subúrbio, demônios e miséria: os três irmãos de dostoiévski

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Subúrbio, Demônios e Miséria: os três irmãos de Dostoiévski. Ariel David Ferreira, Sebastião Rios Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, 74001-970, Brasil [email protected] , sebastiã[email protected] PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Sociedade, Fiódor Dostoiévski, Os irmãos karamázov. 1 INTRODUÇÃO Fiódor Dostoiévski produziu seus romances na segunda metade do século XIX, quando a Rússia se defrontava com complexas questões históricas de fundo político, social e moral. O Ocidente capitalista escancarava a porta russa e devassava a diversidade de mundos e grupos sociais que, de seu lado, não afrouxaram o seu isolamento frente o processo de avanço gradual do capitalismo. Neste contexto, a cultura russa palpitava efervescência. Nele, o romance, um fruto da modernidade que se afasta paulatinamente de sua herança intelectual clássica e medieval, vai se consolidando como a forma literária que mais reflete uma inovadora reorientação individualista, ao invés de se conformar a práticas tradicionais de se produzir literatura. Diferentemente da epopéia clássica e renascentista, onde, por exemplo, os enredos se baseavam na história ou na fábula e se avaliavam os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção tradicional provinda dos modelos aceitos no gênero, o romance ao propor uma fidelidade a experiência individual ganha a liberdade de fugir as classificações precedentes. As obras literárias de Fiódor Dostoiévski se enquadram nesse movimento de ascensão do romance. Sua arte poética dialoga com o contexto histórico, cultural, social e econômico da Rússia da metade do século XIX. Nela notamos a inovadora característica de seu romance realista: a polifonia, exposta por Mikhail Bakhtin, onde o herói apresenta competência ideológica e independência, sendo interpretado como autor de sua própria concepção filosófica e plena independente da visão artística do autor. Isto configura, nos termos de Goldmann (1990) a história do herói degradado,

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Uma análise acadêmica de algumas obras de Dostoiévski sobre a perspectiva da sociologia da literatura.

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Page 1: Subúrbio, Demônios e Miséria: os três irmãos de Dostoiévski

Subúrbio, Demônios e Miséria: os três irmãos de Dostoiévski.

Ariel David Ferreira, Sebastião Rios

Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, 74001-970, Brasil

[email protected], sebastiã[email protected]

PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Sociedade, Fiódor Dostoiévski, Os irmãos karamázov.

1 INTRODUÇÃO

Fiódor Dostoiévski produziu seus romances na segunda metade do século XIX,

quando a Rússia se defrontava com complexas questões históricas de fundo

político, social e moral. O Ocidente capitalista escancarava a porta russa e

devassava a diversidade de mundos e grupos sociais que, de seu lado, não

afrouxaram o seu isolamento frente o processo de avanço gradual do capitalismo.

Neste contexto, a cultura russa palpitava efervescência. Nele, o romance, um

fruto da modernidade que se afasta paulatinamente de sua herança intelectual

clássica e medieval, vai se consolidando como a forma literária que mais reflete uma

inovadora reorientação individualista, ao invés de se conformar a práticas

tradicionais de se produzir literatura. Diferentemente da epopéia clássica e

renascentista, onde, por exemplo, os enredos se baseavam na história ou na fábula

e se avaliavam os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção

tradicional provinda dos modelos aceitos no gênero, o romance ao propor uma

fidelidade a experiência individual ganha a liberdade de fugir as classificações

precedentes.

As obras literárias de Fiódor Dostoiévski se enquadram nesse movimento de

ascensão do romance. Sua arte poética dialoga com o contexto histórico, cultural,

social e econômico da Rússia da metade do século XIX. Nela notamos a inovadora

característica de seu romance realista: a polifonia, exposta por Mikhail Bakhtin, onde

o herói apresenta competência ideológica e independência, sendo interpretado como

autor de sua própria concepção filosófica e plena independente da visão artística do

autor. Isto configura, nos termos de Goldmann (1990) a história do herói degradado,

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demoníaco, o herói que é um louco ou um criminoso, um personagem problemático

na busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos em um mundo de

conformismo e convenção.

2 Objetivos

O presente trabalho tem como objetivo uma investigação de como Fiódor

Dostoiévski constrói a representação do contexto social na obra Os irmãos

Karamazov, subsidiariamente serão ainda consideradas as obras Crime e Castigo,

O Idiota, Noites Brancas e Memórias do Subsolo. Com esta investigação buscamos

entender as relações que o romance estabelece com o contexto histórico, social,

cultural e econômico da Rússia na segunda metade do século XIX, sob uma

perspectiva de Sociedade e Literatura. Mais especificamente este trabalho propõe-

se a relacionar sua poética a representações e noções de razão, religião subúrbio e

miséria nas obras selecionadas de Dostoiévski.

