tecnocracia e burocracia

27
3 CARLOS ESTEVAM MARTINS TECNOCRACIA E BUROCRACIA

Upload: levifla

Post on 29-Dec-2015

85 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Tecnocracia e Burocracia

3C A R L O S E S T E V A M M A R T I N S

TECNOCRACIA E BUROCRACIA

Page 2: Tecnocracia e Burocracia

Embora existam fronteiras suficientemente delineadasseparando as noções de burocracia e tecnocracia, não sãopoucas as ocasiões em que as encontramos confundidas.A origem desse equivoco remonta a Weber ou, melhordizendo, à interpretação que se tem dado a algumas dascaracterísticas por ele atribuídas às burocracias modernas,tais como o primado da racionalidade, a criação de staffsprofissionais, especializados e tecnicamente competentes, orequisito de treinamento prévio e prova de aptidão para oexercício de cargos específicos e as vantagens que daíadvêm em termos de eficiência e calculabilidade da ação.

De uma interpretação apressada da análise weberianapodem resultar formulações que tornam literalmente inútilo conceito de burocracia. Não faltam exemplos dessa pos-sibilidade. A título de ilustração, veja-se a seguinte pas-sagem de um texto de Reinhard Bendix: "Nas burocraciasmodernas os altos funcionários administrativos detêm omonopólio da competência, ou seja, eles são insubstituíveispor causa da alta qualificação técnica requerida pelasposições que ocupam. Na medida em que esses especia-listas são insubstituíveis, diz-se que eles detêm um mono-pólio do poder". A primeira vista, trata-se de um comen-tário relativo antes à tecnocracia do que à burocracia: omonopólio do poder como resultado do monopólio do sabertécnico-científico. Contudo, essa impressão é integralmentedesfeita por uma nota adicionada ao mesmo texto: "Tipi-camente, essa descrição não se aplica aos funcionáriosgovernamentais que são técnicos e especialistas nos camposda ciência ou da. indústria. Para esses, é possível encon-trar substitutos com relativa facilidade. Ademais, eles ca-racteristicamente gozam de pouco prestígio no serviçopúblico".

Sem essa nota, o texto acima seria um exemplo datotal identificação de burocracia com tecnocracia. Graçasa ela, entretanto, ganha destaque a idéia de que é possívelconceber um tipo de competência, racionalidade, eficiência eprofissionalização que nada tem a ver com o que é próprioe exclusivo do contingente técnico-científico.

Com efeito, o termo burocracia refere-se a uma moda-lidade específica de staff administrativo. A necessidade deconstituir um staff administrativo surge em qualquer orga-nização que se tornou tão complexa a ponto de não ser

121

Page 3: Tecnocracia e Burocracia

mais praticável a manutenção de relações imediatas e dire-tas entre o nível de chefia e o de execução. Em princípio,um staff administrativo é apenas o sistema de transmissãoque torna possível o contato entre esses dois níveis me-diante a manutenção de um fluxo de ordens que parte decima para baixo e de um fluxo de informações que sobedos escalões inferiores aos superiores. Muitas tarefas pre-cisam ser realizadas (antes, durante e depois) para quecada decisão da chefia seja efetivamente cumprida poraqueles a quem cabe transformá-las em realidade. A ga-rantia de que essas tarefas serão realizadas é dada pelapresença de um corpo de funcionários que, representandoos interesses da chefia e munido dos poderes por ela dele-gados, está em condições de obter dos executantes aquiloque deles se espera.

O poder com que conta uma organização para motivaros seus membros e agir sobre o meio-ambiente (naturalou social) encontra-se, em princípio, concentrado no cumeda hierarquia organizacional, ou seja, ao nível do escalãodirigente supremo. Tal escalão é efetivamente supremona medida em que desfruta do poder de decidir, em últimainstância, sobre o destino da organização e a utilização dosseus recursos. Nesse sentido, a chefia organizacional dis-tingue-se, por definição, tanto do staff administrativo pro-priamente dito, quanto dos membros que desempenhamfunções de nível meramente operacional.

Há um outro aspecto, não menos importante, em quese distingue a chefia do staff administrativo. A primeira,em contraste com o segundo, representa, em princípio, osetor politicamente responsável pela organização, no sen-tido de ser o setor que responde pelo comportamento daorganização nas suas relações com o mundo exterior. Nasituação ideal que estamos tentando caracterizar, supõe-seque as pressões externas exercidas sobre a organizaçãocom o propósito de modificar o seu comportamento reper-cutem diretamente sobre o nível de chefia. No casoextremo, os efeitos de um relacionamento inadequado como meio-ambiente implicariam a destituição da direção su-prema.

A partir dessas distinções analíticas, podemos pensarem duas dimensões distintas do conceito de burocracia:uma de natureza administrativa, outra de natureza política.

122

Page 4: Tecnocracia e Burocracia

Tomado em sentido administrativo, o conceito refere-seà forma particular de organização por meio da qual pro-cura-se imprimir um caráter objetivo, neutro, impessoal ecalculável ao funcionamento do staff administrativo. Emcontraste, por exemplo, com a administração de tipo patri-monial, a administração burocrática estaria livre da inter-ferência de uma série de fatores desordenadores tais comoa arbitrariedade subjetiva dos superiores, as influênciasexternas que se infiltram no sistema para romper a unida-de de comando, a falta de treinamento e de qualificaçõesnecessárias para o exercício dos cargos, os abusos come-tidos por funcionários que detêm a posse privada dos meiosadministrativos e toda sorte de variações incontroláveisresultantes de conflitos na interpretação de normas tradi-cionais imprecisamente formuladas e controversas.

Nesse sentido, a burocratização teria o mérito de per-mitir a coordenação sistemática das múltiplas atividadesadministrativas a partir de um centro único de controle.Transformando o sistema administrativo num todo org&nico,capaz de funcionar em conformidade com critérios explí-citos e objetivos, a meta final do processo de burocra-tização seria a de elevar ao máximo possível a racionali-dade do sistema organizacional, permitindo a adequaçãodos meios aos fins e o cálculo rigoroso dos resultadosprevisíveis da ação. Se bem que, examinada de outroponto de vista, seja possível afirmar que a competênciaburocrática se transforma no seu contrário. Assim, paraMarx do mesmo modo que para Kafka, a burocraciaconteria em si mesma um mecanismo embutido de incom-petência auto-sustentada: "A cabeça confia aos círculosinferiores a compreensão do detalhe e os círculos inferiorescrêem que a cabeça é capaz de compreender o geral e,assim, enganam-se mutuamente".

Para os nossos propósitos, entretanto, o importante ésublinhar o fato de que os valores de racionalidade,eficiência, objetividade e profissionalismo envolvidos noaspecto meramente administrativo da burocracia nada têma ver com o incremento da participação dos tecnólogos noscentros de decisão que comandam o funcionamento daorganização. Dizer que um dado staff administrativoassumiu uma forma burocratizada implica em admitir,apenas, que a ação dos dirigentes organizacionais passou aser instrumentalizada por um mecanismo de novo tipo,

123

Page 5: Tecnocracia e Burocracia

caracterizado pela natureza previsível de seu comporta-mento e por sua indiferença com respeito ao conteúdo doscomandos emitidos pela cúpula dirigente. Em outras pa-lavras, a burocratização tomada nesse sentido equivale auma reforma administrativa que aumenta a racionalidadedo sistema na exata medida em que concentra poder dedecisão nas mãos da chefia suprema, independentementede quem sejam os ocupantes dessas posições e do modopelo qual a elas tiveram acesso.

