nomeada; entidade de pertena da pessoa;

    valorao da nomeaoMetforas Tipo de metfora; Entidade metaforizadaMetonmia de identificao de entidades individuais

    com entidades colectivasEntidade particular; Entidade colectiva

    Metonmia de situar a realidade ao nvel da suaexplicao histrica

    Facto noticiado; Tipo de explicao

    Metonmia jornal/povo pelo recurso linguagem popular

    Expresso usada

    Quadro 1 Variveis definidas para cada categoria

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    agregao foi a perda do valor especfico de determinadas entidades agregadasnoutras mais genricas. Uma perda reversvel, dado no termos perdido de vista osdados primrios.

    Abandonar a ligao aos dados primrios, no universo da anlise do dis cur -so, significa, de certo modo, perder o contacto com a realidade.

    Tipificar os dados a posteriori. Tipificar constitui um acto artificial, uma deli mi-tao de fronteiras e a escolha de critrios de (di)viso. A pertinncia que se possaevocar para a escolha dos critrios e dos limites que se impem ao material noafasta completamente o carcter discricionrio ou mgico do acto (Bourdieu,1989). Mas ser possvel ser fiel ao material de anlise? Provavelmente no, ouno fosse o processo cientfico um processo de desconstruo e construo semprefundado em objectos tericos e metodolgicos exteriores a esse material.

    Poderamos construir uma grelha de modalidades exa ustiva a priori, abran-gendo todas as situaes possveis e respeitando a regra da exclusividade. Mas, seo fizssemos, estaramos a provocar uma leitura do material sem que o tivssemosainda observado. O exemplo da luta de classes bom para ilustrar esta situao.Poderamos ser tentados, perante o foco da Voz do Povo nesse tema, a tipificara priori as ocorrncias de uma categoria de anlise em modalidades que abran ges -sem um leque de situaes tpicas da luta de classes.

    Consideramos ser mais respeitador do material definir as modalidades as entidades implicadas no discurso dramtico medida que vo ocorrendo, e

    inclu-las no processo analtico se, aps o trabalho de agregao dos dados a que jnos referimos, a sua recorrncia o justificar.

    Anlise dos dados

    No cabe no espao deste artigo a apresentao dos dados e medidas estatsticas

    em que se baseou o processo de anlise, numa perspectiva de complementaridadeentre o quantitativo e o qualitativo, tanto mais que o seu propsito no expor asconcluses do estudo de caso, mas antes um modelo de anlise. Assim, apresen -tam-se de seguida as principais ideias que resultaram das vrias etapas analticas e,em concluso, a forma como o estudo responde s funes da dramatizao enun -ciadas como hipteses.

    Rtulos de codificao: reenquadramento das entidades que ofendem a viso

    binriaO rtulo assume uma importncia decisiva na constituio da viso do mundo daVoz do Povo; podemos afirmar que uma das formas mais regulares de o jornalconstruir esta viso. A comparao da utilizao deste recurso na Voz do Povoe noPortugal Socialistaconfirma-o: 744 ocorrncias no primeiro jornal contra 344 (valor

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    corrigido) no segundo e 8 codificaes por entidade rotulada no primeiro con tra 4no segundo.15Esta ltima comparao revela como a caracterizao dos actores so -ciais recorre mais aos rtulos na Voz do Povo.

    (1) Campo poltico. Centralidade da falsidade do PCP. O PCP no s a entidade maisrotulada (191 ocorrncias, 25,7% do total), como assume um lugar central na utili -zao deste recurso, se lhe juntarmos entidades que o jornal apresenta como es trei -tamente ligadas ao partido: a sua ideologia, a UEC, os sindicatos ou sindicalistas, asaces de elementos do PCP. O PCP e estas entidades somam 302 ocorrncias,40,6% do total.

    A ideia de falsidade do PCP e a oposio que lhe est implcita (falsos comu -nistas/verdadeiros comunistas) quase monopolizam a codificao do PCP e en ti -

    dades a ele ligadas. O rtulo revisionista, evocando uma corrente do co mu nismoque o jornal ope dos verdadeiros comunistas, regista 66 ocorrncias. O rtuloP"C"P, onde as aspas conferem explicitamente o estatuto de falso ao partido, re -gista 31 ocorrncias. O adjectivo falso surge ele prprio em rtulos como: falsoscomunistas ou falsos amigos do povo. O rtulo partido burgus (6) acentua amesma falsidade.

