subjetivaÇÃo do trabalhador em processos judiciais
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Carla Vidal Gontijo Almeida
SUBJETIVAÇÃO DO TRABALHADOR EM PROCESSOS JUDICIAIS
TRABALHISTAS COM PEDIDOS DE INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL
Belo Horizonte
2019
Carla Vidal Gontijo Almeida
SUBJETIVAÇÃO DO TRABALHADOR EM PROCESSOS JUDICIAIS
TRABALHISTAS COM PEDIDOS DE INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do título de Doutora em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. João Leite Ferreira Neto. Linha de pesquisa: Intervenções Clínicas e Sociais.
Belo Horizonte
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Almeida, Carla Vidal Gontijo
A447s Subjetivação do trabalhador em processos judiciais trabalhistas com
pedidos de indenização por dano existencial / Carla Vidal Gontijo Almeida.
Belo Horizonte, 2019.
183 f.
Orientador: João Leite Ferreira Neto
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
1. Subjetividade. 2. Trabalhadores - Aspectos psicológicos. 3. Dignidade
(Direito). 4. Direito do trabalho. 5. Dano moral. 6. Responsabilidade civil. I.
Ferreira Neto, João Leite. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.
CDU: 347.19
Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva – CRB 6/2086
Carla Vidal Gontijo Almeida
SUBJETIVAÇÃO DO TRABALHADOR EM PROCESSOS JUDICIAIS
TRABALHISTAS COM PEDIDOS DE INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito para a obtenção do título de Doutora em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. João Leite Ferreira Neto. Linha de pesquisa: Intervenções Clínicas e Sociais.
_________________________________________________________
Prof. Dr. João Leite Ferreira Neto - PUC Minas (orientador)
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Fernanda Simplício Cardoso - PUC Minas (Banca Examinadora)
_________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Lisandra Espíndula Moreira - UFMG (Banca Examinadora)
_________________________________________________________
Prof. Dr. Fabrício Veiga Costa - Universidade de Itaúna (Banca Examinadora)
_________________________________________________________
Prof. Dr.ª Laura Cristina Eiras Coelho Soares - UFMG (Banca Examinadora)
Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 2019.
Dedico esta tese a meu querido Fabrício Almeida, que, no ano
de 1999, plantou um despertar no meu coração e na minha alma: amor e conhecimento valerão para a eternidade
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por ser presente em todos os momentos de minha vida, mantendo minha saúde e fé dia
após dia.
A meus pais e meus irmãos, por sempre me estimularem a prosseguir.
À minha pequena Maria, por seu puro amor.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, pela competência e conhecimento.
A Marcelo e Diego, colaboradores da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, pela
presteza habitual.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), pelo programa de apoio à pós-
graduação e fomento a esta pesquisa.
Agradeço aos entrevistados desta pesquisa, pela gentileza e simpatia em ceder seu tempo para a
contribuição à ciência.
Especialmente a meu professor orientador, Dr. João Leite Ferreira Neto, que aceitou, com generosidade,
habilidade e conhecimento, o desafio de orientar, com imensa propriedade e segurança, um trabalho de origem
fincada na seara do Direito. A vocação interdisciplinar deste estudo importou um duplo desafio.
Muito obrigada!
RESUMO
Inserida na seara das Ciências Humanas, a tese está vocacionada a analisar a subjetivação dos
trabalhadores que recorreram ao Judiciário Trabalhista para o reconhecimento da ocorrência de
uma violação a seus projetos de vida ou da vida de suas relações, em virtude do excesso de
horas trabalhadas no decorrer da vigência de seus contratos de trabalho. Assim, buscou-se
estudar a subjetivação em trabalhadores que não são obrigados, nem por lei nem pela natureza
do contrato, a registrarem seus horários de trabalho perante o empregador. Importou investigar
trabalhadores em cargos de chefia, gerência, supervisão ou coordenação que foram demitidos
e, após esse fato, propuseram reclamatória trabalhista com pedido de indenização por dano
existencial. Justifica-se a seleção desses sujeitos pela primazia da realidade do atual mundo do
trabalho diante da adaptação a formatos de prestação de serviços, em que o trabalhador é
coadjuvante do processo organizacional. A construção de uma analítica dos modos de
subjetivação levou em consideração o sujeito como efeito, em uma perspectiva de autonomia,
constituindo-se amparado na reflexão de si. Pensou-se sobre a subjetividade para além da
interioridade psicológica, urgindo considerar a relação entre subjetividade e espaço social.
Considerou-se o sujeito como efeito, não definido com base em uma identidade fundamental,
mas sim refundido em certo contexto histórico. O objetivo geral da tese foi analisar a
subjetivação dos trabalhadores, com base em demandas judiciais trabalhistas exitosas no pedido
de indenização por dano existencial, valendo-se, para tanto, da metodologia da análise do
discurso, confirmando o viés qualitativo da pesquisa. Para perquirir sobre esse processo de
subjetivação, empregou-se a análise documental nas atas de audiência de instrução, sentenças
e acórdãos dos processos elegíveis. Foram ainda realizadas entrevistas com roteiro
semiestruturado com juízes de Varas do Trabalho que já analisaram processo com pedidos de
dano existencial. Os resultados dos casos analisados bem como das entrevistas indicaram, como
subjetivações comuns em todos os trabalhadores, a não insurgência ao modo de
desenvolvimento daquele contrato de trabalho com características de hipersolicitações e
hiperfuncionamento. Os fatores identificados foram a dependência econômica, o anseio e
sensação da realização profissional, o status, significado que o trabalho imprime na vida do
trabalhador e de sua família, e o medo do desemprego.
Palavras-chave: Subjetivações. Trabalhador. Dano existencial. Processo trabalhista.
ABSTRACT
The thesis is aimed at analyzing the subjectivation of workers who have recourse to the labor
judiciary for the recognition of the occurrence of a violation of their life projects or the life of
their relations due to the excess of hours worked in the course of the duration of their
employment contracts. Thus, we sought to study subjectivation in workers who are not obliged
by law or by the nature of the contract to record their working hours before the employer. It
was important to investigate workers in managerial, supervisory or coordination positions who
were dismissed and, after resignation, proposed a labor claim with a reparation for existential
damage. The selection of these subjects is justified by the primacy of the reality of the current
world of work in relation to the adaptation to service delivery formats, where the worker is an
auxiliary of the organizational process. The construction of an analytic of modes of
subjectivation took into account the subject as an effect, in a perspective of autonomy, being
supported by self-reflection. It was thought about the subjectivity beyond the psychological
interiority, urging to consider the relation between subjectivity and social space. The subject
was considered as an effect, not defined from a fundamental identity, but rather recast in a
certain historical context. The general objective of the thesis was to analyze the subjectivation
of the workers, based on successful labor lawsuits in the claim for damages for existential
damage, using, for that, the methodology of discourse analysis, confirming the qualitative bias
of the research. In order to investigate this process of subjectivation, documentary analysis was
used in the minutes of the instructional hearing, judgments and judgments of the eligible cases.
There were still interviews with a semi-structured script with judges of labor sticks who have
already analyzed the process with requests for existential damage. The results of the analyzed
cases as well as of the interviews, indicated as common subjective in all the workers the non
insurgency to the way of development of that work contract with characteristics of
hypersolicitacion and hyperfunction. The factors identified were the economic dependency, the
yearning and the sensation of the professional achievement, the status, meaning that the work
impresses on the life of the worker and his family, and the fear of unemployment.
Keywords: Subjective. Worker. Existential damage. Labor process.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 17
2 VALORIZAÇÃO DO TRABALHO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: FORMATOS DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E A BUSCA DE REALIZAÇÃO EXISTENCIAL ............................................................................... 25
2.1 A tentativa de proteção da pessoa humana nas relações de emprego .................... 31 2.1.1 A dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade ................................. 34
3 O DANO EXISTENCIAL .......................................................................................... 37
3.1 A compreensão do dano existencial no Judiciário Trabalhista brasileiro ............. 40 3.1.1 A violação a um projeto de vida e à vida das relações ................................................ 44 3.2 Uma visão sistêmica sobre o dano existencial e os pleitos judiciais do “viver” na
Contemporaneidade: a judicialização da vida ......................................................... 48
4 SUBJETIVAÇÃO DO TRABALHADOR: CONSIDERAÇÕES NO PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO: O SUJEITO COMO EFEITO ........................................... 59
4.1 O sujeito no cenário da prática judiciária ................................................................ 69 4.1.1 A cena jurídica da audiência de instrução e julgamento do Judiciário Trabalhista .. 70 4.2 Constituição do sujeito reclamante na cena jurídica da audiência de instrução e
julgamento: os atores sociais e o processo de subjetivação no discurso jurídico .... 71
5 CONTRATOS DE TRABALHO QUE SE DESENVOLVEM SEM CONTROLE FORMAL DE JORNADA: A FALSEADA GESTÃO DO TEMPO DE TRABALHO PELO EMPREGADO ........................................................................ 75
5.1 A configuração de uma típica relação de emprego .................................................. 76 5.2 Subordinação relativizada: contratos de trabalho que prescindem de registro
formal de jornada e o sujeito da pesquisa ................................................................ 79 5.2.1 Evolucionariedade dos formatos de subordinação jurídica atrelada à migração dos
modelos de desenvolvimento dos contratos de trabalho ............................................. 83 5.3 Reflexividades sobre o hiperfuncionamento do sujeito e as carreiras na
Contemporaneidade: o trabalho como empreendimento individual e a gestão do tempo de trabalho ....................................................................................................... 85
5.3.1 Desdobramentos entre a relação do trabalhador e sua família: a amplitude da dimensão espaçotemporal do trabalho ........................................................................ 91
6 METODOLOGIA: ANÁLISE DO DISCURSO NO PROCESSO TRABALHISTA E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO RECLAMANTE .......... 99
6.1 Os fatos do discurso percebidos como estratégicos e polêmicos: análise do discurso para além da abordagem lexical .............................................................. 100
6.1.1 Descrição do trâmite da audiência de instrução trabalhista e a ata de audiência .. 108 6.2 O corpus jurídico e os seletores da jurisprudência: a necessidade de optar pela
indução analítica como estratégia de pesquisa ....................................................... 111 6.2.1 A necessidade da indução analítica como estratégia de pesquisa para delimitar as
características essenciais do fenômeno do dano existencial .................................... 112 6.3 A ampliação do corpus da pesquisa: entrevistas com juízes da Justiça do
Trabalho que já proferiram decisões em outros casos envolvendo pedidos referentes ao dano existencial .................................................................................. 115
7 INTERPRETAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS................................................... 117
7.1 Entrevistas realizadas ............................................................................................... 117 7.1.1 Categoria 1: percepção dos juízes sobre a subjetivação do trabalhador ................. 117 7.1.2 Categoria 2: análise dos requisitos avaliados pelos juízes ao julgarem pedidos de
dano existencial .......................................................................................................... 121 7.1.3 Categoria 3: a percepção dos magistrados sobre a existência de alguma relação
entre a demissão do trabalhador e uma consciência da frustação do projeto de vida ou da vida das relações .............................................................................................. 125
7.2 Os casos selecionados ................................................................................................ 129 7.2.1 Caso 1: processo na 6ª Vara do Trabalho de Porto Alegre - Tribunal Regional do
Trabalho do Rio Grande do Sul - 4ª Região ............................................................. 131 7.2.1.1 Características do contrato de trabalho ..................................................................... 132 7.2.1.2 Identificação dos pontos de interesse: ........................................................................ 132 7.2.2 Caso 2: processo na 2ª Vara do Trabalho de Campo Grande - Tribunal Regional do
Trabalho do Mato Grosso do Sul - 24ª Região ......................................................... 141 7.2.2.1 Características do contrato de trabalho ..................................................................... 142 7.2.2.2 Identificação dos pontos de interesse ......................................................................... 142 7.2.3 Caso 3: processo na 6ª Vara do Trabalho de Betim - Tribunal Regional do Trabalho
do Minas Gerais - 3ª Região ...................................................................................... 146 7.2.3.1 Características do contrato de trabalho ..................................................................... 147 7.2.3.2 Identificação dos pontos de interesse ......................................................................... 147 7.2.4 Caso 4: processo na 2ª Vara do Trabalho de Marabá - Tribunal Regional do
Trabalho do Pará e Amapá - 8ª Região..................................................................... 154 7.2.4.1 Características do contrato de trabalho ..................................................................... 155 7.2.4.2 Identificação dos pontos de interesse ......................................................................... 155
8 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .................................. 161
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 167
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 173
APÊNDICE: ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA ............... 179
ANEXO: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ......... 181
17
1 INTRODUÇÃO
Esta tese está inserida na seara das Ciências Humanas, vocacionada a analisar a
subjetivação dos trabalhadores que recorreram ao Judiciário Trabalhista para o reconhecimento
da ocorrência de uma violação a seus projetos de vida ou da vida de suas relações, em virtude
do excesso de horas trabalhadas no decorrer da vigência de seus contratos de trabalho. Esse fato
recebe a denominação jurídica de “dano existencial”. Este ocorre dentro das relações
empregatícias, quando o empregador infringe direitos assegurados ao trabalhador, relacionados,
em sua maioria, com o limite de duração da jornada de trabalho, concessão de intervalos ou
férias.
Diante da inobservância desses direitos, o trabalhador é levado a conduzir habitualmente
extensas jornadas de trabalho, não usufruir dos intervalos entre uma jornada de trabalho e outra
ou não gozar efetivamente de suas férias. Com essas violações, o sujeito se mantém atrelado ao
trabalho a todo o tempo, de modo que projetos de vida ou a vida das relações que ele poderia
experimentar ficam frustrados. A esse sujeito, que não se desconecta do trabalho, é demandado
hiperfuncionar durante anos e anos de vigência de seu contrato de trabalho. Assim não pode
começar ou continuar algum projeto, não desenvolve ou mantém relações emocionais,
amorosas ou familiares, bem como não consegue conviver em sociedade.
Tema recente no Direito brasileiro e sobretudo no Direito do Trabalho, o dano
existencial originalmente foi introduzido no ordenamento pela doutrina e jurisprudência, com
amparo em decisões advindas do Direito laboral italiano. A partir de 11 de novembro de 2017,
pela Lei nº 13.467/2017, conhecida como a “reforma trabalhista”, o dano existencial passou a
figurar expressamente na legislação trabalhista brasileira. Quanto ao dano existencial, o
entendimento majoritário e atual dos Tribunais Regionais do Trabalho firma-se no sentido de
que, para configuração do dano existencial por excesso de trabalho, o sujeito precisa, além de
provar a jornada extenuante e a não desconexão, demonstrar também a lesão concreta e
relacional a algum projeto de vida ou a vida da relação. Nesse sentido, deve provar, no processo
judicial, um término de um casamento, o adiamento de uma gravidez, o não acompanhar do
crescimento de um filho, os pais em uma fase terminal da vida, não estar presente em vários
natais ou festas de aniversários dos entes próximos, não poder cursar uma faculdade, não
desfrutar de atividades recreativas após o término da jornada de trabalho, não conseguir praticar
um esporte, viajar de férias ou não ter momentos de lazer. O rol acima elucidado não é taxativo,
bastando apenas para exemplificar algumas ocorrências do que se pode entender por dano
existencial atrelado aos contratos de trabalho.
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Para esse empregador ser punido e ter contra si fixada a responsabilidade civil de
reparar, deve ter praticado ações no curso do trabalho que tiveram como consequência a
violação de direitos fundamentais do trabalhador, furtando-lhe a autodeterminação, ficando este
compelido a reprogramar seu dia a dia e até mesmo sua vida (Frota, 2013). Assim, ocorrendo
essa situação dentro do ambiente corporativo, a Justiça do Trabalho brasileira, em resposta ao
pleito judicial do trabalhador, profere a decisão, reconhecendo judicialmente o rompimento de
um projeto de vida ou da vida das relações daquele trabalhador, e condena o empregador a
promover uma reparação com pagamento em dinheiro a favor daquele sujeito.
Para esta pesquisa, o trabalhador que atende à reflexividade do estudo se refere àquele
com algum poder de autogestão de seu tempo de trabalho e do modo de execução do contrato
laboral. Elegeu-se analisar processos cujos reclamantes/empregados tinham alguma ingerência
no controle do tempo de trabalho, ou seja, a subordinação ao empregador, de certa forma, foi
mitigada, e a organização, o controle e a disciplina, como atribuições típicas do empregador,
mesclavam-se com o poder da gestão do tempo no desempenho do pacto laborativo pelo
empregado. Assim, empregou-se analisar a subjetivação em trabalhadores que não eram
obrigados, nem por lei nem pela natureza do contrato, a registrarem seus horários de trabalho
perante o empregador. Interessaram, portanto, os trabalhadores ocupantes de cargos de chefia,
gerência, supervisão, coordenação e os trabalhadores externos, como os vendedores.
O que justificou a seleção desses casos foi a primazia da realidade do atual mundo do
trabalho, cada vez mais adaptado a formatos de prestação de serviços, em que o sujeito é
coadjuvante do processo organizacional. Esse caráter foi eleito como um dos seletores das
decisões judiciais, diante da realidade das novas formas de organização do trabalho, pelas quais
o trabalhador tem oportunidade de atuar, com mais liberalidade e responsabilidade, na gestão
de seu tempo de trabalho e no modo de execução do pacto laborativo. Levou-se em
consideração a contextualidade da dinâmica sociolaboral, atestando um significado do trabalho
na vida daquele trabalhador, que, diante do aumento significativo das demandas de autonomia,
iniciativa e responsabilidade, faz emergir um novo posicionamento desse sujeito. Como
esclarecimento, não importaram à reflexividade proposta nesta tese os contratos típicos de
trabalho, com controle e registro-padrão de jornada de trabalho, posto que nestes a margem de
subjetivação e autogestão do trabalhador é menor. Nesse sentido, confirma-se o viés qualitativo
da pesquisa e não quantitativo.
Como narrado acima, o instituto do dano existencial remonta à recentidade na seara
jurídica, sobretudo no Brasil. Não obstante esse dado, existem demandas judiciais de reparação
por dano existencial em todo o Judiciário Trabalhista brasileiro, como um desdobramento da
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expansão da tendência da ampliação dos danos indenizáveis. Diante dessa constatação
verificada por uma simples busca textual na jurisprudência dos Tribunais Regionais do
Trabalho, ficou oportuno tecer anotações críticas sobre a vivenciada acentuação da propositura
de demandas perante o Judiciário na Contemporaneidade bem como sobre a própria majoração
das criações de tantos institutos jurídicos. Assim, esta pesquisa dedicou algumas linhas para
abordar a temática da judicialização do viver e da juridicialização na atualidade. Para tanto,
buscou-se referencial teórico embasado em Augusto (2012), Brito (2012), Lobo (2012), Prado
Filho (2012) e Rifiotis (2014).
Tecidas as primeiras e necessárias considerações para uma noção do instituto jurídico,
cabe elucidar expressamente os objetivos geral e específicos do trabalho. A pesquisa teve como
objetivo geral analisar processos de subjetivação dos trabalhadores, com base em demandas
judiciais trabalhistas com êxito no pedido de indenização por dano existencial. Os objetivos
específicos foram delineados em quatro. O primeiro foi analisar as atas de audiências das quais
constam depoimentos das partes na audiência de instrução e julgamento, bem como as
respectivas sentenças e acórdãos dos referidos processos com pedidos de dano existencial
deferidos. O segundo objetivo específico procurou identificar os projetos de vida ou da vida
das relações que foram invocados como violados nos processos. A verificação da ocorrência de
percepção dos juízes do Judiciário Trabalhista do processo de subjetivação do empregado em
ações com pedido de dano existencial figura como terceiro objetivo específico. O quarto
objetivo específico foi caracterizar a casuística analisada com base em elementos de
semelhanças e de diferenças entre os casos judiciais analisados.
Para perquirir sobre o processo de subjetivação, foram empregadas a análise
documental, pesquisa bibliográfica e entrevistas. A análise documental se atrelou à ata da
audiência de instrução e julgamento dos processos selecionados, respectivas sentenças e
acórdãos, na busca por elementos que poderiam corroborar na construção social desse
reclamante dentro do processo judicial trabalhista. A esses elementos deliberou-se denominar
de pontos de interesse no contexto da figura jurídica do dano existencial e a subjetivação do
reclamante. A ata da audiência de instrução e julgamento é o corpus específico escolhido para
aplicação da metodologia de análise do discurso.
Para compreensão da subjetivação do trabalhador, a pesquisa, ancorou-se nos escritos
de Michel Foucault sobre o tema, desde já se valendo de sua explanação sobre qual é o sujeito
que chama à reflexividade e como ela pode se dar. Na esteira do exposto por Foucault
(1984a/1999), refere-se não a um sujeito universal, mas sim a um sujeito em situação, na
experiência vivida entre uma subjetividade assujeitada e uma subjetividade autônoma. Foucault
20
(2002) indica a construção de uma analítica dos modos de subjetivação, levando em
consideração o sujeito como efeito, em uma perspectiva que pode ser tanto de assujeitamento
quanto de autonomia. Reflete-se sobre a subjetividade para além da interioridade psicológica,
urgindo considerar a relação entre subjetividade e espaço social, uma vez que esse sujeito não
é uma substância essencial. Nesse sentido, destaca-se que não é uma concepção essencialista
que serve de base para esta pesquisa, mas sim o estudo da subjetivação de um indivíduo situado
dentro do enquadramento específico do processo judicial e de todos seus agenciamentos. Desse
modo, não se fala em um sujeito dito universal como fundamento da existência, mas sim um
sujeito em situação, considerando para a análise do processo de subjetivação a perspectiva de
autonomia, designando o modo de agir desse sujeito.
Essa contextualização sobre o tipo de subjetividade levada a efeito nesta pesquisa é
fundamental para compreender o sujeito que se analisa nesta pesquisa. Assim, reitera-se que
este é um sujeito em situação, considerado como efeito, um sujeito não definido com base em
uma identidade fundamental, mas sim refundido em certo contexto histórico, compreendendo
uma análise de subjetividade para além da interioridade psicológica, considerando a relação
entre subjetividade e espaço social. Refere-se a uma subjetividade de autonomia. O sujeito se
constitui amparado na reflexão de si. Não obstante a opção de subjetividade levada a efeito
nesta pesquisa, entendeu-se importante para uma reflexão sistêmica do tema discorrer, ao longo
trabalho, sobre a dupla dimensão de subjetividade encontrada nas pesquisas de Foucault: a
subjetivação sobre práticas discursivas e a subjetivação reflexiva, ou seja, mais autônoma.
O sujeito analisado nesta tese é alguém institucionalmente situado. A situação em que
esse sujeito se encontra é de enquadramento com todos os protocolos e rituais da cena jurídica
de uma audiência de instrução e julgamento, sendo que esse tônus se reverberou na ata da
audiência. Assim, o contexto social e a instância jurídica passam a ser fortemente considerados
na análise do processo de subjetivação. O sujeito pesquisado está colocado na cena da audiência
de instrução, buscando constituir como elementos de verdade suas alegações para o fim
pretendido de êxito na demanda trabalhista. Este sujeito, chamado no processo de reclamante,
denominação jurídica de quem ocupa o polo ativo da ação trabalhista, como um autor da
reclamatória, tem o anseio de sair vitorioso no seu pedido de dano existencial. Ele assume um
papel de autor no processo judicial, devendo manter coesão e aderência às narrativas que
constam da petição inicial, que é a reclamatória trabalhista na qual há as narrativas fáticas e
jurídicas que dão ensejo ao pedido de reparação.
A maturação dos estudos da dinâmica da subjetividade em Foucault considera não
apenas o que é a subjetivação, mas o modo como esta se opera. Passa a considerar uma visão
21
integrativa que possibilita então se identificar qual status desse sujeito, o que esse sujeito
deveria ser, quais condições de submetimento existiriam. Essas diversas circunstâncias
reportam a elementos de objetificação, pois é preciso que esse sujeito seja objeto de um
conhecimento plausível. Nesse sentido, foi necessário indicar o modo de objetificação do
sujeito e operar seu enlace com o modo de subjetivação, posto que são dependentes e influentes
reciprocamente. A esse entrelaçar Foucault (2002) deu o nome de “jogos da verdade”.
Atrelado ao amparo teórico de Foucault (2002), em sua obra A verdade e as formas
jurídicas, agrega-se ao trabalho a aderência com a metodologia de análise do discurso, uma vez
que o autor coloca o discurso para além do aspecto puramente linguístico, ampliando-o para ser
percebido como um jogo estratégico e polêmico. A relação empregada com esta pesquisa reside
no fato das práticas judiciárias como campo para aplicação da hipótese de uma análise
estratégica do discurso, em um contexto real de processos históricos e importantes.
No contexto de se levar em consideração a perspectiva do pesquisador ao eleger a
análise do discurso como ferramenta metodológica, faz-se adequado destacar a condição da
pesquisadora: advogada, operadora do Direito e especialista em Direito do Trabalho. Nessa
senda, existe um conforto de tráfego no corpus da pesquisa, considerando a atuação no
Judiciário Trabalhista, o desenvolvimento das audiências trabalhistas, justificando a
seletividade na aplicação da análise do discurso, e uma maior expectativa da efetividade de
aplicação desse método.
A dimensão de discurso sensibilizada nesta tese indica a imprescindibilidade de
definição dos sujeitos e do lugar que estes estão ocupando no momento de suas atuações no
processo trabalhista, abordando as condições de produção dos discursos. Para perquirir sobre a
subjetividade, adotou-se o momento dos depoimentos pessoais do reclamante e demais
explanações nos autos do processo, evidenciados tanto nas atas das audiências de instrução e
julgamento como nas sentenças e acórdãos. Nesse mister, dividiu-se o referencial teórico entre
Foucault (2002) e Charaudeau (2006), considerando as intercessões propostas por ambos a
respeito da subjetividade e da análise do discurso.
A relação entre a dimensão social e as condições de produção do discurso são
reconhecidas por Charaudeau (2006) como indispensável circunstância para compreensão do
fenômeno da significação dos enunciados do sujeito. O discurso infere-se em uma prática social
com a atuação de sujeitos que vão se relacionar dentro do processo de comunicação situados
em um contexto social.
Em atenção à vocação interdisciplinar do trabalho, os referenciais teóricos balizaram-se
entre a seara do Direito e da Psicologia. Foi feita uma explanação no que se refere ao significado
22
e relevância do trabalho na esfera jurídica, para corroborar o reconhecimento por decisão
judicial da indenização devida em decorrência de um contrato de trabalho que comprometeu a
esfera fenomênica do sujeito trabalhador. Assim, reflete-se sobre o trabalho como garantidor
da dignidade da pessoa humana e suas garantias constitucionais e legais, momento no qual se
ampara em Delgado (2006). Como a pesquisa analisa relações típicas de emprego, debruçou-se
o referencial teórico sobre Romar (2011) para explanar sobre os requisitos da configuração de
uma relação de emprego, no afã de diferenciá-la da relação de trabalho, grande gênero que
aborda o trabalhador autônomo, cuja análise escapa a este estudo.
Para a digressão acerca no instituto jurídico nuclear, qual seja, o dano existencial,
elegeram-se os pioneiros na literatura jurídica: Soares (2009), Boucinhas Filho e Alvarenga
(2013), Frota (2013). Confere-se ainda uma abordagem sobre concepção de trabalho como
empreendimento individual, no referencial de destaque para Lopez-Ruiz (2009). Sobre o
hiperfuncionamento do sujeito, destaca-se o referencial de Aubert (2003; 2006). Nesse aspecto
e considerando que as causas de pedir dos processos envolvem o comprometimento da vivência
extralabor do sujeito, optou-se ainda por perquirir a temática das relações entre carreira, família
e gestão gerencialista, esta última como modo de atuação da dinâmica laboral dos processos
judiciais analisados. Para tanto, vale-se dos apontamentos de Oltramari e Grisci (2014) e Tonon
e Grisci (2015).
Considerando uma limitação evidenciada no desenvolver da pesquisa, é necessário tecer
esclarecimento da parte metodológica, descrevendo como se deu a escolha do material jurídico
desta tese, posto que fez evidenciar uma limitação na pesquisa, no que se refere ao quantitativo
dos casos selecionados. Antes, porém, reitera-se que, nos processos selecionados, foram
levados para análise a ata da audiência de instrução e julgamento, as sentenças e os acórdãos.
O material de análise se fundamentou ainda na realização de entrevistas com magistrados do
Judiciário Trabalhista que já proferiram decisão sobre dano existencial. Como se observará no
capítulo referente à metodologia, dispõem-se detalhadamente os trâmites de escolha dos
processos.
Em resumidas linhas, a coleta das decisões sobre dano existencial se deu por buscas nos
sítios eletrônicos do Tribunal Superior do Trabalho e de Tribunais Regionais do Trabalho de
todo o Brasil, com o descritor “dano existencial”. Nesse contexto, foram evidenciadas centenas
de decisões. Após uma primeva busca, selecionaram-se os acórdãos que deferiram o pedido de
dano existencial. Na sequência, realizou-se a leitura dos acórdãos para seleção de decisões em
processos com contratos de trabalho sem registro formal de jornada e com alguma autogestão
23
do tempo de trabalho pelo sujeito trabalhador, excluindo os casos com registro formal de
controle de jornada. Ato contínuo, foram ainda empregados os seguintes seletores:
a) casos com situações de definitividade material sobre o pedido de dano existencial;
b) processos com as sentenças e acórdãos disponíveis, na íntegra, para consulta pública
nos sites dos Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho;
c) contratos de trabalho com, pelo menos, cinco anos de vigência;
d) processos em que houve audiência de instrução e julgamento, com depoimento pessoal
do reclamante;
e) decisões deferindo o dano existencial nos moldes do entendimento majoritário do
Judiciário Trabalhista brasileiro;
f) sentenças ou acórdãos detentores de informações sobre o tempo do contrato de trabalho,
funções exercidas pelo trabalhador e valor da remuneração.
Atrelado ao emprego desses seletores, que são, inclusive, cumulativos, no desenvolver
da pesquisa, em meados de 2015 e 2016, houve uma mudança de entendimento dos Tribunais
Regionais do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho sobre o instituto do dano existencial.
Esse esclarecimento é detalhadamente abordado no capítulo intitulado “Dano existencial”,
inclusive com a juntada de jurisprudências. Tal mudança de entendimento sinalizou uma
redução considerável no número de processos com dano existencial deferido, configurando-se
em mais um dos fatores de restrição na elegibilidade de casos para análise nesta pesquisa. Insta
destacar que a migração das linhas de entendimento não se confere em uma mitigação ou
enfraquecimento do instituo jurídico ou de suas ocorrências no dia a dia dos contratos de
trabalho. Conferem, como se explica a seguir, apenas uma maior cautela do Judiciário em
analisar os casos dessa natureza, não banalizando o instituto jurídico. As migrações de
entendimentos dos tribunais são muito comuns no que se refere a institutos jurídicos recentes.
Passa-se ao esclarecimento.
Até meados da pesquisa, anos de 2015 e 2016, localizaram-se decisões com duplo
entendimento ao deferir o dano existencial. Uma corrente de interpretação compreendia o dano
existencial ocorrido quando a parte provava, nos autos, apenas o descumprimento de normas
trabalhistas ou do contrato de trabalho, com a exigência de horas extras habituais ou não
concessão dos intervalos para descanso entre uma jornada e outra de trabalho, bem como a
violação do direito de férias. O entendimento anterior, diante dessa verificação do processo,
sinalizava a presunção da lesão às horas de descanso do trabalhador, atingido, de forma diferida,
24
a possibilidade de conviver ou relacionar-se em sociedade, bem como continuar ou começar
algum projeto de vida. Nessas decisões, não havia a necessidade de o trabalhador fazer prova
nos autos de qual teria sido o projeto de vida lesionado ou a vida da relação entendida como
lesionada.
De 2017 em diante, o entendimento sinalizado pelo Tribunal Superior do Trabalho, na
maioria de suas turmas julgadores, bem como nos Tribunais Regionais do Trabalho, forma-se
na compreensão de que seria necessário comprovar a lesão concreta e efetiva que aquele
excesso de trabalho gerou no projeto de vida ou na vida das relações daquele trabalhador.
Essa mudança no entendimento, atrelada a seletores na busca pelos casos passíveis de
reflexividade nesta pesquisa, bem como a timidez da inserção do instituto do dano existencial
no Direito Trabalhista brasileiro direcionaram consideravelmente o número de casos elegíveis,
evidenciando muitos casos negativos. Essa constatação fez a pesquisadora inclusive recorrer ao
amparo da indução analítica como estratégia de investigação, para delimitar as características
essenciais do fenômeno do dano existencial. Nesse aspecto, amparou-se em Deslauriers (2010).
Alguns processos que, a priori, caberiam como elegíveis, no desenvolver da pesquisa, não
continham disponíveis as informações sobre o contrato de trabalho ou a remuneração. Em
outros processos, o reclamante não produziu seu depoimento pessoal na audiência de instrução.
Outros processos registraram contratos de trabalho com duração modesta de vigência. Em
outros, as sentenças e acórdãos não abordavam a situação fática do desenvolver do contrato de
trabalho. Esses casos negativos foram elementares na composição do direcionamento para um
número consideravelmente restrito de casos. Os casos negativos aparecem somente depois de
boa parte da aplicação e análise dos seletores na pesquisa.
Pelo material elegível e considerando a redução das decisões proferidas com
julgamentos procedentes de dano existencial, entendeu-se por bem aplicar uma reflexividade
em profundidade nos casos já selecionados.
O emprego de todos seletores descritos acima direcionou a busca para os acórdãos de
quatro Tribunais Regionais do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho. Foram
selecionadas as decisões de lavra dos Tribunais Regionais do Trabalho de Minas Gerais, Rio
Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Pará e do Tribunal Superior do Trabalho.
25
2 VALORIZAÇÃO DO TRABALHO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:
FORMATOS DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E A BUSCA DE
REALIZAÇÃO EXISTENCIAL
O trabalho se libertou do estigma de tortura e degradação, adquirido originalmente na
sociedade pré-industrial. As estruturas laborais eram evidenciadas pela escravidão, dominação
entre senhores e servos, e pelas corporações de ofício.
No período histórico que pode ser caracterizado como de sociedade pré-industrial, que
teve início nos primórdios da humanidade e foi até o fim do século VIII, quando se iniciou a
chamada Revolução Industrial, várias são as formas de trabalho encontradas, das quais se
podem destacar momentos distintos: a escravidão, a servidão e as corporações de ofício (Romar,
2011, p. 27).
Na sequência dessa evolução, considera-se a queda da sociedade feudal, o crescimento
das cidades e o desenvolvimento do comércio, para, em meados do século XVIII, estabelecer o
chamado sistema capitalista. O modelo econômico dominante, o acúmulo de capitais pela
burguesia, mudanças e investimentos nos modos de produção propiciaram o surgimento de
máquinas potentes para a fabricação de produtos em pouco tempo. Este contexto de migração
da forma de produção, mirado em uma revolução socioeconômica, recebeu o nome de
Revolução Industrial. Esta faz emergir o trabalho humano assalariado e subordinado, datado de
1750 (Romar, 2011).
Fixando como marco temporal a migração para o modelo de sociedade industrial, a
partir de 1750, a evolução histórica do trabalho humano experimentou muitas transformações.
Na esteira dessa evolução, o trabalho possibilitou ao homem a experiência de adquirir a
capacidade de se realizar existencialmente, indicando hoje, em algumas situações, status de
valor e reconhecimento social. Existem empresas ranqueadas por revistas e institutos
especializados como as “melhores empresas para se trabalhar”. Como exemplo, em algumas
dessas corporações, o ambiente de trabalho se mistura com um típico ambiente de lazer, e
trabalhar parece mais uma diversão. Nesse sentido, as empresas conhecem os efeitos positivos
no trabalhador em uma adequada paisagem do local de trabalho, no que se refere ao impulso da
produtividade e obtenção do lucro empresarial, empregando sofisticadas técnicas de gestão para
estimular o bem-estar no curso do contrato de trabalho. Sobre o assunto, Almeida e Almeida
(2017) destacam que algumas empresas atuam levando em consideração também o bem-estar
do trabalhador:
26
Algumas empresas que ocupam o ranking das melhores para se trabalhar já se preocupam com o bem-estar do empregado, para muito além do ambiente meramente seguro, salubre e produtivo. Atrelam técnicas de gestão, ergonomia e psicologia ambiental para tornar o meio ambiente do trabalho local de pertença frutuosa e de grande prazer para o sujeito. Assim, compõem a paisagem do local de trabalho como indutor e estímulo a boas vibrações e conforto, que, por conseguinte, vão refletir na produtividade e na qualidade de vida no trabalho (Almeida & Almeida, 2017, p. 181). No anseio de melhorar a qualidade de vida do trabalhador e, por óbvio, os reflexos na
produtividade, o ambiente de trabalho da Google no Brasil (São Paulo e Belo Horizonte) conta
com mesas de pingue-pongue, videogames, pufes e redes de descanso. Ainda justificando sua
posição no ranking dentro das 150 melhores empresas para se trabalhar no Brasil, a Google
oferece uma verba de 100 dólares para que seus empregados decorem suas baias individuais de
trabalho. Atentas à receita de sucesso da Google, outras empresas investem em salas de
descanso, mesa de sinuca, mesa de pôquer e até um pub inglês, como o caso da empresa
especialista em serviços de tecnologia da informação, a Chaordic. Já a Movile, empresa de
aplicativos para smartphones e tablets, adotou um ambiente cool e tecnológico, com sala de
jogos e direito a uma mesa de café da manhã e, à tarde, pipoca. Ter uma sala de descompressão
e uma sala de jogos aberta de 18h a 0h foi a opção da empresa Mercado Livre para incrementar
o ambiente e trabalho (Almeida & Almeida, 2017).
Nessas gestões, a ideia seria o trespasse entre o trabalho e lazer com o auxílio da
paisagem agradável e estimulante, como assevera Reschke (2013):
Ao visitar a sede brasileira do Google em São Paulo e conversar com um grupo de funcionários, fica fácil entender por que tantas companhias mundo afora tentam imitar sua gestão de pessoas e incorporar um pouco de sua cultura — e tão poucas conseguem? Na melhor empresa para trabalhar de 2013, tudo funciona a favor da criatividade, da produtividade e, sim, da felicidade do funcionário. A começar pelas instalações de trabalho, localizadas num prédio ecologicamente correto e inteligente no coração da Faria Lima, uma das regiões mais nobres da cidade. Nos três andares ocupados pela empresa, os espaços se tornam mais interessantes a cada lance de escada. As áreas de descanso e lazer seguem o padrão de bem-estar mundialmente conhecido (e copiado): salas de jogos e entretenimento, cantos com poltronas, pufes e redes para um rápido cochilo e estúdio com instrumentos musicais para que os aspirantes a músico possam ensaiar nas horas vagas. Cada um dos ambientes tem uma decoração especial, inspirada em vários pontos típicos da capital paulista, como a rua Oscar Freire, o bairro do Bexiga e o Museu de Arte de São Paulo (Masp). No refeitório, os googlers, como são chamados os funcionários, podem tomar café da manhã, almoçar e jantar diante de uma agradável vista do terraço. Na busca pela efetivação dos valores sociais do trabalho como fundamento do Estado
democrático, nos termos do artigo 1º, inciso VI da Constituição da República de 1988, as
gestões empresariais citadas que, de algum modo, preocupam-se também com o bem-estar do
empregado no ambiente laborativo, confirmam a evolução positiva do mundo do trabalho,
27
abandonando, de fato, o estigma de degradação e tortura, sinalizando até mesmo a possibilidade
de algum trabalhador ter expectativa de atuar em um local como esses.
Evidencia-se aqui um posicionamento, ressalvando que o próprio conceito jurídico de
empresa indica a produção e circulação de bens e serviços com o objetivo do lucro. Nesse
contexto, a atividade empresarial desempenhada pelo empregador deve se pautar na percepção
do lucro empresarial como dispositivo inerente ao próprio sistema capitalista, chancelado pela
ordem econômica constitucional. O que não se pode é excluir o componente do cumprimento
da função social da empresa, não somente limitada à oferta do emprego e fomento à atividade
econômica do País, mas também na edificação e observância dos valores sociais do trabalho
humano.
Não são recentes as abordagens sobre o trabalho e seus significados. Entende-se o
trabalho como algo essencial ao homem, empregando-lhe dimensões de existência social,
econômica e jurídica. Nesse sentido e em deferência à relevância da obra de Hannah Arendt, A
condição humana (1997), na qual a autora fixa sua compreensão na distinção entre as atividades
humanas de labor (labour), trabalho (work) e ação (action) como condições básicas da vida,
entende-se por bem tecer algumas observações extraídas da obra. Consigna-se essa abordagem,
considerando que esta tese aborda, em seu aspecto macro, a intensidade de vivência pelo
trabalhador no cumprimento de seu contrato de trabalho e os efeitos que isso traz em sua vida
extratrabalho. Assim, a autora define o labor: “A atividade que corresponde ao processo
biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio tem
a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida”
(Arendt, 1997, p. 15).
Já na concepção da autora sobre o trabalho, este importaria a ideia de supressão de
necessidades básicas, compreendendo que condição humana do trabalho seria a própria vida. O
trabalho atenderia às necessidades humanas, criando produtos e impondo valor. Arendt ainda
emite e reflexão sobre a atividade do trabalho, a ação, que por seu turno recebeu a seguinte
compreensão na teoria arendtiana: “Refere-se a atividade humana exercida entre os homens, de
forma direta, sem a mediação de coisas ou da matéria, e cuja condição humana e a pluralidade,
apontada pela Filosofia como a conditio per quam de toda a vida política” (Arendt, 1997, p.
15).
Sendo resguardadas suas contribuições e relevância para o tema, as concepções
conceituais trazidas pela autora se diferem da atual compreensão que se empreende ao trabalho
na Contemporaneidade. Considerando a dinâmica laboral dentro do sistema capitalista, indica
que a sociedade necessita do trabalho para produzir e prestar serviços.
28
Não obstante as explanações acima, ainda assim, no que se refere às atividades das
empresas, permanece o anseio primevo derivado do próprio conceito de legal da atividade
empresarial, de ser uma atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens
e serviços, no escopo da obtenção do lucro. E, nesse processo de adotar técnicas de gestão
eficazes para o aumento da produtividade e consequentemente obtenção de lucros, algumas
empresas comprometem a evolução positiva do mundo do trabalho. Nessa senda, não se fala
mais em trabalho digno ou edificante, mas em trabalho degradante e, algumas vezes,
reconhecido como em condições análogas à de escravidão, comprometendo a saúde física e
mental do trabalhador.
Uma pesquisa realizada no Judiciário Trabalhista do Estado da Bahia analisou ações
judiciais trabalhistas com pedidos de assédio moral no ambiente de trabalho, entre os anos de
2001 e 2010. O resultado da pesquisa publicada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
no ano de 2015 foi o trabalho de tese intitulado O assédio moral e as relações de trabalho, do
pesquisador Aguiar (2015). O autor demonstrou o aumento do número de ações com pedidos
dessa natureza na Justiça. Para se ter uma ideia, segundo a pesquisa, em 2001, houve apenas
um pleito desse tipo, ao passo que, em 2010, registraram-se 981 processos com pedidos de
indenização por assédio moral. A essa ascensão de demandas o autor deu o nome de
“precarização do trabalho”.
A pesquisa narra situações extremamente vexatórias e humilhantes bem como evidencia
as gestões empregadas por algumas empresas que estimulam o assédio moral no ambiente
corporativo. Os assédios são de natureza física e psicológica, passando por xingamentos,
preconceito racial, imposição de cantar hinos motivacionais, dançar nas reuniões, limpar o chão
ou descarregar produtos, sem que isso fosse parte do contrato de trabalho.
No seguimento da gestão empresarial que emprega técnicas ensejadoras do assédio
moral, há condutas como exigência de alcance de metas abusivas, cobranças exageradas,
controle de tempo no uso do banheiro, revista íntima na saída do local de trabalho e até mesmo
as próprias estratégias motivacionais. Um artigo publicado pela revista Carta Capital, sob o
título Quando o trabalho é pesadelo (Menezes, 2014), elucidou que, em um processo trabalhista
no Estado do Mato Grosso, a empresa distribuía troféus tartaruga e lanterna para os piores
funcionários. O mesmo artigo cita uma condenação em um processo trabalhista em que outra
empresa foi condenada a indenizar o reclamante por tê-lo colocado em um caixão quando ele
não atingia as metas. O Tribunal Superior do Trabalho também já condenou outra corporação
por assédio moral no ambiente de trabalho, pelo emprego inadequado da frase “Não desanime,
pois até um pé na bunda te empurra pra frente”. O artigo aborda ainda as situações de trabalho
29
com lesões por esforços repetitivos, evidenciando um caso de trabalhadores que faziam
movimentos repetidos em linhas de produção cerca de 400 vezes ao dia, ou apertavam, durante
oito horas, três parafusos de cada lado de uma placa de LCD, ou ainda montavam cerca de 150
telas e teclados por dia por aparafusamento. Nesses relatos, alguns trabalhadores ficaram com
os movimentos comprometidos e limitados a fazer tarefas cotidianas em casa. Noutro fato, o
polegar da mão direita de uma empregada um dia parou de se mexer. Nesse caso, mesmo após
a cirurgia, o dedo não mais se moveu, estava inerte (Menezes, 2014).
A dignidade da pessoa humana buscada pela valorização do trabalho humano passa ao
largo quando ainda se encontram condutas de empresas que empregam táticas ditas
motivacionais contra a integridade moral e física do empregado. Na tese de Aguiar (2015),
sobre os processos de assédio moral em ambiente do trabalho no Estado da Bahia, um dos casos
analisados chamou muito a atenção por tamanha violência física e psíquica contra um ex-
empregado de uma empresa do seguimento de bebidas. Segundo a pesquisa, num processo que
tramitou naquele Estado, houve uma sentença que determinou uma indenização por danos
morais a um empregado no valor de 60 mil reais. Dos depoimentos das testemunhas, do
depoimento do reclamante e da própria sentença, o rito de humilhação e assédio teve o seguinte
modus operandi: a empresa adotava estratégias motivacionais para elevar o ânimo e fazer os
funcionários venderem mais e mais os produtos. Os que não alcançavam as metas tinham os
nomes citados e afixados em um mural com dizeres de incompetente, imbecil, idiota. Quando
das comemorações de aniversários, o aniversariante era colocado no centro do grupo e, após
serem cantados os “parabéns”, com versão própria, era o aniversariante submetido a tapas na
cabeça e outras violências, como rasgar a camisa e a cueca, e a maioria dos presentes lhe
agrediam em partes íntimas. Como bem salientado pelo magistrado, ainda há surpresa quando
uma empresa de grande porte, como a do referido processo, adota estratégias de gestão com
exposição de seus empregados que não atinjam bons resultados a situações de vexame, com
ofensas pessoais e ainda impulsionando ofensas físicas de um empregado perante os demais
(Aguiar, 2015).
Diante do exposto, parece-nos mais adequado falar sobre a evolução dos “mundos” do trabalho, tendo em vista o paradoxo de realização e de frustração vivenciado nos ambientes citados. Em um ou outro caso, as condutas que comprometem as diretrizes que constam do ordenamento jurídico devem receber proteção e serem efetivas. A valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana devem ser abarcadas em uma noção ampla e com reflexividade para cada contrato de trabalho e sua individualidade. Em alguns eventos, a busca por uma colocação no mercado de trabalho formal implica oportunidade de atender situações básicas e vitais de um ser humano. Em outros casos, pode ser uma necessidade de alçar novos cargos ou projeções dentro da empresa. O trabalho, como fato social, econômico e jurídico, deve atender aos anseios individuais de cada trabalhador que busca o exercício de seu direito social ao trabalho.
30
O paradoxo narrado acima chama a emitir uma crítica ao trabalho degradante e, muitas
vezes, equiparado ao trabalho em condições análogas à de escravidão, experimentadas por
muitos trabalhadores. O passar dos anos não foi, por si, suficiente para expurgar o sofrimento
do trabalho, demandando cada vez mais e sempre um real cuidado com a saúde física e mental
do trabalhador no desenvolvimento de seu pacto laboral.
Existem várias abordagens envolvendo o fenômeno da violência no trabalho. A
abordagem empregada pela psicodinâmica do trabalho vale-se de analisar as relações entre
subjetividade e trabalho, com eixo sobre o sofrimento. Na abordagem da psicodinâmica, o
sofrimento no trabalho seria inevitável, sendo que as escolhas e decisões da organização do
trabalho são diretamente relacionadas à violência:
A origem da violência, seguindo a reflexão proposta pela psicodinâmica do trabalho,
não parecer estar na própria violência, mas nas estratégias de defesa, mobilizadas diante do
medo e da ameaça da própria integridade física, num contexto de relações sociais de dominação
simbólica e servidão voluntária do qual não é possível desertar (Martins, Moraes & Lima, 2010,
pp. 36-37).
Podem-se destacar as relações entre trabalho e violência, no deslinde entre algumas
causas, formas e consequências. Na Contemporaneidade, o sofrimento no trabalho tem fatos
geradores diversos perpassando por gestões perversas, políticas de enxugamento, precarização
das condições de trabalho, clima de ameaça de desemprego, aumento da produtividade a
qualquer custo e o uso da dominação simbólica. Essas fontes de violência têm como efeitos a
sobrecarga e as hipersolicitações. As metas de produção acabam vistas como objeto de desejo,
desestabilizam-se as estratégias de defesa e opera-se a servidão voluntária. As formas de
violência remontam ao ritmo penoso, atitudes discriminatórias, consentimento diante das
injustiças e do sofrimento, assédio, clima de ameaça e desemprego, entre outros. Diante de todo
esse contexto, as consequências observadas são a desestruturação das relações sociais e das
defesas de proteção, crise de identidade, patologias sociais de sobrecarga e servidão e, por fim,
a exclusão e deterioração das relações sociais (Martins, Moraes & Lima, 2010).
Conforme acentuado por Martins, Moraes e Lima (2010), as narrativas do contexto de
violência acima estão inseridas na dinâmica laboral na Contemporaneidade e caracterizam um
tipo de violência invisível, com nuances em uma dominação simbólica, capaz de gerar
sofrimento e adoecimento ao trabalhador.
Em que pese a evolução do mundo do trabalho, a explanação acima prestou-se a destacar
uma real dualidade bem como lançar uma reflexão sobre os objetivos do texto constitucional e
sua efetiva realização. De um lado, ambientes de trabalho salutares e edificantes; de outro,
31
ambientes de trabalho pouco integrados com o bem-estar e cuidado com o trabalhador. Não
obstante o ambiente de trabalho experienciado pelo sujeito, a atividade laborativa faz parte da
realização fenomênica do indivíduo, que, por motivações e estímulos diversos, busca uma
colocação no mercado de trabalho. Nessa senda, o trabalhador, independentemente do tipo de
realidade de trabalho, sendo ele manual, técnico ou intelectual, bem como o valor da
remuneração percebida, enquanto se encontrar dentro de uma relação de emprego, vai
enquadrar-se na situação de subordinação, seja de cunho econômica ou jurídico, uma vez que
está colocando sua força de trabalho à disposição do empregador.
2.1 A tentativa de proteção da pessoa humana nas relações de emprego
Diante do reconhecimento judicial do pleito de indenização, a pesquisa precisa atender
ao diálogo transdisciplinar e discorrer sobre as garantias jurídicas ventiladas como fundamento
para essas decisões. O amparo constitucional que fundamenta os pedidos de dano existencial é
o grande gênero temático de proteção da dignidade da pessoa humana, bem como os institutos
jurídicos diferidos a ela inerentes, temas que serão apresentados nas linhas a seguir.
Um dos valores teóricos sobre os quais se edifica formalmente a sociedade brasileira é
a dignidade da pessoa humana. Evidentemente, da afirmação legal desse valor à sua efetivação
prática, há longo percurso. No desenvolvimento das relações sociais, das quais merecem
destaque as relações de emprego, não há de se falar na violação da dignidade. Não deveria
ocorrer a coisificação do ser humano, fazendo-o sentir-se ou utilizando-o como um objeto para
se alcançar um objetivo da organização, uma vez que a dignidade da pessoa humana é um dos
objetivos do Estado democrático (Delgado, 2006).
O texto constitucional trata da tutela do empregado e da valorização do trabalho
humano, elevando os direitos sociais do trabalho ao patamar de direitos fundamentais. Desse
modo, ao ocorrer a violação dos direitos sociais, nos quais está inserido o trabalho, atinge-se a
própria concepção de dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o direito ao trabalho precisa
ser verdadeiramente garantido, sob pena de se comprometer a dignidade da pessoa humana.
Esta, como garantia fundamental do ser humano, envolve atributos corpóreos e incorpóreos,
fazendo com que o indivíduo mereça efetiva proteção do ordenamento jurídico.
A pessoa humana é a centralidade do ordenamento jurídico brasileiro. Essa percepção
se verifica desde o preâmbulo idealizado, que consta da Constituição da República Federativa
do Brasil, publicada em 5 de outubro de 1988:
32
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. O direito ao trabalho é um direito social e está previsto no texto constitucional, no artigo
6º, destacando o trabalho em uma tríplice dimensão. Adota o trabalho como um fato social,
econômico e jurídico. A normatividade que cuida desse direito ao trabalho vem prescrita no
artigo 7º também da Constituição Federal de 1988, abarcando vasta gama de direitos. Vejam-
se as disposições: “Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (grifo nosso).
