techio, j. (2007) wittgenstein e o solipisismo.pdf

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  Barbarói. Santa Cruz do Sul, n. 26, jan./jun. 2007 69 “APENAS A MINHA EXPERIÊNCIA É REAL”: WITTGENSTEIN E A TENTAÇÃO DO SOLIPSISMO 1   Jônadas TECHIO 2   Resumo Uma preocupação recorrente nos escritos de Wittgenstein é diagnosticar as origens da tentação filosófica do solipsismo. O presente ensaio é uma tentativa de refazer alguns dos principais passos em direção a esse diagnóstico. O ensaio também pretende apresentar os principais passos em direção a uma “cura” para essa tentação. Ele o faz ilustrando o método filosófico receitado por Wittgenstein para tratar de várias outras “doenças do intelecto” que afligem os filósofos. Palavras-chave:  Wittgenstein. Solipsismo. Método terapêutico. Eu/sujeito. “A verdadeira descoberta é aquela que me torna capaz de parar de  fazer filosofia quando eu quero. Aquela que dá paz à filosofia, de modo que ela não seja mais atormentada por questões que colocam a si mesmas em questão” (WITTGENSTEIN, 1993a, p. 195). “O solipsismo, levado às últimas conseqüências, coincide com o puro realismo” (WITTGENSTEIN, 1993b, prop. 5.64). Introdução O solipsismo é a posição filosófica caracterizada pela tese de que “apenas minha própria experiência é real”. Colocada assim, sem maiores qualificações, dificilmente encontraremos filósofos dispostos a defender essa tese seriamente. Com efeito, ao contrário do que acontece com toda uma família de posições filosóficas radicalmente contra-intuitivas (tais como o

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  • Barbari. Santa Cruz do Sul, n. 26, jan./jun. 2007

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    APENAS A MINHA EXPERINCIA REAL: WITTGENSTEIN E A TENTAO DO SOLIPSISMO1

    Jnadas TECHIO2

    Resumo

    Uma preocupao recorrente nos escritos de Wittgenstein diagnosticar as origens da tentao filosfica do solipsismo. O presente ensaio uma tentativa de refazer alguns dos principais passos em direo a esse diagnstico. O ensaio tambm pretende apresentar os principais passos em direo a uma cura para essa tentao. Ele o faz ilustrando o mtodo

    filosfico receitado por Wittgenstein para tratar de vrias outras doenas do intelecto que afligem os filsofos.

    Palavras-chave: Wittgenstein. Solipsismo. Mtodo teraputico. Eu/sujeito.

    A verdadeira descoberta aquela que me torna capaz de parar de fazer filosofia quando eu quero. Aquela que d paz filosofia, de modo que ela no seja mais atormentada por questes que colocam a si mesmas em questo (WITTGENSTEIN, 1993a, p. 195).

    O solipsismo, levado s ltimas conseqncias, coincide com o puro realismo (WITTGENSTEIN, 1993b, prop. 5.64).

    Introduo

    O solipsismo a posio filosfica caracterizada pela tese de que apenas minha prpria

    experincia real. Colocada assim, sem maiores qualificaes, dificilmente encontraremos filsofos dispostos a defender essa tese seriamente. Com efeito, ao contrrio do que acontece com toda uma famlia de posies filosficas radicalmente contra-intuitivas (tais como o

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    idealismo, o ceticismo e o anti-realismo, em suas inmeras roupagens), o solipsismo tem servido muito mais como um saco de pancadas filosfico do que como uma posio merecedora de ateno por si mesma. Mas, no obstante a prevalncia dessa atitude oficial de descaso, permanece o fato de que a reflexo sobre a natureza de nossa experincia muitas

    vezes inclina os filsofos na direo de uma concluso muito prxima quela expressa pela tese solipsista. Nesse sentido, pode-se dizer que o solipsismo consiste antes numa tentao

    que est sempre no horizonte, e da qual os filsofos de forma mais ou menos consciente tentam se afastar.

    Wittgenstein, talvez mais do que qualquer outro filsofo, estava bastante consciente dessa tentao, e interessou-se muito em compreender suas origens.3 Vrios de seus escritos

    apresentam uma espcie de auto-anlise filosfica, caracterizada pelo reconhecimento e pelo empenho sistemtico de dar voz mesma coisa que, segundo ele, poucos filsofos

    teriam feito, simplesmente por no estarem dispostos a levar at s ltimas conseqncias suas suposies iniciais. O prprio Wittgenstein fornece uma ilustrao clara dessa atitude filosfica complacente ao tratar da anlise russelliana da memria, conforme se pode verificar nas notas de um curso seu ministrado em Cambridge nos anos 1930:

    Russell disse que a memria no pode provar que aquilo de que lembramos efetivamente ocorreu, porque o mundo poderia ter comeado a existir cinco minutos atrs, deixando tais memrias intactas. Poderamos ir adiante e dizer que ele poderia ter sido criado um minuto atrs, e, finalmente, que ele poderia ter sido criado no momento presente. Fosse essa ltima a situao teramos o equivalente a tudo que real o momento presente.4

    Nessa passagem Wittgenstein faz aquilo que supostamente Russell no teria feito com

    sua anlise das limitaes epistmicas da memria: vai at o fim na extrao das conseqncias de suas suposies iniciais. Ir at o fim significaria abraar o que Wittgenstein

    descreve nesse mesmo contexto como um solipsismo do momento presente.5 Terei mais a dizer sobre essa espcie de solipsismo na seqncia. Por ora a pergunta que gostaria de fazer

    diz respeito natureza do diagnstico apresentado nessa passagem: supondo que ele esteja correto ou seja, supondo que ele mostre que as afirmaes de Russell implicam um compromisso com uma espcie de solipsismo qual o ganho filosfico que ele nos traz? Um proponente da filosofia da linguagem ordinria (tomada aqui como uma espcie de caricatura de um mtodo filosfico que costuma ser atribudo ao prprio Wittgenstein) poderia argumentar que, frente constatao feita por Wittgenstein na passagem citada,