Para ilustrar a incompatibilidade que existe entre aidéia de tecnocracia e a acepção específica do conceito deburocracia que estamos examinando, seria convenienteanalisar o significado que Weber atribui ao profissiona-lismo administrativo. Na opinião de Weber, o papel de-sempenhado pela competência especializada torna imnos-sível a existência de uma máquina administrativa modernasem a presença de um corpo de funcionários profissional-mente treinados. Ao pensar assim, entretanto, o queWeber tem em mente não é a noção corrente do profis-sional liberal, egresso de uma universidade e incorporado,por um motivo qualquer, a um determinado staff admi-nistrativo. Na realidade, a profissionalização a que ele serefere é de um outro tipo. Trata-se, a rigor, do funcio-nalismo como profissão.

Em outras palavras, o caso clássico do profissionalliberal supõe a combinação de dois elementos. Em pri-meiro lugar, formação especializada numa disciplina cien-tífica; em setrundo lugar, internalização de um sistema decrenças, valores e normas que orienta legitimamente a con-duta dos membros da profissão na medida em que é poreles próprios elaborado e redefinido em função das circuns-tâncias que afetam o exercício da profissão A profissio-nalização administrativa, ao contrário, requer um conteúdodiferente para esses dois elementos. Em primeiro lugar,não importa a natureza do treinamento recebido pelo can-didato, contanto que ele reúna as qualificações exigidaspara o exercício do cargo. Em segundo lugar, o códigode ética profissional que lhe cabe internalizar é não sóheteronomicamente constituído, como prescreve, acima detudo, que o funcionário se desincumbirá lealmente dos de-veres do seu cargo, sejam quais forem os seus sentimentospessoais e as discordâncias que tenha com a política posta

124

Page 6: Tecnocracia e Burocracia

em prática pela organização. Tamanha é a diferença entreos dois tipos de profissionalismo que a primeira coisa quese requer para que um profissional liberal (ou seja, umtecnólogo) transforme-se num burocrata consiste em queele substitua o sistema de crenças propriamente profis-sional a que se encontra aderido pelo sistema de crençasque caracteriza o profissionalismo administrativo. Comose isso não bastasse, a segunda coisa que se espera deleé o uso seletivo das aptidões que adquiriu e o empregocondicional dos conhecimentos de sua disciplina no sentidode subordinar o patrimônio cultural representado pelotecnólogo ao serviço da função que desempenha e não vice-versa. Em suma, ao converter-se em burocrata o indi-víduo aceita o dever específico de fidelidade às prescriçõesinerentes ao cargo; submete-se às injunções e responde àsexpectativas associadas à posição que ocupa no interiorde uma estrutura pré-estabelecida e coloca-se, assim, aserviço de uma finalidade objetiva e impessoal que, em simesma, não pode ser definida como sendo de naturezatécnico-científica.

Se a análise precedente faz sentido, dela se concluique a burocratização de um sistema organizacional, exata-mente porque aumenta a racionalidade, a eficiência e aobjetividade do sistema, exclui a possibilidade do staffadministrativo transformar-se num organismo tecnocráticocapaz de sobrepor-se ao escalão dirigente: Isso é assimporque, no sentido administrativo que até aqui estamosdiscutindo, a burocratização esvazia o poder do burocratae o converte num instrumento simultaneamente eficiente esubserviente a serviço de um comando centralizado e su-premo. Nesse sentido, a burocracia constitui uma peçaperfeitamente ajustada ao esquema de produção capita-lista em larga escala e à sociedade constituída para arealização dos fins dessa produção. A submissão do buro-crata ao cargo, ou seja, o império impessoal do "bureau"sobre o ser social dos seus ocupantes, é o que convertea burocracia no modelo de racionalidade administrativaque torna possível a gestão eficiente dos sistemas moder-nos de dominação. A contrapartida desse tipo específicode racionalidade não é a técnica nem, muito menos, aciência, mas a disciplina.

A outra acepção do termo, a dimensão política doconceito de burocracia, supõe justamente o contrário.

125

Page 7: Tecnocracia e Burocracia

Nesse caso descreve-se como burocracia o staff adminis-trativo que se autonomizou, açambarcando em suas mãos,em detrimento da elite dirigente, o poder de decidir sobreo comportamento da organização. É evidente que tal auto-nomia nunca pode ser mais do que relativa uma vez quenão lhe é dado transcender os limites estabelecidos pelosprincípios estruturais de ordem social vigente dentro daqual foi engendrada e graças a qual floresce a burocraciaque se proclama senhora de si mesma. Respeitada essarestrição essencial, é claro que há lugar para um certograu de emancipação burocrática. Para que esta ocorra,basta que se desenvolva no staff administrativo a capaci-dade de se opor com êxito às diretrizes traçadas pelaliderança oficial da organização. Não é necessário qual-quer rompimento com as finalidades últimas que dão sen-tido à existência da organização. Seja como for, entre-tanto, o importante para nós é que, uma vez mais, tambémnesse caso não há porque confundir burocracia com tecno-cracia.

Que assim é, pode ser demonstrado pela análise datrajetória que vai do simples funcionalismo ao poder buro-crático. Para tanto, é necessário perguntar: que recursosespecíficos, uma vez acumulados, conferem aos funcionáriosadministrativos uma base autônoma de poder? Segundoa lógica do argumento que estamos tentando construir,se a lista desses recursos não inclui aqueles que sãopróprios e exclusivos do contingente técnico-científico,então impõe-se a conclusão de que o poder burocráticonão se confunde com o poder tecnocrático.

Para proceder ao exame desse ponto, convém ter pre-sente a moldura que define os limites do poder buro-crático. Nas sociedades capitalistas — as únicas que seenquadram no marco histórico-estrutural abrangido pelopresente trabalho — o contingente burocrático constituiuma categoria social essencialmente vinculada ao sistemade classes. Ela não é nem uma classe, nem uma camadaou estrato definível no interior de uma classe como acon-tece, por exemplo, com a "aristocracia operária" em relaçãoà classe operária. Nos casos em que desempenha umpapel central na dinâmica do sistema, enquanto buro-cracia pública ou burocracia de empresa, ela exerce afunção de impor, utilizando-se dos meios coercitivos apro-

126

Page 8: Tecnocracia e Burocracia

priados, a ordem social estabelecida que garante a repro-dução das relações capitalistas tanto na economia quantona sociedade como um todo. Nos casos periféricos, enquantoburocracia sindical ou burocracia de partidos de esquerda,desaparecem até certo ponto os seus vínculos de subor-dinação com os princípios retores do sistema, mas, nãoobstante, permanece a referência a algum tipo de sub-ordem estabelecida que a burocracia respectiva encaracomo sendo seu dever preservar. Em qualquer do suasformas, o próprio da burocracia é situar-se no centro dosantagonismos existentes entre dominantes e dominados eseu mister é o de destruir a realidade dessa contradição.

