t ese rodrigo alves teixeira

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1 INTRODUÇÃO Esta tese busca contribuir para o debate sobre o tema do desenvolvimento econômico no Brasil. Mais precisamente, almeja contribuir para a busca de explicações a respeito da estagnação pela qual passa a economia brasileira desde a década de 80, após ter apresentado por quase meio século elevadas taxas de crescimento e um rápido processo de modernização e transformação estrutural, passando de uma economia agrário-exportadora nos anos 30 para uma diversificada economia industrial, cuja matriz intersetorial estava praticamente completa no início dos anos 80. Contrariamente às teorias “endogenistas”, que dão destaque aos fatores internos para a compreensão do desenvolvimento capitalista no Brasil, daremos destaque aqui às interpretações que destacam a condição periférica e dependente da economia brasileira no capitalismo mundial. Não se pretende com isso ignorar a importância dos fatores internos e negar que houve, em certos momentos históricos, certa autonomia das decisões domésticas. Trata-se, antes, de destacar os limites e as possibilidades abertas pela expansão do capitalismo mundial e pelas formas de interação entre nossa economia com a economia mundial ao desenvolvimento econômico no Brasil. O debate sobre o peso dos condicionantes internos e externos na explicação da evolução da economia brasileira permeou toda a historiografia. Sobre o período colonial, temos as interpretações clássicas de Caio Prado Jr em Formação do Brasil Contemporâneo e Celso Furtado na sua Formação Econômica do Brasil, seguidos mais tarde por Fernando Novais, que defenderam a noção de que a economia colonial era dependente, ou seja, sua dinâmica não poderia ser compreendida senão por meio dos seus laços de dependência com relação ao desenvolvimento do capitalismo na Europa. Isso se devia ao que Caio Prado Jr chamou de o “sentido da colonização”, que era a orientação primário-exportadora dessa economia, que a tornava fortemente dependente das flutuações do mercado externo e que limitava seu desenvolvimento. Esse “sentido” definiu os contornos da estrutura econômica da colônia, baseada na

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Desenvolvimento, dependência e dominação financeira

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  • 1

    INTRODUO

    Esta tese busca contribuir para o debate sobre o tema do desenvolvimento

    econmico no Brasil. Mais precisamente, almeja contribuir para a busca de

    explicaes a respeito da estagnao pela qual passa a economia brasileira desde a

    dcada de 80, aps ter apresentado por quase meio sculo elevadas taxas de

    crescimento e um rpido processo de modernizao e transformao estrutural,

    passando de uma economia agrrio-exportadora nos anos 30 para uma diversificada

    economia industrial, cuja matriz intersetorial estava praticamente completa no incio

    dos anos 80.

    Contrariamente s teorias endogenistas, que do destaque aos fatores

    internos para a compreenso do desenvolvimento capitalista no Brasil, daremos

    destaque aqui s interpretaes que destacam a condio perifrica e dependente

    da economia brasileira no capitalismo mundial. No se pretende com isso ignorar a

    importncia dos fatores internos e negar que houve, em certos momentos histricos,

    certa autonomia das decises domsticas. Trata-se, antes, de destacar os limites e

    as possibilidades abertas pela expanso do capitalismo mundial e pelas formas de

    interao entre nossa economia com a economia mundial ao desenvolvimento

    econmico no Brasil.

    O debate sobre o peso dos condicionantes internos e externos na explicao da

    evoluo da economia brasileira permeou toda a historiografia. Sobre o perodo

    colonial, temos as interpretaes clssicas de Caio Prado Jr em Formao do Brasil

    Contemporneo e Celso Furtado na sua Formao Econmica do Brasil, seguidos

    mais tarde por Fernando Novais, que defenderam a noo de que a economia

    colonial era dependente, ou seja, sua dinmica no poderia ser compreendida seno

    por meio dos seus laos de dependncia com relao ao desenvolvimento do

    capitalismo na Europa.

    Isso se devia ao que Caio Prado Jr chamou de o sentido da colonizao, que

    era a orientao primrio-exportadora dessa economia, que a tornava fortemente

    dependente das flutuaes do mercado externo e que limitava seu desenvolvimento.

    Esse sentido definiu os contornos da estrutura econmica da colnia, baseada na

  • 2

    monocultura para exportao, na grande propriedade rural e no trabalho escravo,

    no havendo elementos que dinamizassem o mercado interno e possibilitassem o

    desenvolvimento autnomo da economia colonial.

    Segundo esta vertente, mesmo aps a independncia poltica formal (fim do

    pacto colonial), permaneceu o sentido da colonizao e a relao de dependncia

    e heteronomia da economia nacional, pela manuteno dos seus vnculos com o

    mercado mundial, baseados na mesma estrutura da diviso internacional do

    trabalho, pela qual as colnias exportavam produtos primrios e importavam

    manufaturados.

    De outro lado, temos as interpretaes que questionaram a noo de

    dependncia destacando a autonomia de nossa sociedade mesmo no perodo

    colonial, como a presente na obra O Escravismo Colonial de Jacob Gorender.

    Nesta obra, este autor desenvolve uma anlise centrada no conceito de modo

    de produo escravista colonial, criticando a vertente circulacionista de Caio Prado

    Jr e Fernando Novais, as quais se centrariam apenas na esfera da circulao e no

    capital comercial para caracterizar a colnia, quando o procedimento correto, na

    perspectiva marxista seria partir do modo de produo.

    Em outro texto, Gorender (1980) chamou tal postura de integracionismo, na

    qual ele inclui as teorias da dependncia. Tal postura se caracteriza, segundo ele,

    pelo esquecimento das particularidades internas e pelo tratamento de todas as

    sociedades que estabelecem vnculos com o capitalismo mundial como sendo

    tambm capitalistas.

    Uma abordagem na mesma linha a presente em O Arcasmo como Projeto,

    de Joo Fragoso e Manolo Florentino, que trataram a economia colonial com a

    categoria formao econmico e social, destacando a existncia de acumulaes

    endgenas na economia colonial que lhe confeririam independncia face s

    flutuaes da economia europia. As posturas como a de Gorender, bem como a de

    Fragoso e Florentino, tendem a minimizar os fatores externos e a forma de

  • 3

    integrao da economia domstica ao capitalismo mundial para explicar sua

    evoluo no tempo. 1

    Entretanto, entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, houve importantes

    transformaes que comearam a alterar esta situao abrindo novas perspectivas

    para a economia brasileira As principais foram a abolio da escravido (que abriu

    espao para a mudana das relaes de produo, ou seja, para o trabalho

    assalariado), a Primeira Guerra Mundial e a Crise de 1929, que possibilitaram o

    desenvolvimento do mercado interno ao mesmo tempo em se restringia a

    capacidade para importar e a disponibilidade das importaes de manufaturados,

    criando incentivos indstria domstica.

    Aps a dcada de 30, houve o que Celso Furtado (Furtado, 1959) chamou de

    deslocamento do centro dinmico da economia, que passa do setor primrio

    voltado exportao para a indstria voltada ao mercado interno. A discusso sobre

    a existncia ou no de uma autonomia da economia nacional se recoloca pois, a

    partir de ento, sua dinmica passa a ser determinada mais e mais pelo seu prprio

    mercado interno, com os efeitos multiplicadores da renda subjacentes a ele e o

    crescimento do setor industrial. Dentro do pensamento cepalino, a industrializao

    seria a condio necessria e suficiente para a autonomia, ou seja, para o

    rompimento com os laos assimtricos de dependncia e restrio externa ao

    desenvolvimento, que advinham da deteriorao dos termos de troca (Prebisch,

    1949).

    1 Sobre o perodo colonial, expus minha posio em artigo recente (Teixeira, 2006), no qual defendo

    que o perodo colonial no deve ser compreendido fora dos marcos do desenvolvimento do

    capitalismo, e que por isso no se deve tratar a sociedade colonial com as categorias modo de

    produo postura que j havia sido criticada por Costa (1999, 1985) como se houvesse l um

    novo modo de produo, como o faz Gorender (1985), ou com a categoria formao econmico

    social, como fazem Fragoso e Florentino (2001). O uso destas categorias parte de uma viso da

    concepo marxiana da histria como se esta se tratasse de uma teoria geral da histria, postura que

    se distancia da dialtica marxiana pois no respeita a contradio entre o particular e o geral, estando

    mais prxima do positivismo ou do estruturalismo. Defendemos, no referido artigo, a noo de Caio

    Prado Jr sobre o sentido da colonizao, mas com uma ligeira modificao: tal sentido foi, em nossa

    opinio, a constituio da periferia do sistema capitalista mundial.

  • 4

    Entre as dcadas de 30 e 50, ocorreu o chamado processo de substituio de

    importaes, cuja lgica foi explicitada no texto clssico de Tavares (1975). Neste

    processo, a dependncia e a restrio externa se colocam de outra forma, qual seja,

    pelo estrangulamento externo gerado pela necessidade de divisas, j que a

    produo domstica de bens de consumo exige novas importaes, seja de

    matrias-primas e insumos bsicos, seja de mquinas e equipamentos cuja

    produo domstica no existia.

    A partir da dcada de 60, quando o setor de bens de produo j estava se

    internalizando, alguns autores vo explicar a estagnao do incio dos anos 60 como

    sendo produto das flutuaes cclicas de uma economia industrial madura, pelas

    desproporcionalidades nas relaes entre os setores de produo de bens de

    consumo e de bens de produo (Tavares, 1975; Melo, 1986). Ou seja, a crise agora

    seria endgena, como em qualquer economia capitalista madura, e no mais

    causada pelos estrangulamentos externos.

    Outros autores (Cardoso e Faletto, 1975), destacando a importncia dos

    vnculos externos, buscam compreender a mudana nos laos de dependncia que

    unem o Brasil economia mundial. Segundo eles, desde a dcada de 50 estaria

    havendo uma reconfigurao das relaes entre o centro e a periferia, um novo

    carter da dependncia: o desenvolvimento da periferia, principalmente nos setores

    mais dinmicos da indstria, estava sendo impulsionado pelos grandes grupos

    industriais dos pases centrais, principalmente as multinacionais norte-americanas.

    Em outra linha interpretativa, como Castro (1985) escreve que o II Plano

    Nacional de Desenvolvimento (II PND) cumpriu seu objetivo de levar s ltimas

    conseqncias a substituio de importaes, com a internalizao do setor produtor

    de bens de capital e insumos intermedirios, criando assim uma autonomia completa

    de nossa economia. Esta postura tambm foi bastante otimista quanto ao

    rompimento com os laos de dependncia.

    Ainda que tenha havido mudanas estruturais que criaram uma dinmica

    interna com a industrializao, a nosso ver essas mudanas devem tambm elas ser

    compreendidas no contexto do desenvolvimento e expanso do capitalismo mundial

    e da forma dependente de vinculao dos pases perifricos economia mundial.