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    Russell deveria recuar, abandonando alguma das premissas da qual seu argumento partiu afinal, diferentemente de sua posio acerca das limitaes da memria, o solipsismo do momento presente uma posio completamente absurda e afastada do bom senso. Nesse sentido, o diagnstico de Wittgenstein serviria como uma espcie de reduo ao absurdo da

    concepo russelliana da memria. Embora essa no seja uma maneira completamente equivocada de se compreender a

    estratgia adotada por Wittgenstein para lidar com os problemas filosficos, penso que as coisas no so to simples. verdade que a finalidade ltima de seu diagnstico fazer com que o interlocutor revise certas suposies que esto na base de uma determinada concepo filosfica, mas ele no sonharia em obter esse resultado por uma via to simples. Para

    compreender melhor esse ponto metodolgico vale a pena atentar para a seguinte passagem das Cambridge Lectures:

    [Os] filsofos no devem tentar apresentar posies idealistas ou solipsistas, por exemplo, como se elas fossem absurdas indicando a algum que apresenta essas posies que ele no se pergunta realmente se o bife real ou se uma ideia em sua mente, se sua esposa real ou se apenas ele real. claro que ele no faz isso, e essa no uma objeo adequada. No se deve tentar evitar um problema filosfico apelando ao bom senso; ao invs disso, deve-se apresent-lo de modo que ele surja com fora mxima. Voc deve deixar-se arrastar para a lama, e sair dela. Pode-se dizer que a filosofia consiste em trs atividades: ver a resposta de bom senso, ingressar to profundamente no problema que a resposta de bom senso se torne inaceitvel, e voltar dessa situao resposta de bom senso. Mas a resposta de bom senso em si mesma no uma soluo; todos sabem disso. No se deve em filosofia tentar curto-circuitar os problemas.6

    Essa passagem fornece a chave para compreendermos a metodologia teraputica de Wittgenstein no que diz respeito ao tratamento de vrias doenas do intelecto. Mas ela especialmente til para pensarmos no modo como ele trata do solipsismo. Como veremos, o procedimento padro para livrar os filsofos dessa tentao consiste justamente em deixar-se arrastar para a lama, e depois sair dela, retornando ao bom senso. Visando dar mais carne a essa afirmao, apresentarei na seqncia alguns exemplos desse procedimento em dois escritos de Wittgenstein: o Livro Azul (seo 2) e as Observaes Filosficas (seo 3).

    1 O solipsismo no Livro Azul

    Wittgenstein comea a tratar do solipsismo no Livro Azul fazendo as seguintes

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    consideraes:

    Quando pensamos sobre a relao entre os objetos que nos rodeiam e nossas experincias pessoais dos mesmos, por vezes somos tentados a dizer que essas experincias pessoais so o material em que consiste a realidade. [...] Quando pensamos desse modo parecemos perder nosso apoio firme nos objetos que nos rodeiam. E somos ao invs disso deixados com uma quantidade de experincias pessoais de diferentes indivduos. Essas experincias pessoais parecem vagas e em constante fluxo. Nossa linguagem parece no ter sido feita para descrev-las. Somos tentados a pensar que para clarificar tais assuntos filosoficamente nossa linguagem cotidiana muito grosseira, e que precisamos de uma mais sutil.7

    Nessa passagem Wittgenstein apresenta o caminho que leva de uma considerao aparentemente inocente acerca da relao entre os objetos e nossas experincias, tentao de revisar nossa linguagem cotidiana em prol de uma mais sutil. A sugesto fundamental que, se partimos de uma dicotomia entre, por um lado, os objetos que nos rodeiam, e, por outro, nossas experincias pessoais (tomadas como vagas e em constante fluxo a caracterizao empirista clssica das idias em nossa mente) podemos ser levados a uma espcie de sentimento de perda do apoio firme nos objetos, e, conseqentemente, necessidade de buscar uma teoria filosfica que permita reverter essa situao, fornecendo alguma garantia de que no ficamos enclausurados em nossas prprias mentes, sem acesso ao mundo externo, ou realidade.

    Na seqncia do texto Wittgenstein indicar vrios tipos de confuses filosficas que, segundo ele, surgem naturalmente na anlise filosfica de nossa experincia pessoal, mostrando, em cada caso, que se essa anlise for levada at suas ltimas conseqncias, acarretar a atitude pessimista descrita acima. Para cada confuso detectada, haver uma tentativa de nos trazer de volta (ou seja, trazer o filsofo em cada um de ns de volta) ao ponto de vista do bom senso, de modo a dissolver o interesse e a motivao filosfica de revisar a linguagem cotidiana, em prol de uma linguagem supostamente mais sutil que

    justamente como o solipsista encara sua proposta. A primeira confuso dessa espcie apresentada na seguinte passagem:

    H uma tentao de dizer que apenas minha prpria experincia real: Eu sei que eu vejo, ouo, sinto dores, etc., mas no que qualquer outro seja capaz disso. Eu no posso saber disso, porque eu sou eu e eles so eles. Por outro lado, me envergonho de dizer a outra pessoa que minha experincia a nica real; e sei que ela ir responder que pode dizer exatamente o mesmo sobre a experincia dela. Isso parece levar a uma discusso ridcula.8

    Essa passagem chama ateno para a situao paradoxal em que o filsofo com

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    inclinaes solipsistas se encontra ao tentar expressar sua posio para um interlocutor. A

    origem desse paradoxo ser explicada a seguir, quando Wittgenstein esclarece que o tipo de dvida aqui levantada a do conhecimento das outras mentes no poderia ser sanada por meio da indicao de crenas do senso comum: desnecessrio dizer que no sentimos

    essas dificuldades na vida cotidiana.9 S as sentimos no peculiar contexto da reflexo filosfica acerca da natureza de nossas experincias. , portanto, nesse plano o filosfico que se deveria avaliar a afirmao de que eu sei que eu vejo, ouo, sinto dores, etc, e no no plano de nossa comunicao cotidiana pr-filosfica com outras pessoas. O paradoxo surge da confuso desses dois planos.

