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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Centro de Comunicação, Turismo e Artes Departamento de Jornalismo Curso Comunicação Social- Habilitação Jornalismo TEM GENTE NA RUA Um olhar direcionado à população em situação de rua de João Pessoa Maria Romarta Ferreira da Silva João Pessoa 2015

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Page 1: TEM GENTE NA RUA - UFPB CENTRO DE COMUNICAÇÃO, … · ... certidão de nascimento, casamento ou perdição? ... RESUMO Esse relatório detalha o processo de construção do Trabalho

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Centro de Comunicação, Turismo e Artes

Departamento de Jornalismo

Curso Comunicação Social- Habilitação Jornalismo

TEM GENTE NA RUA

Um olhar direcionado à população em situação de rua de João Pessoa

Maria Romarta Ferreira da Silva

João Pessoa

2015

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Maria Romarta Ferreira da Silva

TEM GENTE NA RUA:

Um olhar direcionado à população em situação de rua de João Pessoa

Orientadora: Prof.ª Drª Glória de Lourdes Freyre Rabay

Relatório de Trabalho de Conclusão de Curso,

apresentado à Universidade Federal da

Paraíba, como requisito básico para conclusão

da graduação em Comunicação Social,

Habilitação Jornalismo.

João Pessoa

2015

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Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade Federal da Paraíba.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Silva, Maria Romarta Ferreira da.

Tem gente na rua: um olhar direcionado à população em situação de

rua de João Pessoa / Maria Romarta Ferreira da Silva. - João Pessoa, 2015.

50 f.: il.

Monografia (Graduação em Comunicação Social – Habilitação

Jornalismo) – Universidade Federal da Paraíba - Centro de Ciências

Humanas, Letras e Artes.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Glória de Lourdes Freyre Rabay.

1. População de rua - drogas. 2. João Pessoa. 3. Violência. 4. Reportagem. I. Título

BSE-CCHLA CDU 304

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Centro de Comunicação, Turismo e Artes

Departamento de Jornalismo

TEM GENTE NA RUA:

Um olhar direcionado à população em situação de rua de João Pessoa

BANCA EXAMINADORA:

Orientadora: Prof.ª Drª Glória de Lourdes Freyre Rabay

Profº Me. Carmélio Reynaldo Ferreira

Profº Dr Hildeberto Barbosa de Araújo Filho

Média_________

João Pessoa,___________ de ______________ de 2015

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela força que sempre me proporciona. À minha família, principalmente à

minha mãe, Cicera Maria Ferreira da Silva, e aos bons amigos e amigas, pelo o amor que me

dedicam e também por contribuírem para que eu alcançasse essa meta. À minha orientadora

Glória Rabay, pelos ensinamentos e paciência que me dedicou. E a todos os professores e

professoras que dividiram comigo conhecimentos valiosos.

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Exaustão. Ladeira da Borborema, do Varjão, do Timbó, do Cano e do Buracão. Beira Molhada da

Ilha do Bispo e beiras molhadas de todos os padres. Vagando por esses nomes, estou procurando meu

caminho, minha rua ou avenida. Onde estão minha casa, a cama e o guarda roupa? Onde estão

minha vida, certidão de nascimento, casamento ou perdição? Não sei onde encontrar a certidão de

minha sanidade. Onde estarão minhas contas? Dívidas, onde encontrar? Perdi a chave da gaveta

onde me guardei. Ladeira da Borborema, estou cansado. Dormi.

Dôra Limeira, O Beijo de Deus

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Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las, que tristes os caminhos, se não

fora a presença distante das estrelas!

Mário Quintana

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RESUMO

Esse relatório detalha o processo de construção do Trabalho de Conclusão de Curso, formato

grande reportagem escrita, intitulado Tem gente na rua: Um olhar direcionado à

população em situação de rua de João Pessoa. A reportagem em questão apresenta três

órgãos municipais que lidam diretamente com esse público e ainda quatro perfis de

integrantes da população em situação de rua. O relato sobre as violências sofridas, o uso de

álcool e outras drogas, o preconceito e as dificuldades da reinserção familiar e outras nuances

do cotidiano dessas pessoas também ganham espaço na grande reportagem.

Palavras-chave: População de rua. João Pessoa. Violência. Grande reportagem. Drogas.

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Maria Romarta Ferreira da Silva, portadora da cédula de identidade n° 33492182 SSP/AL

e CPF 088.184.704-69 declaro neste ato, sob as penas da lei, ser o responsável pela obra

intitulada Tem gente na rua: Um olhar direcionado à população em situação de rua de

João Pessoa, realizada como Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de

Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal da

Paraíba.

João Pessoa,_________ de____________ de 2015

Assinatura

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 11

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................................. 14

2.1 A GRANDE REPORTAGEM .................................................................................................. 14

2.2 O PERFIL ............................................................................................................................ 16

2.3 A ENTREVISTA ................................................................................................................. 18

3 DESCRIÇÃO DO PRODUTO OU PROCESSO ..................................................................... 20

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................... 21

REFERÊNCIAS............................................................................................................................22

5 GRANDE REPORTAGEM ESCRITA: TEM GENTE NA RUA- UM OLHAR DIRECIONADO À

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA DE JOÃO PESSOA.....................................................................24

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1 INTRODUÇÃO

O número da população em situação de rua no município de João Pessoa muda de

acordo com a fonte. Segundo pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) citada

em matéria do G1 (Portal de Notícias Globo) em 2013 existiam 202 moradores de rua em João

Pessoa, enquanto a Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDES) do município afirmou que

neste mesmo ano foram registrados apenas 100 casos e em 2014, 130 casos (Portal Correio), já os

dados do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro

Pop) em 2013 citava a existência de 259 moradores cadastrados na instituição (Portal UOL-

18/01/13), já o Consultório na Rua declarou em matéria recente (PB Agora-09/11/15) que

atende por mês, em média, 400 moradores de rua. Essa disparidade nos números reflete a

característica de demanda flutuante da população em situação de rua (flutuante, aqui se refere

àquela que se desloca de um lugar para outro- seja entre bairros, cidades, estados ou países-

podendo retornar aos mesmos lugares ou não, em períodos de tempo prolongados ou curtos).