  • 5

    Apesar de as teorias do imperialismo por muito tempo terem defendido a viso

    segundo a qual o capital estrangeiro e as multinacionais, aliadas s elites

    retrgradas do setor primrio-exportador, buscavam impor barreiras

    industrializao e ao desenvolvimento econmico da periferia, as dcadas de 50 e

    60 mostraram a importncia das multinacionais na industrializao, particularmente

    no setor de bens de consumo durveis, tal como observado por Cardoso e Faleto.

    O capital estrangeiro teve importante papel no desenvolvimento industrial que

    seria, na viso da esquerda da poca (em particular dos tericos do Partido

    Comunista Brasileiro, o PCB), uma tarefa domstica, que deveria ser levada a cabo

    por uma aliana entre os trabalhadores e a burguesia industrial, numa perspectiva

    desenvolvimentista e nacionalista. De maneira anloga, na dcada de 70, o setor

    privado domstico e o setor pblico no dispunham de recursos suficientes para

    financiar os projetos do II PND, de modo que a marcha forada da economia

    brasileira (Castro, 1985) foi levada a cabo com o recurso poupana externa. Isso

    s foi possvel pela ampla liquidez internacional do incio da dcada de 70, cujas

    fontes foram os dficits fiscal e comercial dos EUA e a reciclagem dos petrodlares,

    associada ao fato de que os pases centrais j passavam por queda nas taxas de

    crescimento, de modo que as oportunidades internas de investimento haviam se

    reduzido.

    Assim, apesar da existncia de uma dinmica interna aps a dcada de 30,

    foroso reconhecer que os movimentos da economia mundial, fortemente

    influenciados pela dinmica dos pases centrais, so fundamentais para

    compreender a evoluo no tempo das economias perifricas, tanto no que diz

    respeito difuso do progresso tecnolgico, que gerado no centro, como no que

    tange disponibilidade do financiamento externo, ligada esta ltima s flutuaes

    das economias centrais, ao sistema monetrio internacional e s estratgias das

    multinacionais.

    A crise da dvida nos anos 80 e a reinsero internacional da economia

    brasileira nos anos 90, particularmente a sua insero no mercado financeiro

    internacional, no podem ser compreendidos, a nosso ver, sem que se analisem as

    transformaes do capitalismo mundial nas ltimas dcadas, transformaes essas

  • 6

    que se difundiram a partir do centro, no s no plano econmico (esferas financeira e

    produtiva), como tambm nas formas do Estado e no plano das idias. As relaes

    de dependncia mudaram, mas continuam muito presentes, talvez at mais do que

    antes. preciso, portanto, compreender as novas formas de vinculao das

    economias perifricas ao capitalismo mundial e da o grande espao ocupado nesta

    tese pelo estudo do capitalismo contemporneo, apesar de seu objetivo ser a

    economia brasileira.

    Assim, buscamos nesta tese resgatar a literatura latino-americana a respeito do

    subdesenvolvimento e das relaes centro-periferia, particularmente os trabalhos

    que se pautaram pela noo de dependncia. O objetivo ser compreender a

    especificidade das economias perifricas, particularmente as latino-americanas, no

    intuito de explicar porque, mesmo naquelas que se industrializaram, como o Brasil,

    no se logrou criar um padro de desenvolvimento sustentado e autnomo. Ou seja,

    busca-se explicar por que, aps o final do modelo anterior, no se logrou a

    construo de um novo modelo de desenvolvimento. Esta pergunta s pode ser

    respondida se olharmos para a prpria natureza do capitalismo enquanto um sistema

    mundial e assimtrico, bem como para a maneira como se deu a insero externa da

    economia brasileira durante as transformaes do capitalismo mundial que

    ocorreram a partir da dcada de 70, quando se gesta um novo regime de

    acumulao mundial,2 sob a gide da dominncia financeira.

    interessante notar que, de certa forma, o pensamento crtico latino-americano

    em meados do sculo XX pode ser compreendido como uma transposio, para o

    plano das relaes internacionais, da Teoria Crtica da sociedade. Refiro-me aqui

    distino feita por Max Horkheimer entre Teoria Tradicional e Teoria Crtica. Isto

    porque o pensamento latino-americano se constituiu no apenas buscando

    compreender um conjunto de relaes dadas, no foi apenas a busca de conexes

    causais entre estados de coisas. As formulaes tericas desenvolvidas aqui, desde

    o pensamento cepalino at os estudos sobre dependncia, numa postura prpria da

    teoria crtica, buscavam fazer o diagnstico do tempo presente para identificar no 2 Regime de acumulao um termo terico criado pela chamada escola francesa da regulao

    (Aglietta, Boyer, Lipietz etc). Na seo 2.4 do captulo 2 deste trabalho apresentaremos brevemente

    este e outros conceitos dessa escola terica.

  • 7

    funcionamento do capitalismo mundial os bloqueios e ao mesmo tempo as

    possibilidades de emancipao dos pases perifricos, buscando transformar a

    realidade, ou seja, buscando superar o subdesenvolvimento e a heteronomia dessas

    sociedades.

    Claro que tal emancipao no era a mesma identificada pela teoria crtica.

    Esta tratava (ao menos no incio) da emancipao enquanto libertao do homem

    com relao ao capital, quando o homem deveria tornar-se ento o sujeito histrico,

    autnomo e autodeterminado. No caso do pensamento latino-americano, nem

    sempre a soluo proposta pelos tericos foi o fim do capitalismo (como ntido no

    caso da CEPAL), mas o tema comum era a conquista da autonomia e da

    autodeterminao da Nao, rompendo com os laos de dominao que amarravam

    as economias latino-americanas aos pases centrais, laos estes que insistiam em se

    perpetuar. Os clssicos de nossa historiografia, como Caio Prado Jr. na sua

    Formao do Brasil Contempornea e Celso Furtado em Formao Econmica do

    Brasil, destacam exatamente esta noo de dependncia e falta de autonomia que

    se perpetuou no sculo XX, mesmo aps a independncia poltica, o que estaria na

    raiz do subdesenvolvimento do Pas.

    Ainda que no se tenha logrado a emancipao de fato, ao menos no plano das

    idias desenvolveu-se na Amrica Latina um pensamento crtico e autnomo, que

    ficou esquecido, mas que deve ser retomado. Faremos aqui, portanto, uma retomada

    do pensamento crtico latino-americano, que ficou ofuscado nas ltimas dcadas

    pelo neoliberalismo.

    A interao entre teoria e poltica foi muito forte na Amrica Latina, muito

    visvel, por exemplo, pela relao entre o pensamento cepalino e a industrializao.

    Tal interao tambm ser fundamental em nossa argumentao pelo fato de que na

    dcada de 90, quando se iniciam as reformas neoliberais no Brasil com a abertura

    econmica e as privatizaes, tivemos no comando da nao um dos principais

    tericos que integraram a tradio do pensamento crtico latino-americano: Fernando

    Henrique Cardoso.

    Seguiremos ento a trilha do pensamento latino-americano, em particular a dos

    autores brasileiros e a verso vitoriosa (pois chegou ao poder) da teoria da

  • 8

    dependncia, que defendeu a tese da possibilidade de um desenvolvimento

    econmico mesmo na situao de dependncia, ou seja, um desenvolvimento

    dependente-associado. As questes centrais aqui sero duas. Em primeiro lugar,

    mostrar a coerncia do governo de Cardoso com relao sua obra, ou a coerncia

    do presidente com relao ao socilogo. Isto essencial na medida em que as

    reformas neoliberais de seu governo levantaram forte polmica pelo seu passado de

    intelectual de esquerda, levando famosa polmica em torno da frase que teria sido

    atribuda a Cardoso de esqueam o que escrevi.

    Em segundo lugar, mostrada tal coerncia, que na verdade reflete, como se

    ver, uma convergncia entre a verso da dependncia de Cardoso e a ascenso do

    neoliberalismo enquanto doutrina, trata-se de buscar o ngulo cego da teoria, visto

    que a reinsero externa da economia brasileira, no bojo das reformas neoliberais

    que foram aceleradas durante o governo de Cardoso, ampliaram a dependncia sem

    trazer a to esperada retomada do desenvolvimento. Nossa tese que, para

    responder por que as reformas empreendidas por Cardoso no trouxeram o

    desenvolvimento, mas apenas ampliaram a dependncia (em particular do mercado

    financeiro internacional), preciso compreender as mudanas pelas quais passou o

    capitalismo mundial desde a dcada de 70, quando houve a instaurao de um novo

    regime de acumulao, caracterizado pela dominncia financeira. preciso,

    portanto, investigar como se deu a insero internacional do Brasil nesta nova fase

    do capitalismo, quais so os limites que ela criou ao desenvolvimento e autonomia.

    * * *

    Para dar conta dessas tarefas, esta tese est dividida em 4 captulos, alm

    desta introduo. O primeiro trata da abordagem metodolgica seguida na tese, que

    a leitura dialtica de Marx e do seu mtodo da economia poltica.

    O segundo captulo apresenta as bases tericas contidas em O Capital que

    auxiliam na compreenso da idia de que vivemos hoje uma autonomizao da

  • 9

    esfera financeira, noo que surgiu com a escola regulacionista, cujas bases esto

    no pensamento de Marx. Defende-se que no prprio desenvolvimento categorial do

    valor, do dinheiro e do capital em Marx (que um desenvolvimento lgico-dialtico),

    mas principalmente com a forma capital (com o capital portador de juros e o capital

    fictcio), est presente a possibilidade lgica de tal autonomizao, ainda que ela

    aparea aqui como ilusria e temporria. Descrevem-se ainda as transformaes

    recentes no capitalismo, em particular o desenvolvimento do dinheiro mundial numa

    moeda puramente fiduciria e o processo de mundializao financeira, caracterizado

    pela indita importncia assumida pela forma capital portador de juros e pela enorme

    expanso do capital fictcio em nvel mundial. Defendemos as idias de autores que

    vem nestas transformaes a origem de um novo regime de acumulao do

    capitalismo, caracterizado pela dominncia financeira da valorizao: a possibilidade

    lgica da autonomizao da esfera financeira, presente em Marx, ganhou efetividade

    histrica, quando o capital portador de juros apoiou-se em slidas bases

    institucionais que lhe deram uma autonomia que, ao contrrio da que Marx descreve

    e que ocorre em ocasies pontuais e apenas temporariamente (que geralmente

    precedem as crises ou o fim de uma fase de expanso da reproduo real),

    possibilitaram ao capital portador de juros ocupar o centro das relaes sociais e

    imprimir sua lgica prpria esfera produtiva de forma estvel e duradoura.