3 Considerações Teórico-metodológicas

Como arte ficcional e poética, o romance é capaz de compreender as

questões sócio-culturais por meio da representação e reconstrução de realidade que

ele propicia. Lembrando Engels, os romances de Balzac ter-lhe-iam ensinado mais,

“mesmo no que diz respeito aos pormenores econômicos, [...] do que todos os livros

de historiadores, economistas e estatísticos profissionais da época.”

(Engels,1974:197).

Segundo os estudos de Antônio Candido em Literatura e Sociedade (1976), o

significado e o valor de uma obra não dependem desta exprimir ou não certo

aspecto da realidade, constituindo este aspecto o que esta tem de essencial. A

perspectiva contrária, de que a matéria de uma obra seria secundária e que a sua

importância deriva das operações formais postas em jogo, tornando-a independente

de quaisquer condicionamentos, sobretudo sociais, considerando-os inoperantes

como elementos de compreensão, tampouco é satisfatória. Antes, a integridade da

obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas. A relação entre

literatura e sociedade só será bem entendida ao se fundir texto e contexto numa

interpretação dialéticamente íntegra onde o ponto de vista que explica pelos fatores

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externos e o outro crente na convicção de que a estrutura é virtualmente

independente, se combinam como necessidades ao processo interpretativo

(Candido, 1976).

O elemento social neste trabalho é apresentado, então, não exteriormente,

como uma referencia que permite identificar na matéria do livro a expressão de certa

época ou de uma sociedade determinada, muito menos como um enquadramento

que situe nossas obras historicamente. Diferente disto, este é apresentado como

fator da própria construção artística, situado no nível explicativo e não no nível

ilustrativo. Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para

entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificação causal.

Cabe-nos o cuidado de considerar para a análise da obra de Dostoiévski,

portanto os fatores sociais no seu papel de formadores da estrutura literária, sendo

eles tanto quanto os fatores psíquicos decisivos para a análise literária e que

pretender definir sem uns e outros a integridade estética da obra seria absurdo tanto

quanto em um exemplo exposto por Candido sobre As Aventuras do Barão de

Münchhausen compiladas por Rudolph Erich Raspe, ”... como só o barão de

Münchhausen conseguiu, arrancar-se de um atoleiro puxando para cima os próprios

cabelos.” (Candido, 1976, p.14).

Cabe também considerar o lugar do romance na sociedade moderna. O

romance como um filho da modernidade, requerendo uma visão de mundo centrada

nas relações sociais entre indivíduos, o que envolve secularização, afinal até o fim

do século XVIII o individuo não era aceito com um ser inteiramente autônomo, mas

como um elemento em um quadro cujo significado depende de pessoas divinas e

cujo modelo secular provém de instituições tradicionais como a Igreja e Monarquia.

O romance por Georg Lukács através de Ian Watt, é a epopéia de um mundo

esquecido por Deus. (Watt, 1990).

Neste contexto surge o romance degradado apresentado por Lukács, um

gênero literário no qual os valores autênticos, não se apresentam na obra sob a

forma de personagens conscientes ou de realidades concretas. Existindo estes

valores apenas em forma abstrata e conceitual na consciência do romancista, onde

se revestiriam de um caráter ético. (Goldmann, 1990).

A forma romanesca apresenta-se como a transposição para o plano literário

da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado.

Afinal segundo Goldman Lucienn a vida econômica se comporia de pessoas

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orientadas exclusivamente para os valores de troca, valores degradados, aos quais

se somariam na produção de alguns indivíduos, os criadores em todos os domínios,

que conservam-se orientados, essencialmente, no sentido dos valores de uso e que,

por isso mesmo, situam-se à margem de uso e que, graças a isto, situam-se à

margem da sociedade e convertem-se em indivíduos problemáticos potencialmente

produtores de nossos heróis demoníacos, loucos. (Goldmann, 1990).

4 Metodologia

Este trabalho apresenta um caráter fundamentalmente teórico, e apóia-se nos

discursos históricos, sociológicos e culturais identificados a partir de análises dos

romances e contos polifônicos de Fiódor Dostoiévski. Constituindo-se o trabalho na

leitura das narrativas de Dostoievski e em fortunas críticas.