    Subjacente a esta oposio podemos ler uma outra, a que confronta sujidade elimpeza: as aspas do P"C"P, tambm usadas no rtulo P"S", seriam uma forma or to -grfica ou semiolgica de o jornalista no conspurcar os nomes comunista e so cia -

    lista (interpretao que no entanto carece de aprofundamento).Associao PCP-lvaro Cu nhal. Tomando o PCP por o partido de lvaro Cu -nhal, em 44 ocorrncias, o jornal encontra mais uma forma de evitar design-loobjectivamente comoPCP, e de assim o apelidar, ainda que pelo mero uso da sigla,de comunista. afinal mais uma maneira de acentuar a sua falsidade. H um n -mero curiosamente elevado de formas de rtulos (17) que produzem esta as so cia -o, entre as quais o partido de Cunhal(a mais frequente), Partido CunhalistaPortugus, camarilha revisionista de Cunhal ou Cunhal & C..

    Foras de direita: fascis tas. As entidades de direita, obtidas aps a reco dificao,

    so a direita ou foras de direita ou elementos de direita (e de extrema-direita), oCDS e a Juventude Centrista. Os rtulos que lhes so aplicados procuram clara -mente uma associao entre estas entidades e o anterior regime (um regime par ti -cularmente odiado no perodo ps-revolucionrio) e as suas prticas violentas. ortulo fascista que se impe com 20 de um total de 42 ocorrncias. Os restantes r -tulos confirmam a dureza do primeiro: juventude nazi (JC), bando de assas si -nos, bando terrorista, canalha, facnoras, etc.

    rgos e foras do regime: bur gue ses. Mais importante a codificao que se fazdo regime e das suas instituies: Assembleia Constituinte, eleies, regime polti -

    co vigente, lei ou tribunais, governo ou membros do governo, partidos da co liga -o governamental. O rtulo burgus quase monopoliza a codificao destas en -tidades. Trata-se da representao literal da viso marxista, segundo a qual os r -gos de soberania e as instituies polticas tm por funo manter a burguesiacomo classe dominante.

    UDP e foras revolucionrias: elementos conscientes. A valorao positiva no

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    campo poltico incide normalmente sobre entidades do campo social que assumemfunes polticas, como veremos atravs das oposies e associaes binrias. Mes -mo assim, a UDP ou elementos da UDP, as aces de elementos da UDP e a ide olo -

    gia da UDP so rotuladas 29 vezes. Atravs dos rtulos operrios conscientes,operrios mais conscientes ou elementos conscientes e do prprio rtulovanguarda, constatamos que o partido apoiado pelo jornal apontado como avanguarda consciente da classe operria, que tem como funes instru-la eencoraj-la.

    (2) Campo laboral. Rtulos concentrados nas entidades in termdi as. Chamamos enti da-des intermdias quelas entidades do campo laboral que no representam inequi -vocamente um dos dois campos que se opem na viso do mundo da Voz do Povo:

    tcnicos, quadros, encarregados, chefes, trabalhadores no combativos e trabalha -dores que colaboram com o patro. Constata-se que so estas entidades e no asque fazem parte dessa oposio binria que so objecto de codificao. Estas l ti -mas (trabalhadores, povo e operrios ou classe operria, patres) simplesmenteno so rotuladas.

    A codificao das entidades intermdias muito consistente, recorrendosempre ao rtulo lacaios ou lacaios do patro para as situar do lado do pa -tronato. O tom de profundo desprezo deste rtulo confirmado por outros,como bufos e lambe-botas, no caso dos trabalhadores no combativos, e

    ces de guarda do capital, carrascos do povo, gorilas do capital, no casodas chefias.Traio dos sindicatos e sindicalis tas. 13,7% das ocorrncias (totalizando 102) de

    rtulos reportam-se a entidades do campo sindical, o que revela a importncia dacodificao na representao deste campo. Apontam-se aos sindicatos dois nveisde traio: por um lado, a no participao dos sindicatos ou sindicalistas em ac -es de luta; por outro, a pertena destes ao inimigo de classe. A traio podeler-se como uma manifestao da falsidade apontada ao PCP.

    A codificao das linhas sindicais em confronto constitui uma ocasio de as

    explanar. O principal visado neste jogo , previsivelmente, o sindicalismo ver ti -cal apoiado pelo PCP e a Intersindical, designados por caldeirada de classes,que o jornal ope ao sindicalismo de classe.