    No terceiro captulo, defendemos a tese da dominncia financeira contra duas

    interpretaes do marxismo contemporneo que consideramos ser as mais

    importantes, e que divergem da interpretao de que h uma mudana no regime de

    acumulao ou de que estamos diante de uma nova fase do capitalismo. Apontamos

    as insuficincias e incoerncias destas teses. A primeira a abordagem das ondas

    longas, que v a expanso financeira atual apenas como caracterstica comum da

    fase descendente de um ciclo ou onda longa do capitalismo. A segunda a tese de

    que estaria havendo uma mudana no prprio modo de produo, o que desloca a

    discusso sobre o capitalismo contemporneo da esfera financeira para as

    transformaes na esfera produtiva: a substncia do valor teria deixado de ser o

    tempo de trabalho, e o prprio capital produtivo, com o conhecimento se tornando

    uma mercadoria, teria assumido uma forma rentista nos setores mais dinmicos

    (recebimento de rendas de propriedade intelectual, patentes, direitos autorais etc.),

  • 10

    que produziria essa aparncia de dominncia da esfera financeira dentro do velho

    modo de produo, quando se trata na realidade, segundo esta interpretao, da

    consolidao de um novo modo. Criticamos esta tese a partir da crtica noo de

    que o tempo de trabalho estaria deixando de ser a substncia do valor, mostrando a

    coerncia da teoria do valor de Marx para explicar as transformaes na esfera

    produtiva que ocorreram nas ltimas dcadas, e defendendo que as principais

    transformaes que regulam a dinmica do capitalismo contemporneo esto na

    esfera financeira.

    O captulo 4 conduz a discusso anterior sobre o capitalismo mundial para o

    plano das relaes entre os pases centrais e perifricos, com o foco na economia

    brasileira. apresentada uma reviso da literatura sobre as relaes entre o centro e

    a periferia, o subdesenvolvimento e a dependncia, discusso esta que esteve

    presente em todo o sculo XX, em particular no pensamento latino-americano. Alm

    disso, busca-se relacionar a temtica da dependncia com a temtica da

    dominncia financeira. Defende-se que a insero internacional de vrias economias

    perifricas como mercados emergentes na dcada de 90, entre elas o Brasil,

    mudou os vnculos destas economias aos pases centrais, configurando um novo

    carter da dependncia. Assim, desenvolvemos uma reinterpretao da evoluo da

    economia brasileira no final do sculo XX, dando especial ateno forma como se

    deu a insero externa do Brasil na dcada de 90, no bojo da dominncia financeira

    da valorizao, e apresentando suas conseqncias perversas do ponto de vista do

    desenvolvimento econmico.

    Finalmente, o ltimo captulo apresenta as concluses.

  • 11

    CAP. 1 QUESTES METODOLGICAS: A DIALTICA MARXISTA3

    Introduo

    Este captulo inicial tem como objetivo fazer os esclarecimentos necessrios a

    respeito da abordagem metodolgica seguida na tese. Como nossa argumentao

    se desenvolver no bojo do campo denominado Economia Poltica, dentro da

    perspectiva marxista, e como existem muitas leituras e diferentes abordagens que se

    colocam sob o extenso guarda-chuva do marxismo, convm esclarecer a viso do

    mtodo e a leitura de Marx que norteia este trabalho. Acompanhamos os esforos de

    outros autores que buscam livrar o marxismo das interpretaes vulgares,

    resgatando a leitura dialtica, que busca se contrapor leitura positivista que marcou

    o marxismo oficial das cartilhas dos partidos comunistas, bem como leitura

    estruturalista de Althusser e outros4, e tambm mais recente investida do marxismo

    analtico, que busca introduzir o individualismo metodolgico e a escolha racional5

    para aproximar o marxismo dos cnones cientficos, tal como definidos nos marcos

    da cincia positiva.

    Apesar de muitos autores defenderem a leitura dialtica de Marx6, a reflexo a

    respeito da dialtica enquanto lgica e concepo das significaes e inclusive a

    3 Este captulo uma verso modificada do captulo 4 de minha dissertao de mestrado (Teixeira,

    2006). Naquela dissertao, defendemos a dialtica como um discurso da contradio com o qual o

    discurso cientfico pode superar a dicotomia colocada pelo positivismo e pelo historicismo nas cincias

    humanas. Nesta tese, retomamos o discurso dialtico para aplic-lo interpretao de Marx (cap. 2),

    e para defender a tese da dominncia financeira e criticar a idia de que houve uma mudana na

    substncia do valor (cap. 4). Para tanto, utilizamos a distino, que ser apresentada neste captulo,

    entre pressuposio e posio, a partir da apresentao de Fausto (1988, cap. 2) sobre a concepo

    dialtica das significaes. 4 Ver Althusser (1979). 5 Ver Przeworski (1996). 6 O combate ao marxismo oficial vem de longa data: Lukcs, os frankfurtianos, Sartre, Gramsci e

    outros, desde as primeiras dcadas do sculo XX, combatiam as interpretaes mecanicistas e

    esquemas abstratos do marxismo vulgar. No pensamento latino-americano, h vrios exemplos de

  • 12

    distino, paradoxalmente muito famosa e ao mesmo tempo pouco conhecida em

    sua forma rigorosa, entre as dialticas de Hegel e Marx - entretanto, s

    recentemente ganhou bases mais slidas, nos trabalhos do filsofo brasileiro Ruy

    Fausto. Boa parte dos textos em que desenvolve seu projeto de apresentar a

    dialtica enquanto lgica e a leitura dialtica da obra marxiana encontra-se nos seus

    trs tomos de Marx: lgica e poltica, cujo subttulo Investigaes para uma

    reconstruo do sentido da dialtica.

    Coloca o autor, na introduo do Tomo I da obra supra citada, que o marxismo

    envelheceu mas, ao mesmo tempo, ele desconhecido. E ele desconhecido

    porque a dialtica desconhecida, pois se perdeu em meio s dialticas vulgares ou

    s leituras que buscaram expurgar a dialtica e a herana hegeliana de Marx, como

    a leitura estruturalista e o marxismo analtico.

    Faremos aqui uma exposio da concepo dialtica das significaes, tal

    como apresentada por Ruy Fausto no seu texto Pressuposio e posio: dialtica e

    significaes obscuras (Fausto, 1988, cap. 2). O objetivo mostrar a diferena entre

    a maneira dialtica e a da concepo usual de cincia (centrada na lgica formal) de

    se trabalhar com as significaes, alm de mostrar tambm as diferenas entre as

    dialticas de Hegel e Marx, ambas as tarefas realizadas por Fausto.

    Como coloca Fausto, no se deve retirar a obscuridade (contradio) do

    discurso (que o que procura fazer a cincia convencional) sob a pena de distorcer

    seu significado, mas deve-se procurar trabalhar tanto o seu ncleo de significaes

    claras (a posio) quanto o halo de significaes obscuras (a pressuposio).

    Segundo o autor, a obscuridade do discurso est no campo das pressuposies, que

    o campo da contradio, e nele que o discurso dialtico deve atuar, pois no o

    dizer claro da cincia, mas sim o dizer obscuro da dialtica que pode esclarec-lo.

    Para trabalhar dialeticamente com as noes de posio e pressuposio

    preciso romper com o pensamento de Kant, de que a posio (o ser, a existncia)

    caberia apenas ao objeto e a pressuposio (as determinaes, o conceito, bem

    como as contradies) apenas ao sujeito. Deve-se faz-lo, no entanto, sem cair na autores que desde cedo j desenvolveram crticas quela viso estreita do marxismo, como

    Maritegui, Caio Prado Jr., Srgio Bagu e outros.

  • 13

    verso clssica da prova ontolgica. A prova ontolgica foi objeto da crtica de Kant,

    que no aceitava a passagem do pensar ao ser (presente em Descartes, Leibniz e

    outros filsofos clssicos). Kant distanciou desta forma o pensamento, a conscincia

    (o sujeito) da realidade concreta (o objeto): a conscincia no seria capaz de

    conhecer objetivamente a realidade, de se apropriar dela, mas apenas de

    represent-la em conceitos, de forma meramente subjetiva, independentemente da

    textura do real concreto, conhecendo-se dela, portanto, apenas o fenmeno (a coisa

    tal como se apresenta para nossa conscincia). A dialtica de Hegel veio resgatar a

    prova ontolgica, mas no da forma como era colocada pelos clssicos. E Fausto vai

    mostrar - a despeito das opinies contrrias que acham que no se pode fazer uma

    leitura de Marx a partir de Hegel, como a leitura althusseriana - que com Hegel (e

    com a dialtica) que Marx vai acompanhar este resgate, mas tambm perceber os

    limites da dialtica hegeliana, o que o levar ao rompimento com este autor.

    Procuraremos mostrar aqui, com base em Fausto: 1) a inadequao da cincia

    baseada na lgica formal e a adequao da dialtica para trabalhar com os objetos

    obscuros (objetos pressupostos e, portanto, contraditrios), o que lhe conferiria a

    capacidade de dizer um mundo mais amplo que aquele que pode ser dito pelo dizer

    claro da cincia, particularmente no dizer os objetos sociais, que so nossa

    preocupao; 2) a tentativa de resgate, pela dialtica hegeliana, da prova ontolgica;

    3) a relao entre as dialticas de Hegel e de Marx, buscando a legitimidade, obtida

    pelo ltimo, para a noo de que as contradies existem na realidade concreta

    (contradies postas) e no apenas na articulao das categorias pela conscincia,

    como advogava Kant (e como postula a cincia convencional). Busca-se responder

    aqui como possvel a existncia de pressuposies objetivas, ou seja, objetos

    pressupostos, contraditrios. Mostrando que tais objetos existem, admitimos a

    possibilidade (e a necessidade) de se investir a dialtica nestes campos obscuros do

    conhecimento, nos quais a clareza do discurso da concepo usual de cincia no

    consegue iluminar (apenas obscurece ainda mais).

    1.1 - Dialtica e obscuridade - Ser e no ser, eis a questo

  • 14

    Como coloca Fausto (1988), a principal caracterstica que distingue a dialtica

    dos discursos fundados na lgica formal a sua concepo das significaes:

    enquanto estes ltimos consideram que no campo das significaes existem apenas

    regies claras ou que possam ser clareadas, ou seja, esclarecidas, para a

    dialtica este campo, alm de um ncleo claro contm um halo escuro, no qual a

    clareza obscurecimento.

    Para Fausto, a regio clara do campo das significaes corresponde posio,

    enquanto que o halo escuro o campo das pressuposies, que o campo das

    significaes que ao mesmo tempo so ditas e no ditas. a este ltimo que as

    concepes no dialticas so cegas, pois este o campo da contradio. Nele a

    lgica formal no consegue adentrar, pois a forma de seu discurso, baseado na

    viso do mundo perfeito (no contraditrio), no se encaixa neste mundo

    contraditrio, no se adequa a ele.

    Vamos ver por que o campo das pressuposies obscuro (contraditrio). Esta

    idia parte de Hegel. H basicamente duas maneiras de se pensar a pressuposio

    na dialtica. Na primeira, temos o pressuposto como o possvel. Mas, considerado como o apenas possvel, o pressuposto no pode ser (ter existncia efetiva). Isto

    porque, sendo ele apenas possvel, essa efetividade que constitui a possibilidade de

    uma coisa no em conseqncia a sua possibilidade prpria, mas o ser-em-si de

    um efetivo outro. (Fausto, p.162).