Entretanto, segundo o Programa de Abordagem Social Ruartes, atualmente, há no município,

em média, 200 pessoas nessa condição.

De acordo com o Decreto 7.053 de dezembro de 2009 que institui a Política Nacional

para a População em Situação de Rua e seu Comitê Inter setorial de Acompanhamento e

Monitoramento, configura-se população em situação de rua, o grupo de pessoas que se

encontra na pobreza extrema e outras vulnerabilidades.

O grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os

vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia

convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas

como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem

como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia

provisória. (DECRETO 7.053, 2009).

Mas se todos são iguais e têm os mesmos direitos perante a lei, como diz a

Constituição da República Federativa do Brasil, isso significa que há uma grande falha na

validação de direitos desta parcela da população. O Decreto 7.053 é um dispositivo entre

outros que foram criados para garantir esta igualdade, à exemplo das leis: Lei 8.742 que fala

sobre a organização da Assistência Social e Lei 11.530 que cria o Programa Nacional de

Segurança Pública com cidadania (PRONASCI).

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]. (BRASIL,

CONSTITUIÇÃO, 1988, TÍTULO II, ARTIGO 5º)

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Para garantir que a população em situação de rua seja assistida e em resposta ao que

está regulamentado nas leis são criados os centros de referência especializados, instituídos

programas e aproveitadas organizações sociais, tais como os abrigos, para essa finalidade. No

município de João Pessoa, para assistir essa população moradora de rua existe o Centro POP

(Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), a Casa de

Acolhida Adulta e o Serviço de Abordagem Social Ruartes, serviços geridos pela Secretaria

de Desenvolvimento Social (Sedes) do município de João Pessoa/PB. São esses três aparelhos

conduzidos pela Sedes mais representantes da população em situação de rua em seus

logradouros, as fontes escolhidas para a grande reportagem escrita.

Há ainda o serviço oferecido pela Secretaria Municipal de Saúde, o Consultório na

Rua, que assim como os aparelhos já citados, lida diretamente com o público mencionado,

entretanto, todos esses mecanismos não excluem o trabalho dos outros Centros de Referência

Especializados da Assistência Social (CREAS) e de outras iniciativas do município e estado e

ONG‟s que contribuem na garantia, dos direitos sociais desta população, a exemplo dos

abrigos Jesus de Nazaré e Lar Manaíra, em João Pessoa.

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos

desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, CONSTITUIÇÃO, 1988,

CAPÍTULO II, DOS DIREITOS SOCIAIS, ARTIGO 6º).

Esses órgãos (exceto as ONG‟s) são instituídos pelo Sistema único de Assistência

Social (SUAS), aparelho público que organiza os serviços socioassistenciais no Brasil. O

SUAS articula os recursos dos três níveis de governo para a execução e financiamento da

Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Este Sistema é coordenado pelo Ministério

do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Com esses aparelhos, todos os estados

brasileiros ficam comprometidos a prover projetos de assistência social. É o Suas que divide

as ações da assistência social em Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, a

primeira existe para prevenir riscos, ofertando benefícios para famílias menos favorecidas e a

segunda é empregada para proteger quem está em situação de risco, a exemplo da população

em situação de rua. Dentro dessas ações há os serviços da alta e média complexidade, a Casa

de Acolhida Adulta faz parte da alta complexidade, já o programa de abordagem social

Ruartes e o Centro Pop são considerados serviços de média complexidade.

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______________________ ¹FOME,Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a. Pesquisa Nacional sobre a População em

Situação de Rua: Cartilha Virtual, 2008. Disponível em:

<http://www.criancanaoederua.org.br/pdf/Pesquisa%20Nacional%20Sobre%20a%20Popula%C3%A7%C3%A3

o%20em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf Acesso em: 13 ago 2015, 21:40.

Em 2007 a Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua¹ traçou o perfil das

pessoas adultas com essa vulnerabilidade, segundo os dados coletados, 82% eram do sexo

masculino; 53% tinham idade entre 25 e 44 anos; 67% eram negros (pardos e pretos); a

maioria (52,6%) recebia entre R$20,00 e R$80,00 semanais; a população era composta, em

grande parte, por trabalhadores, ou seja, 70,9% exerciam alguma atividade remunerada,

apenas 15,7% pediam dinheiro como principal meio para a sobrevivência; 69,6% costumava

dormir na rua, sendo que cerca de 30% dormia na rua há mais de cinco anos; 22,1% costuma

dormir em albergues ou outras instituições; 95,5% não participava de qualquer movimento

social ou associativismo; 24,8% não possuía qualquer documento de identificação; 61,6% não

exercia o direito ao voto; 88,5% afirmava não receber qualquer benefício dos órgãos

governamentais. Já a respeito da escolaridade, 74% sabem ler e escrever, 17,1 não sabem

escrever e 8,3% não leem, nem escrevem, exceto o próprio nome. O estudo apontou ainda que

as principais razões pelas quais essas pessoas estão em situação de rua eram:

alcoolismo/drogas (35,5%); desemprego (29,8%) e conflitos familiares (29,1%).