O artigo 7º da Constituição Federal de 1988 elenca vasto rol de direitos dos
trabalhadores que devem ser respeitados em todas as relações de emprego, no intuito da melhora
da condição desses trabalhadores: Relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; fundo de garantia do tempo de serviço; salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho; irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei; salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; licença-paternidade, nos termos fixados em lei; proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei; redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei; aposentadoria; assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas; reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; proteção em face da automação, na forma da lei; seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em
33
dolo ou culpa; ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho; proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos; proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso. Como fato social, o trabalho carrega a ideia da produtividade. Seria o direito que todo
homem tem de desenvolver alguma atividade laborativa na sociedade, sendo certo que, hoje, o
trabalho pode ser visto como um status. Pergunta não incomum na sociedade é a referente ao
que o homem faz. O aspecto econômico se refere ao elemento da remuneração percebida pelo
empregado, como contraprestação à força de trabalho técnico, manual ou intelectual que tenha
sido empenhado e viabilidade da sobrevivência material do trabalhador. Por derradeiro, o
aspecto jurídico trata das normas de tutela que resguardam esse exercício do direito ao trabalho,
compondo todo rol de direitos constantes da Constituição de 88 e da própria CLT (Consolidação
das Leis do Trabalho). A CLT se refere à legislação infraconstitucional que tutela vasta gama
de direitos trabalhistas. Tem como objetivo principal a regulamentação de relações individuais
e coletivas de trabalho. A CLT surgiu pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
Ocorreram várias alterações em seu texto ao longo do tempo, sendo a mais recente efetivada
pela Lei nº 13.467, publicada no Diário Oficial da União de 13 de julho de 2017.
A tutela preservada neste estudo destila atenção especial aos chamados direitos
imateriais da pessoa humana nas relações de emprego, fazendo com que o trabalho seja
preservado em sua dimensão de fato social, jurídico, econômico. Os direitos fundamentais do
ser humano, dentro dos quais se encontra o direito social ao trabalho, compõem o rol de direitos
da dignidade humana e devem portar a noção mais ampla de dignidade. Na adoção da ampla
ideia de dignidade, ficam os direitos da personalidade do trabalhador como um dos interesses
imateriais da pessoa humana.
A elevação dos direitos trabalhistas ao patamar dos direitos sociais, assegurados pela
Constituição da República de 1988, empregam maiores possibilidades de sua existência
concreta nos contratos de trabalho, seja pelo empenho de garanti-los por instrumentos jurídicos
mais eficazes, seja pela indisponibilidade desses direitos. Os direitos trabalhistas elencados na
teoria, tanto no texto constitucional como da própria Consolidação das Leis do Trabalho,
precisam ser efetivamente aplicados em cada caso concreto de uma relação de emprego. Em se
tratando de empresas privadas, como é o caso dos processos analisados nesta tese, as quais
34
desenvolvem atividade econômica, com a presença da livre iniciativa, como liberdade
empreendedorística na persecução do objetivo empresarial, deve-se buscar a compatibilização
com os direitos em linha constitucional e infraconstitucional. Essa afirmativa é o
desdobramento do prescrito na própria Constituição Federal de 1988, posto que o sistema
capitalista foi o adotado na nossa ordem econômica. Mas, e na prática, como isso se deve dar?
A prescrição de harmonia seria o dever de compatibilizar o objetivo da empresa na persecução
do lucro juntamente com a observância da valorização do trabalho humano. Essa dosimetria de
compatibilização entre a atividade empresarial e a valorização do trabalho humano, como
fundamentos da ordem econômica, vão convergir no objetivo de ampla dignidade da pessoa
humana.
A digressão jurídica acima exposta buscou traçar o fundamento genérico e de cunho
constitucional que é aplicado nas decisões judiciais sobre a ocorrência do dano existencial. O
homem tem direito de buscar uma atividade laborativa, e essa atuação registra o respeito ao
direito social ao trabalho. Este está incluso na vasta manta de proteção da dignidade da pessoa
humana, cuja centralidade nesta pesquisa é a proteção dos direitos inerentes à personalidade.
Cumpre fixar uma postura crítica, destacando que os ditames legais nem sempre
alcançam, com efetividade, os fins para os quais foram criados. A realidade do mundo do
trabalho e o medo do desemprego são presentes, em que pese ter-se fixado a favor do
trabalhador um vasto leque de tutelas jurídicas. O sujeito trabalhador no intuito de manutenção
do pacto laborativo, vivencia o seu dia a dia na dinâmica laboral, em condições que podem
comprometer sua integridade física e psicológica, permanecendo distante das tutelas jurídicas
elencados em sua proteção.
Na efetivação da atividade laborativa, o homem deve manter protegidos seus direitos
materiais e imateriais, dentro deste último, os direitos da personalidade, quando se formatam
as tutelas de existência fenomênica do sujeito trabalhador, instituto que merecerá atenção na
próxima sessão.
2.1.1 A dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade
Sob o ponto de vista jurídico, o problema da pesquisa aborda como pano de fundo a
proteção à dignidade da pessoa humana, na vertente de proteção aos direitos da personalidade.
O direito existencial abordado aqui é uma das espécies do grande gênero direitos da
personalidade do indivíduo. A repersonalização do direito justifica a colocação da dignidade da
pessoa humana como a centralidade do ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição
35
Federal de 1988. São direitos extrapatrimoniais os que buscam proteger um campo de valores
com impossibilidade de redução pecuniária, tendentes a assegurar a integral proteção da pessoa
humana em sua unidade biopsicoespiritual. Referem-se a direitos da personalidade relativos à
integridade física, direitos da personalidade relativos à integridade psíquica e os direitos da
personalidade relativos à integridade espiritual. Para elucidação da temática, abordar-se-á
sucintamente a classificação jurídica dos direitos da personalidade, para se passar ao estudo da
tutela de personalidade, que tem reflexividade nesta pesquisa.
Os direitos da personalidade relativos à integridade física referem-se à tutela jurídica do
corpo humano, protegendo sua incolumidade. Aqui são abordadas as tutelas do corpo vivo e do
corpo morto. Abarca as questões sobre transplantes de órgãos e tecidos, transexualidade e
reprodução assistida. A proteção destinada aos atributos psicológicos da pessoa fica a cargo dos
direitos da personalidade relativos à integridade psíquica. Como exemplo, citam-se a honra, a
liberdade, a imagem, a vida privada e o nome. Os direitos da personalidade relativos à
integridade espiritual cuidam de bens relativos à inteligência e à liberdade do ser humano.
Remontam aos direitos autorais e às patentes no que se referem à inteligência e à livre
manifestação do pensamento. As opiniões e a religião integram a referência à liberdade.
O direito ainda componente do vasto rol da dignidade da pessoa humana aqui abordado
é o direito social ao trabalho. Como já explanado em linhas anteriores, a tutela no ordenamento
jurídico é dada inicialmente pela Constituição da República de 1988, nos artigos 5º e 6º. Nos
casos de violação dos direitos da personalidade, põe a salvo a responsabilidade de indenização,
com fincas nos artigos 12, 186 e 927 do Código Civil. Os dispositivos trazem a seguinte
redação:
Artigo 12 - Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. […]
Artigo 186 - Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligencia ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Artigo 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. […]
Artigo 927 - Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Ainda como fundamento para a responsabilização de indenização, deve-se fazer
referência à recente alteração da CLT, introduzida pela Lei nº 13.467/2017, incluindo
36
expressamente o dever de indenizar daquele que causa dano de natureza extrapatrimonial com
ofensa à esfera moral ou existencial do sujeito, nos termos dos artigos 223-A e 223-B da CLT: Artigo 223-b - Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.
Artigo 223-B - A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima a sexualidade dos bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física. Destaca-se, porém, que o desenvolvimento da pesquisa se deu antes da entrada em
vigor da referida lei, razões pelas quais esse fundamento jurídico ainda não constava do
ordenamento. Tais fundamentações passaram a incidir nas decisões proferidas em processos
trabalhistas distribuídos a partir de 11 de novembro de 2017. Assim, nos processos
analisados, as fundamentações para reparações em dano existencial mantiveram os
fundamentos jurídicos de responsabilidade civil ao dever de indenizar, em lindes da
Constituição da República e no Código Civil. Far-se-á uma abordagem histórica e territorial
do instituto do dano existencial para que seja melhorada sua compreensão, entrada e
operacionalidade no ordenamento jurídico brasileiro.
37
3 O DANO EXISTENCIAL
A doutrina italiana foi pioneira na abordagem do dano existencial, em virtude da
carência de dispositivo de lei que fundamentasse a possibilidade de reparação por um ato ilícito
civil, causador de dano injusto a uma pessoa. Indigitada doutrina emoldurou um novo perfil
para a responsabilidade civil, agregando aos danos indenizáveis à figura jurídica do dano
existencial. O fundamento utilizado pela corte italiana referia-se à existência de atividade que
empregasse ou não a remuneração exercida por certa pessoa bem como uma vasta gama de
interesses tangentes à incolumidade física ou mental, dentro da concepção ampla de dignidade
e que, pela conduta lesiva de outrem, ficariam comprometidas. Em um primeiro momento, a
denominação das lesões à vida das relações foi de dano biológico, como um enquadramento do
direito da personalidade e sua consideração em dano à pessoa como se verá a seguir (Soares,
2009).
Surgida no início da década de 1960, a espécie foi nomeada de Dano à vida de relação e que consiste na ofensa física ou psíquica a uma pessoa, que a obstaculiza, total ou parcialmente, usufruir as benesses propiciadas por atividades recreativas, fora do âmbito laboral, como praticar esportes, frequentar clubes e igrejas, fazer turismo, dentre outras (Lora, 2013, p. 19). Os exemplos citados pela doutrina italiana referem-se inicialmente a danos que
englobavam alterações no aspecto exterior e morfológico da pessoa, como reduções de
eficiência psicofísica da pessoa, a alteração na capacidade sócia da pessoa (vida da relação) e a
redução da capacidade de trabalho em geral e da perda de oportunidades de trabalho em razão
desse dano (Soares, 2009, p. 42).
Foi por uma sentença proferida em julho de 1999 pela Corte Italiana que se emitiu o uso
da tendência doutrinária indicada anteriormente. No caso em comento, ocorreu o deferimento
do pedido de indenização, fundado na injustiça do dano. No ano 2000, foi de fato reconhecida
a figura do dano existencial. Nesse segundo caso, a pretensão girava em torno de pedido de
dano existencial feito por filho contra o pai, alegando omissão deste ao adimplemento de
prestação de alimentos. O não pagamento da pensão alimentícia ocorreu por muitos anos e
comprometeu o direito do filho de viver com dignidade e seu desenvolvimento. Nesse processo,
o pai veio a prestar alimentos depois de muito anos do nascimento do filho e, ainda assim,
somente após decisão judicial determinante. A partir de então, a jurisprudência italiana abordou
vários outros casos sob o argumento de modificação prejudicial e involuntária da cotidianidade
da pessoa de comprometimento involuntário de um projeto de vida do ser humano, já com a
38
nomenclatura de dano existencial. Em 2003, a Decisão nº 233 da Corte Constitucional Italiana
fez a distinção entre três tipos de danos não patrimoniais, fixando a um deles a nomenclatura
dano existencial, este sendo o dano derivado da lesão a outros interesses de natureza
constitucional inerentes à pessoa. Em 2006, a Decisão nº 6572 da Corte de Cassação Italiana
trouxe precisamente a descrição do que seriam os danos existenciais. Como exemplo, citam-se
alguns julgados da Corte Italiana envolvendo os danos existenciais: responsabilidade de médico
em ecografia fetal por erro de avaliação, responsabilidade em razão de condições desumanas
de habitação de trabalhador, responsabilidade do Estado por prisão de inocente (Soares, 2009).
Nessa senda, a origem do dano existencial rende-se ao Direito italiano, que ficou
incumbido de conceituá-lo, empregando as concepções de Cassano e Sessarego (citados por
Soares, 2009, p. 44): Trata-se de dano existencial, consistente na alteração das normais atividades do indivíduo, que soa, no caso acima referido, o repouso, o relaxamento, atividade de trabalho, menos o domiciliar, classificação essa que decorreu, como visto, do reconhecimento da inviolabilidade da pessoa, e da reprovação aos danos que afetassem a sua plena psicossomática e existencial. […]
O dano existencial representa, em medida mais ou menos relevante, uma alteração prejudicial nas relações familiares, sociais, culturais, afetivas, etc. Abrange todo acontecimento que incide, negativamente, sobre o complexo de afazeres da pessoa, sendo suscetível de repercutir-se, de maneira consistente - temporária ou permanentemente - sobre a sua existência. O Direito italiano já tem o instituto em permanente exame, gerando estímulo para a
aplicação do Direito comparado e, por conseguinte, ampliação de métodos hermenêuticos de
solução de casos cada vez mais atrelados às situações da cotidianidade, sobretudo quando da
existência de algum hiato legislativo para solucionar os casos concretos em decorrência das
demandas judiciais de cada indivíduo. Pela doutrina, ocorre o trespasse do instituto para o
Direito brasileiro.
Atualmente, as ações com pedidos de reparação em dano moral no Judiciário italiano
estão em um patamar muito mais adiante que no Brasil. Apenas para ilustração nesta pesquisa,
convêm demonstrar uma nova configuração do dano existencial na Itália, posto que muito
interessante. A tutela do dano existencial evoluiu de uma tal maneira que hoje a Corte de
Cassação Italiana analisa pleitos com pedidos de dano existencial ao não uso de desempenho
no trabalho. Esses pleitos envolvem pedidos de condenação de empresas pelo
comprometimento de projeto de vida do trabalhador justamente no aspecto de projeto de
carreira ou trabalho, no sentido da sua aptidão para o trabalho. Nessa senda, o Direito italiano
segue afirmando o trabalho como alicerce da dignidade humana e da garantia dos direitos de
personalidade do trabalhador, com atenção à esfera relacional da pessoa.
39
A Corte Suprema de Cassação Italiana proferiu a Decisão nº 18.506/2017, publicada em
26 de julho de 2017, na qual o dano existencial discutido residiu no não uso, pelo empregador,
do potencial de trabalho de seu empregado. Um tipo de destituição ou desqualificação
profissional. Nesse caso, o empregado foi colocado de licença remunerada por nove meses,
mesmo após um exame o ter declarado como apto para o trabalho. Entendeu-se que, com a
licença, a empresa teria negado uma colocação alternativa para o trabalhador, uma vez que o
laudo apenas sindicava recomendação para que o referido empregado não sobrecarregasse os
membros superiores. Em processos dessa natureza, foi explicitado na decisão que a Corte levou
em consideração que o empregador teria o dever de provar que não existem outros cargos
compatíveis com a atual condição de saúde do empregado. Já o empregado devia demonstrar,
para o êxito no pedido de reparação, uma piora real de sua qualidade de vida, em termos de
relações humanas e familiares, em virtude de sua atuação laboral.
A doutrina italiana indica que as consequências desse tipo de dano podem ser de
variados aspectos. Assim, fala-se em danos profissionais ou dano ao profissionalismo,
resultantes tanto de um empobrecimento da capacidade profissional adquirida pelo trabalhador
quanto na incapacidade de adquirir maior capacidade, como um avanço na carreira. Fala-se
ainda em violações de direito à imagem, direito à saúde e ao direito fundamental do trabalhador
à livre expressões de sua personalidade no local de trabalho (Falasca, 2017).
Como se asseverou acima, o nível de avanço da aplicação do instituto no Direito italiano
já está em patamares bem superiores que os praticados no Brasil. O instituto do dano existencial
vem timidamente sendo aplicado no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo na seara
justrabalhista, que pontualmente interessa nesta pesquisa. Destaca-se que, em 11 de novembro
de 2017, ocorreu o início da vigência da Lei nº 13.467/2017, conhecida como “reforma
trabalhista”, por meio da qual o instituto do dano existencial foi inserido expressamente como
dispositivo legal dentro da CLT. Nesse sentido, há o esclarecimento de que as decisões
selecionadas no desenvolvimento da pesquisa foram publicadas antes da vigência da referida
norma. As decisões sobre o dano existencial proferidas com base nas disposições constantes da
CLT ainda estão se formatando no Judiciário Trabalhista, tendo em vista o curto interregno
decorrido desde a publicação da lei.
40
3.1 A compreensão do dano existencial no Judiciário Trabalhista brasileiro
Esta pesquisa aborda especificamente uma figura jurídica de vigência e aplicação ainda
modesta no ordenamento jurídico brasileiro, denominado dano existencial. Como um
desdobramento da responsabilidade civil, o dano existencial é uma das espécies de dano
extrapatrimonial, que resulta de uma frustração vivida por uma vítima decorrente de um ato
ilícito praticado por outrem. Essa frustração impede a pessoa de prosseguir um projeto de vida
ou de se relacionar com outras pessoas. Em amplo espectro, o dano existencial nas relações de
emprego fica configurado diante de condutas ilícitas perpetradas pelo empregador, que terão
consequências no patrimônio existencial do empregado. Essas consequências englobam a
impossibilidade de relacionamentos e a convivência em sociedade, bem como a execução de
algum projeto de vida. Essas frustações ocasionadas pelo dano existencial, atuam sob variadas
abordagens. Podem referir-se às atividades biológicas de subsistência, relações afetivo-
familiares, relações sociais, atividades culturais e religiosas, atividades recreativas. Segundo
Soares (2009, p. 44), O dano existencial é a lesão ao complexo de relações que auxiliam no desenvolvimento normal da personalidade do sujeito, abrangendo a ordem pessoal ou a ordem social. É uma afetação negativa, total ou parcial, permanente ou temporária, seja a uma atividade, seja a um conjunto de atividades que a vítima do dano, normalmente, tinha como incorporado ao seu cotidiano e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar em sua forma de realização, ou mesmo suprimir de sua rotina. Cumpre inserir uma compreensão do que se pode entender pela frustração, atendendo à
visão sistêmica do instituto trazido a estudo nesta tese. Para Moura (2008), a frustração fica
compreendida como um estado emocional negativo, representando um conceito psicológico de
presente uso no dia a dia das pessoas. Os estudos da Psicologia indicados por Moura (2008)
destacam que a frustração poderia ficar compreendida sob dois enfoques: Um relacionado a um objeto impeditivo da realização de uma necessidade, algo externo ao sujeito, ou seja, um obstáculo um evento. Observa-se, porém, noutro sentido dado a este construto, que frustração se refere a um sentimento, ou seja, um sentimento negativo representando insucesso ou tristeza, por não se ter atingido algo pretendido (Moura, 2008, p. 4). Explicita-se que o fenômeno da frustração tem conceituação ampla no campo da
Psicologia, porém se mantém dividida em duas bases conceituais. Uma compreendendo a
frustração como um obstáculo, e outra, como um sentimento. Entende-se que, para esta
pesquisa, considerando o instituto jurídico em questão e as formas de sua configuração, no que
se refere ao comprometimento ou interrupção da vida das relações ou do projeto de vida do
41
trabalhador por ato ilícito do empregador, alinha-se à vertente que compreende a frustração
como um obstáculo. Assim, valendo-se da pesquisa de Moura (2008), podem-se citar alguns
conceitos de frustração com aderência a este trabalho.
Moura (2008) apresenta alguns conceitos de frustração como impedimento interno ou
externo, citando alguns autores em sua pesquisa: Dil e Anderson (1995) compreendem a
frustração como um a ato de bloquear alguém de atingir ou alcançar uma gratificação esperada.
Para Anderson (2000), a frustração ocorre quando algo bloqueia a realização ou ameaça a
continuidade de um objetivo que tem importância para o indivíduo. Soto (2005) lança a ideia
do bloqueio que um indivíduo sofre diante de uma meta (Moura, 2005, p. 5).
Os conceitos acima explicitados ficam compatíveis com o instituto jurídico do dano
existencial, posto que este reporta justamente a ideia de uma ingerência externa na vida ou no
projeto de vida do sujeito. A frustração componente do instituto jurídico do dano existencial
atrela-se, portanto, à compreensão de obstáculo como um fato externo ao sujeito trabalhador.
Nota-se que o dano existencial vem de uma agressão ao desenvolvimento normal da
personalidade humana, como uma afetação negativa diante de um querer do indivíduo. O
atingimento negativo, ainda que temporário, compromete parcialmente ou em completude a
forma da realização das atividades cotidianas do sujeito. A doutrina jurídica brasileira emitiu
sua compreensão sobre o instituto. Segundo Frota (2013, p. 181): O dano existencial constitui espécie de dano imaterial que acarreta à vítima, de modo parcial ou total, a impossibilidade de executar, dar prosseguimento ou reconstruir o seu projeto de vida (na dimensão familiar, afetivo-sexual, intelectual, artística, científica, desportiva, educacional ou profissional, dentre outras) e a dificuldade de retornar sua vida de relação (de âmbito público ou privado, sobretudo na seara da convivência familiar, profissional ou social) (p. 181). No âmbito justrabalhista, a conceituação de dano existencial ficou assim definida por
Boucinhas Filho e Alvarenga (2013, p. 30): O dano existencial no Direito do Trabalho, também chamado de dano a existência do trabalhador, decorre da conduta patronal que impossibilita o empregado de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades recreativas, afetivas, espirituais, culturais, esportivas, sociais e de descanso, que lhe trarão bem-estar físico e psíquico e, por consequência, felicidade; ou que o impede de executar, de prosseguir ou mesmo de recomeçar os seus projetos de vida, que serão, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional, social e pessoal. Neste momento, cumpre distinguir o dano existencial do dano psíquico. O dano
existencial, que se aborda nesta pesquisa, vem do desdobramento da dimensão psicológica dos
direitos da personalidade, sem, contudo, confundir-se com os danos psíquicos. Estes compõem
uma das estruturas conjunturais dos danos extrapatrimoniais. Segundo Daray (1995, p. 16):
42
Pode-se dizer que é a perturbação transitória ou permanente do equilíbrio espiritual preexistente, de natureza patológica, produzida por um ato ilícito, que gera naqueles que sofrem a possibilidade de reivindicar indenização por tal conceito da pessoa que o causou ou deve responder por ele. […] Assim, é apropriado considerar o campo denotado pela expressão perturbação do equilíbrio espiritual, dado que esta última noção constituiria o direito legal protegido. Na definição - por isso nós o apontamos ao diferenciar o dano psicológico da ofensa moral - é incluso o caráter patológico do detrimento (tradução nossa).1 O dano psíquico vai guardar uma relação com alguma patologia, podendo, inclusive,
demandar acumulação com uma reparação às vezes material, em virtude de eventuais despesas
com tratamentos e medicações. O dano psíquico propriamente dito se atesta por exames ou
laudos médicos. Da sua configuração emanarão lesão à higidez psicológica, depressão e demais
lesões psicológicas.
Aproveitando o momento de chancelar a evidência exclusiva do dano abordado nesta
pesquisa, qual seja, o dano existencial, cumpre também o distinguir do dano decorrente da perda
de uma chance. Para tanto, vale-se da compreensão de Costa e Araújo (2017): Ocorrências naturais de conflitos em sociedade resultam em um evento danoso que pode consistir em um comportamento voltado para a não percepção de uma vantagem esperada. Em outros termos, a uma situação em que uma pessoa se vê privada da oportunidade de auferir determinada vantagem ou de evitar um prejuízo face a conduta lesiva de outrem. Nisso consiste a perda de uma chance. Trata-se de uma vantagem esperada advinda de uma mera hipótese de ocorrência de algo que o indivíduo acreditaria ser satisfatória. Contudo, em virtude de uma conduta lesiva de outrem nunca se saberá se ele obteria ou não essa vantagem. Situações como a falha de um diagnóstico feito por um médico ou a não interposição de um recurso por um advogado, a não participação em um evento esportivo ou concurso pela não inscrição ou ocorrência de acidente que impediram que o candidato realizasse o evento remetem a situação da perda de uma oportunidade (Costa & Araújo, 2017, p. 663). Diante das compreensões acima, o Judiciário Trabalhista brasileiro tem condenado
algumas empresas a repararem seus empregados pela ocorrência de dano existencial. A
responsabilidade civil do empregador é fixada sob o manto do emprego da gestão temerária e
ilícita que compromete os projetos de vida e a vida das relações desses trabalhadores. O dano
existencial nas organizações ocorre quando o desenvolvimento da atividade laborativa danifica
os projetos de vida daquele empregado, caracterizado pela conduta abusiva do empregador, a
prática reiterada dessa conduta e o objetivo de aumentar a lucratividade (Martinez, 2013).
1 “Podría decirse que es la perturbación transitoria o permanente del equilibrio espiritual preexistente, de carácter
patológico, producida por un hecho ilícito, que genera en quien la padece la posibilidad de reclamar una indemnización por tal concepto a quien la haya ocasionado o debe responder por ella. […] De acuerdo con esto, corresponde considerar el campo denotado por la expresión perturbación del equilibrio espiritual, dado que esta última noción constituiría el bien jurídico protegido. En la definición p y esto lo hemos señalado al diferenciar el daño psicológico del agravio moral- se incluye el carácter patológico del detrimento” (Daray, 1995, p. 16).
43
O trabalhador tem frustrados seus projetos de vida, como se casar, ter filhos, usufruir
efetivamente de suas férias, fazer um curso de graduação, pós-graduação, estudar línguas, fazer
uma ginástica ou simplesmente ir para casa ao término ordinário da jornada de trabalho e
permanecer no lar sem executar trabalho no modo remoto, gozar integralmente e intensamente
de seus intervalos intrajornada e de repouso semanal remunerado. Na esteira dessas ocorrências,
o empregado acaba tendo prejudicada ainda a vida das relações sociais e familiares, pois não
vai promover sua história vivencial em decorrência de uma sobrecarga de horário de trabalho
imposta pelo empregador.
Assim, situações como ausências de intervalo interjornada, continuidade de horas extras
durante praticamente todo o pacto laborativo, falta de gozo de férias e não usufruto de repouso
semanal remunerado vão formatando a ocorrência do dano existencial nas organizações,
quando atreladas a um dano efetivo de um projeto de vida ou da vida das relações de
determinado trabalhador.
O que se percebe entre as diversas formas de dano existencial é um ponto de tangência
compreendido em uma violação da liberdade fenomênica do ser humano, com um
comprometimento de seu direito de autodeterminação e de suas livres escolhas fora do ambiente
laborativo, para a existência e vivência de relações familiares e sociais (Molina, 2015).
Juridicamente, o dano existencial é considerado uma modalidade de dano imaterial, pelo
qual ocorre a ofensa à dignidade da pessoa humana do trabalhador, pela sua coisificação, ou
seja, o trabalhador é transformado numa ferramenta para concretizar a maximização dos lucros.
Assim, empregados que passam nove anos sem tirar férias, sem usufruir de fins de semana com
sua família, sem passar com esta datas comemorativas, como o Natal, réveillon, sem participar
da formatura ou aniversários com os filhos, não poder acompanhar os pais em fase terminal da
vida, não conseguir fazer um curso superior ou uma especialização, não concretizar um projeto
de gravidez, ou ainda sofrer o rompimento de um vínculo conjugal em virtude do excesso de
trabalho são sujeitos submetidos a ofensa de sua composição fenomênica e, em decorrência
disso, o Judiciário responsabiliza o empregador.
Para esse empregador ser punido e ter contra si fixada a responsabilidade civil de
reparar, deve ter praticado atos no curso do trabalho que tiveram como consequência a violação
de direitos fundamentais do trabalhador, furtando-lhe a autodeterminação, ficando compelido
a reprogramar seu dia a dia e até mesmo sua vida. Assim, ocorrendo essa situação dentro do
ambiente corporativo, a Justiça do Trabalho brasileira, em resposta ao pleito judicial do
trabalhador, profere a decisão, reconhecendo judicialmente o rompimento de um projeto de
44
vida ou da vida das relações daquele trabalhador e condena o empregador a promover uma
reparação em cunho pecuniário em favor desse sujeito.
As decisões judiciais conferindo a reparação do dano existencial aos empregados, em
sua maioria, tem como fundamento a ocorrência de um dano efetivo experienciado pelo
trabalhador que atuou em labor acima do limite legal de jornada, comprometendo,
consequentemente, o usufruto dos intervalos interjornada e intrajornada, bem como a
inexistência do descanso hebdomadário e a não concessão de férias. Esclarece-se que, por
intervalos interjornada, são compreendidos aqueles no decorrer da mesma jornada (ou dia de
trabalho) e, quanto aos intervalos intrajornada, a compreensão dirige-se para aqueles horários
de descanso entre um dia e outro de trabalho, ou seja, entre uma e outra jornada de trabalho. A
expressão descanso hebdomadário refere-se ao Direito Trabalhista, amparado por lei,
conferindo ao trabalhador, via de regra, um repouso semanal remunerado de 24 horas a cada
seis dias trabalhados com pontualidade e assiduidade.
Como observado nas explanações sobre os conceitos do dano existencial, os requisitos
para a sua configuração demandam a ocorrência do prejuízo, a prática de ato ilícito por parte
do empregador e o nexo causal entre eles. O prejuízo como um requisito do dano existencial
refere-se a uma perda, um comprometimento, uma frustração atrelada à existência fenomênica
da pessoa dentro da sua cotidianidade e que lhe causa transformação involuntária em seu projeto
de vida ou da vida das relações. O ato ilícito configurador de dano existencial engloba
descumprimentos e inobservâncias voluntárias ou involuntárias por parte do empregador, sobre
a legislação em sentido amplo, bem como do próprio contrato de trabalho. Por derradeiro,
verifica-se a relação de causalidade entre eles diante de um provado e efetivo dano, ficando
afastada a configuração por presunção ou mera infração das normas e contrato.
3.1.1 A violação a um projeto de vida e à vida das relações
Ao se estudar o conceito de dano existencial, observa-se sua configuração por duas
ocorrências. Uma pela lesão a um projeto de vida; outra pela lesão à vida das relações. Por
projeto de vida, deve-se entender a reserva íntima do ser humano em alcançar seus objetivos,
amparado em suas potencialidades. Circula em torno da autorrealização integral da liberdade
de escolha, no alcance de metas e objetivos, que, no contexto de tempo e espaço, conduzem
sentido à existência daquele trabalhador (Frota, 2013).
A violação a um projeto de vida se configura quando, por exemplo, o trabalhador tem
comprometidos seus anseios de começar ou continuar alguma programação por ele traçada: um
45
casamento, um curso superior, uma especialização, uma gravidez, alguma atividade recreativa,
etc.
A vida das relações fica atrelada geralmente a anseios de usufruto de seu tempo livre
para relações em sociedade ou à própria desconexão. Sinalizam o sentido da vida fora do
ambiente do trabalho o lazer, convivência em família, amigos, férias, descanso, passar o Natal
com os filhos, estar presente na formatura de um ente querido, etc. O empregado fica impedido
de usufruir, mesmo que parcialmente, das diversas formas de relações sociais fora do ambiente
laborativo. Observe-se a explanação do doutrinador sobre o assunto: E, de outra banda, no prejuízo à vida de relação, a qual diz respeito ao conjunto de relações interpessoais, nos mais diversos ambientes e contextos, que permite ao ser humano estabelecer a sua história vivencial e se desenvolver de forma ampla e saudável, ao comungar com seus pares a experiência humana, compartilhando pensamentos, sentimentos, emoções, hábitos, reflexões, aspirações, atividades e afinidades, e crescendo, por meio do contato contínuo (processo de diálogo e de dialética) em torno da diversidade de ideologias, opiniões, mentalidades, comportamentos, culturas e valores ínsita à humanidade (Frota, 2013, p. 183-184). Note-se que a compreensão dos elementos deve passar pela junção do projeto de vida e
da vida das realizações, observado o espectro de coexistência do sujeito sugerido por Frota
(2013, p. 185): Não há projeto de vida sem a vida de relação: as pessoas humanas, como seres no mundo com os outros ou seres coexistenciais, precisam interagir umas com as outras, de modo que sejam concebidos, modelados, planejados, materializados, adaptados e readaptados os objetivos, as metas e as atividades que fornecem propósito às suas existências. Frota esclarece sobre a coexistência como um dos pressupostos existenciais do “projeto
de vida”. Embora o projeto seja uma decisão livre, somente pode se realizar com a contribuição
dos demais seres, no seio da sociedade. O “projeto de vida” se formula e decide para sua
realização em sociedade, em companhia dos “outros”. A constituição coexistencial do ser
humano torna possível sua realização comunitária. Sem os outros, não se poderia projetar
(Frota, 2013, p. 185).
Conforme a explanação da literatura jurídica, mostrou-se premente que o dano
existencial alegado ficasse cabalmente comprovado no que se refere a um efetivo prejuízo e
não apenas à violação dos direitos que compõem o rol de existência fenomênica da pessoa. As
primeiras decisões que se foram formatando no cenário do Judiciário Trabalhista brasileiro se
dividiam nessas duas esteiras de raciocínio. Uma evidenciava a configuração do dano de plano
se ficasse comprovada a configuração de excesso de jornada, não usufruto de intervalos ou não
concessão de férias. Nesse sentido, a violação a esses direitos trabalhistas era suficiente para
46
configurar o dano existencial. A outra esteira de raciocínio, mais cautelosa, exigia que, além da
violação dos direitos trabalhistas citados acima, diante dessa violação, o projeto de vida ou a
vida da relação invocados como lesionados também fossem efetivamente comprovados nos
autos.
Até meados do desenvolvimento deste trabalho, as decisões dos tribunais ainda se
dividiam nesses dois entendimentos. Desse modo, várias decisões foram proferidas por alguns
Tribunais Regionais do Trabalho entre 2015 e 2016 e ainda se firmavam com base apenas em
uma lesão reflexa a um projeto de vida ou à vida das relações. Ao longo desta pesquisa, já com
os recursos interpostos diante dessas decisões, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio de
algumas turmas, posicionou-se sobre o tema, firmando entendimento no sentido da necessidade
de comprovar efetivamente o dano à vida das relações ou ao projeto de vida quando dos pleitos
de dano existencial. Diante desse posicionamento, alguns Tribunais Regionais do Trabalho já
passaram a empregar tal entendimento, o que fez reduzir sobremaneira a procedência de
pedidos de dano existencial.
Diante da migração e oscilação desses entendimentos, alguns casos anteriormente
selecionados para a pesquisa sofreram reforma pelo Tribunal Superior do Trabalho e,
paralelamente, houve ainda uma redução no número de procedências nos pedidos de dano
existencial, já em grau de recurso pelos Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior
do Trabalho. Essa mudança levou à exclusão de alguns casos anteriormente selecionados nesta
pesquisa, posto não mais atenderem ao entendimento majoritário empregado pelo Judiciário
Trabalhista. Sob o ponto de vista jurídico, o interesse se esgotou naqueles casos anteriormente
selecionados, posto que a lesão era reflexa, de modo que poderiam ficar comprometidas a
vocação transdisciplinar e a relevância da pesquisa.
Os casos que permanecem nesta tese se compatibilizam atualmente com o entendimento
firmado pelas turmas do Tribunal Superior do Trabalho e alguns precedentes fixados pelos
Tribunais Regionais do Trabalho. Sobre o assunto, colacionaram-se julgado do ano de 2018,
atestando a reforma de algumas decisões anteriormente proferidas pelo Tribunal Regional do
Trabalho:
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL EXISTENCIAL. JORNADA EXCESSIVA. Demonstrada a existência de divergência jurisprudencial, determina-se o processamento do Recurso de Revista. Agravo de Instrumento conhecido e parcialmente provido. RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL EXISTENCIAL. JORNADA EXCESSIVA. Na hipótese dos autos, a indenização foi deferida pelo excesso da jornada de trabalho. Apesar de constar no acórdão regional que o Autor chegava a laborar 13 horas em um dia, não ficou demonstrado que ele tenha deixado de realizar atividades em seu meio social ou tenha sido afastado do seu convívio
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familiar para estar à disposição do Empregador. No caso destes autos, não se pode afirmar, genericamente, que houve dano moral in re ipsa, isto é, independentemente de prova da efetiva lesão à honra, à moral ou à imagem do empregado. Não houve demonstração cabal do prejuízo, tampouco foi comprovada a prática de ato ilícito por parte da empregadora. Logo, não é devida a indenização. Recurso de Revista conhecido e provido. (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. RR n. 20439-04.2015.5.04.0282, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, Data do Julgamento: 7.02.2018, 4ª Turma. Data de Publicação: DJET 09.02.2018).
No mesmo sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, que engloba o Estado
do Rio Grande do Sul, pioneiro em diversas decisões sobre o dano existencial, também migrou
o entendimento para a necessidade do efetivo dano. Nesse sentido, fixou a tese jurídica
prevalente nº 2, publicada em junho de 2016: TESE JURÍDICA PREVALENTE No. 2 - JORNADAS DE TRABALHO EXCESSIVAS. INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL. Não configura dano existencial, passível de indenização, por si só, a prática de jornadas de trabalho excessivas. (Resolução Administrativa n. 15/2016 Disponibilizada no DEJT dias 27, 30 e 31.05.2016, considerada publicada nos dias 30 e 31.05.2016 e 01.6.2016. www.trt4.jus.br). O Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, englobante do Estado de Minas Gerais,
igualmente entre o fim de 2015 e meados de 2016, foi firmando entendimento no mesmo
sentido: EMENTA: DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXCESSIVA. Esta Corte firmou o entendimento no sentido de que a imposição ao empregado de jornada excessiva, por si só, não implica ato ilícito que enseje o pagamento de indenização a título de dano existencial, especialmente quando não comprovado o prejuízo que lhe tenha advindo, ônus que cabe ao trabalhador por se tratar de fato constitutivo do seu direito. Recurso de Revista conhecido e provido (Processo: RR - 129-15.2013.5.04.0001 Data de Julgamento: 02/12/2015, Relator Ministro: Márcio Eurico Vitral Amaro, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/12/2015). Contudo ainda se localizam atualmente no Tribunal Superior do Trabalho decisões
proferidas no sentido da lesão diferida de dano existencial como a colacionada a seguir,
publicada no ano de 2017: DANO EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO EXCESSIVA, CONTÍNUA E DESARRAZOADA DE HORAS EXTRAS. CONFIGURAÇÃO. O excesso de jornada extraordinária, para muito além das duas horas previstas na Constituição e na CLT, cumprido de forma habitual e por longo período, tipifica, em tese, o dano existencial, por configurar manifesto comprometimento do tempo útil de disponibilidade que todo indivíduo livre, inclusive o empregado, ostenta para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais. A esse respeito é preciso compreender o sentido da ordem jurídica criada no País em cinco de outubro de 1988 (CF/88). É que a Constituição da República determinou a instauração, no Brasil, de um Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), composto, segundo a doutrina, de um tripé conceitual: a pessoa humana, com sua dignidade; a sociedade política, necessariamente democrática e inclusiva; e a sociedade civil, também necessariamente democrática e inclusiva (Constituição da República e Direitos Fundamentais - dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2015, Capítulo II). Ora, a realização dos princípios constitucionais humanísticos e sociais (inviolabilidade física e psíquica do indivíduo; bem-estar individual e social; segurança
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das pessoas humanas, ao invés de apenas da propriedade e das empresas, como no passado; valorização do trabalho e do emprego; justiça social; subordinação da propriedade à sua função social, entre outros princípios) é instrumento importante de garantia e cumprimento da centralidade da pessoa humana na vida socioeconômica e na ordem jurídica, concretizando sua dignidade e o próprio princípio correlato da dignidade do ser humano. Essa realização tem de ocorrer também no plano das relações humanas, sociais e econômicas, inclusive no âmbito do sistema produtivo, dentro da dinâmica da economia capitalista, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil. Dessa maneira, uma gestão empregatícia que submeta o indivíduo a reiterada e contínua jornada extenuante, que se concretize muito acima dos limites legais, em dias sequenciais, agride todos os princípios constitucionais acima explicitados e a própria noção estruturante de Estado Democrático de Direito. Se não bastasse, essa jornada gravemente excessiva reduz acentuadamente e de modo injustificável, por longo período, o direito à razoável disponibilidade temporal inerente a todo indivíduo, direito que é assegurado pelos princípios constitucionais mencionados e pelas regras constitucionais e legais regentes da jornada de trabalho. Tal situação anômala deflagra, assim, o dano existencial, que consiste em lesão ao tempo razoável e proporcional, assegurado pela ordem jurídica, à pessoa humana do trabalhador, para que possa se dedicar às atividades individuais, familiares e sociais inerentes a todos os indivíduos, sem a sobrecarga horária desproporcional, desarrazoada e ilegal, de intensidade repetida e contínua, em decorrência do contrato de trabalho mantido com o empregador. Logo, configurada essa situação no caso dos autos, deve ser restabelecida a sentença, que condenou a Reclamada no pagamento de indenização por danos morais no importe de R$ 5.000,00 (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. RR n. 1355-21.2015.5.12.0047, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, Data do Julgamento: 7.11.2017, 3ª Turma. Data de Publicação: DJET 10.11.2017). Em que pese o exposto, ainda que algumas decisões, como a citada acima, publicada
em novembro de 2017, presenteiem a tese do dano existencial diferido e considerando o cenário
geral nas deliberações jurídicas sobre o tema, a pesquisadora entendeu por bem filiar-se ao
entendimento majoritário. Este importa na necessidade de se fazer prova nos autos do efetivo
dano ao projeto de vida ou da vida das relações que foram invocados como lesionados pelo
excesso de jornada. A justificativa na eleição dessa corrente de entendimento se ancora na
origem transdisciplinar da pesquisa, no intuito de gerar e manter sua relevância científica na
área das Ciências Humanas.
3.2 Uma visão sistêmica sobre o dano existencial e os pleitos judiciais do “viver” na
Contemporaneidade: a judicialização da vida
Coroando o tema abordado nesta tese, com suas características de recentidade,
especificidade e elevação do cuidado com o ser humano em sua dimensão biopsicoespiritual,
pode-se afirmar que o Direito acabou por se aproximar da sociedade. Presencia-se uma
horizontalização dos direitos fundamentais, a capilarização do rompimento enrijecido entre o
Direito público e o Direito privado, cedendo a dinâmica da constitucionalização do Direito
Civil. Nessa leva de transformações, presencia-se também a acentuação da importância do ser
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humano com a despatrimonialização e com a personalização do direito. Percebe-se que uma
expansão das mudanças na sociedade facilitou o acesso à informação. Surgiram novos
interesses, novos direitos e, por conseguinte, presume-se também o surgimento de novas
demandas. Sobre esta abordagem, vale-se de Amaral e Marçal (2015):
Atualmente, seja por modificações jurídicas, v.g. (I) maior aproximação do direito e da sociedade, ficando o formalismo exacerbado em segundo plano; (II) o crescimento da tendência da horizontalização dos direito fundamentais; (III) a força normativa da Constituição Federal, cujos mandamentos decorrem de regras ou princípios; (IV) o fim da divisão do direito em público e privado; (V) a despatrimonialização e a personalização do direito, compreendendo maior proteção ao ser humano, deixando em segundo plano as questões meramente patrimoniais; (VI) a constitucionalização do direito civil, entre outras; ou por alterações ocorridas na essência da sociedade, especialmente pelas decorrências da Revolução Industrial, além de um maior acesso aos meios de comunicação, instrumentos que proporcionam um rápido acesso a informações, bem como pela astronômica evolução dos meios tecnológico-científicos, que, se por um lado beneficiaram o ser humano, por outro multiplicaram substancialmente os riscos existentes, novos direitos e interesses foram reconhecidos, buscando tutelar o ser humano em suas mais diversas facetas (Amaral & Marçal, 2015, p. 19). O surgimento de tantas novas pretensões de direitos e suas novas demandas vem, nesta
tese, inserindo a relevante temática da judicialização2 da vida. Referida temática tem guarida
neste trabalho, afirmando a visão sistêmica e a vocação interdisciplinar do estudo. Sobre o
assunto, apropria-se da compreensão de judicialização, externada por Oliveira e Brito (2013, p.
80): “Compreendemos por judicialização o movimento de regulação normativa e legal do viver,
do qual os sujeitos se apropriam para a resolução dos conflitos cotidianos”. Segundo as autoras,
a justificativa desse atravessamento pelo Poder Judiciário reside na inviolabilidade dos direitos,
melhor interesse, tutela e bem-estar de algumas vidas. A novidade do fenômeno do dano
existencial, seu foco em uma questão relacional que ensejou algum tipo de violação ou
sofrimento, sua relação com atos ilícitos bem como seus efeitos psicológicos entrelaçam o dano
existencial com os pontos de discussão levados a efeitos na temática da judicialização da vida.
Para contextualização, citam-se, por exemplo, as ocorrências de bullying e de alienação
parental.
Refere-se a algumas práticas de violência emergidas no cotidiano das relações
experienciadas pelos sujeitos. No caso específico do dano existencial, fala-se aqui de uma
relação de emprego, que vai desaguar em pleitos judiciais de reparabilidade. Nos casos eleitos
2 Cumpre traçar uma diferenciação entre as expressões “judicialização” e “juridicização”. Judicialização confere
o movimento de regulação normativa e legal do viver, do qual os sujeitos se apropriam para a resolução dos conflitos cotidianos. A juridicialização atrela-se tanto a uma relação com as leis e instituições do chamado Poder Judiciário como também às relações que cada um estabelece com a forma-julgamento e com as práticas de julgamento mais ordinárias.
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na pesquisa, a busca por “justiça” vem, na maior parte dos casos, após o término do contrato de
trabalho, que, em igual medida, não é majoritariamente provocado pelo trabalhador, mas sim
pela empresa. Entende-se que o sujeito como empregado não provoca o Judiciário enquanto seu
contrato de trabalho está ativo, em virtude de toda a dependência formada por aquele vínculo
contratual. Porém, com a ruptura do pacto laborativo, surge então a busca pela reparabilidade
por tantos anos de dedicação ao trabalho e pela supressão das horas de viver, seja um projeto
vida ou uma vida social. Após o rompimento do pacto laborativo, existe uma alça de salvação
para aquela violação sofrida e a possibilidade de impingir a culpa a outro sujeito que, no caso,
será o empregador. O trabalhador entende que o empregador deve ser o culpado, livrando-o,
com isso, de qualquer possibilidade de sua contribuição para esse evento. Sobre essa temática,
vale-se da citação de Bauman (2007, p. 66): Sofrer algo diferente da penalidade adequada por um crime ou contravenção é percebido como evitável e injustificado. Quando isso ocorre alguém tem de ser culpado, e deve haver um réu ligado à culpa. Todo caso de sofrimento é potencialmente, até que se prove o contrário, um caso de vitimização - e qualquer pessoa que sofra e (ao menos potencialmente) uma vítima. A naturalidade com que o sofrimento e explicado pela presunção da vitimização pode ter um efeito terapêutico sobre o sofredor, tornando a dor, psicologicamente, um pouco mais fácil de suportar. Mas também pode afastar a atenção dos sofredores da verdadeira causa de seu sofrimento - desse modo: prolongando e não encurtando, intensificando e não aliviando a dor (principalmente por explicar uma deficiência pessoal como efeito casual das más intenções de uma pessoa, e não como um arranjo social que permite sistematicamente a distribuição de golpes aleatórios e a torna onipresente, rotineira e inevitável, e assim mantem os arranjos a salvo da crítica). Essa “naturalidade” também torna tentador incluir qualquer desconforto ou ambição frustrada na lista de condições classificadas sob a rubrica do sofrimento (injustificado). A decisão judicial não opera um cuidado com a constituição histórica do sujeito
trabalhador. Bauman (2007) inclusive já apontava para um viés específico decorrente da
procura do Judiciário como forma inicial ou até única de solução de um conflito. Ficou exposto
pelo autor o que comumente se presencia em algumas demandas e, por vezes, chamadas de
“aventura jurídica”,3 resguardada apenas aos objetivos materiais de uma demanda judicial, tanto
pelas partes como pelos advogados: Localizar e apontar um suposto culpado pelo sofrimento tem outra vantagem: pode ser seguido pela busca de uma compensação. Uma pessoa ou sujeito de direito pode ser processada, e não faltam especialistas jurídicos ávidos por assumir a causa do sofredor. Além dos benefícios materiais que os sofredores e seus advogados podem obter a partir do veredicto positivo de um
3 Pela expressão “aventura jurídica” entendem-se aquelas demandas judiciais desassociados da real finalidade do
processo. São tentativas desarrazoadas de propor demandas judiciais, nas quais, muitas vezes, tem-se conhecimento que a pretensão ali lançada não está amparada pelo Direito ou na contramão dos entendimentos já fixados pela jurisprudência dos tribunais a respeito de algum tema. A demanda aventureira, também chamada de temerária, importa tanto na conduta de se valer do processo para fins alheios de solução de uma pretensão como condutas de má-fé processual, com o processo já em curso.
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tribunal, a suposta vitimização será então autorizadamente confirmada e assim o impacto terapêutico da explicação da dor mediante a vitimização será reforçado, ainda que as causas da dor saiam intactas desse procedimento (Bauman, 2007, p. 66). Os aspectos do viver são, com naturalidade, migrados para o Poder Judiciário, sob a
justificativa de humanização da Justiça. O trespasse da solução do conflito exclusivamente ao
Poder Judiciário faz surgir com exatidão uma dimensão bipartite de culpa e inocência, de vítima
e de réu, de quem agiu com correção e de quem errou, e, por conseguinte, quem será punido e
quem será reparado. As demandas trabalhistas levadas a efeito neste trabalho são individuais, e
os pedidos são de reparação em pecúnia. A reflexão almejada, quando se aborda o tema da
judicialização, circunda a real reparação daquele sujeito que se vê submerso no trabalho por
tanto tempo, a ponto de comprometer sua esfera biopsicoespiritual. Com a naturalidade de se
colocar o Poder Judiciário como alça de salvação nas demandas individuais, afastam-se ou
ficam esquecidos os necessários cuidados de saúde coletiva, como as políticas sociais e o
cuidado com a saúde mental do trabalhador. Oliveira e Brito (2013), com propriedade, externam
uma perspectiva em viés para esse fenômeno, o de judicialização da vida humana em
contraponto à humanização do Judiciário: Com esse olhar individualizante e punitivo, temos gerido as vidas, incentivado a participação dos cidadãos nos julgamentos, produzido leis e demandado medidas tutelares que contemplem os mínimos aspectos do viver. Nesse processo, compreendido como judicialização, tudo deve ser controlado, recompensado ou punido, passando pelo Judiciário e pelo rol de profissionais que ali estão (Oliveira & Brito, 2013, p. 85). Assim, leva-se a refletir se esse trabalhador reincidiria em um pacto laboral com as
mesmas características daquele contrato de trabalho que o levou ao Judiciário, em busca de uma
reparação pelo trabalho em hiperfuncionamento. Reflete-se ainda se, depois de um novo pacto
laborativo nos moldes do anterior, já vivido pelo trabalhador, se com o rompimento daquele
vínculo, ele novamente promoveria a judicialização da vida como alça de salvação para a
entendida violência sofrida. Sobre o assunto, importa-se a compreensão a seguir: Ao considerarmos que um conflito ou um comportamento diferenciado do padrão pode vir a revelar algum dano/culpa, enquadrar-se em determinada lei, devendo ser julgado e punido/recompensado, dificultamos ao sujeito o exercício crítico, a implicação, a reflexão, o questionamento, a transformação e a apropriação de seus posicionamentos e atuações no mundo. Paradoxalmente, nós o responsabilizamos por um crime ou doença, mas insistimos em negar-lhe a possibilidade de reconhecer que não é um ser determinado ou vítima das circunstâncias, e sim, um sujeito social, político, ativo, criador e suscetível às mudanças e transformações que ocorrem a todo o tempo, em diferentes contextos e com múltiplas variáveis. Atribuir imperativos morais, determinismos biológicos ou quaisquer outros à existência humana é desconsiderar toda forma de liberdade e responsabilidade do sujeito perante a vida. Se seu modo de ser e de estar no mundo é predeterminado por essências invariáveis ou tem origens que ele não controla e
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desconhece, como querer seu envolvimento na construção do viver particular e compartilhado? (Oliveira & Brito, 2013, p. 87). Faz-se necessária uma visão sistêmica e não reducionista de tantas peculiaridades que
envolvem a relação de emprego desse trabalhador demandado ao hiperfuncionamento. Não se
pode aclimatizar o processo judicial como um fim em si mesmo. É necessário ampliar com
efetividade a função teleológica do processo, buscando a reflexividade para as características
próprias daquele empregado e daquele empregador, sob pena de a reparação se esvaziar e a
conduta ser reiterada por ambos.
Insta-se a uma reflexão sobre esta aclimatização da expansão das demandas judiciais
como forma de solução dos conflitos do viver na sociedade, revelando uma dubiedade na
compreensão do sistema como ferramenta de humanização da Justiça ou de judicialização do
humano. Nessa abordagem, busca-se também compreender sobre a ocorrência da chamada
“juridicialização da vida”, entendida como um modo de introjeção de regras, nas palavras de
Augusto (2012, p. 31): “Em que consiste um processo de juridicialização? Penso não apenas
em uma relação com as leis e instituições do chamado Poder Judiciário, mas as relações que
cada um estabelece com a forma-julgamento e com as práticas de julgamento mais ordinárias”.