    Assim, Hegel pensa a possibilidade no de forma positiva aquilo que pode vir

    a ser mas de forma negativa aquilo que de fato no . A possibilidade remete

    no-efetividade. Assim, no porque o ser possvel (ou ento contingente) , que o

    ser existente (ou ento necessrio) . Pelo contrrio porque o ser possvel ou

    contingente no , que o ser existente ou necessrio . (Hegel, apud Fausto,

    p.163). A existncia (o ser) implica ento um movimento, a negao da possibilidade,

    ou seja, como a possibilidade em si uma negao, a existncia implica ento a

    negao da negao. O pressuposto considerado como possvel , portanto, o ainda no posto, que nos remete histria do Conceito, ou mais precisamente sua pr-histria. O que ocorre neste caso que o Conceito j tem todas as suas

  • 15

    determinaes, mas falta uma: a determinao posio, que a existncia efetiva do Conceito.

    Mas o pressuposto pode ser tambm posio negada, o posto como negativo,

    ou seja, o posto como no posto, ou ainda, o posto como pressuposto. (Paulani,

    1992, p.103). No primeiro caso - o pressuposto como possvel - ele no pode ser,

    pois ele no est posto. Na primeira situao ele se nega pela no posio, na segunda, pela posio negada. Aqui a determinao posio est presente, mas ela negada, suprimida, a posio torna-se pressuposta. Mas tal negao, como

    aponta Fausto, no uma negao vulgar: trata-se da Aufhebung hegeliana, uma

    negao que tambm tem o sentido de conservar e superar: a significao posta

    negada, mas ela se conserva como pressuposio. Sendo posio pressuposta,

    como pressuposto o Conceito no pode ser, mas se apesar disto est posto, nega o

    seu prprio enunciado, nega sua posio, ou seja, nega a si mesmo.

    Nas duas situaes, o pressuposto ento contraditrio, ele e no . O

    campo das pressuposies um espao de contradio: no universo das

    pressuposies, as significaes esto e ao mesmo tempo no esto presentes

    (Fausto, p. 156, nota 14). Vejamos ento porque ele no pode ser dito pelo dizer

    claro da cincia, aquele cuja razo baseia-se na lgica formal. Tal concepo da

    cincia busca sempre dizer o que , ou seja, ela sempre procura clarificar: (...) a

    cincia convencional, por seu carter analtico, esfora-se por saber e dizer o que ;

    ela precisa e constitui-se de fundamentos, de definies, e definies so

    proposies sobre o que (...) (Paulani, 1992, p.103).

    Apenas a regio clara das significaes, portanto, onde a cincia

    convencional se prope a (e apenas onde consegue) adentrar; as portas da regio

    obscura (as pressuposies) lhe esto fechadas, pois esta no pode (nem deve) ser

    clareada. A cincia convencional pode ento dizer o que e mesmo o que no ,

    mas ela no pode dizer o que ao mesmo tempo e no . A sua maneira de

    trabalhar, clarificando (esclarecendo), cria um dizer que no capaz de se

    apropriar, portanto, das significaes pressupostas, pois (...)[neste campo] o

    mximo de clareza na realidade obscurecimento (Fausto, p.150).

  • 16

    Por que a clareza neste campo obscurecimento? Como mostra Fausto, este

    espao obscuro, ao contrrio do que atestam as concepes no dialticas, no

    representa os limites do entendimento, no sentido de intenes no preenchidas,

    ou do que ainda no foi esclarecido - ele no pode (nem deve) ser clarificado: Longe

    de representar o limite, em sentido negativo, das significaes, as zonas de sombra

    lhes so essenciais. Sem elas, o discurso no significa mais o que significa (Fausto,

    p. 150). As zonas de sombra no podem ser vistas como ainda no clarificadas ou

    ainda no preenchidas a no ser que o preenchimento seja pensado no como

    processo subjetivo, mas processo objetivo, de posio do Conceito, como veremos.

    A concepo usual de preenchimento, neste campo, , portanto, no

    preenchimento.

    E se no se pode ver na obscuridade com o discurso claro, porque para a

    dialtica a obscuridade no est apenas no pensamento, ela real, e por isto s

    pode ser capturada pelo dizer (Conceito) se este for ao mesmo tempo um no dizer:

    a obscuridade capturada pelo conceito como determinao do conceito (Fausto,

    p.150, grifos do autor). E o dizer capaz de realizar esta tarefa o discurso dialtico.

    A clareza da lgica formal ento obscurecimento, pois, para a dialtica, o discurso

    claro aquele cujos fundamentos primeiros so de algum modo obscuros (isto ,

    afetados de negao) (...) (idem), pois estes fundamentos levam em considerao a

    existncia de contradies (negaes) que no podem nem devem ser ignoradas ou

    retiradas do discurso: eles procuram refletir nos conceitos a obscuridade do prprio objeto.

    Assim, para a dialtica as contradies so reais, no so meros limites do

    sujeito pensante, mas pertencem ao domnio do prprio objeto, e por isso qualquer

    fundao que no contenha em si a sua prpria negao, a conscincia dos seus

    limites, no estar adequada ao objeto, pois no estar respeitando a obscuridade

    deste, venha ela da sua no posio (e a deve-se respeitar o devir, o tempo, e por

    isto a necessidade do olhar histrico) ou de sua posio negada (e a deve-se ser

    capaz de notar as contradies reais).

    A adequao da dialtica para os objetos obscuros ento justificada pelo fato

    de que apenas um dizer obscuro pode se aplicar a um objeto como tal: Visada

  • 17

    obscura do objeto obscuro quer dizer visada clara do objeto obscuro, adequao do

    objeto obscuro pensado coisa obscura real (Fausto, p.156), o que tambm pode

    ser dito da seguinte forma: (...) clareza significa respeito obscuridade [do objeto]

    (Paulani, 1992, p.4).

    A questo da adequao da dialtica no acaba aqui. Apesar de ela ter sido

    apresentada como adequada aos objetos obscuros, deve-se responder o que

    confere legitimidade para pensar a existncia de tais objetos, a existncia de

    pressuposies objetivas. Em outras palavras, teremos que apresentar as razes pelas quais legtimo se falar em contradies reais, o que vai de encontro

    concepo usual de cincia, baseada na lgica formal, de que elas existem apenas

    na conscincia, no movimento das categorias que ela produz. Para isto, preciso

    investigar como Hegel rompeu com o mundo kantiano onde s existem posio

    objetiva e pressuposio subjetiva, o que traduz o anteriormente exposto, que h um

    abismo entre sujeito e objeto e que s h contradio no ato de pensar, nunca no

    objeto enquanto tal.

    1.2 - A tentativa de resgate da prova ontolgica em Hegel

    A cincia tal como a conhecemos herdou de Kant a sua concepo das

    significaes. O fato de que para este autor as zonas escuras do conhecimento so

    os limites do entendimento derivam da recusa deste autor s vrias formas da prova

    ontolgica. Esta , como se sabe, a expresso que designa as vrias tentativas dos

    filsofos durante a Idade Mdia de provar a existncia de Deus. Para isto,

    entretanto, eles partiam de um conceito previamente aceito do que era Deus. Assim,

    a transgresso do pensar ao ser era caracterizada por esta circularidade.

    A crtica forma clssica da prova ontolgica por Kant fundamenta-se na idia

    de que no possvel passar do pensar ao ser, que no se pode deduzir o ser a

    partir do seu prprio conceito. O autor faz uma distino entre a coisa-em-si,

    enquanto ser-para-si, e a coisa enquanto fenmeno ou ser-para-ns. Sendo apenas

    da ltima forma que o sujeito pode perceber a coisa, atravs da experincia sensvel,

    e por isto apenas de uma maneira puramente subjetiva, Kant acabou por afastar o

  • 18

    sujeito do objeto, atacando os abusos do poder especulativo da razo realizados por

    Mendelssohn, Descartes, Leibniz e outros (a prova ontolgica em suas vrias

    formas), que acreditavam ser a razo capaz de determinar objetos, no sentido

    ontolgico, ou seja, de conferir posio a estes objetos (Kant: 1974 (b) e 1979), assegurando a existncia de Deus pela razo (por argumentos lgicos).

    A posio (o ser ) s caberia, para Kant, ao objeto, a conscincia no seria

    capaz de chegar a ele: esto estabelecidos aqui os limites da razo, no h posio

    subjetiva. Segue-se tambm que a pressuposio s cabe ao sujeito: as

    contradies ou as antinomias da razo s existem no plano do sujeito. No

    existiriam, desta forma, objetos pressupostos (cujas determinaes existem, mas

    falta a determinao posio), alm do que a conscincia no seria capaz de pr determinaes, em sentido forte, ou seja, captar as determinaes reais do objeto.

    Os conceitos para Kant seriam uma mera representao subjetiva.7 O sujeito

    transcendental de Kant (que est alm do sujeito emprico, da experincia sensvel),

    do campo supra-sensvel, condenou ento a razo, que ao mesmo tempo r e

    juza no seu prprio tribunal (a crtica da razo pura), ao plano subjetivo, da

    representao dos fenmenos, no podendo jamais chegar aos objetos ( coisa em

    si). O resultado a que se chega ento a separao entre o pensar e o ser, entre o

    sujeito e o objeto: o ato de pensar o objeto independente do ser-em-si deste

    prprio objeto. Nas palavras de Paulani (1992):

    Na concepo usual o conceito o conjunto das determinaes - percebidas

    pelo sujeito - que constituem o objeto; sua existncia enquanto tal no

    7 A rigor, o conceito kantiano representao de uma representao. Isto porque, para ele, todo

    nosso contato com o mundo objetivo mediado pelos sentidos (exceto o espao e o tempo, que so

    imediatos), de forma que a maneira como o mundo percebido pelo sujeito pensante j

    predeterminado pelas estruturas a priori do entendimento humano. Assim, a matria usada na

    confeco dos conceitos j uma representao do sujeito, porque mediada pelos sentidos. Ao

    construir o conceito, o sujeito do conhecimento faz uma representao subjetiva (a abstrao e a

    criao de categorias no pensamento) a partir de outra representao subjetiva (a apreenso do

    mundo pelos sentidos).

  • 19

    determinao (eu no acrescento nada ao conceito do objeto se digo que ele ). A

    posio, pois, s cabe ao universo objetivo. (p. 105).

    Da mesma forma, prossegue Paulani, para esta concepo a pressuposio s

    cabe ao universo subjetivo:

    (...) no cabe, no mundo objetivo, uma existncia pressuposta, onde as

    determinaes existem, mas a coisa mesma no, sendo que a pressuposio o

    conjunto de determinaes entre as quais no se inclui a existncia. (p. 105).