Diante desse quadro, a grande reportagem mostra, através de 17 moradores de rua de

João Pessoa e dos órgãos administrados pela Secretaria de Desenvolvimento Social desse

município, que atendem diretamente esse público, o cotidiano desses indivíduos, respondendo

às questões: Que fatores os levam a situação de rua? A que formas de violências e outras

dificuldades estão submetidos? O que impede ou dificulta o retorno a uma vida melhor? Os

serviços oferecidos a esse público são suficientes? O que tem sido pensado para melhorar a

assistência a essa população? E qual a quantidade atual -aproximada- da população em

situação de rua em João Pessoa?

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 A GRANDE REPORTAGEM

A grande reportagem permite que o jornalismo seja feito de forma mais aprofundada. Sua

abordagem deve cobrir diversos ângulos de um mesmo acontecimento e até de

acontecimentos correlacionados. Deve trazer dados complementares que seriam dispensados

em uma matéria curta, mas que detém conteúdo de alta relevância para o público. Com um

viés que exige uma investigação minuciosa a respeito do fato a ser relatado, esse gênero

jornalístico faz uso de várias ferramentas, entre elas; a entrevista in loco, o registro

fotográfico e a apresentação de documentos e depoimentos oficiais.

Aqui, talvez, um aspecto importante ao diferençar notícia de reportagem: a questão da

atualidade. Embora a reportagem não prescinda de atualidade, esta não terá o mesmo

caráter imediato que determina a notícia, na medida em que a função do texto é

diversa: a reportagem oferece detalhamento e contextualização àquilo que já foi

anunciado, mesmo que o seu teor seja eminentemente informativo. (SODRÉ e

FERRARI, 1986, p.18).

Na intenção de debruçar o olhar sobre o cotidiano da população em situação de rua de

João Pessoa, suas histórias de vida, os lugares que frequentam, as violências sofridas e sobre

os serviços que atendem esse público, as particularidades desse gênero jornalístico se fizeram

condizentes ao propósito.

A ampliação, reconstituição, coerência, coesão, zelo e criatividade são elementos

essenciais em uma grande reportagem. A criatividade do repórter servirá para que o material

final, aquele que será disponibilizado ao público, não fique cansativo nem confuso,

independentemente da forma de veiculação do mesmo, se nos meios impresso, eletrônico ou

televisivo.

A reportagem visa atender a necessidade de ampliar os fatos para uma dimensão

contextual e colocar para o receptor uma compreensão de maior alcance, objetivo

melhor atingido na prática da grande-reportagem, que possibilita um mergulho de

fôlego nos fatos e em seu contexto e oferece ao seu autor uma dose ponderável de

liberdade para superar os padrões e fórmulas convencionais do tratamento da

notícia. (LAGE, 2001, p. 31).

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Uma das vantagens da grande reportagem escrita -no meio impresso e eletrônico- é

que ela pode ser relida imediatamente, caso o leitor tenha alguma dúvida sobre o conteúdo

abordado, ao contrário do que é veiculado através da TV. É fato que as emissoras, cada vez

mais, utilizam a internet para disponibilizar os materiais jornalísticos que outra hora foram

exibidos na tela, porém, trata-se, ainda, de apenas uma parcela de um “grande universo” de

notícias televisionadas.

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2.2 O PERFIL

Não bastaria apenas entrevistar representantes da população em situação de rua, em

seus logradouros ou instituições públicas para subsidiar a reportagem, precisou-se, além disso,

perfilar alguns deles. Pois, é no perfil que o sujeito encontra mais liberdade para falar, para

mostrar-se, é por meio do qual, que o sujeito conduz mais do que é conduzido. Não seria

satisfatório debruçar o olhar sobre eles, e em contraponto, limitar seu espaço de aparição a

uma ou duas falas, por isso, a grande reportagem abriu espaço para quatro perfis.

Vilas Boas (2003), em seu livro, Perfis e como escrevê-los, define o gênero como

“uma narrativa curta tanto na extensão (tamanho do texto) quanto no tempo de validade de

algumas informações e interpretações de um repórter”, essa definição espelha bem o que foi

vivenciado nos encontros que resultaram os perfis dos personagens escolhidos para grande

reportagem, afinal, quem foi encontrado em um órgão público na condição de vulnerabilidade

social, pode sair dessa condição em breve, da mesma forma que, quem relatou fazer uso de

drogas lícitas ou elícitas, pode posteriormente não fazê-lo.

A característica que o perfil tem de mostrar para o leitor as histórias de vida, jeitos,

trejeitos e opiniões do perfilado, também contribuiu para a escolha desse gênero para compor

parte da grande reportagem. A população em situação de rua tem comumente seus direitos

suprimidos, têm planos e expectativas, família e medos. Desse modo, é interessante que sejam

vistos de forma mais contemplada, não apenas como sujeitos abastados, destituídos de

moradia.

Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente causar empatias. Empatia

é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiria

se estivesse nas mesmas situações e circunstâncias experimentadas pelo personagem

(VILAS BOAS, 2003, PG. 14).

É justamente a empatia que o perfil provoca que se buscou revelar na grande

reportagem, trazer para perto do leitor aquilo que lhe parecia ou estava distante, revelações

que o leitor não poderia extrair, mas que seria útil sabê-las, tanto para se colocar no lugar do

outro sujeito, quanto para sua bagagem de conhecimento.

Entretanto, lidar com a história de vida do outro é um ato que merece ser imbuído de

cautela e ética. Em um perfil, alguns fatos relatados pelo perfilado podem ser suprimidos, se

houver suspeita ou consciência de que a veiculação da integra poderá lhe causar

constrangimento ou outros males.