Para a análise das narrativas selecionadas de Dostoievski utilizamos como

base alguns avanços da teoria literária, neste ponto entram as obras selecionadas

de Goldmann Lucien, Antonio Candido, Ian Watt e Mikhail Bakhtin, em um estudo

capaz de conciliar as dimensões estéticas e sociológicas das narrativas

apresentadas.

Utilizando destes referenciais teóricos, firmamos a integração indissociável de

elementos subjetivos e objetivos, lembrando que a realidade social, que fornece ao

escritor o impulso para sua realização, não é a única responsável pelo aspecto

histórico e social da obra literária; também o autor o é, porquanto ele não vive

desligado ou desintegrado do seu contexto social, das suas heranças, do seu idioma

e da sua tradição literária e cultural (Salles, 1973: 32) sendo o conhecimento de

todos esses aspectos essencial na construção da análise literária.

5 Discussão

Ultimo romance de Dostoiévski, publicado pela primeira vez em 1880 na

Rússia Czarista, Os Irmãos Karamázov sintetiza vários momentos e aflições da vida

de Dostoiévski. A desgraça pontuada por Lukács vai bem longe neste e é bem fácil

percebê-la deste o inicio no livro, quando o autor pontua em seu prefácio que seu

personagem principal Alieksiêi Fiódorovitch, nada tem de grande e muito menos tem

de herói. Deixando ao leitor se lhe bem vier a calhar que este mesmo resolva esta

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questão, pois o autor a muito se decidira por deixar algumas questões sem

resolução.

A primeira parte do romance inicia com a apresentação dos três irmãos sem

mãe, Alisksiêi ou Aliócha, Ivan e Mítia ou Dmitri Fiódorocitch e seus diversos motivos

para o retorno a casa amaldiçoada do e pelo pai Fiódor Pávlovitch. O encontro dos

quatro por sua vez determina o ápice da polifonia no romance, discursos sobre os

mais diversos temas saem das bocas de cada irmão e se enfrentam do inicio ao fim

do romance.

A miséria feudal do mesmo modo é presente em todo o livro. A esta miséria

Fiódor Pávlovitch entrega seus filhos, e se esta não fosse tão bondosa na face de

seus criados, que apesar de também miseráveis por graça de Pávlovitch cuidaram e

zelaram tanto quanto possível de quesitos básicos como alimentação na infância

dos três irmãos, os irmãos não existiriam até o fim da ficção. Ao se considerar o

modo de organização da casa russa fica obvia a miséria à criadagem, a casa ou

dvor era administrada com cunho autocrático pelo bolchak ou o cabeça que podia

desfrutar de autoridade total sobre todos da casa. No que se refere a miséria por

falta de dinheiro, este é um tema recorrente nos romances de Dostoievski. Segundo

Paulo Bezerra, tradutor de O Idiota, para o romancista, o dinheiro é um fator de

reformulação, desintegração e destruição do psiquismo humano. Bakhtin afirma em

Problemas da poética de Dostoievski que “quanto mais coisificada a personagem,

tanto mais acentuadamente se manifesta a fisionomia da sua linguagem”.

Personagem de O Idiota, Gánia com absolutos fins econômicos aparece como este

personagem coisificado com uma linguagem economicamente cifrada e um objetivo

“capital”.

Nada tão diferente se espera encontrar em um romance de um autor que

enfrentava o drama da problemática financeira todos os dias. Seus livros eram

produzidos por adiantamento, e graças a este por diversas vezes Dostoiévski fora

ameaçado por editores de perder o direito de autoria sobre seus livros se não

concluísse uma encomenda na data prevista, chegando Dostoievski graças a isto ao

recorde maldito de escrever um livro em um mês, O Jogador, a respeito de seu vício.

A noção suburbana de espaços, idéias e personagens são, ao lado da

miséria, tema recorrente em sua obra. Sua mais forte presença é todo um romance

dedicado a isto, o intitulado “Zapíski iz podpólia”, traduzido para o francês como

“Notes d’un souterrain”, em nossa língua,Notas do subterrâneo. Podpólia ou

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“subsolo” é, entretanto, também termo que designa atividade clandestina e

subversiva, que a propósito muito ocorre nos romances. A prostituta Sônia de Crime

e Castigo, o quarto mofado de Noites Brancas, a mansão sombria de Rogójin em O

Idiota, o cubículo de Raskólnikov em Crime e Castigo, As crises epiléticas do

príncipe Míchkin em o Idiota e a fúria de Dmítri são alguns exemplos destes diversos

heróis e locais demoníacos, desgraçados, caracterizados por Lukács e Ian Watt, de

Dostoievski.