    Vejamos, acompanhando Fausto (1988), como Hegel reaproxima sujeito e

    objeto. Apesar de chamarmos o rompimento com esta viso kantiana do mundo de

    resgate da prova ontolgica, cumpre esclarecer a ressalva de Fausto - que este

    resgate no se d nos moldes clssicos. Assim, para Hegel (como para Kant), o ser

    no pode ser deduzido do conceito por anlise, que foi o que fizeram Descartes e os demais clssicos. A identidade entre o pensar e o ser em Hegel existe, mas ela exige

    uma passagem, um movimento, uma sntese. Porm esta sntese negativa, ela implica um movimento dialtico, de negao da possibilidade (o no ser). Como

    vimos anteriormente, o ser existente (ou necessrio) , no porque se pode afirmar

    sua possibilidade, mas pela negao dela. por isto, dir Fausto, que Hegel rejeita a

    idia de Leibniz, que exige uma prova prvia da possibilidade (no contradio) da

    idia de Deus.

    A reaproximao entre sujeito e objeto notada pela diferena entre as noes

    de conceito para Kant e para Hegel. Enquanto que para Kant o conceito apenas

    algo subjetivo, para Hegel escreve Fausto - enquanto o conceito no for posto, ele

    permanece como uma determinao subjetiva e, aqum disso, apenas o nome do

    objeto (p. 161). A conscincia para Hegel ento capaz de posio. Enquanto no

    est posto, ele apenas possibilidade, mera contingncia. Mas como se d esta

    negao da possibilidade? Como se realiza esta passagem da possibilidade

    efetividade ou, perguntando de outra forma, como se d a transgresso da posio

  • 20

    pensada posio objetiva? o que veremos a seguir, pois aqui que entra a

    questo da adequao do discurso e onde ser necessrio estabelecer a diferena

    entre as dialticas de Hegel e Marx.

    Por enquanto, o que temos com este resgate de Hegel a aceitao de que

    podemos pensar tanto a textura do sujeito como a do objeto sob a forma do

    conceito, isto , como conjunto de determinaes (o que, se se supuser que estas

    determinaes podem ser separadas da posio, s deveria convir ao sujeito)

    (Fausto, p.157). Recusar a separao de Kant implica tambm que o conceito

    entendido aqui como universal concreto, isto , como conjunto de determinaes que

    tanto no objeto como no sujeito podem ser postas (idem). Em outras palavras, esta

    recusa permite dizer que o sujeito capaz de pr determinaes (ele capta as

    determinaes do real e por isto o conceito no mera subjetividade), que a

    posio subjetiva (determinao posio), assim como permite dizer a existncia de objetos pressupostos ou pressuposies objetivas (objetos cujas determinaes existem, mas eles mesmos no, ou seja, suas determinaes

    existem, mas no a determinao posio). Temos ento que para a dialtica (tanto

    a de Marx como a de Hegel) a posio tambm uma determinao do conceito, ao

    passo que para Kant no.

    neste sentido - coloca Fausto - que so injustificadas as crticas ao resgate da

    prova ontolgica por Hegel baseadas na idia de que se trata de puro idealismo, ou

    seja, que no se teria rompido com o distanciamento kantiano entre sujeito e objeto

    pois aqui se teria abolido o objeto. Fausto procura mostrar, como resultado deste

    rompimento com Kant realizado por Hegel e no qual o acompanha Marx, que tanto a

    dialtica de Hegel , at certo ponto, objetiva, quanto a de Marx reserva espao para

    o idealismo: temos tanto o idealismo objetivo - os objetos do mundo tm a textura dos conceitos, o que significa que a generalidade no real concreto que permite a

    generalidade no pensamento - quanto o idealismo subjetivo - o pensamento pe determinaes. Daqui se conclui que a relao entre as duas dialticas muito mais

    sutil, no meramente uma inverso, como comum ouvir, na direo de uma

    comparao mecanicista de que a dialtica de Marx pode ser obtida colocando a de

    Hegel de cabea para baixo.

  • 21

    1.3 - A adequao do discurso dialtico: legitimidade para dizer os objetos obscuros

    Fausto observa que apesar de a questo da adequao estar presente em

    Hegel, ele no a resolve, por isto no reabilita o entendimento. Isto ocorre devido

    dupla transgresso realizada por este autor: a primeira, que conduz posio subjetiva ou posio pensada (assim como conduz tambm existncia de pressuposies objetivas) que o rompimento com o mundo kantiano, que vimos anteriormente; e a segunda, que a passagem da posio pensada posio objetiva, constituindo este segundo movimento a prova ontolgica ela mesma. A primeira transgresso tambm foi realizada por Marx, e at a que ele caminha na

    dialtica de Hegel. Mas a partir da posio pensada que surge o problema da

    adequao: ser esta posio pensada adequada ao objeto posto?

    Como escreve Fausto, o problema da adequao surge quando h divrcio

    entre o objeto e o sujeito: (...) exterioridade do objeto em relao ao pensamento do

    objeto. (p. 169/170). O autor procura esclarecer que o problema da adequao

    tambm existe em Hegel, apesar das crticas de que o seu idealismo aboliria este

    problema, j que o sujeito teria absorvido o objeto, no havendo assim o referido

    divrcio. Porm, a adequao em Hegel se d justamente com esta transgresso da

    posio pensada posio objetiva, ou seja, se a partir da posio pensada se

    constri a posio objetiva, se a posio pensada se confunde com a posio

    objetiva, ento o discurso (o pensado pelo sujeito) adequado ao objeto, pois o

    prprio objeto. Mas aqui aparecem os problemas com esta adequao, que resultam

    da reduo do objeto. Esse objeto ao qual se adequa a idia um objeto puro ou

    reduzido, [a] idia se liberta progressivamente de toda necessidade enquanto

    necessidade.(Fausto, p.170). O objeto cria autonomia no pensamento para se tornar

    uma idia absoluta, se confundindo com a prpria idia, distanciando-se da

    materialidade. A adequao perde assim a legitimidade, e a prova ontolgica no

    pode ser considerada, a rigor, como prova.

  • 22

    Como vimos, Marx tambm realiza junto com Hegel a primeira transgresso,

    que implica a reaproximao do sujeito e do objeto permitindo, ao contrrio do

    pensamento kantiano, conduzir posio pensada. No entanto, coloca Fausto, a

    segunda transgresso no aceita pela dialtica marxiana. Da posio pensada no

    se pode passar livremente para a posio objetiva. Se para a dialtica, tanto a de

    Marx quanto a de Hegel, a posio determinao, para Marx, no entanto, ao

    contrrio de Hegel, a posio objetiva no est contida na determinao posio, na

    medida em que esta ltima (apesar de influenciada e inspirada pela totalidade

    concreta, o objeto) apenas produto do crebro, do sujeito (que limitado pelo prprio

    objeto).8

    Fausto coloca que Marx entende a posio objetiva de uma outra maneira, com

    um argumento que lembra a prova cartesiana pela causa da idia de Deus. Ele cita

    numa nota de rodap o trecho em que Descartes coloca esta prova: Ora, uma

    coisa manifesta pela luz natural, que deve haver pelo menos tanta realidade na

    causa eficiente e total quanto no seu efeito; pois de onde que o efeito pode tirar a

    sua realidade se no da sua causa? E como esta causa lhe poderia comunicar se

    no tivesse [realidade] nela mesma? (Fausto, nota n. 35, p.167)

    O que Descartes quer dizer, em outras palavras, que se se pode pensar em

    Deus, criar um conceito de Deus (efeito) ento necessrio que ele exista

    efetivamente (causa), que as determinaes que constituem este conceito estejam

    postas na realidade. A percepo destas determinaes reais pelo sujeito que

    torna possvel a construo do conceito Deus.

    De forma semelhante, Fausto procura resumir o argumento de Marx, quando

    este fala de Aristteles a respeito do valor no primeiro captulo de O Capital:

    Aristteles no chega idia de valor (isto , ele chega s determinaes,

    em sentido estrito, do valor, mas no posio) porque na sociedade antiga no

    8 O todo, tal como aparece no crebro, como um todo de pensamentos, um produto do crebro

    pensante que se apropria do mundo do nico modo que lhe possvel, modo que difere do modo

    artstico, religioso e prtico-mental de se apropriar dele. O sujeito real permanece subsistindo, agora

    como antes, em sua autonomia fora do crebro, isto , na medida em que o crebro no se comporta

    seno especulativamente, teoricamente. (Marx: 1978, p.117)

  • 23

    havia objetivamente valor, isto , posio objetiva do valor, mesmo se as

    determinaes estavam objetivamente l [o valor era um objeto pressuposto -

    RT]. (Fausto, p. 166).

    E continuando, acrescenta:

    A noo de produo de uma idia (a idia de Deus) por Deus assim

    traduzida na noo de um campo de objetividades sociais, que ao mesmo tempo

    um campo de possibilidades de pensar o social. A idia do valor s pode ser

    produzida (posta) se a conscincia pertencer a esse campo em que se encontra o

    objeto valor: necessrio que haja pelo menos tanta realidade nesse campo

    como h na idia dela.9 (p. 167).

    Dito de outra forma, se existe determinao na posio pensada necessrio

    (mas no suficiente, como Fausto faz questo de destacar) que exista tanta ou mais

    determinao no objeto.

    As categorias no so mera idealidade, elas so concretas, a abstrao no se

    d apenas no pensamento, mas real. A posio pensada ento realmente

    posio (do objeto), e neste sentido temos uma prova ontolgica, mas ao contrrio: no se vai do pensar ao ser, mas do ser ao pensar, e por isto a dialtica de Marx

    uma dialtica materialista. o movimento objetivo que faz primeiro com que o objeto passe da pressuposio posio, ou seja, a abstrao que possibilita a

    confeco do conceito uma abstrao objetiva, uma abstrao real. Enquanto tal, ela uma contradio: temos tanto o momento privilegiado pelo positivismo, que o

    momento da abstrao ou da generalidade, quanto o momento privilegiado pelo

    historicismo, pois se trata de uma generalidade posta, e se a generalidade posta

    9 Cumpre ressaltar tambm aqui - a observao de Fausto - que Marx no est fazendo uma

    sociologia do conhecimento, no sentido de tratar a obra de Aristteles como determinada pelos

    interesses subjetivos deste autor, seja da sua religio ou classe social. A limitao colocada pelo

    campo social se d no prprio objeto: O argumento de Marx nada tem a ver assim com uma

    sociologia do conhecimento enquanto sociologia da subjetividade, isto , enquanto anlise das bases

    objetivas dos interesses de Aristteles. No vamos aqui dos interesses objetivos aos interesses de

    Aristteles, mas dos objetos-objetivos da sociedade grega aos objetos-subjetivos de Aristteles. No

    no nvel da noese que se d a limitao do campo de possibilidades, mas no nvel do noema".

    (Fausto: 1987, p.167) .

  • 24

    quer dizer que ela pertence a um determinado momento histrico. Temos ento no

    apenas um universal abstrato, como em Kant, mas um universal concreto.

    Esta viso no representa apenas uma ponte entre o pensar e o ser, mas

    tambm acrescenta ao ser (o mundo objetivo) uma qualidade que no existia em

    Kant, que a contradio, e por isto permite a contradio tambm no discurso, o que para Kant era inadmissvel, um defeito do pensamento. Para a dialtica

    marxiana, ento, o sujeito pe determinaes, desde que elas j existam no objeto10.