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Eu não escreveria perfis para esculhambar, ridicularizar ou constranger. Ao

contrário, tento descobrir o universal embutido nas particularidades, lançar luzes

sobre dramas humanos que incitem o pensamento. Isso não tem nada a ver com

generosidade, sentimentalismo ou rasgar seda. É possível criticar sem ofender;

alfinetar sem ferir; homenagear sem trair-se; retratar sem granular (VILAS BOAS,

2003, PG. 16).

A reportagem “Tem gente na rua, um olhar direcionado à população em situação de

rua de João Pessoa”, foi produzida com esse cuidado, os quatro perfilados que aparecem nela

nomeados como Pedro, Cibele, Sandro e Maria, assim como todos os outros entrevistados,

autorizaram a divulgação de seus depoimentos, na íntegra, e preferiram o não anonimato,

mesmo assim, foi adotado para cada um deles um pseudônimo, com a justificativa de que o

cidadão comum, nem sempre compreende a dimensão que a veiculação de um

fato/relato/notícia pode alcançar e compreendendo também que os personagens em questão,

encontravam-se em condição de vulnerabilidade social, em um momento delicado de suas

vidas. E aqui o ensejo, não trata de omitir algo, mas de tratar a narrativa, equilibrando-se

entre o respeito ao personagem e a história narrada. Outra, é que não se deve impor a um

perfil a qualidade de uma notícia, onde o repórter teria a vez de transmitir dado acontecimento

ao público, de forma imparcial, sem esconder fatos. Muito embora haja até quem discorde que

essa tratativa é dada à notícia, como Lustosa (1996) quando diz que “notícia é um relato de

um fenômeno social, presumivelmente de interesse coletivo ou de grupo expressivo de

pessoas, devemos enfatizar que a notícia não é a exata tradução da realidade, pois, como já

alertava Fraser Bond, „notícia não é um acontecimento, ainda que assombroso, mas a narração

desse acontecimento‟” (LUSTOSA, 1996, p. 19), ou ainda o que é dito por Lage (2001) “um

jornalismo que fosse a um só tempo objetivo, imparcial e verdadeiro excluiria toda outra

forma de conhecimento, criando o objeto mitológico da sabedoria absoluta” (LAGE 2001, P.

34).

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2.3 A ENTREVISTA

Para a grande reportagem “Tem gente na rua, um olhar direcionado à população em

situação de rua de João Pessoa”, foram entrevistadas 22 pessoas, entre elas, 05 representantes

de órgãos públicos e 17 integrantes da população em situação de rua, desses, 05 foram

abordados nos logradouros públicos e 12 em instituições públicas. Os 05 representantes de

órgãos públicos aparecem na reportagem, entretanto, foram utilizados apenas depoimentos de

09 integrantes da população em situação de rua, devido suas histórias de vida similares, a

exemplo do padrão existente entre quatro delas: Homem, entre 30 e 35 anos, com laços

familiares fragilizados, dependente de álcool, desempregado.

O Sujeito da enunciação faz uma série de “escolhas”, de pessoa, de tempo, de

espaço, de figuras, e “conta” ou passa a narrativa, transformando-a em discurso. O

discurso nada mais é, portanto, que a narrativa “enriquecida” por todas essas opções

do sujeito de enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação

se relaciona com o discurso que enuncia. (BARROS, 1990, P.53).

A entrevista é uma etapa importante para a obtenção de informações seja para uma

reportagem escrita ou televisionada, para um artigo, ou para um programa de rádio. Mas é

preciso, antecipadamente, ter discernimento do que se quer saber, pois se for feita uma

pergunta qualquer, uma resposta qualquer é o que se terá. Uma boa entrevista é uma conversa,

onde quem tem algo a dizer, deve ter mais espaço do que quem tem algo a perguntar, mas isso

não significa que o entrevistador/repórter deve ficar inerte, ao contrário, ele deve conduzir a

entrevista, evitando que o entrevistador disperse contando coisas que, no momento, não são

interessantes, ou se sinta desestimulado a relatar o que sabe.

Numa classificação sintética da entrevista na comunicação coletiva, distinguem-se

dois grupos: entrevistas cujo objetivo é espetacularizar o ser humano e entrevistas

que esboçam a intenção de compreendê-lo (MEDINA, 1990, p.14).

Segundo Cremilda Medina (1990, p. 14) “a entrevista pode ser uma ferramenta que

busca compreender o ser humano ou transformá-lo em um espetáculo”. Nesse trabalho,

através das entrevistas buscou-se conhecer o entrevistado, extrair dele suas

opiniões/observações diante do mundo, além disso, houve a intenção de saber de suas dores,

seus planos para o futuro, com o objetivo de, tendo posse dessas informações, permitir que o

leitor conheça este entrevistado, mas sem instigar sensações além daquelas vindas dos

próprios fatos relevados, sem espetáculo, sem sensacionalismo.

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O conceito de espetáculo nada mais seria que o exagero da mídia, cuja natureza,

indiscutivelmente boa, visto que serve para comunicar, pode às vezes chegar a

excessos. (Debord, 1997, p. 171).

Não seria difícil transformar uma reportagem como essa, dotada de personagens com

histórias de vida dramáticas, que vivem ou viveram à margem da sociedade, em um produto

sensacionalista, mas qual seria a vantagem disso? Nenhuma. A espetacularização, não traz

nada novo, só repete, enfatiza, fermenta o conteúdo de apelo emocional que já foi dito.