O espalhamento de julgamentos, a coexistência de tantos pequenos tribunais entremeia-
se às práticas de liberdade, afirmando a aclimatização da subsunção dos regramentos
normativos e dos julgamentos que cada sujeito emprega em seu cotidiano. Assume-se a palavra
participação e colaboração como flutuantes habituais nas sociedades de controle. Sobre o
assunto, colaciona-se: Assim, observa-se o funcionamento de certas práticas corriqueiras e recentes que perpetuam o ordinário do tribunal em nossas vidas, fazendo-nos ora juízes, ora acusados, algozes e vítimas, alimentando um sem fim de repetições modorrentas que se espelham e reproduzem as práticas do tribunal. Antes de olharmos para processos sociais que podem ser classificados como judicialização da política, uma análise apurada deveria questionar a existência do tribunal em nós e em nossas vidas cotidianas, uma juridicialização da vida (Augusto, 2012, p. 33). A velocidade, a ininterrupção e a continuidade dos controles indicados acima perpetuam
os tribunais e julgamentos, inserindo a sociedade em uma mescla de posições, gerando a
penumbra na fixação de papéis específicos. Assim, se é ou não se sabe se é vítima, acusado,
defesa, juiz, advogado ou quaisquer demais autores na cotidianidade do viver, como um
desdobramento da mentalidade premente da responsabilidade social. Há, como já se destacou,
uma institucionalização dos acentuados controles de comportamento, com enfoques na
participação e colaboração compondo as sazonalidades dessas sociedades de controle.
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A crença e devoção à lei e à sua proteção, como algo referente a retidão, lisura, ética,
correnteza, pode levar, segundo Nascimento (2014), a um tipo de fomento para atuação com
responsabilidade social, mediante, por exemplo, denúncias realizadas às autoridades
competentes, profissionais especializados ou ao Judiciário. Presencia-se um momento em que
a acreditação da lei remonta à própria composição da cidadania. Relaciona-se o patamar de
cidadão como consequência da existência de uma lei tutelar, como o Estatuto do Idoso, Estatuto
da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha. A lei passou a carregar a expectativa de
resolvedora de impasses e uma responsabilidade por cumprir um papel pedagógico de obstrução
do comportamento por ela repreendido, como assevera Nascimento (2014, p. 460): Nesse âmbito há um incentivo à denúncia, tomada como um modo de participação, de responsabilidade social e condição para a realização da justiça e das normas. Importante referir que no mundo da judicialização foi implantada a máxima “somos todos responsáveis”, que delega às redes de proteção e a toda e qualquer pessoa os funcionamentos antes restritos aos operadores da justiça. O panorama acima descrito afirma a acentuação cada vez maior dos pleitos por leis,
uma vez que carregam as expectativas de resolubilidade dos conflitos sociais, mitigando outros
meios de sociabilidade e comunicação. Ocorre que as eventuais celeumas são resolvidas em
espectro de base externo ao da situação fática experienciada pelos sujeitos (Nascimento, 2014).
A judicialização tomada da forma prescrita limita o processo como um fim em si
mesmo, mascarando a proteção almejada em cada caso concreto, uma vez que: Atua por processos de individualização que criam seus próprios mundos, com subjetividades específicas tomadas como se fossem válidas para qualquer tempo e lugar. Desse modo, são estabelecidas forças que fazem a palavra legal funcionar de modo a prescrever comportamentos (Nascimento, 2014, p. 467). A questionável dicotomia entre o “sujeito dos direitos” e os “direitos dos sujeitos” e
novamente trazida à discussão de Rifiotis (2014). Permeia a dimensão limitada da intepretação
da lei diante de algo mais sistêmico, como o modo de “apropriação dos sujeitos sociais”
(Rifiotis, 2014, p. 123). O autor aborda a temática da desconsideração da dimensão vivencial
dos sujeitos. Para Rifiotis (2014), em seu texto Judicialização dos direitos humanos, lutas por
reconhecimento e políticas públicas no Brasil: configurações de sujeito, a cultura da
judicialização levanta alguns questionamentos sob a perspectiva da análise de a solução de
conflitos não se dar de dentro para fora. Envolve, de forma relevante, a reflexividade em uma
necessária consideração do sujeito e seus dilemas e contradições, nas leituras divergentes dos
sujeitos sociais como elementos componentes na solução de conflitos.
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A solução de conflitos do modo como é operada reforça o questionamento e reflexão
quanto à dimensão fenomênica do trabalhador, com características de proatividade e sua
possível reincidência em pactos laborativos do mesmo formato. A busca por uma solução de
conflitos levada quase que automaticamente ao Poder Judiciário com um pedido de indenização
pecuniária, como no caso do dano existencial, estaria levando em consideração o sujeito como
elemento estruturante interno desse processo ou elemento externo? Esse sujeito estaria sendo
pensado como um agente desse processo ou apenas como parte desse problema? A
reflexividade aqui lança a ideia de reincidência possível, tanto por parte do reclamante como
da empresa, quando o cerne da controvérsia não é tangente em considerar a essência daquele
trabalhador, suas características próprias e sua subjetividade.
Quanto a uma averiguação sobre algo que justificasse esse crescente das demandas
judiciais pelo sujeito pós-moderno, colaciona-se a ideia de Brito (2012). Nesse sentido,
entrelaça-se o posicionamento da autora, uma vez que as demandas por dano existencial, apesar
de somarem tímidos números em uma análise ampla de pleitos de natureza extrapatrimonial,
permeiam o processo do trabalho desde o ano de 2009, de modo que, finalmente, sua inserção
quanto instituto jurídico expresso no corpo de lei veio com o advento da Lei nº 13.467/2017, a
chamada “reforma trabalhista”: Por essa análise, é possível observar que os sujeitos vão sendo formados com a compreensão de que, se existe anseio de qualquer ordem, esse é legítimo e deve encontrar rápida satisfação. Hoje se reivindicam não só produtos, mas também leis para satisfazer cada vontade dos sujeitos, quando a busca incessante para se atingir a felicidade em todos os contextos se inscreve perfeitamente no período pós-moderno, reverberando o que Dufour denomina “mutação na condição humana”. Se não há contentamento, recorre-se à Justiça, apela-se ao Judiciário, na tentativa de reparar o prejuízo sofrido, pois caso a satisfação não seja alcançada, rapidamente se interpreta que houve algum dano e que se é digno de algum ressarcimento. Como reconhece Birman, “[…] todos aqueles que não puderam e não conseguiram realizar tal aspiração, supostamente prometida, à felicidade, passaram a sentir-se vítimas de uma injustiça social […]” (2010, p. 28). Dessa maneira, ganham terreno as soluções pragmáticas, que atendem apenas a pequenos grupos, no lugar de se privilegiar uma discussão sobre o bem comum. As relações fluidas, descartáveis, a dificuldade de laço com o outro e a incessante busca de satisfação contribuem, certamente, para a tipificação jurídica de novos comportamentos, tais como alguns dos que foram anteriormente elencados (BRITO, 2012, p. 568). Ocorreu uma apropriação das nomenclaturas universais de certos fenômenos, de modo
que se vale até mesmo das expressões em língua estrangeiras, por exemplo burnout, bullying,
síndrome de alienação parental. A avidez pela sensação de satisfação força a criação de um
instituto jurídico, a ele se integra uma nomenclatura, cria-se um comando legal e pronto: está
servido o banquete de mais um possível pleito judicial, operando como algo cíclico. Sobre essa
apropriação (Brito, 2012) assim preleciona: “Muitas vezes, a menção de que dado fato já foi
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identificado em outros países, onde se usam determinadas práticas para lidar com o problema,
sustenta as justificativas para se buscar nova tipificação jurídica” (Brito, p. 569, 2012).
A apropriação dos institutos originários de direitos alienígenas deve ser realizada de
modo amplamente analítico. Existem culturas, valores, hábitos, costumes que devem ser
considerados antes de se apropriar de algumas ocorrências. Não é dispensável se levar em
consideração o ambiente exato no qual se pugna a afirmação de um direito.
A judicialização do cotidiano, na perspectiva de Lobo (2012), ao discorrer sobre a
expansão do judiciável. Em suas notas, a autora destaca uma multiplicação do papel da
magistratura, sobretudo no corpo social: O que hoje se observa é a multiplicação dos objetos judiciáveis, a redefinição do sentido da violência, o que significa também a multiplicação das atribuições judiciárias. Posso citar algumas: questões referentes à mídia, família, internações, trabalho, à constitucionalidade, questões sanitárias, referentes ao consumo, às mulheres, às crianças, às discriminações de minorias, à informação de arquivos que devem ou não vir a público e assim por diante - regulamentação jurídica de todos os comportamentos como modalidade de governo (Lobo, 2012, p. 29). A reflexão trazida por Lobo (2012) tem um papel interessante neste trabalho, porque
atesta, mais uma vez, a institucionalização dos acentuados controles de comportamento, como
resposta a uma demanda por comandos legais mais rígidos, empregando um enfoque
pedagógico na legislação. Como exemplo tem-se o próprio dispositivo legal do dano
extrapatrimonial, que teve inserção expressa recente no ordenamento jurídico brasileiro, por
meio dos artigos 223-A a 223-G da CLT. O dispositivo deixa claro a dobra do valor a ser pago
na indenização no caso de reincidência danosa do agente ofensor.
Fala-se em uma redefinição daquilo que seria judiciável, por meio das ferramentas de
tutela dos vulneráveis. O que se tem, no entanto, é um alargamento do corpo social para a
consideração dos elementos de vulnerabilidade e não dos indivíduos propriamente ditos como
vulneráveis. Não se está a falar mais apenas dos idosos, crianças, doentes mentais, deficientes
como indivíduos vulneráveis, mas sim na amplitude de comportamentos vulneráveis a que toda
pessoa pode estar sujeita nas relações hodiernas. Ocupa-se posição de vulneráveis perante as
relações consumeristas, propagandas, mídias, sistema de saúde, etc. (Lobo, 2012).
A ampliação do leque do que se considera vulnerável compõe a análise de Lobo (2012),
no que se refere ao fenômeno da judicialização, e a essa compreensão não se opõe. Contudo
fica relevante destacar uma abordagem ontológica das relações vivenciadas no cotidiano do
sujeito. Entende-se que permanece em posição de hipossuficiência o sujeito quando trava uma
relação de consumo ou quando depende de um atendimento contratado pelo seu plano de saúde
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e essa cobertura é negada, bem como o sujeito trabalhador. Compreende-se que a tutela nas
situações de sobreposições de interesses deve existir como meio de equidade nas relações
vivenciadas no dia a dia. O sujeito não se firma em pé de igualdade em uma controvérsia
cotidiana com seu plano de saúde, por exemplo. O consumidor permanece vulnerável diante de
uma grande multinacional que lhe vendeu determinado produto com defeito ou uma grande
companhia aérea que lhe vendera uma passagem. O empregado, na vivência da relação de
emprego, ocupa inferioridade, via de regra, econômica e jurídica para com o empregador. O
sujeito trabalhador sempre teve o prisma de hipossuficiência aderido à sua pessoa. As próprias
disposições legais chancelam a tutela com o trabalhador, compreendido como hipossuficiente
na relação de emprego. Mesmo o sujeito desta pesquisa compõe essa dimensão da
hipossuficiência, que fica atrelada ao elemento da subordinação jurídica típica dos contratos de
trabalho.
Buscando aderência ao trabalho, elenca-se como indivíduo componente desse espectro
de vulnerabilidade o sujeito reclamante que, no curso do contrato de trabalho, dada a presença
da subordinação jurídica como elemento fundamental de uma relação de emprego, ocupa
igualmente esse status presumido de vulnerabilidade, rotulado anteriormente como parte
hipossuficiente da relação laboral.
O trabalhador, mesmo quando ocupa altos cargos, mantém-se dependente do emprego
dada a necessidade de manutenção de seu bem-estar e de sua família. A margem de manobra
do trabalhador fica comprometida, pois ele teme o desemprego. Isso se confirma pelo
consentimento no curso do contrato de trabalho, manifestado pelo assujeitamento na não
insurgência contra o pacto laborativo durante sua vigência.
Prado Filho (2012) contribui para a compreensão do fenômeno de judicialização,
discorrendo sobre a formação histórica de alguns procedimentos (por exemplo, prova, inquérito
e confissão), externando que: […] a formação histórica de procedimentos não exatamente jurídicos que, a partir da sua captura pelo Estado, são “judicializados”, mostrando em seguida a sua difusão, quando eles transbordam as fronteiras do “jurídico” e se transversalizam pela sociedade, atuando como regulação e governo cotidiano das condutas dos indivíduos. Entendemos, assim, que tal genealogia aponta algumas condições de possibilidade para a experiência de judicialização que vivemos contemporaneamente […] (Prado Filho, 2012, p. 110). Segundo Prado Filho (2012), a composição histórica de algumas ocorrências do corpo
social, quando acopladas pelo Estado, ganham impulso pela judicialização e se capilarizam na
sociedade, como uma regulação hodierna naturalmente aderida.
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A sociedade absorveu grande tamanha naturalidade as demandas judiciais, elegendo a
judicialização como primeira providência diante das contrariedades do cotidiano. Opera-se, no
dia a dia, o tônus de punibilidade no hodierno. A criação de institutos ou a apropriação de
institutos jurídicos do direito alienígena, muitas vezes formatados em contextos históricos e
culturais amplamente diferentes do cenário vivido por aquele sujeito, promove-lhe uma
obliteração. A judicialização e a juridicialização respondem a pleitos muitas vezes genéricos.
Não observar a questão social, cultural e histórica de cada trabalhador, aplicando-lhe a
resolutividade, de forma genérica e superficial, fomenta o efeito circular e infinito de lide entre
o trabalhador e a empresa, dentro das relações de emprego.
Como já se destacou em linhas acima, a procura por solução de conflitos elegendo a via
judicial de forma automática pode não levar em consideração a dimensão biopsicoespiritual do
trabalhador. Cada trabalhador tem características próprias em sua cotidianidade laboral. O
sujeito desta pesquisa aponta para um desempenho em pacto laboral em proatividade e
eficiência. Leva-se a confirmar o questionamento, quando não se avalia pontualmente a
essência do sujeito antes de impingir-se a ele uma tutela jurídica genérica como a do dano
existencial. Questiona-se se, em novo pacto laborativo com outro empregador, aquele
trabalhador reincidiria em seu modo de operar o contrato de trabalho. Esse pleito judicial tão
naturalmente considerado pondera a essência fenomênica do trabalhador? Diante dos
fenômenos da judicialização e da juridicialização do viver, sobretudo das relações sociais do
trabalho, fecha-se a ideia de reincidência possível, tanto por parte do sujeito trabalhador como
da empresa, quando o cerne da controvérsia não é tangente em considerar a essência daquele
trabalhador, suas características próprias e sua subjetividade. A realidade que ladeia a sociedade
não pode ser disfarçada, sendo que o problema social está criado.
Coloca-se como necessário um cuidado com a saúde mental do trabalhador, emitir
atenção para o ambiente de trabalho e as peculiaridades de cada sujeito, e sua possibilidade no
exercício de cada função laborativa. A judicialização nos casos das reclamatórias trabalhistas
por dano existencial vem como medida externa e posterior ao estabelecimento das lesões
originárias do curso daquele contrato de trabalho, não indicando resolução essencial do
problema social colocado. Tal constatação leva à reflexividade sobre a possibilidade da
reincidência da conduta em hiperfuncionamento no ambiente laborativo por parte daquele
trabalhador
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59
4 SUBJETIVAÇÃO DO TRABALHADOR: CONSIDERAÇÕES NO PROCESSO
DE SUBJETIVAÇÃO: O SUJEITO COMO EFEITO
Esta pesquisa propôs, como objetivo principal, a análise do processo de subjetivação do
sujeito empregado no rompimento de projetos de vida, no contexto da figura jurídica do dano
existencial. Como objetivos específicos, relacionam-se: a análise dos depoimentos das partes
na audiência de instrução e julgamento com pedidos de dano existencial deferidos, a
identificação dos projetos de vida ou da vida das relações que foram invocados como violados
no processo, bem como se ocorre a percepção dos juízes do Judiciário Trabalhista nesse
processo de subjetivação do empregado.
É necessário, a priori, discorrer sobre o conceito de processo de subjetivação.4 Nesse
diapasão, ancora-se nos escritos de Michel Foucault sobre o tema, desde já se valendo de sua
explanação sobre qual é o sujeito que chama a reflexividade e como ela pode se dar. Na esteira
do exposto por Foucault (1984a), refere-se não a um sujeito universal, mas sim a um sujeito em
situação, na experiência vivida entre uma subjetividade assujeitada e uma subjetividade
autônoma. Nesse sentido, destaca-se que o que interessava a Foucault eram “diferentes modos
pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos se tornaram sujeitos” (Foucault, 1984a, p. 231).
Foucault (2002) indica a construção de uma analítica dos modos de subjetivação,
levando em consideração o sujeito como efeito, em uma perspectiva que pode ser tanto de
assujeitamento quanto de autonomia. Reflete-se sobre a subjetividade para além da
interioridade psicológica, urgindo considerar a relação entre subjetividade e espaço social, uma
vez que esse sujeito não é uma substância essencial.
Nesse sentido, destaca-se que não é uma concepção essencialista que serve de base para
esta pesquisa, mas sim o estudo da subjetivação de um indivíduo situado dentro do
enquadramento específico do processo judicial e de todos os seus agenciamentos. Desse modo,
não se fala em um sujeito dito universal, como fundamento da existência, mas sim um sujeito
em situação, considerando, para a análise do processo de subjetivação, a perspectiva de
autonomia, designando o modo de agir desse sujeito.
4 Revel (2005) explana que, para Foucault, os processos de subjetivação do ser humano correspondem a uma dupla
análise, perpassando, de um lado, pelos modos de objetificação que transformam os seres humanos em sujeitos e que modos de subjetivação são práticas de objetificação. De outro modo, a maneira pela qual a relação consigo, por meio de um certo numero de técnicas, permite construir-se como sujeito de sua própria existência. Já a subjetividade pode ser compreendida pela maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo.
60
O formato de reflexão sobre a subjetividade e o espaço social vem assim destacado por
Ferreira Neto (2011, pp. 55-56):
Que modo de articulação entre a subjetividade e o espaço social podem ser pensados para além do truísmo sempre repetido de que “o homem e um ser social”? Para alem, da simples constatação de que o indivíduo humano vive em sociedade e é por ela influenciado? Essa formulação, já amplamente capturada pelo senso comum, toma o indivíduo como um conjunto fechado em interação, em trocas com o ambiente social que lhe é externo. Uma perspectiva que tem por solo a oposição entre interno e externo, no qual a subjetividade é entendida como interioridade. Como já dissemos essa concepção remonta ao início da filosófica moderna. As profundas mudanças do século XX conferiram reconhecimento da importância da
relação entre experiência social e experiência subjetiva, como uma relação fundamental,
demandando por parte dos psicólogos, nesse mister, uma revisão de concepções anteriores. Para
uma reflexão sistêmica, vale cotejar com outras compreensões do processo de subjetividade,
que não as buscadas nesta pesquisa.
A concepção de subjetividade com a qual se trabalha pode ser definida da seguinte
maneira:
A subjetividade entendida como emergência histórica de processos, não determinados pelo social, mas em conexão com os processos sociais, culturais, econômicos, tecnológicos, midiáticos, ecológicos, urbanos, que participam de sua constituição e de seu funcionamento (Ferreira Neto, 2011, p. 57). Foucault (2003) usa a expressão “desmultiplicação causal”, “que consiste numa análise
dos acontecimentos, segundo os processos múltiplos que os constituem, onde a noção de
causalidade direta cede lugar à de coprodução de uma singularidade analítica” (p. 339). Desse
contexto se extrai a compreensão da subjetividade como um processo e não apenas como
estrutura, afastando-se do enfoque tradicional da noção de sujeito. Nessa senda, Guattari (1992)
propõe, em sua obra Caosmose, ao abordar a produção da subjetividade, uma definição,
segundo ele, provisória, porém englobante de subjetividade: O conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e, ou, coletivas estejam em posição de emergir como “território existencial” autorreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. Assim, em certos contextos sociais e semiológicos, a subjetividade de individual: uma pessoa, tida como responsável por si mesma, se posiciona em meio a relações de alteridade regidas por usos familiares, costumes locais, leis jurídicas. Em outras condições, a subjetividade se faz coletiva, o que não significa que ela se torne por isso exclusivamente social. Com efeito, o termo “coletivo” deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto aos socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidade pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos (Guattari, 1992, pp. 19-20).
61
Essa explanação primeva sobre o tipo de subjetividade levada a efeito nesta pesquisa é
fundamental para compreender o sujeito que se analisa aqui. Assim, reitera-se que esse sujeito
é em situação, é considerado como efeito, não definido com base numa identidade fundamental,
mas sim refundido em certo contexto histórico, compreendendo uma análise de subjetividade
para além da interioridade psicológica, considerando a relação entre subjetividade e espaço
social. Refere-se a uma subjetividade de autonomia, o sujeito se constitui amparado na reflexão
de si.
Corroborando uma compreensão sistêmica no estudo da subjetividade, figura-se como
relevante discorrer sobre a dupla dimensão de subjetividade encontrada nas pesquisas de
Foucault: a subjetivação sob práticas coercitivas e a subjetivação reflexiva, ou seja, mais
autônoma. Até 1978, Foucault se dedicou a analisar um sujeito em situação de submissão,
dando ênfase às relações de poder para, depois, deslocar-se para a análise da subjetividade,
considerando o sujeito reflexivo em ênfase às práticas de liberdade (Ferreira Neto, 2017).
Durante muito tempo, Foucault analisou as relações de poder e jogos de verdade com
base nas práticas coercitivas para depois se deslocar para uma perspectiva da autonomia com
base nas práticas de si. Dizia-se em uma espécie de dueto entre as práticas de coerção versus as
práticas de liberdade. Nesse sentido, a centralidade da análise de Foucault estaria nas relações
de poder, e o estudo da subjetividade estaria à margem. Para a ocorrência do trespasse desse
layout, questionou-se se o sistema binário de poder seria a base para se discutirem as relações
de poder. Percebeu-se que o enfrentamento entre os adversários foi sendo detectado como
insuficiente para a análise do poder. Este ficaria então na ordem da governamentabilidade,
devendo ser compreendida em uma noção mais ampla, abarcando estruturas políticas e de
gestão do Estado, e ainda a direção da conduta de indivíduos e grupos.
Nessa senda, Foucault já menciona a subjetividade para além do submetimento,
deslocando-se para uma contraconduta. Antes a subjetividade era vista como produto, como
um efeito do poder disciplinar. Nessa compreensão sistêmica da subjetividade, foram
empregados dois sentidos como bem esclarecido por Ferreira Neto (2017, p. 8): O primeiro sentido e a constituição “de um sujeito que e subjetivado pela extração da verdade que lhe e imposta” (Foucault, 2008, p. 243). O segundo, decorrente do primeiro, aponta como essa ação individualizante do poder pastoral possibilitou um “formidável apelo” de “como se tornar sujeito sem ser sujeitado” (p. 310). Ou seja, Foucault apresenta a subjetivação concomitantemente como sujeição e, pela primeira vez, como resistência, em sua relação com as práticas de governo (Ferreira Neto, 2015a). A subjetividade, na perspectiva da liberdade, ganha viço nos estudos de Foucault a partir
de 1980. Antes desse período, sua preocupação maior era com o sujeito disciplinado pelas
62
técnicas disciplinares de coerção, tema de seu livro Vigiar e punir (Foucault, 1975/1987).
Posteriormente o foco de sua pesquisa se deslocou para as técnicas de si, de caráter mais
autônomo, discutindo a relação entre subjetividade e verdade, e trazendo a lume o
esclarecimento do sentido na relação consigo mesmo, afirmando que as práticas em si são
práticas sociais (Ferreira Neto, 2017).
Percebe-se uma abordagem tripartite sobressaindo-se nessa compreensão sistêmica da
subjetividade: em um primeiro prisma, aborda-se o trespasse de subjetividade, que toma como
base o assujeitamento, e, de outro, a atitude crítica ou prática de si. Na digressão sobre as
práticas de si, não se leva em consideração apenas a dimensão intraindividual, mas sua relação
com as dimensões coletivas e institucionais. Nesse sentido, opera-se uma dimensão coletiva da
subjetividade. Ambas as concepções (assujeitada ou autônoma) guardam uma relação peculiar
com as normas extraídas da cultura. Isso tem significância não no que se refere a ausência ou
recusa de normas, mas de certa autonomia em seu emprego (Ferreira Neto, 2017).
Ainda dentro da compreensão sistêmica, Foucault afirma que não é apenas o sistema
simbólico que compõe o indivíduo, mas que este também é constituído por práticas históricas
e materiais, propondo contribuição genuína por meio da associação de elementos discursivos e
não discursivos nas pesquisas. Foucault, em algumas passagens, traz à tona a concepção de
acatamento no sentido do homem não ser originário, consignando, porém que ele é uma
digressão de processos, que, como já explanado, não são apenas simbólicos. Em um proceder
de reutilização e mesclagens, uma série de práticas históricas e materiais podem ser analisadas: Não basta que o sujeito é constituído num sistema simbólico. Não é somente no jogo dos símbolos que o sujeito é constituído. Ele é constituído em práticas verdadeiras - práticas historicamente analisáveis. Há uma tecnologia da constituição de si que perpassa os sistemas simbólicos ao utilizá-los (Foucault, 1995, p. 275) O traço distintivo entre subjetivação como assujeitamento ou liberação residiria num
pano de fundo político, ainda que como prática de si. Considera-se então o entrelaçamento entre
política, ética e estética, para uma analítica da subjetivação em Foucault, problematizando o
homem no afã de mudança em si e ao outro, dentro de um contexto cultural, social e
institucional. O sujeito voluntariamente interage com elementos que o trespassam e compõem,
permitindo inclusive uma percepção e capacidade para se reconhecer e se situar criticamente
dentro do sistema (Ferreira Neto, 2017).
Explanando-se sobre a dupla dimensão da subjetividade, encontra-se amparo para
dispor sobre uma compreensão mais profunda do processo de subjetivação levado a efeito nesta
pesquisa e sua relação com o viés metodológico eleito. Conforme exposto, fica oportuno citar
63
um fundo teórico indicado por Foucault (2002), na obra A verdade e as formas jurídicas, pois
defere relevância às práticas jurídicas como propulsoras de novas formas de subjetividade, com
destaque específico para as práticas judiciárias. Nesse sentido, o autor sinaliza “a constituição
histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de
estrategias que fazem parte das práticas sociais” (Foucault, 2002, pp. 10-11). Em sua obra,
Foucault (2002) sublinha que as formas jurídicas formam domínios de saber com base nas
práticas sociais, posto que delas emergem novos sujeitos. Segundo Foucault (2002), a
reelaboração da teoria do sujeito passa pela perquirição de como se dá ao longo da história a
constituição do sujeito que não é dado definitivamente, mas de um sujeito que se constrói no
interior da história. Nesse sentido, Foucault (2002) destaca que a sociedade presencia outros
lugares de formação da verdade, com a definição de algumas regras de jogos que permitem
novas formas de subjetividade, tipos de saber, domínios de objeto a partir dos quais emanam
uma história externa da verdade. Nesse contexto, traço o enfoque do autor quanto às práticas
judiciárias e sobre a relação entre o homem e a verdade, a definição pelos novos tipos de
subjetividades e formas de saber: As prática judiciárias - a maneira pela qual, entre os homens se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da histórica - me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas (Foucault, 2002, p. 11). A maturação dos estudos da dinâmica da subjetividade em Foucault considera não
apenas o que é a subjetivação, mas o modo como esta opera. Passa a considerar uma visão
integrativa que possibilita então se identificar qual o status desse sujeito, o que este deveria ser,
quais condições de submetimento existiriam. Essas diversas condições reportam a elementos
de objetificação, pois é preciso que esse sujeito seja objeto de um conhecimento plausível.
Nesse sentido, fez-se necessário indicar o modo de objetificação do sujeito e operar seu enlace
com o modo de subjetivação, posto que são dependentes e influentes reciprocamente. A esse
entrelaçar Foucault (1984a) deu o nome de “jogos da verdade”. Essa objetivação e essa subjetivação não são independentes uma da outra; do seu desenvolvimento mútuo e de sua ligação recíproca se originam o que se poderia chamar de “jogos de verdade”: ou seja, não a descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso. Em suma, a história crítica do pensamento não é uma histórica das aquisições nem das ocultações da verdade; é a história da emergência dos jogos de verdade: é a
64
história das “verificações”, entendidas como as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas, discursos capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: […] o a priori histórico de uma experiência possível (Foucault, 1984a, p. 235). O jogo da verdade que tem relevância para Foucault é o que considera uma centralidade
no sujeito, estando este próprio inserido como objeto de saber possível. A partir daí, emprega-
se a busca por compreender como se consolidaram os jogos de verdade que possibilitaram ao
sujeito edificar-se como objeto de conhecimento. Traçou-se relevo no estudo da constituição
do sujeito como objeto para ele próprio, como uma história da subjetividade, compreendida no
sentido de como o sujeito se relaciona consigo mesmo. O sujeito se insere como objeto nos
jogos da verdade porque o estudo levado a efeito é sobre a relação entre sujeito e verdade. Revel
(2005) explana sobre os jogos de verdade segundo as análises de Foucault, explicitando que:
Trata-se, consequentemente, de reconstituir uma verdade produzida pela história e isenta de relações com o poder, identificando ao mesmo tempo as coerções múltiplas e os jogos, na medida em que cada sociedade possui seu próprio regime de verdade, isto e, “os tipos de discurso que elas acolhem e fazem funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como uns e outros são sancionados; as técnicas e os procedimento que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o poder de dizer aquilo que é verdadeiro” (p. 86). Dessume-se da explanação acima que Foucault perquiria sobre uma verdade própria,
com suas especificidades, destacando as seguintes: a centralidade em um discurso científico e
suas instituições de produção, entroncamento no poder político e na produção econômica,
difusão nas searas informacionais e educacionais, produção e transmissão por instituições
relevantes, presença de enfrentamentos sociais. Foucault destaca que é relevante questionar
como o homem percebe sua constituição histórica como experiência, posto que, nessa
descoberta, ter-se-ia uma história da verdade (Revel, 2005).
A abordagem do sujeito direciona um debate que envolve práticas, operações e
exercícios que as pessoas exercem de si e os demais, a fim de se constituírem de acordo com o
que está legitimado. Sobre o assunto, colaciona-se o entendimento de Perucchi (2008, p. 54): Criada na modernidade, a noção de sujeito serviu (e continua servindo) às estratégias dos sistemas econômicos, sociais e filósofos emergentes desse período histórico, cuja racionalidade precisava estar ancorada em bases conceituais sólidas. Trata-se de uma categoria que tem sofrido transformações ao longo do tempo nos diferentes campos de saber e que ainda é um alicerce importante para investigações no âmbito das humanidades. Em sua tese, a autora corrobora esta pesquisa, visto que aborda o discurso jurídico como
dispositivo de produção de paternidade. Dentro do trabalho, na temática envolvendo o sujeito
e a subjetividade, o amparo no referencial teórico de Foucault sobre o assunto permite
empregar, nesta tese, algumas digressões no que se refere à análise de construtos do sujeito
65
reclamante dentro de um processo judicial. A subjetividade entendida como um desdobramento
da categoria sujeito e as possibilidades de subjetivação emanadas pelos discursos foi assim
abordada pela autora: Apesar deste lugar singular que o sujeito ocupa na racionalidade moderna, a categoria a priori é “vazia”, ela é delineada, desenhada, pelos discursos, que criam posições a serem ocupadas em seu interior. Concebendo que o sujeito se constitui na enunciação, e que não há sujeito fora da linguagem, os discursos implicam possibilidades de subjetivação. A subjetividade, quase que um desdobramento da categoria sujeito, por sua vez, remete a um conjunto de práticas, é um conceito que remete à ordem das ações, do fazer. Assim, poderíamos dizer que a um conjunto de práticas que implicam um conhecimento de si e um conhecimento de certas verdades, enquanto que o sujeito remete a formas, modos concretos de vida de subjetivação, à função no âmbito dos discursos (Perucchi, 2008, p. 55). Ressalta-se que, em Foucault, os processos de subjetivação são compostos com
elementos discursivos e não discursivos, não sendo exclusivamente um efeito do discurso.
Nesta pesquisa, a cena jurídica comporta um ordenamento discursivo e material. A estrutura da
sala com destaque para a posição do juiz, definição de como será o tratamento, os momentos
em que os diversos atores tomam a palavra e a preeminência hierárquica. O juiz do Trabalho
preside a audiência sob seu comando e orientação, inclusive autorizando as perguntas que
podem ser feitas para as testemunhas e partes. Destaca-se que as partes reclamante e reclamada
não se direcionam às testemunhas diretamente ou umas às outras. No sistema ainda vigente nas
audiências do Judiciário Trabalhista, o advogado pergunta ao juiz, que repergunta à testemunha,
esta, por sua vez, responde ao juiz, que dita a resposta ao escrevente, que é um serventuário da
Justiça do Trabalho, o qual reduz a termo o que foi dito.
Oportuno esclarecer que, no momento dessas transcrições para a ata da audiência, o
advogado tem a oportunidade e o dever de se insurgir contra a dicção do juiz que não esteja
aderente ao que foi dito pelas partes. Essa atuação do advogado consiste numa manifestação
verbal no momento da audiência, com as expressões “protesto” ou “pela ordem”, sequenciada
pela manifestação de desconformidade com relação à dicção do magistrado, promovendo,
assim, a eficaz atuação na defesa dos interesses do seu cliente. Essa disposição, inclusive,
consta do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei 8.906/94, artigo 7º,
X.5
Assim, as partes, advogados e testemunhas se direcionam ao juiz, que defere as
perguntas formuladas, repetindo-as para as partes ou testemunhas, procedendo-se com relação
5 “Art. 7o - São direitos do advogado: […] X - usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante
intervenção sumária, para estabelecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas; […]”
66
às respostas da mesma maneira. Assim, o juiz dita para a escrevente a pergunta realizada e a
resposta, sob sua interpretação. Destaca-se que consta da ata não exatamente a dicção exata que
a parte disse, mas a que o juiz dita para a escrevente. Nesse sentido, o que fica consignado na
ata é aquilo que foi pronunciado pelo juiz, dando um formato final ao que foi falado pelas
partes. Por óbvio, esse ditado deve manter aderência de teor ao que foi falado pelas partes ou
testemunhas, mas fica presente a subjetividade pela dicção do magistrado. Esse modo de
condução da audiência mantém consonância com o sistema ainda adotado no processo
trabalhista brasileiro, denominado de sistema presidencialista, e importa a concretização do que
está preconizado no artigo 8206 da CLT: indicar que as partes e as testemunhas serão inquiridas
pelo juiz, por seu intermédio, a requerimento das partes, seus representantes ou advogados.
Nesse sentido, os sujeitos estão rodeados por uma série de dispositivos no momento da
audiência. Foucault compreende os dispositivos e suas funções metodológicas sob um tríplice
vertente. Primeiramente, declara que os dispositivos funcionam como uma rede entre elementos
componentes de um conjunto não homogêneo e nenhum pouco uníssono de operadores
materiais do poder. Por serem heterogêneos, abarcam os discursos, as práticas, as estratégias e
algumas técnicas de assujeitamento, compreendendo o dito e o não dito. Como exemplo, citam-
se como dispositivos as leis, as decisões regulamentares, organizações arquitetônicas, algumas
medidas administrativas, instituições, enunciados científicos, proposições morais e filosóficas
(Revel, 2005, p. 40).
Em um segundo amparo, Foucault explana que a existe uma relação estratégica entre
esses elementos do conjunto heterogêneo, que podem ser discursivos e não discursivos.
Confere-se uma relação estratégica de mudanças de posições e funções, podendo ser
vislumbrado em um determinado momento como um programa de uma instituição e outrora
como um elemento simulado de uma prática silenciosa (Foucault, 1984b).
Na terceira vertente de compreensão, Foucault entende o dispositivo com uma
prevalência da função estratégica funcionando como um imperativo com fito de resposta a
alguma urgência, como um dispositivo de controle-dominação em um determinado contexto
histórico (Foucault, 1984b).
O dispositivo é de natureza essencialmente estratégica, circunscrito em um jogo de
poder, conectado à configuração de saber que dele nasce e se condiciona. É uma estratégia de
relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentados por eles. Existe um duplo timer
6 Artigo 820 da CLT: “As partes e testemunhas serão inquiridas pelo juiz ou presidente, podendo ser reinquirida,
por seu intermedio, a requerimento dos vogais, das partes, seus representantes ou advogados”.
67
inerente ao dispositivo. Em um primeiro momento, a prevalência de uma característica estável
que confere sua essência como objetivo estratégico. Na digressão dessa gênese, em um segundo
momento, sobressai do dispositivo um tipo de efeito ecoado, uma espécie de cascata, pois
podem advir os desdobramentos da aplicação dessa estratégia. Por derradeiro, em que pese o
dispositivo se colocar como mutável, posto que se adapta aos efeitos reacionais inerentes à sua
aplicação, o tônus de estratégia perpetua-se, sendo sempre perquirido.
Para dizer o que é um dispositivo, Foucault expõe primeiro quais elementos existem
com capacidade de intervenção em uma organização. Valendo-se dos dispositivos, Foucault
pretende ir além do discurso, reconhecendo novos conjuntos possuidores de muitos elementos
articulados e que são dotados de significância. Como exemplo, citam-se a instituição e os
enunciados como componentes do dispositivo. A instituição é entendida como sistema de
coerção sem enunciados. Poder-se-ia colocar a audiência de instrução no processo trabalhista
como um dispositivo com diversos elementos que demarcam o sujeito em situação. A
preeminência hierárquica do magistrado, os momentos de fala das partes e das testemunhas, a
disposição espacial da sala de audiência, a figuração dos polos de representação processual
dentro do processo, reclamante/autor e reclamada/ré, seus status jurídico de sujeito que teve
comprometido um projeto de vida e está ali na persecução de uma reparação pecuniária.
O processo judicial trabalhista é um dispositivo; as leis, as decisões e a própria audiência
de instrução e julgamento também se conferem em um dispositivo com uma série de elementos
discursivos e não discursivos. Existem instituições e enunciados não expressos em todo o
momento da audiência de instrução e julgamento. Foucault reconhece que não é relevante uma
catalogação rígida do que seriam elementos discursivos e não discursivos no estudo da
subjetividade. Não obstante essa compreensão, Foucault dá reconhecimento e observa com
atenção os objetos não estritamente discursivos, como as práticas, as estratégias e as
instituições, lançando o estudo aos dispositivos que, com elementos heterogêneos, são
discursivos e não discursivos, atento à sua natureza e função estratégicas (Foucault, 1984b).
Perucchi (2008) se ancora em autores como Stuart Hall e Butler para afirmar a
“concepção mutante” de sujeito e analisar dispositivos de regulação indicativos e constitutivos
de sujeitos. Segundo Butler, a abordagem da posição ficcional do sujeito, sob uma vertente do
discurso, com aptidão para performatividades:
O sujeito é analisado como efeito de um ato performativo de enunciação que se efetiva por certas regulações que instituem uma realidade social. O sujeito não é, nesse sentido, a expressão material de uma essência interna, tampouco pode ser considerado um simples produto da construção social. Os atributos da subjetividade são, portanto, performativos e não constitutivos
68
de uma identidade pré-existente ou se um sujeito universal (Butler, 2006, citado por Perucchi, 2008, p. 56). Analisar o sujeito como um desdobramento de uma atuação performática, oriunda de
uma realidade social com algumas regulações, e aqui, oportunamente, refere-se ao processo
judicial trabalhista e ao momento da audiência de instrução e julgamento, permite trazer em
evidência uma compreensão do sujeito para além de sua essência interna e igualmente para
além do estigma do homem ser fruto social, colocando em relevo a questão da fluidez na
identidade do sujeito. Opera-se uma reflexão sobre o locus do sujeito dentro do discurso e da
cena jurídica.
Executar a análise do processo de subjetivação considerando as lindes na fluidez, na
perda de continuidade histórica, nas diferenças, na pluralidade e nas experiências pode indicar
uma dinâmica na construção das identidades, como acentuado por Perucchi (2008, p. 58):
A perda da continuidade histórica, a ênfase no errante e na personificação da experiência vislumbram processos de subjetivação performáticos, imediatos, marcados e constituídos discursivamente na/pela narrativa ficcional, que remete a uma contínua reconfiguração da organização identitária e à construção de performances. Nessa mesma senda de raciocínio, segundo Perucchi (2008), uma das possibilidades de
constituição do sujeito na Contemporaneidade foi assim destacada: A análise de Foucault é fundamental nessa discussão sobre as possibilidades de produção dos sujeitos na contemporaneidade. Trata-se de um referencial teórico importante, uma vez que a pesquisa procurou investigar os jogos de verdade pelos quais é possível a alguém ser reconhecido e se reconhecer como sujeito da paternidade, as posições a serem ocupadas no discurso jurídico e pelas quais os sujeitos da paternidade podem ser enunciados. Enfim, Foucault dá condições para que se possa analisar como os discursos do direito produzem verdades e elaboram modos de sujeição pelos quais o indivíduo é chamado a se reconhecer e a se posicionar como pai (p. 59). Permanecendo no amparo teórico de Foucault (2002), em sua obra A verdade e as
formas jurídicas, agrega-se a este trabalho a metodologia de análise do discurso, uma vez que
o autor coloca o discurso para além do aspecto puramente linguístico, ampliando-o para ser
percebido como um jogo estratégico e polêmico. A relação empregada com esta pesquisa reside
no fato das práticas judiciárias como campo para aplicação da hipótese de uma análise
estratégica do discurso em um contexto real de processos históricos e importantes. O discurso
como prática e estratégia no interior das práticas sociais.
69
4.1 O sujeito no cenário da prática judiciária
O processo judicial é um território de lide resistida, com contraditório e através do qual
cada parte no processo imprime sua verdade como plena, na pretensão de vê-la como
plenamente acatada, posto que isso pode gerar o êxito na demanda judicial. Vale a relação
traçada na obra quando Foucault (2002) afirma que se posiciona ao lado dos sofistas,
esclarecendo o posicionamento daqueles em se estabelecer discursos e discutir não apenas para
chegar à verdade, mas sim para vencê-la:
Ah. Nisso estou radicalmente ao lado dos sofistas. Dei, aliás, minha primeira aula no College de France sobre os sofistas. Acho que os sofistas são muito importantes. Porque temos aí uma prática e uma teoria do discurso que é essencialmente estratégica; estabelecemos discursos e discutimos, não para chegar à verdade, mas para vencê-la. É um jogo: quem perderá, quem vencerá? É por causa disso que me parece muito importante a luta entre Sócrates e os sofistas. Para Sócrates não vale a pena falar a não ser que se queira dizer a verdade. Em segundo lugar, se para os sofistas falar, discutir, é procurar conseguir a vitória a qualquer preço, mesmo ao preço das mais grosserias astúcias, é porque, para eles, a prática do discurso não é dissociável do exercício do poder. Falar é exercer o poder, falar é arriscar seu poder, falar é arriscar conseguir ou perder tudo, e ainda há algo muito interessante e que o socratismo e o platonismo afastaram completamente; o falar, o logos, enfim, a partir de Sócrates, não é mais o exercício de um poder, é um logos que não passa de um exercício da memória (Foucault, 2002, p. 140). Foucault (2002) evidencia a existência de uma tradição de análise do discurso a partir
das práticas judiciárias na Europa, citando nomes como Glotz, Gerner Dumézil e Vernant.
Esclarece que tomar conjuntos de discursos e tratá-los apenas como enunciados, procurando as
leis de passagem, de transformação, de isomorfismos entre esses conjuntos de enunciados não
corresponde a seu interesse. Destaca uma diferença existente entre o corpus que, apesar de
homogêneo, tem cada um campo de aplicação com domínio histórico particular. Nesse sentido,
destaca que os discursos têm uma materialidade e o condão de retoricar a Filosofia: E o problema é de reintroduzir a retórica, o orador, a luta do discurso no interior do campo da análise, não para fazer como linguistas, uma análise sistemática de procedimento retóricos, mas para estudar o discurso, mesmo o discurso de verdade, como procedimentos retóricos, maneiras de vencer, de produzir acontecimentos, de produzir decisões, de produzir batalhas, de produzir vitórias (Foucault, 2002, p. 142). O cenário de prática judiciária como contexto social presencia a busca por parte dos
atores sociais envolvidos da legitimação de suas argumentações. Tem-se, de um lado, o sujeito
trabalhador, reclamante/autor na ação trabalhista e, do outro, a empresa, reclamada/ré para a
qual prestou serviços. Na análise desta tese, há o pedido, por parte do reclamante, do
reconhecimento da ocorrência do dano existencial, e a parte contrária, buscando desconstituir
a configuração de alegado dano. Cada parte é representada por advogados que se consideram
70
também sujeitos comunicantes e de interpretação. No caso das reclamatórias trabalhistas
analisadas, todos os casos foram representados por advogados. As partes contrataram um
representante legal com legitimidade, mediante o instrumento de procuração. Cada uma das
partes tem um propósito no processo e, portanto, assumem posições para imprimir o
reconhecimento de suas alegações pelo juiz da causa. Nesse sentido, a construção do discurso
é atrelada a um objetivo de convencimento dentro da comunicação judiciária.
4.1.1 A cena jurídica da audiência de instrução e julgamento do Judiciário Trabalhista
Como já se destacou, o processo de subjetivação estudado nesta pesquisa é de um sujeito
em situação. Um sujeito com enquadramento na cena jurídica da audiência de instrução e
julgamento do Judiciário Trabalhista, com todo o ordenamento que a preside. Esse sujeito está
condicionado ao formalismo, e aqui não se emprega um tom de crítica ou engessamento em
sentido negativo, apenas se refere à necessidade do cumprimento legal e obrigatório de trâmites
nas formas de condução da audiência de instrução e julgamento para legitimar sua regularidade
dentro da garantia constitucional do devido processo legal. Nesse sentido, a ordem de
depoimentos das partes e das testemunhas, e as demais aderências e condicionamentos do
processo não são desnecessários, mas sim instrumentos para manter a legitimação do
procedimento nos termos da lei. Porém, mesmo com todo o aparato coercitivo envolvido nessa
situação, não se pode pressupor que o sujeito está condenado a um papel de submetimento.
Mesmo nessas condições, podem-se identificar elementos de subjetivação que envolvem práticas
de si, ou, como Foucault denomina, práticas de liberdade, conforme exposto em linhas anteriores.
A ata de audiência de instrução e julgamento reflete o sujeito pesquisado, estando colocado
na cena da audiência de instrução, buscando constituir como verdade suas alegações para o fim
pretendido de êxito na demanda trabalhista. Esse sujeito, chamado no processo de reclamante,
denominação jurídica de quem ocupa o polo ativo da ação trabalhista, como um autor da
reclamatória, tem o anseio de sair vitorioso no seu pedido de dano existencial. Ele assume um
papel de autor no processo judicial, devendo manter coesão e aderência às narrativas que constam
da petição inicial, que é a reclamatória trabalhista da qual constam as narrativas fáticas e jurídicas
que dão ensejo ao pedido de reparação. Na petição inicial, está escrito o que ocorreu ao longo do
pacto laborativo, como foi o desempenho do labor executado pelo sujeito, qual foi o projeto de
vida invocado como lesionado ou qual de qual vida das relações ele foi tolhido. Tudo o que consta
da inicial demandará comprovação por meio de todos os meios de prova permitidos em direito, e
um deles é o depoimento pessoal desse sujeito. Mas o único momento em que a voz própria do
71
sujeito é ouvida é nesse momento da audiência. A oportunidade que ele tem de verbalizar por si,
sem representação de terceiro, sua experiência vivida naquele pacto laboral. Nos demais
momentos do processo a voz do reclamante é consignada por escrito por seu advogado que, ao
longo do processo, apresenta as manifestações nos autos, seguindo o procedimento de
contraditório e ampla defesa das ações judiciais.
Na reflexão traçada por Foucault (2002) sobre subjetividade e verdade, são consideradas
as práticas discursivas historicamente constituídas, indicando as possibilidades de produção dos
sujeitos na Contemporaneidade. Fala-se em jogos de verdade por meio dos quais seria possível
se reconhecer a posição a ser ocupada pelo sujeito no discurso jurídico.
4.2 Constituição do sujeito reclamante na cena jurídica da audiência de instrução e
julgamento: os atores sociais e o processo de subjetivação no discurso jurídico
O sujeito analisado nesta tese é institucionalmente situado. A situação que esse sujeito
se encontra é de enquadramento com todos os protocolos e rituais da cena jurídica de uma
audiência de instrução e julgamento. Assim, o contexto social e a instância jurídica passam a
ser fortemente considerados na análise do processo de subjetivação. Aqui se esclarece que se
está a analisar concretamente a ata da audiência de instrução e julgamento, donde se extraíram
alguns elementos os quais se busca analisar. Não obstante se estar atrelado à ata de audiência,
importa, de forma relevante, descrever toda a contextualização em que esse documento foi
constituído.
Nesse contexto, o sujeito se situa limitado pela aderência aos procedimentos anteriores
ao processo. Assim, em seu depoimento, ele tem o dever de lealdade e boa-fé processual com
a verdade e compatibilidade com aquilo que consta da petição inicial, sob pena de a parte
contrária ou do próprio juiz invocarem as ocorrências entendidas como estranhas ou novas ao
processo e refutá-las, além da imputação de ato atentatório à dignidade da Justiça e má-fé
processual. A fala do sujeito tem certo engessamento ou condicionamento, no que se refere a
repetir ou evidenciar algo que está no processo e que serve de subsídio eficaz para seu pedido
de dano existencial. O sujeito tem institucionalmente de falar segundo a ordem e permissão do
magistrado, limitado a responder aquilo que é perguntado pelo magistrado ou autorizado a ser
perguntado pelo magistrado quando de seu depoimento pessoal. Nessa cena jurídica, há uma
ordem a ser seguida no que se refere ao momento da fala das partes e de suas respectivas
testemunhas. No caso das testemunhas, estas igualmente detêm o dever de lealdade e boa-fé no
72
processo, porém ainda são advertidas pelo juiz antes do início de seus depoimentos, que têm o
dever de falar a verdade e que o depoimento falso em juízo constitui crime de natureza penal.
A cena jurídica da audiência de instrução e julgamento é margeada por embates na busca
do êxito na pretensão de cada uma das partes. Nos casos analisados, o empregado/reclamante
quer o deferimento do pedido de dano existencial e busca salientar sua pretensão no momento
de seu depoimento; ao contrário, o empregador/reclamado busca desconstituir a evidência dessa
pretensão ao direito da reparação.
A audiência tem, entre outros, o condão de produzir as provas. Nesse contexto, esse é
um dos únicos momentos em que o reclamante e a reclamada têm para falar nos autos. A
oportunidade de fazer valer o direito da reparação tem muita força no momento da audiência,
pois o juiz decide de forma fundamentada e com base no conjunto probatório dos autos. Nesse
sentido, os depoimentos das partes e das testemunhas têm uma valoração a ser considerada pelo
magistrado, podendo ser extremamente relevante para o êxito na demanda. O discurso
empenhado pelos sujeitos no momento da audiência de instrução pode ser determinante para o
convencimento do juiz.
Indica-se a presença das referências de contexto, posto que o sujeito, no momento da
audiência de instrução, dá destaque aos pontos de interesse no discurso que ele acredita
servirem de maior valoração no livre convencimento do magistrado. Existe uma estruturação
de um discurso reivindicante de um direito, seguindo um roteiro com regulações e
condicionamentos dentro da instância jurídica. Nesse sentido, refere-se aos papéis de todos os
sujeitos participante da cena jurídica da audiência de instrução e julgamento, como atores
envolvidos na comunicação judiciária.
Fica oportuno destacar trecho da dissertação de Pereira (2005), intitulada A
representação do pai em processo de reconhecimento de paternidade. Nessa pesquisa, a autora
considera o discurso com prática social empregada pelos sujeitos históricos envolvidos, dentro
de um processo de comunicação com base na proposta teórica de Patrick Charaudeau (2006),
no sentido de partilha e construção dos saberes dentro de um contexto social: Consideramos o discurso como uma prática social desenvolvida pelos sujeitos históricos envolvidos no processo de comunicação a ser entendido como uma construção discursiva, a partir de um contexto social. Assim, o domínio na interação social surge como um determinante da natureza comunicacional do discurso e dos discursos suscetíveis de serem produzidos no espaço do judiciário. A própria estruturação discursiva das reivindicações de direitos, a forma de organização do processo nos espaços de comunicação do judiciário delimita os papéis e os roteiros a serem representados pelos atores envolvidos na comunicação judiciária (Pereira, 2005, pp. 32-33).
73
Charaudeau (2006) entende o discurso como uma teatralização com envolvimento dos
atores principais, como enunciadores e destinatários. Esses papéis ficam identificáveis com
base nas crenças e comportamentos sociais, visto que a dimensão social e as condições de
enunciados são interligadas.
