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    Teatro Medieval: 4 Sketches

    (Textos para sala de aula. Traduo, adaptao e notas introdutrias: JeanLauand)

    Jean LauandProf. Titular FEUSP

    [email protected]

    O teatro e a cultura medieval

    Desde queh exatos vinte anos - comecei a lecionar Histria da EducaoMedieval, para os alunos do primeiro ano da Faculdade de Educao daUniversidade de So Paulo, senti a necessidade de oferecer-lhes tradues detextos da poca - das mais diversas reas: da filosofia e da teologia matemtica e a retrica, passando pelo jogo de xadrez e por inscries emrelgios de sol etc.

    Como no poderia deixar de ser, temos traduzido tambm diversas peas deteatro, pois o teatro uma importante expresso da educao da poca, alm

    de prestar-se a ricas atividades em nossas salas de aula.O teatro medieval - como a literatura e outras produes artsticas da poca -comporta, tipicamente, um outro objetivo: o de instruir. Indissocivel da IdadeMdia , tambm, o elemento religioso: o teatro medieval surge - como quenaturalmente - da liturgia, principalmente da liturgia da Pscoa.

    Assim, em algumas abadias beneditinas, a liturgia passa tambm a representarepisdios da vida de Cristo, sobretudo os da ressurreio (as antfonas so juma plataforma de lanamento para o teatro). Um texto ingls do sc. IX [1]

    descreve o acompanhamento da leitura litrgica do Evangelho:

    ORDO

    (Durante a terceira leitura, quatro irmos mudam de veste. O primeiro, comtrajes brancos, entra com ar de quem est preocupado com uma tarefa,

    penetra no sepulcro e senta-se em silncio, segurando uma palma na mo.Depois, enquanto se recita o terceiro responsrio, entram os outros trsirmos, revestidos com capas, trazendo nas mos turbulos com incenso e,lentamente, como quem procura algo, dirigem-se ao sepulcro. Com esta cena,

    representa-se o anjo sentado sobre o sepulcro e as mulheres que chegam comaromas para ungir o corpo de Jesus. Mal o irmo sentado v aproximarem-se

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    os outros trs - com ar titubeante, de quem est procurando alguma coisa -,comea a cantar suavemente, a meia-voz:)

    - Que buscais no sepulcro, cristos?

    (Ao que os trs respondem, cantando em unssono:)

    - A Jesus Nazareno crucificado, habitante do Cu.

    - No est aqui, ressuscitou como tinha predito! Ide e anunciai que Elesuperou a morte!

    (Os trs dirigem-se ao coro, cantando:)

    - Aleluia, o Senhor ressuscitou, hoje o leo forte ressuscitou, o Cristo, Filhode Deus.

    (Depois destas palavras, o irmo torna a se sentar e, como que chamando-os,entoa a antfona:)

    - Ressuscitou do sepulcro o Senhor que, por ns, esteve na Cruz. Aleluia.

    (Estendem o sudrio sobre o altar. Terminada a antfona, o prior, paraexpressar a alegria pelo triunfo de nosso rei, ressuscitado depois de tervencido a morte, incoa o Te Deum laudamus e todos os sinos tocam juntos.)

    "cena" do sepulcro, vo se juntando outras representaes litrgicas deteatro incipiente: os discpulos de Emas, cenas de Natal etc. Pouco a pouco, otexto vai se emancipando e a literalidade da Escritura d lugar a parfrases,comentrios lricos etc.

    Umjeu medieval - O Mistrio de Ado

    OMistrio de Ado, que apresentamos a seguir, de autor annimo, um

    pioneiro do sculo XII dosjeux medievais que ligam o mistrio da redenoao pecado original. Seus personagens, como faz notar Pauphillet [2] , soseres humanos comuns (a pea no entra em maiores discusses sobre oalcance metafsico da Queda): Ado , simplesmente, um servidor leal quetem um momento de fraqueza e Eva representa a fragilidade feminina.

    A pea comporta trs partes: 1) a desobedincia de Ado e Eva, 2) a morte deAbel, e 3) um desfile de profetas anunciando a redeno de Cristo (esta partechegou a ns mutilada).

    OMistrio de Ado, explica Pauphillet, ao contrrio das primeirascomposies latinas - mais prximas da liturgia e representadas dentro da

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    igreja - era encenado sobre um tablado assentado em frente ao templo. No seousa representar Deus, que meramente sugerido pelo personagem da Figura(que est na igreja e, de l, entra e sai do palco).

    Apresentamos a traduo do "primeiro ato" (o episdio da ma), umdivertido documento sobre a arte e a pedagogia da poca, seu senso de humor,suas concepes etc. Na traduo, procuramos manter as rimas e as estruturasde rimas do original [3] e harmonizar a fidelidade ao texto original com adevida adaptao: de tal modo que o leitor moderno tenha acesso tambm aoesprito que informa essas produes, escritas h quase mil anos...

    Neste sentido, um referencial importante que nos guiou foi a possibilidade dever estas peas encenadas pelos alunos do curso deHistria da Educao

    Medieval da FEUSP. Assim, a fidelidade ao esprito da real encenao levou-

    nos ao atrevimento de no abandonar, na traduo, a forma original de versose rimas.