    De entre uma mole de 744 rtulos sobressai o facto de no serem codificadosos protagonistas clssicos da viso binria da luta de classes: povo, trabalhadores,classe operria, patres, burguesia. So codificadas outras entidades: o PCP (a enti-dade mais rotulada); os sindicatos; as camadas intermdias (chefes, encarregados,tcnicos e quadros, profissionais liberais); a direita; as instituies pol ti cas vigen-tes (governo, eleies, parlamento). Estas entidades so apresentadas como per -

    tencendo ao campo da burguesia apesar de provavelmente no lhe pertencem naperspectiva das representaes sociais dominantes.Assim, os rtulos, com a sua natureza valorativa, simplificadora e por vezes

    caricatural, assumem uma funo de correco, de reenquadramento destas en -tidades no seio da viso binria que se pretende impor no espao das represen ta -es sociais. Por outras palavras, constituem uma subverso da ordem simblica,

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    uma reaco s categorias de apropriao da realidade que, contrariando a visobinria defendida pelo jornal, ameaam impor-se como representaes sociais.

    Relaes de oposio e associao binrias: politizao do conflito social/laboral

    Considerando que as funes de uma entidade no sistema so dadas pelo sentidodas relaes que ela estabelece com as outras entidades, a anlise das asso ciaes eoposies binrias como a dos rtulos de codificao conduz-nos a essas fun -es e, atravs da descodificao dessa estrutura de relaes, (re)constituio doespao simblico definido pelo jornal.

    Dois dados fundamentais porque estruturantes da viso do mundo do jor -

    nal sobressaem da anlise da figura 1 e dos dados que lhe deram origem:

    a centralidade do campo social/laboral em relao aos outros campos; a larga predominncia das relaes de oposio binria sobre as relaes de

    associao, revelando uma viso da realidade centrada no conflito.

    Estes dois dados, associados, configuram um centramento da estrutura de relaesna luta de classes, o que confirmado pela quase ausncia de oposies binrias nocampo poltico e ideolgico. De todas as relaes de oposio, 65% constituem opo -

    sies directas entre duas entidades do campo social/laboral. Alm disso, as re la -es estabelecidas pelas entidades do campo poltico so em larga medida deassociao.

    As entidades do campo poltico definem-se assim como entidades de su por -te do verdadeiro confronto, que se joga no campo social/laboral: a luta frontalclasse contra classe, expresso recorrente no corpuse claramente ilustrada na figu-ra 1.

    O vazio que se regista na rea superior direita da figura, ou seja, a ausncia deentidades polticas/ideolgicas e militares/policiais positivamente valo ra das,

    no nos pode levar a concluir que a dimenso poltica est ausente do espao sim -blico do jornal. Pelo contrrio, encontramos nestes dados uma profunda poli ti -zao do campo social/laboral, de resto perfeitamente coerente com a viso domundo marxista.

    Um outro efeito muito interessante e significativo a ausncia quase total derelaes entre entidades do mesmo campo igualmente valoradas. As entidades docon junto latifundirios-sindicatos-capitalistas-patres-burguesia no apresentam as-sociaes significativas entre si, o mesmo para os conjuntos Governo-PCP-direita,

    foras policiais-MFA-PIDE, UDP-extrema-esquerdae explorados-camponeses-trabalha-

    dores-operrios-povo. Mesmo as 4 associaes entre operrios e camponeses so in -significantes ao p das 61 relaes que estas duas entidades estabelecem.Este facto tem a seguinte leitura: se repararmos que em certos casos (como os

    grupos trabalhadores-operrios ou burguesia-patres-capitalistas) as relaes de oposi-o e associao estabelecidas so praticamente semelhantes, achamo-nos peranteuma situao de identidade entre as entidades, ou pelo menos de indistino

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    Figura 1 Oposies binrias e associaes binrias na Voz do Povo

    Notas: nesta figura, as oposies e associaes entre entidades esto baseadas em dois eixos: 1) o eixo verticalsepara as entidades positivamente conotadas dasnegativamente conotadas pelo jornal, oferecendo-nos informao puramente dicotmica, isto , sendo inexpressiva a distncia da entidade em relao ao eixo;2) o eixo horizontalpermite-nos localizar as entidades em trs campos: o social e laboral, o poltico e ideolgico e o militar e policial. Outras informaes importantesforam tambm graficamente representadas: a largura de cada campo proporcional ao nmero total de relaes estabelecidas pelas entidades desse campo; aespessura das linhasdefine o nmero de associaes registadas entre as duas entidades; a rea dos crculosdefine o nmero de relaes estabelecido pela entidade;as linhas rectasdefinem relaes de oposio; as linhas curvasdefinem relaes de associao; as linhas a tracejadodefinem relaes entre entidades do mesmocampo; as linhas a cheiodefinem relaes entre entidades de diferentes campos.