Na consideração do enquadramento da cena jurídica da audiência de instrução e
julgamento, associa-se à descrição foucaultiana sobre a delimitação no dizer: Em toda sociedade, a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (Foucault, 2003, p. 9). O processo de subjetivação ganha novo locus de centralidade nas pesquisas qualitativas,
passando a compor o procedimento metodológico. Edificou-se a compreensão de que a
subjetividade dos sujeitos envolvidos na pesquisa a permeiam, possibilitando mudanças na
própria perspectiva da pesquisa, com transformações e modificações na experiência de
formação entre sujeito e objeto e suas relações. Foucault indica a relevância de trabalhar com
uma analítica da subjetividade, deslocando o enfoque ontológico e aproximando o enfoque
metodológico. Essa movimentação, segundo Foucault, evita o que o autor chama de
“sacralização teórica”, corroborando seus argumentos em favor da analítica da subjetivação,
sob as lindes do sujeito situado, em local, tempo e observador, bem como pelo entendimento
de que a verdade não se encontraria atrelada à sistematicidade teórica de um discurso, mas sim
às possibilidades de seus desdobramentos. Deve ser considerada a historicidade complexa e não
apenas a descrição dos exercícios realizados pelo sujeito, com elementos da prática de si e da
cultura na circunscrição histórica.
Segundo Perucchi (2008), o sujeito tem um lugar especial nos estudos da Psicologia e
das Ciências de modo geral:
A categoria sujeito tem sido muito cara à psicologia e às ciências de modo geral pelo próprio lugar que ela ocupa no âmbito científico: a de um dos polos da díade relacional entre aquele que busca conhecer e aquilo a ser conhecido. Não se trata, portanto, de um conceito simples, de uma palavra que possa ser tratada como sinônimo de outras, como indivíduo ou pessoa. Apesar de ser comum o uso de tal tratamento sujeito e conceito marcado teoricamente, que remete a diferentes problematizações e perspectivas epistemológicas (pp. 53-54). No emprego da análise do discurso, buscou-se perquirir sobre a subjetivação no que se
refere a contextos específicos no processo histórico vivenciado pelo sujeito no curso do contrato
de trabalho e que, pelos depoimentos pessoais, reverberaram dentro do processo judicial.
Perquiriu-se sobre alguns contextos bem como se buscaram elementos característicos do
trabalhador que atuou com intensidade temporal e ampla dedicação ao cumprimento do contrato
74
de trabalho. Os contextos delineados referem-se à observância de participação do sujeito em
processos seletivos e migrações verticais de funções laborais, programas de metas dentro da
organização dos quais o sujeito de dispôs a participar, uma clara demonstração do projeto de
vida que foi lesionado bem como do comprometimento da vida das relações invocados no
processo, se, em algum momento do contrato de trabalho, o reclamante demonstrou intenção
de rescisão indireta do contrato de trabalho.
No respeito aos indicadores de análise do discurso, buscou-se perquirir, dentro do
processo de subjetivação do sujeito reclamante, as características típicas do indivíduo
contemporâneo sobre o hiperfuncionamento no desempenho de seu contrato de trabalho e a
importância do trabalho na vida do sujeito.
O contexto de análise, como já explanado, referiu-se a um circuito delimitado, com
instruções de conduta e comportamento, como momentos e ordem para fala. Além da
organização pragmática da audiência, o enquadramento do processo judicial indica a
necessidade de aderência ao que já consta nas demais manifestações do processo. No caso do
autor da ação, o reclamante, a peça de ingresso da qual consta a narrativa fática do que ocorreu
é a petição inicial e, no caso da empresa, enquanto ré/reclamada no processo, a aderência se
refere à contestação. Juntamente com os depoimentos das partes no processo, fez-se a busca de
alguns elementos que constam do processo nas decisões já publicadas e com acesso livre pela
internet, mediante consulta processual nos sites dos Tribunais Regionais do Trabalho e do
Tribunal Superior do Trabalho.
Esses contextos e indicadores para análise do processo de subjetividade na pesquisa são,
para tanto, considerados pontos de interesse, dada a deferência do tipo de organização de
trabalho que, presenciada nos processos selecionados, nos quais se verificou o trespasse da
gestão do tempo de trabalho do empregador para o empregado, conforme abordado no capítulo
da subordinação rarefeita.
Por derradeiro, acentua-se que os sujeitos desta pesquisa se incluem em um campo
magnetizado pelo premente princípio da dialética no enfrentamento de óbices antepostos, tanto
nas fases anteriores do procedimento como na permanente resistência e contraditório, sobretudo
no momento de suas falas e produção de provas de suas argumentações de verdade, na ocasião
da audiência de instrução e julgamento.
75
5 CONTRATOS DE TRABALHO QUE SE DESENVOLVEM SEM CONTROLE
FORMAL DE JORNADA: A FALSEADA GESTÃO DO TEMPO DE TRABALHO
PELO EMPREGADO
Nesta tese, um dos relevantes seletores na busca da jurisprudência dos tribunais
trabalhistas foram os processos em que o desenvolvimento do contrato de trabalho não se deu
com uma formalização de um típico controle de jornada. Nesses casos, não ocorriam registros
de horário de entrada ou saída do trabalhador bem como demais registros de gozo de intervalos.
A esses trabalhadores, via de regra, não se aplicariam as disposições de limite de jornada de
trabalho, estabelecido na legislação trabalhista brasileira, ou pela natureza do cargo ocupado,
ou pela impossibilidade de operar o registro de jornada.
A legislação trabalhista brasileira dispensa do limite e, por conseguinte, do controle de
jornada alguns empregados. Nesse sentido, e como regra geral, esses empregados não fazem
jus a perceberem adicional de horas extras, mesmo que trabalhem para além da jornada
ordinária estabelecida em lei. Como exemplo, podem-se citar os empregados que exercem
atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, como vendedores e
motoristas, bem como os empregados que exercem cargos de gestão, como diretores, gerentes,
coordenadores, supervisores ou chefes de departamento. Mais recentemente, em novembro de
2017, passaram também a integrar esse rol os teletrabalhadores.
O que justificou a seleção desses casos foi a primazia da realidade do atual mundo de
trabalho, cada vez mais adaptado a formatos de prestação de serviços em que o sujeito é
coadjuvante do processo organizacional. Nesse sentido, o desenvolvimento do pacto laborativo
se dá com relativa alteridade e autonomia do trabalhador, tanto na gestão de seu tempo de
trabalho como no cumprimento de suas funções contratuais, sem, contudo, ficar desconfigurada
a relação empregatícia. Insta destacar que, para viabilizar a análise da subjetivação do
trabalhador levado à reflexividade nesta pesquisa, ficam excluídos os típicos empregados que,
no desenrolar de seu contrato de trabalho, não têm a possibilidade, pela própria natureza do
contrato, de atuar sob nenhum aspecto, de modo diferente daquilo que imposto hodiernamente
pelo empregador. Assim, não atende ao objeto da pesquisa o empregado que cumpre
formalmente horários de trabalho com funções específicas e bem delimitadas, bem como é
compelido por dever de contrato a consignar o registro formal dessa jornada de trabalho. O
seletor de inclusão das características acima descritas, elegendo para a análise os empregados
com autogestão do tempo e modo de trabalho, é o que viabiliza a análise qualitativa nesta tese.
76
5.1 A configuração de uma típica relação de emprego
É necessário esclarecer que este estudo cuidou da figura do empregado para fins
específicos da configuração da relação de emprego, nos moldes indicados na legislação
trabalhista. Os trabalhadores sujeitos dessa pesquisa não precisam formalizar o horário de
trabalho, mas se sujeitam a outras formas de subordinação, não migrando, desse modo, para o
rol dos trabalhadores autônomos. A ausência do controle formal de jornada não exclui o
trabalhador da configuração de uma típica relação de emprego. Esta é apenas uma característica
que um dos tipos de empregado teria, alguma liberalidade na gestão de seu tempo de trabalho.
Procurou-se, então, por contratos de trabalho com cargos de supervisão, coordenação, gestão,
gerentes e vendedores externos.
Afirma-se tratar-se de um empregado em sentido estrito, porque não se cuida aqui da
figura do trabalhador em sentido amplo, que são aqueles que têm apenas uma relação de
trabalho, como é o caso do trabalhador autônomo. Reitera-se que a tese, nesse sentido, cuida
do empregado e não do trabalhador latu sensu, considerando a distinção estabelecida na seara
jurídica entre relação de emprego e relação de trabalho. A relação de trabalho é um gênero da
qual a relação de emprego é uma espécie. Nesse sentido, exemplifica-se: em uma relação de
trabalho, não há obrigatoriedade da assinatura da carteira de trabalho para a prestação de
serviços, não há controle de jornada, não há pagamento de adicionais de periculosidade,
insalubridade ou noturno, bem como inexiste a obrigatoriedade do recolhimento previdenciário
e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Nesse gênero contratual, existe apenas
uma prestação de serviço celebrada entre as partes. Já a relação de emprego que demanda a
presença dos elementos configuradores específicos aborda a obrigatoriedade de o vínculo
constar da carteira de trabalho e previdência social (CTPS), chancela toda a gama de Direito
trabalhista reguladora desse contrato de trabalho, existindo por obrigação legal e contratual a
obrigatoriedade dos recolhimentos previdenciários e do FGTS. O que efetivamente vai
diferenciar uma relação de emprego de uma relação de trabalho é a natureza do contrato
celebrado e a verificação dos elementos configuradores: ser uma pessoa física, habitualidade,
onerosidade, pessoalidade e subordinação.
Analisou-se, portanto, a típica relação de emprego, que fica configurada quando uma
pessoa física presta, com pessoalidade, serviços de natureza não eventual a empregador, sob a
dependência deste e mediante salário. Os requisitos para a configuração de uma relação de
emprego são cumulativos e constam dos artigos 2º e 3º da CLT (Decreto-Lei nº 5.452/1943):
77
Artigo 2º - Considera-se empregador a pessoa física ou jurídica que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. […]
Artigo 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Note-se que a presença física no estabelecimento empregador não é necessária para a
configuração da relação de emprego, uma vez que a própria legislação, pelo artigo 6º da CLT,
esclarece que não haverá distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do
empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que
estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Esclarece ainda o referido
dispositivo que a subordinação jurídica, nesse tipo de contrato, dá-se por meios telemáticos e
informatizados de controle e supervisão: Artigo 6º - Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único - Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando. Quando presentes os cinco elementos citados alhures na prestação de serviços, forma-
se o chamado vínculo empregatício, fazendo nascer, para aquele empregado, uma vasta gama
de direitos amparados, inclusive, pelo texto constitucional, além dos típicos direitos trabalhistas
da CLT (Decreto-Lei nº 5.452/1943).
Discorrer-se-á brevemente sobre a caracterização da típica relação de emprego. Romar
(2011) emite o conceito de relação de emprego, diferenciando-a da relação de trabalho,
esclarecendo que aquela e uma espécie desta: a relação de emprego é uma espécie de relação
de trabalho, que se baseia no nexo entre empregador e empregado, caracterizado pela prestação
pessoal de serviços, de forma não eventual e subordinada, mediante o pagamento de salário. É
a relação jurídica que tem como fato social original o trabalho subordinado, prestado com
personalidade, mediante remuneração e que tem como disciplina jurídica o conjunto humano
não eventual e de normas que compõem o Direito do Trabalho. Na relação de emprego, o
vínculo jurídico é estabelecido entre empregado e empregador, e é regulado pelas normas
jurídicas trabalhistas (Romar, 2011, p. 97).
Em termo usuais, uma relação de emprego se refere àquela em que o trabalhador tem o
contrato de trabalho registrado em sua CTPS e, como consequência, os direitos materiais
elencados no artigo 7º da Constituição Federal de 1988 e nas disposições da CLT. Nessa senda,
fala-se em uma prestação de serviço com contagem de tempo para fins de aposentadoria, com
obrigatoriedade de recolhimentos previdenciários, salário da categoria profissional, saldo de
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salário, férias, décimo terceiro salário, repouso semanal remunerado, tutela de jornada de
trabalho, normas de saúde e segurança no trabalho, FGTS, direitos rescisórios quando da
extinção do contrato de trabalho.
O primeiro elemento de uma típica relação de emprego indica que, necessariamente, o
empregado precisa ser uma pessoa física. Somente a pessoa física tem capacidade de usufruir
alguns direitos, como as horas extras, os repousos semanais remunerados, as tutelas de saúde e
segurança do trabalho, os adicionais de periculosidade ou de insalubridade. Desse modo,
somente a pessoa física pode ser empregada na configuração da relação de emprego.
A prestação de serviços pelo empregado deve ser não eventual, como preceitua o artigo
3º da CLT, devendo ser continuada. A habitualidade se verifica quando ocorre, pelas partes, o
cumprimento da expectativa de continuidade na prestação do serviço, ou seja, não há uma
imprevisibilidade de repetição. Nos contratos de trabalho, com local fixo ou determinado,
refere-se a uma expectativa estável de retorno ao local de trabalho. Não demanda
necessariamente uma presença diária, pois o que caracteriza a habitualidade não é a prestação
diária de trabalho e sim a permanência e o prolongamento no tempo indicados na prestação do
serviço. Existem relações de emprego que já se configuram com a presença quinzenal do
empregado no ambiente laborativo, por período de anos. Em outros casos, já se configura a
relação de emprego com a presença do empregado no local de trabalho por três dias na semana.
Observa-se que a habitualidade não é um requisito engessado e, diante das novas formas e
contratos de trabalho, vale-se das teorias aplicáveis ao novo mundo do trabalho para verificar
se existe a expectativa de retorno ou cumprimento do que foi anteriormente pactuado. A
Previdência Social entende que o trabalhador não eventual seria aquele que presta serviços
relacionados direta ou indiretamente com as atividades normais da empresa (Romar, 2011).
Terceiro elemento a ser analisado refere-se à onerosidade. É o caráter remuneratório da
prestação de serviço. O empregado coloca sua força de trabalho à disposição do empregador e
ele o remunera. As disposições de tutela salarial estão na Constituição Federal de 1988 e na
CLT.
A pessoalidade é o quarto elemento que configura uma relação de emprego. A
pessoalidade deve ser compreendida como a impossibilidade de substituição do empregado por
outrem dentro do mesmo contrato de trabalho, em virtude de se levar em consideração suas
qualidades e aptidões pessoais, dotando a relação de infungibilidade. Na relação de emprego, o
que se contrata não é o serviço como resultado, mas sim o serviço prestado pessoalmente por
alguém. Assim, tem-se uma relação intuitu personae, caracterizada pela instransferibilidade. O
empregado não se pode fazer substituir por sua deliberação. A personalidade faz a aderência do
79
sujeito único para desempenho de sua obrigação contratual. É de bom alvitre registrar que, em
outra senda, o empregador pode substituir um empregado por outro no caso de falta.
A subordinação vem como o quinto elemento a ser analisado para a configuração da
relação de emprego e compreende a organização, o controle e a disciplina na gestão de
cumprimento da prestação de serviços. Merecerá uma atenção nesta pesquisa, em virtude das
características específicas que detêm os sujeitos aqui estudados, no que se refere à liberalidade
que têm no agenciamento de seu tempo de trabalho. Reitera-se que um dos seletores na pesquisa
da jurisprudência foram processos com pedidos de dano existencial por reclamantes que não
preenchiam, formalmente, cartões de ponto no controle de jornada, pois ocupavam cargos de
gestão ou cumpriam atividades externas ao ambiente de trabalho.
5.2 Subordinação relativizada: contratos de trabalho que prescindem de registro
formal de jornada e o sujeito da pesquisa
Como já explanado acima, um dos seletores da pesquisa na jurisprudência dos tribunais
do trabalho foram processos com pedidos de dano existencial por reclamantes, que não
preenchiam formalmente cartões de ponto para controle de jornada, pois ocupavam cargos de
chefia ou gestão, ou cumpriam atividades externas ao ambiente de trabalho. Os sujeitos da
pesquisa têm características específicas no que se refere à liberalidade que têm sobre o
agenciamento de seu tempo de trabalho.
Geralmente se depara com a figura típica do empregado que registra seu horário de
trabalho nos cartões de ponto e se vale deles para receber as chamadas horas extras,
compreendidas como aquelas laboradas para além da jornada de trabalho fixada no contrato e
na legislação. Ocorre que existem empregados que, inseridos nos novos modelos de contrato
de trabalho, não precisam, pela natureza da atividade desempenhada, formalizar sua jornada
nos chamados cartões de ponto. Não existe um rigor tão grande no momento da entrada, saída
e até mesmo dos registros de horários de intervalos. Nesses casos, a subordinação permanece,
porém ela é substituída por outras formas de controle, organização e disciplina, como o
atendimento de metas ou o cumprimento efetivo da demanda e a execução, com excelência, do
objeto do contrato de trabalho.
Existem contratos de trabalho em que a prestação de serviço pode se dar, inclusive, no
próprio domicílio do empregado. Com as facilidades da Era Digital, também chamada de Era
de Informação, registrando o período ao fim do século XX, dinamizaram-se os fluxos de
informação, designando os avanços tecnológicos que advieram da Terceira Revolução
80
Industrial. A vertente foi a da difusão de meios de comunicação instrumentalizados pela internet
e pela informática. Nesse sentido, muitas vezes, o trabalho começou a ser desempenhado antes
mesmo do horário ou local originalmente contratado, ocorrendo o mesmo com o término da
referida execução. Nesse contexto, o trabalho pode ser desempenhado a qualquer tempo ou
local. Sobre o assunto Barbugani (2007, citado por Almeida, 2015) discorre da seguinte
maneira: A necessidade de progressivos ganhos de produtividade imposta pela concorrência descontrolada leva a novos e frequentes programas de qualidade total e estimula a competição entre funcionários rumo à chamada liderança positiva. Do lado dos trabalhadores, competição e eficiência passaram a ser o primeiro item de conservação do emprego pelo maior tempo possível, numa era em que o perfil de excelência do trabalhador deixou de ser medido por sua antiguidade numa só empresa para ser avaliado por sua experiência na prestação de diferentes tipos de trabalho em empresas que diversificam atividades e gozam de conceito de mercado (p. 27). As facilidades fornecidas pela tecnologia quanto à execução do trabalho desempenhado
a qualquer tempo e hora se compatibilizam com os cargos em que o trabalhador não tem
horários fixos e engessados a cumprir. São trabalhadores que assumem a gestão de seu tempo
de trabalho:
O caminho que a tecnologia tomou na vida das pessoas gera efeitos positivos e negativos. Reportagem interessante da revista VOCÊ S/A, de março de 2013, demonstra que a tecnologia criou novos problemas profissionais. Afirma-se que existe disponibilidade de o empregado receber estímulos de forma ininterrupta. Profissionais que trabalham em frente a um computador, que são interrompidos a cada três minutos, levam até 23 minutos para a retomada do raciocínio, afirma um estudo da universidade da Califórnia, campus Irvine, fazendo o cansaço da mente ser maior (Marino, Neves & Rossi, 2013, citados por Almeida, 2017, p. 27). Muitas vezes, o empregado se sente na obrigação de estar disponível 24 horas por dia.
É a chamada jornada de trabalho 24 x 7 x 12 (24 por 7 por 12), compreendendo a ideia de
disponibilidade 24 horas por 7 dias da semana e 12 meses ao ano. O empregado entende que é
natural a conectividade em tempo integral com o ambiente corporativo. Essas afirmativas
derivam de uma entrevista com alguns profissionais de empresas como a Coca Cola Femsa
Brasil, de São Paulo, e da L’Oreal, no Rio de Janeiro. As entrevistas foram publicadas em
reportagem interessante da revista Você S/A, intitulada Viramos escravos da tecnologia?
(Marino, Neves & Rossi, 2013, citados por Almeida, 2017, p. 27): Uma das profissionais entrevistadas, a gerente de logística da L’Oreal, no Rio de Janeiro, Juliana Flenning, nunca se desliga dos celulares, nem mesmo nas férias. A profissional afirma que se sente mais segura quando sabe o que está acontecendo e, como tem muitas responsabilidades, faz questão de estar sempre conectada. […]
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Em outro depoimento, o da gerente jurídica e tributária da Coca-Cola Femsa Brasil, de São Paulo, Fabiana Meira. A advogada reconhece que não se desliga mesmo e afirma que é feliz assim. Fica disponível, ainda que seja tarde da noite. Ela se reporta à matriz da empresa, no México, com diferença de fuso horário para o Brasil de 4 horas, e, portanto, convive com ligações e mensagens trocadas horas depois do enceramento do expediente no Brasil (p. 28). A legislação trabalhista brasileira não condiciona a configuração da relação de emprego
à presença física no estabelecimento. Logo, se existe subordinação, com a emissão de um dos
poderes do empregador, nos moldes de controle, organização ou disciplina, a relação
empregatícia poderá estar configurada.
Além desses contratos de trabalho, existem atividades que demandam, dentro do
ambiente laborativo, uma margem de liberdade aos empregados, quando, por exemplo, estes
ocupam cargos de chefia, supervisão, gerência ou outros cargos denominados “de confiança”,
existindo relação de subordinação direta apenas ao superior hierárquico da
empresa/empregador. Do mesmo modo, esses empregados, algumas vezes referenciados como
altos empregados, ficam disponíveis em tempo integral para empresa. Presencia-se uma linha
muito tênue entre ambiente corporativo e ambiente familiar, sobretudo nos contratos em que o
trabalhador tem a possibilidade de gestão do seu tempo de trabalho, como citado por Almeida
(2015, p. 62): A evolução do mundo trabalho fez surgir um contexto em que ocorre a mistura entre o ambiente laborativo e o ambiente familiar. Todas as facilidades cibernéticas que a terceira fase da revolução industrial, denominada de era digital, trouxeram viabilizam a execução do trabalho pelo ser humano, em uma jornada de vinte e quatro horas por dia, sete dias na semana e doze meses ao ano. Este o fenômeno que impede a desconexão do trabalhador. Apareceram várias modalidades e formas de contratos de trabalho, possibilitando até mesmo a dispensa física do empregado na organização substituída pelo trabalho no modo remoto. Em que pese, esta evolução, ao criar novos postos e forma de trabalho, contribui para o exercício do direito ao trabalho na sociedade, fazendo-o valer como um direito social de extrema importância, por outro lado, as organizações tentam extrair ao máximo os benefícios desta prontidão perene do trabalho no ambiente organizacional, sempre medradas no objetivo de auferir muito lucro. Existe disposição legal na CLT, mencionada no artigo 62, que exclui os empregados
nele citados da aplicação dos dispositivos referentes à jornada de trabalho, no que se refere ao
limite de execuções de horas extras. Eis o artigo: Artigo 62 da CLT Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:
I - os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;
II - os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial;
Parágrafo único - O regime previsto neste capítulo será aplicável aos empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário do cargo de confiança, compreendendo a gratificação
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de função, se houver, for inferior ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de 40% (quarenta por cento);
III - os empregados em teletrabalho. Nesse contexto, o elemento que compõe esse vínculo empregatício e que merece
atenção neste estudo se refere à subordinação jurídica rarefeita. Justifica-se esse destaque
devido às novas formas de organização, controle e disciplina que caracterizam a atual era do
trabalho, bem como os avanços da tecnologia, sobretudo no trabalho contemporâneo que indica
autonomia, iniciativa e responsabilidades.
Excertos de um interessante trabalho de mestrado publicado pela Universidade Federal
de Lavras por Borges (2012), Trabalho executivo contemporâneo: uma análise sob a ótica do
filme “Amor sem escalas”, ilustram a posição do empregado com gestão do tempo de trabalho
e a referida subordinação rarefeita: “Na sociedade contemporânea, o trabalho tem ocupado um lugar ainda maior na vida das pessoas que, ao atenderem às exigências organizacionais, se transformam e assumem características voltadas às necessidades do mercado de trabalho, deixando em segundo plano aspectos da vida, como a família, o lazer e os relacionamentos afetivos. Os executivos têm experimentado um aumento significativo no número de horas trabalhadas, se estendendo não só para o período noturno, como também para as horas de folga”. Pelas análises, observou-se que, para atender às demandas organizacionais, o executivo tem que se dedicar quase que exclusivamente a uma rotina de trabalho que inclui viagens, compromissos e sobrecarga de tarefas. Para tanto, esses profissionais precisam desenvolver habilidades e características que suportem tamanho comprometimento, tais como o dinamismo, a solidão, o desapego, a mobilidade, a independência, a flexibilidade e a ética flexível. Diante de tantas exigências, a maneira que o executivo utiliza para resistir às pressões psíquicas do trabalho e à ausência da família, do convívio social, de relacionamentos e do lazer, é a adoção de comportamentos de conformismo e de extrema normalidade diante de situações consideradas anormais (Borges, 2012, p. 7). Na esteira das conclusões da pesquisa, a autora cita Dejours (1999) para corroborar a
gestão empresarial que trespassa a gestão do tempo de trabalho para o empregado,
denominando como normopáticos esses trabalhadores: “Com essas exigências, esses
profissionais são contaminados por uma lógica perversa de funcionamento organizacional, que
pode levar ao desenvolvimento de comportamentos de normopatia, conceito estudado por
Dejours (1999)” (Borges, 2012, p. 7).
Sobre a normopatia, Dejours (1999, citado por Borges, 2012, pp. 28-29) assim explica: O conceito de normopatia tem sido empregado por Dejours (1999) para explicar os aspectos psicopatológicos inerentes à relação homem-trabalho. Esse autor argumenta que, com a nova configuração do trabalho, os profissionais engajam-se na busca por um perfil ideal, com características e habilidades que acompanhem o ritmo das mudanças que repercutem no mercado de trabalho. Essas habilidades impõem aos trabalhadores uma mudança de estilo, pelo qual a gestão de suas vidas precisa ser repensada, em função das exigências, cobranças e
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responsabilidades oriundas do trabalho. Dejours (1999) explica que o desenvolvimento da normopatia decorre da formação de processos defensivos contra o risco de desorganizações psíquicas severas, tais como estresse, solidão e depressão, entre outras patologias decorrentes das exigências do trabalho contemporâneo. Os contratos de trabalhado caracterizados pela subordinação relativizada compreendem
atuações com alto grau de gestão do tempo de trabalho pelo empregado. Eles não assinam a
chamada “folha de ponto”, instrumento utilizado para registrar horário de entrada, saída e
usufruto de intervalos. Muitas vezes, não precisam estar fisicamente nos locais de trabalho e,
por mais contraditório que pareça, estão, sim, presentes, mesmo ausentes de forma física. Esses
profissionais têm metas a serem atingidas e alto grau de empenho e satisfação. A meta é a
eficiência em ser capaz de tudo resolver em qualquer tempo e hora, em um verdadeiro culto à
urgência. Nos processos analisados, observa-se que, algumas vezes, nos depoimentos, tem-se a
impressão que o trabalhador estava em vários lugares ao mesmo tempo, chamando a
reflexividade para um tipo de alto desempenho e superação, pois trabalhavam cerca de 18 ou
20 horas por dia, por muitos anos de trabalho, sem nenhuma oposição evidente, segundo as
informações dos processos judiciais.
5.2.1 Evolucionariedade dos formatos de subordinação jurídica atrelada à migração dos
modelos de desenvolvimento dos contratos de trabalho
A figura da subordinação jurídica tem sofrido alterações e adequações diante dos novos
formatos de desenvolvimento de alguns contratos de trabalho. E, se o perfil da subordinação
jurídica se alterou, por óbvio, que o do empregado também. Agora ele assume riscos antes
pertencentes somente ao empregador.
A compreensão do requisito da subordinação precisou se adequar ao novo mundo do
trabalho. Passou-se a verificar diversas dimensões da subordinação e que são consideradas
variáveis relevantes no contexto de caracterização de uma relação empregatícia. Sobre o
assunto, vale destacar a contextualização citada em Melo e Andrade (2015, p. 88): Contudo, o que se apresenta atualmente no mercado do trabalho são altos funcionários de elevado conhecimento técnico, enquanto os empregadores são simplesmente os gestores da empresa, não possuindo, em grande parte dos casos, o conhecimento específico sobre as técnicas utilizadas para a produção ou prestação de serviços. A subordinação decorre do negócio jurídico celebrado entre as partes e o poder nas
organizações se exerce por variadas facetas, ainda que de modo subliminar ou rarefeito. Sobre
o assunto, Enriquez (1997) sinalizou, no artigo intitulado O indivíduo preso na armadilha da
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estrutura estratégica: “Jamais o indivíduo esteve tão encerrado nas malhas das organizações
(em particular, das empresas) e tão pouco livre em relação ao seu corpo, ao seu modo de pensar,
à sua psique)” (p. 19).
No intuito de se alcançar alguns direitos trabalhistas é que reside a relevância no estudo
da subordinação. Na prática, o que se tem é, simultaneamente, de um lado, as organizações
empregadoras buscando reverenciar a autonomia de um determinado funcionário; por outro,
geralmente após o término do contrato de trabalho, o funcionário buscando a configuração do
trabalho subordinado, sugerindo uma liberdade falseada.
Observa-se uma vasta gama de modos de operação do exercício do poder empregatício,
mantendo o empregado sob ordens, ainda que as condutas de poder sejam subliminares.
Compreender as citadas dimensões do fenômeno subordinativo permite tanto uma adequação
do próprio conceito jurídico de subordinação, no que se refere ao modo de interpretação, para
verificar a configuração ou não de uma relação de emprego, como ampliar os direitos
fundamentais sociais do indivíduo trabalhador em todos os níveis de hierarquia.
A relativização da subordinação se confirma, além de outras formas, pela Era Digital,
tempo, como já explanado, também denominado de Era de Informação, registrando esse
período ao fim do século XX, que dinamizou os fluxos de informação. A Era Digital
proporcionou um redimensionamento dos modelos de produção, antes executado dentro das
grandes fábricas por pessoas ou máquinas, com trabalho bem delimitado ao horário funcional
padrão de jornadas integrais. Com os avanços da tecnologia, a pulverização dos processos de
produção empresarial viabilizou o trabalho a distância, o teletrabalho e a considerável
especialização do conhecimento, desencadeando, inclusive, a autonomia do empregado e uma
liberdade no cumprimento de seu contrato de trabalho, falando-se em uma nova morfologia do
contrato de trabalho. Na mesma senda, os empregados externos, viajantes ou representantes
comerciais, executam seu trabalho em espaço físico alheio ao empresarial e sem controle de
horário (Alvarenga, 2010).
Os contratos de trabalho com essa nova morfologia mantêm presente a subordinação
jurídica, existindo uma alteração no que se refere ao modo do controle, não se desconfigurando,
com isso, a relação de emprego. Nos contratos com os formatos acima elencados, há o poder
de controle exercido de modo diferente, mas sempre presente, pois o controle ou a fiscalização
pode se dar a distância, com ampla conexão com a empresa, pelos meios telemáticos.
Por derradeiro, reverencia-se destacar que a tutela justrabalhista brasileira tem as lindes
fincadas no cuidado social do trabalhador. A subordinação jurídica permanece condição sine
qua non para a configuração de uma relação de emprego. O que se deve ter em mente é que,
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não obstante o modelo de subordinação jurídica presente nos formatos de contratos de trabalho,
a ideologia protetiva ao trabalho digno e aos direitos fundamentais deve ser aplicada a todo
trabalhador, pois, na essência, o subordinado vai desde o humilde e tradicional obreiro que
recebe ordens a todo o momento até àquele que detém inclusiva confiança especial no ambiente
de trabalho.
5.3 Reflexividades sobre o hiperfuncionamento do sujeito e as carreiras na
Contemporaneidade: o trabalho como empreendimento individual e a gestão do
tempo de trabalho
Discorreu-se alhures sobre os contratos de trabalho em que a subordinação é relativizada
em virtude de algumas características da prestação de serviços. Esses trabalhadores não figuram
como hipossuficientes na relação jurídica, não sendo considerados empregados ordinários, no
respeitante à posição na estrutura hierárquica do empregador. Esses empregados têm
atribuições consideráveis e são dotados de maior autonomia gerencial. Algumas vezes, podem
se confundir com o próprio empregador. São trabalhadores com percepção de salários maiores
que os demais colegas e, às vezes, têm até subordinados. Sobre a gestão do tempo de trabalho
desse sujeito, tem-se que: Todo o tempo do profissional é dedicado e consumido, direta ou indiretamente, pelo trabalho (Sader, 2000), seja trabalhando as horas diárias na empresa, seja preparando-se para ir trabalhar, seja no transporte para o trabalho, seja ansioso com as perspectivas que possam surgir, seja apreensivo com a avaliação do seu desempenho ou, ainda, dedicando o seu escasso tempo livre a cursos de aperfeiçoamento profissional. Cada dia, cada semana, começam e terminam com suas ações e pensamentos voltados para o trabalho (Borges, 2012, p. 54). Os empregados com gestão de seu tempo de trabalho têm dimensão considerável da
confiança do empregador, com poderes de mando e relativa autorização até para admitir,
dispensar ou punir alguns empregados. Segundo Romar (2011, p. 151): Cargo de confiança é aquele caracterizado pelo especial relevo ao elemento fiduciário decorrente do contrato de trabalho, tendo em vista que as funções desempenhadas pelo empregador ocupaste de tal cargo são revestidas de atribuições de gestão. Em razão disso, os cargos de confiança implicam necessariamente em um padrão salarial mais elevado. No cumprimento do contrato de trabalho, alguns empregados representam a expressão
do próprio empregador perante os outros empregados. Esse evento intitula-se longa manus do
empregador e é compreendido como a extensão da atuação do empregador no cumprimento de
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papéis dentro da organização, diante dos empregados ordinários, indicando o “alter ego” do
empregador.
Acredita-se que a subordinação jurídica permanece presente, não na forma de
cumprimento restrito de ordens ou cumprimento de horários, mas sim indo muito além disso.
Essa subordinação é intensificada, na verdade, pela própria necessidade de gestão do tempo de
trabalho, uma vez que as exigências são heterogêneas, levando, às vezes, à renúncia de outros
aspectos de sua vida pessoal, em detrimento da vida profissional.
Em recente artigo publicado no Conpedi (Conselho Nacional de Pesquisa em Direito),
foi apresentada um estudo sobre a ótica de jovens trabalhadores executivos sobre o direito ao
lazer, abordando a tratativa do trabalho e seus sentidos. A reflexividade considerou um grupo
de jovens trabalhadores executivos de transacionais instaladas no Brasil e sua percepção sobre
o direito ao lazer. O artigo revelou ausência de interesse desses jovens executivos em usufruir
do direito ao lazer bem como a atuação em excesso de jornadas de trabalho e o ideal de
supervalorização do trabalho, como asseverado no trecho a seguir: Observamos também que, nos dias atuais, tal ausência tende a ser muito maior quando as empresas passaram a exigir uma postura de maior proatividade e antecipação de eventuais problemas, além de terem aumentado bastante a cobrança de resultados, como ocorre nos ambientes laborais corporativos. Esse quadro é potencializado pelo uso de e-mails, telefones celulares e laptops em casa, o que dificulta a disponibilidade do trabalhador para a família. É o paradoxo do estar presente estando ausente. Sem forças para lutar contra esse panorama, o trabalhador pode se sentir culpado (Souza & Misailidis, 2013, p. 4). Na mesma senda, a pesquisa evidenciou que esses trabalhadores rejeitam, inclusive, a
receber a tutela justrabalhista, com base na compreensão de que não são hipossuficientes, como
os trabalhadores ordinários. Sobre o assunto, os autores destacam que: Diante desse quadro, vemos uma horda de jovens recem-graduados se digladiarem para se abrigar nessas transnacionais, sob a promessa de um emprego estável, com altos ganhos, possibilidade de trabalho no exterior e reconhecimento social. O que nos traz grande preocupação e o absoluto deslumbramento desses profissionais pelo empregador, no sentido institucional da expressão. Observamos uma lavagem cerebral institucional nestes profissionais pelas próprias empresas e, principalmente, pelos nossos mecanismos de comunicação de massa. Tal situação leva estes profissionais, mesmo com um alto nível cultural, a concordarem com as jornadas excessivas, com a ausência de direitos trabalhistas básicos, como férias, licença-maternidade e paternidade, horário regular de trabalho e estímulo a excessiva competitividade (Souza & Misailidis, 2013, p. 21). Sobre o exposto acima, afirma-se que esse trabalhador, no curso de seu contrato de
trabalho, não se percebe como um sujeito de direitos trabalhistas ordinários. Ele não exige a
percepção pecuniária de horas extras ao fim do mês, não faz questão dos repousos semanais
remunerados, não contabiliza intervalos interjornada ou intrajornada. Ele trabalha sem limite
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de tempo ou preocupação com as normas que tutelam, em verdade, a saúde e a segurança do
trabalhador. É importante destacar que esse cenário, diga-se, de relativa renúncia a esses
direitos trabalhistas, vigora apenas no curso do contrato de trabalho. Existem pesquisas que
reconhecem um aumento das demandas trabalhistas por parte de trabalhadores executivos após
o término do vínculo, quando, então, partem em busca dos direitos trabalhistas que entenderam
violados durante o contrato de trabalho. Segundo uma publicação de Bompan (2009), expressa-
se em 25% do aumento das demandas trabalhistas no País, com a migração de um processo de
altos empregados a cada três anos para vinte processos a cada três meses.
A temática mereceu atenção do sociólogo López-Ruiz (2009b), que apresentou um
estudo no qual se analisou o trabalho como um tipo de investimento, destacando a migração da
ética protestante do trabalho para a ética do trabalho empresarial. O referido autor, em sua
pesquisa O consumo como investimento: a teoria do capital humano como ethos, destaca: No mundo dos executivos, a palavra “investimento” talvez seja uma das mais utilizadas e não só, como pode se crer, pelos que trabalham dentro dos departamentos de finanças das corporações transnacionais. Investe-se em um capital para aumentar seus rendimentos, investe-se em ações de tal ou qual companhia ou se investe em fundos de maior ou menor risco. Também se investe, contudo, ao fazer um curso de idiomas, ou uma pós-graduação em administração, investe-se em desenvolver a própria carreira e se investe na amizade ou na relação com os filhos. Tudo ou quase tudo se torna objeto de investimento, algo no que se pode ou, muitas vezes, se deve investir (López-Ruiz, 2009b, p. 219). A morfologia exposta acima no que se refere aos empregados com as características de
gestão do tempo de trabalho, aspecto da sociedade contemporânea, ganha atenção do autor,
expondo que: Ou, em outras palavras, é possível afirmar que os princípios que estabelecem e ordenam os sentidos dos indivíduos na sociedade contemporânea têm sido transformados e agora seguem uma lógica de “investimento-crescimento” - como a de qualquer outra forma de capital dentro da sociedade capitalista. Vemos assim como essa formulação teórica, essa teoria “científica” cunhada pela ciência econômica, intervém indireta, mas decisivamente, na formulação de uma ordem valorativa internalizada, na constituição de um ethos, e promove, dessa forma, um espírito específico, funcional e operativo, para o capitalismo que caracteriza a passagem do século XX para o século XXI (López-Ruiz, 2009b, p. 229). Em outro estudo publicado em 2009, intitulado Da “profissão” à “carreira”: o caso
dos executivos transnacionais, apresentado pelo mesmo autor, a reflexividade abarcou a
migração da profissão à carreira na estrutura organizacional. O sociólogo seguiu explicitando
que: Nas grandes corporações, o cuidado da carreira recebe hoje uma ênfase especial. O que se promove e uma visão da “carreira” como algo que excede as atividades econômicas de alguem, algo que vai alem do trabalho profissional para se tornar um “projeto de vida” e numa fonte de
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“realização pessoal”; a carreira e apresentada como a estrada principal na vida das pessoas onde devem ser tomadas as principais decisões - e, portanto, é nela que é preciso fazer as escolhas certas. A carreira e a vida pessoal aproximam-se e sobrepõem suas lógicas de forma surpreendente. Assim, no “mundo do fim do emprego”, o executivo e incentivado permanentemente a “cuidar” da sua carreira e a “gerir” a sua vida. O profissional encontra-se diante a exigência constante de responder a especificações que lhe são externas, que não respondem necessariamente à natureza (técnica) de um tipo de serviço para o qual ele se especializou (López-Ruiz, 2009a, p. 27). A atuação do empregado como gestor de seu tempo de trabalho se verifica, muito
concretamente, com a possibilidade do trabalho a distância. Nessa modalidade de contrato de
trabalho, que, segundo a Organização Internacional do Trabalho (2017), compreende o trabalho
a qualquer hora, em qualquer lugar, fora das instalações de seus empregadores, os empregados
com gestão do tempo de trabalho são denominados de funcionário “emancipados”, nos termos
da colocação de Freitas (2006), e inserem-se no seguinte contexto organizacional do mundo do
trabalho: O esfacelamento do mundo do trabalho trouxe na sua rasteira um enfraquecimento das estruturas organizacionais tradicionais, nas quais horário, contrato, processo e local de trabalho, imagem e qualificações profissionais foram profundamente alterados. A resposta organizacional tem sido alardeada por meio da rapidez e flexibilidade, na abolição de hierarquias, na primazia do trabalho em grupo e na gestão emocional, tudo embalado por um discurso de “empresa humana”. Porem, no dia a dia, a vida é mais complicada, pois o descarte dos instrumentos clássicos de gestão deixou um vácuo e tanto as chefias quanto os funcionários estão desorientados e perdidos. As empresas, inundadas de promessas, de bom humor, de trabalho e de convivência harmoniosa, escondem que o trabalho pode ser chato, monótono, rotineiro, limitado e que muitas vezes nega a liberdade e a beleza que o discurso sedutor tenta apregoar. Pretende-se que não existem limites, obrigações e fatos organizacionais nem sempre agradáveis. O discurso da área de recursos humanos proclama o funcionário como a mais valiosa matéria-prima, que o “capital humano” de qualidade e o grande diferencial e que precisa de cuidados e mimos, bem como propõe um mundo do trabalho festeiro e idílico com funcionários felizes, exercendo todo o seu potencial criativo. Ora, o funcionário “emancipado” não tem muito que comemorar, pois o que conta é o resultado. A coação foi substituída pela pressão, regras e estruturas pela sutileza do controle e pela sobrecarga, caracterizando uma ditadura do trabalho que determina o ritmo acelerado do dia do indivíduo e invade a sua vida privada, levando-o mesmo à exaustão. E tudo isso diluído no prazer de trabalhar. Não vem ao caso se as metas são impossíveis de serem alcançadas, se as cobranças são exageradas e se o funcionário não conta mais com a orientação de seu chefe; ele é obrigado a se sentir livre e a aplaudir a sua recém-conquistada liberdade, responsabilidade e autonomia. O tempo é um organizador da vida, mas o “novo tempo” das empresas desconsidera a noção de hora, dia e semana. Não existe fim de expediente, fim de semana ou vida privada. Fortalecido pela tecnologia mais moderna, principalmente em relação aos poderosos telefones celulares e computadores, o mundo do trabalho invade a vida familiar e amorosa do indivíduo e lembra-o de que ele deve estar sempre a postos (Freitas, 2006, pp. 2-3). Na mesma esteira de raciocínio e sobre os formatos do exercício do poder empregatício,
Enriquez (1997) publicou originalmente um artigo em 1989, intitulado O indivíduo preso na
armadilha da estrutura estratégica, discorrendo sobre a estrutura estratégia das organizações e
seu funcionamento bem como o envolvimento do indivíduo nesse contexto. As empresas de
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estrutura estratégica buscam pessoas engajadas no seu estilo ou que, ao menos, possam ser
adaptadas a esse estilo e tendentes ao crescimento da empresa. Sobre a personalidade do
empregado dessa organização, Enriquez (1997, p. 19) afirma: Ela exige de todos esses homens serem estratégicos, guerreiros, ganhadores, esportivos; numa palavra, aquele que temos chamado de “matador de cool”. Max Weber tinha, há muito tempo, assinalado que, uma vez que a dinâmica capitalista não estava mais fundada sobre uma ética, ela não pode desenvolver senão suas que características puramente primárias e seus aspectos esportivos, valorizando a performance pela performance. […] Com efeito, a empresa estratégica tem, por fundamento, uma equação simples: energia física = energia psíquica = aptidão para o sucesso individual = aptidão à utilidade social. Dos apontamentos dos autores citados dessume-se, no que se refere sobretudo e para o
que tem relevância para a reflexividade nesta pesquisa, que são, no caso, trabalhadores com
ingerências em seu tempo de labor, que triunfa uma dedicação empenhada ao trabalho, com
uma diluição das fronteiras da vida para o trabalho e da vida para outros projetos que não sejam
o trabalho. São trabalhadores que atuam em hiperfuncionamento e altamente performáticos,
com disposição total para o labor. A atuação desse trabalhador com gestão do seu tempo de
trabalho tem caracteres típicos indicados no referencial teórico de Aubert (2006), ditando o
tônus do indivíduo hipermoderno. O triunfo da lógica mercadológica e o esfacelamento de todos os limites, estruturando a construção das identidades individuais, contribuem também para definir quem ele é, pelo que passa e o que sofre. Este indivíduo nós o qualificamos de hipermoderno, para acentuar a noção de excesso e de superação que caracteriza a nossa sociedade de modernidade exacerbada (Aubert, 2006, p. 1, tradução nossa).7 Dentro desse contexto de mutação antropológica, insere-se o “hiperfuncionamento de
si” colocado por Aubert (2003). Essa vertente se encontra naturalmente capilarizada no
ambiente laboral trazido à análise nesta pesquisa. O trabalhador que não difere o tempo ou o
espaço entre a vida de suas relações e seus projetos de vida com sua atuação profissional, numa
doação profunda carreada pela dinâmica do excesso e da urgência, para alcançar seus objetivos: O desejo de triunfar sobre o tempo aparece assim como uma forma de onipresença existencial, correspondendo ao desejo de viver no máximo de registros ao mesmo tempo. Na vida privada, o cenário inaceitável não é, como na esfera profissional, a derrota econômica, mas a oportunidade perdida. Impulsionado pelo desejo de ter sucesso em todos os seus momentos, impulsionado pela preocupação com o desempenho e a intensidade, “o homem apressado” é o representante perfeito do indivíduo contemporâneo (Aubert, 2003, p. 4).
7 « Le triomphe de la logique de marche et l’effondrement de toutes les frontières, structurant la construction des
identités individuelles, contribuent également à définir qui il est, par ce qui passe et ce qui souffre. Cet individu que nous appelons hypermoderne, pour accentuer la notion d’excès et de depassement qui caracterise notre société de modernité exacerbée. »
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No espectro do hiperfuncionamento do indivíduo, vale colacionar os excertos da
pesquisa Quando o mal-estar social adoece o coração: o infarto à luz da psicossociologia, de
Paiva (2008, p. 24): Atualmente, inserido no panorama da hipermodernidade, o indivíduo vivencia a dimensão do “hiper”, no sentido de excesso, em vários aspectos de sua vida, de uma forma quase que imposta. Seja para corresponder às demandas de ser hipermoderno, ou por não ter outra opção que lhe dê a ideia de alcançar o sucesso, a conquista e a evolução. Mesmo que não veja sentido na pressa constante, no ritmo acelerado do tempo vivido, característica marcante da hipermodernidade, busca corresponder às demandas da sociedade para obter reconhecimento, para ser valorizado e para não ser deixado para trás, ainda que esta postura possa incorrer em danos para a sua saúde. Ele fica pressionado entre o ideal e o real, e o ideal é o que o instiga, muitas vezes transformando-se em uma obrigação, quase que um dever. O indivíduo hipermoderno vive um cenário de urgência e imediaticidade muito intensas,
verificando-se uma pulverização do tempo e a sacralização do presente. Esse trabalhador, típico
indivíduo que se hiperfunciona, vive demandas implacáveis e superações a todo momento,
como uma busca pela superação de si mesmo, com desmesura e transcendência à condição
humana (Paiva, 2008).
Encontram-se a superação do indivíduo e a demanda implacável de superação bem
exemplificadas em um dos processos analisados nesta tese, no momento da descrição da jornada
sobre-humana narrada pelo trabalhador. Essa jornada era compreendida, em média, de 13 horas
de trabalho por dia, de segunda a sexta-feira, das 8h às 21h, com uma hora de intervalo; aos
sábados, das 8h às 16h, com uma hora de intervalo; três domingos por mês, das 8h às 13h,
durante cinco anos de trabalho na empresa. Da narrativa dos autos consta ainda de que o
trabalhador permanecia de sobreaviso, aguardando ordens pelo modo remoto e que também se
fazia disponível nas férias e períodos de descanso.
Aubert (2006) confirma a tangente de contradição experimentadas por esses
trabalhadores, descrevendo algumas características desse sujeito que se lança na desmesura:
Centrado na satisfação imediata de seus desejos e na intolerância à frustração, ele persegue, no entanto, novas formas de superação do eu, uma busca do Absoluto, sempre atual. Sobrecarregado de solicitações, somando-se a isto o fato de ser sempre mais performático, perseguido pela urgência, desenvolve comportamentos compulsivos, visando preencher cada instante de um máximo de intensidade, ele pode, tambem, cair num “excesso de inexistência”, quando a sociedade lhe retira os suportes indispensáveis para ser um indivíduo no sentido pleno do termo (Aubert, 2006, p. 1-2, tradução nossa).8
8 “Centre sur la satisfaction immediate de ses desirs et sur l’intolerance de la frustration, il poursuit neanmoins de
nouvelles formes de depassement de soi, une recherche de l’Absolu, toujours actuelle. En surcharge de demandes, outre le fait qu’il soit toujours plus performatif, poursuivi par l’urgence, il developpe des comportements compulsifs, visant a combler chaque instant avec un maximum d’intensite, il peut aussi tomber dans un ‘excès de non-existence’, la société supprime les supports indispensables pour être un individu au sens plein du terme.”
91
O posicionamento de Aubert (2006) auxilia na compreensão da deferência desse
trabalhador que se localiza como o dono do seu tempo e gerindo-o com alto desempenho,
buscando sempre novas formas de superação, de ser sempre atual e perseguido pela urgência.
Nos casos judiciais analisados, as narrativas de desempenho hodierno do contrato de trabalho
remontam a jornadas extenuantes, tentativas de progressões na carreira e maiores ganhos
salariais, não usufruto efetivo de intervalos interjornada ou intrajornada, não gozo das férias e
busca pelo atingir de metas.
O trespasse entre o trabalho e a vida privada se torna irrelevante ou imperceptível no
curso do contrato de trabalho. Dos referencias teóricos analisados, foram obtidos substratos
indicando que esse trabalhador, no curso de seu contrato, dedicou-se quase que exclusivamente
a seu alto desempenho trabalhista e, como consequência, ficaram comprometidos a vida das
relações e outros projetos de vida diferentes do trabalho.
Nessa abordagem, buscou-se amparo novamente em Albert (2004) para lançar a
reflexão de proporcionalidade entre os exageros e urgências na vida laboral desse trabalhador
com um “excesso de inexistência” diante do término involuntário do contrato de trabalho. Nesta
pesquisa, nenhum dos rompimentos dos pactos laborais se deram por parte do empregado, mas
partiram da empresa, mediante o comunicado de demissão. Diante da extinção de seu contrato
de trabalho e partindo da compreensão de que esse sujeito atuou no modo de
hiperfuncionamento, em excesso de jornada, com considerável dedicação, superação,
excelência e resistência, ventila-se como possível uma excessiva frustração diante do término
daquele labor, promovendo-lhe o vácuo na existência.
5.3.1 Desdobramentos entre a relação do trabalhador e sua família: a amplitude da
dimensão espaçotemporal do trabalho
A origem desta pesquisa finca lindes em um pedido judicial de indenização por excesso
de trabalho que causou o comprometimento das possibilidades de aquele indivíduo exercer sua
vida social. Uma vertente específica do dano existencial, figura jurídica trazida à reflexão nesta
pesquisa, é a vida das relações, compreendida no vasto campo de relações afetivas, emocionais
e amorosas que o trabalhador poderia experienciar. Nesse sentido, fica próprio trazer a lume
uma exploração da literatura nos campos da Administração e da Psicologia sobre os dilemas da
relação entre carreira, família e suas relações com a gestão gerencialista. Destaca-se que a
92
gestão gerencialista é a que permeou os contratos de trabalhos dos sujeitos analisados nesta
tese.
O sujeito trazido à reflexividade nesta pesquisa é um trabalhador com identificação
pessoal na dinâmica laboral. O empregador conhece esse trabalhador pelo nome, este ocupa um
cargo com atribuições relevante nessa dinâmica empresarial e tem proatividade no desempenho
das suas funções.