    Videtur 22 http://www.hottopos.com/ IJIUniv. do Porto - 2003

    O MISTRIO DE ADO

    Pea de teatro de autor Annimo do sculo XII

    (Traduo: Jean Lauand)

    ORDO: O Paraso deve estar um pouco elevado no palco, rodeado decortinas e telas de seda, de modo que os personagens fiquem visveis apenasdos ombros para cima. No Paraso deve haver flores perfumadas, folhagens ediversas rvores carregadas de frutas, com aspecto de lugar muito agradvel.O Salvador (a Figura) deve entrar vestido com capa dalmtica e diante dele

    situem-se Ado e Eva. Ado usa uma tnica vermelha; Eva, vestes femininasbrancas e um manto de seda branco. Os dois postados diante da Figura, masAdo mais perto. Ado est com um rosto sereno e Eva com um ar um poucomais humilde. O Ado deve saber bem o momento de suas falas para no sernem muito rpido nem muito lento. E no s ele, mas todos os personagensdevem ser instrudos para falar adequadamente; para fazer os gestosapropriados fala; para no acrescentar nem suprimir sequer uma slaba dotexto e proferi-lo na ordem prevista. Sempre que algum mencione o Parasodeve dirigir a ele o olhar e apont-lo com o dedo. Comea a leitura: "In

    principio creavit Deus caelum et terram, et fecit in ea hominem, ad imaginemet similitudinem suam"[4] . Terminada a leitura, o Coro canta: "Formavit

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    igitur Dominus hominem de limo terrae, et inspiravit in faciem eiusspiraculum vitae, et factus est homo in animam viventem"[5] . Aps o canto:

    A FIGURA (DEUS)

    Ado!

    ADO

    Senhor!

    A FIGURA

    Do barro da terra, eu te formei.

    ADO

    Senhor, eu bem sei...

    A FIGURA

    E te formei minha semelhana,

    minha imagem te fiz de terra,

    No deves jamais mover-me guerra.

    ADO

    Por certo no o farei,

    Ao Criador obedecerei.

    A FIGURA

    E te dei uma boa acompanhante,

    tua mulher, tua semelhante,

    tua mulher, Eva chamada,

    Que te ama e por ti amada.

    Um ao outro deveis fidelidade

    E ambos fiis minha vontade.

    http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn5http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn5http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn5
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    No te estranha, de ti nascida,

    De tua costela foi ela formada,

    Nada de fora de ti utilizei.

    Foi de teu corpo que Eu a plasmei,

    Tu, governa-a por meio da razo

    E no haja entre vs dissenso,

    Mas grande amor e um s sentimento:

    Esta que a lei do casamento.

    A FIGURA (dirige-se a Eva:)

    E tu, Eva, grava em teu corao,

    O que te digo no seja em vo:

    Se fizeres minha vontade,

    Guardars em teu peito a bondade.

    Ama e honra teu Criador

    E reconhece-me como teu Senhor.

    Para me servir sejam somente

    Tuas foras, teu sentir, tua mente.

    Que Ado seja por ti muito querido:

    Tu s sua mulher; ele, teu marido.

    S-lhe obediente de bom grado,

    Seja ele por ti servido e amado,

    Para ele seja o teu pensamento:

    Esta a lei do casamento.

    S para ele boa companheira

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    E compartilhars sua glria derradeira.

    EVA

    Farei, Senhor, sem poupar-me nada,

    Tua vontade, tudo que te agrada.

    Reconheo-te como meu Senhor

    E a ele como meu igual e superior.

    Serei a fiel companheira,

    A amiga e boa conselheira.

    A FIGURA

    Obedece, Ado, e ouve-me com ateno:

    A vida eterna est ao alcance de tua mo.

    Eu te formei e ponho dons tua disposio:

    Sade, felicidade, vida sem aflio.

    No ters fome nem por sede bebers,

    No ters frio nem calor sentirs,

    Vivers em alegria e sempre na paz,

    S em prazer e a dor no conhecers.

    Tua vida ser toda de alegria,

    Prazer e glria todo dia,

    E que Eva oua bem o que eu te dizia:

    No o entender, loucura seria.

    De toda a terra sois os principais,

    Sobre toda criatura imperais.

    Mandareis aos peixes, aves e animais.

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    Guardai o bem, sede leais.

    ADO

    Agradeo a vossa benignidade,

    Que me formou e me fez tal bondade:

    Ter o bem e o mal sob minha potestade.

    Em te servir empenharei minha vontade.

    A FIGURA

    Ado!

    ADO

    Senhor!

    A FIGURA (aponta o Paraso)

    Vs este jardim?

    ADO

    Como se chama?

    A FIGURA

    Paraso.

    ADO

    Como belo!

    A FIGURA

    Eu o plantei para ter comigo

    Quem o habite como meu amigo.

    Tu o deves habitar e guardar...

    (A Figura leva-os ao Paraso)

    ...Nele ides morar.

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    ADO

    Podemos nele ficar?

    A FIGURA

    Para sempre e sem nada recear.