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3 DESCRIÇÃO DO PRODUTO OU PROCESSO

Toda pauta está sujeita a alterações, seja por uma fonte que se torna indisponível ou

até pelo surgimento de uma informação nova. Durante o processo dessa reportagem, as

ferramentas mais usadas foram a entrevista e a coleta de depoimentos. A dificuldade maior se

deu na aquisição dos dados oficiais dos três órgãos que atendem a população em situação de

rua; a Casa de Acolhida Adulta, o Centro Pop e o Programa de abordagem social Ruartes.

Pretendia-se saber quantas pessoas foram atendidas, quantas superaram a condição de

situação de rua, quantas faziam uso de álcool e outras drogas, qual o quantitativo de mulheres

e de homens atendidos. As respostas dessas questões ficaram a cargo das respectivas

coordenações, também vinculadas a Sedes; coordenações da Alta e Média complexidade do

município, que por suas vezes marcaram e remarcaram diversos encontros, transformando em

meses o período para conceder as respostas, tal conduta teria comprometido seriamente o

êxito da reportagem, caso não se tratasse de um trabalho de conclusão de curso com um prazo

considerável.

Já no que se refere ao acesso aos beneficiados (pessoas atendidas pelos órgãos), não

houve dificuldade, principalmente porque se tratava de pessoas maiores de idade, de forma

que, apesar das instituições terem responsabilidade pela segurança e bem estar delas, caberia

aos mesmos a decisão de serem ou não entrevistados. Entretanto, foi necessária a obtenção de

uma carta de anuência, na qual a Sedes autorizava a visita e coleta de dados nos órgãos

mencionados, sobretudo, por se tratar de uma grande reportagem vinculada à academia, o que

seria desnecessário não fosse esse vínculo. Entretanto, para as entrevistas direcionadas a

população em situação de rua em seus logradores públicos, foi preciso enfrentar algumas

dificuldades, a exemplo de transitar pelas ruas, durante a noite- turno em que se reuniam-,

com equipamentos (câmera, gravador de voz). Os bairros visitados para as entrevistas nos

logradouros foram, Tambaú, Centro e Torre, visitei esses locais em dois dias. Utilizei um dia

para entrevistar acolhidos da Casa de Acolhida Adulta e dois para entrevistar usuários do

Centro Pop. No que se refere à edição da reportagem, as fotografias foram capturadas por uma

Nikon Coopix e tratadas pelos programas de edição de fotos, Picassa e Photoscape. O

desenho da capa é do desenhista Vant Vaz e da família da escritora paraibana, Dora Limeira.

No texto foram utilizados título, legenda, subtítulo, olhos e intertítulo, a reportagem não foi

editada em formato de revista, folhetim ou outros, porque a intenção era justamente obter um

material jornalístico, esteticamente livre, possível de ser publicado em jornal impresso, sítio

na internet, livros, revistas, cartilhas, etc.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve a intenção de construir uma grande reportagem escrita sobre a

população em situação de rua, mostrando as dificuldades que essa população vivencia, para

atingir essa meta foi desenvolvida uma grande reportagem escrita contendo a apresentação

dos órgãos vinculados à Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), entrevistas com as

coordenações e com os usuários desses órgãos e mais perfis de quatro integrantes da

população em situação de rua.

A oportunidade da criação de uma grande reportagem escrita propiciou a

experimentação dos diversos instrumentos utilizados no meio jornalístico, a exemplo da

entrevista, da fotografia e da pauta. Poder lidar com um tema delicado e ao mesmo tempo

forte, pela sua complexidade, sem deixar de enxergar o outro com ética, e zelando para que

seus relatos cheguem ao leitor de forma coerente e verdadeira, me fortaleceu enquanto

profissional, e saber que esse trabalho poderá sensibilizar a sociedade para o problema

abordado, lembrando a todos que existe uma população que tem seus direitos suprimidos e

que precisa receber mais apoio do que atualmente recebe, já é satisfatório. Dar voz a quem foi

calado, para mim é uma das funções mais importantes de um jornalista.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto N 7.053, de 23 de Dezembro de 2009- Institui a Política Nacional para a

População em Situação de Rua e seu Comitê Inter setorial de Acompanhamento e

Monitoramento, e dá outras providências.

BRASIL. Constituição (1988). Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais.

BRASIL. Constituição (1988). Capítulo II, Dos Direitos Sociais.

FRANGELA, Simone. Corpos Urbanos Errantes: uma etnografia da corporalidade de

moradores de rua em São Paulo. 1ª edição. São Paulo: Annablume, 2009.

CENTRO POP. Dados quantitativos do. Equipe Centro Pop. João Pessoa. 2012.

SODRÉ, Muniz e Ferrari, Maria Helena. Técnica de reportagem, notas sobre narrativa

jornalística. São Paulo, 7 Ed. Editora Summus, 1986.

LAGE, Nilson. A Reportagem: Teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio

de Janeiro, editora Record, 2001.

VILAS BOAS, Sérgio. Perfis e como escrevê-los. São Paulo, editora Summus, 2003.

DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Revisão:

César Benjamin, 1997.

PESSOA DE BARROS, Diana Luz. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

MEDINA, Cremilda de Araújo. Entrevista: o diálogo possível. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990.

LUSTOSA, Elcias. O texto da notícia. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1996.

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SITES ACESSADOS

G1 Paraíba. Portal de notícias da Globo. João Pessoa. Pesquisa aponta que João Pessoa tem 202

moradores de rua. Matéria publicada em 13 de Agosto de 2013. Disponível em:

http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2013/08/pesquisa-aponta-que-joao-pessoa-tem-202-moradores-de-

rua.html. Acesso em: 10 fev. 2015, 15:52.

PORTAL CORREIO. UOL. João Pessoa. João Pessoa tem 130 moradores de rua, número

23,07% maior que em 2013. Matéria publicada em 10 de Agosto de 2013.