Lamentavelmente, pouco se sabe sobre a burocraciacomo grupo de poder nas sociedades capitalistas. Há, entre-tanto, alguns fatores de ordem genérica que parecem sercomumente interpretados como responsáveis pela expansãodo poder burocrático. Dentre esses, destacamos os se-guintes :

1) A expansão, não do poder burocrático, mas daenvergadura estrutural das burocracias é, em geral, atri-buída às transformações requeridas pelo próprio desenvol-vimento do sistema capitalista. O surgimento de gigan-tescas corporações, a ampliação da intervenção do estadoe de seu papel planejador, o caráter mais complexo emultifacético assumido pela luta sindical, são algumas dasnovas realidades que impuseram a organização de estru-turas burocráticas extensas e altamente diferenciadas.

Ora, quanto maior é o tamanho de um. corpo buro-crático, tanto maior é a quantidade de poder que nele seencarna e, portanto, tanto mais diminuta é a parcela queresta à disposição da liderança organizacional. É claroque é da essência do poder burocrático o fato dele serdelegado e, em teoria, todo poder delegado é em principiorecuperável. Entretanto, a variável tamanho da massade poder delegado contribui para que, na prática, multi-pliquem-se as oportunidades de apropriação por tempoindefinido dos poderes entregues condicionalmente às buro-cracias. O enfeudamento de posições e setores por parteda camada burocrática, favorecido pelas grandes distânciasque separam o topo da hierarquia dos níveis subordinados,torna-se um evento fácil de ocorrer e difícil de corrigir.(Vale a pena notar que, no quadro do sistema socialista,

127

Page 9: Tecnocracia e Burocracia

a experiência chinesa demostra que, havendo a vontadepolítica e criando-se os meios adequados, é possível nãosó conter o movimento de usurpação burocrática comoreduzi-lo a proporções toleráveis).

Todavia, quando entregues a si mesmos, sendo mui-tos, os burocratas têm mais chances de se impor do quese fossem poucos. Como observa Claude Lefort, a maiordiversidade das atividades e de indivíduos encarregadosde executá-las, a especialização e o caráter estanque dosserviços e o maior número de andares do edifício admi-nistrativo, são fatores que contribuem para multiplicara quantidade de instâncias de co-ordenação e controle e,desse modo, maior se torna a soma de autoridade absor-vida pela burocracia e mais ela se permite centrar-seexclusivamente em si mesma.

2) Associado ao gigantismo da camada burocrática eestimulado pela progressiva interdependência das unidadesdo sistema capitalista moderno, ocorre o fenômeno da cres-cente multiplicação das interações burocráticas entre o setorpúblico e o privado e dos diferentes ramos de um e deoutro entre si.

Para que tudo que precisa ser resolvido seja de fatoe convenientemente resolvido não é mais suficiente, como emépocas passadas, que meia dúzia de políticos confabulemcom um punhado de negociantes e outros tantos generais.A articulação das atividades essenciais ao desenvolvimentodo sistema exige o contato assíduo entre um sem númerode pontos nodais das extensas redes burocráticas que pene-tram as várias esferas da vida social. Utilizando-se dosmais variados meios de comunicação, burocratas de todotipo dão prosseguimento a um incessante intercâmbio deopiniões, projeto, informações, e demais itens necessáriosao entabolamento de negociações. É claro que uma grandeparte dessas atividades escapa ao conhecimento e ao con-trole direto daqueles que são oficialmente responsáveispelas organizações envolvidas. Daí decorre a presunção deque de fato alarga-se cada vez mais a área de manobradeixada ao arbítrio exclusivo do contingente burocrático, emdetrimento das liderenças que figuram no primeiro planodo cenário.

3) Mais importante do que isso, entretanto, é o engran-decimento do poder burocrático que decorre do sistema de

128

Page 10: Tecnocracia e Burocracia

apoio mútuo que funciona não só no seio de uma dadaburocracia (articulando entre si, numa única teia de com-promissos recíprocos, funcionários de diferentes serviços,setores e escalões) como também entre representantes deburocracias pertencentes a organizações distintas e, muitasvezes, rivais. Esse travejamento formado por entendimen-tos, conluios e trocas informais de respaldos e ajudas detodo gênero constitui o substituto moderno dos laços deorigem social e de parentesco que constituíam a base depoder das burocracias estatais vinculadas à classe domi-ante nos países e nos períodos em que prevaleceram cri-térios menos universalistas de recrutamento para o ser-viço público ou para os postos administrativos das orga-nizações privadas. Com a abolição parcial das restriçõesbaseadas no critério de classe, os burocratas modernos têmtratado de compensar a debilidade resultante de sua hete-rogeneidade social por meio da formação de sistemas dealiança que outra vez os reagrupa como portadores de uminteresse próprio, relativamente definido, contraposto oude alguma forma distinguido dos que caracterizam os seusreais ou supostos adversários.

A literatura sobre grupos de pressão é uma fonte ines-gotável de dados e evidências que iluminam essa situação.Ela descreve com detalhe o bloqueio sistemático a quesão submetidos os cidadãos comuns e os representantes deinteresses deficientemente organizados que buscam trafegarpelas vias de acesso que conduzem aos centros de auto-ridade. Não são poucos os ministérios e agências governa-mentais que, alegando a necessidade de prevenir a "inun-dação do aparelho do Estado", limitam a participação nosistema de audiências e consultas apenas às organizaçõesde cume, ou seja, aquelas que desfrutam do reconheci-mento oficial pelo fato de terem alguma coisa a dar emtroca do que pedem. Quanto mais poderoso é o grupode pressão, mais os burocratas estatais se preocupam comos seus movimentos, maior é a sua capacidade de consti-tuir uma burocracia própria, apta a tratar dos problemassegundo a perspectiva e a linguagem que a burocraciaoficial entende e aprecia, maiores são os seus cuidados napreservação do sigilo em que devem permanecer envoltosos tratos, as negociações e os acertos de conta, menor é asua inclinação, em caso de conflito, pelas formas irremis-síveis e públicas de luta política, maior é a quantidade e129

Page 11: Tecnocracia e Burocracia

melhor é a qualidade do estoque de informações escassasque detêm sob seu controle e, finalmente, quanto maispoderoso é o grupo de pressão, maior é não só a suacapacidade como a sua disposição de retribuir com gene-rosidade o tratamento preferencial que lhe seja concedido.Desse convívio entre "gentleman" os burocratas de ambosos lados retiram a força necessária para auto-afirmar oseu direito de ter voz ativa na condução de suas respecti-vas organizações empregadoras.

Os aspectos mencionados até aqui parecem ser sufici-entes para caracterizar a natureza do poder buro-crático nas sociedades de tipo capitalista, Chegamos,assim, ao momento crucial do argumento que estamos de-senvolvendo. Com efeito, retomando o nosso ponto de par-tida, é hora de enfrentar a questão realmente decisiva, aqual se resume na seguinte pergunta: Não se poderia afir-mar que, na era tecnológica, as condições apontadas comopropicias ao florescimento do poder burocrático impulsio-nam, com igual força, a expansão do poder tecnocrático?

De fato, muitos autores têm sustentado essa hipótesee, entre eles, destaca-se Galbraith. Se essa é a conclusãoque se impõe, é evidente que nosso argumento se voltariainteiramente contra si mesmo. Eis porque é importante, denosso ponto de vista, tratar de demonstrar que a conclusãoem apreço não dispõe de bases teóricas de sustentação.