    No ireis morte ou doena experimentar.

    CORO

    "Tulit ergo Dominus hominem, et posuit eum in paradiso voluptatis, utoperaretur et custodiret illum" [6] .

    A FIGURA

    (mostrando as rvores)

    Todas as frutas podes colher

    (E apontando para a rvore proibida, diz:)

    Menos esta, que no deves comer.

    Se a comeres, irs morrer

    E tua felicidade irs perder.

    ADO

    Por uma ma perder teu amor

    E atrair para mim a dor?

    Longe de mim tornar-me traidor,

    Perjuro contra meu Senhor.

    (A Figura volta para a igreja, enquanto Ado e Eva passeiam e divertem-sehonntement no Paraso. Enquanto isso, os demnios correm em todas asdirees na praa, por entre a platia, fazendo gestos que lhes so prprios[7] . De vez em quando, os demnios - um de cada vez - aproximam-se doParaso, indicando a Eva o fruto proibido, com expresso de quem aaconselha a comer. O diabo vem a Ado)

    O DIABO

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    Que fazes, Ado?

    ADO

    Vivo aqui muito feliz.

    O DIABO

    Com satisfao?

    ADO

    tudo que eu sempre quis.

    O DIABO

    , mas pode melhorar...

    ADO

    Nem d para imaginar.

    O DIABO

    Claro que d...

    ADO

    No me interessa.

    O DIABO

    Por que no? Ora essa...

    ADO

    Eu tenho alegrias imensas.

    O DIABO

    Isto o que tu pensas...

    ADO

    Melhorar? Mas como? Quando?

    O DIABO

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    S direi quando vieres implorando.

    ADO

    Podes esquecer, de nada preciso:

    Tenho de tudo no Paraso.

    O DIABO

    Isso porque no queres o bem perscrutar.

    Ei-lo a, e no o sabes gozar...

    ADO

    Como assim?

    O DIABO

    Aprende de mim.

    Escuta aqui, Ado, eu vou contar

    Para ti somente.

    ADO

    O que tens em mente?

    O DIABO

    Tu confias plenamente em mim?

    ADO

    Claro que sim.

    S uma coisa no farei:

    A meu Senhor, no desobedecerei.

    O DIABO

    Que medo... de teu Senhor!

    ADO

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    Medo e amor.

    O DIABO

    Mas por que temer?

    Que pode ele fazer?

    ADO

    Bem e mal.

    O DIABO

    Como mal?

    No ests na glria? No s imortal?

    ADO

    Deus me disse que vou morrer,

    Se sua ordem desobedecer.

    O DIABO

    Por favor, uma informao:

    Qual seria esta grande... proibio?

    ADO

    Digo de modo claro e conciso:

    De todos os frutos do Paraso

    Posso provar e comer,

    Menos daquele que me far morrer.

    O DIABO

    Mas, mostra-me qual

    essa fruta to especial.

    ADO (aponta o fruto proibido)

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    esta.

    O DIABO

    Que festa!

    Sabes por que a proibio?

    ADO

    Certamente no!

    O DIABO

    Eu te direi a razo:

    Aquela a fruta da sapincia

    Que te dar toda a cincia.

    Nenhuma outra te dar esse poder.

    Insistes em no a comer?

    ADO

    No para mim.

    O DIABO

    Claro que sim.

    Teu olho ser penetrante;

    Tua inteligncia, rutilante.

    No temers mais ao teu Deus,

    Pois ters poderes iguais aos seus.

    Todos os teus desejos se realizaro.

    Prova desse fruto, Ado!

    ADO

    Eu no!

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    O DIABO

    Toleiro!

    (O diabo retira-se, junta-se a outros demnios e circula pela praa. Aps umtempo, volta com rosto jovial e alegre para tentar Ado)

    O DIABO

    Como , pensou no assunto, Ado?

    J chegou a uma concluso?

    Vais ser para sempre o caseiro,

    O tolo jardineiro?

    Ou preferes glria e poder?

    Ser que to difcil entender?

    Preferes frutas sem sabor (aponta o Paraso)

    quela que te daria o esplendor.

    Segue os conselhos meus

    E sers... igual a Deus!

    ADO

    Vai embora!

    O DIABO

    Como que ?

    ADO

    Arreda p!

    Vai embora,

    J, agora!

    Tu s queres desgraa e dor,

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    Que eu me revolte contra o Senhor!

    Vai embora, Sat,

    Eu no comerei a ma.

    (Triste e cabisbaixo, o diabo se afasta de Ado e vai at as portas do Inferno,onde fica conversando com outros demnios e, de quando em quando, passeia

    pela platia. Depois, se aproxima do Paraso do lado de Eva e dirige-se a elacom ar jovial e lisonjeiro)

    O DIABO

    Eva, eis que venho tua presena, enfim.

    EVA

    E por que, Satans, vens a mim?

    O DIABO

    Procuro tua glria, teu bem.

    EVA

    Deus queira. Amm.

    O DIABO

    Desvendei, eu tenho muito siso,

    Todas as leis do Paraso.

    E algumas te quero revelar.

    EVA

    Com prazer vou te escutar.