Disponível:<http://portalcorreio.uol.com.br/noticias/cidades/conflito/2014/08/10/nws,244318,

4,347,noticias,2190-joao-pessoa-130-moradores-rua-numero-maior-2013.aspx> Acesso em:

10 fev. 2015, 19:08.

PORTAL CORREIO. UOL. João Pessoa. (18/01/13). Prefeitura cadastra mais de 90

moradores de rua em João Pessoa. Matéria publicada em 10 de Agosto de 2013.

http://portalcorreio.uol.com.br/noticias/cidades/consumo/2013/01/18/nws,218905,4,65,noticia

s,2190-prefeitura-cadastra-moradores-rua-joao-pessoa.aspx> Acesso em 10 fev. de 2015.

PREFEITURA. João Pessoa. http://www.joaopessoa.pb.gov.br/

FOME, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a. Pesquisa Nacional sobre a

População em Situação de Rua: Cartilha Virtual, 2008. Disponível em:

<http://www.criancanaoederua.org.br/pdf/Pesquisa%20Nacional%20Sobre%20a%20Popula%

C3%A7%C3%A3o%20em%20Situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Rua.pdf Acesso em: 13

ago. 2015, 21:40.

AGORA, PB. Matéria, 2015. PJMP atende cerca de 400 pessoas no Consultório na rua.

Disponívelem:<http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20151109110212&cat=saude&

keys=pmjp-atende-cerca-pessoas-consultorio-rua> Acesso em 09 nov. 2015, 20:00:25.

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TEM GENTE NA RUA

UM OLHAR DIRECIONADO À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA DE JOÃO PESSOA

ROMARTA FERREIRA

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TEM GENTE NA RUA

Um olhar direcionado à população em situação de rua de João

Pessoa

rua torna-se refúgio para aqueles que não têm a casa própria, mas não é

só a falta do lar que leva um indivíduo a transformar os logradores

públicos em seu local de subsistência e de convívio social. Laços

familiares fragilizados, desemprego, pobreza extrema, dependência

química através do uso do álcool, do crack, da maconha e outras drogas, e até mesmo,

decepção amorosa, facilitam a permanência dessas pessoas na rua.

Em João Pessoa, capital da Paraíba, estima-se a existência de, em média, 200 pessoas

em situação de rua (Ruartes- 2015). Dos serviços ofertados diretamente a esse público conta-

se um Centro de Referência Especializado em População em Situação de Rua (Creas Pop),

uma Casa de Acolhida Adulta e o Programa de Abordagem Social Ruartes. Esses serviços,

geridos pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) do município fazem parte da

Proteção Social Especial de Média Complexidade e da Proteção Social de Alta

Complexidade, previstas pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) da política do

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS). As pessoas em situação de

rua mencionados nessa reportagem tiveram suas identidades preservadas com uso de

pseudônimos.

O CENTRO POP

Centro de Referência Especializado em População de Rua de João Pessoa, ou

Centro Pop, como é conhecido, é uma unidade de referência de proteção social

de média complexidade de natureza pública. Os núcleos com essa especialidade

estão previstos no Decreto Nº 7.053/2009 e na Tipificação Nacional de Serviços

A

O

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Socioassistenciais.

O Centro Pop dessa cidade foi implantado em 2011, mas recebeu seus primeiros

beneficiados no início de 2012. Com o objetivo de garantir o acesso a direitos essenciais, tais

como alimentação, documentação, saúde e higienização, o órgão que funciona de segunda a

sexta das 08h às 17h, atende homens e mulheres com idade superior a dezoito anos. A equipe

conta com uma assistente social, três educadores, um pedagogo, uma psicóloga, coordenador,

um vigilante, cozinheira e um auxiliar de serviços gerais. Diariamente 40 pessoas em situação

de rua recebem auxílio da unidade.

Segundo o coordenador do serviço,

Márcio de Paula, o Centro Pop contribui na

mudança do estilo de vida das pessoas que

moram nas ruas da capital. “Imagine que

antes os caras não tinham um lugar para

tomar banho, se alimentar, tirar documentos,

ter acesso à rede de saúde, fazer exames,

dentista, não tinha nada disso e hoje o

Centro Pop vem pra isso, é um lugar em que

o cara guarda os pertences dele, garante três

refeições diárias, toma banho, e pode descansar”, explica. O centro atende beneficiados que

comparecem ao serviço por meio de demanda espontânea ou encaminhados por outros órgãos,

que geralmente são hospitais, Centros de Referência Especializados de Assistência Social

(Creas), Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e por meio do Programa de

Abordagem Social Ruartes, apresentado também nessa reportagem.

Geralmente, quando o beneficiado chega ao serviço, a equipe técnica faz o

procedimento da escuta onde é identificada a maioridade e a veracidade da condição de

morador de rua, depois é feito um levantamento de suas necessidades que podem ser desde

um atendimento médico, inscrição em programa de habitação social ou qualificação

profissional, cadastro no programa social de combate à fome, o Bolsa Família, até uma

ligação para um parente. O órgão conta com o apoio da rede de assistência do município que

de acordo com as necessidades dos beneficiados dão resposta aos encaminhamentos gerados

pelo centro, entretanto, um dos desafios que o Centro Pop enfrenta é conscientizar os usuários

para o fato de que, posteriormente, eles podem e devem acessar a esses serviços públicos de

forma autônoma.