    De fato, a opinio de Wittgenstein acerca dessa dvida do solipsista ainda mais

    radical: no apenas o senso comum que se mostra incapaz de san-la, mas inclusive o filsofo do senso comum, ou o filsofo realista, i.e., aquele sujeito que se prope a defender filosoficamente as crenas que o senso comum supostamente empregaria de maneira irrefletida e ingnua. Para tal filsofo, nos dir Wittgenstein, certamente no h dificuldade na idia de supor, pensar, imaginar que outros tm o que eu tenho e.g., uma dor de dente.10 O problema que, ao defender isso, o filsofo realista mostra que nem mesmo chegou a compreender qual a dificuldade do solipsista. H uma caracterstica problemtica de nossa gramtica que o realista no nota, mas o solipsista sim. Trata-se da diferena entre pelo menos dois usos de proposies da forma A tem x. Wittgenstein ilustra essa diferena afirmando que:

    A tem um dente de ouro significa que o dente est na boca de A. Isso pode explicar porque eu no posso v-lo. Entretanto, o caso de sua dor de dente, acerca da qual eu digo que no posso senti-la porque ele a tem na sua boca, no anlogo ao caso do dente de ouro. a aparente analogia, e tambm a falta de analogia, entre esses casos que causa nossa confuso.11

    A falta de analogia entre as frases A tem um dente de ouro e A tem dor de dente mostra-se mais claramente ao analisarmos a diferena entre duas outras frases: (i) no podemos ter a dor no dente de outra pessoa e (ii) no podemos ter a dor de outra pessoa. A ltima frase expressa uma impossibilidade lgica, ou (para usar um termo que no comum na filosofia madura de Wittgenstein, mas que ele prprio emprega neste contexto) uma impossibilidade metafsica, que no deve ser confundida com a impossibilidade emprica expressa na primeira frase. No caso da primeira frase, nos diz Wittgenstein, a expresso no podemos usada do mesmo modo que na proposio Um prego de ferro no pode riscar o

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    vidro.12 Trata-se, portanto, de uma mera constatao de um fato contingente, que poderia ser revisada caso certas condies (empricas) se alterassem. E, de fato, a estratgia de Wittgenstein na seqncia do texto consistir em mostrar que podemos facilmente imaginar algumas dessas alteraes, de modo que, no final do processo, a possibilidade oposta ter

    dores nos corpos (nos dentes) de outras pessoas se mostre to inteligvel quanto aquela de que partimos.

    Para alcanar esse objetivo Wittgenstein apresenta uma detalhada anlise dos critrios para a localizao de dores, que no irei reproduzir aqui. Fundamentalmente, o que essa anlise mostra o seguinte: em geral, quando temos dor em algum lugar de nosso corpo, h uma coincidncia ou correlao de certas experincias sensoriais i.e., visuais, tcteis,

    cinestticas, auditivas, etc. Assim, por exemplo, quando um objeto pontiagudo fere meu brao, posso ao mesmo tempo ver meu brao sendo ferido, sentir a picada do objeto, determinar (por meio de uma experincia cinesttica) qual a posio de meu brao dolorido, etc. Contudo, em certas ocasies especiais, essas experincias no coincidem. O caso mais radical em que isso ocorre o das chamadas dores fantasmas. O que casos como esse mostram que nosso conceito de dor (ou, mais especificamente, dor de dente) suficientemente complexo e indeterminado para que possamos sem maiores dificuldades imaginar empregos estendidos, tais como o de

    [...] uma pessoa tendo a sensao de dor de dente mais as experincias tcteis e cinestticas que normalmente esto ligadas com a viso de sua mo indo de seu dente at seu nariz, at seus olhos, etc., mas correlacionadas com a experincia visual de sua mo movendo-se para aqueles lugares na face de outra pessoa. Ou ainda, poderamos imaginar uma pessoa tendo a sensao cinesttica de mover sua mo, e a sensao tctil, em seus dedos e face, de seus dedos movendo-se sobre sua face, quando suas sensaes visuais e cinestticas deveriam ser descritas como sendo de seus dedos movendo-se sobre seu joelho. Se tivssemos uma sensao de dor de dente somada a certas sensaes tcteis e cinestticas usualmente caractersticas de tocar o dente dolorido e as partes vizinhas da face, e se essas sensaes fossem acompanhadas da viso de minha mo tocando, e movendo-se sobre a borda de minha mesa, teramos dvidas sobre se deveramos chamar essa experincia de uma experincia de dor de dente na mesa ou no. Se, por outro lado, as sensaes tcteis e cinestticas descritas estivessem correlacionadas com a experincia visual de ver minha mo tocando um dente e outras partes da face de outra pessoa, no haveria dvida de que eu deveria chamar essa experincia dor de dente no dente de outra pessoa.13

    A importncia de se pensar em casos como esses (nos quais seria possvel um emprego estendido do conceito de dor), que eles nos permitem compreender melhor a motivao do solipsista ao querer reservar um carter especial (o de impossibilidade metafsica) tese de

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    que no podemos sentir as dores de outrem. A concluso do solipsista que no h situao possvel que nos faa revisar essa tese ao contrrio do que ocorre com a tese de que no podemos sentir dores nos corpos de outrem.14 Diferentemente, portanto, do que supunha o filsofo do senso comum, h de fato uma diferena fundamental entre as proposies A

    tem um dente de ouro e A tem dor de dente Elas diferem em sua gramtica quando primeira vista pareciam no diferir.15 Ponto para o solipsista.