    O DIABO

    Ouvir-me-s?

    EVA

    Sou toda ouvidos

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    E de nada duvido.

    O DIABO

    E guardars o segredo?

    EVA

    Claro, no tenhas medo.

    O DIABO

    Contigo posso falar com segurana,

    Pois tenho em ti total confiana.

    EVA

    E fazes bem em confiar,

    Pois no te irei defraudar.

    O DIABO

    Contigo, sim, eu conto,

    No com Ado, que um tonto.

    EVA

    , ele meio duro:

    Tem convico.

    O DIABO

    Mas, pode deixar,

    Ele vai se abrandar.

    EVA

    Ele muito nobre, eu acho.

    O DIABO

    Nobre? Ele servil, um capacho!

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    E j que o bem para si ele no quer

    Podia, ao menos, pensar em sua mulher.

    Tu, que s to meiga e gentil,

    Mais terna que as rosas de abril,

    Como a aurora radiosa,

    Como s bela e formosa!

    O Criador errou e fez mal

    Ao constituir este casal:

    Tu, terna, e ele intransigente.

    Tu, porm, s mais inteligente,

    Decidida, corajosa e discreta...

    Alis, posso contar uma coisa secreta?

    EVA

    Ningum vai ficar sabendo no.

    O DIABO

    Nem mesmo Ado!

    EVA

    Podes ficar sossegado.

    O DIABO

    Ento, chega aqui a meu lado.

    Podemos falar porque Ado, l,

    Certamente no escutar.

    EVA

    Fala, fala sem medo,

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    Pois ficar tudo em segredo.

    O DIABO

    Vs fostes vilmente enganados,

    Ao serdes aqui colocados.

    Fruto por Deus autorizado

    No vale um tosto furado.

    Mas a fruta proibida,

    Aquela d virtude e vida,

    Glria, poder vital:

    O saber do bem e do mal.

    EVA

    E seu sabor aprazvel?

    O DIABO

    Simplesmente incrvel!

    E teu belo corpo, tua bela figura,

    Bem merece essa ventura.

    Basta tom-lo agora

    E sers dos mundos, a senhora:

    As alturas e a profundeza,

    Tudo sob tua grandeza.

    EVA

    Ele tem todo esse poder?

    O DIABO

    Podes olhar e ver.

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    (Eva contempla com interesse o fruto proibido e, depois de examin-lo bem,diz:)

    EVA

    S contempl-lo j me faz bem.

    O DIABO

    O que ser, ento, se o comeres, hein?

    EVA

    No sei, no sei...

    O DIABO

    Pois eu te direi:

    Come-o tu antes e Ado depois,

    Coroados pelo Cu, sereis os dois.

    Nada ser como antes,

    Ao Criador sereis semelhantes,

    Basta este fruto tomar

    E teu corao se ir transformar.

    Iguais a Deus sereis, certamente,

    Tal como ele : onipotente.

    Que esperas? Vai em frente!

    EVA

    No sei. Que hesitao!

    O DIABO

    Vamos! No creias em Ado!

    EVA

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    , acho que o devo comer.

    O DIABO

    E quando vai ser?

    EVA

    preciso esperar

    Que Ado v repousar.

    O DIABO

    Come-o logo, sem tardana

    Esperar tolice de criana

    (O diabo se afasta e vai para o Inferno. Ado aproxima-se de Eva, desgostosopor t-la visto falar com o Diabo)

    ADO

    Do que falaste, mulher, dir-me-s,

    Na conversa com o maldito Satans?

    EVA

    Ele falava de nossa glria.

    ADO

    Aquele traidor, no caia nessa histria!

    EVA

    Como ests to certo?

    ADO

    Conheo-o de perto.

    EVA

    Mas pode bem ser, Ado,

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    Que tu mudes de opinio.

    ADO

    Isto, impossvel ,

    Pois conheo sua m-f.

    Ele quis trair a seu Senhor

    E ser ele o dominador.

    Eu bem sei, ele o inimigo,

    No permitas que fale contigo!

    (Um artefato imitando serpente sobe pelo tronco da rvore do fruto proibido.Eva aproxima-se da serpente e encosta o ouvido para receber seus conselhos.

    Depois apanha o fruto e o oferece a Ado, que no o aceita).

    EVA

    Come, Ado, no vs nos deixar

    Sem este bem conhecer e provar.

    ADO

    Ser que um bem?

    Que sabor tem?

    EVA

    Sem o morder,

    Nunca vais saber...

    ADO

    Estou em dvida, se sim ou no...

    EVA

    Hesitar no prprio de um varo.

    ADO

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    , acho que devo provar...

    EVA

    E assim poders separar

    O bem do mal, mas primeiramente

    Deixa que eu o experimente.

    (Eva come uma parte da ma e diz a Ado:)

    Meu Deus, que saboroso!

    Nunca provei algo to delicioso!

    Agora sou semelhante ao Senhor,

    Onipotente como o Criador.

    Do bem e do mal sou senhora.

    Come, Ado, come sem demora.

    Que gosto, que aroma!

    Anda, Ado, toma, toma!