Márcio de Paula, coordenador do Centro Pop

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Acolhidos

Centro Pop e a diminuição da violência e do uso abusivo de drogas

urante o dia, fica a critério de o beneficiado permanecer no órgão participando

da programação ofertada que disponibiliza jogos, TV, atividades pedagógicas e

lúdicas e atendimento psicológico ou apenas fazer higienização e refeição e

retornar às ruas para desenvolver

atividades que tragam alguma remuneração. “Eles têm

uma renda média entre 20 e 80 reais por mês que

conseguem pedindo, ou fazendo alguns trabalhos como

lavando carros, ou ficar no sinal fazendo malabares”,

conta Márcio de Paula. Geralmente o público do Centro

Pop desenvolve também outras tarefas nas ruas como

vigiar carros, limpar terrenos baldios e vender doces.

Segundo o coordenador, ter um lugar para ficar durante o dia contribui para diminuir o

uso de álcool e outras drogas, o que impede também a ocorrência de pequenos delitos, a

exemplo de furtos que ocorreriam, por parte de alguns deles, com o intuito de sustentar o

consumo de substâncias psicoativas.

Os beneficiados

do centro desejam

reconstruir suas

histórias de vida,

porém, quase

nunca, esse

objetivo é fácil de

ser alcançado. O

uso de drogas, o

preconceito, o

desemprego e a

falta de apoio da

família são alguns

dos fatores que adiam o retorno a uma vida melhor. *Rafael Lima, 33, está nas ruas há quatro

meses, seu motivo para sair de casa foi o alcoolismo.

D “aqui o pop está

sendo muito bom,

porque o pop está me

ensinando aqui o

meu recomeço de

vida.”

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Conheceu o Centro Pop há um mês e conta que está lutando para deixar o álcool e

conseguir emprego. “Não penso em voltar (pra casa), eu penso em continuar minha vida, tirar

meus documentos, arrumar um trabalho, mostrar pra minha família que eu estou

completamente mudando”, afirma Rafael. “Nós somos olhados como pessoas diferentes da

comunidade, é cheio de preconceito, mas hoje, graças a Deus, eu tou lutando cada dia pra me

livrar das drogas, já do álcool é muito difícil”, revela. Com o apoio do centro, Rafael tem

diminuído o uso de álcool, “aqui o pop está sendo muito bom, porque o pop está me

ensinando o meu recomeço de vida”, conclui.

Os dados do relatório de atendimentos do Centro Pop, cedidos pela coordenadora da

Proteção Social Especial de Média Complexidade, Ingrid Bakke, trazem números alarmantes

no que se refere ao uso de substâncias psicoativas: Da população em situação de rua atendida

de abril a agosto de 2015, 90% , em média, declararam fazer uso de alguma droga, entre elas,

o crack.

Ainda segundo os dados, de janeiro a agosto desse ano, por mês, o número de pessoas

amparadas pelo serviço oscilaram entre 83 e 107 usuários, já o número de novos usuários

cadastrados variaram, no mesmo período, entre 17 e 27 pessoas. Considerando que cada

pessoa recebe diversos atendimentos, a exemplo de apoio socioeducativo, encaminhamentos

para retirada de documentação, imunização, internamento em unidades de saúde e outros, o

Acolhida

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número de quantas vezes os usuários receberam auxílio também é contabilizado: 6.697

atendimentos do início do ano até agosto.

A construção de um novo projeto de vida por quem chega à situação de rua, devido a

complexidade dos motivos que o levaram até ali, é um processo que pode levar tempo e que

segundo Márcio de Paula, só existirá se os beneficiados tiverem condições de se auto gerir

financeiramente. O vício em álcool e outras drogas que dificulta o retorno à família, também

prejudica na inserção ao mercado de trabalho, o centro mantém diálogo constante com os

beneficiados que fazem uso de substâncias psicoativas, e quando eles aceitam fazer

tratamento são encaminhados para o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Márcio conta

ainda que desde 2013, mais de dez pessoas atendidas pelo centro saíram da condição de rua.

Os perigos na rua

evido a exposição a condições insalubres, como, dormir em locais sujos ou

úmidos, sujeito ao frio e ao vento, quem está nas ruas tem mais facilidade de

ficar doente ou de agravar problemas de saúde já adquiridos. A violência urbana

também é um fator que coloca em risco as suas vidas. Como a rua está longe de

ser um lugar seguro, para se sentirem menos desprotegidos, os moradores costumam adotar

medidas de segurança próprias, como andar em grupos, mudar o local em que dormem ou até

migrar para outros bairros ou cidades.

“O mais difícil da rua é só a hora de dormir

mesmo, que a gente dorme assustado”, afirma outro

beneficiado do centro *Emanuel dos Santos, 34. Ele conta

que já viveu momentos de tensão, “ontem mesmo chegou

dois rapaz, de moto, com revólver, procurando um. Podia

ser eu que ele tivesse procurando, eu tinha morrido, todos os dois estavam armados”, revela.

A vida nas ruas é ainda mais arriscada para as mulheres, que além de outros crimes,

podem ser vítimas de estupro. “Ela tem que se colocar em certas situações para sobreviver,

por exemplo, se relacionar com homens apenas com o intuito de se defender, que ele a

defenda, porque se ela está sozinha na rua, vai ser vítima de estupro, de várias violações,

então, ser mulher e moradora de rua é muito mais difícil”, declara o coordenador do Centro.

Segundo ele, por apresentarem mais vulnerabilidades, as mulheres são tratadas como

prioridade nas ações do serviço.

D

“ser mulher e

moradora de rua é

muito mais

difícil.”