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    funcional. Por outras palavras, o facto de uma entidade no se poder relacionarconsigo prpria explicaria a referida ausncia de relaes. Estaremos pois perantemais uma manifestao do carcter binrio da ideologia marxista apontado por

    Charlot (1974).

    Sentimentos: mobilizao do espao afectivo para a luta de classes

    Procedeu-se a uma recolha de todas as nomeaes de sentimentos do corpuse de se-guida sua agregao em campos semnticos, de modo a obter valores esta tis tica -mente mais significativos. Levando perda do valor semntico especfico de deter-minados sentimentos, a constituio de campos semnticos, em nmero de 38, era

    essencial para uma anlise estatstica credvel. Para dar dois exemplos, o campo se -mn tico von ta de reuniu os sentimentos ambio, anseio, aspirao, de se -jo, vontade e o campo semn ti co medo reuniu os sentimentos alarme, hor -ror, intimidao, medo, pnico, receio e terror.

    Procedemos a uma anlise comparativa de um conjunto de frequncias ercios obtidos para os dois jornais e a uma anlise mais detalhada de todos os sen ti -mentos cuja frequncia relativa fosse pelo menos 5% do total de ocorrncias.16Tra-tando-se de duas variveis (sujeito e objecto), as tabelas cruzadas foram suficientespara captar a totalidade do sentido dos dados para cada sentimento. Eis as funes

    mais interessantes que identificmos em resultado da anlise:Alimento afectivo da luta de clas ses. Usamos esta metfora para designar a fun -o de representao do reforo do processo de luta de classes atravs de sen ti men -tos de coeso de classe (solidariedade) e de motivao interior (vontade e confi an-a). Estes trs sentimentos, totalizando 29% das ocorrncias, do conta do pesoquantitativo desta funo.

    A solidariedade (23) no utilizada enquanto forma de compaixo para comas entidades vitimizadas, mas sim como alimento afectivo da luta poltica e laboral,uma vez que so as entidades que representam essa luta os seus objectos (luta labo -

    ral de trabalhadores, operrios e classe operria, trabalhadores). A mesma funopode ser atribuda ao sentimento vontade(22). A expresso vontade do povo, deobjecto indefinido, a que contribui mais para o total de ocorrncias, e surge comouma justificao, um motivo para as aces de luta poltica e laboral, legitimadasassim pela necessidade de respeitar a vontade popular. Com um fraco suporteemprico, resultado da disperso, nas 19 ocorrncias do binmio sujeito/objecto,podemos mesmo assim dizer que o sentimento de confiana desempenha a funoidentificada para os anteriores.

    Radicalizao da oposio burguesia/proletariado. Alguns sentimentos procuram

    enfatizar o carcter conflitual da oposio burguesia/proletariado; a sua utiliza orevela uma mobilizao do espao afectivo para a representao da violncia doconflito.

    Desde logo o sentimento mais nomeado, o medo (30), pressupe uma ame a -a e uma situao de violncia. Os binmios sujeito/objecto de medo so consti -tudos invariavelmente por entidades opostas nos campos em confronto na viso

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    do jor nal. O desprezo (18) outro sentimento com um peso relativamente forte e ex -primindo uma relao de forte antagonismo. Tal como o medo, evocado nos doissentidos: so sujeitos de desprezo entidades negativamente valoradas (do campo da

    burguesia), mas tambm entidades positivamente valoradas. A matriz de relaessujeito/objecto de dio revela-nos que este sentimento definea relao entre o camporevolucionrio e a direita: todos os sujeitos de dio pertencem ao campo do proleta-riado, sendo as entidades mais odiadas a direita, as foras policiais e a burguesia.