    ADO

    Creio em ti, tu s verdadeira,

    Minha semelhante, minha companheira.

    (Ado come parte da ma. Mal a morde, reconhece seu pecado e se abaixa

    de modo a no ser visto pelo pblico. Troca as vestes de festa por andrajosmiserveis, costurados de folhas de figueira e manifestando mxima dor,comea a lamentao.)

    ADO

    Ai de mim, que sou pecador,

    Insurgi-me contra meu Criador.

    Que triste a minha sorte,

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    Busquei para mim a dor e a morte,

    O amargor da desventura.

    Como suportar a vida, ora to dura?

    Depois do mal que pratiquei,

    Como a meu Criador encararei?

    morte, por que no me vens aliviar?

    Por que o mundo no me vem sufocar?

    Eu, que a criao deixei desfigurada,

    Terei no Inferno minha morada.

    Se no pecado incorro,

    De onde me poder vir socorro?

    Quem poder ser meu amigo?

    Da culpa receberei o justo castigo.

    Quem ter de mim memria,

    Se ofendi o Rei da Glria?

    Tudo que me resta dor e canseira,

    Ai, a que me foi dada por companheira...

    (dirigindo-se a Eva:)

    Ai, Eva, mulher desvairada,

    Em m hora, de mim engendrada!

    Parecias to doce e to bela,

    Ai, meu Deus, que maldita costela!

    Haver remdio para dor to pungente,

    Fora da graa do Deus onipotente?

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    Ai, como ouso seu nome proferir?

    Eu que acabo de o trair?

    Nenhuma ajuda esperar eu poderia,

    No fosse pelo Filho que nascer de Maria.

    (A pea continua com a expulso do Paraso, o episdio de Caim e Abel e aprocisso dos profetas que anunciam o Salvador...)

    Nota Introdutria Dana da Morte

    Jean LauandProf. Titular FEUSP

    [email protected]

    A vida e a morte na dana

    Apresentamos agora uma amostra - simplificada e livremente traduzida [8] -deA Dana da Morte, famosa composio do fim da Idade Mdia . Trata-sede uma pea ao mesmo tempo edificante e irreverente que, de modo divertidoe irnico, convida o espectador a refletir sobre a irremedivel condiohumana: para alm das vaidades de status da vida presente, encontra-se aterrvel realidade da morte!

    Entram na dana, no as pessoas singulares enquanto tais, mas os papis

    sociais, na Idade Mdia, representados pelos "estados".

    No arranjamento da sociedade da poca, a estrutura eclesistica ocupa lugarde destaque e assim se compreende que a ela pertenam uma dzia dentre osquarenta e dois personagens que encaram a morte.

    ADana desenrola-se de acordo com o seguinte ordo: aps uma breveexortao das quatro caveiras do coro, uma outra caveira vai introduzindo (nooriginal, em estrofes de oito versos) cada um dos personagens que desfilamante a prpria morte, cantando tambm seus oito versos (em geral, lamentando

    http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn8http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn8http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn8
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    a inconscincia que, no esplendor da vida, tinham deste fato evidente: a mortechega!).

    Para compreender melhor o esprito de nossa traduo, o leitor deve atentarpara o fato de que selecionamos apenas oito personagens e, em alguns casos,os renomeamos, "modernizando-os". Assim, o duque corresponde ao capito;o legado, ao poltico; o condestvel, ao "coronel"; e o astrnomo. ao cientista.

    Como no poderia deixar de ser, nossa traduo est condicionada pelamelodia da cano que nos pareceu a mais apropriada como tema do dilogoalternado entre a caveira e cada morituro:Mack the Knife [9] . Assim secompreende que, nesses dilogos, nossos versos sejam mais breves que os dooriginal (procurando preservar, em cada caso, o ncleo central do discurso).

    A Dana da Morte

    Pea de teatro de autor Annimo do sculo XIV

    (Traduo: Jean Lauand)

    PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)

    Para bem terminares a vida mortal tu, que desejas a vida futura,

    Ters aqui ensinamento sem igual.

    Desperta, racional criatura.

    SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)

    Procura a dana macabra aprender,

    Pois ela traz conhecimento pleno.

    Ningum poupado morte, vais ver,

    Homem ou mulher, grande ou pequeno.

    http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn9http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn9http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn9http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn9
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    TERCEIRA CAVEIRA DOCORO (Declamado)

    Neste espelho todos devem se

    mirar

    Aprender bem e reter nalembrana.

    Ser til o que vires, quandochegar

    A tua vez de, por fim, entrar nadana.

    QUARTA CAVEIRA DOCORO (Declamado)

    Vers que os maiorais danamprimeiro.

    A ningum poupa a morte, que sem d.

    E muito piedoso e verdadeiro

    Pensar que todos somos o mesmop.

    PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)

    Vs, que por decreto divino,

    Na vida ocupais lugares diversos.

    Haveis de danar, o destino,

    Seja dos bons, seja dos perversos.

    SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)

    Corpos geis tornar-se-o inermes;

    Beleza pura, hedionda podrido.

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    Olhai para ns, pasto de vermes,

    Pois, tal como somos, todos sero.