O que significa dizer que os tecnólogos também pode-riam explorar, com iguais resultados, as mesmas oportuni-dades e recursos que facilitam a ascensão dos burocratasna estrutura de poder? Essencialmente, significa dizerque os tecnólogos só podem adquirir poder sob a condiçãode se converterem eles mesmos em burocratas e de secomportarem como tais. Aparentemente, poder-se-ia alegarque não há qualquer inconveniente nisso, uma vez que opoder sempre custa alguma coisa e esse é um preço iguala qualquer outro. Na realidade, como já veremos, issonão é verdade, pois o tipo de preço que se paga pelopoder não é de modo algum irrelacionado com a naturezado poder que se obtém em troca. Antes porém de discu-tirmos esse ponto, é necessário estabelecer com mais cla-reza o fato básico de que as fontes do poder burocrático,quando usadas pelos tecnólogos em seu próprio beneficio,

130

Page 12: Tecnocracia e Burocracia

ao contrário de transformá-los em tecnocratas, os redu-zem a mera condição de burocratas influentes.

Aos tecnólogos contratados para trabalhar em organi-zações modernas é confiada uma tarefa específica, qualseja, a de produzir os conhecimentos de natureza técnico-científica que informam e fundamentam o processo deci-sório. Esse insumo adicional, representado pela contribui-ção dos tecnólogos, faz-se necessário por dois motivos.Em primeiro lugar, porque as organizações modernas, ade-mais de serem burocratizadas, não se estruturam em termosdo postulado da ominiciência do dirigente que a teoriaeconômica clássica e o liberalismo em geral pressupunham.Com respeito aos dirigentes econômicos, tal postulado ba-seava-se na crença de que o empresário, ao decidir sobrea vida da empresa, dispunha de um conhecimento completodas alternativas existentes, assim como das conseqüênciasresultantes da escolha de qualquer uma delas ou de qual-quer combinação entre elas. Admitia-se igualmente queesse conhecimento era continuamente renovado e atualizadoao longo do tempo de tal forma que o empresário estavasempre em condições de, por si mesmo, perceber e escolheras melhores oportunidades de ação, fossem quais fossemas transformações sofridas pelo contexto da ação.

Hoje, ao contrário, assume-se que o dirigente é, pordefinição, limitado quanto ao conjunto de conhecimentos einformações técnicas que ele pessoalmente comanda. Eassim como suas mãos se multiplicam graças à atuaçãodos burocratas que agem em seu nome e em seu lugarnos pontos estratégicos da organização onde foram paraesse efeito colocados, assim também sua cabeça se tornamais competente e versátil graças à assessoria técnico-científica prestada pelos tecnólogos. Para que os diri-gentes interem-se a tempo do leque de alternativas tecnica-mente viáveis, das cadeias de conseqüências suscitadaspelos cursos de ação adotados ou a serem adotados, assimcomo das futuras configurações de eventos que abrem novoshorizontes para a organização, para que os dirigentes saibam,em suma, a que se ater, é necessário que sua capacidadecognitiva seja ampliada por uma equipe de especialistaspor cuja conta corre a função de descobrir e propormétodos, meios, processos, produtos, alternativas, progra-mas, objetivos e oportunidades superiores aos itens pre-viamente conhecidos e empregados.

Page 13: Tecnocracia e Burocracia

As organizações modernas não contratariam staffstécnico-científicos se os seus dirigentes fossem ominicien-tes. Como, de fato, eles não o são, esse é um dos motivosque explicam a constituição de tais staffs. O segundo mo-tivo é o de que não teria cabimento confiar à burocraciaas tarefas atribuídas ao staff técnico-científico, uma vezque, tal como os dirigentes, os burocratas também são,para esse efeito, incompetentes. Não há nada melhor doque uma burocracia quando o produto específico que sedeseja obter é eficiência administrativa. Mas se o quese busca é eficiência cognitiva, é claro que a solução buro-crática não responde ao problema. Por si mesma, a buro-cratização, por mais desenvolvida que seja, não oferecequalquer garantia quanto ao acerto das decisões. Nãocompete às burocracias produzir valor de verdade, nem épara tal fim que elas foram criadas. E qualquer pre-tensão que elas possam nutrir a esse respeito é, por defi-nição, absurda e infundada.

Nessa negação fundamenta-se toda a critica antiburo-crática literária, filosófica ou sociológica, de Kafka a Marx,de Nietzsche a Weber, de Locke a Tolstoi. A burocraciaexiste para outros fins. Se os dirigentes fossem omini-cientes, os tecnólogos poderiam ser dispensados, os buro-cratas não. Se não tivesse havido todo o processo dedesenvolvimento técnico-científico dos últimos séculos, asorganizações modernas funcionariam sem tecno-assessorias,mas não sem burocracias.

Aqui chegamos a um ponto importante. Quando umaburocracia se emancipa, no sentido de adquirir uma baseprópria de poder, ela o faz em tomo do eixo que definea sua função especifica no seio da organização. Comoacertadamente nos recorda a literatura especializada emteoria organizacional, uma coisa são as funções de linha,outra coisa são as funções de staff. O burocrata é umacriatura da linha. Tanto maior é o número de posiçõesde linha, tanto maior é o número de burocratas. Não épor outra razão que, conforme salientamos em páginasanteriores, um dos métodos pelos quais a burocracia expan-de seu poder apóia-se precisamente na multiplicação, neces-sária ou desnecessária, das posições de linha da adminis-tração. Pois bem: e os dirigentes? Onde se encontrameles? Também na linha. Eles ocupam justamente o ápice

132

Page 14: Tecnocracia e Burocracia

da linha administrativa. Dirigentes e burocratas fazemparte da mesma dimensão do contexto organizacional. Adiferença que os distingue é antes de grau do que dequalidade, fato que fica evidente quando se compara, porum lado, operários (ou qualquer outra categoria de. merosexecutantes), com dirigentes ou burocratas, por outro lado.

Se essa análise faz sentido, dela se deduz que a natu-reza do poder burocrático, em todas as suas manifestações,é, de duas coisas, uma: ou poder delegado pela cúpuladirigente, ou poder surrupiado à cúpula dirigente. Noprimeiro caso não é autônomo, já que só pode ser usadomediante prévio consentimento e dentro dos limites traga-dos por condições pré-estipuladas. No segundo caso, époder próprio, mas não por ser originalmente próprio esim por ter sido apropriado. De forma ilegítima, inclusive,sendo o que são as regras do jogo.

O decisivo, entretanto, é que, tanto num caso, quantono outro, o poder burocrático não vem de fora da orga-nização. Ele é sempre poder já existente dentro da organi-zação, é o poder que a organização possui pelo fato delaser o que é no contexto social em que se encontra instalada.Em ambos os casos, trata-se de pautas particulares de dis-tribuição de poder dentro da organização. É em virtudede não ser externa a origem do poder burocrático que seexplica o fato de não se alterarem as relações de poderno seio da sociedade (relações de poder inter-classes, inter-grupos, inter-organizações) na medida em que varie, paramais ou para menos, a soma de poder apropriado que osburocratas dessa ou daquela organização logrem concen-trar em suas mãos.

O mesmo não se pode dizer, é claro, das relaçõesintra-linha nas organizações em que tais variações ocorram.Tão pouco pode-se dizer o mesmo das estratégias e táti-cas adotadas pelas diferentes classes, grupos e organizaçõesque passam a se defrontar com entidades dominadas porsuas próprias burocracias. Do mesmo modo que as re-lações intra-linha, essas estratégias e táticas também ten-dem a se alterar em função da maior ou menor proemi-nência das burocracias organizacionais. Com efeito, osmétodos de lidar com uma organização cujo poder encon-tra-se sediado na cúpula deixam de ser eficazes se o poderse desloca para o corpo burocrático e vice-versa.