    Mas esse apenas o comeo do caminho que levar at as conseqncias mais radicais de sua posio (estamos apenas comeando a entrar na lama). O problema todo comea na atitude revisionista que ele tomar com respeito ao tipo de impossibilidade que ele acabou de identificar. Uma vez que, em completo acordo com nosso uso efetivo da

    linguagem, ele percebe que h uma diferena profunda no status das proposies acima, e uma vez que a forma superficial das mesmas por vezes ofusca essa diferena levando ao

    tipo de afirmao incua e irrelevante do filsofo do senso comum o solipsista gostaria de propor uma nova notao, que apresente na prpria forma a diferena de contedo dessas proposies.16 E assim que ele ser levado a defender teses tais como a de que o mundo meu mundo, apenas minha experincia real, e assim por diante.

    A motivao ltima para se propor essa (e qualquer outra) nova notao uma espcie de ansiedade da parte do filsofo por algo que nossa linguagem cotidiana no capaz de satisfazer. Wittgenstein descreve essa ansiedade assim:

    Nossa linguagem cotidiana, que de todas as notaes possveis aquela que impregna toda nossa vida, mantm nossa mente fixa em uma posio, por assim dizer, e nessa posio ela s vezes sente cibras, desejando mudar de posio. Assim ns por vezes desejamos uma notao que saliente mais uma diferena, que a torne mais bvia do que nossa linguagem cotidiana, ou uma que num caso particular use formas de expresso mais similares do que nossa linguagem cotidiana. Nossa cibra mental diminui quando vemos as notaes que preenchem essas necessidades. Essas necessidades podem ser da maior variedade.17

    O desejo de se expressar clara e diretamente a diferena entre enunciados empregados para a atribuio18 de dores em primeira e em terceira pessoa apenas um

    dentre inmeros exemplos dessas necessidades. Como Wittgenstein assinala ao final dessa passagem, h inmeras outras motivaes dessa espcie, e todas elas contribuem para dar

    fora tentao de abraar o solipsismo. Desse ponto at o final do Livro Azul, Wittgenstein apresentar vrios candidatos ao papel de origem dessa tentao, a comear pela a aparente analogia entre no saber o que outra pessoa sente ou pensa e no saber o que outra pessoa v:

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    A expresso apenas eu realmente vejo est intimamente ligada com a idia expressa na assero nunca podemos saber o que outro homem realmente v quando ele olha para uma coisa, ou esta, nunca podemos saber se ele chama de azul a mesma coisa que ns chamamos de azul. De fato podemos argumentar: nunca posso saber o que ele v ou simplesmente se ele v, pois tudo que tenho so sinais de vrios tipos que ele me fornece; portanto uma hiptese completamente desnecessria dizer que ele v; o que ver eu sei apenas vendo eu mesmo; aprendi [a usar] a palavra ver para designar apenas o que eu fao.19

    O que leva algum a argumentar dessa forma, segundo Wittgenstein, uma

    imagem deturpada do prprio uso do conceito de viso, bem como do conceito do que seria o objeto da viso:

    A dificuldade que expressamos dizendo no posso saber o que ele v quando diz (veridicamente) que v uma forma azul surge da idia de que saber o que ele v significa: ver o que ele v; no, contudo, no sentido em que o fazemos quando ambos temos o mesmo objeto ante nossos olhos, mas no sentido em que o objeto visto seria um objeto, digamos, dentro da cabea dele. [...] A idia que o mesmo objeto pode estar ante os olhos dele e os meus, mas eu no posso enfiar minha cabea na dele (ou minha mente na dele, o que d no mesmo) de modo que o objeto real e imediato da viso dele venha a ser o objeto real e imediato de minha viso tambm.20

    Nessa passagem Wittgenstein explicita a imagem da relao perceptual que fundamenta a posio do solipsista, que a do contato imediato do sujeito com algum tipo de entidade privada (e.g., um dado dos sentidos), que estaria perante o olho da mente.21 Dada essa imagem, torna-se simplesmente trivial a tese de que eu no posso ver o que os outros sujeitos vem, ou mesmo a tese mais radical de que apenas eu realmente vejo, uma vez que (supostamente) no possuo mais do que indcios comportamentais acerca do que se passa internamente com a outra pessoa, e, por conseguinte, a afirmao de que ela tambm v se torna na melhor das hipteses uma inferncia indutiva, uma generalizao, e, como tal, fruto de um processo falvel.22 A sada para essa confuso, dir Wittgenstein na seqncia, consiste

    em examinar a diferena gramatical entre os enunciados eu no sei o que ele v e eu no sei para o que ele olha, como so efetivamente empregados em nossa linguagem.23

    Wittgenstein no se d ao trabalho de apresentar essa diferena no texto, mas, dadas as pistas deixadas at aqui, essa no uma tarefa difcil.

    Em nossa linguagem cotidiana temos critrios mais ou menos claros para determinar para o que algum est olhando. Um deles consiste na observao da direo para qual os olhos do sujeito apontam. Em geral, quando dizemos que no sabemos para o que o sujeito olha, justamente porque estamos impossibilitados de observar a direo de seus olhos

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    est escuro demais, ele est de costas para ns, ou muito longe, etc. Contudo, mesmo quando as condies para sabermos para o que um sujeito olha esto satisfeitas, por vezes podemos no saber o que ele v. Casos paradigmticos so o de um sujeito apreciando uma obra de arte que nos parece completamente sem sentido (ou vice-versa), ou o do sujeito olhando para um objeto ambguo (tal como a figura do pato-coelho), dizendo-nos que pode ver duas figuras ao olhar para o desenho (no, obviamente, ao mesmo tempo), enquanto que ns s vemos uma, digamos, o pato; num tal caso, o sujeito poderia nos dizer: agora estou vendo um outro animal, e no um pato, e ns ficaramos absolutamente sem saber de que animal se trata. Um outro caso no qual a diferena entre olhar e ver fica clara aquele em que observamos um sujeito que olha fixamente para um ponto qualquer para refletir, ou que olha para uma determinada direo para lembrar de algo, mas que no est vendo nada nesse momento.