    Assim, temos em Marx, como em Hegel, uma primeira transgresso que um

    argumento ontolgico subjetivo (que vimos, no entanto, no se dar nos moldes

    clssicos), que admite a existncia da posio pensada e da pressuposio objetiva.

    Mas para chegar posio objetiva Hegel opera um segundo argumento tambm

    subjetivo que acaba por reduzir o objeto e deixar inacabada a questo da

    adequao. Marx por sua vez rejeita esta segunda transgresso e opera um

    segundo argumento ontolgico, porm este objetivo, resgatando a adequao do

    discurso dialtico, mas agora do lado do objeto, da realidade material. Ele funda

    ento a dialtica materialista (o objeto regula melhor dizer limita - a idia). Assim, mais do que dizer que os objetos do mundo tm a textura dos conceitos,

    que se deriva do rompimento de Hegel com Kant, em Marx podemos dizer que os

    conceitos que tm a textura dos objetos do mundo.

    Com isto, podemos dizer que a passagem da posio pensada posio

    objetiva em Marx tambm existe, mas esta passagem percebida pela conscincia

    na ordem inversa do que acontece na realidade. A passagem ocorre no como em

    Hegel, que acabou no se distanciando muito do mesmo movimento que criticou

    (assim como Kant) nos clssicos, obtendo a posio objetiva atravs das

    determinaes (por maiores que sejam as diferenas entre as noes de conceito

    para Hegel e para os clssicos). Para Marx, a negao da possibilidade, ou seja, a

    passagem existncia ocorre na prtica, ela um processo, uma sntese, mas uma

    sntese no objeto. O seu argumento ontolgico aqui objetivo, pois o movimento

    10 mister uma produo de mercadorias totalmente desenvolvida antes que da experincia mesma

    nasa o reconhecimento cientfico (...) (Marx: 1983, p.73).

  • 25

    do prprio objeto que vai pr a existncia do que antes era apenas possvel. a

    realidade material na sua transformao que vai pr as determinaes que sero

    percebidas pelo sujeito, possibilitando a este a confeco do Conceito conforme a

    textura desta prpria realidade transformada. necessrio, antes, que o objeto

    passe da pressuposio posio, para que o sujeito opere a posio subjetiva.

    Desenvolvendo mais a questo, Fausto mostra que em Hegel a prova

    ontolgica que regula a adequao. Isto , a adequao depende da segunda

    transgresso, que uma passagem ontolgica subjetiva (assim como a primeira),

    que vai da posio pensada posio objetiva, com a conseqente reduo do

    objeto. Em Marx, a adequao que regula a prova ontolgica: no pela posio

    pensada que se chega objetiva, pelo contrrio, se existe determinao na posio

    pensada necessrio que ela exista, antes, no objeto; o argumento ontolgico aqui objetivo e realmente uma prova ontolgica, ainda que para a conscincia, pois na

    realidade o movimento inverso.

    Esta supremacia do objeto (do campo social), que o ponto de partida da

    representao, melhor, da reapresentao do mundo pelo sujeito, no existe em Hegel. Por isto na introduo de Para a Crtica da Economia Poltica, Marx dir que

    este autor incorreu no erro de confundir a apropriao da totalidade concreta pela

    conscincia, ou seja, a representao do concreto pelo sujeito, com a origem deste

    mesmo concreto: a crtica segunda transgresso.11

    Por ltimo, faamos uma observao importante. Apesar do fato de o dizer em

    Marx depender primordialmente do objeto, e que sempre ir captar determinaes

    objetivas (mesmo os economistas polticos e a Economia atual captam

    determinaes objetivas, apesar de acharem que seus conceitos so aistricos), a

    riqueza de determinaes que o dizer pode reapresentar depende do sujeito, do

    11 (...) Hegel caiu na iluso de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si,

    se aprofunda em si e se move por si mesmo; enquanto que o mtodo que consiste em elevar-se do

    abstrato ao concreto no seno a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do

    concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este no de modo nenhum o processo da

    gnese do prprio concreto. E mais a diante: (...) [a totalidade concreta] no de modo nenhum o

    produto do conceito que pensa separado e acima da intuio e da representao, e que se engendra

    a si mesmo, mas da elaborao da intuio e da representao em conceitos. (MARX: 1978, p. 117)

  • 26

    prprio dizer. A defesa da dialtica empreendida por Fausto e Paulani a de que a

    dialtica o dizer mais adequado para certos objetos, particularmente os objetos do

    campo social, pois ela vai apreender da melhor forma as determinaes objetivas,

    quando o objeto contraditrio.

    * * *

    Como vimos, Marx aceitou a primeira transgresso de Hegel, que aproxima

    sujeito e objeto, trazendo a objetividade para o conhecimento. Mas ao se recusar a

    acompanhar Hegel num segundo momento e buscar, como Kant, um limite para a

    razo, ele busca uma legitimao para a objetividade cientfica que no como a

    kantiana da subjetividade mas baseada num limite da razo dado pelo prprio

    objeto. A possibilidade de um conhecimento objetivo ento trazida por um

    argumento ontolgico objetivo: as idias no so desvinculadas do contexto social

    onde surgiram. Elas refletem as transformaes do prprio objeto, e por isto contm

    determinaes da realidade, ainda que no se identifiquem com ela (como em

    Hegel), pois a reflexo cientfica e filosfica, segundo Marx (1979b, p.117), assim

    como a arte e a religio, apenas uma das formas possveis de se apropriar da

    realidade, e no a realidade ela mesma. A dialtica no apenas um mtodo, como

    na cincia convencional, mas um discurso lgico-ontolgico, no qual mtodo e

    ontologia so inseparveis.

    O surgimento do materialismo dialtico deve ser entendido ento como um

    rompimento filosfico e epistemolgico, em que h um rompimento na viso que at

    ento se tinha do Esclarecimento (Aufklarung), quando este era visto como um

    processo centrado no sujeito (sujeito do conhecimento), e tambm uma

    transformao na prpria forma de ver a razo, ambos agora sendo voltados para o

    objeto (para o sujeito histrico).

    O objeto, no entanto, ganha um carter subjetivo, onde se destaca o papel do

    homem como sujeito da histria. Assim, Marx realiza uma dupla reaproximao entre

    sujeito e objeto. A primeira, que reconhece que os conceitos so histricos, que o

  • 27

    sujeito do conhecimento limitado pelo seu campo social12. A segunda, que encara

    o objeto no seu aspecto subjetivo, no sentido de que o homem , mais do que sujeito

    cognoscente, sujeito histrico, agente das transformaes.

    Aqui possvel fazer uma relao entre o materialismo dialtico e o

    materialismo histrico. pelos limites estabelecidos pela posio objetiva que em O

    18 Brumrio de Lus Bonaparte Marx vai dizer que os homens fazem a histria, no

    como a querem, mas segundo as condies que ela prpria lhes fornece. Eles so

    limitados pelas condies histricas, pelas limitaes objetivas do campo social do sujeito. A estrutura histrica em dado momento permite assim tanto um campo de

    possibilidades de pensar o social, como tambm um campo de possibilidades de

    transformao social. No h determinismo, como existe, por exemplo, nas idias de

    sucesso de modos de produo e de leis inexorveis do desenvolvimento

    histrico que equivocadamente se imagina serem derivadas de Marx. O meio social

    limita o campo de possibilidades, mas no determina qual o rumo a ser seguido. Este

    ser construdo pelos homens na prxis, na esfera da poltica, quando as classes-

    em-si, da estrutura, passam a atuar como classe-para-si, na esfera da poltica.

    12 No estamos falando aqui de uma limitao do sujeito no sentido do historicismo ou da sociologia

    do conhecimento. Como escreveu Fausto (1988), ao dizer que Aristteles era limitado por seu tempo

    para compreender o conceito de valor, Marx no falava de limitaes subjetivas, no sentido dos

    preconceitos de Aristteles para com os escravos gregos. Segundo esta leitura, Aristteles no teria

    percebido que o trabalho que determina o valor porque seus preconceitos subjetivos o impediriam

    de ver o trabalho escravo e o trabalho de um cidado grego como iguais, e sem chegar ao trabalho

    abstrato no haveria como pensar o valor. Mas Fausto defende que a limitao do sujeito que Marx

    coloca no subjetiva (no sentido da cultura ou interesses de classe), mas objetiva: no que o valor

    existia na Antigidade mas Aristteles, pelos preconceitos subjetivos, no percebia, mas sim que o

    valor no existia na Antigidade (ainda que algumas de suas determinaes estivessem l, postas)

    porque o trabalho abstrato, fundamento do valor, s adquire posio no capitalismo.

  • 28

    CAP. 2 A DOMINNCIA FINANCEIRA: CAPITAL PORTADOR DE JUROS, CAPITAL FICTCIO E AS CRISES FINANCEIRAS

    Introduo

    Embora vrios autores, acompanhando Chesnais, vejam hoje uma dominncia

    financeira no capitalismo contemporneo, ainda no foi suficientemente explorada, a

    nosso ver, a articulao das categorias de O Capital que permite perceber,

    logicamente, a tendncia autonomizao da esfera financeira, ou do domnio da

    forma financeira de valorizao, caracterizado pela busca da valorizao mantendo o

    capital em sua forma lquida (sem passar pela produo), o que apresentado por

    Marx na seo V do livro III de O Capital, na frmula do capital portador de juros, D

    D.

    Isso seria importante inclusive para combater os autores que vem no perodo

    atual de predomnio da valorizao financeira nada mais do que um processo normal

    de transio, que ocorre no final de um ciclo de acumulao capitalista (Wallerstein,

    2003; Arrighi, 1996). Assim, neste captulo buscaremos mostrar como Marx,

    apresentando o conceito de dinheiro de uma maneira dialtica, mostra

    sucessivamente, ao longo de sua obra mais conhecida, a tendncia de a esfera

    financeira autonomizar-se com relao esfera produtiva, tendncia que est

    inscrita na prpria natureza do objeto dinheiro. Esta tendncia abre a possibilidade

    da autonomizao da esfera financeira e das crises financeiras.

    O dinheiro em Marx apresentado como um desenvolvimento lgico da forma

    mercadoria, uma conseqncia do processo histrico de desenvolvimento do

    capitalismo. Este processo de constituio lgica do dinheiro pode ser percebido nas

    seguintes passagens, nas quais iremos nos centrar: se inicia no primeiro captulo do

    livro I de O Capital, onde o autor deriva o conceito de dinheiro da circulao das

    mercadorias, como uma necessidade lgica do desenvolvimento desta; passa pelo

    captulo III do livro I, intitulado O Dinheiro ou a Circulao das Mercadorias, no qual o

  • 29

    autor fala das funes 13 do dinheiro; passa depois pela transformao do dinheiro

    em capital, no captulo IV, segunda seo, ainda do livro I; e chega finalmente

    seo V do livro III, onde o autor discute o sistema financeiro, o crdito e a

    especulao, chegando aos conceitos de capital portador de juros e capital fictcio.