133

Page 15: Tecnocracia e Burocracia

Seja como for, o importante a assinalar é que asrevoluções burocráticas não passam de golpes palacianos:o grande perdedor é sempre o escalão dirigente. Suponha-se, por exemplo, a famosa "revolução dos gerentes" popu-larizada por Burnham. Depois de completada, na maiorparte dos casos, tal revolução simplesmente reconstituiua situação-padrão da qual havia partido: uma liderançaorganizacional dotada de autoridade suficiente para ter asou serviço um corpo burocrático disciplinado e diligente.A única diferença estaria em que, no vértice da pirâmide,os empresários capitalistas cederam seu lugar aos "mana-gers". Todavia, é possível imaginar que, ao longo do pro-cesso, houve fases de transição caracterizadas pela con-centração de poder nas mãos dos futuros "managers", emdetrimento dos ainda empresários capitalistas. Por quemotivo, entretanto, haveríamos de supor que o comporta-mento das organizações que passaram por essa fase tenha,por causa disso, se alterado em comparação com o queera antes ou com o que passou a ser depois? Em quesentido os atuais "managers" diferem daquilo que eramquando não passavam de "futuros managers"? Que outrosinteresses eles representaram, antes ou depois, senão osinteresses centrais para a sobrevivência e a expansão daorganização empregadora?

Excetuando-se os casos em que, a partir de fora,troca-se a cabeça dirigente de uma organização por outraimbuída de propósitos contrários ao status quo ante (como,por exemplo, a tomada do poder por um partido radicalde oposição), que diferenças distanciam chefes e subordi-nados igualmente identificados com o mesmo estabeleci-mento de cujo futuro todos dependem? É porque essasdiferenças são mínimas e desprezíveis que tanto se teminsistido sobre o caráter epifenomênico que retira signi-ficado histórico às variações do poder burocrático na so-ciedade capitalista.

Quando se diz, portanto, que os tecnólogos convertidosem burocratas e utilizando-se das mesmas condições quebeneficiam a esses últimos, podem converter-se num grupode poder, o fenômeno que essa hipótese descreve não podeser consistentemente denotado pelo termo tecnocracia.Essencialmente, são as seguintes as razões de ser dessaimpossibilidade.

134

Page 16: Tecnocracia e Burocracia

Em primeiro lugar, é preciso ter presente que o poderapropriado pela burocracia, justamente por ele ser damesma natureza que o poder da chefia, é suscetível, emprincipio e a qualquer momento, de ser desapropriado.Como tanto o chefe quanto os subordinados encontram-seocupando posições da mesma linha hierárquica, não sesupõe que exista qualquer barreira qualitativamente intrans-ponível capaz de colocar o chefe numa posição de depen-dência incondicional face ao subordinado. O poder de queo burocrata desfruta, seja ele delegado ou usurpado, é, emprincipio, eminentemente recuperável. Cada novo indiví-duo que ingressa para uma organização burocrática nãolhe aporta, em termos de poder, nada de novo (a menos,naturalmente, que se trate da infiltração de uma buro-cracia por parte de representantes de uma força sócio-política organizada extra-muros). Enquanto tal, o indi-víduo que se torna burocrata não dispõe de outras basesde poder que não sejam as da própria organização emque opera. Eis porque o poder que adquire é, por um lado,indistinto dos demais poderes organizacionais c, por outrolado, por restituição ou destituição, recuperável.

Não é isso, entretanto, o que caracteriza o caso dostecnólogos. Na verdade, trata-se justo do oposto. Ostecnólogos são concebidos como um corpo estranho dentroda organização que os emprega, tão estranho quanto osão os produtores diretos numa empresa capitalista. Emprimeiro lugar, porque a capacitação técnico-científica, ouseja, o fator de poder que pessoalmente controlam, nãolhes foi outorgada pela organização. Ao contrário, lhes éinerente. Onde quer que estejam, dentro ou fora da orga-nização, essa potencialidade permanece intacta. Assimsendo, cada indivíduo que se torna membro de um stafftécnico-científico agrega um valor novo à organização, valoresse que não pré-existia na linha de comando administra-tivo e que, portanto, não podia ser dali retirado e deslo-cado para o staff.

Da mesma forma que o capital ao comprar força detrabalho está incorporando ao processo de produção aenergia física que ele próprio não possui, analogamenteos tecnólogos contribuem com uma forma especifica deenergia mental para a qual, nos limites do contexto orga-nizacional, não há substituto. Um trabalhador desempre-

135

Page 17: Tecnocracia e Burocracia

gado continua sendo um trabalhador: ele pode ser expro-priado do produto do seu trabalho, não da sua forca detrabalho. Com o burocrata não acontece o mesmo. Elesó se torna burocrata quando entra, pois, na realidade, nãoé o burocrata que faz o serviço, mas é o serviço que faz oburocrata. Como o que lhe falta é um ser próprio, quetenha substância em si mesmo, o burocrata, enquanto tal,não representa um interesse real, nem constitui, na socie-dade, uma contradição verdadeira. O tecnólogo, como otrabalhador, vem de fora. Nesse sentido, sua base depoder é autônoma. Ninguém que não seja um tecnólogopode fazer em seu lugar o que ele é capaz de fazer.

Dessas considerações decorre uma conseqüência fun-

damental. Para que o comportamento do tecnólogo encon-

tre-se submetido às determinações de uma vontade alheia àsua, é necessário, como condição sine qua non, um ato

prévio de renúncia, ou seja, o ato pelo qual ele abdicaao exercício de seu próprio poder em seu próprio nome.Dal deriva-se uma possível definição do tecnocrata. Típico-idealmente, o tecnocrata seria o tecnólogo que se negaa renunciar à sua condição sócio-cultural e, em conseqüência,afirma a especificidade e o primado de um interesse própriocontraposto aos demais, ao mesmo tempo que luta por

implantá-lo. Se consegue ou não é uma outra questão,

em si mesma extrínseca à definição do termo.

Pois bem. Há duas maneiras de um tecnólogo renun-

ciar ao seu próprio poder, equivale a dizer, duas maneiras

pelas quais o tecnólogo deixa de se converter num tecno-crata. A primeira envolve perda de poder ou, para sermais preciso, entrega de poder. A segunda envolve afir-mação de poder mas, helás! afirmação de um poder alheio,ou seja, não aquele mesmo poder que o tecnocrata, porser tecnocrata, afirma. A primeira possibilidade consistesimplesmente na operação de aceitar um patrão, seja elede que tipo for. Nesse caso, como membro de um stafftécnico, por exemplo, o tecnólogo passa a receber de outremas ordens que, no essencial, orientam sua conduta. Tendo

renunciado a qualquer pretensão de auto-afirmação, nãolhe cabe a designação de tecnocrata. Na verdade, ele éapenas um tecnólogo que desempenha funções de tecno-assessor.

136

Page 18: Tecnocracia e Burocracia

A segunda possibilidade implica em que o tecnólogoadquire e usa poder, mas não o poder seu, de tecnólogo,e sim o poder que os burocratas possuem enquanto buro-cratas. Por esse motivo, também nesse caso o tecnólogonão se converte em tecnocrata, por maior que seja amagnitude dos poderes que, por essa forma, venha a co-mandar.