Para acabar com a miséria ou aliviá-la, na primeira parte do romance é

apresentado o discurso religioso de Aliócha e de seu ídolo religioso o stárietz

Zossima. O monge compreendia que para a “alma humilde do homem do povo

russo, exaurida pelo trabalho e pelo infortúnio e, principalmente, pela eterna injustiça

e pelo eterno pecado, tanto seu quanto do mundo, não havia necessidade e consolo

mais fortes do que encontrar um santuário ou um ou um santo e cair prosternado

diante dele”. (Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov, p.51 Volume 1).

Para a solução de sua condição de miséria o personagem principal de Crime

e Castigo propõe método mais agressivo, mas não menos justificável, Raskólnikov

mata por querer uma velha agiota e, sem querer, a filha desta e justifica o ato com

uma teoria do sacrifício necessário de pessoas insignificantes para o triunfo de

outras com maior importância histórica, algo sintetizado por seu amigo Razumíkhim,

cujo nome significa razão, como o absurdo direito ao crime, fugindo um pouco a

razão de seu amigo razão por Porfiri não tão perto da consciência de Raskólnikov “...

todos os indivíduos se dividiriam em “ordinários” e “extraordinários”. Os ordinários

devem viver na obediência e não têm o direito de infringir a lei porque eles, vejam

só, são ordinários, Já os extraordinários têm o direito de cometer toda a sorte de

crimes e infringir a lei de todas as maneiras precisamente porque são

extraordinários. “(Dostoievski, Crime e Castigo, p.268).

É de se reconhecer no trecho acima a vontade de se racionalizar uma a priori

irracionalidade e o movimento constante de enfrentamento na mesma obra de

irracionalidade e racionalidade apresentadas por Raskólnikov em seu minúsculo

divã. Pode-se somar o mesmo movimento, mas agora cômico em Memórias do

subsolo quando o personagem principal, segundo o mesmo um cara fraco e doente,

que acha que sofre do fígado, se questiona sobre tratar-se ou não. Tratar-se apesar

de ser supersticioso ao extremo, exceto quanto à medicina, conclui que se não se

trata é por raiva mesmo e afirma “Se me dói o fígado, que doa ainda mais”.

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(Dostoievski, Memórias do subsolo, p.15). Tais confusões e críticas Dostoiévski

justifica numa carta à amiga, se colocando como um filho do século, filho da

descrença e da dúvida, sendo isto e este até o fim de seus dias.

Outro momento de suma importância é o conflito principal de Os irmãos

Karamazov, dado após o reencontro dos quatro. A disputa da mesma mulher entre

pai e filho e o conflito de direito de bolchak ou cabeça à hierarquia familiar.

No conflito, nota-se a guerra entre Dmítri e Fiódor e a tentativa de resolução

ou apaziguamento do conflito pelos outros dois irmãos, mas principalmente pelo

herói do romance Aliócha, que na primeira parte do romance tenta uma

reconciliação entre pai e filho frente à religiosidade na figura do Starietz Zossima. O

conflito se desenvolve com as diferentes estratégias entre pai e filho para a

conquista da amada Catierina Ivánovna, e é claro com a complexa posição desta na

escolha de um ou outro. Catierina Ivánovna representa bem a mulher desgraçada

dos romances de Dostoievski, a mulher que traz a perdição aos outros e que

também é sua própria perdição. Em O Idiota encontramos uma personagem muito

parecida com Catierina, Nastácia Filíppovna, que também é motivo de conflito, desta

vez entre o príncipe Míchkin, personagem principal do romance, e Rogójin. Esta é

capaz de danar o personagem principal, símbolo da perfeição, reconhecido como a

mescla de Cristo e Dom Quixote, entregando-o a loucura.

A crítica à razão apresentada por Dostoievski em Os Irmãos Karamazov

atinge novamente o ápice na aparição do demônio ao mais racional dos irmãos,

Ivan. Com fortes traços de niilismo - se Deus não existe tudo é permitido - ao notar o

demônio, que é representado de modo cômico, usando calças xadrez fora de moda,

este quase enlouquece. Ainda mais quando o “dito-cujo” parece mais racional que o

próprio Ivan ao afirmar sua existência com a frase célebre “Je pense donc je suis1”

de Voltaire e lhe atestando não saber sobre a existência de Deus e culpando a

ciência terrena pelo atual inferno no inferno,” Lá entre nós, todo mundo anda

perturbado atualmente, e tudo por causa das vossas ciências. Enquanto só havia os

átomos, os cinco sentidos, os quatro elementos, bem, naquele tempo tudo ainda

fazia algum sentido... Mas foi só chegar ao nosso conhecimento que aqui havíeis

descoberto a “molécula química”, e o “protoplasma”, e o diabo sabe o que mais, para

1 Traduzindo do francês para português “Penso logo existo”.

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que metessem o rabo entre as pernas. Simplesmente começou a bagunça;...”