    Vitimizao e apelo re volta. H um conjunto de utilizaes dos sentimentos demedo, desprezo e revolta em que encontramos a funo de vitimizao das entida -des do campo do proletariado. Refira-se que esta funo tem por sua vez o valor dedenncia e constitui um apelo revolta ou reaco do leitor por via do empe nha -mento poltico.

    Em 12 ocorrncias, o medo tem como sujeitos operrios, trabalhadores epovo. Dos respectivos objectos, destacamos a direita (temida pelo povo), o gover no(pelos trabalhadores) e os sindicatos (pelos operrios). A quase totalidade das rela-es de desprezo encontra tambm como vtimas os trabalhadores e o povo. Soainda estas duas entidades a destacar-se como sujeitos de revolta, que se pode in -cluir nesta funo, na medida em que constitui a representao da reaco s si tua -es de injustia, explorao ou represso.

    Fora das entidades combativas do campo revolucio nrio. Atravs dos senti mentosmedo e coragem, apresentam-se duas entidades a UDP e operrios ou classe

    operria como o reservatrio de fora da revoluo ou o seu motor. So eles, eno o povo ou os trabalhadores, os sujeitos de coragem e os objectos de medo.

    Sentimentos: concluses adicionais

    Exprimindo os sentimentos uma relao sujeito-objecto, eles permitem-nostestar a estrutura de relaes entre as entidades que identificmos atravs doestudo das oposies binrias e dos rtulos de codificao. Tendo a quase to -

    talidade das ocorrncias agentes da luta de classes como sujeito e objecto, po -demos falar de mobilizao do espao afectivo para esta causa e dos sen ti -mentos como um cimento que consolida a posio relativa dos mesmos agen -tes no espao simblico e confirma a posio central da luta de classes.

    Conclumos ainda que a mobilizao do espao afectivo para a luta de classesassume duas vertentes: a dos sentimentos negativos, que tende a enfatizar aoposio burguesia/proletariado; e a dos sentimentos positivos, que re pre -senta o reforo por via afectiva do campo do proletariado ou, em certos casos arriscamos diz-lo , a materializao afectiva do conceito de conscincia

    de classe. A realidade social noticiada, profundamente conflitual, racionalmente des -codificvel luz da viso do mundo marxista, e constata-se que essa forma ra -cional de ler a realidade, encenada no espao noticioso, no est dependentedo recurso aos sentimentos. Este facto explica uma relativamente escassa pre -sena de sentimentos no corpus.

    UM MODELO DE ANLISE DA DRAMATIZAO NA IMPRENSA ESCRITA 103

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    Enfatizao: apelo afectivo a trs fases da luta

    A enfatizao, ao conferir intensidade e importncia a um objecto, tem a funo de

    captar a ateno, no por via racional ou retrica, mas por via de um envolvimentoemocional do leitor. Pode tambm servir para justificar a escolha de um tema queno cumpra os requisitos de noticiabilidade, os clssicos (excepo, falha, in ver -so) ou os prescritos aos jornalistas da Voz do Povo. Refira-se que o contexto es trutu-ralmente enftico dos discursos dificultou a recolha de dados, ao retirar visibili da-de s ocorrncias.

    AVoz do Povoregista o dobro das ocorrncias de enfatizao do Portugal Socia-lista. 570 ocorrncias no primeiro caso, 295 (valor corrigido) no segundo. Por outrolado, depois de recolhidos e agregados os dados, constatamos que o discurso en f -

    tico da Voz do Povoincide sobre quatro grandes temas ou objectos de enfatizao:denncias; luta; situao do povo; hostilidade.De nncias. 43% das ocorrncias de enfatizao (247) so denncias. Eis dois

    exemplos de denncias enfatizadas: a imprensa inunda pginas e pginas voltado MRPP neste caso denunciam-se os rgos de comunicao social de formaenftica, com recurso s figuras da repetio, da metfora e da metonmia (a im -prensa); h os que nada fazem e que so doutores aqui denuncia-se enfa ti ca -mente a situao privilegiada dos quadros. O principal visado das denncias enfa -tizadas o PCP, ouelementos do PCP, que, em conjunto com as denncias de sin di-

    catos ou sindicalistas, soma 94 ocorrncias, seguindo-se a direita ou elementos dadireita (47) e os patres (33).Formas de enfatizao da luta. A centralidade e o investimento afectivo em tor no

    do tema da luta de classes est patente tambm na anlise da enfatizao: 243 ocor -rncias (42,6% do total) tm como objecto a luta; normalmente, enfatiza-se a ne ces -sidade de empreender a luta ou a dureza da luta em curso.