    A TERCEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)

    Se sua presena to forte,

    Dizei as razes pelas quais

    No tendes lembrana da morte

    E sobre ela nunca pensais.

    A QUARTA CAVEIRA DO CORO (Declamado)

    Mesmo que todo dia se apresente

    De modo sbito ou esperado,

    Hoje um amigo, amanh um parente

    Um dia sers tu o visitado.

    (A caveira, cantando a primeira estrofe da cano, vai trazendo para a dana

    os personagens, que cantam a segunda estrofe)

    A CAVEIRA

    E nem o papa

    Dela escapa

    O PAPA

    Muito poder eu

    Tinha na terra

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    E o primeiro

    A danar.

    Mas veio a morte

    Me buscar.

    A CAVEIRA

    Ele foi grande

    Como prova

    Sua majestade

    Imperial.

    O IMPERADOR

    Mas no fim

    Numa cova

    Todo mundo

    igual.

    A CAVEIRA

    Com suas tropas,

    Avanava

    Arma em riste,

    O capito.

    O CAPITO

    Mas agora

    Chegou a hora

    De minha triste

    Rendio...

    A CAVEIRA

    Suas mentiras,

    Sempre prontas,

    Mero adorno

    Eleitoral.

    O POLTICO

    Ai, agora,

    Eu presto contas...

    No h suborno

    Neste tribunal...

    A CAVEIRA

    O "coronel",

    Todo rompante,

    Era arrogante

    Ao mandar.

    O "CORONEL"

    Perdi a voz

    E s ga-ga-gue-jo,

    Eu no consigo

    Nem falar.

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    A CAVEIRA

    E as cincias,

    Triunfantes,

    Nesta hora

    O que diro?

    O CIENTISTA

    A experincia

    No garante,

    Nos noves fora,

    A salvao...

    A CAVEIRA

    Ele muito

    Apreciado

    Mas no tem

    Remunerao.

    O PROFESSOR

    Neste exame,

    Serei aprovado?

    Aqui no h

    Recuperao...

    A CAVEIRA

    Agiota,

    a hora

    Da tua usura

    A separao.

    O AGIOTA

    Fui idiota,

    E pago agora,

    Com muito juro

    E correo.

    A CAVEIRA

    E o doutor,Que estudava

    E bem sabia

    Outros curar...

    O MDICO

    Tambm eu sofroDa morte o assdio

    E no h remdio

    Para me receitar...

    A CAVEIRA O CONQUISTADOR

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    de farinha, suficiente para fazer um pequeno pedao de po. Os dois citadinos,vendo isto, disseram entre si: "Temos pouco po e este nosso companheirocome muito. Convm, portanto, que pensemos em um modo de nosapropriarmos da parte dele para que o po fique s para ns". E combinaram oseguinte: preparar o po e enquanto este cozinhava todos dormiriam e aqueleque em sonhos visse as coisas mais admirveis, comeria sozinho o po.Propunham isto manhosamente para enganar o rstico em sua simploriedade.Prepararam a massa, puseram-na ao fogo, deitaram-se e adormeceram. Ocampons percebeu o ardil e, enquanto dormiam os companheiros, tomou opo ainda mal cozido, comeu-o e voltou a deitar-se. Depois, um dos homensda cidade, como que sonolento e espantado, despertou e chamou seucompanheiro. Este lhe disse:

    - Que tens?

    - Tive um sonho maravilhoso: parecia-me que dois anjos abriam as portas docu e me tomavam e levavam ante Deus.

    Disse o outro citadino: - Mas que admirvel teu sonho! E eu sonhei que doisanjos me tomavam e, fazendo uma fenda na terra, levavam-me para oinferno.

    O campons ouvia tudo isto, mas fingia estar dormindo. Ento, os homens dacidade - que queriam enganar e foram enganados - chamaram o campons

    para que acordasse. E ele discretamente, como que espantado, respondeu: -Quem me chama?

    - Ns, teus companheiros.

    - Mas vocs j voltaram?

    - Como assim: "voltaram"? Se ns no fomos a parte alguma.

    - Engraado, tive a impresso que dois anjos tomaram a um de vocs, abria-

    lhe a porta do cu e o levava ante Deus. Depois outros dois anjos tomaram ooutro e, abrindo a terra, levavam-no ao inferno. Ao ver estas coisas pensei quenenhum dos dois jamais voltaria, levantei-me e comi o po.

    E, assim, aqueles que - engenhosamente - quiseram enganar, saramenganados. como diz o provrbio: "Quem tudo quer, tudo perde".

    Os Estudantes e o Campons - Autor annimo do sculo XI

    (Traduo: Jean Lauand)

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    ESTUDANTE I - O trato o seguinte: quem tiver o sonho mais bonito, ficacom a torta. Vocs concordam?

    ESTUDANTE II - Sim!

    CAMPONS - Sim...

    ESTUDANTE I - Bom, ento vamos dormir.