(Dostoiévski, Os irmãos Karamásov, p.832 volume 2).

Tal conflito entre pai e filho culmina por fim no assassinato do pai.

Assassinato que tem como principal suspeito o filho Dmítri, que movido por ódio teria

ferido também o criado Gregori, que lhe dera o que comer quanto Dmítri ainda era

uma criança. Tal tipo de tragédia, o crime, é tema recorrente nas obras de

Dostoievski: Raskolnikóv mata a velha agiota e sua filha, Rogójin assassina Nastácia

Filíppovna. Pontua Terry Eagleton, em um artigo intitulado The Grand Inquisitor, que

do inicio ao fim, em Os irmãos Karamázov o romance ofereceria, sobre um frágil

fundamento de narrativa, uma imensa, gigantesca e até descomunal superestrutura

de comentário social, meditação religiosa e ruminação filosófica.

Dostoievski apresenta no decorrer de sua obra um socialismo confuso. A este

respeito, cabe primeiro notar que ele se envolveu em movimentos políticos de

natureza socialista, que acarretaram na sua prisão em 23 de abril de 1849, sendo

após oito meses sentenciado à morte. Os crimes políticos tinham, então, na Rússia,

como pena a morte; diferentemente de assassinatos, o que justifica a prisão de

Raskolnikóv e não sua morte. Mas para a sorte de Dostoiévski, tudo não passou de

encenação e seu grupo foi perdoado e libertado pelo Czar, sendo somente

condenado a quatro anos de prisão num campo de trabalhos forçados na Sibéria.

(1988, Os realistas, retratos de oito romancistas) Desde Crime e Castigo,

Dostoievski comenta o socialismo. O que volta a ocorrer em Os irmãos Karamázov e

O idiota. Neste último, ele comenta o socialismo utópico de Thomas Morus, um

grande humanista inglês.

Pode parecer graças à contraposição entre o romance e a visão secular

provinda de instituições como a Igreja e a Monarquia, visão secular onde o indivíduo

não era concebido como um ser inteiramente autônomo, mas como um elemento

num quadro cujo significado depende de pessoas divinas, que o romance não possa

tratar de questões religiosas. Ao contrário, isto pode sim acontecer desde que,

sejam quais forem os objetivos do autor, seus recursos estarão restritos a

personagens e ações terrenas, devendo o reino do espírito só ser apresentado

através das experiências subjetivas das personagens (Watt, 1990). Dostoiévski

apresenta questões religiosas em seus romances. O autor era católico ortodoxo,

como a maior parte da população russa, apesar disto nunca tê-lo impedido de

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criticar o papel desta enorme instituição, principalmente no que se refere a defesa do

estado e legitimação do Czarismo.

Crime e castigo, O idiota, Os irmãos Karamázov apresentam como a Divina

Comédia de Dante, uma forte meditação sobre paraíso e inferno, graça e danação.

Em Os irmãos Karamázov, ao invés de Beatriz no céu, aguardando que seu herói

perpasse os diversos desafios para enfim alcança-la, a amada, Catierina, se

movimenta pelos diversos planos, céu, purgatório e inferno, aguardando o herói em

diversos momentos, locais e situações que simbolizam os diversos planos, ao ápice

da graça celeste e a supra danação infernal perpassando o herói a um dos

extremos, céu ou inferno, sempre pelo purgatório. A falha ao tentar conciliar pai e

filho na primeira parte do romance inicia a danação, anunciando a tragédia. Mas isso

por vez não significa a perca do objetivo de graça, o condenado Dmítri espera a todo

momento a salvação, como também a todo momento agressões ao pai. Em Crime e

Castigo o céu e o inferno desenvolve-se na salvação ao crime ou a danação da

captura de Raskolnikóv, envolto ao mesmo movimento a lucidez e a loucura do

personagem sobre a pressão da captura. Em O idiota dá-se o mesmo movimento

pela corrupção do tão puro que até chega a ser idiota, numa crítica de Dostoiévski

aos modos da alta sociedade intelectualizada russa, príncipe Míchkin. A corrupção é

gradual e não se deixa esquecer pela freqüência de suas crises epiléticas,

motivadas tanto pela amada Nastácia quanto pelo demônio também rival Rógojin.