A conclusão a extrair dessas considerações é a de quequalquer das formas anteriormente mencionadas de expan-são do poder burocrático, assim como quaisquer outrasde que se possa cogitar, não são necessárias nem sufi-cientes para configurar uma situação caracterizada pelaemergência do poder de tipo tecnocrático.

Com efeito, a ameaça representada por subordinadosindisciplinados, que se valem das prerrogativas do cargopara desatender as expectativas da chefia, não constituinenhuma novidade na história das organizações modernas.O poder burocrático não é um fenômeno novo. Essa cons-tatação esclarece, portanto, que não é esse o referenteempírico da teoria tecnocrática. A presunção de que opoder tecnocrático constitui, minimamente, um fenômenonovo é a premissa de que parte qualquer indagação arespeito do seu significado. Quem fala de tecnocracia ouestá se referindo a uma possível novidade histórica ou estásimplesmente tagarelando sobre um assunto inespecificado.Isso, infelizmente, é o que acontece aos autores que "des-cobrem" a tecnocracia nos meandros das repartições e, nafalta de outro apetrecho, empunham seus tecnocratas comas armas do burocrata.

É claro que existem, pelo menos como possibilidade,alianças políticas entre tecnocratas e burocratas. Isso,entretanto, não desfaz mas, ao contrário, confirma a pres-suposição de que se trata de duas forças independentesque podem competir ou se aliar dependendo das circuns-tâncias. O tecnocrata baseia sua reivindicação de poderno tecnólogo que ele fundamentalmente é e que precisacontinuar a ser para legitimar sua pretensão. Legitima-mente, só da competência técnico-científica deriva-se a auto-ridade de que se investe. Assim sendo, ao se impor àsvontades leigas com base nessa autoridade precipua, o

137

Page 19: Tecnocracia e Burocracia

tecnocrata atualiza e deflagra as potencialidades políticasinerentes ao tecnólogo. De um simples indivíduo capaz,transforma-se num senhor que manda porque capaz. Eisporque essa eventualidade apresenta-se como novidade his-tórica. Não se trata, para a chefia, do caso clássico doburocrata que está abusando do "seu" poder, um poderque no fundo tem sua origem e sua sede última na própriachefia. Trata-se de um tecnólogo que está exigindo vozativa e supremacia a partir de seu próprio poder, um poderque a chefia pode utilizar se e quando de alguma forma con-segue comprá-lo, mas que ela em definitivo não possuicomo coisa sua. A novidade consiste em que a chefia seconfronta com uma forma de poder que, se lhe for recusada,é em principio irrecuperável pelo fato de ser, em suaorigem, um poder socialmente constituído e não organiza-cionalmente conferido.

Isso nos traz ao outro aspecto da questão a que acimaaludimos quando nos referimos ao interesse próprio encar-nado na condição social do tecnólogo. Em outras palavras,o problema das relações entre tecnocracia e burocraciarevela suas verdadeiras proporções quando passamos a con-siderar o tecnólogo não enquanto indivíduo isolado, mascomo ser social, ou seja, como produto e produtor do con-tingente técnico-científico o qual, por sua vez, deve suaexistência e sua razão de ser ao movimento histórico dasociedade que o engendrou, movimento esse de que elepróprio participa como efeito e como causa. Para consi-derar essa dimensão mais fundamental do conceito de tecno-cracia é necessário, portanto, desviarmos nossa atenção dasorganizações para a sociedade que as inclui, dos tecnólogospara o contingente técnico-científico, da consciência docientista para a história da consciência cientifica, das enti-dades consumidoras para as instituições criadoras daciência e da técnica.

Essa abordagem, abstraindo as ambições e propósitospeculiares a indivíduos ou grupos particulares, identificaa origem social da tecnocracia no vinculo de mútua repre-sentação que enlaça os tecnólogos entre si constituindo-oscomo unidades de um mesmo subsistema social: a assimchamada ordem institucional da ciência. De fato, a idéiade um poder tecnocrático pressupõe a existência de umagregado social especifico, relativamente estruturado e au-

138

Page 20: Tecnocracia e Burocracia

tônomo, unificado em torno de um patrimônio simbólicopróprio, uma herança cultural comum e um destino a ser cole-tivamente elaborado e compartilhado pelos seus membros.

Tal organismo, em geral descrito como uma "comu-nidade técnico-científica", encerraria em si mesmo umasoma de interesses materiais e ideais suscetíveis de o con-verter num sujeito histórico genuíno, muito embora insigni-ficante no quadro de uma sociedade dividida por contra-dições materiais pungentes entre classes e grupos sociaisirreconciliáveis. Na verdade, chega a ser cômico, se nãofosse tão significativamente humilhante para o homemcivilizado, falar de um contingente técnico-científico quemarcha coeso em direção à objetivação dos ideais da ciên-cia. De fato, o que mais chama a atenção, quando seconsidera a referida "comunidade" em qualquer situação deconflito, é que, antes mesmo do mais mínimo embate, elanão consegue esconder, sua extraordinária fragilidade internae sua inapelável impotência em face de condições adversasà sua auto-afirmação.

Não obstante, não há de ser pelo fato de ser tênueque sua realidade deva ser negada. Ela é débil e incerta,mas não ilusória. Em princípio, a diferença específica quedistingue o contingente técnico-científico das demais esfe-ras da vida social é encontrada nas instituições, nas prá-ticas e nos homens primariamente comprometidos com oprocesso de descoberta da verdade e de defesa da verdadedescoberta, homens, práticas e instituições igualmente de-votadas à extensão dos benefícios do conhecimento à hu-manidade em seu conjunto, tanto quanto empenhados naconquista das condições materiais e espirituais requeridaspelo processo de produção e aplicação do saber técnico-científico.

Muitos são os estudos que focalizam o contingentetécnico-científico por esse seu lado positivo. Dando ênfaseàs determinações individualizadoras, tais estudos insistemna idéia de que os homens de saber devem ser visualizadosem termos de uma unidade coletiva. Expressões tais como"comunidade técnico-científica" ou "sistema social de ciên-cia" são freqüentemente usadas para sumarizar a noçãode que os membros dessa espécie pertencem a um todosocial inclusivo e vivem em seu próprio mundo relativa-mente em paz e voltados para si mesmos, um mundo até

139

Page 21: Tecnocracia e Burocracia

certo ponto indepedente e protegido por fronteiras bem deli-neadas no interior das quais as forças centrípetas mais doque contrabalançam os efeitos fragmentadores das forçascentrifugas. Para Norman Storer, por exemplo, esse éum ponto satisfatoriamente assentado: "devemos encarara ciência", diz ele, "como uma estrutura social — umcomplexo de status e posições sociais cujas relações par-ticulares são reconhecidamente independentes de outrasrelações na sociedade. Devemos considerar a ciência comouma entidade auto-sustentada, um sub-sistema da socie-dade".