    Ora, o problema do solipsista que ele confunde os casos apresentados acima: o que ele

    afirma que no podemos ver o que o outro sujeito v; entretanto, o que o leva a afirmar isso a imagem do objeto privado perante o olho da mente. Dada essa imagem, ele pode facilmente imaginar condies anlogas quelas nas quais, em nossa linguagem cotidiana, diramos que no sabemos para o que um sujeito olha afinal, no podemos enfiar a cabea na dele, para desse modo observar para onde se direciona o olho da mente dele. Mas ao fazer isso, o solipsista tacitamente emprega as noes relevantes no caso as de ver e olhar mantendo certas conexes e contrastes que elas possuem na linguagem cotidiana, ao mesmo tempo que inviabiliza completamente a satisfao dessas condies em sua nova notao. Desse modo, terminamos com uma notao que no simplesmente arbitrria o

    que no seria problema algum mas que desprovida de regras claras para a aplicao de seus sinais. Uma vez cientes da imagem por trs das afirmaes do solipsista, bem como das

    condies de uso dos conceitos de ver e olhar em nossa linguagem efetiva, percebemos que no h justificao (gramatical) alguma para dizer que no sabemos o que um outro sujeito v em situaes normais, nas quais estamos olhando para o mesmo objeto que ele.

    Tendo indicado essa primeira confuso que estaria na base do solipsismo, Wittgenstein

    prope uma reformulao da tese central dessa posio, visando salvaguard-la da crtica anteriormente esboada: s vezes a expresso mais satisfatria de nosso solipsismo parece ser: Quando algo visto (realmente visto), sou sempre eu que vejo isso.24 O motivo pelo qual essa reformulao pode ser vista como uma tentativa de salvar a posio solipsista da crtica precedente que aqui o solipsista parece estar concedendo a distino entre olhar e ver, que ele parecia estar confundindo anteriormente, e tambm desistindo da imagem do

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    olho da mente, argumentando ao invs disso que a prpria distino em pauta (olhar/ver) fundamenta-se numa experincia essencialmente privada e subjetiva: podemos olhar para o mesmo objeto que outra pessoa, mas o simples fato de que por vezes no podemos ter certeza de que ela v o mesmo que ns j indica a existncia de uma experincia acessvel apenas do ponto de vista do sujeito que a tem.

    A crtica de Wittgenstein dessa vez dir respeito s condies para o emprego do

    pronome eu na nova formulao da tese solipsista:

    O que nos atordoa sobre essa expresso a frase sempre eu. Sempre quem? Pois, estranhamente, eu no quero dizer: sempre L. W. Isso nos leva a considerar os critrios de identidade de uma pessoa. Sob que circunstncias ns dizemos: essa a mesma pessoa que eu vi uma hora atrs?25

    Em resposta a essa ltima questo Wittgenstein assinala que nosso uso da frase a mesma pessoa, bem como nosso uso de nomes prprios, est baseado no fato de que vrias caractersticas que usamos como critrios de identidade coincidem na vasta maioria dos

    casos.26 Dentre tais caractersticas figuram, por exemplo, a aparncia fsica do sujeito, seu comportamento, e suas memrias. somente porque esses e outros fatos acerca das pessoas so relativamente persistentes, que empregamos nomes para design-las.27 O problema que nenhuma dessas caractersticas relevante para a determinao do tipo de identidade pretendido pelo solipsista ao expressar sua posio afirmando que quando algo visto, sou sempre eu que vejo. Afinal, eu nem sempre vejo partes de meu corpo quando enxergo alguma coisa, e tambm no me importa se minhas memrias e meu comportamento se mantm os mesmos ou no. De fato, o pronome eu parece completamente desnecessrio e

    mesmo descabido nessa formulao, e isso leva necessidade de se buscar uma expresso mais adequada da tese solipsista. Assim, segundo Wittgenstein:

    Quando eu penso um pouco mais eu percebo que o que eu gostaria de dizer era: Sempre que algo visto, algo visto. I.e., aquilo que eu disse que continuava durante todas as experincias de ver no era nenhuma entidade particular eu, mas a prpria experincia de ver.28

    Nessa passagem Wittgenstein indica o caminho que leva o solipsista a excluir completamente o eu ou o sujeito de experincia de considerao, para ficar apenas com a prpria experincianum movimento que encontra seu representante histrico mais famoso em David Hume, e sua teoria do feixe de percepes.29 Dadas as restries metafsicas (ou gramaticais) impostas pelo solipsista para a expresso da peculiaridade da experincia da

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    primeira pessoa, no h como satisfazer as condies para a identidade de um sujeito; assim sendo, frente necessidade de um elemento comum em todos os casos de experincia visual, que permita trat-los homogeneamente como casos daquele tipo de experincia peculiar de primeira pessoa que interessa ao solipsista expressar, tudo o que resta para cumprir esse papel

    a experincia ela mesma. Como conclui Peter Hacker na anlise desse ponto: O que nico a experincia; o mundo idia.30

    O problema desse tipo de posio como, provavelmente, o prprio Hume j tinha percebido que ela acarreta uma espcie de inverso de prioridades em relao ao uso efetivo da linguagem, gerando uma concepo que em ltima instncia no se sustenta: nossa linguagem cotidiana para se falar de experincias pessoais estrutura-se de tal forma

    que a identidade dessas experincias depende da identidade dos prprios sujeitos que as tm;31 ora, uma vez que o sujeito tirado de cena, qual seria o critrio alternativo para essa identidade?