Foi dito acima que a carreira pode operar inclusive como um investimento na vida desse
sujeito, como ocorre com os executivos. Oltramari e Grisci (2014, p. 17) afirmam: O trabalho de um executivo adentra o tempo de vida pessoal e, portanto, o familiar. Para construírem suas carreiras, inevitavelmente, os executivos trabalham além do horário contratado, seja checando e-mails, fazendo ligações para clientes ou resolvendo mentalmente problemas constantemente pendentes. Abordando essa temática, Oltramari e Grisci (2014) sinalizam que se vê uma
insatisfação na falta de equilíbrio entre uma vida pessoal e o trabalho, bem como sobre o
estresse das acentuadas responsabilidades dos executivos. No estudo apresentado pelas autoras,
algumas conclusões merecem destaque nesta tese. Foi sinalizado que, não obstante a abordagem
do estresse e a difícil compatibilidade entre a carreira e a vida pessoal, as mulheres executivas
que galgaram a carreira estavam realizadas, apesar dos preconceitos e desafios percorridos para
se chegar ao auge. A ascensão mais rápida na carreira é conferida mais frequentemente como
um reflexo de renúncias à convivência familiar, desdobrando em uma ascensão mais ligeira ao
topo da carreira (Oltramari & Grisci, 2014).
O apontamento indicado acima chama à reflexão um dos casos analisados nesta tese.
Refere-se ao caso 1 (“divórcio”), que aborda a questão do pleito por indenização por dano
existencial com o fundamento de que o trabalho foi causador do rompimento do vínculo
conjugal da trabalhadora. Assim como ficou destacado na pesquisa de Oltramari e Grisci
(2014), no depoimento da trabalhadora do caso 1, fica expresso que ela queria muito crescer
profissionalmente e que, com o passar do tempo, as atribuições se acentuaram, de modo que
ela e o marido se viram cada um vivendo a própria vida, vindo mais tarde a eclodir o divórcio
do casal.
Outra conclusão emanada pela pesquisa de Oltramari e Grisci (2014) foi sobre a relação
com o aumento das responsabilidades, a sobrecarga de trabalho, as tensões e a ausência do
convívio com a família. Ocorre que, não obstante essa percepção, a pesquisa também
evidenciou que, apesar da insatisfação pela supressão do tempo de convívio ou dedicação
familiar, a realidade fática do dia a dia era margeada pelo afã de se chegar ao topo da carreira
93
ou manter-se nela, bem como o próprio status inerente da atividade laboral. Nesse emaranhado
de obrigações ou desejos, ainda aparecia a necessidade de também apresentar boas relações
sociais e uma edificada estrutura de família: Vê-se que as tensões, o aumento das responsabilidades e a sobrecarga de trabalho interferem diretamente no convívio familiar. A ausência do executivo no cotidiano familiar resulta em sentimento de culpa. Ainda que se afirmem insatisfeitos em relação a falta de tempo para se dedicar a família, concluem que pouco podem alterar nessa situação, uma vez que a conquista do sucesso e do status os mantém reféns da carreira. Os executivos relataram também a luta para atingir o perfil requerido, o qual supõe estar bem também fora do trabalho, o que inclui ter uma família estruturada, apresentar-se de modo elegante e manter e estender suas relações sociais (Oltramari & Grisci, 2014, p. 24). Os dilemas ultrapassam o trabalhador e se margeiam na família. Esta fica igualmente
aderida ao contexto proporcionado pelo trabalhador, não sendo fácil uma negativa ao status ou
ao aporte financeiro que lhe é propiciado por aquele emprego. Esse contexto mascara uma
eventual percepção negativa entre a trabalhador e família, no que tange às relações profissionais
e pessoais. Sobre o assunto, Oltramari e Grisci (2014, p. 25) afirmam: Quando os executivos vivenciam dilemas relativos a carreira, são, essencialmente, segundo Mansano (2003), guiados a preencher expectativas sociais. Neste caso, são expectativas da empresa pelo seu crescimento e da família também. No caso da família, como diz Bauman (2007), e muito difícil para ela recusar o status e o recurso financeiro que uma promoção traz a todo o núcleo familiar. A consequência disso pode ser a não percepção de que seus atos podem repercutir mal nos relacionamentos pessoais e profissionais. Diante deste contexto apresentado por Oltramari e Grisci (2014), reflete-se novamente
sobre o sujeito trabalhador analisado nesta tese. Foram contratos de trabalho com durações
relativamente consideráveis, com jornadas acentuadas, com comprometimento dos direitos
trabalhistas de intervalos e férias durante todo o pacto laborativo. Leva-se, então, a refletir sobre
a ocorrência da percepção desse sujeito no curso do contrato de trabalho, no que se refere ao
furto das horas de convivência com os seus ou sobre a descontinuidade de um projeto de vida.
A realidade que se tem é que, não obstante essa percepção ou não, há o mascaramento, pelo
envolvimento da família em toda a gama do hiperfuncionamento desse trabalhador e do aporte
financeiro que ele proporciona ao lar.
Ampliando o referencial teórico e em digressão a essa temática, intercala-se a
compreensão de Linzmeyer (2014) no que se refere às carreiras contemporâneas e à relação
entre a responsabilidade pessoal e a trajetória profissional. Essa abordagem se dá sob o enfoque
da confirmação dos inúmeros desafios que o trabalhador contemporâneo enfrenta na busca por
um trabalho significativo.
94
As demandas de autonomia, iniciativa, responsabilidade e necessidade de conduzir o desenvolvimento profissional na direção imposta pelos impactos da competitividade, da tecnologização e da internacionalização impõem aos trabalhadores a necessidade de reestruturação da carreira a cada nova etapa com objetivo de aumentar a sua empregabilidade. A instabilidade, o medo da debilidade econômica e de não atingir o sucesso almejado ampliam a busca por novos modelos de desenvolvimento profissional e, a partir dos anos oitenta do século XX, a carreira tradicional com estruturas burocráticas hierarquizadas e relações de trabalho estáveis passa a dar espaço para as novas formas de trabalho, entre elas o trabalho temporário, o trabalho em tempo parcial, o trabalho voluntário, o trabalho eventual e o trabalho com duração programada para a realização de determinado projeto (Linzmeyer, 2014, p. 22). O trabalhador está, a todo momento, buscando se superar. Ele anseia harmonizar
trabalho e família, num dueto constante entre a realização pessoal e profissional. As demandas
colocadas diante do trabalhador contemporâneo são infindáveis. A busca por um trabalho
significativo também está presente nas pretensões do sujeito, que enfrenta inúmeros desafios
diante do mundo do trabalho. Nesse sentido, é interessante a colocação de Linzmeyer (2014)
sobre a desconsideração da subjetividade do trabalhador em detrimento dos desafios do trabalho
contemporâneo: Os desafios impostos pelo mundo do trabalho contemporâneo não apresentam uma equidade entre os deveres e direitos do trabalhador, as melhores oportunidades são dirigidas às pessoas com maior capacidade de adequação ao moderno modelo de produção e com habilidades de interagir com a nova realidade sem a preocupação de adequá-la à sua própria subjetividade. Neste novo contexto, as pessoas que não possuem determinados conhecimentos não conseguem fazer valer seus direitos pessoais, profissionais e sociais (Linzmeyer, 2014, p. 37). O sujeito que está inserido nesta pesquisa é um trabalhador que não precisa registrar sua
jornada de trabalho e, portanto, não faz jus à percepção de horas extras. Sua subordinação como
elemento fundamental da relação de emprego se adere ao cumprimento do objeto de seu
contrato de trabalho, não obstante o tempo que precise se dedicar a isso. Seu salário
diferenciado em relação aos demais colegas de trabalho se dá em virtude das responsabilidades
que tem dentro da dinâmica laboral e não está relacionado ao tempo de horas que trabalha ou
fica à disposição do empregador.
Nessa perspectiva de novas carreiras na Contemporaneidade, existe a denominada
carreira proteana, que apresenta alguns traços de adaptabilidade, versatilidade e dinamismo por
parte do trabalhador. O conceito, segundo Linzmeyer (2014, p. 48): A denominação carreira proteana surge a partir da figura mitológica do deus grego Proteus, que tinha o dom de mudar a forma de acordo com a sua vontade. É uma analogia à adaptabilidade, à versatilidade e ao dinamismo exigido neste modelo multiforme, cuja essência é o limite da atuação da organização sobre o desenvolvimento individual da carreira. Deve-se destacar que o sujeito desta pesquisa não está submisso ao controle formal de
jornada, mas a uma série de outros controles típicos da dinâmica laboral com cargo de gestão.
95
A própria migração de algumas atribuições que, a priori, eram típicas do empregador, agora
perpassam a pessoa do empregado. Existem empregados que exercem atribuições típicas do
empregador, como a organização, o controle e a disciplina. O atingimento de metas também é
uma forma simulada de controle a que se sujeitam os trabalhadores em outros cargos de gestão;
a responsabilidade de ter o controle de abrir ou fechar as portas da empresa, controle de
estocagem, de metas de outros funcionários, a responsabilidade por senhas de acesso eletrônico
a algumas informações da empresa, entre muitas outras tarefas. Observa-se que a palavra
controle está capilarizada na essência da dinâmica laboral desse empregado que, a priori,
navegaria com alguma autonomia. Na verdade, o que se vê é que a dita autonomia desse
trabalhador é revestida de acentuada responsabilidade e subordinação, coroando uma espécie
de confinamento ou controle.
Considera-se difícil desassociar o homem das plataformas de confinamento que ele vem
experimentando ao longo de sua existência. Deleuze (1992) indica Foucault para externar que
o sujeito vem migrando de um meio de confinamento a outro. Passou-se pela família, escola,
fábrica, hospital e a prisão. Esses meios de confinamento foram nomeados de sociedade
disciplinares, remontando ao início do século XIX. As sociedades disciplinares quedaram-se e
foram sucedidas pelas denominadas sociedades de controle: São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas (Deleuze, 1992, p. 219). Deleuze (1992) indica que os controles vêm com tônus de modelagem e adequação
instantâneos, não sendo enrijecidos como o confinamento. Nas sociedades disciplinares, havia
sempre um recomeço do zero, ao passo que, nas sociedades de controle, não se chega a um fim.
Nos controles, o que se tem é um estado metaestável, como aquilo que sempre recomeça, tem
lindes de progressividade e dispersão. Especificamente sobre a empresa, vale destacar este
trecho dos escritos do autor: Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle, a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida, a fábrica já conhecia o sistema de prêmios, mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente
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cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame (Deleuze, 1992, p. 22). Ainda refletindo sobre as alegações que constam dos processos de comprometimento de
algum projeto de vida desse hipertrabalhador, que expressamente não se opôs ao seu contrato
de trabalho em momento algum, baliza-se o exposto por Oltramari e Grisci (2014) para
evidenciar que os projetos de vida na sociedade líquido-moderna, experienciada por esses
trabalhadores, são margeados pela efemeridade da satisfação individual e dos projetos de vida: Na sociedade líquido-moderna, a satisfação individual tende a ser passageira; assim, permite que os projetos de vida sejam de curto prazo e independentes de outras pessoas, possibilitando mais mobilidade para o sujeito (Bauman, 2004). Dessa forma, abandonar compromissos e lealdades, mesmo com arrependimentos, favorece a prontidão para mudar de tática e de estilo, por necessidade, prioridade e/ou incentivo (Oltramari & Grisci, 2014, p. 25). Tanto o trabalhador como sua família estão inexoravelmente envolvidos no engenho
laboral. Muitas vezes, as famílias promovem renúncias, com mudanças de cidade, algum dos
entes familiares abdicam da carreira ou profissão para acompanhar o ente trabalhador. Toda a
entidade familiar acaba sendo levada a responder às demandas colocadas pelo contrato de
trabalho, diante da possibilidade do crescimento profissional daquele trabalhador. Logo, a
família, dentro dessa visão sistêmica de compartilhamento de demandas, das renúncias e das
ausências, igualmente se esforça para que seja exitosa a jornada laboral daquele sujeito.
Nos casos trazidos à reflexividade nesta tese, todos os contratos de trabalho foram
extintos por inciativa da empresa. Nos fatos analisados, do que consta dos autos, indica-se que
os trabalhadores/reclamantes desenvolviam sua jornada de trabalho com as características de
proatividade e hiperfuncionamento, como nos casos indicados na pesquisa de Oltramari e Grisci
(2014), respondendo à demanda empresarial de hipersolicitações. Entende-se que, igualmente
nesses casos, quando vem a demissão por ato involuntário do trabalhador, opera-se um grande
vazio: “Os trabalhadores não suportam o rótulo de excluídos, rejeitados, desempregados, e os
sintomas dessa dor estendem-se a família por sua resignação” (Oltramari & Grisci, 2014, pp.
26-27).
Na verificação desse vazio, este trabalhador então resolve procurar o Judiciário
Trabalhista para pedir uma reparação em dinheiro por ter hiperfuncionado ao longo de seu pacto
97
laboral, que teve como consequência o comprometimento de algum projeto de vida ou da vida
das relações que ele poderia ter experimentado com os seus. As subjetivações desse trabalhador
no desempenho do pacto laborativo atuaram em conglobamento e projetaram efeitos no modo
de vida desse trabalhador para além dos meandros da empresa, refletindo nas ocorrências
narradas nas causas de pedir dos processos trabalhistas.
Ao analisar o conglobamento de características da sociedade laboral hipermoderna,
alguns elementos ficam entrelaçados. Esse conglobamento se dá pela capilarização da gestão
gerencialista para além dos muros da empresa, infiltrando-se no viver do trabalhador. Sobre o
assunto, destaca-se a pesquisa de Tonon e Grisci (2015). Os autores salientaram a reflexão de
que a gestão gerencialista tem características de investimentos ideológicos sublimados e, com
isso, expandem-se para os outros seguimentos da vida daquele trabalhador, esticando as
indicações do gerencialismo para o próprio estilo de vida daquele trabalhador. A pesquisa trata
especificamente dos executivos (Tonon & Grisci, 2015).
A plasticidade da análise elevada na pesquisa acima recebe atenção desta tese, quando
se detecta que o trabalhador perpetuou, sem oposição expressa, o modo de cumprimento do seu
contrato de trabalho ao longo dos anos, bem como seus reflexos em sua cotidianidade. Em suma, a gestão gerencialista passa a mostrar suas características maquínicas ao congregar os mais diversos agenciamentos e ao naturalizar e modelar elementos baseados na racionalização e competitividade. A prescrição de padrões a serem seguidos, a utilização de indicadores de desempenho e, em especial, a competição exacerbada ultrapassam as barreiras das empresas e passam a agir diretamente na produção dos estilos de vida. Além disso, fatores como padrões de consumo, exacerbação da responsabilização do indivíduo e intensificação da gestão de si convocam ao engajamento acrítico (Tonon & Grisci, 2015, p. 23). A hipersolicitação é capilarizada como inerente ao curso do contato de trabalho. Muitas
vezes, o próprio trabalhador não pugna por uma diminuição de demandas, pleiteando alguma
mudança no modo de desenvolvimento do seu contrato de trabalho. Como colocado por Tonon
e Grisci (2015), o trabalhador fica tão envolvido pela gestão gerencialista no curso de seu
contrato que segue emanando um consentimento e aderência ao contrato de trabalho nos moldes
em que ele se desenvolve: Ao produzir um indivíduo que se vê seduzido pelo glamour, a gestão gerencialista apresenta sua faceta de máquina produtiva e de controle social, uma vez que os estilos que dela resultam são estilos de vida, não somente de uma parcela da vida. Tal recurso, de certo modo, instila características e sensações compensatórias que mascaram os sofrimentos ou mesmo os mecanismos de poder e dominação existentes em tais modos de gestão (Tonon & Grisci, 2015, p. 34).
98
Da digressão do referencial teórico apresentado extrai-se a dependência do trabalhador
ao seu contrato de trabalho por motivos variados, às vezes, emanando a ideia de consentimento,
subordinação e naturalidade ao chamado a hiperfuncionar. Nos altos cargos, fica premente que
o trabalhador também não quer ser demitido. O rompimento do contrato de trabalho sem que
isso emane de um ato voluntário do trabalhador promove as justificativas para que este
permaneça no hiperfuncionamento. O modo de cumprimento desses contratos de trabalho fica
impregnado no sujeito. Reverbera-se na sua aparência e conduta dentro ou fora do local de
trabalho. Trespassa o aspecto personalíssimo-individual do sujeito trabalhador, projetando em
sua família que, juntamente com ele, vê-se chamada ao hiperfuncionamento, quando
compartilha dessa experiência laboral com o trabalhador, bem como a dependência para com a
empresa que sustenta o padrão de vida da família.
99
6 METODOLOGIA: ANÁLISE DO DISCURSO NO PROCESSO TRABALHISTA E
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO RECLAMANTE
A pesquisa lançou como objetivo principal analisar a subjetivação dos trabalhadores,
com base em demandas judiciais trabalhistas com êxito no pedido de indenização por dano
existencial. Os objetivos específicos foram delineados em quatro. O primeiro foi analisar os
depoimentos das partes na audiência de instrução e julgamento, bem como as respectivas
sentenças e acórdãos dos referidos processos com pedidos de dano existencial deferidos. O
segundo procurou identificar os projetos de vida ou da vida das relações que foram invocados
como violados nos processos. A verificação da percepção dos juízes do Judiciário Trabalhista
acerca do processo de subjetivação do empregado em ações com pedido de dano existencial
figura como terceiro objetivo específico. O quarto foi caracterizar a casuística analisada com
base em elementos de semelhanças e de diferenças entre os casos judiciais analisados.
O procedimento metodológico empregou análise documental, pesquisa bibliografica e
entrevistas. A análise documental se atrelou à ata da audiência de instrução e julgamento dos
processos judiciais selecionados, suas respectivas sentenças e acórdãos. As entrevistas foram
realizadas entrevistas com magistrados do Judiciário Trabalhista que já proferiram decisões
abordando pedidos de dano existencial.
O sujeito analisado nesta tese é um sujeito em situação. O contexto em que esse sujeito
se encontra é de enquadramento com todos os protocolos e ritos da cena jurídica de uma
audiência de instrução e julgamento e do processo judicial. Nesse contexto, o sujeito se situa
limitado na aderência às fases do procedimento anteriores à audiência. Assim, em seu
depoimento, ele tem o dever de lealdade e boa-fé processual com a verdade e compatibilidade
com aquilo que consta da petição inicial, sob pena de a parte contrária ou do próprio juiz
invocarem as ocorrências entendidas como estranhas ou novas ao processo e, assim, refutá-las.
A fala do sujeito tem certo engessamento ou condicionamento no que se refere a repetir ou
evidenciar algo que já está no processo e que serve de subsídio eficaz para seu pedido de dano
existencial. O sujeito tem institucionalmente de falar segundo a ordem e permissão do
magistrado, limitando a responder o que foi perguntado pelo magistrado ou autorizado a ser
perguntado pelo magistrado, quando de seu depoimento pessoal.9 Nessa cena jurídica, há uma
9 Por óbvio que essa construção presidencialista e autoritária da postura do juiz na condução do procedimento e
do ato processual “audiência” e criticada, de forma veemente, por processualistas, principalmente aqueles oriundos da Escola Mineira de Processo, por exemplo Leal (2018) e Nunes (2008). Entretanto aprofundar a
100
ordem a ser seguida no que se refere ao momento da fala das partes e de suas testemunhas. No
caso das testemunhas, estas igualmente detêm o dever de lealdade e boa-fé no processo, sendo
advertidas pelo juiz, com base na lei processual, antes do início de seus depoimentos, que têm
o dever de falar a verdade e que o depoimento falso em juízo constitui crime de natureza penal.
Todo esse procedimento será detalhado na explanação constante sobre o trâmite de uma
audiência de instrução e julgamento no processo trabalhista.
A cena jurídica da audiência de instrução e julgamento é margeada por embates na busca
do êxito na pretensão de cada uma das partes. Nos casos analisados, o empregado/reclamante
quer o deferimento do pedido de dano existencial, e busca salientar sua pretensão no momento
de seu depoimento e, ao contrário, o empregador/reclamado, busca desconstituir a evidência
dessa pretensão à reparação.
A audiência tem o condão de produzir elementos de prova e, nesse contexto, esse é um
dos únicos momentos em que o reclamante e a reclamada têm para falar durante o rito. Então a
oportunidade de fazer valer a pretensão ao direito à reparação tem muita força no momento da
audiência, pois o juiz decide com base no conjunto probatório dos autos, e os depoimentos das
partes e das testemunhas têm valoração.
6.1 Os fatos do discurso percebidos como estratégicos e polêmicos: análise do discurso
para além da abordagem lexical
A análise do discurso vem como ferramenta metodológica, conforme a perspectiva que
o pesquisador tem diante da natureza de sua investigação. O pesquisador pode abordá-la de
formas diversas, de acordo com a visão de cada projeto. Essa ferramenta metodológica
corrobora o uso da diversidade de referenciais teóricos e metodológicos que socorrem os
pesquisadores no viés interdisciplinar, como instrumento de acentuada utilidade diante das
propostas investigativas sugeridas. Segundo Fairclough (2001), “A análise do discurso deve ser
idealmente um empreendimento interdisciplinar”. Esse autor argumenta: Tal afirmação decorre da concepção de discurso que eu venho defendendo, a qual envolve um interesse nas propriedades dos textos, na produção, na distribuição e nos consumos dos textos
discussão na Teoria do Processo não é objeto desta tese. Retrata-se aqui a postura solipsista do juiz do Trabalho, oriunda da Teoria do Processo como relação jurídica que fundamentava o Código de Processo Civil de 1973. Essa teoria foi e é base da formação de muitos magistrados hodiernos, e ainda exerce influência decisiva no processo do trabalho atualmente. Importante ressaltar que, no caso das partes, sujeitos processuais que devem construir participadamente a decisão final, assistidas por advogados mais conscientes de seu papel processual, seria perfeitamente possível a interveniência “pela ordem”, mas não é a regra na realidade do cotidiano forense trabalhista.
101
nos processos sociocognitivos de produção e interpretação dos textos, na prática social em várias instituições, no relacionamento da prática social com as relações de poder e nos projetos hegemônicos no nível social. Essas facetas do discurso coincidem com os interesses de várias ciências sociais e humanistas, incluindo a linguística, a psicologia e a psicologia social, a sociologia e a ciência política (Fairclough, 2001, p. 276). Como seara interdisciplinar com meandros variados, a análise do discurso trafega com
desenvoltura e conforto entre áreas do conhecimento com pontos de tangência, possibilitando
seu uso com propriedade na ciência jurídica, em virtude do emprego da linguagem na busca da
realização do direito pretendido. Nesse sentido, a utilização da análise do discurso e sua
inserção no mundo jurídico da audiência de instrução e julgamento, e seus depoimentos
pessoais como corpus da pesquisa se prestam a auxiliar na busca dos resultados (Lisowski,
2009).
Nesta tese, a análise do discurso é aplicada originalmente dentro da cena jurídica de
uma audiência de instrução e julgamento do Judiciário Trabalhista, em ações judiciais
denominadas “reclamatórias trabalhistas”. Nessas ações, foram elaborados, além de outros, os
pedidos de indenização por dano existencial. Para esta pesquisa, foram analisados apenas os
pedidos de indenização por dano existencial, dentro do objetivo proposto. Assim, a análise do
discurso segue a direção de articular a enunciação do discurso com certo lugar social,
trabalhando os gêneros do discurso em setor específico do campo discursivo, qual seja, a cena
jurídica, considerada como meio ambiente material e institucional do discurso. O trabalho não
se limita à análise do teor das falas, mas também aos procedimentos metodológicos de
desestruturação dos textos jurídicos. O estudo considera ainda as condições de produção para
além do lugar, dando relevo às representações imaginárias que os sujeitos do processo judicial
fazem de sua própria identidade e de seus discursos na chamada audiência de instrução e
julgamento. Sobre a audiência de instrução e julgamento discorrer-se-á mais adiante.
O uso da metodologia análise do discurso tem característica de especificidade, pois gera
dependência entre a prática discursiva particular e a prática social na qual está inserida. Logo,
para o uso desse método, acredita-se que, a priori, devem-se definir as questões sobre formas
particulares da prática social e suas relações com a estrutura social, para, a posteriori, aplicar
com propriedade a opção pela condução da pesquisa com método de análise do discurso.
No método de análise do discurso, ratifica-se a necessidade de se levar em consideração
a perspectiva do pesquisador, inclusive para a seleção dos dados, na construção do chamado
corpus de análise do discurso e na deliberação por dados suplementares que podem ser usados.
De modo geral, na prática discursiva, com base nas informações e conhecimentos prévios sobre
o arquivo, viabiliza-se a tomada de decisões sobre o teor e estrutura do corpus. Esse
102
conhecimento apriorístico facilita a prática da aplicação do método de análise do discurso, na
seleção do que é de fato útil, como se chegar a essa utilidade, auxilia ainda no modelo mental
da ordem do discurso na instituição, no domínio do que se está pesquisando, na evolução dos
processos de mudança como preliminares deliberativas de coleta das amostras de um corpus
(Fairclough, 2001).
Corroborando o exposto e no contexto de se levar em consideração a perspectiva do
pesquisador, na eleição da análise do discurso como ferramenta metodológica, faz-se adequado
destacar a condição da pesquisadora como advogada, operadora do Direito e especialista em
Direito do Trabalho. Nessa senda, existe um conforto de tráfego no corpus da pesquisa,
considerando a atuação no Judiciário Trabalhista, o desenvolvimento das audiências
trabalhistas, justificando a seletividade na aplicação da análise do discurso, e uma maior
expectativa da efetividade de aplicação desse método.
Permanecendo no amparo teórico de Foucault (2002), em sua obra A verdade e as
formas jurídicas, agrega-se ao trabalho a metodologia de análise do discurso, uma vez que o
autor coloca o discurso para além do aspecto puramente linguístico, ampliando-o para ser
percebido como um jogo estratégico e polêmico. A relação empregada com esta pesquisa reside
no fato das práticas judiciárias como campo para a aplicação da hipótese de uma análise
estratégica do discurso, em um contexto real de processos históricos e importantes; o discurso
como prática e estratégia no interior das práticas sociais.
A dimensão de discurso sensibilizada nesta tese indica a imprescindibilidade de
definição dos sujeitos e do lugar que estes estão ocupando no momento de suas atuações no
processo trabalhista, abordando as condições de produção dos discursos. Para perquirir sobre a
subjetividade, adotaram-se os depoimentos pessoais do reclamante e demais explanações nos
autos do processo, evidenciados tanto nas atas das audiências de instrução e julgamento como
nas sentenças e acórdãos. Nesse mister, divide-se o referencial teórico entre Foucault (2002) e
Charaudeau (2006), considerando as intercessões propostas por ambos a respeito da
subjetividade e análise do discurso.
A relação entre a dimensão social e as condições de produção do discurso são
reconhecidas por Charaudeau (2006) como condição indispensável para compreensão do
fenômeno da significação dos enunciados do sujeito. O discurso infere-se numa prática social
com a atuação de sujeitos que vão se relacionar dentro do processo de comunicação situados
em um contexto social.
Como regra geral no processo do trabalho, a prova das alegações incumbe à parte que
as fizer. No processo, o autor/reclamante deve fazer prova dos fatos que constituem seu direito.
103
A reclamada tem ônus da prova no que se refere à existência de fato impeditivo, modificativo
ou extintivo do direito do reclamante. Assim, quando um reclamante postula em juízo, ele deve
ter meios de provar o alegado dentro do processo. A fase de consideração das provas se refere
à instrução do processo. As provas ordinariamente devem ser juntadas no processo, na
oportunidade indicada em lei. No caso do reclamante, o autor da ação trabalhista, os meios de
prova pelos quais ele pretende provar suas alegações com o objetivo de alcançar procedência
no seu pedido podem vir discriminados na petição inicial e invocados no momento da audiência
de instrução. Dessa forma, o reclamante descreve com quais meios de prova pretende
demonstrar seu direito. No processo, cabem todos os meios de provas admitidos em direito e
obtidas licitamente. Desse modo, são provas no processo do trabalho o depoimento pessoal,
prova testemunhal, prova documental, perícias e inspeções judiciais. Este estudo aborda
especificamente as espécies de prova depoimento pessoal e provas testemunhais obtidas na
audiência de instrução de processos trabalhistas.
Tratando-se desse contexto, de atuações no Judiciário, vários elementos peculiares
evidenciam a estruturação do discurso, como a organização do processo judicial em si, a
estrutura espacial da sala de audiências e o estereótipo dos envolvidos no espaço de
comunicação do Judiciário. Nesse sentido, vale fazer uma digressão na compreensão de
Charaudeau (2006) quanto aos atos comunicativos.
Charaudeau (2006) entende que é presumidamente celebrado um contrato de
comunicação entre as partes, com conhecimento e aceitação das regras de regência desse
processo de comunicação. Essas regras de regência sobre as quais os sujeitos atuantes têm
ciência compreendem o espaço discursivo. Quanto às partes, é necessário o reconhecimento
mútuo da condição de interlocutores. Os sujeitos contratantes seriam os interlocutores desse
intercâmbio. No âmbito desta pesquisa, o espaço discursivo, por limitar-se ao processo judicial,
infere legitimidade de fala a sujeitos específicos e autorizados para tanto. O espaço discursivo
refere-se ao processo judicial trabalhista no momento da audiência de instrução e julgamento.
As demais fases e atuações das partes do processo judicial permanecem obrigatoriamente
interligadas, uma vez que existem uma aderência e uma limitação ao que vai ser discutido
dentro do processo. Indicam-se os pedidos na petição inicial com a argumentação dos direitos
do sujeito/empregado, e a reclamada/empregador apresenta, em resposta, sua peça de defesa,
denominada tecnicamente “contestação”. A análise do processo de subjetivação no curso do
processo judicial observa determinado contexto com incidência histórica e social, como bem
observado por Boldrini e Spessimilli (2010, p. 364): “Além disso, como é produzido no seio da
104
sociedade, tal discurso não é descontextualizado, logo traz um reflexo histórico-social que
implica sempre uma normatividade organicamente inserida nos atos que a constituem”.
Ventila-se, desse modo, a compreensão de um processo de subjetivação do sujeito, no
bojo do discurso jurídico, que não é estático. Embora traduza expressões normativas, ele sempre
corrobora uma certa dinâmica na linguística e o sistema social em que se encontra.
Na ação trabalhista, há, em um polo, o sujeito trabalhador, como reclamante; e, no outro,
a empresa empregadora, como reclamada no processo. Ocupam, respectivamente, o espaço de
polo ativo e passivo da demanda. Cada uma dessas partes é representada por advogados que,
segundo Charaudeau (2006), são sujeitos comunicantes e interpretantes. Ultrapassada a
presumida celebração do contrato de comunicação, demanda-se um reconhecimento mútuo do
papel de interlocutores. Os sujeitos legitimados no processo vão exprimir suas falas vinculados
a uma intencionalidade.
Os momentos de fala no processo judicial seguem limitações indicadas pela própria
legislação trabalhista e são conduzidos pelo juiz do Trabalho responsável pelo caso. O processo
judicial trabalhista, ainda que pautado em certa informalidade quando comparado a outros
ramos do Direito, permanece observando os protocolos da seara jurídica, com fito de
manutenção da regularidade e legitimação no desenvolvimento da audiência e de todo o
processo.
Nessa senda, esclarece-se que o processo judicial se estrutura na representação
processual das partes por si e por seus advogados legalmente habilitados na demanda judicial.
A integração do espaço discursivo no processo judicial é condicionada a uma legitimidade
declarada.
O contexto de análise refere-se a um circuito delimitado, com instruções de conduta e
comportamento, como momentos e ordem para fala. Essas modulações são, inclusive, indicadas
por dispositivo de lei no qual consta expressamente de que, regra geral, no processo do trabalho,
somente o juiz se dirige às testemunhas e às partes para perguntar na audiência.10 O artigo 820
da CLT estabelece que “As partes e testemunhas serão inquiridas pelo juiz ou presidente,
podendo ser reinquiridas por seu intermédio a requerimento dos Juízes classistas das partes seus
representantes ou advogado”. Isso implica dizer que as partes, advogados ou testemunhas não
10 Ainda se emprega o sistema presidencialista nas audiências no processo do trabalho, ao contrário do modelo do
direct and cross examination, usado em alguns ramos do Direito, quando as partes podem diretamente formular as perguntas para as testemunhas.
105
falam diretamente entre si, mas sim mediante o magistrado, que conduz a audiência.11 Além da
organização pragmática da audiência, o enquadramento do processo judicial indica a
necessidade de aderência ao que já consta das demais manifestações do processo, como a
petição inicial e a contestação. No caso do autor da ação, o reclamante, a peça de ingresso da
qual constam a narrativa fática e a fundamentação jurídica do que aconteceu é a petição inicial
e, no caso da empresa, como ré/reclamada no processo, a aderência inicial refere-se à
contestação.
Charaudeau (2006) emite uma explicação relevante para o contexto dos discursos
jurídicos, explicitando que, na construção do discurso de argumentação, o advogado se vale de
recursos e técnicas atreladas a situações que levam em consideração o contexto social dessa
produção discursiva. Ocorre uma migração no momento da produção discursiva entre os
sujeitos comunicantes e interpretantes, bem como acusação e defesa, com persuasão e
convencimento. Nesse contexto, fala-se em uma espécie de encenação para subsidiar a atuação
do sujeito no processo, como acenado por Pereira (2005, p. 36): A instância jurídica é um espaço de prática social que regula e condiciona a produção de discursos, no sentido de que o domínio jurídico orienta a natureza dos discursos suscetíveis de serem produzidos no espaço do judiciário determinando também os roteiros e os papéis a serem representados pelos atores envolvidos na comunicação judiciária. A própria estruturação dos discursos de reinvindicação de direito e dos processos que oficializam essas reivindicações delimitam a produção discursiva desse campo assim como de qualquer outro. O processo judicial é um espaço de pretensões resistidas, que deve se desenvolver atento
aos direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, pelo qual cada parte imprime sua
verdade como única, com argumentos para vê-la como acatada, no anseio de gerar o êxito na
demanda judicial ao fim do procedimento. Pela argumentação jurídica no enfrentamento de
óbices antepostos, as partes compõem o contexto da cena jurídica, a qual importa um
ordenamento discursivo, dialético e espacial. O ambiente do Judiciário, caracterizado pela
tentativa de resolução de controvérsias, vem apresentado em Pereira (2005, p. 39): Conforme já dissemos anteriormente, o discurso jurídico é um importante espaço para análise das representações, uma vez que se constitui num campo de resolução de controvérsias, terreno propício para observação da relação entre o linguístico e o social por meio do estudo da argumentação. Nessa senda, pode-se afirmar que o discurso jurídico se compreende numa grande
encenação com todos os elementos de um espetáculo. Destaca-se que a palavra encenação não
11 O sistema presidencialista, para as teorias contemporâneas de processo, por si só, revela-se passível de críticas,
conforme já explanado em nota anterior.
106
exprime aqui a ideia de simulações ou máscaras, mas sim a ideia da imprescindibilidade de
adequação quando os sujeitos se deparam inseridos em certos contextos ou situações, como
acentuado por Boldrini e Spessimilli (2010, p. 362): Todos nós encenamos algo. Isso não quer dizer que somos mascarados! Mas que nos adequamos às necessidades de representação que os ambientes profissionais, sociais, afetivos, religiosos, entre outros, nos impõe. Partindo desse pressuposto, escolheu-se estudar justamente a versatilidade que temos de criar personagens para, dessa forma, nos adaptarmos às diferentes situações que ocorrem no dia a dia. Ad instar de como ocorre com os partes e advogados quando entram em uma sala de
audiências de um processo judicial para atuarem pessoal e profissionalmente e são tomadas
pela consciência de que precisam acomodar certa atenção e condicionamento a um desempenho
obrigatório dentro daquele espaço físico e social. Um artigo publicado na VI Jornada de Estudos
Linguísticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2010, tratou do tema, analisando
A aplicação do ethos discursivo no cenário jurídico trabalhista. Desse trabalho podem-se
extrair as explanações sobre o grande teatro que se compõe a audiência: Dessa forma, percebe-se que a comparação da audiência trabalhista com uma peça teatral é coerente: esse processo de encenação é a representação de algo que se quer transmitir, e depende da interpretação do outro para ser compreendido, é uma versão de quem fala e de quem vê. Isso se concretiza na medida em que a comunicação jurídica está pautada em um processo de comunicação próprio dos personagens da cena, em que o comunicador cria um personagem com características adequadas ao convencimento dos demais interpretantes, tendo como objetivo persuadi-los do que quer mostrar. Mas há que se ter cuidado com o fato de não se perder em meio aos personagens criados, de forma que fique bem claro que cada situação merece um personagem específico, e por isso as características reais da pessoa não deveriam se misturar com as fictícias. Tais apresentações dos personagens se constituem na manifestação do ethos dentro do discurso jurídico (Boldrini & Spessimilli, 2010, p. 372). Não passa ao largo a similitude de um processo judicial com uma grande peça de teatro.
Em ambos os casos, há um momento primevo de elaboração, configurado pela escrita e, em
seguida, uma aderência ao que é colocado como fala oral dentro do contexto na cena jurídica
da audiência de instrução e julgamento. Enquanto, na peça de teatro, existe o roteiro, no
processo judicial, existem as petições, compreendidas por todas as manifestações por escrito do
processo. Segue-se com os elementos de congruência agora falando dos espaços físicos.
Relaciona-se o grande palco onde todos os atores atuarão com a ação trabalhista em espécie. A
cena principal desse teatro relacionar-se-ia com a audiência de instrução. Importa o auge da
grande peça, no qual os atores têm a oportunidade de conquistar a plateia com sua atuação. No
caso do processo, a audiência é um exclusivo momento em que as partes podem expressar
oralmente sua atuação na busca de comprovar o que foi anteriormente alegado por escrito ao
longo do processo. A audiência de instrução é um momento da produção de muitas provas, e o
107
juiz se baseia, com muita dedicação, na valoração das provas dos autos. Observa-se que, tanto
no teatro como no processo, os atores e as partes devem manter uma acomodação ao que consta
dos roteiros e petições previamente estabelecidos.
O processo judicial conta com vários interlocutores envolvidos no deslinde da questão,
tendo cada qual atribuições específicas. Há o juiz condutor da audiência, sujeito que vai
deliberar sobre o resultado, dando a sentença; o sujeito reclamante, autor da demanda
trabalhista, representado por seu advogado; e a parte empregadora, figurando como reclamada,
igualmente representada por seu advogado. Posicionam-se como sujeitos do processo de
comunicação, grande palco ocupado pelos personagens do discurso. Os enunciados são sempre
direcionados a alguém, expressando um duo entre o eu e o tu. Um processo de produção e de
interpretação no ato da linguagem, como sinalizado por Boldrini e Spessimilli (2010).
O processo de comunicação é o palco em que surgem os personagens do discurso,
porquanto, sempre que alguém enuncia, não o faz para si mesmo, mas para o outro. Isso é tão
real que, mesmo quando se fala consigo, reporta-se a um “eu” interno que dialoga com o “eu”
externo. Além dessa dualidade “eu-tu”, o “eu” manifestado no texto nunca é transparente:
mesmo quando assume deliberadamente o discurso, usa uma ou mais “máscaras”. Isso ocorre
devido à natureza humana, racional e social, nunca dizendo tudo o que gostaria. O ser humano
sempre se vê limitado pelas circunstâncias sociais, pela necessidade de manter um padrão de
convívio no mínimo razoável para com aqueles que estão a seu redor. Nesse processo, em
princípio dual, a relação de produção e de interpretação dentro do ato de linguagem, segundo
Charaudeau (2006, p. 17), está relacionada à percepção que os parceiros têm um do outro e ao
reconhecimento do direito à fala. Desse modo, e importante que “possuam em comum um
mínimo de saberes postos em jogo no ato de troca linguageira” (Boldrini & Spessimilli, 2010,
p. 365).
Percebe-se uma interseção entre o processo judicial e o de comunicação. Estes
evidenciam-se como palco de manifestações e posicionamentos contingenciados pela história
e intencionalidade de cada sujeito presente. O sujeito presente na audiência de instrução é de
fato alguém historicamente contingenciado. Ocorre que, ainda assim, esse sujeito, ao produzir
um discurso, sabe que ele tem um destinatário e que é necessário convencê-lo de suas
argumentações. Tecidas as congruências entre a peça teatral e o contexto de construção do
discurso jurídico, cabe ater-se detidamente ao trâmite das audiências de instrução e julgamento
nos processos trabalhistas.
108
6.1.1 Descrição do trâmite da audiência de instrução trabalhista e a ata de audiência
No espectro de esclarecimento e contextualização desta tese, torna-se de bom alvitre
reforçar que, em novembro de 2017, teve início a vigência da Lei nº 13.467/2017, a denominada
“reforma trabalhista”. Recentes e consideráveis alterações permitem um movimento dentro do
processo diferente do ocorrido nos autos analisados, sem, contudo, gerarem alterações
relevantes no contexto de aplicação da análise do discurso empenhados neste trabalho. Como
informação, ressalta-se que os processos investigados nesta tese tramitaram sob a vigência da
legislação anterior à reforma trabalhista, cujos contratos de trabalho começaram e findaram-se
ainda sob a vigência das alterações impingidas pela Lei nº 13.467/2017.
No geral, o trâmite da audiência de instrução e julgamento permanece o mesmo após a
reforma trabalhista, existindo, portanto, alterações com desdobramento na prática do processo
judicial eletrônico. A reforma trabalhista permitiu expressamente, ou seja, por um dispositivo
de lei, que o juiz, de forma fundamentada, aplique a distribuição dinâmica do ônus da prova,
conferindo-o diversamente para as partes, bem como a possibilidade de alteração da ordem de
produção dos meios de provas no processo.
O juiz, no curso processo trabalhista, designa a audiência chamada de instrução e
julgamento. Dentro desta é que ocorrem os depoimentos das partes, tanto do reclamante quanto
da reclamada e das testemunhas de ambas. É onde se colhem as provas orais e alguns elementos
que compõe a convicção do magistrado no momento da decisão, uma vez que a decisão se
baseia no conjunto probatório dos autos, além dos outros fundamentos utilizados pelo
magistrado. Nessa audiência, há a oportunidade de fala do reclamante, autor da ação, na
intenção de subsidiar todas as afirmativas feitas na petição inicial do processo trabalhista. Nesse
momento, ele tem a chance de comprovar e narrar as situações fáticas que, sob seu ponto de
vista e com base no direito material existente, podem lhe dar ganho de causa. Desse modo, a
parte precisa se manter aderente ao que foi elencado na parte escrita da petição inicial, sob pena
de trazer situações ou narrativas não constantes dos autos do processo. Esse contexto aborda a
estabilidade da lide.
Seguindo o padrão dos processos anteriores à reforma trabalhista, as partes são
chamadas a entrarem na sala de audiência. Em termos jurídicos, essa providência se chama
“apregoar as partes”. Um serventuário da Justiça anuncia o número da Vara do Trabalho, o
número do processo e o horário da audiência, bem como o nome das partes, reclamante e
reclamada. Ao entrarem na sala de audiência, as partes são qualificadas, tanto reclamante
quanto a reclamada, e entregam seus documentos, bem como os de seus procuradores, para
109
registro na respectiva ata. Por determinação da lei processual, antes de iniciar a produção das
provas orais, o magistrado tem o dever de questionar as partes se existe a possibilidade de
conciliação entre elas. No caso de ser infrutífera a tentativa de acordo, passa-se então ao
depoimento das partes e à oitiva das testemunhas, primeiramente ouvido o reclamante. Na
maior parte dos casos, o juiz ouve o reclamante e questiona ao advogado da reclamada se este
quer ouvir o reclamante. As perguntas são direcionadas ao juiz que, se as autorizar, as repete
ao reclamante. O reclamante fala e o escrevente digita a fala do reclamante, que é ditada pelo
juiz. Na verdade, o que fica descrito na ata é a fala do juiz, com base no depoimento do
reclamante. O mesmo procedimento é adotado no caso do depoimento do preposto da
reclamada. O preposto é a pessoa que, no momento da audiência, representa a
empresa/empregador que tenha conhecimento dos fatos. No que tange aos depoimentos das
partes, na maioria das vezes, o juiz reproduz com fidedignidade o que foi dito por elas. Como
já explicitado, caso as partes entendam que, ao fazer a transcrição, algo foi diferente do que
aquilo que foi dito, os procuradores das partes depoentes podem pedir, pela ordem, que o juiz
faça a adequação dos termos.
Como regra geral, e ressalvada a possibilidade da distribuição dinâmica do ônus da
prova e de alteração da ordem de produção dos meios de provas, o depoimento das testemunhas
ocorre na sequência do depoimento das partes. Primeiramente são ouvidas as testemunhas do
empregado/reclamante e depois as do empregador/reclamada. Nos casos analisados, o número
máximo permitido de testemunhas para cada parte foi de três. As testemunhas são qualificadas,
apresentam seus documentos de identidade e são juramentadas antes do depoimento, bem como
advertidas da conduta de que mentir em juízo constitui crime penal, além de configurar má-fé
e deslealdade processual. O juiz pode fazer perguntas para as testemunhas bem como os
advogados tanto da reclamada como da reclamante. Essas perguntas dos advogados para as
testemunhas são feitas direcionadas para o juiz, que as avalia e, se concordar, repassa as
perguntas para as testemunhas.12
Essa é a fase de instrução que, após ouvidas as testemunhas, indica apenas a
determinação das próximas providências. Nesse momento, mais uma vez, por determinação
legal, o juiz deve questionar as partes acerca da possibilidade da realização de acordo. No caso
de ser infrutífero o acordo, o juiz determina sua consignação em ata, indica as considerações
12 Importante ressaltar que, mantendo aderência aos objetivos propostos pela pesquisa, inerentes à área das
Ciências Humanas, cumpre esclarecer que a discussão sobre a adequação constitucional ou não da processualística do modelo aplicado à audiência de instrução e julgamento quanto à postura do juiz, presidencialista ou direct and cross examination, não é objeto deste trabalho. Isso porque a análise para investigação sobre a teoria do discurso deve partir de uma premissa ontológica e não deontológica.
110
finais e, na maioria dos casos, faz designação da data em que a sentença será proferida. Por
derradeiro, a ata é impressa, e as partes, com seus procuradores, fazem a leitura do documento
e o assinam. Vale destacar que esse foi o procedimento adotado nos casos em estudo desta
pesquisa. Registre-se que, atualmente, cem por cento do Judiciário Trabalhista brasileiro
adotam o sistema “PJ-e” (processo judicial eletrônico), não usando papel impresso. As partes,
o juiz e os serventuários da Justiça se valem do certificado digital para fazerem constar da
assinatura digital eletrônica em suas atuações no processo.
Como já explicitado, a manifestação falada das partes é condicionada à orientação de
permissão do juiz, que é o condutor da voz das partes na audiência. Já destacado em linhas
acima, deve ser mantida uma aderência entre o que as partes, testemunhas e advogados dizem
no momento de seus depoimentos e manifestações com aquilo que é ditado pelo juiz para a
escrevente fazer constar da ata da audiência.13 Esse modus operandi em relação aos
depoimentos na audiência trabalhista denomina-se “sistema presidencialista”. Este subsiste
sendo aplicado no processo do trabalho para a condução da audiência, com respeito ao disposto
na CLT, no artigo 820. Como já explanado anteriormente, nesse sistema, as partes e
testemunhas são inquiridas pelo juiz, podendo ser reinquiridas por seu intermédio, a pedido das
partes ou seus advogados.
O contexto da audiência de instrução e julgamento, materializada na ata de audiência,
tem uma aderência extremamente considerável na aplicação da metodologia de análise do
discurso, sobretudo para o estudo de processos de subjetivação. Trata-se de um contexto
discursivo e espacial, com presença, ainda que subliminar, de hierarquia, estigmatizada na
pessoa do juiz e da própria formalidade do ambiente forense.
Nesse mister, cumpre aqui ressaltar um ponto crítico, posto que o Judiciário Trabalhista,
não obstante sua aderência ao PJ-e, ainda não encontra indicação na Consolidação das Leis
Trabalho para que se promova, nas audiências, o registro audiovisual dos depoimentos de partes
e testemunhas. Entende-se que tal ferramenta potencializaria a fidedignidade de todo o ocorrido
em uma audiência de instrução, uma vez que o registro audiovisual das audiências imprimiria
maior eficácia na aplicação da metodologia de análise do discurso, ainda que se adotando o
sistema presidencialista.
111
6.2 O corpus jurídico e os seletores da jurisprudência: a necessidade de optar pela
indução analítica como estratégia de pesquisa
Para perquirir sobre esse processo de subjetivação, empregaram-se a análise documental
, pesquisa bibliográfica e entrevistas. A análise documental se atrelou à ata da audiência de
instrução e julgamento dos processos selecionados e das respectivas sentenças e acórdãos, na
busca por elementos que poderiam corroborar na construção social desse reclamante dentro do
processo judicial trabalhista. A esses elementos deliberou-se denominar pontos de interesse, no
contexto da figura jurídica do dano existencial e a subjetivação do reclamante.
A ata da audiência de instrução e julgamento projetada pela cena jurídica de uma
audiência desse tipo é o corpus específico escolhido para emprego da metodologia de análise
do discurso. Decorre de material jurídico selecionado após a análise na jurisprudência
justrabalhista sobre dano existencial. A coleta dessas jurisprudências se deu por buscas nos
sítios de Tribunais Regionais do Trabalho de todo o Brasil e do Tribunal Superior do Trabalho,
com o descritor “dano existencial”. Nesse contexto, foram evidenciadas centenas de decisões.
Após uma primeva busca, foram selecionados os acórdãos que deferiram o pedido de dano
existencial. Na sequência, houve a leitura dos acórdãos para seleção de decisões em processos
cujos reclamantes/empregados tinham alguma ingerência no controle do tempo de trabalho, ou
seja, a subordinação nesses casos, de certa forma, foi mitigada, e a organização, controle e
disciplina como atribuições típicas do empregador se mesclavam com o poder da gestão do
tempo no desempenho do pacto laborativo pelo empregado. Esse caráter foi fundamental na
seleção, diante da realidade das novas formas de organização do trabalho pelas quais o
trabalhador ganha oportunidade de atuar com mais liberalidade e responsabilidade na gestão de
seu tempo de trabalho e no modo de execução do pacto laborativo. Não importam a esta tese os
contratos típicos de trabalho, com controle-padrão de jornada, posto que neles a margem de
subjetivação e autogestão do trabalhador é menor. Nesse sentido, confirma-se o viés qualitativo
da pesquisa e não quantitativo.
Ainda no procedimento de seleção, a leitura dos acórdãos se prestou a selecionar, para
permanência na pesquisa, os casos que empregam o entendimento no sentido de que o dano
existencial, para ser deferido, deve ser evidenciado concretamente pela violação de projeto de
vida específico ou da vida das relações, excluindo-se os casos de deferimento com fincas apenas
no excesso de jornada pelo empregado, uma vez que este se tornou o entendimento prevalente
concomitantemente ao desenvolvimento desta tese.
112
Empregou-se o seletor referente aos casos em situação judicial de definitividade, no que
se refere ao pleito do dano existencial. Assim, são compreendidos como inalteráveis, ou seja,
para fins jurídicos, matérias sobre as quais ou não cabem mais recursos ou os recursos não
produzem alteração no mérito que analisa dano existencial. O emprego de todos esses seletores
direcionou a busca para os acórdãos de quatro Tribunais Regionais do Trabalho e do Tribunal
Superior do Trabalho. Foram selecionadas as decisões de lavra dos Tribunais Regionais do
Trabalho de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Pará e do Tribunal Superior
do Trabalho. Dentro desse estreitamento, perquiriu-se sobre os processos em que a audiência
de instrução e julgamento estava disponível para consulta nos sítios da internet, com a
ocorrência de depoimentos pessoais das partes e das testemunhas, bem como processos em que
as sentenças referenciavam, com mais propriedade, a causa de demandar constante do pedido
inicial de dano existencial.
6.2.1 A necessidade da indução analítica como estratégia de pesquisa para delimitar as
características essenciais do fenômeno do dano existencial
Em decorrência do estreitamento explanado acima e experimentado na busca da
jurisprudência, a pesquisadora integrou a necessidade de recorrer a uma estratégia de indução
analítica para o trabalho com os dados. Partiu-se de elementos fundamentais para buscar
explicar o fenômeno do dano existencial. Justifica-se essa escolha com base na ocorrência de
que, no desenvolver da pesquisa, o entendimento sobre concessões de dano existencial se
firmou no sentido de que a alegação do simples labor em excesso de jornada não seria suficiente
para ensejar reparação por dano existencial, mas sim a demonstração concreta do projeto de
vida ou da vida das relações invocado como lesionado. Para o desenvolvimento da investigação,
a pesquisadora precisou recorrer ao método de indução. Alguns casos anteriormente
selecionados passaram a ser considerados como negativos, pois deferiram o dano pelo simples
labor em extenuantes jornadas, sem, contudo, analisar a lesão concreta a algum projeto de vida
ou a vida das relações. Outro elemento que justificou a opção pelo método de indução analítica
foi o fato de que, também no desenvolver da pesquisa, o Judiciário Trabalhista foi totalmente
convertido em PJ-e, limitando a busca e acesso a alguns processos. Alguns processos que eram
físicos e foram transformados em eletrônicos podem ser consultados apenas pelas partes
cadastradas e seus respectivos advogados, ou advogados com cadastro no processo judicial
eletrônico da Justiça do Trabalho.