    Em certas ocorrncias de enfatizao da luta apela-se mesmo a uma crenaenfatizada por via emocional, ou seja, f. No exemplo o princpio que vai incutirno esprito dos operrios mais tmidos e duvidosos a certeza inabalvel da fora da

    CLASSE OPERRIA, a confiana ganha o estatuto de certeza inabalvel, e aentidade situada num plano superior (sacralizada?) por via da caixa alta.O prximo exemplo, referente ao despejo de populares que ocupavam uma

    casa rural, revela o mesmo apelo:

    Tocaram-se os sinos, vieram os que estavam no campo e os guardas foram obri ga-dos a ir-se embora, sem terem cumprido as ordens dos fascistas, porque o povo se lhesops, com determinao.

    Aqui a polissemia do toque do sino (que apela reunio da populao em torno daigreja em situaes de crise ou hora da missa) parece-nos ser aproveitada para su -gerir a entrega espiritual luta. A notcia omite os pormenores do afastamento dosguardas, que assim parece acontecer pelo simples efeito mgico da reunio dopovo, desencadeada pelo toque do sino.

    Um nmero significativo de ocorrncias (43) refere-se orientao

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    pragmtica da luta ou aces de luta. So os casos da enfatizao da necessidadede estar alerta e da necessidade de evitar formas erradas de luta.

    Injustias sociais e hostilidade do povo ou dos trabalhado res. 39 situaes de en fati-

    zao tm por objecto a situao do povo ou dos trabalhadores. Ao enfatizar-se in -justias sociais (13), situaes de misria do povo (11) e explorao dos trabalhado-res (13), est-se a denunciar a culpa do prprio regime capitalista e a provocar, maisuma vez, o dio de classe. Outra forma de representar e conferir visibilidade aeste sentimento a enfatizao de situaes de hostilidade do povo ou tra balhado -res (24) contra entidades como a direita ou as foras policiais.

    Enfatizao: concluses adicionais

    Se categorias de anlise como os rtulos de codificao, associaes/oposiesbinrias e sentimentos nos elucidam acerca da estrutura do espao simblico de -finido pelo jornal, a enfatizao mostra-nos a forma emotiva e intensa como sotransmitidas ao leitor as vrias fases do processo de luta de classes: primeiro, a si-tuao do povo e a sua denncia; segundo, a hostilidade gerada pela fase ante -rior; finalmente, a luta resultante dessa hostilidade. Procura-se que este pro ces -so, baseado na trilogia denncia-hostilidade-luta, seja apreendido de formaemotiva pelo leitor, gerando nele uma reaco que conduza ao conflito contra as

    instituies sociais e polticas, retratadas de forma profundamente negativa. Po-demos falar de um inculcamento da conscincia de classe por via afectiva. O grande peso da enfatizao das denncias (um dos pilares da prxis revo -

    lucionria leninista), revelando, a par das nomeaes, o pendor acusatrio dodiscurso do jornal, mostra que este trabalho de agitao poltica levado acabo atravs de formas discursivas dramticas.

    Vitimizao: um meio de apelo revolta

    A vitimizao, situao explorada extensivamente no discurso da Voz do Povo, aocontrrio do que sucede no jornal do PS, permite suscitar a revolta do leitor e o seudio de classe.

    Ao contrrio de outras categorias de anlise, em que a anlise factorial dascorrespondncias mltiplas foi tentada sem resultados conclusivos o que se terficado a dever ao facto de estarmos perante somente duas ou trs variveis , nocaso da vitimizao esta tcnica resultou eficazmente. Permitindo-nos identificaros factores que determinam a covariao das trs variveis definidas (vtima, tipo

    de agresso, agressor), ela leva-nos a identificar tipos de agresso/vitimizao co e -rentes, reconhecveis nos grupos de modalidades revelados pelos planos factoria is.Os principais factores identificados so:

    Factor 1: oposio entre situaes de vitimizao no campo poltico e no cam -po laboral;

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    Factor 2: oposio entre situaes de vitimizao conjunturais (relativas luta poltica) e estruturais (relativas natureza do regime capitalista);

    Factor 3: oposio entre situaes de vitimizao no campo militar e no cam -po partidrio e ideolgico.