Neste caso a Nastácia cabe a escolha dos dois caminhos, a pureza de Míchkin ou a

danação de Rogójin, restando ao fim do romance a corrupção do puro e um pouco

de graça ao impuro.

Dostoiévski propõe em Os Irmãos Karamázov em um episódio intitulado O

Grande Inquisidor uma enorme crítica a hierarquia da igreja católica. Este episódio

consiste no retorno de Jesus à Terra desta vez na cidade de Sevilha durante a

Inquisição Espanhola. Em meio a vários milagres chega-lhe um velho, O Grande

Inquisidor, já chegando aos seus 90 anos e ordena-lhe a prisão, com fins de

queimar-lhe vivo no dia seguinte como o mais vil dos hereges. Após prender o

Salvador este vai à cela onde Jesus está preso para explicar o porquê de tal

sentença. Daí em diante uma muito bem construída apologia do despotismo

religioso é apresentada como sátira desse tipo de autocracia. O velho ironicamente

lhe pergunta “És tu? Tu?” (Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, p.347 Volume 1),

acrescentando logo após isto “Não respondas, cala-te. Ademais, que poderias dizer?

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Sei perfeitamente o que irás dizer. Aliás, não tens nem direito de acrescentar nada

ao que já tinhas dito.” (Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, p.347 Volume 1).

Com seu retorno, segundo o velho, Jesus atentaria a liberdade que tanto

defendera em sua primeira vez na terra, liberdade esta alcançada pela a Igreja no

direito que o salvador ter-lhes-ia atribuído. A igreja, portanto portaria a verdadeira

liberdade, fazendo da liberdade que o Salvador propõe algo até indesejável pelos

homens, tal noção de liberdade seria impossível. Melhor seria oferecer ao povo

aquilo por que o povo mais suplica o pão da terra, em vez de oferecer-lhe só o

etéreo pão da bem-aventurança eterna. Privais os homens do pão da terra e “o

espírito da Terra se levantará contra ti, combaterá contra ti e te vencerá...”

(Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, p.351 Volume 1). Os seres humanos seriam

fracos demais para carregarem o peso da liberdade, estes prefeririam rastejar a

sombra de um mestre benigno que lhe manteria vivo o corpo e o aliviaria da aflição

da escolha proporcionada pela liberdade. No fim, o grande inquisidor beija o rosto de

Jesus e lhe perdoa por seu retorno estúpido, condenando-o somente ao exílio.

O grande inquisidor, no final das contas, atesta o status do criador, afirmando-

o estúpido por retornar naquele momento. Exila-o após o perdão convencido a

ignorância do condenado. Ao colocar a grande figura da Igreja como possível atéia

Dostoievski afirma a redenção de seus condenados. Em Crime e Castigo,

Raskolnikóv em trabalho forçado se redime à ajuda de sua amada e a Bíblia, e até

mesmo o príncipe Míchkin parece descansar em paz após a loucura. Torna-se

possível em Dostoiévski aos desgraçados a sua própria moda, melhor entenderem

Deus que toda a instituição religiosa.

6 Considerações Finais

Tendo como objetivo apresentar uma interpretação de Dostoiévski da Rússia

do século XIX em suas narrativas selecionadas, buscando relacionar a poética da

narração de Dostoiévski a discursos históricos, sociológicos e culturais este trabalho

foi realizado.

Pressupor a necessidade em um trabalho sobre o tema Literatura e

Sociedade de se valorizar na análise tanto a narrativa em si quanto a representação

social que esta apresenta mostrando que ficção e realidade estão muito próximas,

sendo a primeira mais uma forma de se captar a segunda, propondo junto à poética,

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idéias do próprio autor, no caso graças ao caráter polifônico muito mais as

concepções de seus personagens, afirmando a crítica fundamentada destes

personagens ao invés de simples imaginação ou alienação do autor, tornaram este

trabalho possível.

Dostoiévski nos aparece, portanto não somente um grande escritor de

romances. Suas obras foram estudadas e serviram de matéria para outros grandes

teóricos, como Sigmund Freud e Nietzsche. Dostoiévski e seus personagens se

apresentam como grandes intérpretes dos temas de fundamental importância para

seu período e até mais para os períodos que se seguem.

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