    (Os estudantes adiantam-se um pouco e se pem a dormir)

    O CAMPONS (pensando em voz alta) - Sei no, esses estudante da cidadevive aprontando. Acho que eles to querendo me ingan. Primero pr'eu ina frente, depois eles que passa na frente e, agora, vem com essa histria detrato. Acho que eles to quereno me ingan. Mais mi eu cum iscundido atorta, porque eu acho que eles to querendo me ingan... [O camponscome a torta]

    ESTUDANTE I (acordando) - Ah!, quem me despertou, subtraindo-me avises ednicas. Perambulava eu por epiciclos e excntricos, zodacos econstelaes, asterides e potestades, pela pulcritude dos cus empreos esidreos. Que beleza insupervel: nada mais magnfico! Quem poderiadescrever tais maravilhas? Para encurtar a histria: eu nem queria mais voltarpara a Terra!

    ESTUDANTE II - Tambm a mim usurparam-me onrico espetculo. Nosbraos de Morfeu, percorria mseas mitolgicas. Contemplava eu as quatrofrias: Alecto, Megera, Tisfone e... - como que o nome da outra? - Ah!,claro, a quarta era Ernia. E vi Prometeu, torturado pelo abutre; Tntalo noEstige; xion, pela roda arrastado; Ssifo e sua pedra. Desfilavam ante mimtodas as verses e inverses da Hlade... Ah! Mas por que tentar narrar oinefvel? Basta dizer que eu nem queria mais voltar para a Terra!

    O CAMPONS - Uai! Eu tambm vi toda essas coisa a qui ceis to falano e,

    como oceis num queria vort, eu peguei a torta e apropriei pra substncia denatureza individuar aqui o gnero universar [13] : comi tudinho!

    Nota Introdutria a O Prego das Ervas - um camel do sculo XIII

    Jean Lauand

    http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn13http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn13http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn13http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm#_ftn13
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    A Idade Mdia o mbito do popular. Onde quer que haja manifestaesculturais espontneas do povo, a teremos uma aproximao da culturamedieval. Diversos aspectos, por exemplo, da cultura popular do Brasil [14]de hoje assemelham-se da Idade Mdia. bem o caso do texto do sculoXIII cuja traduo da Parte I apresentamos a seguir: O Prego das Ervas,Le

    Dit de l'Herberie [15] , de autoria de Rutebeuf (+ ca. 1285). Trata-se de umacomposio para-teatral do gnero mime - um tipo de monlogo muitoapreciado na Idade Mdia. OPrego ridiculariza o charlato que atribui ssuas ervas poderes milagrosos. Rutebeuf tem tal agudeza de observao queChevallier [16] chega a afirmar queLe Dit de l'Herberie como uma fitagravada ao vivo no sculo XIII. No Prego, o camel narra suas fantsticasviagens, enumera as doenas que suas plantas curam e - tal como seus colegashodiernos - promete prodgios sexuais [17] . Ao final, a mercadoria oferecida por um preo extremamente barato. Teatro popular, teatro

    interativo: o pblico participa respondendo s interpelaes do "vendedor". Oleitor atento observar as mil potencialidades que o ator pode explorar nessacomposio satrica, sem mtrica, quase um rapavant la lettre. Na traduo(um tanto resumida), procuramos conjugar a fidelidade literal fluncia dodiscurso popular do bufo...

    O PREGO DAS ERVASPea de teatro de Rutebeuf (sculo XIII)

    (Traduo: Jean Lauand)

    Parte I (em verso)

    Respeitveis senhores, que me dais ouvidos

    Grandes e pequenos, jovens ou vividos

    Vs fostes pela sorte favorecidos

    Pois ireis, agora, a verdade encontrar

    Sabendo que este mdico no vos pode enganar

    Uma vez que por vs mesmos podeis comprovar

    O poder destas ervas antes do fim

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    Vamos fazendo a roda em torno de mim

    Sem rudo, em silncio, bem assim...

    Eu, aqui, sou pesquisador

    E tenho servido a muito imperador

    At mesmo l do Cairo, o senhor

    Muito poderoso, ele faz questo

    de me contratar todo vero

    Pagando para mim um salariozo

    Muitos mares em viagens eu j cruzei

    E foi pela Moria [18] que eu voltei

    Foi l que medicina eu estudei

    E passei por Salerno [19]

    Buriana e Biterno [20]

    Puglia, na Calbria, e at Palermo [21]

    Coletando estas plantas prodigiosas

    Que curam as doenas mais dolorosas

    Doenas passageiras ou teimosas

    Fui consegui-las nas mais estranhas terras

    Em vales perdidos, em speras serras

    Onde o Preste Joo [22] faz suas guerras

    Estas preciosas pedras, por caminhos tortos

    Vieram at vs de longnquos portos

    E tm virtude at de levantar os mortos

    Vede aqui estas ferritas

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    Diamantes, crispiritas

    Grenzios, jagncios e burlamitas [23]

    Protegem contra cobra e cachorro louco

    Coice de burro e, se acha pouco

    A morte espantam, baratinho e ainda tem troco

    E, dos quatro cantos do mundo, tem mais ainda

    Ervas trazidas dos desertos da ndia

    Da Riviera e da Lincorndia

    Esta a mais rica e poderosa ervaria

    Eu vo-lo garanto, por Santa Maria

    Podeis confiar, eu vos enganaria?