    Aqui, mais uma vez, o solipsista retratado como algum que toma de emprstimo certos termos nativos da linguagem cotidiana, contrabandeando suas condies de uso, mas que em ltima instncia negligencia tais condies, acabando por no conseguir fornecer nenhum sentido claro aos termos que emprega para expressar sua posio. O que surge ao final dessa anlise como sendo o principal problema do solipsista reside em sua incapacidade sistemtica de fornecer uma justificao para a nova notao que desde o incio ele props. Uma a uma, as tentativas de justific-la foram examinadas com o intuito de indicar essa incapacidade. Mas importante ter em mente que no h nenhum impedimento de princpio

    relativo ao uso de tais notaes alternativas:

    No h [...] objeo adoo de um simbolismo no qual uma certa pessoa sempre ou temporariamente mantm uma posio excepcional. [...] O que, todavia, est errado pensar que eu posso justificar essa escolha de notao. Quando eu disse, sinceramente, que apenas eu vejo, eu tambm estava inclinado a dizer que por eu eu no significava realmente L. W. [...] Eu poderia quase dizer que por eu eu significo algo que exatamente agora habita L. W., algo que os outros no podem ver. [...] No h nada errado em se sugerir que os outros deveriam me dar uma posio excepcional na linguagem deles; mas a justificao que eu gostaria de dar para isso: que este corpo agora o assento daquilo que realmente vive sem sentido. Pois admitidamente isso no enunciar nada que no sentido cotidiano seja uma questo de experincia. (E no pense que esta uma proposio de experincia que apenas eu posso conhecer porque apenas eu estou em posio de ter essa experincia particular).32

    Nessa passagem Wittgenstein explicita a imagem mais geral que estaria por trs das

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    manobras do solipsista analisadas at aqui: a de um objeto especial, a mente, como sendo o referente ltimo e real do pronome de primeira pessoa. Segundo ele, A idia de que o eu real vive em meu corpo est ligada com a gramtica peculiar da palavra eu, e os mal-entendidos que essa gramtica capaz de originar.33 Para indicar esses mal-entendidos Wittgenstein

    proceder a uma anlise detalhada da funo do pronome de primeira pessoa. Mas esse um assunto que ter de ser postergado para uma outra ocasio. Por ora, meu interesse ser analisar

    o tratamento do solipsismo do momento presente em outro escrito de Wittgenstein, as Observaes Filosficas.

    3 O solipsismo do momento presente nas Observaes Filosficas O tratamento do solipsismo do momento presente nas Observaes Filosficas ocorre

    no contexto mais amplo da discusso sobre a natureza do tempo. Wittgenstein comea a

    abordar esse tema geral apresentando uma perplexidade filosfica que surge muito naturalmente quando refletimos acerca do tempo, a qual poder-se-ia chamar de experincia de perda do tempo: A sensao que temos a de que o presente desaparece no passado sem que possamos impedir isso. E aqui obviamente estamos usando a imagem de uma tira de filme que se move para o passado inexoravelmente, que no podemos parar.34 fcil perceber que as origens dessa experincia de perda do tempo confundem-se com o prprio surgimento da filosofia. Os antigos, que infelizmente no conheciam o cinema, j se sentiam perplexos ao refletir sobre o constante fluxo da aparncia, partindo de uma metfora muito mais simples e natural do que a do rolo de filme no projetor de cinema, que a do rio do tempo. Essa mesma perplexidade volta com todas as foras na conhecida passagem das Confisses de Santo Agostinho, mais uma vez alimentada por uma metfora simples, que a do tempo

    como uma espcie de fita mtrica infinita sendo desenrolada perante ns.

    Em conformidade com as diretivas metodolgicas apresentadas anteriormente,

    Wittgenstein comea a tratar dessa perplexidade deixando claro que ela no surge na vida cotidiana, mas apenas quando filosofamos. Cotidianamente, no h nenhum problema no emprego das metforas apresentadas acima, e nas locues que elas possibilitam. Dizer, por exemplo, que o tempo est passando, uma maneira eficaz e completamente inocente, do ponto de vista de suas implicaes filosficas, de se lamentar por no ter aproveitado as oportunidades que a vida nos ofereceu no passado, ou ainda de se apressar um apresentador

    num colquio de filosofia. H inmeros outros usos possveis para frases como essa em

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    nossas prticas lingsticas efetivas. Entretanto, quando usamos essa mesma frase num contexto filosfico, no estamos tentando apressar ningum e nem lamentar coisa alguma: estamos querendo chamar ateno para uma caracterstica (supostamente) peculiar e espantosa da natureza da Realidade. Por ser notvel (assim como, por exemplo, o fenmeno da difrao da luz por um prisma notvel), essa constatao nos move a buscar uma explicao afinal, todo homem deseja por natureza conhecer, e no apenas ficar espantado. E a que o impulso teorizao filosfica ganha fora.

    Alm das metforas apresentadas acima, Wittgenstein apresenta vrias outras imagens que estariam na base de algumas de nossas perplexidades filosficas em relao ao tempo. Para nossos propsitos ser mais relevante a que diz respeito ao papel da memria:

    Parece-nos como se a memria fosse algum tipo de experincia secundria, quando comparada com a experincia do presente. Ns dizemos que Podemos apenas lembrar daquilo. Como se, num sentido primrio, a memria fosse uma imagem de algum modo fraca e incerta do que ns originalmente tnhamos ante ns com total clareza.35

    A pergunta que Wittgenstein faz na seqncia dessa passagem simples e absolutamente crucial: E porque no paramos por a? Pois, continua ele esse modo de falar certamente diz tudo que queremos dizer, e tudo que pode ser dito. Mas gostaramos de dizer que isso tambm pode ser colocado diferentemente; e isso importante.36 O objetivo dessa considerao, mais uma vez, indicar o ponto preciso no qual passamos de afirmaes corriqueiras, que possuem um uso legtimo e completamente inocente em nossa linguagem

    corrente (Podemos apenas lembrar daquilo), para a extrao de concluses filosficas substanciais (neste caso, a tese de que a memria uma imagem fraca e incerta do Real). O que Wittgenstein quer salientar aqui essa espcie de salto filosfico que ocorre quando

    o filsofo coloca diferentemente a situao em que nos encontramos em nossa vida cotidiana. Ainda que o prprio uso corrente que fazemos de nossos termos j esteja impregnado de certas conotaes emocionais e preferncias por certos fenmenos afinal de contas, ns efetivamente dizemos que a memria nos permite apenas lembrar dos fatos, e contrastamos esse acesso ao mundo com um outro, mais direto, que da experincia presente o tipo de problema indicado pelo filsofo (relativo s limitaes epistmicas da memria) no surge nas situaes corriqueiras nas quais empregamos essas frases. O problema, poder-se-ia dizer, s surge quando aqueles fatores, que em situaes concretas de uso lingstico convivem harmoniosamente com nossas prticas, so