Os traços distintivos dessa comunidade são freqüente-mente assinalados na literatura. Antes de mais nada, deseus membros espera-se, em contraste com os "outsiders",o leal comprometimento com os afazeres relativos à metado avanço sistemático do conhecimento e de sua aplicaçãopara a melhoria das condições que afetam a existênciahumana. Uma outra série de expectativas diz respeitoao dever de isenção subjetiva e estrito autocontrole sobreas paixões provocadas por sentimentos egocêntricos ou par-ticularistas. A prática das disciplinas cientificas requera universalidade tanto da percepção, quanto do trato. Taispreceitos encontrar-se-iam sistematizados em códigos deética os quais são internalizados no curso da formaçãoacadêmica e adjudicados pelas associações profissionais esociedades cientificas encarregadas de zelar pela manu-tenção da ordem na comunidade técnico-científica. Aomesmo tempo elas desempenhariam também a função derepresentar os interesses dessa ordem junto aos demaissetores da sociedade.

Outra característica peculiar aos indivíduos profissio-nalizados seria o fato de que eles se orientam por umsistema de recompensas primariamente baseado em sím-bolos de "work achievement", cujo significado é interna-mente elaborado pela comunidade profissional, não podendo,portanto, ser plenamente captado pelas pessoas que nãose acham imersas na rede de interações e no sistema sim-bólico que individualiza essa comunidade. Em continuação,admite-se ademais que a alocação de prestigio e estimasocial é canalizada principalmente para indivíduos e insti-tuições que se tornam proeminentes em função de perfor-mances que contribuíram para defender ou aperfeiçoar os

140

Page 22: Tecnocracia e Burocracia

padrões de excelência vigentes no campo cientifico, técnicoou ética Alçados a um status especial, esses feitos meri-tórios sintetizam a natureza do espirito cientifico e servemde papéis-modelo para os principiantes e candidatos a mem-bro do contingente técnico-científico. Finalmente, supõe-seque a socialização profissional leva os indivíduos a mani-festar, em suas relações com as entidades empregadoresem particular e com as agências de controle social emgeral, uma acentuada preferência pelas formas de autori-dade de tipo interpares, em contraste com o padrão super-ordenado caracteírstico das relações de poder nos contextosburocratizados.

A identificação desses e de outros traços definidoresde uma subcultura relativamente autônoma tem levadomuitos autores a admitir a existência de uma base socialsuficientemente consolidada e apta, portanto, para geraros estímulos conduzentes à participação política com sen-tido coletivo. Alguns, como Geiger por exemplo, vão aoponto de admitir que a constituição dessa coletividade, dadoo alto grau de diferenciação social e integração internaque teria atingido, veio determinar uma reformulação daestrutura de classes nas sociedades industriais avançadas.Em outras palavras, o contingente técnico-científico, con-cebido como classe tecnológica, se situaria em contraposiçãoàs demais classes, frações e setores de classe da sociedadecom as quais disputaria, em aliança com umas e conflitocom outras, o privilégio de redefinir e reordenar o sistemade relações de apropriação e dominação em função deseus interesses específicos de classe.

Noutro lugar retomaremos esse tópico com o propósitode mostrar que essa perspectiva de análise baseia-se numaconcepção historicista e antropomorfizante da qual resultauma compreensão superficial e equivocada da natureza dasclasses sociais. Aqui, contudo, interessa-nos apenas subli-nhar a idéia de que não são poucos os autores que encaramo contingente técnico-científico como a "constituency" cujasnecessidades e demandas orientam a conduta dos tecnólogosindividuais, os quais, para não perder os seus vínculos comaquela comunidade e o status que desfrutam em seu seio,tenderiam a agir como representantes de seus interessesnas relações políticas que entretenham com as demais forcasorganizadas da sociedade. O sistema social da ciência se-

141

Page 23: Tecnocracia e Burocracia

ria, assim, um todo suficientemente estruturado e dotadodas demais condições necessárias para pré-determinar ocomportamento dos seus membros no plano da vida política.Em face das questões que se apresentam como objeto deconflito político, ele não só seria capaz de emitir um con-junto coerente de critérios avaliativos e sinais propulsoresda ação, como também estaria apetrechado com um sistemade sanções tão convincente quanto seria necessário paraque sua vontade adquirisse força de lei aos olhos de seusmembros.

O contingente técnico-científico seria, sem dúvida, umapotência social imbatível, se essa fosse uma descrição fide-digna da realidade. Alguns laivos do que foi descrito,entretanto, ainda que episódicos e quase imperceptíveis,são de fato encontrados na realidade. Como é costumeargumentar nesses casos, trata-se de uma questão de grau.Seria descabido pretender, como vem sendo feito com cres-cente freqüência, que os atributos sócio-culturais que fechamas fronteiras da ordem institucional da ciência representemuma proteção tão garantida e um poder de alcance àlonga distância tão grande a ponto de prevenir a hetero-nomia política daqueles que a representam, junto aos de-mais interesses constituídos. Ao contrário, a hipóteseoposta é que tem sido fartamente demonstrada pelo ma-terial empírico disponível. As influências provenientes domundo exterior são suficientemente poderosas para rom-per as barreiras levantadas pelo estabelecimento técnico-científico e infestá-lo de influências contraditórias que otornam irremediavelmente fragmentado e dividido contrasi mesmo, incapaz de articular num mesmo movimento deação política as diferentes correntes de opinião que seentrechocam em seu interior.

De fato, comparado com outras categorias, como osmilitares, os burgueses ou os operários, o tecnólogo encon-tra-se numa situação atípica, no sentido de que para eleas vantagens pessoais sobrecompensam as desvantagensassociadas aos seus atos de traição aos interesses especí-ficos de sua base social. Assim é por vários motivos.Em primeiro lugar porque esses mesmos interesses nãoestão claramente definidos, nem fortemente organizados.E não o estão porque padecem de uma debilidade congênita:na verdade, eles não passam de interesse de naturezaideal lançados num campo de batalha em quo se digladiam

142

Page 24: Tecnocracia e Burocracia

interesses de natureza material. Como diria Marx, dadasas regras do jogo não basta que a idéia clame por setornar realidade: é necessário que a realidade exija acorporificação da idéia.

Em segundo lugar, são em geral frouxos e muitas vezesesfumaçados ou mesmo inexistentes os laços de interde-pendência estrutural que vinculam cada tecnólogo com oconjunto de sua disciplina e sua disciplina com o conjuntodo estabelecimento técnico-científico. Compare-se essasituação com as relações de solidariedade recíproca queunem o militar com sua divisão e sua divisão com o con-junto das forças armadas. Via de regra, é permitido aotecnólogo ser mais bicho do que gente em suas relaçõescom o ventre que o gerou: uma vez posto no mundo, ograu de irresponsabilidade com que se comporta só é com-parável ao desinteresse que sua sorte inspira aos demaismembros da família técnico-científica. Essa falta de inte-ração expressa, ao nível das relações intersubjetivas, obaixo grau de imbricamento sistemático que se observaentre os elementos constitutivos do estabelecimento técnico-científico quando o analisamos ao nível das estruturasobjetivas. Praticamente não se nota aí o efeito bume-rangue graças ao qual um burguês que age contra osinteresses objetivos de sua classe fere em última análisea si mesmo e tão mais profundamente quanto mais profundofor o interesse de classe traído. O mesmo não acontece,senão escassamente, com o tecnólogo. Em termos obje-tivos, o sub-sistema em que ele está inserido é menos realdo que outras totalidades. Os princípios retores que orde-nam as relações de dependência entre os elementos dessesub-sistema e que determinam as suas condições de repro-dução, assim como seus processos dinâmicos, aparentementenão adquiriram vigência universal e soberana dentro dasfronteiras que delimitam a "comunidade". As partes quea constituem tendem antes a ser englobadas por outrastotalidades mais abrangentes a cujas leis de funciona-mento e desenvolvimento se subordinam.