    A disposio destes factores em dois planos (1-2 e 2-3) permite-nos identificar trs

    grupos que constituem as trs formas de vitimizao exploradas pelo jornal: Grupo 1: vitimizao no campo da luta poltica imedia ta. Este grupo, contri buin-

    do decisivamente para a definio dos factores 1 e 2, refere-se ao contexto daluta poltica quotidiana, que tem como intervenientes a UDP ou elementos daUDP, a extrema-esquerda e soldados (enquanto vtimas) e os militares de

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    Figura 2 Situaes de vitimizao na Voz do Povo: plano constitudo pelos factores 1 e 2

    Nota: excluram-se da figura as modalidades com valor-teste ou contribuio para os factores excessivamentebaixos.

    Legenda: modalidades em maisculas, vtimas; em minsculas entre asteriscos, tipo de agresso; emminsculas sem asteriscos, entidades agressoras.

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    direita, foras policiais e PCP ou elementos do PCP (enquanto agressores). Ostipos de agresso que os relacionam so a violncia fsica, a represso e as sas -sinatos. o factor 3 que clarifica estas relaes, ao operar uma diviso deste

    primeiro grupo em dois subgrupos: um relativo vitimizao de carcter militare um que caracteriza a vitimizao de carcter poltico e ideolgico.

    Grupo 2: vitimizao no campo laboral. um conjunto de relaes vividas noseio das empresas, em que trabalhadores e operrios so vtimas de explora -o, ameaa de despedimentos, despedimentos e ms condies de trabalho,perpetrados por uma s entidade, os patres. Compreensivelmente, a po si -o das entidades do grupo neutra em relao ao factor 2, j que se encontrano meio-termo entre a violncia poltica e a opresso imposta pelas estrutu rassocioeconmicas.

    Grupo 3: vitimizao de longo termo, imposta pelo regime capi ta lista. Este grupo formado pelo povo e camponeses (esta modalidade com um peso muito fra -co) como vtimas de misria, opresso e ms condies de habitao, im pos -tos pelo capitalismo ou capitalistas, latifundirios e autoridades municipais.Note-se que as vtimas deste tipo de agresso, relativa s estruturas socioeco-nmicas, so as entidades retratadas como passivas ao longo do corpus.

    Nomeao: extensa lista de denncias

    A anlise da nomeao de pessoas no corpuspermite-nos o apuramento das per so-nagens antropomrficas. Por outro lado, as caractersticas do jornal e da matrianoticivel proporcionam o aproveitamento de cada nomeao para efectuar umavalorao positiva ou negativa, situao que, nas 649 ocorrncias de nomeaes,conhece apenas 16 excepes. por isso pertinente a decomposio da categoria deanlise nas variveis pessoa nomeada, entidade de pertena e sinal da va lora -o, e a diviso desta ltima nas modalidades valorao positiva, valoraonegativa e valorao de sinal indefinido.

    A disparidade entre nomeaes positivas e negativas enorme em ambos osjornais, mas em sentido rigorosamente inverso. A Voz do Povoapresenta 521 no me a-es negativas e apenas 112 nomeaes positivas. O Portugal Socialistaapresenta 404nomeaes positivas e 79 nomeaes negativas. Curiosamente, h nos dois casosuma disparidade de 5 para 1 entre as duas valoraes, mas em sentido inverso.

    Total disciplina ideo lgica. Uma primeira constatao a radical disciplinaideolgica dos jornalistas da Voz do Povo, na medida em que o sinal das nomeaesindividuais depende em 100% dos casos da posio da entidade de pertena dapessoa nomeada no palco bipolar da luta de classes. Esta situao est longe de se

    verificar no corpusdo jornal do PS.Denncias pela nome ao ou revelaes po lticas. No caso da Voz do Povo, estamosperante uma extensiva utilizao da denncia pela nomeao, que incide na maiorparte dos casos sobre o campo social/laboral. Trata-se da revelao poltica pres critapor Lenine aos propagandistas e tem a funo de identificar os inimigos perante os tra-

    balhadores, apont-los a dedo: quem so, onde esto, o que fizeram.