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    sublimados pela reflexo filosfica. nesse momento que comeamos a nos espantar (e at mesmo a nos preocupar) com a fragilidade de nossa memria, dando um passo decisivo na direo de vrias atitudes filosficas muito mais radicais dentre elas, o solipsismo do momento presente, i.e., a tese segundo a qual apenas a experincia do momento presente

    possui realidade.37 Chamemos essa tese de S. Logo aps apresent-la, Wittgenstein afirma que a primeira rplica a S deve ser a

    questo Por oposio ao qu?.38 Essa questo visa trazer o solipsista de volta terra, fazendo-o refletir sobre que uso S poderia ter numa situao concreta de uso da linguagem. Pois quando, numa situao concreta, algum afirma que algo real, est implicitamente fazendo uma distino entre esse algo e um outro algo que no real. Nesses casos, o termo real e seus derivados no possuem nenhum sentido intrnseco ou absoluto. Mas justamente um tal sentido (o absoluto) que o solipsista gostaria de dar ao termo real quando afirma que apenas a minha experincia real. O problema que esse sentido incoerente: afinal, se apenas a minha experincia real, e, por conseguinte, no h mais nada para compar-la, ento no estou conseguindo fazer o que eu queria, que pinar minha experincia e atribuir a ela algum tipo de privilgio privilgio em relao a qu?

    Para mostrar que a posio do solipsista incoerente Wittgenstein apresenta dois candidatos para o papel de contraponto afirmao S. O primeiro diz respeito afirmao de que no levantei essa manh. Ser que essa afirmao forneceria o complemento necessrio para dar sentido a S? Segundo Wittgenstein seria dbio dizer isso. Por qu? Supostamente, porque h uma variedade de situaes em que poderamos afirmar isso, mas nenhuma delas

    justificaria o tipo de oposio entre realidade e aparncia que o solipsista pretende traar com a tese S. Eu poderia estar enganado achando que acordei pela manh, quando na verdade

    estava sonhando ( noite) que acordei pela manh, ou poderia estar alucinando isso tudo no meio do deserto depois de passar dias sem dormir, ou poderia simplesmente ser um crebro numa cuba, que jamais dorme nem acorda, mas que recebe estmulos de um computador que geram uma experincia ilusria de dormir e acordar. Seja como for, nada disso me autorizaria a dizer que apenas a experincia do momento presente possui realidade, no sentido absoluto que o solipsista pretende atribuir ao termo realidade afinal, em todos esses casos h algo

    que se contrape experincia presente, e que supostamente irreal/ilusrio/aparente: a pseudo-experincia de acordar que tive ao sonhar, ao alucinar, e ao receber estmulos de um computador. Todas essas pseudo-experincias de acordar s so irreais por oposio experincia presente (e real) de acordar, mas elas no so em si mesmas irreais afinal,

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    todas elas foram num outro sentido experincias (subjetivas) genunas, que podem ser aferidas por meio de critrios completamente objetivos. (Consideraes anlogas aplicam-se ao segundo candidato apresentado por Wittgenstein como complemento a S, que est relacionado afirmao de que um evento que no estou recordando nesse instante no

    ocorreu). Tendo mostrado que no parece possvel expressar S com o sentido pretendido pelo

    solipsista, Wittgenstein afirma o seguinte:

    Se algum diz, apenas a experincia presente possui realidade, ento a palavra presente deve ser redundante aqui, assim como a palavra eu em outros contextos. Pois ela no pode significar presente por oposio ao passado e ao futuro. [...] O presente de que estamos falando aqui no o quadro no rolo de filme que est na frente das lentes do projetor precisamente neste momento, por oposio aos quadros que o antecedem e sucedem, que j estiveram a ou esto ainda por vir; mas a imagem na tela que s poderia ser ilegitimamente chamada de presente, dado que presente no seria usado aqui como distinto ao passado e futuro. E assim isto [presente] seria um epteto sem significado.39

    Nessa passagem fica bastante claro qual o diagnstico de Wittgenstein acerca das

    confuses envolvidas na tentativa de se dar expresso ao solipsismo do momento presente. O problema, mais uma vez, que o uso que o solipsista pretende fornecer aos termos

    fundamentais para a formulao de sua posio neste caso, real, presente, eu, e seus derivados no uso nenhum na verdade, tais termos tornam-se completamente irrelevantes e vazios quando postos num contexto filosfico, no qual os isolamos das relaes conceituais que eles possuem em seu solo de origem, de modo que poderiam ser

    simplesmente tirados de cena. Assim como ocorreu no diagnstico apresentado no Livro Azul, a concluso geral que o solipsismo, se levado at suas ltimas conseqncias, mostra-se

    insustentvel, e sua tese central sem sentido.

    4 Concluso

    Levar o solipsismo at suas ltimas conseqncias, em cada uma de suas possveis

    formulaes, deixar-se arrastar para a lama; mas aps fazermos isso nos damos conta de que, desde o incio, no estvamos afirmando nada ao combinar palavras de modo a formular a tese solipsista. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o caminho para fora da lama e de volta ao bom senso no nos leva a uma posio filosfica corrigida e expurgada de seus defeitos, mas sim ao abandono (ainda que momentneo e relutante) do prprio ato de

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    filosofar. A tarefa filosfica s termina quando a voz que tentamos reconhecer e qual tentamos dar fora se cala frente difcil atestao da impossibilidade de se expressar com sentido o tipo de experincia notvel que pensvamos vislumbrar em nossa contemplao da natureza da Realidade. O que sobra ao final dessa jornada , antes de mais nada, uma montanha de escombros, de pseudo-proposies filosficas que devemos como j nos ensinara o autor do Tractatus sobrepujar para ento ver o mundo corretamente.40 isso que nos permitir retornar ao ponto de vista do bom senso o qual no deve ser confundido com o ponto de vista dogmtico do defensor do senso comum. No ser essa a lio a ser extrada de uma das afirmaes mais difceis e obscuras do Tractatus: a de que o solipsismo, levado s ltimas conseqncias, coincide com o puro realismo?41

    "ONLY MY EXPERIENCE IS REAL": WITTGENSTEIN AND THE TEMPTATION OF THE SOLIPSISM

    Abstract A recurrent concern in Wittgenstein's writings is to diagnose the origins of the

    philosophical temptation of solipsism. The present essay attempts to follow some of the main

    steps towards such a diagnosis. The essay also attempts to lay out the main steps toward a "cure" for that temptation. It does so by illustrating the philosophical method prescribed by

    Wittgenstein as remedy for many other "diseases of the intellect" which afflict the philosophers.