    Defendemos que esta apresentao dialtica do dinheiro e do capital mostra a

    tendncia que tais formas tm de autonomizar-se do substrato material que lhes d

    suporte.14 Esta tendncia aparece j na apresentao do prprio dinheiro, quando

    Marx mostra que ele, enquanto equivalente geral e forma de manifestao do valor

    das mercadorias, tende a se autonomizar com relao aos valores de uso (as

    mercadorias), formas cristalizadas do trabalho abstrato. Aps a transformao do

    dinheiro em capital, esta autonomizao crescente, culminando na demonstrao

    de que o processo de valorizao pode se autonomizar com relao criao e

    realizao da prpria mais-valia, no mbito da produo e circulao de mercadorias

    (autonomizao do lado monetrio-financeiro com relao ao chamado lado real

    da economia, no jargo da teoria econmica convencional).

    O pice desta autonomizao est na seo V do livro III, quando Marx

    desenvolve sua anlise do capital portador de juros e do capital fictcio, chegando s

    crises financeiras. Com a apresentao deste movimento, Marx apresenta tambm,

    paralelamente, o movimento em direo maior fetichizao das relaes sociais, 13 Embora em O Capital Marx use a expresso funes (functionem) do dinheiro, nos Grundrisse ele

    utiliza a expresso determinaes do dinheiro. A diferena no de forma alguma devida a um mero

    uso de palavras, pois o termo determinao (Bestimung), da lgica hegeliana, se refere a um

    predicado que tenta exprimir um sujeito, mas que apenas o reflete (o que Fausto chama de juzo de

    reflexo): o sujeito no se esgota no predicado e mesmo negado por ele. A expresso funo,

    entretanto, est dentro dos limites do discurso do entendimento. Quando se expressa o sujeito por

    uma de suas determinaes (o predicado), o sujeito na verdade fica pressuposto e o predicado

    aparece como posto (Fausto, op.cit). Daqui por diante nos referiremos, seguindo os Grundrisse, s

    determinaes do dinheiro. 14 Esta autonomizao semelhante, a nosso ver, idia de desmedida do valor tratada por Grespan

    (1996), quando fala das crises (o negativo do capital), como as crises de desproporcionalidade

    setorial e de sobreacumulao. Nosso foco aqui, entretanto, uma dimenso da desmedida no

    tratada por este autor, que no chegou, na obra referida, seo V do livro III de O Capital, que

    quando Marx trata da esfera financeira, particularmente do capital portador de juros e do capital

    fictcio, bem como das crises financeiras.

  • 30

    movimento este que constitutivo da forma mercadoria e se exacerba com a forma

    dinheiro e seu desenvolvimento em capital, culminando com a forma capital portador

    de juros.

    No que se segue, acompanharemos passo a passo a possibilidade lgica dessa

    autonomizao, tal como ela se apresenta em O Capital, o que faremos nas seo 1

    deste captulo. Nas sees 2 e 3, apresentamos as mudanas histricas que

    abriram espao para que a possibilidade lgica da autonomizao ganhasse

    efetividade histrica, expondo inicialmente as principais transformaes no sistema

    monetrio internacional no sculo XX, do ponto de vista da anlise dialtica do

    dinheiro mundial realizada por Paulani (1992), e descrevendo em seguida o

    processo de mundializao financeira ocorrido no capitalismo do final do sculo XX,

    perodo no qual a instabilidade e as crises financeiras se tornaram freqentes. A

    ltima seo destina-se a mostrar, tomando por base fundamentalmente os trabalhos

    de Franois Chesnais, a emergncia, nas dcadas finais do sculo XX, de um

    regime de acumulao com dominncia da valorizao financeira.

    2.1 O desenvolvimento lgico do dinheiro e do capital em Marx e a tendncia autonomia da esfera financeira

    Marx inicia O Capital com a mercadoria, percebendo nela um duplo carter: o

    valor (que aparece como valor de troca) e o valor de uso15. Mas as mercadorias so

    produtos do trabalho humano, desta forma, o trabalho humano tambm tem um

    duplo carter: o trabalho concreto, que corresponde ao valor de uso, e o trabalho

    abstrato, que corresponde ao valor .

    15 Cabe destacar que em Marx, como nos economistas clssicos ingleses, o valor de uso vem das

    propriedades fsicas do objeto, no uma atribuio subjetiva de valor pelo indivduo, tal como

    apareceu posteriormente na teoria do valor utilidade. Valor de uso no se confunde assim com o

    conceito de utilidade desta ltima teoria.

  • 31

    o trabalho abstrato, para Marx, a substncia do valor de uma mercadoria16. O

    valor, como mostra Fausto (1987, cap.3), visto ento por Marx como uma fora

    social. Ele passa a existir efetivamente17 quando a concorrncia entre os produtores

    impe um tempo social como fora coercitiva na produo, ou seja, regula

    socialmente o tempo de trabalho necessrio para a produo das mercadorias.

    Aps colocar o trabalho abstrato como fundamento do valor e de sua

    manifestao, o valor de troca, Marx, ainda no primeiro captulo de O Capital, deriva

    logicamente o conceito de dinheiro da circulao de mercadorias, com a forma

    dinheiro sendo a forma mais adequada de manifestao do valor18, pois ela , tal

    como a forma geral do valor da qual deriva, ao mesmo tempo simples (isto

    unitria), comum e completa: todas as demais mercadorias tero a expresso de

    seus valores de forma simples, porque numa nica mercadoria, comum, porque na

    mesma mercadoria, e completa, porque est preparada para receber a constante

    entrada de novas mercadorias no processo de circulao. A mercadoria que cumpre

    o papel de dinheiro assim o equivalente geral para a expresso do valor de todas

    as outras mercadorias, e se impe como necessidade lgica do desenvolvimento das 16 Marx, nas Teorias da mais-valia, ressalta este carter de substncia, pois o valor para ele uma

    coisa social: social porque foi criado no meio social, como um desenvolvimento da prxis humana,

    mas tem o peso da coisa porque, tal como os objetos da natureza, se apresenta como um objeto

    exterior ao sujeito cognoscente, pois no capitalismo os homens no tm mais o domnio da

    reproduo material. Ela aparece autonomizada na esfera do mercado, na mo invisvel. Neste

    sentido, e apenas neste sentido, deve-se fazer um corte epistemolgico e perceber o objeto como

    exterior ao sujeito, como coisa, mas como coisa social, e no como coisa natural, como vem os

    positivistas. Para um trabalho que desenvolve a noo do valor como substncia social, ver Borges

    Neto (2002). 17 De fato, o valor no tem existncia efetiva antes do capitalismo, l ele um objeto apenas

    pressuposto, ou seja, em outras sociedades em que havia a troca, algumas determinaes do valor

    esto postas, mas falta a sua posio (Fausto, 1987, cap.3). A posio do valor s efetuada quando

    todos os produtos j so mercadorias antes mesmo de irem ao mercado, pois j so produzidos

    exclusivamente para o mercado, e assim o valor de troca das mercadorias no determinado

    segundo os tempos individuais de trabalho dos agentes da troca, mas segundo um tempo

    estabelecido socialmente pela concorrncia antes da troca efetiva. 18 Valor para Marx no se confunde com valor de troca: o valor a substncia, o fundamento, o

    contedo da relao. O valor de troca a forma fenomnica do valor, o modo como o valor aparece

    efetivamente.

  • 32

    trocas. As mercadorias eleitas historicamente foram os metais preciosos, como o

    ouro e a prata.

    Assim, a contradio entre valor de uso e valor que antes era externalizada na

    forma simples de expresso do valor (x de mercadoria A = y de mercadoria B)19,

    quando se chega na forma preo (x de mercadoria A = 1 ona de ouro; ou x de A =

    R$ 1,00) 20, resolvida agora em outra contradio, aquela que aparece entre a

    mercadoria e o dinheiro: a mercadoria aparece agora apenas enquanto valor de uso,

    enquanto que o dinheiro aparece apenas enquanto valor, com sua forma material

    (valor de uso) tornando-se aqui secundria (Paulani, 1992). Aqui temos uma primeira

    manifestao da tendncia autonomizao: na forma de expresso do valor,

    quando no lado da forma equivalente est o dinheiro, ele j no figura l como valor

    de uso, mas apenas como valor, ainda que o dinheiro seja uma mercadoria, como o

    ouro. Isto porque a mercadoria que se torna dinheiro, nesta condio de equivalente

    geral, no figura na expresso do valor com seu valor de uso intrnseco, ela aparece

    a apenas com seu valor de uso formal, ou seja, seu valor de uso de ser medida dos

    valores e meio de troca (moeda), figurando, a rigor, apenas como forma

    autonomizada do valor21.

    19 H aqui contradio porque, na forma simples, em que temos uma mercadoria a expressar o valor

    de outra, ocorre que o valor de uso (da mercadoria B, no caso) torna-se forma da expresso de seu

    oposto, o valor (da mercadoria A). Assim, abstraindo as quantidades, estamos dizendo que valor

    igual a valor de uso, mas eles so opostos, da a contradio. 20 Cabe notar que esta derivao lgica do dinheiro da circulao, chegando forma preo, no

    aparece em lugar algum na cincia econmica, o preo que aparece em Marx o preo mesmo, em

    unidades monetrias, no simplesmente o preo relativo. O fato de a teoria convencional no ter um

    lugar para o dinheiro, mas apenas para os preos relativos (veja-se, por exemplo, a teoria do

    equilbrio geral), a motivao principal de Paulani (1992) para defender a dialtica, percebendo que

    a concepo de lgica e razo qual se filia a cincia econmica convencional no consegue

    capturar o objeto dinheiro em sua plenitude. por isto, acrescentamos, que as teorias convencionais

    no conseguem ver, com a riqueza possibilitada pelo mtodo de Marx, a evoluo do sistema

    monetrio internacional, sua configurao recente e a instabilidade atual. , de resto, o que

    procuramos defender neste trabalho. 21 Marx diz, por isso, que a existncia formal (social) do ouro absorve sua existncia natural (enquanto

    metal que serve para determinados fins) to logo ele seja historicamente posto como dinheiro.

  • 33

    por isto que Marx escreve que o fetichismo da mercadoria, ou seja, o fato de

    as relaes sociais entre os produtores aparecerem na troca como relaes naturais

    entre os produtos do trabalho, d um salto ainda maior com o surgimento do

    dinheiro: como o dinheiro aparece como sendo apenas valor (seu valor de uso

    pressuposto na forma de expresso do valor da mercadoria), a idia de que o valor

    algo natural, intrnseco aos metais preciosos, torna-se atraente para os incautos22.

    Assim, o fetiche do dinheiro um aprofundamento do fetiche da mercadoria.