    Ervas que podem qualquer doena curar

    Fazem o rgo do homem levantar

    Enquanto o da mulher, fazem estreitar

    Para quem quer ter uma vida s

    Toma hoje, cura amanh

    Qualquer mazela, febre ter

    Este ungento milagroso, de repente

    Elimina a dor, mesmo dor de dente

    Voc aplica e logo alvio sente

    E a receita eu no vou ocultar

    Merda de marmota voc vai misturar

    Com folhas de sicmoro e ajuntar

    Na medida certa, seno diarria

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    Raiz de salgueiro com gordura de lampria

    E um pouco de excremento de puta via [24]

    Basta um emplastro na bochecha aplicar

    E os dentes com o suco voc vai lavar

    Durma um bocadinho e curado vai ficar

    Sara o fgado, leso, machucadura

    Conserta osso, torcicolo e fratura

    Pedra no rim, surdez... tudo cura

    (O camel, a partir de agora em prosa, prossegue gabando suas ervas eexplica que no entrou no ramo por amor ao lucro, mas por sentimentohumanitrio e por ordem de sua dama etc.)

    [1] . Cit. por GUGLIELMI, Nilda El teatro medieval, Edit. Universitaria de

    Buenos Aires, 1980, pp. 12-13.

    [2] .Jeux et Sapience du Moyen ge - texte tabli et annot par AlbertPauphillet, Paris, Gallimard, 1951, p.5. Para a traduo, valemo-nos dooriginal apresentado nesta edio.

    [3] . Em muitos casos, o francs medieval permite a permanncia direta darima em portugus: " minha imagem te fiz de terra (terre) / No deves

    jamais mover-me guerra (guerre)". Ou: vontade (volent) / bondade (bont);Criador (Creator) / Senhor (seignor) etc. Em outros, traduzimos, criando novarima: "Nada de fora de ti utilizei (non pas de fors) / Foi de teu corpo que Eu aplasmei (de ton cors)". Tenha-se em conta que, sendo todo o texto rimado,mesmo no original as rimas so, por vezes, pobres ou foradas...

    [4] . Misto de Gn 1,1 e 1, 26-27: "No princpio Deus criou o Cu e a terra efez o homem, sua imagem e semelhana".

    [5] . O canto tomado de Gn 2,7: "Ento Deus formou o homem com o barroda terra e insuflou alento de vida em seu rosto e o homem se tornou um ser

    vivente".

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    [6] . O canto tomado de Gn 2,15: "Ento Deus introduziu o homem noParaso para que trabalhasse e o guardasse".

    [7] . O ordo no indica que gestos so esses.

    [8] . A partir do originalLa Grande Danse Macabre in GILLET, Louis LaCathdrale Vivante, Paris, Flammarion, 1964.

    [9] . Da pera dos Trs Vintns de Brecht e gravada, entre tantos outros, porLouis Armstrong e Ella Fitzgerald e reutilizada por Chico Buarque em suapera do Malandro.

    [10] . Traduzimos, livremente, a partir da verso de Guglielmi, op. cit., pp. 51e ss.

    [11] . Apresentado por Angel Gonzlez Palencia, Madrid-Granada, CSIC,1948.

    [12] . No fica claro no texto a quem pertence a torta. Porm, numaperegrinao, usual que - independente de quem trouxe o qu - osmantimentos sejam fraternalmente tomados em comum pelos romeiros.Evidentemente, o efeito teatral se intensifica se a torta tiver sido trazida pelosestudantes.

    [13] .Feci individuum quod fuit ante genus. Ironiza as abstratas discussesacadmicas sobre a "questo dos universais".

    [14] . Popular ou, por vezes, popularesco... Note-se que no caso em questo, odo vendedor de ervas, ainda hoje (por exemplo, em So Paulo, na Praa da Se em diversos outros pontos da cidade) podem ser vistos ambulantes vendendoervas "medicinais" - camels muito semelhantes aos do sc. XIII que tambmexploram a crendice popular.

    [15] . O texto original, em francs medieval, encontra-se na coletnea de

    Albert Pauphilet:Jeux et Sapience du Moyen ge, Paris, Gallimard, 1987.

    [16] . CHEVALLIER, Claude-Alain Thatre Comique du Moyen-ge, Paris,Union Gnrale d'ditions, 1973, p. 191.

    [17] . Se bem que sua linguagem mais crua do que as "sutis" indiretas dosambulantes de nossos dias.

    [18] . Nome que se dava na Idade Mdia ao Peloponeso.

    [19] . Salerno era clebre por sua escola de Medicina.

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  • 7/31/2019 Teatro Medieval_4 Esquetes

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    [20] . Cidades lendrias.

    [21] . Em Rutebeuf, Palerne, que rima comByterne e Salerne.

    [22] . Famoso personagem lendrio da frica ou da sia que teria um enclavecristo em meio de reinos pagos ou infiis.

    [23] . O camel joga com nomes imaginrios e exticos.

    [24] . Naturalmente, o original escolhe nomes de plantas e animais que rimem.No caso, a folha doplantain, tanchagem, rima com l'estront de la putain (bienville).

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