113
A indução analítica como modo de coleta e análise de dados objetiva destacar evidências
de elementos fundamentais de determinado fenômeno, gerando a dedução da explicação
universal. Nesse sentido, buscou-se delimitar as características fundamentais do dano
existencial, analisando profundamente um pequeno número de casos. Foram descritas suas
características, causas e sua interação para a produção de um resultado. O fim colimado com o
uso desse método se refere à capacidade de formular proposições que poderiam ser aplicadas a
todos os casos examinados, juntamente com a sugestão de uma explicação causal do problema
da pesquisa. Para aplicação desse método, ampara-se na referência de Deslauriers (2010).
Passa-se a um exame minucioso do fenômeno social que compreende o dano existencial,
no âmbito dos processos analisados. Nestes já existe o reconhecimento judicial de que aquele
trabalhador será indenizado por ter sofrido dano existencial. O que se busca então é categorizar
esse fenômeno e relacionar as categorias de hipótese. Sobre a compreensão da indução analítica,
Deslauriers (2010) se vale da explicação de Manning (1982):
Mas o que é a indução analítica? É, primeiramente, um procedimento lógico, que consiste em partir do concreto para chegar ao abstrato, delimitando as características essências de um fenômeno. Por este aspecto, ela se assemelha ao processo indutivo propriamente dito. No sentido estrito, indução analítica é um procedimento metodológico das ciências sociais. A indução analítica é um método de pesquisa sociológica, qualitativo e não experimental, que requer um estudo exaustivo de casos para chegar à formulação de explicações causais universais (Manning, 1982, citado por Deslauriers, 2010, p. 339). A indução analítica socorre aqueles que verificam a necessária adaptação do método ao
seu objeto e precisam flexibilizar o processo da pesquisa, sobretudo para as pesquisas que
examinam aspectos subjetivos de alguns processos. A indução analítica constitui-se em
procedimento muito eficaz, entendido inclusive como única solução ofertada a alguns
pesquisadores quando se trata de examinar de perto alguns processos, compreensões de
contextos sociais, captação do significado da linguagem dos integrantes de um grupo
(Deslauriers, 2010).
Há, nessa estratégia, um esforço para adaptação do método ao seu objeto, flexibilizando
o processo de pesquisa. Valendo-se desse proceder, explana-se sobre o método de coleta e
seleção das jurisprudências, usam-se os dados obtidos nos processos judiciais para o construto
analítico, percebe-se a presença dos casos negativos e sua reserva, para aqueles fatos que não
mais de compatibilizam com o atual entendimento, no Tribunal Superior do Trabalho, sobre
dano existencial. E, por derradeiro, ainda dentro dos padrões de análise da pesquisa qualitativa,
examinam-se as decisões, buscando flexibilizar o processo de pesquisa para um impulso no
êxito da compreensão do fenômeno social do dano existencial e a concretização do trabalho.
114
Diante desse mapeamento, inicialmente foram escolhidas quatro jurisprudências com as
características de seleção acima indicadas. Dentre os quatro processos escolhidos, um deles
mereceu destaque, visto que abordou, com muita concretude, a violação de projeto de vida
específico: o casamento. Ademais, subsidia a pesquisa com a oferta de muitos elementos que
contribuem para a análise da subjetivação do sujeito na cena jurídica. Justifica-se ainda seu
destaque, visto que em total consonância com o entendimento atual do Tribunal Superior do
Trabalho, no que se refere à comprovação do liame entre excesso de trabalho e ruptura de
projeto de vida específico. O referido processo, identificado como caso 1 (divórcio), tem
definitividade com relação à temática do dano existencial e, em que pese a realização de acordo
nas instâncias superiores, não ocorre alteração do exposto na audiência de instrução e
julgamento.
A pesquisa de jurisprudências nos sites dos tribunais é de livre consulta, e as decisões
são públicas, com acesso mediante o processo judicial eletrônico. Os processos que não podem
ser lidos ou vistos por pessoas alheias aos autos tramitam no que se chama de segredo de justiça,
situação que não ocorre com nenhum dos processos analisados. Nos casos de segredo de justiça,
somente as partes e seus procuradores podem ter acesso aos documentos constantes dos autos.
No que se refere aos processos analisados estarem disponíveis por simples buscas na internet,
por meio de consulta pública na jurisprudência dos tribunais, a opção nesta pesquisa foi pela
omissão dos nomes das partes e das testemunhas constantes dos processos analisados. Será feita
também a ocultação do número do processo, permanecendo apenas a referência ao Tribunal
Regional do Trabalho e da Vara do Trabalho que proferiu a decisão. Os processos são
caracterizados por “caso”, um número em sequência e o nome do projeto de vida ou da vida
das relações com dano reconhecido do processo: caso 1 (divórcio), caso 2 (nove anos sem
férias); caso 3 (desconexão); e caso 4 (catorze anos sem férias). Nesta investigação, tal
providência foi tomada por zelo e maior conforto da pesquisadora, tendo em vista a hipótese da
pesquisa que envolve os processos de subjetivação do sujeito.
Conforme as atas das audiências de instrução foram sendo analisadas, percebeu-se a
necessidade de acesso a subsídios suplementares. Assim, foram lidas e examinadas as
sentenças, uma vez que complementaram, de certo modo, a fala do sujeito no processo, quando
descreviam a causa de pedir remota referente ao pedido de dano existencial. A causa de pedir
remota refere-se à narrativa fática que consta da petição inicial do processo trabalhista, com a
descrição das ocorrências no curso do contrato de trabalho que deram ensejo, sob o ponto de
vista do empregado, à ocorrência do dano existencial, ou seja, compreendem-se como o
subsídio fático do pedido da reparação ao dano existencial.
115
Destaca-se que a pesquisa não tem ingerência na seara jurídica, não se fazendo análises
ou críticas de cunho jurídico material ou processual das decisões proferidas, mas sim o intuito
da análise dos processos de subjetivação do empregado que atua em contrato de trabalho com
subordinação mitigada sem, contudo, ser considerado um trabalhador autônomo.
6.3 A ampliação do corpus da pesquisa: entrevistas com juízes da Justiça do Trabalho
que já proferiram decisões em outros casos envolvendo pedidos referentes ao dano
existencial
A ampliação do corpus é possível nesta pesquisa com o uso de entrevistas, que, a priori,
tem a pretensão de estimular a interpretação dos dados e induzir a percepção de eventuais
investimentos ideológicos dos sujeitos. Para este trabalho, buscou-se entrevistar juízes de Varas
do Trabalho que já tenham proferido, ao longo de suas atuações como magistrados, decisões
em processos com pedidos de dano existencial por sobrecarga de trabalho e comprometimento
a projetos de vida ou a vida das relações. Os três juízes entrevistados não têm relação com os
processos analisados neste trabalho. Antes de iniciar a entrevista, foram expostos aos
entrevistados quais eram os objetivos geral e específicos desta pesquisa.
Os entrevistados tiveram ciência para a assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido, bem como as informações do parecer de aceitabilidade pelo Comitê de Ética para
realização da entrevista, com o número do certificado de apresentação para apreciação ética
(vide anexo).
Foi feita uma contextualização da pesquisa bem como o que se compreende pela
subjetividade levada a efeito nesta tese e sua aderência ao campo das Ciências Humanas. Após
essa explanação inicial, os magistrados passaram a responder um roteiro semiestruturado (vide
apêndice), o qual foi dividido por categorias: percepção dos juízes sobre a subjetivação do
trabalhador; análise dos requisitos avaliados pelos juízes ao julgarem pedidos de dano
existencial; relação entre a demissão e a frustração do projeto de vida ou vida da relação
indicados como violados pelo trabalhador. Os três magistrados do Judiciário Trabalhista
entrevistados foram identificados como entrevistados Alfa, Beta e Gama.
116
117
7 INTERPRETAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
Para a análise e discussão dos dados, buscou-se cotejar as entrevistas realizadas bem
como os casos selecionados com as disposições dos referenciais teóricos. Ao ampliar-se o
corpus da pesquisa com as entrevistas, o objetivo foi buscar um estímulo na interpretação dos
dados e uma indução na percepção de eventuais investimentos ideológicos dos sujeitos. A
conexão entre a análise dos dados coletados dos processos selecionados e as entrevistas com os
magistrados trabalhistas que já analisaram outros processos promove a reflexão acerca das
temáticas abordadas nesta tese e na literatura jurídica e da Psicologia.
7.1 Entrevistas realizadas
As entrevistas apresentaram-se como material fundamental e foram divididas em três
categorias:
a) categoria 1: percepção dos juízes sobre a subjetivação do trabalhador;
b) categoria 2: análise dos requisitos avaliados pelos juízes ao julgarem pedidos de dano
existencial;
c) categoria 3: possibilidade de percepção dos juízes sobre a relação entre a demissão e a
frustração do projeto de vida ou vida da relação indicados como violados pelo
trabalhador.
7.1.1 Categoria 1: percepção dos juízes sobre a subjetivação do trabalhador
Em geral, com relação à percepção dos magistrados sobre os aspectos subjetivos do
reclamante, todos os entrevistados afirmaram levar em consideração, no momento da audiência
de instrução e julgamento, aspectos subjetivos do sujeito reclamante. No mesmo sentido,
ponderaram que essa percepção não é suficiente para o deferimento do pedido de dano
existencial, explicitando que o trabalhador precisa fazer prova nos autos do projeto lesionado
ou da via da relação que foi comprometida. “Sim, eu levo em consideração os aspectos subjetivos daquele trabalhador ou trabalhadora, mas eu preciso que isso seja-me demandado, eu não faço isso de ofício. Eu preciso que a parte, o advogado principalmente, faça o requerimento ou que, durante o depoimento pessoal dele, ele me traga isso a tona pra eu poder analisar” (Beta).
118
“Primeiro eu preciso te dizer que, mesmo a gente sabendo que é muito subjetivo, que a gente tem o aspecto subjetivo do trabalhador, eu preciso de provas objetivas de que aquele dano aconteceu” (Beta).
“Então, nesse caso específico, quando alguém alega uma lesão dessa natureza, um dano existencial, é preciso, sim, examinar um contexto. Para entregar a prestação jurisdicional com justiça, você precisa analisar um contexto. Muitas vezes, esse contexto é facilmente perceptível, e percebido pelo juiz” (Alfa).
“Então eu levo, sim, em consideração toda essa situação, todo o subjetivismo. Absolutamente né? Eu vou até descrever um caso, dos casos que eu tive recentemente aqui, inicialmente em relação aos aspectos subjetivos do indivíduo. Existem situações que para um é mais grave e para outro é menos grave, né. Então eu acho que é subjetivo” (Gama). Na análise dessa subjetividade, foi interessante a colocação expressa de dois dos
magistrados no que se refere a considerar com cuidado o contexto da dinâmica laboral de cada
sujeito; o próprio ambiente onde é desenvolvido o trabalho e o tipo de trabalho desempenhado.
Nesse sentido, os magistrados Gama e Beta afirmam: “Então, por exemplo, acontece muito no ambiente de obras, de pedreiro. Muitos vêm aqui e reclamam: ‘Ah, porque o fulano me chamou de corno… ah, porque fulano falou isso pra mim’. Mas, nesse ambiente, é comum, entendeu? Então, assim, quando um empregado vem aqui dizer que ele reclama, mas ele chama o colega assim também, eles se tratam assim. Então você tem de levar em consideração o ambiente de trabalho também para decidir se aquilo é um fato que extrapola, ou se é comum. Porque é diferente de uma universidade, o como eles se tratam. Então, assim, eu levo em consideração esse subjetivismo inclusive do ambiente em que está inserido o trabalhador, se aquilo faz parte do ambiente, se é natural daquele ambiente” (Gama).
“Eu levo em consideração a vida que ele teve, o contexto familiar, o que…, o contexto dele como trabalhador dentro da empresa, as relações de trabalho dele, com quem ele convive, a família que ele veio, onde que ele cresceu, a cidade. Que nós temos peculiaridades aqui na Região Norte, que a gente tem que levar em consideração na hora de julgar. Tem as peculiaridades de cada local de trabalho. Eu não posso analisar um trabalhador que presta seu serviço em uma obra, por exemplo, um canteiro de obra, onde eles têm certas particularidades e certas regras de convivências sociais próprias com um trabalhador do distrito, que trabalha dentro de uma empresa coreana, que também tem outras regras de sociais. Então você tem de levar em consideração essas diferenças do local de trabalho em si, né? Na hora de analisar o aspecto subjetivo do trabalhador quanto do empregador e as regras sociais que a gente, com o tempo, a experiência, o tempo da magistratura, regras de experiência social do próprio magistrado, a gente vai aprendendo a diferenciar, ok?” (Beta). Percebe-se o esforço dos magistrados em trazer alguma circunscrição objetiva ao trato
com a subjetividade, seja o requerimento do advogado, seja alguma evidência objetiva do dado
ou a preocupação com o contexto do caso. Isto é, segundo dois entrevistados, a dimensão da
subjetividade não é central na tomada final de decisão judicial. O entrevistado Gama
inicialmente dá um acento maior à subjetividade. Contudo, ao explorar um exemplo, vê-se que
o subjetivo se refere fundamentalmente ao contexto do trabalho. Ou seja, os magistrados
buscam entender a subjetividade na situação laboral.
119
“Por exemplo, às vezes eu uso muito o exemplo do pregão da bolsa de valores. Ali é um absurdo aquele ambiente, é um estresse sem fim, mas é da atividade. Médico, né, numa cirurgia, é da atividade!” (Gama)
“Dentro do contexto daquele trabalho, do contexto daquele empregado. Então, assim, por mais que o aspecto subjetivo do trabalhador seja importante, eu preciso de que haja provas concretas da existência daquele dano fora do ambiente laboral para poder julgar, para poder, assim, dar provimento a esse pedido, ne” (Gama). Segundo Beta, como se viu na última citação, a experiência na magistratura e fora dela
são contextos de aprendizagem importantes para a formação do juiz, especialmente ao se
movimentar nas dimensões subjetivas das situações que julga.
Nesse sentido, o entrevistado Alfa destacou também levar em considerações
peculiaridades da região do País onde o trabalho é desempenhado bem como de onde o
trabalhador é originário. O entrevistado Alfa buscou evidenciar que, considerado o histórico de
vida de cada trabalhador, uma demanda por hiperfuncionamento poderia ou não comprometer
sua existência fenomênica. Há também uma percepção de que a subjetividade não é um
universal abstrato, mas tem aspectos culturais e mesmo regionais. Eis seu posicionamento: “E aí uma percepção minha, tá? Normalmente, as pessoas do Norte e Nordeste são mais família. Já as pessoas do Sul, do Sudeste e do Sul, principalmente as pessoas de São Paulo, os paulistas, eles são mais individualistas, eles conseguem conviver mais só e longe da família. É diferente do nortista e do nordestino, que é mais comunhão ali, está sempre ligado. Então a forma como se avalia esse dano nessas pessoas não é porque são de diferentes regiões, não. É porque a cultura delas é diferente, os valores que elas trazem são diferentes. E também esses elementos são diferentes na formação” (Alfa). Fica oportuno valer-se de algumas colocações dos magistrados para realçar a abordagem
do referencial teórico sobre a crítica da apropriação descuidada de institutos de direitos
estrangeiros colocada por (Brito, 2012). Como dito acima por Alfa, existe um contexto que
deve ser observado nos julgamentos para se aplicar algumas figuras jurídicas. A cultura do país
de onde a empresa é originária e o país onde ela se situa, bem como a região. Como destacado
no referencial teórico, existem culturas, valores, hábitos, costumes que devem ser considerados
antes de se apropriar de algumas ocorrências em outros países e transportá-las para o
ordenamento nacional. Não é dispensável levar em consideração o ambiente exato no qual se
pugna a afirmação de um direito. Emite-se outra fala de Alfa: “Vou dar um outro exemplo que eu tive, que está relacionado a isso. Quando a gente vai avaliar situações relacionadas a, por exemplo, assédio, porque pode acontecer de a pessoa ter uma depressão e daí uma frustação com o trabalho, em decorrência de um assédio, não apenas o assédio sexual, mas o assédio moral: Aquele chefe que exige muito, aquele chefe […] Aqui nós temos o distrito industrial, com muitos coreanos e aquele chefe coreano. Na Coreia, o trabalhador é tido como propriedade. Se ele fizer alguma coisa errada, ele tem o direito de meter a mão na cara, de bater, de colocar um cigarro. Isso é normal na Coreia. Então eles vêm para cá
120
com essa cultura, de que não existe esse tipo de valor, que é uma propriedade. Então eles não têm” (Alfa). Como já acentuado, os magistrados destacaram a importância de existirem em processos
dessa natureza, com pedidos de indenização por dano extrapatrimonial, subsídios suficientes
para o deferimento. Os posicionamentos dos magistrados Alfa, Beta e Gama navegam no
mesmo sentido. Contudo impinge destacar que apenas o magistrado Alfa coloca a importância
da realização de uma perícia médica ou psiquiátrica para compor sua convicção diante dos casos
concretos, bem como a cautela no deferimento nos pedidos de dano dessa natureza: “Por exemplo: aqui existem muito as metas. Os empregados de banco, eles reclamam muito, por exemplo, a respeito de metas. Metas, todo mundo está sujeito a meta, não é verdade? Todo mundo tem os objetivos, né? E, no banco, mais ainda, penso eu. Porque lá mexe com dinheiro, mexe com valores. Então, assim, nesse aspecto, eu vejo que a exigência maior do banco se justifica pra metas, porque mexe com dinheiro, mexe com dinheiro dos outros, a função dele é esta: lucro do banco. Então de assim, a questão de meta que o trabalhador reclama dentro do contexto banco, eu acho que não se justifica. Não é, que […] em muitos, as metas são cobradas de forma abusiva, com ofensas, não é esse caso. Mas o simples fato de ter metas. No mundo moderno hoje, é inerente. Então você tem de ver o aspecto daquele trabalho e no aspecto do mundo moderno que a gente vive hoje. Eu sempre falo: ‘Nossa, eu tenho tanta meta do CNJ, não é?’ Então hoje o mundo é muito mais ativo, muito mais exigente” (Gama). Como dito acima, destaca-se o posicionamento do magistrado Alfa sobre a importância
da realização de uma perícia médica ou psiquiátrica para compor sua convicção diante dos casos
concretos e o necessário cuidado do magistrado para não banalizar alguns institutos dentro da
seara jurídica. Não obstante esse posicionamento, sublinha-se que, em nenhum dos casos
analisados nesta tese, houve requerimento de perícia por laudos psicológicos ou psiquiátricos. “Então é um conjunto de fatores que se examina. Para mim, nesses casos, é imprescindível fazer uma perícia por um profissional que vai avaliar, não em uma, duas sessões, mas em muito mais sessões que ele julgar necessário. É que aquilo ali vai ser um elemento de formação do convencimento, principalmente, e isso é um elemento de formação do convencimento. Não apenas declarações, não apenas o que eles narram. Agora, claro que é preciso tomar um certo cuidado para não banalizar isso. Como isso é uma reparação muito importante, não podemos banalizar. Porque hoje nós vemos vários institutos banalizados na Justiça do Trabalho, e isso traz uma descredibilidade para nós muito grande. A reforma trabalhista está aí para isso” (Alfa).
“Nós acabamos permitindo pedidos verdadeiramente absurdos e acabamos digerindo isso e aceitando que hoje nós perdemos credibilidade em vários aspectos, e aí nós ficamos anestesiados com isso e não damos a devida reparação que aqueles casos exigem. Por isso, é preciso saber ponderar isso. Por isso, quanto mais elementos se tenha, quanto maior for a investigação do juiz, nesses aspectos, melhor vai ser a formação do convencimento, melhor vai ser a valoração que ele tem dos elementos para decidir” (Alfa). A posição crítica destacada pelo entrevistado Alfa caminha no sentido da abordagem
sobre a judicialização que se propôs nesta tese, diante da potencialização das demandas
121
judiciais como primeira forma de solução de conflitos bem como da expansão da tendência da
ampliação dos danos indenizáveis.
A direção das falas dos magistrados vai no sentido de que, segundo suas compreensões,
perceber as subjetivações dos trabalhadores importa, na maioria das vezes, em fazer uma
aderência às circunstâncias sempre tangentes à dinâmica laboral, sinalizando que a
subjetividade não seria um universal abstrato, pois considera aspectos culturais e mesmo
regionais. Nesse sentido, afirmam considerar o local de trabalho, a função, a região onde a
empresa está situada, o percurso do trabalhador na empresa, o tipo de trabalho, as provas
produzidas nos autos. Percebe-se também um esforço dos magistrados em trazer alguma
circunscrição objetiva ao trato com a subjetividade, seja o requerimento do advogado, seja
alguma evidência objetiva do dado ou a preocupação com o contexto do caso. Assim, indica-se
que a dimensão da subjetividade não é central na decisão judicial final.
7.1.2 Categoria 2: análise dos requisitos avaliados pelos juízes ao julgarem pedidos de
dano existencial
Na segunda categoria de análise referente aos requisitos jurídicos e elementos gerais
para se analisar demandas com pedido de dano existencial, vê-se que a maioria dos magistrados
descreveu os requisitos da fixação da responsabilidade civil como a prova efetiva do dano
alegado.
O magistrado Beta discorreu além dos requisitos inerentes ao deferimento de um pedido
de indenização. Ele teceu consideração sobre o uso dos princípios do contraditório14 e da ampla
defesa para a construção de sua decisão. “No contexto do princípio do julgamento, que nós temos o princípio do contraditório, da ampla defesa, eu não posso contar só com a palavra do trabalhador, apesar que, pra mim, como julgador, é importante o meu sentir a respeito daquele trabalhador, mas mesmo com o depoimento dele sendo importante, eu preciso das provas de que aquele dano existencial, aquele dano fora do ambiente laboral realmente aconteceu e eu também entendo que é uma prova de difícil produção, cê tá entendendo assim? Eu entendo o lado, mas eu preciso, porque eu também tenho de olhar o lado do outro, da empresa” (Beta).
“Então, assim, por mais que o aspecto subjetivo do trabalhador seja importante, eu preciso de que haja provas concretas da existência daquele dano fora do ambiente laboral para poder julgar, para poder, assim, dar provimento a esse pedido, né” (Beta).
14 Artigo 5º, inciso LV da Constituição da República de 1988 - “Aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”.
122
“Ele tem que provar que afetou a vida pessoal dele, de que maneira, e geralmente essa prova não acontece, não vejo assim, não tenho, muito difícil, as partes, até pela limitação do número de provas a serem produzidas. Geralmente nesse aspecto é testemunhal, pode haver um documento, enfim, mas é, como existe a limitação de três testemunhas de cada parte, talvez assim eles prefiram dar ênfase no aspecto laboral e não no aspecto da vida pessoal, e é difícil. Até porque, pela lei, como a senhora sabe, que também e advogada, parentes, esposas não podem servir como testemunhas, não podem servir como testemunhas, então também dificultam essa prova do dano existencial. É muito difícil” (Beta).
Observa-se que Beta afirma empregar diversos elementos na análise de pedidos de dano
extrapatrimonial. Destaca que, apesar de considerar relevante o seu sentir a respeito do
trabalhador, não se pode olvidar da necessidade de provas concretas da existência daquele dano.
Nesse sentido, deixa claro que existe uma dificuldade de produção de provas em pleitos dessa
natureza, uma vez que as ocorrências de dano se dão projetadas fora do ambiente laborativo.
Nos casos de lesão à vida das relações, uma prova testemunhal que seria relevante, por exemplo,
fica prejudicada, pois os parentes não podem servir como testemunhas.
A análise do magistrado Gama sugere uma colocação mais linear, como assim destacado: “O que eu analiso basicamente: primeiro, se é verdade o fato, se, de fato, o dano existiu, se ele ficou prejudicado nas suas projeções, no seu convívio. Depois, se esse fato decorreu de um ato ilegal da empresa, né? Se a empresa exorbitou em alguma circunstância, esse fato porque […] Por exemplo, às vezes, eu uso muito o exemplo do pregão da bolsa de valores. Ali é um absurdo aquele ambiente, é um estresse sem fim, mas é da atividade. Médico, né, numa cirurgia, é da atividade! Então, assim, eu avalio primeiro se o dano existiu, depois se a empresa fez algum ato ilícito, ato ilegal, e aí a gente arbitra o valor. Basicamente isso que são os requisitos da indenização, né? O ato ilegal, a omissão, essas coisas. Dentro do contexto daquele trabalho, do contexto daquele empregado” (Gama).
Observa-se que o magistrado Gama destaca linearmente os elementos típicos da
responsabilidade civil, sem, contudo, desconsiderar o contexto laboral de cada reclamante. Para
tanto, faz expressa menção a uma pressão natural que ocorre em alguns ambientes laborais e
atividades, como o ambiente da bolsa de valores e o momento em que um médico está
realizando uma cirurgia.
O magistrado Alfa destacou que realiza uma análise sistêmica mais ampla, dando
relevância à necessidade, inclusive, de perícias por psicólogos ou psiquiatras, dependendo do
caso concreto: “A questão não se resolve só pelo depoimento testemunhal. Então, em alguns casos, vale a pena fazer uma avaliação, seja por um psicólogo ou por um psiquiatra, para examinar aspectos técnicos, que normalmente o magistrado não tem esse conhecimento. Então, sim, se faz um exame do aspecto histórico. Isso é o ideal. Não basta trazer documentos para o processo ou testemunhas. Porque a valoração dessa prova é, muitas vezes, frágil, então é preciso avaliar outros elementos e nós fazemos isso quando vamos avaliar um caso assim. Não apenas pelo relato dele, mas pelo que se consegue colher de documentos ou o que se consegue colher de informações da vida pessoal dele, aspectos profissionais. A análise acaba sendo ampla. E, nesses
123
casos, pode-se determinar até uma perícia para examinar se existe algum elemento para contribuir” (Alfa).
“O juiz hoje não e estático. Como juiz, é um dever nosso buscar a verdade real, quando não é aceita a verdade formal. O conceito clássico, que dizia aos operadores do Direito, principalmente aos magistrados: ‘aquilo que está amarrado ao processo, e aquilo que não está nos autos, não estava no mundo jurídico’. O juiz era um ser inerte, que só atuava quando pedia as partes. Não é bem assim. O juiz é imparcial, mas ele não é inerte, então ele pode tentar ir a busca dessa verdade real, pelo menos tentar, não sei se ele vai encontrar, mas que ele deve buscar, sim. Por exemplo… um caso desse que a parte alega uma lesão e a empresa é revel não comparece em audiência, a lei fala que aquilo que se tornou incontroverso, aqueles fatos que não foram contestados, eles são tidos como verdadeiros. Ora, mas essa não é uma verdade absoluta, nada impede que o juiz vá a fundo, vá buscar testemunhas, vá buscar relatos, vá buscar documentos para saber, para a própria segurança do que ele vai deferir” (Alfa). Observa-se que os magistrados Alfa e Beta, de modo comum, discorreram
expressamente sobre os elementos complementares de análise em processos dessa natureza,
destacando, para além dos requisitos da responsabilidade civil, o emprego de alguns princípios
como contraditório, ampla defesa e verdade real.
De modo diferente, o magistrado Gama elencou os elementos da responsabilidade civil
que busca perquirir, como o dano, o ato ilícito da empresa, a ação ou omissão. Interessante que
o magistrado Gama destacou que primeiro verifica se é verdade o fato, se realmente o
reclamante ficou prejudicado em suas projeções e em seu convívio e, ainda assim, emprega os
elementos da responsabilidade civil depois de analisar o contexto específico do trabalho
daquele sujeito.
Nesse aspecto, fica interessante destacar também que todos os magistrados exaltaram
que a maioria dos advogados faz pedido de dano moral genérico quando, na verdade, o pedido
seria específico de dano existencial, como consignado na fala do entrevistado Gama: “É raro ter o dano existencial aqui, é raro. Porque, na verdade, eles pedem mais o dano moral, né? Dano moral genérico, não é? Não falam dano com relação à existência, com relação à falta de perspectiva, à falta de convívio, que é o que o dano existencial mais se revela” (Gama). Valendo-se do contexto da especificidade do tema indicado pelo magistrado Gama,
aproveita-se para evidenciar a compatibilidade com o posicionamento externado pelos
referenciais teóricos de Oliveira e Brito (2013) e Augusto (2012) na temática da judicialização
e da juridicização. Diante dos fenômenos da judicialização e da juridicialização do viver,
sobretudo das relações sociais do trabalho, fecha-se a ideia de reincidência possível, tanto por
parte do sujeito trabalhador como por parte da empresa, quando o cerne da controvérsia não é
tangente em considerar a essência daquele trabalhador, suas características próprias e sua
subjetividade. A realidade que ladeia a sociedade não pode ser disfarçada, sendo que o
124
problema social está criado. Sobre esse aspecto, destaca-se a fala do magistrado Alfa, ao fim
de sua entrevista: “O Direito tem uma preocupação muito grande com a saúde. São dois valores que a Constituição resguarda como pilares: há a dignidade da pessoa humana e a isonomia, mais o direito à vida e o direito à saúde. Esses dois valores são protegidos no ordenamento jurídico. Esse direito à saúde, é muito comum a gente ver esse direito à saúde do ponto de vista material: cortou meu plano de saúde, vai lá e pede uma indenização. Aí cortou meu braço, errou um corte, vai lá e indeniza essa lesão física. Mas o direito ainda não deu a devida atenção para a saúde mental das pessoas, e é isso que nós precisamos ter nos ambientes de trabalho, uma preocupação com a saúde mental das pessoas” (Alfa). Conforme as colocações indicadas na entrevista pelo magistrado Alfa, reforça-se o
necessário cuidado com a saúde mental do trabalhador, emitir atenção para o ambiente de
trabalho e as peculiaridades de cada sujeito e sua possibilidade no exercício de cada função
laborativa. A judicialização nos casos das reclamatórias trabalhistas por dano existencial vem
como medida externa e posterior ao estabelecimento das lesões originárias do curso daquele
contrato de trabalho, não indicando resolução essencial do problema social colocado. Tal
constatação leva à reflexividade sobre a possibilidade da reincidência da conduta em
hiperfuncionamento no ambiente laborativo por parte daquele trabalhador.
Essa explanação dos magistrados remete a uma das limitações da pesquisa para uma
abordagem quantitativa, no estudo sobre o dano existencial. Caminha juntamente com a
limitação referente à recentidade e especificidade do instituto no ordenamento jurídico
trabalhista brasileiro. Nesse aspecto, afirma-se que a figura jurídica dano existencial foi inclusa
recentemente no comando legal da CLT, por meio da Lei nº 13.467/2017, que entrou em vigor
em 11 de novembro de 2017.
Abordando a segunda categoria de análise, nota-se que a direção das falas dos
magistrados foi no sentido de observar, com precisão, os requisitos da responsabilidade bem
como a necessidade de provas robustas no processo. Observa-se a sinalização dos magistrados
sobre os pedidos de dano moral genérico no lugar do dano existencial, atestando a recentidade
e especificidade do instituto. Percebe-se também que os magistrados sinalizam que é difícil a
produção de provas em ações com pedido de dano extrapatrimonial.
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7.1.3 Categoria 3: a percepção dos magistrados sobre a existência de alguma relação
entre a demissão do trabalhador e uma consciência da frustação do projeto de vida
ou da vida das relações
A percepção dos magistrados sobre a existência de alguma relação entre a demissão do
trabalhador e uma consciência da frustação do projeto de vida ou da vida das relações é a última
categoria de análise das entrevistas. Essa categoria ganha relevância na pesquisa, uma vez que,
em todos os casos trazidos à análise nesta tese, o rompimento do vínculo empregatício não foi
por iniciativa do empregado. Atrelado a esse dado, que serviu, inclusive, como um dos seletores
para a busca dos casos em análise, foi possível notar também um assujeitamento dos
trabalhadores, no curso do contrato de trabalho, sobre alguma impugnação diante do modo de
desenvolvimento do pacto laborativo. Assim, o que se buscou com essa categoria de análise
foram substratos na compreensão tanto sobre a percepção do hiperfuncionamento no curso do
contrato de trabalho quanto sobre alguma relação com a demissão e a percepção do rompimento
de algum projeto de vida ou da vida das relações.
Quanto a essa categoria de análise, todos os entrevistados afirmaram que, em sua
maioria, as demandas levadas ao Judiciário Trabalhista são propostas por desempregados, como
se observa na fala dos entrevistados Alfa e Gama. Considera-se essa afirmativa para relacioná-
la com o fato de que, no curso do contrato de trabalho, a maioria dos trabalhadores não leva o
pleito ao Judiciário bem como não existem reclamações enquanto o contrato está vigente. Sobre
isso, expõem-se as seguintes falas: “A Justiça do Trabalho, de um modo geral, é uma justiça de pessoas que se frustraram com a empresa. Então, todo mundo, tirando aquelas pessoas que fazem concursos públicos, e que são empregados públicos e tem a garantia do concurso público, e que tem uma certa garantia superior, é a maioria das pessoas. Justiça do Trabalho são desempregados, e daí a frustação com a empresa. Então, é, sim, uma justiça de frustações, principalmente quando são as grandes empresas” (Alfa).
“Então, assim, por que a Justiça do Trabalho é uma justiça dos desempregados, né? Porque, enquanto é empregado, ninguém reclama. Você só reclama depois que sai do emprego” (Gama).
“Quando vem a demissão é que eles podem: ‘Olha, agora sim, eu posso procurar o Poder Judiciário e externar minha insatisfação com aquela relação de trabalho” (Beta).
A análise dessa categoria reporta ao referencial teórico indicado por Tonon e Grisci
(2015), no que se refere à subjetivação daquele trabalhador tão envolvido pela gestão
gerencialista no curso de seu contrato de trabalho, emanando um consentimento e aderência ao
contrato nos moldes em que ele se desenvolve:
126
Ao produzir um indivíduo que se vê seduzido pelo glamour, a gestão gerencialista apresenta sua faceta de máquina produtiva e de controle social, uma vez que os estilos que dela resultam são estilos de vida, não somente de uma parcela da vida. Tal recurso, de certo modo, instila características e sensações compensatórias que mascaram os sofrimentos ou mesmo os mecanismos de poder e dominação existentes em tais modos de gestão (Tonon & Grisci, 2015, p. 34). A ideia da frustração com a própria demissão, indicada expressamente pelos
entrevistados Alfa e Gama, também recebe a confirmação do referencial teórico desta pesquisa,
no que se refere a uma sensação de grande vazio após o rompimento de um contrato de trabalho
que ocupava uma dimensão espaçotemporal considerável na vida daquele trabalhador: “Os
trabalhadores não suportam o rótulo de excluídos, rejeitados, desempregados, e os sintomas
dessa dor estendem-se a família, por sua resignação” (Oltramari & Grisci, 2014, pp. 26-27).
Nesse sentido, aproveita-se a abordagem para discorrer sobre o consentimento do
trabalhador no modo de desenvolvimento de seu contrato de trabalho. Do referencial teórico
utilizado evidenciou-se que, algumas vezes, ocorre um mascaramento pelo envolvimento do
trabalhador e sua própria família, seja por um status do cargo ou pela dependência jurídica e
seus desdobramentos. Nas entrevistas realizadas, obteve-se nova vertente sobre esse intitulado
consentimento. Percebeu-se uma justificativa pelo assujeitamento diante de
hiperfuncionamento dos trabalhadores, pelo medo de perder o emprego, diante, inclusive, da
concorrência. Esse posicionamento fica claro na exposição do entrevistado Beta: “Pra mim, eles sempre tiveram a noção de que estavam deixando o aspecto pessoal de lado por conta do trabalho, mas que, por conta da necessidade de manter o emprego, eles não podiam demonstrar isso antes da demissão. Então não é que surgiu o sentimento ou que ficou mais forte o sentimento de que ‘ah, eu deixei minha família de lado, ou eu não participei disso’. Eles sempre tiveram essa percepção, mas não podiam reclamar nem externar porque dependem do emprego” (Beta).
“Eu não sinto que existe assim: ‘ah, agora que eu fui demitida que eu consigo perceber’. Assim, dos casos que eu analisei, a minha percepção é de que o trabalhador ficava tolhido diante da relação de que eu preciso trabalhar ao mesmo tempo que eu queria estar, mas eu preciso prover a minha família, então eles tinham, sim, consciência, mas não podiam externar e, quando vem a demissão, e que eles podem” (Beta).
“Assim, porque o mercado e muito competitivo, senão, o que você ouve nas reuniões de trabalho: se você não quiser, tem outro que queira” (Beta).
No mesmo sentido, posicionou-se o entrevistado Gama: “Às vezes, se sujeita porque quer alguma promoção ou se sujeita porque tem medo de ser dispensado. Então a sujeição é mais pelo trabalho mesmo do que a opção familiar-empresa. Eu acho que todo mundo gostaria de passar mais tempo com a família, embora não seja essa a demonstração em audiência, entendeu? Rara, raras vezes, eu já tive casos, por exemplo, que o rapaz falou assim: ‘Minha mulher queria separar de mim, porque eu trabalhava das 6 às 22 horas todos os dias’. Então são alguns casos realmente dessa relação familiar. A ausência desse
127
contato, desse convívio familiar. Mas a grande maioria das vezes é do próprio trabalho mesmo, eles reclamam do trabalho. Da qualidade do trabalho, da quantidade do trabalho” (Gama). Nota-se, pela análise das entrevistas, que a não insurgência pelo modo que se desenvolve
o contrato de trabalho deve-se consideravelmente ao medo do desemprego.
Analisando a dependência do trabalhador ao emprego, ainda que com
hiperfuncionamento, bem como o medo do desemprego, insta destacar uma manifestação
isolada pelo magistrado Alfa. Ele sublinhou uma situação que potencializa a necessidade pelo
trabalho. Na fala do magistrado Alfa, ficou demonstrado que o trabalhador, no momento da
audiência, aceita a realização de um acordo, diante da possibilidade de sua reintegração à
empresa. Foi narrada situação em que o trabalhador se dispôs a voltar, o caso a empresa assim
lhe propusesse: “Principalmente quando são as grandes empresas. Eu vou citar aqui, porque aqui tem distrito industrial, todo mundo quer trabalhar na Honda. É uma honra trabalhar na Honda. É uma honra trabalhar para uma terceirizada que presta serviço para a Petrobrás. É uma honra usar aquele uniforme laranja que se usa na Petrobrás. Então, aqui, essas pessoas, quando reclamam, se chegar na audiência e dizer: vamos fazer o seguinte, vamos fazer um acordo, eu vou lhe reintegrar, o senhor volta para o seu posto de trabalho e continua trabalhando lá com eles quer? Acabou! A-ca-bou! Então, assim, tem isso” (Alfa). O entrevistado Alfa destacou que, nesses casos em que o trabalhador aceita a
reintegração, na verdade, ele entende que a frustração era com a perda do emprego. Frisa, mais
uma vez, como magistrado que atua em mais de um Estado da Federação, a importância de se
levar em consideração as peculiaridades da localidade em que a empresa está inserida. “Quando o empregado quer ser reintegrado, e diz para ele é suficiente abrir mão de tudo isso para ser reintegrado, demonstra que havia uma frustação, que ali o que está por trás é uma frustação, que dar as mãos, fazer as pazes com a empresa, se a empresa estender as mãos para ele, está tudo bem, ele está alegre, ele está feliz. E tem mais uma coisa, a realidade no Norte…, aqueles empregados que a empresa diz: olha, vou lhe reintegrar, e eles são reintegrados, eles conseguem produzir muito mais do que produziam antes, porque eles voltam motivados, eles voltam dizendo assim: ‘Olha! Realmente a empresa sabe que vale a pena ele estar aqui’, e normalmente eles acabam produzindo mais e ficam mais felizes, para você ver como é a coisa, como isso funciona! Produz mais, em um menor tempo e acaba se sentindo bem com isso. Então, assim, para você avaliar se houve frustação ou não, você tem de avaliar muitos fatores” (Alfa). O posicionamento isolado do magistrado Alfa compõe uma análise compartilhada no
referencial teórico da pesquisa, no sentido de que, muitas vezes, o trabalho é o investimento
que a pessoa se dispôs a fazer em vida. Discorre-se sobre esse aspecto amparando-se também
em López-Ruiz (2009b). Para esse autor, atualmente, existe relação intensa com a carreira nas
grandes empresas, sendo a visão de carreira alçada a um patamar para além da atividade
128
econômica, tornando-se verdadeiro projeto de vida ou realização pessoal do sujeito trabalhador,
sendo, às vezes, o percurso principal da vida daquele sujeito (Lopez-Ruiz, 2009b).
Ainda diante desse consentimento do trabalhador que operou durante tanto tempo no
contrato de trabalho sem se insurgir contra seu modo de execução, entrelaça-se novamente o
referencial teórico de Oltramari e Grisci (2014) com os extratos das entrevistas. Nesse
particular, destaca-se o contexto que envolve a posição do trabalhador e a relação com sua
família diante das demandas acentuadas no ambiente de trabalho. Às vezes, o trabalhador faz
um esforço para não deixar transparecer algum excesso de demanda para a família, para não se
ver acentuada a situação de conflito, como posicionado pelo entrevistado Beta: “Ele fica sufocado, ele sabe que está acontecendo aquilo, ele reclama, no íntimo dele, mas não pode externa para o chefe, até mesmo para a família. Ele não pode, porque, se ele falar isso, assim pode ‘ah não, por que que você não conversa”, e o teu ente familiar não vai entender por que você não pode conversar na empresa e pedir, né? Assim, porque o mercado é muito competitivo, senão o que você ouve das reuniões de trabalho: se você não quiser, tem outro que queira” (Beta). Elegeu-se um posicionamento em destaque do magistrado Gama que, ao fim da
entrevista, fez a seguinte consignação, afirmando que a subordinação nos cargos sem controle
de jornada é mais acentuada do que nos cargos com controle de jornada: “A dependência, com certeza, é maior, porque o salário é diferenciado, né? Então ele sabe que, se ele não aceita… E assim, não é qualquer empresa que paga esse valor, então ela acaba se sujeitando mais, com certeza. E essa existência de horário eu acho uma fraude. Porque ele não tem liberdade, até porque o trabalho não favorece isso. Liberdade bobagem não é liberdade. Ele não chega à hora que ele quiser. Isso não existe. Ele chega à hora que ele tem que chegar e sai à hora que ele precisa sair, até porque ele é o responsável. Então a subordinação é muito maior, porque aquele que chegou bateu sua companhia, entrou na hora que ele tem que entrar, na hora que deu o horário de sair, ele vai embora, né? E ele não. Ele tem que ficar até aonde o trabalho dele permitir, exigir, na verdade. Então eu acho que ele fica muito mais subordinado. E a empresa justifica com um alto salário, mas o alto salário é para a alta atribuição e não é por carga horária, não é verdade. O salário justifica a responsabilidade, não a jornada de trabalho, mas a lei está aí, e determinadas situações só nos resta aplicá-la, ne?” (Gama). Tal disposição corrobora a aderência e dependência do trabalhador a seu contrato de
trabalho, mesmo quando ocupando altos cargos. O conflito, o medo do desemprego e
subordinação se fazem presentes nos altos cargos, como bem asseverado pelo magistrado
Gama, e sua relação com o referencial teórico indicado é tangente ao dilema enfrentado pelo
trabalhador e suas relações familiares. A família já está inserida no contexto proporcionado
pelo trabalho daquele sujeito, não sendo fácil uma negativa ao status ou ao aporte financeiro
propiciado. Além desse dilema, deve-se destacar também que o trabalhador se encontra
atendendo a exigências bilateralmente, tanto da empresa como da família.
129
7.2 Os casos selecionados
No emprego da análise do discurso aos casos selecionados, buscou-se perquirir sobre a
subjetivação no que se refere aos seguintes pontos de interesse:
a) a participação dos reclamantes em algum programa seletivo da empresa, ou cursos para
alçar progressos na carreira;
b) se houve migrações ou progressos na carreira sem oposição do sujeito;
c) características de proatividade do empregado;
d) clara demonstração do projeto de vida lesionado;
e) clara demonstração da vida das relações invocada como comprometida;
f) se, em algum momento, o trabalhador demonstrou a intenção de rescisão indireta do
contrato de trabalho, ou seja, manifestou seu inconformismo ou impugnou a jornada que
lhe fora fixada;
g) a existência de uma relação entre a dispensa do empregado e a consciência do
comprometimento do projeto de vida ou da vida das relações invocados como lesionados;
h) o tempo de duração do contrato de trabalho;
i) se houve pedido de demissão.
A identificação desses elementos de subjetivação se presta no auxílio de buscar uma
caracterologia do trabalhador que se dedica com empenho e longo prazo ao trabalho, e se viu
diante do rompimento involuntário desse contrato de trabalho. Assim, nos casos analisados, as
partes não pugnaram pela extinção desses contratos, apesar de buscarem reparação por dano
existencial.
Antes de se adentrar ao estudo dos casos, cumpre reiterar um esclarecimento já
consignado no capítulo referente ao dano existencial, sobre a mudança de entendimento dos
Tribunais Regionais do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho no decorrer do
desenvolvimento desta pesquisa. Esse esclarecimento sinaliza uma redução considerável no
número de processos com dano existencial deferido, configurando-se em mais um dos fatores
de restrição na elegibilidade de casos para análise nesta pesquisa. Insta destacar que a migração
das linhas de entendimento não se confere uma mitigação ou enfraquecimento do instituto
jurídico ou de suas ocorrências. Conferem apenas uma maior cautela do Judiciário em analisar
os casos dessa natureza, não banalizando o instituto jurídico. As migrações de entendimentos
são comuns no que se refere a institutos jurídicos recentes.
130
Como já explanado, até meados da pesquisa, entre os anos de 2015 e 2016, localizavam-
se decisões com duplo entendimento ao deferir o dano existencial. Uma corrente de
interpretação compreendia o dano existencial ocorrido quando a parte provava nos autos apenas
o descumprimento de normas trabalhistas ou do contrato de trabalho, com a exigência de horas
extras habituais ou não concessão dos intervalos para descanso entre uma jornada e outra de
trabalho, bem como a violação do direito às férias. O entendimento anterior, diante dessa
verificação do processo, sinalizava a presunção da lesão às horas de descanso do trabalhador,
atingido, de forma diferida, a possibilidade de conviver ou relacionar-se em sociedade, bem
como continuar ou começar algum projeto de vida. Nessas decisões, não havia necessidade de
o trabalhador fazer, nos autos, prova de qual teria sido o projeto de vida lesionado ou a vida da
relação entendida como prejudicada.
Atualmente o entendimento sinalizado pelo Tribunal Superior do Trabalho, na maioria
de suas turmas julgadoras, bem como pelos Tribunais Regionais do Trabalho forma se na
compreensão de que seria necessário comprovar a lesão concreta e efetiva que aquele excesso
de trabalho gerou no projeto de vida ou na vida das relações daquele trabalhador.
Essa mudança no entendimento, atrelada aos seletores na busca pelos casos passíveis de
reflexividade nesta pesquisa bem como a timidez da inserção do instituto do dano existencial
no Direito Trabalhista brasileiro direcionam consideravelmente o número de casos elegíveis.
Relembra-se que os seletores ficaram assim compostos: casos com situações de
definitividade sobre o pedido de dano existencial, contratos de trabalho sem registro formal de
jornada e com alguma autogestão, processos com as sentenças e acórdãos disponíveis para
consulta pública nos sites dos Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior do
Trabalho, contratos de trabalho com pelo menos cinco anos de vigência, processos em que
houve audiência de instrução e julgamento, com depoimento pessoal do reclamante, decisões
deferindo o dano existencial nos moldes do atual entendimento majoritário do Judiciário
Trabalhista brasileiro, as sentenças ou acórdãos selecionados precisam dar informações sobre
o tempo do contrato de trabalho, funções exercidas pelo trabalhador e valor da remuneração.
Alguns processos que, a priori, caberiam como elegíveis, no desenvolver da análise
para este trabalho, não tinham disponíveis as informações sobre contrato de trabalho ou
remuneração. Em outros processos, o reclamante não produziu seu depoimento pessoal na
audiência de instrução. Outros processos registraram contratos de trabalho com duração
modesta de vigência. Em outros, as sentenças e acórdãos não abordavam a situação fática do
desenvolver do contrato de trabalho. Esses casos negativos foram elementares na composição
131
do direcionamento para um número consideravelmente restrito de casos. Os casos negativos
aparecem somente depois de boa parte da aplicação e análise dos seletores na pesquisa.
Pelo material elegível e considerando a redução das decisões proferidas com
julgamentos procedentes de dano existencial, entendeu-se por bem aplicar uma reflexividade
em profundidade dos casos selecionados. Destaca-se que esse direcionamento de casos
elegíveis caracteriza atualmente uma das limitações e dificuldades deste trabalho e quesito de
dúvida para esta pesquisadora. Passa-se à interpretação e análise dos dados.
7.2.1 Caso 1: processo na 6ª Vara do Trabalho de Porto Alegre - Tribunal Regional do
Trabalho do Rio Grande do Sul - 4ª Região
Projeto lesionado: casamento. A trabalhadora alegou que o término de seu casamento
se deu em virtude do excesso de trabalho. Nesse caso, o Tribunal Regional do Trabalho do Rio
Grande do Sul, 4ª Região, entendeu por bem proferir decisão reconhecendo o direito de
reparação em dano existencial em favor da trabalhadora, que alegou que sua árdua rotina de
trabalho comprometeu seu projeto de vida de casamento, culminando com seu divórcio ainda
no curso do contrato de trabalho. Na decisão, ficou consignado o entendimento de que as
condições em que era exercido o trabalho da reclamante na empresa empregadora apontaram a
ocorrência de dano existencial, pois sua árdua rotina de trabalho restringia as atividades que
compunham a vida privada, causando-lhe efetivamente um prejuízo que comprometeu a
realização de um projeto de vida. Nesse processo, a repercussão nociva do trabalho da
reclamada na existência da autora é evidenciada com o término de seu casamento, enquanto
vigente o contrato laboral, rompimento que se entendeu provado nos autos e que teve origem
nas exigências da vida profissional da autora.
O processo tem, a priori, lindes típicas de uma situação de dano existencial, com
comprometimento direto a um projeto de vida por excesso de jornada. A trabalhadora, autora
da ação trabalhista, requereu condenação de sua empregadora em indenizá-la pelo término de
seu casamento, em virtude de longas jornadas de trabalho e falta de repouso semanal
remunerado, bem como os intervalos interjornada. A reclamante promoveu a convicção do
magistrado de primeira instância por meio de seu depoimento pessoal de, que devido à sua
constante ausência no âmbito familiar, o esposo rompeu o casamento ainda durante a vigência
do contrato de trabalho. A primeira instância havia fixado a condenação em R$ 67.000,00, e o
Tribunal a minorou para R$ 20.000,00.
132
A redução da condenação pelo Tribunal Regional do Trabalho foi justificada,
explicitando-se que deve ser levado em conta o princípio da razoabilidade bem como as
condições do ofendido e do ofensor, a reprovabilidade da conduta praticada, o caráter
preventivo, punitivo e ressarcitório. Reconheceu como reprovável a conduta da empresa ao
exigir que autora executasse extensa carga horária de trabalho como parte de sua rotina. Nesse
sentido, explicou que a indenização não só punisse essa conduta como também tivesse um
caráter preventivo, para que o fato não se repetisse. Pelos fundamentos expostos e ainda levando
em consideração as questões fáticas (salário de aproximadamente R$ 3.300,00 mensais, em um
contrato de quase cinco anos), a extensão do prejuízo (rompimento conjugal), entendeu-se que
a verba indenizatória deveria ser reduzida para R$ 20.000,00, por adequação aos parâmetros
explicitados. A empresa apresentou vários recursos contra a decisão analisada, e o processo está
atualmente com tema em análise de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal.
7.2.1.1 Características do contrato de trabalho
Função desempenhada pela trabalhadora: iniciou suas atividades em 2007, como
analista de gestão, fazendo a gestão da unidade localizada na cidade de Porto Alegre. Houve
uma promoção três anos após o início do contrato de trabalho, ano de 2010, sendo transferida
para outra unidade, na cidade de Canoas. Alçou para a função de coordenadora de processos.
Remuneração percebida ao longo do contrato de trabalho: começou com percepção salarial de
R$ 3.500,00. Fez pedido de integração salarial de R$ 15.000,00 por ano trabalhado, o que
implica R$ 1.250,00 a mais por mês na remuneração, referentes aos bônus que recebia ao longo
do contrato de trabalho. Incluiu um pedido ainda de bônus de R$ 30.000,00 pelos anos de 2008
e 2010, decorrentes de um ranking em que se habilitou para concorrer aos bônus. Duração do
contrato de trabalho: setembro de 2007 a agosto de 2012 (cinco anos). Forma de extinção do
contrato de trabalho: dispensa imotivada sem justa causa. A empresa deliberou pela dispensa
da empregada injustificadamente.
7.2.1.2 Identificação dos pontos de interesse:
Extratos dos depoimentos da audiência de instrução e manifestações nos autos.
Desempenho no curso do contrato de trabalho: os extratos a seguir evidenciam uma
subjetivação no discurso do trabalhador, narrando seu desempenho no curso do contrato de
133
trabalho. Relatos sobre altas jornadas de trabalho, praticamente heroicas e sobre-humanas, com
busca de progressões na carreira, participação dos rankings de metas, migrações de funções,
busca de reconhecimento profissional, vontade de trabalhar, crescer profissionalmente,
melhoria de salários e proatividade.