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    Estamos tambm perante uma prtica de personificao dos atributos negati -vos da viso marxista da sociedade capitalista, conferindo-lhes uma forma vi s vel ehumana e permitindo a concentraodo dio de classe em pessoas. Normalmen-

    te, o redactor recorre ao nome pelo qual o nomeado conhecido localmente, demodo a permitir uma fcil identificao, como no exemplo:

    Na actualidade os gerentes Barros e Fernando Pereira esto pastando na Alemanhaa convite da Bosch deixando o controlo da empresa aos seus fiis colaboradores No-gueira e Pa iva, sendo este ltimo proprietrio de uma empresa de assis tncia na Covi-lh, subsidiria da prpria Carlar.

    Viles e he ris. Agrupando as ocorrncias no por entidade de pertena dos no mea-

    dos mas apenas pelas prprias pessoas nomeadas, notamos que, disperso de no -meaes no campo social/laboral relativa denncia de uma grande variedadede situaes laborais e sindicais , corresponde uma concentrao das nomeaesno campo poltico nas pessoas de lvaro Cunhal e de alguns militares de direita(principalmente Spnola e Galvo de Melo). Procura-se assim concentrar a hostili -dade dos leitores num nmero reduzido de personagens, que so eleitos como osrepresentantes antropomrficos da burguesia (Cunhal) e do fascismo (Galvode Melo e Spnola).

    As nomeaes positivamente conotadas, ainda que muito minoritrias, re ve -

    lam um aspecto curioso: a concentrao das ocorrncias em trs personagens quese constituem como smbolos da luta nos trs grupos sociais de referncia da revo -luo proletria: operrios, camponeses e soldados. So, respectivamente: Horciodos Santos, operrio metalrgico vtima de explorao que congregou um movi -mento de solidariedade (8); Jos Diogo, campons que matou um latifundirio e vi -ria a tornar-se uma causa da justia popular (19); e Joaquim Lus, o soldado doRAL-1 morto durante o 11 de Maro (3). Procura-se assim encontrar, para cada umadestas entidades sociais, uma personagem referencial (um heri), que deverconstituir um factor de mobilizao.

    Metforas: uma alegoria da guerra

    Partimos mais uma vez de uma enorme disparidade entre os dois jornais. Enquan -to no corpusda Voz do Povoencontramos 326 metforas e sistemas metafricos ela -

    borados, no corpusdo Portugal Socialistah apenas 95 ocorrncias (valor corrigido).Alm da funo de simplificao do discurso, inerente prpria definio de me t -fora e muito importante no caso em estudo, pudemos detectar outras atravs da

    anlise da relao entre os tipos de metfora e os seus objectos.Metfora da luta e alegoria da guerra: transporte para a ver dade. Na Voz do Povopredomina a metfora da luta, com 143 ocorrncias (43,9% do total). As si tua -es noticiadas so descritas atravs de metforas relativas luta verbal, luta f -sica, represso policial, armas, massacres e guerra. Sendo a luta de classes o cen -tro da cosmoviso marxista, a utilizao extensiva desta metfora d-lhe

    108 Pedro Diniz de Sousa

  • 7/25/2019 SOUSA, Pedro Diniz - Um Modelo de Anlise Da Dramatizao Na Imprensa Escrita

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    visibilidade e de certo modo cumpre a funo de situar a verdade ao nvel da lutade classes.

    Entre as metforas de luta, predomina a relativa guerra, quer em termos

    quantitativos (91) quer na riqueza e coerncia com que empregue para descrevera realidade. De tal modo que podemos falar de alegoria da guerra: um cenrio feitode manobras, avanos, batalhas, frentes de combate, trincheiras ou sabotagens.

    Podemos estar perante uma estratgia simblica informada, j que a teoria le -ninista diz que a luta de classes uma necessidade de tipo militar e deve ser condu -zida como uma guerra (Quintero, 1993).

    Metfora do corpo: personificao de entidades; representao de coeso, de um ins-trumento de aco e de poderes. O jornal recorre a esta metfora com muita frequncia(72), e por via dela representa e assim personifica as entidades que constituem

    a sua viso do mundo. As metforas utilizadas para designar trabalhadores, oper -rios e povo so quase s metforas do corpo, o que diz bem do esforo de personifi -cao destas entidades. Nestes casos, o corpo humano representa ou um instru -mento de aco ou a prpria coeso da entidade, como quando se exortam traba -lhadores a serem um corpo slido que no embarque em manobras.

    Tambm as entidades negativamente valoradas so frequentemente per soni -ficadas por este meio. Eis dois exemplos:

    a reaco no uma inveno mas uma coisa muito real,