    Aps chegar ao dinheiro, de uma maneira ainda puramente formal23, ou seja,

    derivando logicamente a forma preo da mercadoria, no captulo 3 da mesma obra

    Marx vai tratar especificamente do dinheiro, apresentando suas funes. A primeira

    funo do dinheiro ele ser medida dos valores. O importante a destacar aqui que o autor lembra que no por meio do dinheiro que as mercadorias se tornam

    comensurveis:

    Ao contrrio. Sendo todas as mercadorias, enquanto valores, trabalho

    humano objetivado, e, portanto, sendo em si e para si comensurveis, elas

    podem medir seus valores, em comum, na mesma mercadoria especfica e com

    isso transformar esta ltima em sua medida comum de valor, ou seja, em

    dinheiro. Dinheiro, como medida de valor, forma necessria de manifestao da

    medida imanente do valor das mercadorias: o tempo de trabalho. (Marx, 1983,

    p.87).

    Ou seja, o autor reafirma o que dissera no captulo 1, isto , que o dinheiro

    surge logicamente do interior das mercadorias, como seu equivalente geral, e a

    expresso mais acabada do trabalho abstrato. As mercadorias no se tornam

    comensurveis pela existncia do dinheiro, o dinheiro que tem sua existncia

    logicamente derivada a partir de uma sociedade de produtores de mercadorias.

    22 Vale registrar aqui uma das irnicas passagens de Marx:At agora nenhum qumico descobriu

    valor de troca em prolas ou diamantes. Os descobridores econmicos desta substncia qumica, que

    se pretendem particularmente profundos na crtica, acham, porm, que o valor de uso das coisas

    independente de suas propriedades enquanto coisas, que seu valor, ao contrrio, lhes atribudo

    enquanto coisas. (Marx, 1984, p.78). 23 Pois, como observa Paulani (1992) e veremos melhor adiante - o dinheiro como Conceito, no

    sentido hegeliano, ainda no est plenamente constitudo aqui.

  • 34

    A segunda funo do dinheiro ser meio de circulao, e a circulao de mercadorias representada pelo conhecido circuito M D M. O autor divide esta

    funo em trs tpicos:

    1) Em primeiro lugar, Marx fala da metamorfose das mercadorias. A

    primeira metamorfose, a venda, traduzida pela frmula M D, o que o autor chama

    de salto mortal da mercadoria: numa sociedade em que se produz exclusivamente

    para a troca, com uma intensa diviso do trabalho, o produtor para sobreviver

    depende de conseguir vender seu produto, obtendo dinheiro para comprar os

    produtos de que necessita. A separao entre os atos de compra e venda,

    introduzida pelo dinheiro como meio de circulao, abre a possibilidade formal de

    uma crise. A segunda metamorfose, a compra (D M), acontece quando a

    mercadoria vai para a esfera individual, o consumo, e encerra assim o seu ciclo;

    2) Ainda dentro da funo do dinheiro como meio de circulao, Marx fala

    do curso do dinheiro. O importante a destacar aqui que o dinheiro na circulao

    sempre repelido, pois o fim, o objetivo da circulao, no o dinheiro (o valor), mas

    a mercadoria (o valor de uso): na circulao simples de mercadorias, o produtor

    vende seu produto para obter dinheiro, mas no fica com o dinheiro, ele quer

    comprar mercadorias para o seu consumo. Aqui o dinheiro apenas o mediador, o

    facilitador das trocas, para que no se precise trocar diretamente uma mercadoria

    pela outra e contornar assim a necessidade da dupla coincidncia de interesses de

    uma economia de trocas diretas;

    3) Em terceiro lugar, Marx fala da determinao do dinheiro como moeda,

    que ele chama de signo do valor. O importante a reter aqui que o autor mostra que

    o ouro passa a deixar de ser equivalente verdadeiro das mercadorias. Antes as

    mercadorias tinham seus valores expressos em quantidades de ouro que

    representavam igual quantidade de trabalho, pois o prprio ouro uma mercadoria

    produzida pelo trabalho humano. Com o passar do tempo, as moedas de ouro se

    desgastaram, ou mesmo alguns governantes passaram a cunhar moedas com valor

    de face menor que o valor do ouro nelas contido (da a origem da expresso

    senhoriagem). O contedo nominal comeou a se dissociar do contedo real. O

    dinheiro passou ento a poder ser substitudo por smbolos, que no precisavam

  • 35

    necessariamente ser mercadorias, produzidas pelo trabalho humano e com valor de

    uso. Ele passa ento a poder ter representantes, e aqui est a possibilidade do

    surgimento da moeda papel. A funo monetria do dinheiro pode assim prescindir

    do seu valor, ou seja, sua funo pode ser desempenhada por uma mercadoria cujo

    valor (em tempo de trabalho abstrato) no corresponda ao valor das mercadorias

    pelas quais ser trocado.24

    Com o surgimento da moeda como signo do valor, temos aqui uma nova

    dimenso da autonomizao: o dinheiro j no precisa mais, ao menos em sua

    essncia, ser uma mercadoria (na aparncia ele ainda foi mercadoria, at o fim do

    padro ouro), pois se sua funo monetria no depende de seu valor intrnseco, ele

    pode perfeitamente ser um signo qualquer, sem valor de uso (pelo menos sem valor

    de uso intrnseco, ficando apenas com o valor de uso de ser meio de troca, a que

    Marx chama de valor de uso formal).

    Vejamos ento a ltima funo do dinheiro apontada por Marx no captulo III.

    Como vimos, as duas primeiras so medida dos valores e meio de circulao. O

    curioso que o autor, dentro do captulo em que, pelo ttulo, se pensa estar falando

    o tempo todo do dinheiro, chama a ltima funo do dinheiro de ... dinheiro. A

    explicao para esta curiosidade no ser encontrada dentro da concepo

    tradicional das significaes, vinculada lgica formal, pois Marx no compartilha da

    concepo kantiana, que separa sujeito e objeto, mas um legtimo herdeiro da

    tradio hegeliana. De fato, para Marx, enquanto medida dos valores ou meio de

    circulao, o dinheiro ainda no est plenamente constitudo, ele apenas moeda,

    ele meio e no fim. Apenas quando acrescenta ao dinheiro suas funes de

    tesouro e meio de pagamento que Marx o pe efetivamente como dinheiro. No

    plano da lgica (que aqui no a formal, mas a dialtica), isto equivale a dizer que o

    24 Claro que isto pode trazer problemas, como a inflao (e a relao entre senhoriagem e inflao

    bastante conhecida na teoria econmica), pois uma questo essencial natureza do dinheiro a

    confiana na sua funo de reserva de valor, que ser apresentada a seguir. Entretanto, como

    veremos na seo 4 deste captulo, o prprio dinheiro mundial hoje uma moeda puramente

    fiduciria, sem lastro em metal algum. Ou seja, enquanto aqui dizemos que o dinheiro pode ter

    representantes, como a moeda papel, no capitalismo contemporneo uma moeda papel o prprio

    dinheiro.

  • 36

    dinheiro, enquanto apenas moeda, no ainda dinheiro, ou, para usar as

    categorias de Fausto (1988, cap. 2), o dinheiro pressuposto, vale dizer, suas

    determinaes esto l, mas falta uma: a prpria posio, que equivale existncia

    efetiva do conceito25. Enquanto moeda, o dinheiro pertence ainda ao campo da

    pressuposio.

    Em outras palavras, enquanto moeda, o dinheiro est logicamente determinado,

    ou seja, j contm todas as suas determinaes essenciais, mas no tem ainda

    existncia efetiva, no tem a determinao posio26: nesta, ele desenvolve todas as

    suas potencialidades, quando mostra-se ainda mais autonomizado, quando um fim

    em si mesmo e no apenas meio.

    Como tesouro, ele visto ento como reserva de valor, forma por excelncia da

    riqueza. Ele aqui a prpria encarnao do valor. Como meio de pagamento, ele

    no precisa estar presente na circulao, s aparece nela depois que a mercadoria

    dela j se retirou: a alienao da mercadoria separa-se temporalmente da

    realizao de seu preo (Marx, 1983, p.114). Vendedor e comprador tornam-se

    assim credor e devedor.

    O dinheiro j no media o processo. Ele o fecha de modo autnomo, como

    existncia absoluta do valor de troca ou mercadoria geral. O vendedor converte

    sua mercadoria em dinheiro para satisfazer a uma necessidade por meio do

    dinheiro, o entesourador, para preservar a mercadoria em forma de dinheiro, o

    comprador que ficou devendo, para poder pagar. Se no pagar, seus bens so 25 Como vimos no captulo anterior, na concepo kantiana das significaes, a posio (existncia

    efetiva) no uma determinao do conceito, ela s cabe ao objeto. Na concepo dialtica de Hegel

    e tambm de Marx, entretanto, a posio tambm uma determinao do conceito: enquanto no se

    acrescenta ao conceito sua posio ele existe apenas como pressuposio. O que diferencia Marx de

    Hegel, entretanto, que para este ltimo a determinao posio (construda pelo sujeito) contm a

    posio objetiva (o objeto), o que caracteriza uma autonomizao do sujeito face ao objeto, e por isto

    a dialtica de Hegel cai no idealismo, ao passo que para Marx a posio objetiva no est contida na

    determinao posio, mas antes um pressuposto para ela (dialtica materialista). Ver Fausto

    (op.cit). 26 Cabe lembrar aqui que para Kant a posio no uma determinao do conceito: ela pertence

    apenas coisa-em-si, ou seja, ao campo objetivo. O conceito ou a representao, por sua vez,

    pertence apenas ao campo subjetivo.

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    vendidos judicialmente. A figura de valor da mercadoria, dinheiro, torna-se,

    portanto, agora um fim em si da venda, em virtude de uma necessidade social que

    se origina das condies do prprio processo de produo. (Marx, 1983, p. 115).

    No seu desenvolvimento, o dinheiro passa a ser substitudo pelos certificados

    de dvida (os ttulos de toda espcie), que entram na circulao (dinheiro ideal).

    Nas palavras de Marx:

    O dinheiro de crdito se origina diretamente da funo do dinheiro como

    meio de pagamento, j que so colocados em circulao os prprios certificados

    de dvidas por mercadorias vendidas, para transferir os respectivos crditos. Por

    outro lado, ao estender-se o sistema de crdito, estende-se a funo do dinheiro

    como meio de pagamento. Enquanto tal, recebe forma prpria de existncia, na

    qual ocupa a esfera das grandes transaes comerciais, enquanto as moedas de

    ouro e prata ficam confinadas esfera do varejo. (Marx, 1983, p. 117).

    Exatamente aqui Marx coloca numa nota de rodap uma citao de Defoe, um

    autor ingls da poca: O carter do comrcio mudou de tal maneira que agora, em

    vez da troca de bens por bens ou entrega e recepo, h venda e pagamento e

    todos os negcios (...) apresentam-se atualmente como negcios puros de dinheiro.

    (p. 117, nota 104).

    Nesta funo do dinheiro, temos ento outro passo com relao

    autonomizao: como tesouro, ele apar