    Key-words: Wittgenstein. Solipsism. Therapeutic method. I/subject.

    Notas

    1 Este texto uma verso revisada e expandida da comunicao apresentada no Colquio Ufrgs/Unisc de

    Filosofia, no dia 13/04/2007. Agradeo ao professor Flvio Williges pelo convite para participar do evento, e ao pblico presente pelos comentrios feitos na ocasio. Tambm gostaria de expressar minha gratido aos professores Paulo Franscisco Estrella Faria, e Alexandre Noronha Machado, que leram e comentaram verses anteriores deste trabalho. 2 Mestre em Filosofia pela UFRGS. E-mail: [email protected].

    3 Nesse sentido, penso que devemos concordar com a afirmao de Peter Hacker segundo a qual Os enigmas envolvendo o solipsismo [...] tornaram-se para Wittgenstein um paradigma das doenas do intelecto s quais os filsofos so suscetveis (HACKER, 1986, p. 215). 4 WITTGENSTEIN, 2001b, p. 25.

    5 Ibidem.

    6 Id., Ibid., p. 108-109.

    7 Id., 1960, p. 45.

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    8 Ibid., p. 46.

    9 Ibid.

    10 Ibid.

    11 Ibid., p. 49.

    12 Ibid., loc. cit.

    13 Ibid., p. 52-53.

    14 Essa, pelo menos, seria a maneira como o solipsista apresentaria sua concluso a partir da anlise dos casos anteriores. Mas cabe deixar claro que esse tipo de afirmao categrica acerca de impossibilidades metafsicas no condiz com o esprito da filosofia madura de Wittgenstein. Mais condizente seria dizer, simplesmente, que no compreendemos o que seria a negao dessa proposio, uma vez que no sabemos como seria uma vida na qual ela desempenhasse um papel. Devo a Alexandre Noronha Machado a sugesto para esclarecer esse ponto. 15

    Ibid., p. 53. 16 A respeito dessa tipo de notao, cf. observaes de Wittgenstein nos Notebooks, segunda quinzena de Junho de 1915, pgina 60, nas quais se trata do carter hipottico das proposies da fsica (e da linguagem comum), e sua indeterminao. Segundo Bento Prado Neto (2003, p. 27-29), essa indeterminao e esse carter hipottico devem-se ao fato de que a linguagem comum no reflete fielmente a forma de seu sentido. A proposta de uma linguagem fenomenolgica pode ser encarada como uma espcie de revisionismo anloga quela apresentada pelo solipsista mas importante atentar ao fato de que nenhuma delas pretende modificar fatos, e sim, simplesmente, fornecer notaes mais perspcuas. 17

    Ibid., p. 59. 18 O emprego da expresso atribuio deve-se simplesmente sua difuso na literatura filosfica, mas preciso tomar cuidado com seu uso no contexto da filosofia de Wittgenstein afinal, uma de suas lies centrais que os proferimentos (supostamente) auto-atributivos de estados, eventos e atitudes mentais em primeira pessoa do singular, no presente do indicativo, cumprem uma funo expressiva, que radicalmente distinta da funo (genuninamente) atributiva dos proferimentos em terceira pessoa, que usamos para descrever aes, estados, eventos e atitudes mentais de outros sujeitos. 19

    Ibid., p. 60. 20

    Ibid., p. 61. 21

    Ibid. 22

    A respeito desse mesmo ponto Wittgenstein afirma o seguinte, nas Investigaes Filosficas, 293: Se eu digo a meu respeito que apenas a partir de meu prprio caso que eu sei o que a palavra dor significa no devo dizer o mesmo de outras pessoas? E como eu poderia generalizar um caso de modo to irresponsvel? (WITTGENSTEIN, 2001a, p. 85) 23

    Ibid. 24

    Ibid. 25

    Ibid., p. 61. 26

    Ibid. 27

    Para marcar esse ponto, Wittgenstein apresenta trs jogos de linguagem fictcios, que apresentam diferentes geometrias que estaramos inclinados a usar se os fatos fossem diferentes (Cf. WITTGENSTEIN, 1960, p. 62). 28

    Ibid., p. 63. 29 Cf. Treatise of Human Nature. H um antecedente dessa posio na chamada fase intermediria de Wittgenstein, expressa pela proposta de uma linguagem desptica (Cf., p. ex., as notas de aula compiladas por Moore entre 1930-33 (WITTGENSTEIN, 1993a, cap. 6)). 30

    HACKER, 1986, p. 241 31 Um dos argumentos mais contundentes em defesa dessa tese ocorre na parte I do livro Individuals, de Peter Strawson (STRAWSON, 1959). 32

    WITTGENSTEIN, 2001b, p. 66. 33

    Ibid. 34

    Id., 1975, p. 83. 35

    Ibid., p. 84. 36

    Id., loc. cit. 37

    Ibid., p. 85. 38

    Ibid. 39

    Ibid., p. 85-86. 40

    Id., 1993b, p. 281 (proposio 6.54). 41

    Ibid., (proposio 5.64).

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    Referncias

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    ______. Notebooks 1914-1916. 2. Ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1984.

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