Essa é, sem dúvida, a conclusão sugerida por algumasanálises de dados existentes. Generalizando a partir dessematerial, Bernard Barber atesta que "nas sociedades mo-dernas parece não haver qualquer movimento, formal ouinformal, de integração das profissões em um único grupo

143

Page 25: Tecnocracia e Burocracia

de poder. As diversas profissões freqüentemente compe-tem entre si". E, o que é mais importante, "elas tambémdiferem quanto a uma variedade de questões sociais nasquais sua própria competição não se encontra diretamenteenvolvida". Baseando-se em dados de outra natureza, JeanMeynaud enfatiza o mesmo ponto ao insistir em que umdos principais obstáculos enfrentados pelo movimento tecno-crático reside precisamente nas profundas divisões que seconfiguram entre os próprios técnicos opondo uns aosoutros não só quanto aos conflitos interdisciplinares masem termos de cisões muito mais profundas radicadas nascontradições sócio-econômicas, políticas e ideológicas queprevalecem na sociedade global.

Os fatos são, sem dúvida, adversos para os ideólogosproponentes de soluções tecnocráticas. Todavia, a questãode princípio que estamos tentando discutir permanece depé. Com efeito, por mais difícil que seja, no mundo empí-rico, a existência de um poder tecnocrático real, isso nãonos impede de estabelecer o conteúdo típico-ideal que essepoder reveste. Mesmo que jamais os tecnólogos venhama assumir o poder em qualquer de suas formas, a condiçãosine qua non para que eles, enquanto tecnólogos, exerçamo poder tecnocrático, reside inevitavelmente no nexo derepresentatividade que vincula os tenocratas poderososaos interesses objetivos próprios à ordem institucionaltécnico-científica. Sem esse nexo o fenômeno do podeitecnocrático ou não é nada, ou é de todo ininteligível. Assimcomo não tem qualquer sentido a concepção de um poderburguês que não seja exercido em função dos interessesobjetivos da burguesia, ou de um poder militar que nãose submeta aos controles impostos pela corporação militar,assim também é auto-contraditória a concepção de umpoder tecnocrático que se forja e se exerce independente-mente de sua base social.

Os neologismos não surgem à toa, sem uma razão de serque os explique. Esse é o caso do neologismo "tecnoburo-cracia" e o argumento acima fornece a razão de ser deseu aparecimento. A rigor, era realmente preciso inventaruma nova palavra para designar o tecnocrata cujo poderé no fundo meramente burocrático: de fato, tal indivíduopode ser tudo, menos um tecnocrata. E já que ele é umser híbrido no qual a aparência tecnocrática mal disfarça

144

Page 26: Tecnocracia e Burocracia

a essência burocrática, não poderia haver melhor achadodo que chamá-lo de tecnoburocrata.

Infere-se do argumento anterior que há duas manei-ras distintas de se pensar o tecnoburocrata. Uma reduz-seao simples equívoco, graças ao qual os conceitos de buro-cracia e tecnocracia se fundem numa massa amorfa esem nexo. Uma ilustração dessa possibilidade é fornecidapela obra de Luiz Carlos Bresser Pereira, um autor signi-ficativamente mais preocupado com o futuro dos adminis-tradores de empresa do que com o papel histórico dacomunidade técnico-científica. A outra maneira consiste emusar o termo como instrumento ético-crítico para detectara presença do burocrata sob as vestes do tecnocrata. Esseé o significado que o termo tecnoburocracia assume naobra de Nora Mitrani, uma pioneira na pesquisa empíricado fenômeno tecnocrático. Vejamos, portanto, o que elanos diz.

Ao relatar os resultados das investigações que reali-zou durante a década dos 50, Nora Mitrani julgou con-veniente servir-se da expressão "tecnoburocrata" para dis-tinguir tanto os tecnólogos quanto os tecnocratas daquelesque simplesmente organizam o trabalho de equipes técnicase controlam o produto resultante. Numa das amostrasentrevistadas por Mitrani, em contraste com os tecnólogosdesprovidos de ambição de poder, delineou-se entre ostecnoburocratas uma acentuada tendência no sentido deatribuir à noção de "técnico" uma acepção tão despropor-cionalmente ampla que fazia desaparecer por completoqualquer distinção entre essa noção e a de "dirigente" ou"chefe burocrático". As definições oferecidas pelos entre-vistados foram do seguinte teor: "o técnico é aquele quetem o espirito de síntese"; "o técnico é uma espécie dearquiteto do mundo"; "o técnico é aquele que organiza".

Um dos tecnoburocratas foi mais longe que os demais,não hesitando em definir com clareza o que os outrosvinham timidamente insinuando. Segundo suas própriaspalavras, o técnico é o homem especializado que temuma competência aguda sobre um problema estreito. "Eusou levado" disse ele, "a reagir contra essa acepção dema-siado restrita, pois existe também o técnico em idéiasgerais. Se um grande chefe é inteligente, não é neces-sário que ele seja um técnico. Eu próprio não me sinto

145

Page 27: Tecnocracia e Burocracia

um técnico. O chefe de orquestra que coordena o traba-lho dos técnicos não é mais um técnico ele próprio."

A mesma percepção de diferença entre as funçõesadministrativas e as de natureza técnico-científica mani-festou-se no tipo de lacunas de que se queixaram os entre-vistados ao criticar o conteúdo do ensino nas universi-dades que freqüentaram. Os tecnoburocratas acima detudo reclamavam por não terem aprendido o suficientesobre "a arte de comandar", "a arte de. se tornar um bomchefe", assim como por não terem sido estimulados a de-senvolver "aptidões polivalentes".

Em um outro estudo, a propósito do processo de cons-tituição do Euratom, Nora Mitrani chegou a resultadosplenamente consistentes com os indicados acima. Comefeito, ela verificou que, no mundo das grandes negociaçõestecnológicas, o indivíduo que não se encontra nas posiçõesque possibilitam a coordenação de um "brain trust" de espe-cialistas, "mesmo sendo um sábio de reputação mundial, écondenado a permanecer como simples subalterno, semdúvida temido, admirado e cortejado pelos governos mas,não obstante, dirigido e comandado, até que, por fim, desa-creditado, se passa a ser considerado indesejável".

O modo pelo qual se desenvolveram as manobras paraa criação do Euratom revelou, em toda sua nudez, o traçoque distingue a figura do tecnoburocrata: "muito antesque os cientistas, os especialistas e os experts tivessemqualquer oportunidade de manifestar suas tendências tecno-cráticas, eles foram suplantados e explorados pelos agrupa-mentos tecnoburocráticos formados por políticos, industriaise delegados sindicais".

A tecnoburocracia é, assim, o oposto da tecnocracia.Como tratamos de mostrar anteriormente, o tecnocrata éo tecnólogo que foi capaz de afirmar o seu próprio poder,o poder inerente à sua capacitação técnico-científica. Quan-do essa auto-afirmação não é possível, só restam duas alter-nativas para o tecnólogo: ou se transforma num simplesassessor técnico (um instrumento manejado pela buro-cracia), ou se converte em tecnoburocrata (um tecnólogoque comanda, não com base no seu próprio poder específicoe sim por meio de instrumentos de poder tipicamente buro-cráticos) .

146