Extratos do posicionamento da reclamante identificados como pontos de interesse:
Vontade de trabalhar e de crescer profissionalmente: […] que a depoente, no período em que estava desempregada, ficava bastante em casa, e seu marido chegava em casa por volta das 17h;
[…] que, quando entrou na reclamada, queria muito crescer profissionalmente;
[…] “Trabalhava aos sábados, domingos e feriados, bem como ficava de sobreaviso”;
[…] “A sede da depoente era Canoas, mas tinha que se deslocar para todas as unidades”. Análise: observa-se que existe uma declaração expressa de proatividade e manifestação
voluntária de um projeto de trabalho com crescimento profissional. A trabalhadora afirma que,
antes de começar a trabalhar, ficava bastante em casa e que, quando começou a trabalhar, queria
muito crescer profissionalmente. Observa-se que os extratos dos depoimentos a seguir vêm
como um passo a passo de dedicação ao trabalho, mirando ascensão profissional, com um
prejuízo a um tempo de disponibilidade para ficar em casa. E, ao fim, destacam-se os
depoimentos que indicam a culminação do divórcio da reclamante.
A jornada heroica e praticamente sobre-humana de trabalho: desempenho da
trabalhadora: […] “Que, em 2010, foi promovida e transferida de unidade, para Canoas, passando a ser coordenadora de processos, ficando responsável pelos processos (controle de diesel, financeiro, recursos humanos, faturamento) das unidades localizadas no RS”;
[…] “Que a reclamante sabia que teria que viajar enquanto coordenadora de processos”;
[…] “Que a sede da depoente era Canoas, mas tinha que se deslocar para todas as unidades; que, em Porto Alegre, fazia controle de indicadores (de custo, de movimentação de carga, abastecimento de veículos, de 5S, melhoria contínua)”;
[…] “Trabalhava de segunda a sábado e, em média, três domingos por mês”;
[…] “Que diariamente chegava à unidade por volta das 7h”;
[…] “Saía por volta das 22h/23h”;
[…] “Que, às vezes, ultrapassava esse horário”;
[…] “Que só ficava sabendo o faturamento dos trens após a meia-noite”;
134
[…] “Podia usufruir de intervalo de uma hora, mas, às vezes, não conseguia usufruir desse intervalo”;
[…] “Que cansou de sair de madrugada devido aos percursos de deslocamento para as unidades do interior do Estado”. Análise: observa-se que a trabalhadora narrou uma jornada heroica e praticamente
sobre-humana de trabalho, compreendida em cerca de 16 a 17 horas de trabalho por dia, no
decorrer da semana, de segunda a sábado. Afirma ainda que ultrapassava esse horário, pois, às
vezes, precisava esperar o faturamento dos trens, o qual somente se dava após a meia-noite.
Consignou ainda que executava o labor também aos sábados e ao longo de três domingos por
mês. Logo, se ainda havia horas de deslocamento entre casa e trabalho, pode-se concluir que a
trabalhadora, cuja jornada se iniciava entre 7h, 8h horas da manhã, não conseguiria uma noite
de sono nem mesmo de quatro horas.
Esse contrato perdurou por cinco anos e, nos autos, em momento algum, ficou
evidenciado ou alegado que a trabalhadora pugnou pela alteração desse modo de operação de
seu contrato de trabalho, no afã de reduzir a jornada ou migrar para outra função, que lhe
possibilitasse um desempenho laborativo fora desse hiperfuncionamento. Igualmente não foi
apresentado nenhum processo de subjetivação no referente à intenção de algum requerimento
de rescisão indireta desse contrato. Essa posição não apareceu no processo em momento algum.
Os processos de subjetivação que se extraem das manifestações dos autos, no curso de contrato
de trabalho, são no sentido de um envolvimento continuado, durante muitos anos, com o
desempenho desse hiperfuncionamento.
Observa-se que a narrativa de modo de operação do contrato de trabalho, no caso 1,
baliza-se com o perfil constante do referencial teórico, com enquadramento típico da gestão
gerencialista. O desenvolvimento do dia a dia laboral permeia a vida pessoal e familiar do
trabalhador, fazendo com que o trabalho se estenda por várias horas, mesmo fora do ambiente
laborativo, por atitudes como atender ligações ou pela resolução mensal de pendências no
trabalho (Oltramari & Grisci, 2014)
Desempenho reconhecido pela reclamada: extratos de depoimentos da empresa
reclamada: […] “Que o ‘Programa Pool de Bônus’ integra o Programa de Remuneração Variável (PRV) instituído pela reclamada”;
[…] “Que o regulamento desse programa estabelece as metas condicionantes, os empregados elegíveis, bem como as condições para concorrer ao bônus”;
[…] “Que a reclamante concorria, considerando o cargo de coordenadora, no pool do grupo”;
135
[…] “No ano de 2008 a reclamante recebeu, observada a posição obtida no ranking, o valor de R$ 8.768,08”;
[…] “No ano de 2010, a reclamante não atingiu a colocação necessária para receber a premiação, pois a nota atingida por ela foi de 43,89%, tendo direito a receber apenas o PPR”;
[…] “Que a reclamante era analista de gestão e fazia a área de RH”;
[…] “E quem faz o controle de diesel e a área mecânica”;
[…] “Que a reclamante não era responsável por toda a unidade”;
[…] “Que a responsabilidade da reclamante era pela parte de RH”;
[…] “Que a responsabilidade da reclamante era somente com relação ao RH”;
[…] “Que depois a reclamante foi promovida, passando à coordenadora, em Canoas”;
[…] “Que a reclamante exercia cargo de confiança, estando enquadrada na exceção prevista no art. 62, II, da CLT”. Análise: a empresa produziu a defesa em seu favor, alegando o exercício do cargo de
confiança por parte da trabalhadora. Nessa interpretação, entendeu que não haveria de se falar
em pagamento de horas extras, uma vez que os exercentes de cargos de confiança não têm
controle de jornada e, por essa razão, não fazem jus ao pagamento de horas extras. Levantaram
a tese da autonomia e gestão do tempo de trabalho pelo empregado, sem necessidade de registro
ou controle de horário. Ficou reconhecido pela empresa a participação da trabalhadora nos
programas de bônus e concorrência nos pools da categoria de coordenadora. Pelo depoimento
da reclamada, por meio de seu preposto, demonstrou-se que, em 2008, a reclamante obteve
êxito na percepção de remuneração variável, mas, em 2010, já não obteve sucesso. O motivo
da dispensa da reclamante em momento algum se evidenciou no processo, nem pela reclamada
nem pela trabalhadora. Nesse diapasão, não se pode concluir relação entre um declínio nas
concorrências dos pools como fatos geradores da dispensa imotivada. Em momento algum do
processo, essa relação foi evidenciada ou debatida pelas partes.
O “Programa Pool de bônus” integrante do programa de remuneração variável (PRV): […] “Que, muitas vezes, acontecia de a depoente bater a meta, mas Curitiba não validar”;
[…] “Que a trabalhadora era elegível ao ‘Programa Pool de Bônus’ integrante do Programa de Remuneração Variável (PRV), que foi instituído pela reclamada”;
[…] “Este programa de bônus segue regulamento estabelecendo as metas condicionantes e os empregados elegíveis”;
[…] “A reclamante concorria, considerando o cargo de coordenadora, no pool do grupo, que era composto de coordenadores, especialistas, engenheiros de segurança e compradores”;
[…] “Que, no ano de 2008, a reclamante recebeu, observada a posição obtida no ranking, o valor de R$ 8.768,08 e, com relação ao ano de 2010, a reclamante não atingiu a colocação
136
necessária para receber a premiação, pois a nota atingida foi de 43,89%, tendo direito a receber apenas o PPR”;
[…] “Que a gestão de recursos humanos envolvia a satisfação do colaborador, ambiente de trabalho e melhoria do clima organizacional; que, se houvesse faltas, a depoente reportava para Curitiba”. Análise: evidenciou-se essa subjetivação do que se vê nos extratos acima quando a
trabalhadora, como coordenadora de processos, era elegível aos pools do programa de
remuneração variável, concorria e pugnava pelos bônus no curso do contrato de trabalho. Dos
autos constam inclusive das alegações de inconsistência no pagamento de bônus nos anos de
2008 e 2010. Observa-se, nos autos, que a concorrência no programa da empresa se dava
quando o trabalhador almejava uma remuneração variável no curso de seu contrato de trabalho.
Sabe-se que as concorrências por atingimento de metas demandam empenho e dedicação, com
manifestações de engajamento e envolvimento com êxito no decorrer dos contratos de trabalho.
Frisa-se um destaque para o conhecimento e capacitação dessa trabalhadora na compreensão
de parâmetros de satisfação, ambiente de trabalho e clima organizacional. A trabalhadora,
enquanto desempenhava a gestão dos recursos humanos, declarou que esta envolvia a satisfação
do colaborador, ambiente de trabalho e melhoria do clima organizacional; que, se houvesse
faltas, a depoente reportava a Curitiba.
O acidente no parque aquático: a proatividade da trabalhadora em resolver a demanda
de outro responsável pelo setor: […] “Que a depoente estava num parque aquático com seu ex-marido; que telefonaram e disseram que uma pessoa havia caído do telhado e morrido”;
[…] “Que a depoente foi para a empresa; que tentou contato com o gerente da capital, diversas vezes; que não conseguiu contato; que não tinha um técnico de segurança; que ligou para outro gerente; que conseguiu contato com o gerente de segurança”;
[…] “Que a depoente contratou uma obra no telhado da reclamada”;
[…] “Que a portaria permitiu que a empresa prestadora ingressasse em um domingo”;
[…] “Que a depoente não sabia que iriam nesse dia; que a depoente estava num parque aquático com seu ex-marido”;
[…] “Que o gerente responsável era o fulano”;
[…] “Que teve que ficar aguardando na delegacia por quase vinte e quatro horas até que a reclamada dissesse quem era o responsável pela unidade”;
[…] “Que a depoente não tinha subordinados”;
[…] “Que se deslocava até as unidades e orientava as equipes, porém não era responsável por essas equipes”;
[…] “Que a depoente apontava os erros e acertos da unidade; que a depoente respondia para o gerente responsável pelo RS e também para o gerente de Curitiba”.
137
Análise: esses extratos de depoimento da reclamante narram a ocorrência de um
acidente em um dos polos da empresa, num domingo. Nesse dia, a trabalhadora não estava em
serviço e usufruía de folga, estando juntamente com seu marido num parque aquático. Nota-se,
mais uma vez, a evidência de proatividade da trabalhadora no intuito de se inteirar do acidente
ocorrido, em que pese não ser a responsável pela unidade na qual o acidente aconteceu.
Observa-se que a trabalhadora informou que lhe telefonaram para comunicar o ocorrido, e que
ela não era a responsável pelo local. Tanto é que ficou esclarecido nos depoimentos que ela não
respondia como técnica de segurança ou gerente de segurança do local. Tal fato foi declarado
várias vezes, direta e indiretamente, no curso do processo. Nem mesmo a presença da
empregada na delegacia resolveu ou auxiliou a elucidar a questão, pois afirmou que não tinha
conhecimento dos fatos e ficou inclusive lá, à espera do responsável pela unidade.
A função da trabalhadora era de coordenadora e o que fez como englobante da função
de RH foi apenas contratar uma empresa para consertar um telhado. Afirmou que nem mesmo
sabia que o trabalho seria desempenhado naquele domingo. De todas as atribuições de funções
que declarou ter, nenhuma se coaduna com alguma tangente ao acompanhamento do conserto
do tal telhado. A função da trabalhadora era de coordenadora de processos, ficando responsável
pelos processos (controle de diesel, financeiro, recursos humanos, faturamento). Não se falou,
em momento algum, de atuações como responsável por subordinados ou terceirizados,
sobretudo no que se refere à seara de segurança do trabalho. Ainda se deve destacar a conduta
voluntária nesse dia, sobretudo porque a mesma trabalhadora afirmou que não tinha
subordinados, donde se extrai que não havia dever de tutela, zelo ou responsabilidade sobre
quaisquer funcionários. Relembre-se que foi afirmado pela própria trabalhadora que ela
orientava as equipes, apontava erros e acertos, mas que não era responsável por essas equipes
e que não tinha subordinados.
Reconhecimento do rompimento do projeto de vida: casamento; após a extinção do
contrato de trabalho: […] “Que passaram a se ver pouco em razão do trabalho”;
[…] “Que, quando a depoente passou para Canoas, passava muito tempo em trajeto (viagens)”;
[…] “Que a depoente passou a ficar muito tempo fora”;
[…] “Que o marido da depoente passou a viver ‘a vida dele’; que não se viam mais; que acabaram se separando”;
[…] “Que a iniciativa para a separação foi do ex-marido da depoente”.
138
Análise: como decorrência dessa dedicação a esse contrato de trabalho, carreado por
alto desempenho, proatividade, anseios de crescimento profissional, concorrência nos pools de
produtividade, ficam pela reclamante consignados as subjetivações acima elencadas, no que diz
respeito à sua conivência com o marido e ao término de seu casamento. Os processos de
subjetivação vividos pela trabalhadora, que ocupava o cargo de coordenadora, dão mostras de
dedicação e empenho no cumprimento do contrato de trabalho. Uma extensa jornada de
trabalho, atrelada às progressões alçadas na carreira, tentativa de cumprir com êxito o contrato,
ainda que as funções da trabalhadora ficassem em linha tênue entre o que era sua função e o
que era proatividade, não obstante a demanda. Sugere-se que essas demandas são típicas do
perfil das empresas para com funcionários que ocupam essas funções. Nota-se que a atuação da
trabalhadora no caso 1 é compatível com os dados colhidos na entrevista ao magistrado Gama,
sobre as altas demandas e altas reponsabilidades que o empregado tem, posto que, muitas vezes,
o trabalhador se sente na obrigação de atender a contento a demanda da empresa e, por
conseguinte, acaba por aderir ao alto padrão de exigência.
Processos de subjetivação da trabalhadora no curso do contrato de trabalho e
evidenciados em suas manifestações no processo: […] “Reclamante alega ter sido privada do convívio social com seus pares por causa de cumprimento de extensa jornada de trabalho”;
[…] “Diz ter sido humilhada pelos superiores hierárquicos, porque, alegadamente, não teria atingido as metas de produtividade”;
[…] “Que, embora não tivesse conhecimento dos fatos, foi obrigada a prestar informações à Polícia acerca de acidente de trabalho sofrido na reclamada por empregado de empresa terceirizada”;
[…] “Que, em razão das contradições de seu depoimento, ficou detida na delegacia por 24 horas”;
[…] “As alegadas humilhações sofridas por parte dos gerentes não restaram comprovadas nos autos”. Análise: algumas alegações destacadas dentro do processo por parte da trabalhadora
evidenciam um procedimento de subjetivação sobre situações experimentadas no curso do
contrato de trabalho. A trabalhadora faz evidente sua demonstração nos autos, migrando da
posição de proatividade e hiperfuncionamento para um discurso de cunho mais negativo. Eleva
temas como não alcançar produtividade, não atingimento de metas, humilhações por parte de
superiores, o dissabor de precisar aguardar na delegacia para ser liberada após depoimento
sobre o acidente no parque aquático com um terceirizado que prestava serviços de colocar um
telhado na empresa empregadora. Esses temas foram indeferidos nas decisões. Impinge
139
esclarecer que a coleta de depoimentos fica a cargo da autoridade policial, com a supervisão do
delegado de polícia, não sendo uma liberalidade do empregador o momento de dispensa do
depoente. Qualquer outro empregado que eventualmente fosse prestar depoimento somente
seria liberado após autorização da autoridade policial.
O processo de subjetivação que merece destaque cinge-se no trespasse do discurso da
trabalhadora entre a pertença frutuosa no desempenho de seu contrato de trabalho e sua
aniquilação evidenciada após a demissão. Nota-se que o processo judicial não abordou
alegações de tentativa da trabalhadora em atuar em horários ou modos distintos dos que lhe
demandavam intensa atuação no curso do contrato de trabalho.
Elegeu-se o dilema descrito acima para novamente confirmar o enlace com o referencial
teórico de Oltramari e Grisci (2014), no sentido de que a ascensão mais rápida na carreira é
conferida, mais frequentemente, como um reflexo de renúncias à convivência familiar. As
autoras sinalizam ainda que, não obstante a abordagem do estresse e a difícil compatibilidade
entre a carreira e a vida pessoal, as mulheres executivas que galgaram sucesso estavam
realizadas, apesar dos preconceitos e desafios percorridos para se chegar ao auge daquela
carreira.
Processo de subjetivação interpretado pelo magistrado no momento da audiência: […] “Na audiência, o questionamento a respeito da separação foi deixado para o final”;
[…] “A pergunta foi direta: ‘O fulano que teve iniciativa de se separar?’”;
[…] “A reclamante contraiu os ombros, apertou os lábios, ficou com os olhos marejados”;
[…] “Não respondeu de imediato”;
[…] “Respirou e falou que sim”;
[…] “Não teatralizou”;
[…] “Tentou esconder a emoção, mas não conseguiu”;
[…] “Foi contida, sincera e não deixou a menor sombra de dúvida de que sua narrativa era verdadeira”;
[…] “Além disso, a testemunha fulana afirma ter conhecimento de que a separação do casal se deu porque a reclamante, em razão do trabalho, ficava pouco tempo em casa”. Análise: nesse caso, fica claro a consideração do magistrado em observar o processo de
subjetivação da reclamante, no momento em que ela se emocionou ao descrever o rompimento
de seu casamento, quando contraiu os ombros, apertou os lábios e ficou com os olhos
marejados. Nesse sentido, atribuiu a responsabilidade do rompimento conjugal ao excesso de
trabalho desempenhado por ela no curso do contrato de trabalho bem como considerou sua
afirmação de que o pedido de separação foi do ex-marido. Para o magistrado, no caso dos autos,
140
o dano existencial ficou evidente, uma vez que o projeto de vida da reclamante foi
comprometido. Corroborou seu entendimento, esclarecendo que a trabalhadora tem o direito à
vida privada, com lazer, descanso e convívio familiar, e que, ao exigir o cumprimento de
extensa jornada de trabalho, o empregador praticou ato abusivo, comprometendo o projeto de
vida do empregado. Observa-se que o magistrado emprega a palavra exigir, no sentido de
obrigatoriedade. Veja-se estes extratos da decisão com a compreensão do magistrado sobre
excesso de jornada e rompimento de projetos de vida: […] “As pessoas se submetem a trabalhar extensas jornadas porque temem perder o emprego ou porque querem desempenhar suas atividades, não conseguindo dar um basta às exigências do empregador”;
[…] “Não pode a reclamada, empresa de grande porte, em nome do lucro, dar de ombros à integridade física e psicológica dos trabalhadores, mormente quando poderia contratar mais empregados, evitando o excesso de jornada aqui detectado”;
[…] “Esse tipo de atitude merece ser reprimida duramente pelo Poder Judiciário”. Análise: dos extratos da sentença fica clara a compreensão do magistrado da
responsabilidade exclusiva da empresa empregadora no rompimento de projetos de vida de seus
empregados. Fica consignado, inclusive, que os trabalhadores se submetem a essas jornadas
devido ao medo de perder o emprego ou porque querem desempenhar suas atividades. Ao
mesmo tempo em que reconhece responsabilidade da empregadora, reconhece
concomitantemente que o trabalho é desempenhado voluntariamente, por motivações
específicas de cada empregado, quando afirma que uns trabalham muito com medo de perder o
emprego e outros trabalham muito porque querem desempenhar suas atividades. Contudo
declara a responsabilidade ao rompimento do projeto de vida exclusivamente à empresa.
Como já ventilado acima, nota-se que a atuação da trabalhadora no caso 1 é compatível
com os dados colhidos nas entrevistas com os magistrados Alfa, Beta e Gama, quando afirmam
que, muitas vezes, o trabalhador se sente na obrigação de atender, a contento, à demanda da
empresa e, por conseguinte, acaba por aderir ao alto padrão de exigência.
Em momento algum do processo, fica destacada, nas decisões analisadas e mesmo nos
depoimentos das partes, a manifestação de algum inconformismo por parte da trabalhadora no
curso do contrato de trabalho. Fica claro, no processo, inclusive, que a trabalhadora, sempre
que era elegível, concorria no alcance das metas do programa de remuneração variável. Isso se
confirma inclusive quando a própria trabalhadora busca, ainda após a extinção do contrato, o
reconhecimento do direito de um bônus que faria jus relativo ao ano de 2010.
Sugere-se, pela análise dos processos de subjetivação levados a efeito no caso, que a
frustação do projeto de vida e sua relação com o contrato de trabalho tomaram forma somente
141
após a extinção do contrato de trabalho, que se deu por parte da empresa, uma vez que a
trabalhadora não fez pedido de demissão e nem de rescisão indireta.
Essa compreensão se compatibiliza com os dados coletados na entrevista com os
magistrados trabalhistas, no sentido de que, por temer o desemprego, somente após a demissão
o empregado se encoraja a reclamar.
O caso 1 sugere que a trabalhadora se dedicou, por anos, ao cumprimento do contrato
de trabalho, durante todo o pacto laboral. A tentativa de reconhecimento pela competitividade
e bom desempenho se posterga mesmo após a extinção do contrato de trabalho, quando a
trabalhadora fez pedido, na ação trabalhista, de recebimento de bônus a que teria direito nos
pools de competividade dos quais participou. Demonstra progressões na carreira e evoluções
salariais. Não comprova pedido de demissão nem rescisão indireta no curso do contrato de
trabalho. Não demonstra que a trabalhadora tenha pugnado algum retorno a funções
anteriormente ocupadas, no sentido de não mais desempenhar o contrato de trabalho, com
necessário empenho de tempo e função. Uma providência com relação à frustação do projeto
de vida se evidencia somente após a extinção do contrato de trabalho.
7.2.2 Caso 2: processo na 2ª Vara do Trabalho de Campo Grande - Tribunal Regional do
Trabalho do Mato Grosso do Sul - 24ª Região
Vida da relação lesionada: férias. Não gozou férias por nove anos. Como efeito da não
concessão das férias, foram ainda atingidos os projetos de convivência com familiares e amigos,
bem como a saúde mental e a segurança do sujeito trabalhador. Ficou decidido no processo que
a empresa agiu com negligência em não conceder férias para a empregada no decorrer de um
contrato de trabalho que perdurou por nove anos. A conduta da empresa empregadora
configurou ofensa ao patrimônio jurídico personalíssimo, atentou contra a saúde física, mental
e a vida privada da trabalhadora, atingiu frontalmente o direito de sua personalidade.
Neste caso, tem-se uma decisão definitiva, transitada em julgado, ou seja, contra ela
não cabem mais recursos. O processo é originário do Tribunal Regional do Trabalho do
Mato Grosso do Sul, 24ª Região. O empregador se beneficiou da força de trabalho de um
empregado, e este não usufruiu de suas férias por nove anos. Foram comprometidos vários
projetos de convivência com seus familiares e amigos, bem como a própria saúde e
segurança do trabalhador. A condenação foi de R$ 25.000,00. Nesse julgado, a condenação
levou em consideração o comprometimento dos projetos de vida e de suas relações sociais. A
autora da ação trabalhava como assessora do presidente e de diretorias de uma associação.
142
Destaca-se como agravante que não teve sua carteira de trabalho assinada, apesar de preencher
os requisitos de uma típica relação de emprego e, após nove anos de prestação de serviço, a
trabalhadora foi dispensada imotivadamente. Com a ação, ela fez prova de que a conduta da
empresa a privou de uma maior integração familiar e social, bem como impediu sua recuperação
do desgaste físico e mental causado pelo trabalho.
7.2.2.1 Características do contrato de trabalho
Função desempenhada pela trabalhadora: assessora da presidência e das diretorias de uma
associação. Remuneração percebida ao longo do contrato de trabalho: começou com percepção
salarial de R$ 3.600,00 até o ano de 2004 e, a partir de então, média de R$ 6.520,80. Duração do
contrato de trabalho: junho de 2002 a janeiro de 2011 (nove anos). Forma de extinção do
contrato de trabalho: dispensa imotivada sem justa causa. A empresa deliberou
injustificadamente pela dispensa da empregada.
7.2.2.2 Identificação dos pontos de interesse
Extratos dos depoimentos da audiência de instrução:
Desempenho no curso do contrato de trabalho, majoração salarial e evolução no
desempenho das atribuições: proatividade e atendimento das demandas.
Dos pontos de interesses extraídos dos autos, observa-se que, em momento algum, a
trabalhadora se insurgiu contra o não usufruto de seu direito a férias. Não foi alegado pela
reclamante que ela tenha pleiteado esse direito no curso do contrato de trabalho, do mesmo
modo que não buscou pela assinatura de sua carteira de trabalho. O discurso percebido no
processo inicia-se pugnando com a afirmação da prestação de serviço com subordinação
mitigada e conferência de atribuições segundo sua experiência, que foi voluntariamente
demonstrada no curso do contrato de trabalho, conforme se observa nos extratos a seguir: […] “Foi contratada para prestar assessoria. Assessorava o presidente e os demais dirigentes da ré, estando a eles diretamente subordinada”;
[…] “Começou com elaboração de plano estratégico e mapeamento de processos”;
[…] “Como tinha experiência em várias áreas, foram surgindo outras atividades que lhe foram incumbidas pelo presidente”;
[…] “Que passando a desempenhar atividades como auxílio na elaboração e participação nas assembleias, serviços na contabilidade, de revisão, de plano de contas”;
143
[…] “Tambem prestava serviços como secretária executiva do presidente da empresa”;
[…] “Não havia horário fixo para trabalhar”;
[…] “Possuía uma agenda de tarefas segundo as atribuições do presidente da empresa”;
[…] “Nas suas atividades, era auxiliada pelas ‘pessoas da X’”;
[…] “Ia trabalhar de táxi e, às vezes, avisava ao taxista que não iria trabalhar e ia trabalhar de casa mesmo”;
[…] “Foi contratada como assessora da presidência e tinha subordinação apenas com relação aos dirigentes da empregadora”;
[…] “Era uma secretária executiva”;
[…] “Elaborava projetos e tinha experiência em diversas áreas”;
[…] “Como tinha experiência em várias áreas, lhe foram incumbidas outras atividades, contabilidade, prestação de contas e secretaria executiva”;
[…] “Trabalhava de 08 horas a 14/15 horas, de segunda a sexta-feira”;
[…] “Elaborava projetos e plano de contas”. Análise: as qualificações indicadas pela própria trabalhadora não a manteriam, a priori,
no padrão de hipossuficiência de um simples trabalhador. A própria trabalhadora descreve seu
desempenho, reconhecendo que, “como tinha experiência”, foi agregando mais funções:
“Como tinha experiência em várias áreas, lhe foram incumbidas outras atividades,
contabilidade, prestação de contas e secretaria executiva”. Presume-se que essa experiência foi
revelada evidenciando-se em multifuncionalidades e também proatividade. Voluntariamente
ela demonstrou sua aptidão para mais e mais funções, tanto que se estimulou a migração salarial
considerável em menos de dois anos de contrato de trabalho. Começou a trabalhar em 2002 e
recebia salário médio R$ 3.600,00, ato contínuo, logo no ano de 2004, praticamente dobrou a
média da remuneração para R$ 6.520.80, o que perdurou até a sua dispensa.
Observa-se que a jornada de trabalho média não era acentuada. Cerca de seis horas por
dia, de segunda a sexta-feira, como ficou comprovado e não impugnado pela trabalhadora nos
autos do processo.
Relaciona-se ao caso 2 o referencial teórico indicado por Linzmeyer (2014),
reconhecendo o perfil da reclamante por responder às demandas de autonomia, iniciativa,
responsabilidade bem como conduzir seu crescimento profissional.
Testemunha da reclamante: evidência de autonomia no desempenho do pacto
laborativo, subordinação rarefeita: […] “O depoente não trabalhou para a re. É taxista e conduzia a autora de casa para a re por volta de 8 horas, bem como da ré para a residência da autora, por volta de 14h/15h, de segunda a sexta-feira”;
144
[…] “Algumas vezes, a autora não ia para a ré e telefonava ao depoente, avisando que iria trabalhar em casa”. Análise: a trabalhadora tinha a autonomia de trabalhar de casa, como inclusive afirmou
sua própria testemunha. Consta do processo que sua carteira de trabalho não havia sido
assinada, sendo certo que, a priori, tinha tônus de contrato de trabalho autônomo. A
trabalhadora não fez nenhuma menção no processo de que havia pugnado no curso do contrato
de trabalho para que sua prestação de serviço fosse formalizada como uma relação de emprego
na carteira de trabalho.
Testemunhas da reclamada: a alta qualificação da trabalhadora: […] “A autora foi contratada para prestar serviços de consultoria exclusivamente na área administrativa. A autora apresentava projetos de solução para os problemas que surgiam”;
[…] “A autora não estava subordinada a ninguem”;
[…] “A autora utilizava computador próprio”;
[…] “Em certa ocasião, a autora contratou pessoal para auxiliá-la em projeto. Acredita que a remuneração dos auxiliares era feita pela autora”;
[…] “A autora não possuía frequência diária na re”;
[…] “Sempre viu a autora atuando sozinha, sem auxiliares”. Análise: as qualificações indicadas pela trabalhadora bem como o modus operandi da
prestação de serviço são confirmadas e guardam compatibilidade com os extratos dos
depoimentos constantes dos autos pelas testemunhas da empresa. Reafirma-se que não havia
frequência diária, que tinha experiência e foi agregando funções. Inicialmente, auxiliava o
presidente, depois passou a auxiliar toda a diretoria.
Extratos das alegações constantes nas decisões dos autos: processos de subjetivação
percebidos após a extinção do contrato de trabalho: […] “Requereu na exordial a indenização por danos morais decorrente da não concessão de ferias”;
[…] “Alegou que a ausência de ferias, alem de privá-la de uma maior integração familiar e social, impediu a sua recuperação do desgaste físico e mental causado pelo trabalho”. Análise: do que se extrai dos autos, a trabalhadora não se opôs à continuidade do
contrato de trabalho no modo autônomo, ou seja, sem assinatura de sua carteira de trabalho,
durante os nove anos que o pacto laborativo se deu. Igualmente não fez pedido de rescisão
indireta do contrato de trabalho. Da análise dos depoimentos, observa-se que começou fazendo
consultorias autônomas e que, depois, mais atribuições foram aparecendo, sob as quais ela
145
igualmente não se opôs. Nota-se que houve uma migração salarial de praticamente cinquenta
por cento, quando ainda a prestação de serviços perfazia cerca de dois anos.
A conduta da trabalhadora no contrato de trabalho demonstra que compartilhou da
continuidade da prestação de serviço e que cada período aquisitivo de férias, ou seja, a cada um
ano trabalhado, em momento algum, a trabalhadora evidenciou que tinha um projeto de gozo
de férias para acentuar a convivência familiar ou social. Em momento algum, fez essa menção
no curso do processo. A trabalhadora não se opôs ao curso do contrato de trabalho em
andamento, vindo a pleitear direitos somente após injustificadamente a empresa ter rescindido
o contrato e dispensado a reclamante. Lança-se uma dúvida: se a empresa não a tivesse
dispensado, será que até hoje ela estaria trabalhando sem usufruir de férias e sem alegar ofensa
a esse direito?
As digressões fáticas do desempenho da função levantam características de um contrato
de prestação de serviços autônomo. Do processo, presume-se que assim ficou pactuado entre a
empresa e a trabalhadora, posto que não trouxeram ao processo nenhuma tratativa de alteração
desse status. A empresa e a trabalhadora entendiam que se tratava de um contrato autônomo.
Porém, sugere-se que trabalhadora atuava com cumprimento de expectativa de retorno ao local
de trabalho, não obstante demanda de chamamento, o que se deu habitualmente por nove anos.
De fato, a situação sob o pálio das normas trabalhistas pedia um reconhecimento de vínculo
empregatício e todos seus desdobramentos, uma vez que presentes os pressupostos da relação
de emprego.
O caso 2 compartilha os dados obtidos na entrevista com os magistrados Alfa, Beta e
Gama, de que, normalmente, os trabalhadores que estão empregados não se encorajam a
promover a ação judicial no curso do contrato de trabalho. Somente após a extinção do contrato
é que a trabalhadora se conscientizou que passou os nove anos de trabalho sem usufruir de
direitos trabalhistas de uma típica relação de emprego. Ainda assim ficou limitada a pugnar
pelos últimos cinco anos trabalhados, em virtude da prescrição quinquenal que vigora no
processo do trabalho.
O exposto no caso 2 confirma o que se levantou na pesquisa, no sentido de que alguns
trabalhadores rejeitam, inclusive, a receber a tutela justrabalhista, com base na compreensão de
que não são hipossuficientes, como outros trabalhadores ordinários. Ainda que esses
trabalhadores tenham um alto nível cultural, como o caso da reclamante do caso 2, existe uma
concordância com a ausência de direitos trabalhistas básicos, como férias ou licença-
maternidade.
146
Sobre o exposto acima, tem-se que esse trabalhador, no curso de seu contrato de
trabalho, não se percebe como um sujeito de direitos trabalhistas ordinários. Ele não exige a
percepção pecuniária de horas extras ao fim do mês, não faz questão dos repousos semanais
remunerados, não contabiliza intervalos interjornada ou intrajornada. Ele trabalha sem limite
de tempo ou preocupação com as normas que tutelam, em verdade, a saúde e a segurança do
trabalho.
7.2.3 Caso 3: processo na 6ª Vara do Trabalho de Betim - Tribunal Regional do Trabalho
do Minas Gerais - 3ª Região
Projeto lesionado: direito à desconexão. Nesse processo, o pedido de indenização dano
existencial é tangente ao impedimento de se desconectar do empregador fora do horário de
trabalho e usufruir efetivamente de seu direito ao descanso e lazer. As alegações do trabalhador
que prestou serviços para a empresa durante 18 anos circulam em torno dos fatos de que, no
curso de seu contrato de trabalho, mesmo após deixar as dependências da empresa, era
constantemente demandado, por meio de telefone celular, a resolver questões atinentes a
atividades laborativas, permanecendo em regime de sobreaviso.
Peculiaridade deste caso 3 é a de que o êxito do pedido de reparação por danos
existenciais se deu somente em grau de recurso para o Tribunal Regional do Trabalho. O
magistrado de primeira instância indeferiu seu pedido na sentença, explicitando que não teria
ficado comprovado no processo que a frequência com que o trabalhador teria de comparecer na
empresa para além do horário-padrão de seu contrato de trabalho tenha sido suficiente para
comprometer, com gravidade, o convívio social ou lazer desse trabalhador e, por conseguinte,
seu direito à desconexão.
Após a sentença e inconformado com a decisão, o trabalhador recorreu ao Tribunal
Regional do Trabalho competente, pugnando a reforma da decisão. Nesse sentido, o Tribunal
empregou o entendimento contrário ao do magistrado, fundamentando a reforma da decisão. A
decisão de lavra do Tribunal empregou o entendimento no sentido de que, nesse caso,
concomitantemente à imputação de jornada extraordinária de trabalho, que por si já
compromete a saúde do trabalhador bem como sua convivência familiar e social, a empresa
exigia sua permanente disposição em regime de sobreaviso, podendo acioná-lo, via celular,
durante os horários de descanso, nas madrugadas, fins de semana e feriados. Empregando esse
entendimento, o Tribunal deferiu ao trabalhador indenização por danos existenciais no importe
de R$ 10.000,00, tendo em vista o comprometimento a seu direito a desconexão e, por
147
conseguinte, impedimento ao gozo efetivo de lazer e convivência familiar e social. Considerou
que esse trabalhador permanecia em estado de alerta, à disposição da empresa fora do horário
de trabalho, com telefone celular, atendendo a chamadas para resolver problemas via telefônica
ou mesmo comparecendo à empresa, caracterizando o sobreaviso, comprometendo, portanto,
em vários sentidos, a liberdade de escolha da pessoa humana, inibindo a sua convivência
familiar/social e frustrando o seu projeto de vida.
7.2.3.1 Características do contrato de trabalho
Função desempenhada pelo trabalhador: ocupava o cargo de gerente-geral, enquadrava-
se na função de confiança, sem controle de jornada de trabalho. Tinha atribuições de chefiar as
atividades dos motoristas, inclusive autorizando a remessa de pedidos, que podiam ser feitos
por meio de ligações telefônicas, durante a madrugada. Chefiava também a equipe de
vendedores. Começou o contrato de trabalho como vigia. Remuneração percebida ao longo do
contrato de trabalho: o salário do reclamante, de R$ 2.293,32 mais o adicional de periculosidade
de 30%, perfazendo R$ 2.981,31 e pleito de R$ 500,00 por mês, referente a comissões,
perfazendo R$ 3.481,30. Duração do contrato de trabalho: dezembro de 1995 a junho de 2014
(18 anos). Forma de extinção do contrato: dispensa imotivada sem justa causa. A empresa
deliberou injustificadamente pela dispensa do empregado.
7.2.3.2 Identificação dos pontos de interesse
Pontos de interesse extraídos da audiência de instrução e julgamento: extratos de
subjetivações no curso do contrato de trabalho/desempenho do reclamante no curso do contrato
de trabalho: […] “Trabalhou para empresa de dezembro de 1994 a junho de 2014”;
[…] “Dezoito anos de contrato de trabalho”;
[…] “O cargo ocupado no curso do contrato de trabalho era de gerente-geral, sem controle de jornada”;
[…] “Normalmente trabalhava das 8h às 17h, de segunda-feira a sexta-feira, e das 8h às 12h aos sábados, alternados”;
[…] “Por 2 a 3 vezes por semana, estendia o horário de trabalho até às 20h/21h”;
[…] “Ficava à disposição da empresa em regime de sobreaviso”;
[…] “Era acionado para retornar ao trabalho durante as madrugadas, fins de semana, feriados e férias”;
148
[…] “O autor era o encarregado de chefiar as atividades dos motoristas, inclusive autorizando a remessa de pedidos, ainda que isso tivesse que ser feito através de ligações telefônicas, durante a madrugada”;
[…] “O reclamante também chefiava a equipe de vendedores, os quais se reportavam àquele para solução de qualquer pendência”;
[…] “O desempenho de cargo de alta confiança pelo reclamante”;
[…] “Que, quando o reclamante encerrava sua jornada, ainda ficava à disposição da empresa, de vez que portava um celular fornecido pelo empregador”;
[…] “A testemunha afirma que já chegou a telefonar muitas vezes para o trabalhador, em horários diferentes, o que já ocorreu à 0h e também às 2h”;
[…] “Que quando o reclamante não conseguia solucionar o problema por telefone, tinha que comparecer a empresa, lá permanecendo por volta de duas, três horas”;
[…] “Que o tempo à disposição era em todos os dias da semana; que outros empregados e o outro vigia, e os motoristas também ligavam para o reclamante”;
[…] “Que, aos sábados, a empresa funcionava até às 12h, mas que o reclamante já foi chamado para trabalhar depois desses horários para atender motoristas que chegavam atrasados”. Análise: o caso 3 mostra-se especial, posto que a prestação de serviços se deu por 18
anos. Novamente fica evidente a ausência do pedido de rescisão indireta do contrato de trabalho
por parte do trabalhador, ou seja, o trabalhador, no curso do contrato ou mesmo após o término,
não se opôs à sua continuidade ou modo de cumprimento, renunciando à via judicial da rescisão
indireta do contrato de trabalho, ou até mesmo um simples pedido de demissão. Foi a empresa
que dispensou o empregado, depois de todos os anos de trabalho. No caso em análise, o sujeito
trabalhador emitiu no processo a compreensão de que realmente ocupava um cargo de confiança
e tinha atribuições chefia. O pedido do processo ficou vinculado à ausência de gozo de seu
direito ao lazer e convivência social e familiar, pois já saía da empresa com a expectativa de
cumprir a obrigação que lhe fosse demandada via telefone celular. Das manifestações
constantes dos autos, inclusive das testemunhas do próprio reclamante, ficou explícito que, em
momento algum, este se opunha a atender aos chamados ou a não solucionar as demandas. Pelo
contrário, consta de um depoimento que, quando o trabalhador não conseguia resolver a questão
pelo telefone, ele se deslocava até a empresa para atender ao chamado. A jornada de trabalho
nas instalações físicas da empresa, em sua maior parte do contrato de trabalho, não ultrapassava
as 17h, mas as ligações pelo celular ocorriam em variados horários. Havia chamados às 0h, 1h,
4h e 5h. Permanecia em estado de alerta e com limitações ao próprio descanso.
Extratos do posicionamento da empresa/empregador sobre o desempenho do sujeito no
curso do contrato de trabalho: audiência de instrução e manifestações dos autos: […] “Que o trabalhador não se submetia a jornadas exaustivas”;
149
[…] “Era o próprio trabalhador o gestor de seus horários de trabalho”;
[…] “Que o trabalhador foi aprovado em um concurso público de várias fases”;
[…] “Que o trabalhador administrava empresa de sua propriedade”;
[…] “Dispunha de tempo suficiente para seus compromissos sociais”;
[…] “Embora permanecesse de posse do celular da empresa, não havia qualquer restrição para a locomoção, sendo as questões resolvidas em breve diálogo durante as ligações, sem necessidade de deslocamento”;
[…] “Que o reclamante tinha uma serralheria”;
[…] “Que uma testemunha afirmou, inclusive, que já fez serviços para o depoente e que outros motoristas da empresa já prestaram serviços ao reclamante em sua atividade particular, fora da empresa; que esses serviços eram prestados ao longo da semana e fora do horário de trabalho”. Análise: das manifestações da empresa nos autos, não há uma negação expressa das
demandas que o reclamante sofria após o cumprimento de trabalho na estrutura física da
empresa. Contudo a empresa sustenta a tese, que mais adiante foi acatada pelo magistrado de
primeira instância, de que o trabalhador, pelo alto cargo que ocupava, tinha esclarecimento e
grande autonomia em fazer a gestão de seu horário de trabalho. Que, de fato, os cargos de
confiança consistiam em prestação de serviço no modo que o reclamante cumpria.
Evidenciavam um misto de autonomia e liberalidade para suas escolhas, porém sempre
cumprindo a contento a demanda do empregador. Alegam a disponibilidade do trabalhador para
convivência social e familiar, bem como cumprir outros projetos de vida, citando que este foi
aprovado em concurso público de diversas fases e, ainda assim, continuou a trabalhar na
empresa e que ainda tinha uma serralheria. Uma das testemunhas da reclamada afirmou,
inclusive, que já se valeu dos serviços do reclamante pela tal serralheria. Sustenta, assim, a
compreensão de que as demandas da empresa por si não seriam suficientes para comprometer
a esfera fenomênica de existência do trabalhador para o usufruto do lazer e convivência social
ou familiar.
Extratos dos processos de subjetivação evidenciados após a extinção do contrato de
trabalho: […] “Pleiteia o recebimento dos valores correspondentes às horas de sobreaviso”;
[…] “Que o trabalhador portava celular corporativo e necessitava atender aos chamados após o término da sua jornada normal de trabalho, os quais ocorriam com frequência”;
[…] “Sofreu em razão de se submeter a jornadas exaustivas, inclusive permanecendo de sobreaviso após o encerramento do trabalho”;
[…] “Não pode desfrutar do direito ao lazer, com prejuízos inclusive para a saúde”;
[…] “Invoca a teoria do direito ao não trabalho ou da desconexão do trabalho”.
150
Análise: não é prescindível ratificar a duração desse contrato de trabalho. O sujeito
trabalhou para a empresa durante 18 anos. É sabido que, no processo do trabalho brasileiro,
vigora o prazo prescricional de cinco anos. Na prática, o que ocorre é que se limitam aos cinco
últimos trabalhados o pleito de direitos trabalhistas advindos do contrato de trabalho, ficando
prescritos os 13 anos anteriores. Foram declarados prescritos os pedidos iniciais relativos ao
período contratual anterior a 18 de junho de 2009. Das verbas trabalhistas pleiteadas, guardam
relevância para este trabalho o pedido de dano existencial e o pagamento das horas de
sobreaviso.
As horas de sobreaviso compreendem as situações em que o trabalhador permanece,
mesmo que fora do local de trabalho, aguardando o chamado para o serviço a qualquer
momento. As horas de sobreaviso são remuneradas à razão de um terço do salário normal. A
prestação de serviços que se caracteriza sobreaviso confere ao trabalhador o direito de receber
as respectivas horas de sobreaviso, não obstante a efetiva demanda pelo empregador. Nesse
sentido, o trabalhador que reconhecidamente trabalhou no regime de sobreaviso não recebeu os
valores no curso do contrato de trabalho, o que lhe foi deferido somente após ação trabalhista.
O trabalhador fez prova nos autos de que trabalhou em regime de sobreaviso, uma vez que se
considerou a necessidade de comparecer ao trabalho assim que convocado. Demonstrou que
permaneceu de sobreaviso todos os dias, inclusive em fins de semana e feriados, salvo durante
as férias, entre o término de uma jornada e o início da jornada imediatamente seguinte. Diante
desse contexto de sobreaviso, construiu sua argumentação de não desconexão. Invocou a tese
de sempre alerta e à disposição da empresa. Essa situação que perdurou habitualmente em seu
contrato de trabalho, segundo ele, tolheu-lhe o direito ao lazer e à convivência social e familiar,
pois vivia na expectativa de ter de atender a eventual chamado da reclamada.
Extratos da compreensão do magistrado que não reconheceu o pedido de dano
existencial: subjetivações consideradas pelo magistrado no desempenho no curso do contrato
de trabalho: […] “O próprio trabalhador organizava sua jornada de trabalho”;
[…] “Estendia o horário de intervalo muito além da hora a que fazia jus; muitas vezes, encerrava a jornada com antecedência para tratar de assuntos particulares”;
[…] “Jamais o trabalhador atuou em sistema de plantão para poder alegar jornada exaustiva”;
[…] “Não restou comprovado que o reclamante estava subordinado diretamente a outros empregados de maior nível hierárquico, sendo que o proprietário da empresa tratava com o reclamante diretamente”;
151
[…] “O reclamante foi contratado como gerente administrativo, cargo de extrema confiança, com total autonomia e liberdade nas suas decisões na empresa, recebendo salário muito superior ao da categoria e dos demais empregados”;
[…] “Não é plausível a alegação de que o reclamante, pelo cargo que ocupava, fosse obrigado a assinar o aviso previo com data retroativa, contra a sua vontade”;
[…] “Embora permanecesse de posse do celular da empresa, não havia qualquer restrição para a locomoção, sendo as questões resolvidas em breve diálogo durante as ligações, sem a necessidade de deslocamento”;
[…] “Que o reclamante permanecia de sobreaviso todos os dias, inclusive em finais de semana e feriados, salvo durante as férias, entre o término de uma jornada e o início da jornada imediatamente seguinte”;
[…] “O autor era o encarregado de chefiar as atividades dos motoristas, inclusive autorizando a remessa de pedidos, ainda que isso tivesse que ser feito através de ligações telefônicas durante a madrugada”;
[…] “O reclamante também chefiava a equipe de vendedores, os quais se reportavam àquele para solução de qualquer pendência”;
[…] “Os depoimentos dos autos permitem reconhecer o desempenho de cargo de alta confiança pelo reclamante”;
[…] “Não restou comprovado que o reclamante estava subordinado diretamente a outros empregados de maior nível hierárquico, sendo que o proprietário da empresa tratava com o reclamante diretamente”. Análise: conforme já se destacou ao início da digressão do caso 3, o magistrado de
primeira instância entendeu que não ocorreu lesão a projeto de vida do reclamante ou à vida de
suas relações, indeferindo o pedido de indenização por dano existencial. Dos extratos de sua
decisão que constam dos autos, dessume-se que o juiz empregou o entendimento da tese que
reconhece autonomia ao trabalhador que exerce cargos de confiança no desempenho e gestão
de seu contrato de trabalho. O enquadramento do reclamante na exceção do controle de jornada
corresponde à realidade das condições de trabalho do obreiro, que não era vinculado ao
cumprimento de jornada em razão da natureza de suas funções de cunho gerencial.
O entendimento empregado pelo juiz da 6ª Vara do Trabalho de Betim foi no sentido de
que a exigência de cumprimento de extensas jornadas diárias e, ou, semanais não implica, por
si só, ofensa à dignidade pessoal do trabalhador, salvo se ficar comprovado que, para tanto, a
empregadora valeu-se de meios desonrosos, afrontando a autoestima pessoal e, ou, profissional
do empregado, em manifesto abuso do poder diretivo patronal. Explicitou que, no caso dos
autos, o trabalhador era ocupante de cargo de alto grau de confiança, ele mesmo administrando
o próprio horário de trabalho.
No que se refere ao regime de sobreaviso, o magistrado esclareceu que o fato de o sujeito
ter que atender ao celular corporativo a qualquer hora do dia ou da noite, fora dos horários de
trabalho, embora causasse certo desconforto por ter de, repentinamente, desviar sua atenção
152
para os problemas relacionados ao ambiente de trabalho, até mesmo comparecer à empresa para
solucionar tais problemas, eram condições inerentes ao cargo que ocupava, pois era ele o
responsável por diversos setores.
Extratos da compreensão do Tribunal Regional do Trabalho para reconhecer o pedido
de dano existencial: subjetivações consideradas pelo desembargador no desempenho no curso
do contrato de trabalho: […] “O trabalhador que permanece aguardando eventual convocação pelo celular, embora não se submeta a grandes restrições de locomoção como aquele que permanece de sobreaviso na própria residência, mantem o mesmo estado de alerta, ficando a disposição da empregadora”;
[…] “Pois, a qualquer momento, pode ser chamado”;
[…] “Viver não é apenas trabalhar; é conviver; é relacionar-se com seus semelhantes na busca do equilíbrio, da alegria, da felicidade e da harmonia, consigo própria, assim como em todo o espectro das relações sociais materiais e espirituais”;
[…] “Quem somente trabalha dificilmente é feliz; também não é feliz quem apenas se diverte; a vida é um ponto de equilíbrio entre o trabalho e o lazer, de modo que as férias, os intervalos inter e entre jornadas, por exemplo, constituem importantes institutos justrabalhistas, que transcendem o próprio Direito do Trabalho”;
[…] “Viver é, em certa medida, projetar o futuro”;
[…] “Diariamente, desenhamos e recortamos nossos desejos, nossas vontades, nossos sonhos e muito lutamos para alcançá-los, de modo que a conduta da empresa em exigir sempre mais e mais labor de seus empregados, como se fosse uma ‘máquina ou uma coisa’ pode, como no caso, configurar o dano existencial”. Análise: como explanado anteriormente, esse processo obteve reforma de decisão, e o
trabalhador conseguiu o reconhecimento à reparação por dano existencial somente em grau de
recurso para o Tribunal Regional do Trabalho. O desembargador relator do acordão,
denominação dada às decisões proferidas pelo Tribunal, expressou o entendimento de que
ocorreu grave comprometimento da esfera fenomênica do sujeito, com agressão à sua
dignidade. Entendeu o julgador que ficou mais que comprovado no processo que o sujeito
permanecida à disposição empresa fora do horário de trabalho, com telefone celular, atendendo
a chamadas para resolver problemas remotamente ou mesmo comparecendo à empresa,
caracterizando o sobreaviso e tolhendo-lhe o direito à desconexão. Tal situação comprometeu,
nos mais variados sentidos, a liberdade de escolha da pessoa humana, inibindo a sua
convivência familiar/social e frustrando o seu projeto de vida. Sendo certo que a supressão de
tempo para que o trabalhador se realize, como ser humano, pessoalmente, familiarmente e
socialmente é geratriz de danos morais.
153
O Tribunal reformou a sentença do juiz e entendeu que ficou a lesão quando o
empregado tem ceifada a oportunidade de dedicar-se às atividades de sua vida privada, em
razão das tarefas laborais excessivas, deixando as relações familiares, o convívio social, a
prática de esportes, o lazer, ficando vilipendiado o princípio da dignidade da pessoa humana.
O desembargador explicitou que, na ocorrência de jornadas extenuantes, como relatada nos
autos, o trabalhador é explorado exaustiva, contínua e ininterruptamente, retirando do prestador
de serviços a possibilidade de se organizar interna e externamente como pessoa humana em
permanente evolução, ficando desprezado, em consequência, seu projeto de vida.
Em relação aos dois argumentos usados nas decisões desse processo, tem-se que, apesar
de diferentes em suas fundamentações, ambos guardam consonância com o entendimento
majoritário vigente na seara justrabalhista. O que, na verdade, estimulou a reforma da decisão
foram os pontos de partida para interpretar o caso concreto. O magistrado de primeira instância
adotou o entendimento de que empregados que ocupam cargos de confiança e atuam como
coadjuvantes na gestão de tempo de trabalho não obtêm êxito em pedido de dano existencial,
uma vez que a jornada extraordinária não poderia ser mensurada, dada à inexistência de
qualquer controle de horário. Em outro sentido, o Tribunal empregou o deferimento do dano,
posto que o empregado não podia se desligar do trabalho, mesmo no momento em que estaria
descansado, uma vez que ficou caracterizada a situação de sobreaviso.
O caso 3 confere uma situação em que o trabalhador reconheceu que ocupava cargo de
confiança, mas que isso não significou ficar à disposição da empresa 24 horas por dia. Ocorre
que, nos autos, não ficou demonstrada alguma alegação da impugnação ao estado de sobreaviso
que vigorou no curso do contrato de trabalho. Tanto que não houve percepção de sobreaviso
durante os 18 anos em que o contrato se desenvolveu. Tal pleito somente veio à tona após a
extinção involuntária do vínculo.
Dos processos de subjetivação presentes no caso, observou-se que ocorreu uma
migração de função no curso do contrato de trabalho. Não houve oposição demonstrada no
processo ao modo de execução no curso do contrato de trabalho. O trabalhador desempenhava
outras atividades, como ser proprietário de uma serralheria e se dedicar a participar de concurso
público. Atendia a contento aos chamados de trabalho pela empresa e demais empregados. Teve
um contrato de trabalho com duração considerável. Não apresentou pedido de demissão nem
de rescisão indireta do contrato. Não recebeu horas de sobreaviso no curso do contrato de
trabalho. Não pleiteou recebimento de horas de sobreaviso na vigência do contrato de trabalho.
Não desligava o telefone. Não desconfigurava a situação de estar disponível para atender ao
chamado da empresa. Após a extinção do contrato de trabalho, pleiteava o reconhecimento da
154
ausência de direito à desconexão em virtude de se manter disponível para a empresa, mesmo
após sair do local de trabalho, em que pese reconhecer expressamente que ocupava um cargo
de confiança.
O caso 3 se compatibiliza com o disposto nas entrevistas com os magistrados Alfa, Beta
e Gama, no que se refere ao medo do desemprego como justificativa para o consentimento do
modo de desenvolvimento do contrato de trabalho.
7.2.4 Caso 4: processo na 2ª Vara do Trabalho de Marabá - Tribunal Regional do
Trabalho do Pará e Amapá - 8ª Região
Vida da relação lesionada: direito social: não usufruto das férias por 14 anos. O caso 4
aborda situação de dano existencial pelo não gozo de férias por todo o pacto laboral. Frisa-se
que é diferente do caso 2, no qual o vínculo empregatício típico da relação de emprego foi
formalizado somente após a reclamatória trabalhista, posto que se desenvolveu ao longo da
prestação de serviços como um contrato de trabalho autônomo. Aqui, no caso 4, a relação
empregatícia já nasce formalizada na carteira de trabalho da obreira, desde o início da prestação
de serviço. Desse modo, dela advém toda a leva de direitos trabalhistas típicos de uma relação
de emprego; dentre eles, as férias. O direito ao gozo das férias advém após o chamado período
aquisitivo, compreendido pelo labor em 12 meses. Após o período aquisitivo, nasce o período
concessivo, que se estabelecerá por mais 12 meses, quando então as férias devem ser usufruídas.
Ainda sobre o instituto jurídico das férias, o ordenamento justrabalhista brasileiro
confere a possibilidade do chamado abono pecuniário de férias, nos termos do artigo 144 da
CLT. Por tal dispositivo, fica facultado ao empregado converter em abono pecuniário um terço
do período de férias a que teria direito, no valor da remuneração que lhe seria devida nos dias
correspondentes. No caso dos autos, a trabalhadora fez prova de que, durante todo o pacto
laboral, nunca gozou das férias. Demonstrou que, pela sistemática de trabalho da empresa,
exigia-se que a trabalhadora requeresse o abono pecuniário de dez dias por ocasião das férias,
quando então ela recebia o valor do referido abono, sem, contudo, gozar de nenhum dia de
férias. O juiz de primeira instância reconheceu a não concessão das férias por 14 anos de
prestação de serviços e condenou a empresa ao pagamento de uma reparação, que entendeu por
bem denominar de dano moral, no valor de R$ 17.376,00. Diante dessa decisão, a empresa
reclamada recorreu, e o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, Estados do Pará e Amapá,
confirmou a sentença nesse sentido, mantendo o valor da condenação.
155
O Tribunal Regional do Trabalho complementou o julgado, esclarecendo que se tratava
de dano existencial propriamente dito e não apenas dano moral. Entendeu que foi lesionada a
vida social da trabalhadora, por meio de conduta contumaz da empresa em não permitir usufruto
de férias anuais. Asseverou que as férias são um direito constitucionalmente assegurado, que,
além de visar à proteção da integridade física, mental e moral do empregado, possibilita que
este usufrua do convívio social e familiar, que tenha lazer, que participe de atividades educativas
e, ou, religiosas. Concluiu na ementa do julgado que fica latente o reconhecimento de que a
empresa causou dano à vida em sociedade de sua ex-empregada, provocando um vazio
existencial em sua pessoa.
7.2.4.1 Características do contrato de trabalho
Função desempenhada pela trabalhadora: gerente do setor de vendas. Gerenciava
aproximadamente 2 mil revendedoras que faziam parte do seu setor de vendas, atuando, por
anos, em 19 campanhas com divulgação de produtos. Remuneração percebida ao longo do
contrato de trabalho: no início, fixa de R$ 2.984,78 e as comissões variáveis, no percentual que
variava de 0,099% a 2,6% sobre as vendas de seu setor. Demonstrou evolução salarial,
percebendo, como última remuneração, o valor de R$ 25.043,93. Duração do contrato de
trabalho: 19 de outubro de 1998 a 17 de julho de 2012 (14 anos). Forma de extinção do contrato
de trabalho: dispensa imotivada sem justa causa. A empresa deliberou injustificadamente pela
dispensa da empregada.
7.2.4.2 Identificação dos pontos de interesse
Extratos de subjetivações no curso do contrato de trabalho e desempenho da
trabalhadora: audiência de instrução, pedido inicial e sentença: […] “Que trabalhou para a reclamada de 19/10/1998 a 17/07/2012 como gerente de setor de vendas”;
[…] “Que recebia renda adicional calculada sobre o resultado líquido e não sobre as vendas”;
[…] “Que nunca gozou férias, vendendo sempre 10 dias”;
[…] “Que a reclamante trabalhava como setor de vendas abrangendo a Região do Maranhão, Tocantins e Sul do Pará”;
[…] “Que a base da reclamante ficava em Marabá”;
[…] “Que nenhuma gerente tirava férias”;
[…] “Que era uma sistemática da empresa não conceder férias a gerentes de vendas”;
156
[…] “Que a reclamante foi admitida em 1998 na função de gerente de Setor de Vendas, cargo que ocupou até sua demissão injusta, em agosto de 2012”;
[…] “Que a última e maior remuneração foi paga no montante de R$ 25.043,93, sendo esse valor inclusive para o pagamento do aviso prévio”;
[…] “A reclamante tinha responsabilidade e gerenciamento de aproximadamente 2.000 revendedoras, que faziam parte de seu setor, sendo o valor das comissões resultantes da venda efetuada por todas as revendedoras que compunham seu setor”;
[…] “Que muitos valores eram descontados todos os anos da reclamante, sem que ela houvesse dado causa a esses descontos”;
[…] “Na campanha 03 de 2012, a reclamante recebeu sobre as vendas de R$ 263.596,00, sendo que, na verdade, o valor devido da venda era de R$ 325.285,94”;
[…] “Todos os produtos já haviam sido vendidos pela reclamante, entretanto, por erro da empregadora, eram devolvidos e os valores descontados nos cômputos das comissões”;
[…] “Afirma a reclamante que sua remuneração era composta de salário fixo mais comissões sobre as vendas (variáveis de 0,99% a 2,6%). Aduz que a reclamada realizava descontos indevidos sobre os valores das comissões, deduzindo as devoluções parciais, as devoluções totais, os produtos não disponíveis e os valores não pagos pelos clientes”;
[…] “Assevera ainda que, em função dos descontos indevidos, não recebia o correto percentual sobre as comissões, requerendo a devolução dos descontos indevidos, bem como o pagamento da diferença das comissões recebidas”;
[…] “Que a reclamante tem o direito de receber o valor de R$ 258.400,00, referente a pedido de devolução dos descontos indevidos”. Análise: nota-se que, de fato, o cargo desempenhado pela trabalhadora, como por ela
afirmado, sempre foi o de gerente de vendas. Nessa senda, a remuneração recebida projeta-se
em ascensão conforme maior seja as vendas. Esse era o objeto típico de seu contrato de trabalho
desde o começo da prestação de serviço para a empresa. Nota-se que o valor da remuneração
base da obreira, sem as comissões de vendas, era bem menor do que os auferidos com as
comissões. A obreira demonstrou conhecimento do modo de repasse das comissões e descontos
praticados pela empresa ao longo dos 14 anos, inclusive fazendo prova detalhada da conduta
patronal nos autos.
Dos pedidos constantes dos autos, observa-se que, em sua maioria, são tangentes a
percepções de comissões com vendas, sempre desempenhadas a contento pela obreira. A todo
momento, a trabalhadora afirma que ela e sua equipe de revendedoras vendiam muito, e faziam
jus às altas comissões. Afirmou que gerenciava cerca de 2 mil revendedoras, o que, por óbvio,
demandava-lhe tempo e intensa dedicação e acompanhamento das vendas dos produtos, uma
vez que recebia de acordo com a venda de suas revendedoras. Na análise dos processos de
subjetivação da audiência e pleito inicial, denota-se um desempenho de constante perseguição
em alcançar boas vendas, o que lhe trazia um reflexo material positivo pela ascensão salarial.
Do mesmo modo, a maior parte dos pedidos são pelo reconhecimento dessas vendas e o
157
pagamento correto das comissões ou supressão de descontos indevidos. Pedidos carreados com
demonstrativos de alto desempenho para vendas e êxito total no cumprimento do seu contrato
de trabalho.
Processos de subjetivação da trabalhadora no seu pleito inicial sobre a conduta da
empregadora em não conceder férias para as gerentes de vendas: […] “Pela sistemática de trabalho da reclamada, havia a exigência (não formal), de que fosse requerido o abono pecuniário de dez dias por ocasião das ferias”;
[…] “A reclamada formalizava as férias, através da assinatura em aviso de férias, recibo, pagava o abono constitucional e o abono pecuniário de (10 dias), mas na realidade, a reclamante não saia regularmente de férias”;
[…] “Em vista do ritmo de trabalho, da sistemática adotada pela empresa e das campanhas frequentes, a reclamante não podia usufruir de suas ferias da forma devida”;
[…] “Recebia a remuneração de dez dias na forma de abono pecuniário e não usufruía o restante das férias, trabalhava normalmente neste período”;
[…] “Que teve seu direito constitucional de descanso negado pela reclamada, devendo ser reparada por dano ao pagamento de doze remunerações mensais da obreira”. Análise: impõe-se destaque nos processos de subjetivação que englobam as férias, posto
que foi com base nesse objeto que o Judiciário Trabalhista reconheceu a ocorrência de dano
existencial, conferindo uma lesão à composição fenomênica da trabalhadora, por não usufruir
das férias durante todo o curso de seu contrato de trabalho. Dos extratos de manifestação da
obreira, esta afirmou nos autos que era comum a sistemática das gerentes de vendas não
usufruírem das férias. Um processo de subjetivação levado em consideração na manifestação
da obreira foi no sentido de ela própria justificar a sistemática da empresa em não concessão de
férias, compatibilizando-a com o ritmo de trabalho. Notou-se que a obreira coaduna o ritmo de
trabalho com a sistemática e, por esse motivo, não usufruía de férias. Esse processo de
subjetivação importa uma reflexão dos efeitos de interrupção do contrato de trabalho por parte
da obreira para usufruir pelo menos de 20 dias de férias. Seriam efeitos diretos nas suas vendas
e, por conseguinte, em sua remuneração. Lança-se uma reflexão: a reclamante poderia ter se
oposto à sistemática da empresa, pugnando por alguns dias de férias? E, por conseguinte,
diminuindo sua remuneração? Nos autos, em momento algum, a trabalhadora demonstrou ter
feito algum pedido, no curso dos 14 anos de contrato de trabalho, de gozar efetivamente de suas
férias.
158
Processo de subjetivação da obreira: impugnação pela não minoração de suas demandas
laborativas (rezoneamento): pleito pela manutenção do alto desempenho nas vendas: […] “A reclamante alega que a reclamada realizava um rezoneamento de vendedoras quando havia um aumento significativo das vendas, ocasionando queda no valor das comissões, bem como no salário da obreira”;
[…] “Aduz que, desde 2008, teve seu setor reduzido no número das revendedoras e, por consequência, nas vendas”;
[…] “Empresa, quando verificava um crescimento real e significativo de vendas e número de revendedoras dos setores de vendas, ela retirava revendedoras e formava outro setor”;
[…] “Por ser uma empregada dedicada, sempre buscou e conseguiu os resultados exigidos pela empresa, e seu setor crescia não só em números, mas também em valor de venda”;
[…] “Em 2007 a empresa retirou do setor da obreira mais de 500 revendedoras, acarretando como consequência a não percepção de comissão de 2,6% sobre R$ 120.000,00”. Análise: os extratos acima remontam ao relatório da sentença do processo, com um
pedido da reclamante para que fosse compensada do chamado rezoneamento, que lhe acarretou
perda salarial. Esclarece-se, desde já, que esse pedido foi indeferido na sentença. A reclamante
afirmou que, devido ao aumento significativo de suas vendas, a empregadora fez um
rezoneamento das vendedoras que ficavam sob a gerência da reclamante no ano de 2008. Esse
rezoneamento diminuiu a demanda de trabalho, as vendas e, por consequência, sua renda.
Entendeu a reclamante que essa diminuição não poderia ter ocorrido, que deveria ter sido
mantido o número de vendedoras sob seu pálio, bem como as demandas de vendas. Por não
concordar com a conduta de rezoneamento, pleiteou uma reparação material, o que foi
indeferido pelo magistrado. Esse processo de subjetivação sugere a manutenção do alto
desempenho de venda e atuação no contrato de trabalho por parte da obreira, uma vez afirmar
ser empregada dedicada e que sempre buscou, e conseguiu, os resultados exigidos pela empresa.
O destaque ao processo de subjetivação trazido a efeito é no sentido da impugnação da
reclamante em uma eventual diminuição das demandas, fazendo sugerir que o desempenho de
atuação sem zoneamento era o que lhe atendia. Não aceitou uma demanda menor de trabalho,
pugnando pela manutenção de sua atuação em alto desempenho, sugerindo que esta fosse sua
opção, posto que não haveria a diminuição salarial.
Compartilhando o referencial teórico da pesquisa, o caso 4 demonstra que a
hipersolicitação é capilarizada como inerente ao curso do contato de trabalho. Como narrado,
o próprio trabalhador não pugnou por uma diminuição de demandas, pelo contrário, insurgiu-
se contra ela.
159
Extratos da compreensão do magistrado da Vara do Trabalho de Marabá para
reconhecer o pedido de dano com base no não usufruto das férias: […] “A reclamante alega que, durante todo o pacto laboral, nunca gozou ferias, requerendo o pagamento das ferias acrescidas de 1/3” (folha 27);
[…] “A reclamada(o) nada apresentou a respeito do controle de frequência de sua empregada. O depoimento da testemunha X, também gerente de setor de vendas como a reclamante, demonstra que não só a reclamante como todas as demais gerentes não gozavam ferias”;
[…] “Julga-se procedente o pedido de pagamento das férias acrescidas de 1/3, durante todo o pacto laboral”;
[…] “Requer a reclamante indenização por dano em virtude de nunca ter usufruído ferias durante o labor para a reclamada”;
[…] “A lesão é decorrente de um ato ilícito. O ato ilícito é aquele praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual”;
[…] “No presente caso, o depoimento da testemunha X (folha 430-verso) comprovou que a reclamante não gozava férias, ao afirmar que: […] a depoente nunca gozou férias; que não recorda de a reclamante e nenhuma outra gerente ter gozado férias[…]”. Análise o magistrado enquadrou no grande gênero das reparações extrapatrimoniais a
conduta de não concessão de férias. Na formação de seu livre convencimento, nota-se que se
valeu das provas produzidas e não refutadas no processo sobre violação das férias. Valeu-se
também dos depoimentos das testemunhas. Esclareceu, em seu julgado, que, com relação ao
valor a ser fixado, deveria seguir os parâmetros previstos na legislação civil e penal,
subsidiariamente aplicada, já que a ofensa moral perpetrada se alinha à figura dos crimes contra
a honra. Para o magistrado, as circunstâncias do caso concreto, a finalidade reparatória e
sancionatória da compensação pela dor moral que deve ser aplicada em conjunto com a
razoabilidade, e arbitrou a indenização no limite de R$ 17.376,00.
Extratos da compreensão do desembargador relator do Tribunal Regional do Trabalho
da 8ª Região, na confirmação do dever de indenizar o dano existencial, com base no não
usufruto das férias: […] “De outra banda, como bem observado pelo Juízo a quo, o depoimento da testemunha obreira foi claro em demonstrar que todas as gerentes de setor, inclusive a reclamante, não gozavam de ferias”;
[…] “Desse modo, entendo que a reclamada não se desincumbiu de comprovar que a reclamante gozou as ferias por todo o pacto laboral, motivo pelo qual mantenho a decisão recorrida”;
[…] “Frisa que os pressupostos para o deferimento da referida indenização são: (I) ação e omissão do agente; (II) culpa do agente; (III) efetiva ocorrência de dano extrapatrimonial; e (IV) relação de causalidade entre a ação ou omissão e o dano apresentado”;
160
[…] “Prima facie, ressalta-se que, embora o pedido se dê a título de “dano moral”, entendo que, de acordo com os fatos relatados na inicial, a causa de pedir remete-nos ao que a jurisprudência moderna denomina de dano existencial”;
[…] “A Constituição Federal prevê, em seu artigo 7º, inciso VII, para os trabalhadores urbanos e rurais, o gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal”;
[…] “Tal previsão constitucional tem por escopo a incolumidade física e psíquica do empregado, haja vista que esse período de descanso visa a reparar as energias por ele gastas, dando-lhe condições de retornar revigorado para mais uma etapa de trabalho”;
[…] “A obreira deixou de usufruir das férias por todo o pacto laboral, tal conduta da reclamada comprometeu, haja vista que não foram garantidos a ela o direito à saúde, ao lazer, à segurança e aos seus projetos de vida”;
[…] “A não concessão das férias ao trabalhador representa para ele desistir involuntariamente de seus interesses pessoais e sociais, pois tem que abdicar de momentos únicos e especiais junto aos seus familiares ou do convívio com amigos, privando-o de adquirir novas experiências e conhecimentos, ou mesmo de ficar disponível a novas oportunidades de vida ou de existência”. Análise: o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, ao julgar o recurso da
reclamada, entendeu por bem, ainda que por outros fundamentos, manter a sentença que
condenou a reclamada ao pagamento de indenização pela não concessão de férias anuais ao
longo do pacto laboral, especificando-a como dano existencial propriamente dito. Para o
desembargador relator, a oportunidade das férias reflete no bem-estar psíquico, moral e físico
dos trabalhadores, concluindo que a violação ao direito de férias causa dano ao patrimônio
imaterial do trabalhador. Esse prejuízo não se vê reparado pelo simples pagamento das férias
vencidas em dobro, como prevê o artigo 137 da CLT, o que compensa, quando muito, apenas
o lado econômico e material das pessoas ofendidas.
O TRT da 8ª Região entendeu que a não concessão de férias ao trabalhador importa no
abandono do dever de observar um dos direitos sociais mais importantes assegurados aos
trabalhadores, o descanso anual, afirmando que o garante não somente a integridade física,
mental e moral do empregado, mas lhe possibilita usufruir mais intensamente do convívio com
seus familiares, com seus amigos, do lazer ou de atividades recreativas.
A narrativa do caso 4 (14 anos sem férias) finca mais uma vez aderência aos
apontamentos da pesquisa de Tonon e Grisci (2015), no que se refere à subjetivação daquele
trabalhador tão envolvido pela gestão gerencialista no curso de seu contrato de trabalho,
emanando um consentimento e aderência ao contrato nos moldes em que ele se desenvolve. No
mesmo sentido, confirma-se novamente as manifestações de consentimento no curso do
contrato de trabalho, reverberando o inconformismo somente após a demissão.
161
8 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O trabalho está presente no cotidiano das pessoas e capilarizado nas relações extralabor.
Das entrevistas realizadas e dos casos selecionados, compreende-se que a concepção de valor
e significado de trabalho é variável entre os sujeitos. Essa multiplicidade de percepções vem
refletida de acordo com a função, com a natureza do trabalho, com a dependência econômica
ao trabalho, com o medo do desemprego ou com a necessidade de mantença do status fornecido
por aquele contrato de trabalho. Essa extração se coaduna com as reflexões de Arendt (1997)
expressadas no referencial teórico, confirmando as inúmeras adversidades de existência que o
sujeito trabalhador perpassa, às vezes atreladas à própria sobrevivência, sujeitando-se a
circunstâncias que violam sua dimensão física e mental.
A maioria dos casos analisados confirmou a primazia da realidade sobre a forma. Isso
significa dizer que existe um pacto documental pro forma de todo o contrato de trabalho ou de
apenas alguns de seus elementos, mas, na prática hodierna do desenvolvimento do pacto, a
situação fática é bem diferente da formalizada tácita ou expressamente. Na seara justrabalhista,
existe um princípio que confirma essa ocorrência presenciada nos casos analisados,
denominado “princípio da primazia da realidade”. Por tal princípio jurídico, gera-se uma
presunção de veracidade dos fatos sobre alguns documentos. Geralmente os fatos com primazia
da realidade são situações passíveis de ocorrer, com conhecimento do homem mediano:
“situações que todos sabem que acontecem”.
A situação do caso 1 (divórcio) indicava-se à ocupação de um cargo de confiança apenas
na nomenclatura, uma vez que faltaram elementos jurídicos típicos da configuração do cargo
de confiança, tanto que o magistrado reconheceu controle diferido de jornada para a
trabalhadora, deferindo o pagamento de horas extras.
No caso 2 (nove anos sem férias), existia uma prestação de serviço formalizada como
se a trabalhadora fosse uma autônoma, sendo certo que, já havia algum tempo, o vínculo
empregatício já se formalizara como típica relação de emprego, devendo a carteira de trabalho
da trabalhadora ter sido assinada.
No caso 3 (desconexão), o trabalhador desempenhava função formalizada de cargo de
confiança, o que, por si, afasta o pagamento de horas extras, mas, em contrapartida, atuava em
regime de sobreaviso, sem receber a devida complementação do acional.
No caso 4 (14 anos sem férias), confirma-se uma triste realidade no desenrolar dos
contratos de trabalho. A formalização por escrito do gozo de direitos que nunca foram
efetivadas. Com exemplo, há o documento assinado pela obreira nos 14 anos de prestação
162
laborativa, de que estaria recebendo abono de dez dias de férias e, teoricamente, usufruindo dos
20 dias restantes. Apesar de formalizada em documentos, a trabalhadora não usufruiu de férias
em nenhum período, durante todo o pacto laborativo.
Na maioria dos casos, os contratos de trabalho subsistiram com duração considerável
de vigência (5, 9, 14 e 18 anos de vigência). Igualmente, na maioria dos casos, não houve pedido
de demissão por parte de nenhum dos trabalhadores; todos os contratos de trabalho foram
extintos por iniciativa da empresa. Não foi verificado pedido de rescisão indireta do contrato
de trabalho em nenhum dos casos analisados. O pedido de rescisão indireta assiste ao
trabalhador quando a empresa incorre em descumprimentos da lei ou do contrato de trabalho
durante sua vigência. Em nenhum dos casos se fez menção a quaisquer ocorrências,
impugnações ou questionamentos de direitos no curso do contrato de trabalho.
Os processos analisados também não evidenciaram pedidos de interrupção do modo de
desenvolvimento do pacto laborativo. Nenhum dos trabalhadores levou ao processo
manifestações de subjetividade no sentido de pugnarem pela diminuição das demandas no curso
do contrato de trabalho ou de alguma reversão a cargos anteriormente ocupados.
Sobre esse consentimento e ausência de impugnação pelo modo que se desenvolvia o
contrato de trabalho, tem-se que todos os magistrados entrevistados confirmaram que os
trabalhadores, em sua maioria, salvo os estáveis, não reclamam seus direitos na vigência dos
contratos de trabalho. Somente após a extinção desse pacto é que os trabalhadores se
encorajavam a pugnar seus direitos.
No enlace entre os casos analisados e o referencial teórico indicado por Oltramari e
Grisci (2014) trabalhado nesta tese, sobre o consentimento do trabalhador, entende-se pelo
sentido do medo do desemprego juntamente com a vontade de manter o contrato de trabalho,
que, apesar das altas exigências, proporciona o padrão de vida ao trabalhador e sua família.
Sobre a clara demonstração do projeto de vida ou da vida das relações invocada como
lesionadas, os casos apresentados indicam peculiaridades. Nesse sentido, a metade dos casos
analisados evidenciou claramente a violação a um projeto de vida ou a vida das relações.
No caso 1, ficou clara a narrativa fática do rompimento do casamento, sobretudo no
entendimento da trabalhadora. A subjetivação da trabalhadora nesse aspecto aparece nos
meandros de todo o processo. Nesse caso, inclusive o magistrado fundamenta sua decisão
amparado na manifestação subjetiva da trabalhadora, quando esta, em seu depoimento pessoal,
emocionou-se ao falar do rompimento conjugal.
O caso 2 adentrou com o pedido de dano existencial referente ao não gozo de férias por
nove anos de pacto laborativo. Esse caso não trouxe, de forma evidente, narrativas fáticas de
163
comprometimento pelo não gozo de férias. Ficando a lesão de forma diferida pelo não usufruto
do direito que lhe foi assegurado.
O caso 3, que abordou pleito indicando como causa de pedir a impossibilidade de
desconexão, deixou evidente, no processo, o estado de sempre alerta do trabalhador. Este
descreveu no processo e fez prova de ficar com o celular à disposição da empresa, ele também
resolvia várias situações por telefone quando era demandado e, às vezes, deslocava-se para a
empresa para resolver tal demanda.
Por derradeiro, no caso 4 (assim como ocorreu no caso 2), o processo ficou carente de
narrativas de situações fáticas decorrentes do não gozo de férias. As férias não foram usufruídas
por todo o pacto laborativo, que perdurou 14 anos. O deferimento da indenização se deu pela
violação diferida ao direito invocado. A trabalhadora não levou ao processo situações que
ocorreram ao longo desse período, como uma viagem que foi programada e ficou
comprometida, um encontro de família, algum aniversário ou evento a que não pôde
comparecer. A narrativa se deu apenas no sentido de que seu direito constitucional de descanso
foi negado e que, pela sistemática de ritmo de trabalho da empresa, não pôde usufruir
devidamente de férias.
A maioria dos casos presenciou migrações de funções ao longo do desenvolvimento do
contrato de trabalho. Ocorreram promoções a novos cargos e aumentos salariais. Em apenas
um caso, a função permaneceu a mesma, mas houve acentuação de demandas e progressões no
desempenho das funções, compreendendo, no caso específico, melhora acentuada nas vendas
e, por conseguinte, na percepção da remuneração.
Todos os casos indicam a busca pela reparação ao projeto de vida ou vida das relações
somente após a demissão. Em que pesem algumas subjetivações extraídas dos autos (por
exemplo: inexistência de manifestações no curso do contrato de trabalho, pugnando por
mudanças no seu modo de execução; existência da prescrição quinquenal que vigora no
ordenamento jurídico, a qual limita os pleitos trabalhistas somente aos últimos cinco anos de
contrato de trabalho), não se pode afirmar que havia a percepção, já no curso do contrato de
trabalho, de que estaria sendo lesado aquele projeto de vida ou a vida da relação tida mais tarde
como lesionada. Do cotejo com as entrevistas com os magistrados, depreende-se que, apesar de
querer mais tempo com a família, a dependência ao contrato de trabalho era mais acentuada.
Ficou evidente, na análise dos dados extraídos das entrevistas com os magistrados, que,
na maioria das vezes, a Justiça do Trabalho decorre de pleito das pessoas que sofreram uma
frustação evidenciada após a extinção do contrato de trabalho, visto que, na maioria dos casos,
as demandas são propostas por desempregados. Os casos analisados não indicaram se esses
164
trabalhadores já estavam recolocados no mercado de trabalho quando da propositura das
reclamatórias trabalhistas. Contudo tem-se que, na metade dos processos analisados, a
distribuição da reclamatória trabalhista se deu após o transcurso de cerca de três meses da
ocorrência da demissão. Em um dos casos, a distribuição do processo se deu em ato contínuo à
demissão. Por derradeiro, em apenas um dos casos é que se levou mais tempo para a distribuição
da reclamatória trabalhista.
No caso 1 (divórcio), o contrato de trabalho perdurou até agosto de 2012, e o processo
foi distribuído em novembro do mesmo ano. O caso 2 (nove anos sem férias), cujo contrato de
trabalho se encerrou em janeiro de 2011, teve a demanda ajuizada em abril daquele mesmo ano.
Já no caso 3 (desconexão), o protocolo de distribuição da reclamatória trabalhista se deu no
mesmo mês da extinção do contrato de trabalho: junho de 2014. Apenas no caso 4 (14 anos sem
férias) decorreu-se um interregno maior, de aproximadamente um ano e três meses, sendo o
contrato extinto em julho de 2012 e o processo distribuído em outubro do ano seguinte.
A elevação de alguns elementos de subjetivação nos casos analisados sugere o
compartilhamento dos dados obtidos com as entrevistas realizada com os magistrados Alfa,
Beta e Gama: a maioria dos entrevistados sinalizou que o trabalhador é movido, em sua maioria,
por diversas e particulares razões a se manter no trabalho. As motivações são variadas e não se
esgotam nesse elenco. Passam por alta competitividade, orgulho de trabalhar naquela empresa,
o fato de aquele ter sido o primeiro emprego e, naquela empresa, a carreira ter se desenvolvido,
vaidade, sobrevivência, querer construir um patrimônio, necessidade de provar algo a alguém
ou a si mesmo. Todos os magistrados deram destaque a que a maioria dos trabalhadores temem
perder o emprego, razões pelas quais não se insurgem contra o empregador no curso de seus
contratos de trabalho.
Foi sinalizado pelo magistrado Gama que a dependência ao contrato de trabalho fica
presente em altos cargos por motivos variados. Às vezes, emana a ideia de consentimento,
subordinação, naturalidade ao chamado para hiperfuncionar. Os altos salários vêm com altas
atribuições e altas reponsabilidade, geralmente desassociadas de marco espaçotemporal no
cumprimento da jornada de trabalho. Nos altos cargos, fica premente que o trabalhador também
não quer ser demitido. O rompimento do contrato de trabalho sem que isso emane de um ato
voluntário do trabalhador promove as justificativas para que aquele trabalhador permaneça no
hiperfuncionamento.
Os trabalhadores em primeiro emprego, os que são jovens no mercado de trabalho, ou
os que, ao longo do desenvolvimento do pacto laborativo, recebem muitas atribuições, acabam
por ganhar um valor maior de mercado e, juntamente com isso, assimilam muita
165
responsabilidade e muitas cobranças e, por conseguinte, uma consequência para a vida daquele
trabalhador, que, a longo prazo, pode fazê-lo questionar se valeu a pena o desenvolvimento de
um pacto laborativo nesses moldes, privando-se da relações emocionais, amorosas, acompanhar
crescimento dos filhos, um familiar em estado terminal por conta de se construir um patrimônio.
Nesse contexto, quando vem uma demissão, o trabalhador percebe uma frustação, mas que, por
si, não ensejaria um dano à sua existência fenomênica. Essa frustração, às vezes, relaciona-se
com a própria perda do emprego. Nesse sentido, o entrevistado Alfa afirmou que, quando a
empresa propõe um acordo para a reintegração daquele empregado e o trabalhador aceita o
retorno ao emprego, evidencia-se, na verdade, que a frustração era com a perda do emprego. O
magistrado Alfa destacou, assim, a importância de se levar em consideração as peculiaridades
da localidade em que a empresa está inserida e o perfil do trabalhador.
A dependência ao contrato de trabalho fica presente em altos cargos por motivos
variados. Às vezes, emana a ideia de consentimento, subordinação, naturalidade ao chamado
para hiperfuncionar. Nos altos cargos, fica premente que o trabalhador também não quer ser
demitido. O rompimento do contrato de trabalho sem que isso emane de um ato voluntário do
trabalhador promove as justificativas para que o trabalhador permaneça no
hiperfuncionamento. Como explanado na entrevista com o magistrado Gama, os altos salários
vêm com altas atribuições e altas reponsabilidade, geralmente desassociadas de marco
espaçotemporal no cumprimento da jornada de trabalho.
Diante das categorias propostas na realização das entrevistas, foram apresentados os
seguintes resultados: com relação à percepção dos magistrados sobre os aspectos subjetivos do
reclamante, todos os entrevistados confirmam levar em consideração aspectos subjetivos do
sujeito reclamante no momento da audiência de instrução e julgamento. Essa compreensão para
os magistrados importa sempre em inserir uma análise atrelada à dinâmica laboral e não a um
contexto abstrato. No mesmo sentido, afirmaram que essa percepção não é suficiente para o
deferimento do pedido de dano existencial, explicitando que o trabalhador precisa fazer prova
nos autos do projeto lesionado ou da vida da relação alegada como comprometida. Na análise
dessa subjetividade, foi interessante a colocação dos magistrados Beta e Gama no que se refere
a considerar com cuidado o contexto da dinâmica laboral de cada sujeito: o próprio ambiente
onde é desenvolvido o trabalho e o tipo de trabalho desempenhado. Já o magistrado Alfa
afirmou que, na análise da subjetivação, considera também peculiaridades da região do país
onde o trabalho é desempenhado bem como de onde o trabalhador é originário. O entrevistado
Alfa buscou evidenciar que, considerado o histórico de vida de cada trabalhador, uma demanda
por hiperfuncionamento poderia ou não comprometer sua existência fenomênica.
166
Adentrando a segunda categoria de análise, referente aos requisitos jurídicos e
elementos gerais para se analisarem as demandas com pedido de dano existencial, a maioria
dos magistrados descreveu os requisitos da fixação da responsabilidade civil como a prova
efetiva do dano alegado. Destacam a observância sobre a ilegalidade do ato, se houve omissão,
o nexo de causalidade e o dano.
Destaca-se o posicionamento isolado do magistrado Alfa sobre os elementos levados à
apreciação do dano existencial. Esse magistrado destaca a importância da realização de uma
perícia médica ou psiquiátrica para compor sua convicção diante dos casos concretos e o
necessário cuidado do magistrado para não banalizar alguns institutos dentro da seara jurídica.
No que se refere à percepção dos magistrados sobre a existência de alguma relação entre
a demissão do trabalhador e uma consciência da frustação do projeto de vida ou da vida das
relações, tem-se que todos os entrevistados afirmaram que a maioria das demandas levadas ao
Judiciário Trabalhista são propostas por desempregados, como se observa na fala dos
entrevistados Alfa e Gama. Considera-se essa afirmativa para relacioná-la com o fato de que,
no curso do contrato de trabalho, a maioria dos trabalhadores não leva o pleito ao Judiciário,
bem como não existem reclamações enquanto o contrato está vigente. Os entrevistados Beta e
Gama afirmam que não podem dar certeza, mas sinalizam a possibilidade de que a maioria dos
trabalhadores têm consciência do excesso de trabalho e que deixam de lado a vida pessoal.
Porém o fazem por temer perder o emprego e, por conseguinte, quedam-se inertes ante alguma
impugnação no curso do contrato de trabalho. Salienta-se que esse contexto não indica
necessariamente uma hipossuficiência do trabalhador. Acredita-se ser a ciência do trabalhador
a respeito da dinâmica laboral e do modo de gestão. Essa ciência advém, expressa ou
tacitamente, no desenvolvimento do vínculo empregatício, importando um “de acordo” quando
disposto a se incluir naquele pacto laborativo. Nota-se, pela análise das entrevistas, que a não
insurgência pelo modo que se desenvolve o contrato de trabalho deve-se consideravelmente ao
medo do desemprego.
167
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vocacionada a analisar a subjetivação dos trabalhadores que recorreram ao Judiciário
Trabalhista para o reconhecimento da ocorrência de uma violação a seus projetos de vida ou da
vida de suas relações em virtude do excesso de horas trabalhadas, esta tese foi inserida na seara
das Ciências Humanas. Diante da realidade do atual mundo do trabalho, cada vez mais adaptado
a formatos de prestação de serviços, em que o sujeito é coadjuvante do processo organizacional,
a demanda pelo hiperfuncionamento do trabalhador está inserida na dinâmica laboral das
empresas e fica capilarizada na vida extralaboral dos sujeitos trabalhadores, que, amparados em
diversos motivos, não se desvinculam desse contrato de trabalho. O que fica, então, são anos e
anos de dedicação ao empregador e, quando vem a demissão, ou seja, a extinção do contrato de
trabalho contra sua vontade, tomado por um grande vazio, este trabalhador projeta no Judiciário
Trabalhista a chance de ter ao menos uma reparação pecuniária por tantas abdicações de sua
existência fenomênica extralabor. Fala-se aqui de outros projetos de vida, diferentes do
trabalho, bem como a oportunidade de viver relacionamentos afetivos com os seus.
Nesse sentido, o que interessou a esta pesquisa foram os sujeitos que desenvolveram
seus pactos laborais com sugerida e relativa alteridade e autonomia, tanto na gestão de seu
tempo de trabalho como no cumprimento de suas funções contratuais, sem, contudo, ficar
desconfigurada a relação empregatícia. Insta destacar que, para viabilizar a análise da
subjetivação do trabalhador levado à reflexividade nesta pesquisa, ficam excluídos os típicos
empregados que, no desenrolar de seu contrato de trabalho, não teriam a possibilidade, pela
própria natureza do vínculo, de atuar, em nenhum aspecto, de modo diferente daquilo que
imposto hodiernamente pelo empregador.
Como figura jurídica, o dano existencial é a tipicidade em que esse trabalhador se baseia
para, pelo processo judicial, apresentar elementos de prova e preencher os requisitos da
responsabilidade civil, no afã de se ver indenizado pela prática de um ato ilícito do empregador.
Esse dever de indenizar é gerado diante da inobservância de direitos do trabalhador, que é
levado a conduzir habitualmente extensas jornadas de trabalho, não usufruir dos intervalos entre
uma jornada de trabalho e outra, ou não gozar efetivamente de suas férias. Destaca-se que o rol
acima é apenas exemplificativo. Salienta-se novamente que este estudo não objetivou
ingerência na seara jurídica, não se fazendo análises ou críticas de cunho jurídico material ou
processual das decisões proferidas, reafirmando o intuito da análise dos processos de
subjetivação do empregado que atua em contrato de trabalho com subordinação relativizada e
168
que, após tanta dedicação a um contrato de trabalho, ampara-se no Judiciário para o pedido de
indenização por dano existencial.
A pesquisa lançou, como objetivo geral, analisar a subjetivação dos trabalhadores, com
base em demandas judiciais trabalhistas com êxito no pedido de indenização por dano
existencial. Nesta investigação, elegeram-se os trabalhadores que desempenharam seus
contratos de trabalho sem a formalização de um típico controle de jornada. Nesses casos, não
ocorriam registros de horário de entrada ou saída do trabalhador bem como demais registros de
gozo de intervalos. A esses trabalhadores, via de regra, não se aplicariam as disposições de
limite de jornada de trabalho estabelecido na legislação trabalhista brasileira, ou pela natureza
do cargo ocupado, ou pela impossibilidade operar o registro de jornada. A legislação trabalhista
brasileira dispensa alguns empregados do limite e, por conseguinte, do controle de jornada.
Nesse sentido e como regra geral, esses trabalhadores não fazem jus a perceberem adicional de
horas extras, mesmo que trabalhem para além da jornada ordinária estabelecida em lei. Com
base em demandas judiciais trabalhistas com êxito no pedido de indenização por dano
existencial, valendo-se, para tanto, da metodologia da análise do discurso, para perquirir sobre
esse processo de subjetivação, empregaram-se a análise documental e entrevistas. A análise
documental se atrelou à ata da audiência de instrução e julgamento dos processos selecionados,
respectivas sentenças e acórdãos, na busca por elementos que poderiam corroborar a construção
social do reclamante dentro do processo judicial trabalhista.
A construção de uma analítica dos modos de subjetivação levou em consideração o
sujeito como efeito, em uma perspectiva que pode ser tanto de assujeitamento quanto de
autonomia. Reflete-se sobre a subjetividade para além da interioridade psicológica, urgindo
considerar a relação entre subjetividade e espaço social, uma vez que esse sujeito não é uma
substância essencial. Nesse sentido, destaco que não foi uma concepção essencialista que serviu
de base para esta pesquisa, mas sim o estudo de processos de subjetivação de um indivíduo
situado dentro do enquadramento específico do processo judicial e de todos seus
agenciamentos. Desse modo, não se falou em um sujeito dito universal, como fundamento da
existência, mas sim de um sujeito em situação, considerando, para a análise do processo de
subjetivação, a perspectiva de autonomia, designando o modo de agir desse sujeito. Assim,
reitera-se que esse sujeito é um sujeito em situação, é considerado como efeito, um sujeito não
definido com base numa identidade fundamental, mas sim refundido em certo contexto
histórico, compreendendo uma análise de subjetividade para além da interioridade psicológica,
considerando a relação entre subjetividade e espaço social; refere-se a uma subjetividade de
autonomia, o sujeito se constitui amparado na reflexão de si.
169
Obteve-se como subjetivações comuns em todos os trabalhadores a não insurgência ao
modo de desenvolvimento daquele contrato de trabalho com características de hipersolicitações
e hiperfuncionamento. Ventilou-se a ideia inicial de que aquele trabalhador tinha a intenção de
crescer profissionalmente, compartilhava a ideia de excessos da dinâmica empresarial
gerencialista, subordinava-se ao contrato de trabalho e, economicamente, era dependente deste.
O cargo sem controle de jornada representa um salário maior atrelado à alta responsabilidade e
a importantes atribuições. O trabalho não tem hora para começar nem para terminar,
capilarizando-se na vida extralabor do trabalhador, gerando, em alguns casos, o envolvimento
da família nas demandas laborais. Compartilhando os referenciais teóricos, da análise dos casos
pelas leituras das atas de audiência, sentenças e acórdãos, bem como entrevistas com os
magistrados, emergiram alguns fatores para entender-se esse denominado consentimento ou
ausência de impugnação sobre o excesso de trabalho, enquanto o contrato de trabalho está
vigente. Os fatores identificados foram a dependência econômica gerada pelo contrato de
trabalho, o anseio e a sensação da realização profissional, o status e a importância que o trabalho
imprime na vida do trabalhador e de sua família, o medo do desemprego. Desse modo, a
projeção da demanda judicial invocando a violação a um projeto de vida ou a vida das relações
vem como reflexo da ruptura do contrato de trabalho que se deu contra sua vontade.
Assim, após a demissão, o trabalhador se sentia estimulado a pleitear judicialmente uma
indenização por dano existencial, consignando que o modo com que o contrato de trabalho se
desenvolveu lhe tolheu direitos fundamentais, que compõem sua unidade biopsicoespiritual,
frustrando-lhe outros projetos de vida ou vida das relações com os seus. As violações invocadas
pelos sujeitos nos casos analisados foram não gozo de férias, por 14 anos e por 9 anos, um
divórcio e a ausência de desconexão que comprometeu o direito ao lazer e ao descanso, em um
contrato de trabalho que perdurou por 18 anos.
As casuísticas de semelhança em todos os casos analisados vigoram na ausência de
insurgência contra o modo de desenvolvimento ao longo dos contratos de trabalho, fomentados
pelas motivações apresentadas acima, bem como a primazia da realidade sobre a forma. No que
se refere à caracterologia das casuísticas de distinções, observou-se que os pleitos se dividiram
entre duas vertentes: excesso de jornada (caso 1 - divórcio; caso 4 - ausência de desconexão) e
férias não usufruídas (caso 2 - 9 anos sem férias; caso 3 - 14 anos sem férias). Os pleitos
embasados em excesso de jornada diferiram-se entre si sobre o modo de cumprimento da
jornada. Compreenderam excesso de horas efetivamente trabalhadas (caso 1 - divórcio) e
cumprimento de horas de sobreaviso (caso 4 - desconexão), as quais nunca foram remuneradas
em nenhum dos casos. A jornada em excesso por horas efetivamente trabalhadas atingiu
170
diretamente um projeto de vida da trabalhadora, ao passo que a jornada em excesso por horas
à disposição, na modalidade sobreaviso, comprometeu, de forma capilarizada, as relações nos
momentos de descanso e lazer que o trabalhador poderia ter usufruído.
No que tange aos pleitos com base no não gozo de férias ao longo do pacto laboral,
remontou-se em casuísticas de semelhanças entre sujeitos, no que se refere à autonomia no
cumprimento do pacto laborativo e intensão de crescimento profissional expressamente
declarado, impugnação a diminuição das demandas, projeções salariais e considerável duração
dos contratos de trabalho, quais sejam, 9 e 14 anos. Em nenhum desses casos, elevou-se uma
narrativa fática direta a algum evento específico que poderia ser usufruído no período de férias,
permanecendo as digressões atreladas ao comprometimento do descanso como elemento básico
da interrupção do contrato de trabalho.
A investigação apresentou uma limitação evidenciada nos meados do trabalho, no que
se refere ao quantitativo dos casos elegíveis para análise. Diante da mudança de entendimento
fixada pelos tribunais, atrelada aos seletores na busca pelos casos passíveis de reflexividade
nesta pesquisa, bem como a timidez da inserção do instituto do dano existencial no Direito
Trabalhista brasileiro, direcionaram consideravelmente o número de casos elegíveis,
evidenciando muitos casos negativos.
A sugestão para novas pesquisas se refere à abordagem da necessidade de futuros
estudos que remontem a um cuidado com a saúde mental desse trabalhador inserido
capilarmente na dinâmica da gestão gerencialista. Justifica-se essa proposta diante das
abordagens elucidadas na temática da judicialização do viver, atrelada aos casos e entrevistas
analisadas, bem como dos demais referenciais teóricos. Um problema social está criado, e o
processo judicial não pode ser projetado como forma solução eficaz, sob pena de reincidência
tanto do empregado como empregador. Não se podem banalizar institutos jurídicos, seja, às
vezes, pela sua acentuada e descontextualizada criação ou pelo excesso de proposituras de
demandas, sem olhar com propriedade para o problema social originário. A luz que se pretende
lançar não se limita à exatidão da precisão de decisões judiciais, mas sim a um alerta ao
necessário cuidado com a saúde mental de tantos trabalhadores, geralmente desempregados,
que vão recorrer ao Judiciário alegando uma lesão comprometedora de sua existência
fenomênica. A lesão perpetrada não se resolve com uma sentença que diz o direito, conferindo
apenas uma reparação pecuniária. O que veio antes e o que vem depois é que necessita cuidado.
Seria bom poder afirmar sem ressalvas que o trabalho teria se libertado do estigma de
tortura, degradação e sofrimento adquirido originalmente na sociedade pré-industrial,
remontando à coisificação do homem. Contudo, na Contemporaneidade, o sofrimento no
171
trabalho tem fatos geradores diversos, perpassando por gestões perversas, políticas de
enxugamento, precarização das condições de trabalho, clima de ameaça de desemprego,
aumento da produtividade a qualquer custo e o uso da dominação simbólica. Essas fontes de
violência têm como efeitos a sobrecarga e as hipersolicitações, as metas de produção acabam
vistas como objeto de desejo, desestabilizam-se as estratégias de defesa e opera-se a servidão
voluntária. As formas de violência remontam a ritmo penoso, atitudes discriminatórias,
consentimento diante das injustiças e do sofrimento, assédio, clima de ameaça e desemprego,
entre outros. A dinâmica empresarial medrada na obtenção do lucro não direcionou o necessário
cuidado com a saúde mental do trabalhador. Igual constatação leva-se a emitir no tocante à
escassez ou ineficácia de tutelas jurídicas atentas à saúde mental do trabalhador. O passar dos
anos não foi, por si, suficiente para expurgar o sofrimento do trabalho, demandando, cada vez
mais e sempre, um real cuidado com a saúde física e mental do trabalhador no desenvolvimento
de seu pacto laboral.
172
173
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179
APÊNDICE: ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA
1) O juiz leva em consideração aspectos subjetivos do indivíduo reclamante ao analisar o pedido
de dano existencial?
1.1) Esclarecimento ao questionamento 1:
a) levar em consideração apenas no sentido de perceber esses aspectos subjetivos do trabalhador
nessas demandas;
b) levar em consideração no sentido de incluir essa percepção na formação de seu
convencimento para decidir;
c) indicar quais são os aspectos subjetivos mais presentes.
2) O que o magistrado analisa em demandas com pedidos dessa natureza?
2.1) Esclarecimento ao questionamento 2:
a) no conjunto de requisitos e elementos gerais para se tomar uma decisão em processos com
pedidos de dano existencial, o que o magistrado analisa?
3) O magistrado percebe se existe alguma relação entre a demissão (o rompimento do contrato
de trabalho por iniciativa do empregador) e uma consciência da frustação do projeto de vida ou
da vida das relações?
3.1) Esclarecimento ao questionamento 3:
a) às vezes, é possível ao magistrado perceber uma relação demissão x consciência de tanto
tempo em labor com hiperfuncionamento?
b) O trabalhador teria consciência do comprometimento de seus projetos de vida ou da vida de
suas relações somente após a demissão?
180
181
ANEXO: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-graduação
Comitê de Ética em Pesquisa - CEP
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Número de Registro CEP: CAAE 64651717.0.0000.5137
Título do Projeto: Processos de subjetivação do sujeito empregado na configuração do
dano existencial.
Prezado:
1) Introdução: você está sendo convidado a participar desta pesquisa porque é
magistrado do Poder Judiciário Trabalhista brasileiro e já proferiu decisões em ações
trabalhistas com pedidos de dano existencial. Sua colaboração é fundamental para o
desenvolvimento da pesquisa, entretanto não é obrigatória e, a qualquer momento você pode
desistir, retirando seu consentimento.
2) Objetivo: o objetivo deste estudo é analisar os processos de subjetivação do sujeito
trabalhador nas demandas judiciais trabalhistas com pedidos de indenização por dano
existencial.
3) Procedimentos do estudo: você será solicitada a responder a uma entrevista que será
gravada e, posteriormente, transcrita para análises. As informações registradas servirão para
estudos sobre o tema da pesquisa.
4) Riscos e desconfortos: os pesquisadores têm conhecimentos suficientes do método
previsto e formação adequada para identificar constrangimentos pessoais e institucionais.
Apesar disso, caso ocorram constrangimentos pessoais e institucionais para os sujeitos a serem
envolvidos, a interrupção dos procedimentos de coleta poderá ser sugerida, tanto pelos
pesquisadores quanto pelos sujeitos. Acredita-se, contudo, que a possibilidade de ocorrência de
risco não impede a realização da pesquisa, considerando-se que os conhecimentos a serem
produzidos trarão contribuições para o campo.
182
5) Participação voluntária e gratuita: sua participação é muito importante e voluntária,
e, consequentemente, não haverá pagamento por participar desse estudo. Em contrapartida,
você também não terá nenhum gasto, uma vez que o pesquisador é quem vai se deslocar até
você para a realização da entrevista.
6) Caráter confidencial dos registros: as informações recolhidas serão trabalhadas
apenas pelo pesquisador, e esses dados serão mantidos confidenciais. Você não será
identificado quando o material de seu registro for utilizado, seja para propósitos de publicação
científica ou educativa, ou apresentação oral. Os registros gravados ficarão sob a
responsabilidade do pesquisador e serão utilizados apenas para as finalidades da pesquisa,
sendo destruídas posteriormente, após cinco anos. Você poderá se recusar a participar ou a
responder algumas das questões a qualquer momento, não havendo nenhum prejuízo pessoal se
essa for a sua decisão.
7) Contribuição almejada: os resultados desta pesquisa servirão como contribuição na
análise dos processos de subjetivação do empregado, podendo contribuir com o estudo do tema
dano existencial e as demandas de hiperfuncionamento do trabalhador.
8) Responsabilidade civil: para todos os participantes, em caso de eventuais danos
decorrentes da pesquisa, será observada, nos termos da lei, a responsabilidade civil.
9) Para obter informações adicionais: você receberá uma via deste termo, do qual consta
o telefone e o endereço do pesquisador responsável, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto
e sua participação, agora ou a qualquer momento.
Pesquisadora responsável: Carla Vidal Gontijo Almeida.
Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas,
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, coordenado pela Prof.ª Cristiana Leite
Carvalho, que poderá ser contatado, em caso de questões éticas, pelo telefone ou e-mail:
Este termo será assinado em duas vias de igual teor.
183
10) Declaração de consentimento: li as informações contidas neste documento antes de
assinar este termo de consentimento e dou meu consentimento de livre e espontânea vontade
para participar como entrevistado deste estudo.
Cidade, data.
Nome do participante: _________________________________________________________
Assinatura do participante: _____________________________________________________
Eu, Carla Vidal Gontijo Almeida, comprometo-me a cumprir todas as exigências e
responsabilidades a mim conferidas neste termo e agradeço por sua colaboração e sua
confiança.
Cidade, data.
Assinatura da pesquisadora: ___________________________________________________