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RUARTES, PROGRAMA DE ABORDAGEM SOCIAL

s serviços de proteção e assistência a população em situação de rua, estão

sempre se entrelaçando, o Ruartes, por exemplo, é o principal órgão

demandante do Centro Pop, e também é, parceiro da Casa de Acolhida

Adulta, dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social

(Creas), e do Consultório na Rua. O Consultório é o serviço itinerante da

Secretária Municipal de Saúde (SMS) de João Pessoa que leva in loco, procedimentos de

saúde, a exemplo de higienização e curativos para ferimentos, informações sobre higiene

pessoal e prevenção de doenças à população em situação de rua. Os Consultórios na Rua

seguem as diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), portaria nº 2.488, de 21

de outubro de 2011, caracterizada por um conjunto de ações de proteção e manutenção da

saúde e prevenção de danos. Entre os profissionais que atuam no consultório estão; psicólogo,

assistentes sociais e técnicos em enfermagem. O Ruartes antes de ser um programa de

abordagem social administrado pelo município, com esse nome, que de pronto, sugere a

mistura da rua com a arte, já se comunicava, através dela, com crianças e adolescentes em

situação de rua em João Pessoa. A iniciativa que surgiu há nove anos partiu de um grupo de

O Coordenadora e demais integrantes do Ruartes

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“200 pessoas nas

ruas de João

Pessoa, essa é a

média.”

artistas que enxergava essa parcela da população em vulnerabilidade e desejava se aproximar

dela com o intuito de dar visibilidade e contribuir em sua reinserção social. Entretanto, um

ano depois, a convite da Prefeitura Municipal de João Pessoa, veio a se tornar Programa

Especializado em Abordagem Social. Atualmente o Ruartes atende também o público adulto,

e a equipe ganhou profissionais especializados, o programa tem educadores sociais (16),

psicólogos (2), pedagogo (1), psicopedagogo (1) e assistente social (3).

O serviço abrange todo o município, e embora grande parte da população em situação

de rua esteja concentrada em logradouros públicos como mercados centrais, orlas e Parque

Sólon de Lucena, há também pessoas nessa vulnerabilidade em ruas e bairros com menos

visibilidade, alojadas em locais como, frente de padarias e lanchonetes, debaixo de árvores,

calçadas e construções abandonadas. É para atendê-las que o Ruartes descentralizou seus

profissionais. Periodicamente eles prestam atendimento nos Creas espalhados na cidade, essa

ação permite dar auxílio a quem, por pouco, não é visto pela rede de assistência e proteção

social.

Segundo a coordenadora do Ruartes, Maria do Amparo, no atendimento através do

Creas, o programa apresenta o que a prefeitura e outros poderes públicos oferecem e que pode

proporcionar uma mudança ou melhora de vida na esfera da saúde, moradia, documentação,

acolhimento institucional e benefícios sociais, e quando

o morador aceita, os encaminhamentos devidos são

feitos. Na abordagem na rua, o programa ainda usa a arte

como método de aproximação. “Com criança e

adolescente, a gente geralmente leva jogos, faz

desenhos, leva instrumentos, porque é mais fácil chegar até a criança através do lúdico”,

afirma. Além de ganhar a confiança deles é também através dessas “brincadeiras” que a

equipe descobre a história de vida das crianças e adolescentes, passo indispensável para

identificar suas necessidades mais latentes, localizar suas famílias ou comprovar a

inexistência delas. Com os adultos, além da escuta, o programa também utiliza o lúdico.

Música, brincadeiras, peças teatrais e ainda festejos de datas comemorativas como Natal, Ano

Novo e São João, in loco, compõem essa investida que tem o objetivo de localizar essa

população, levantar suas necessidades e auxiliá-la no acesso a seus direitos.

Cabe ainda ao Ruartes, a contagem de quantos moradores dormem nas ruas da cidade,

esse levantamento solicitado pela prefeitura e MDS serve para possibilitar um melhor

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planejamento das ações direcionadas a esse público, entretanto, a coordenadora alerta que

devido ao característico comportamento migratório da população de rua (eles viajam para

outras cidades e estados, e podem regressar ou não, essa característica também permite

nomeá-los de „população flutuante‟), o número não é exato, “A gente faz a contagem durante

a noite que é a hora ideal de você contar, porque à noite, como eles não têm o Centro Pop, se

juntam em algum lugar pra dormir. Exatamente, não vamos ter, a gente vai ter uma base, 200

pessoas nas ruas de João Pessoa, essa é a média”, explica. Os locais em que há maior

concentração de moradores em situação de rua, conforme observado pelo Ruartes, são os

mercados centrais, Praça 1817, Escola Liceu Paraibano, orlas, Bairro dos Estados e Torre.

A coordenadora aponta também as dificuldades com familiares e uso de drogas como

motivações latentes para a permanência deles na rua, no caso da pessoa adulta, já em se

tratando de criança e adolescente, afirma que a fuga de casa está ligada a conflitos com a

família. É comum a criança ou

adolescente ir para as ruas por

sofrerem abusos e/ou maus

tratos em casa.

“A gente fica tão feliz quando consegue, a equipe parece que ganhou o mundo”, diz

Amparo após confessar a frustação da equipe com casos atendidos pelo projeto, mas que

apesar disso, não puderam ou ainda não tiveram a resolução esperada. Histórias como a de

*Sr. João, morador de rua, que sofria de uma depressão profunda e após denúncias feitas pela

população foi encontrado pelo Ruartes na calçada de uma igreja, sem forças para levantar ou

se alimentar e acometido por parasitas. Através do programa, o usuário recebeu atendimento

do Consultório na Rua e foi encaminhado para um hospital local, onde tratou suas

enfermidades, e posteriormente ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), devido a sua

dependência ao álcool.

“a gente fica tão

feliz quando

consegue, a

equipe parece

que ganhou o

mundo.”

Maria do Amparo, coordenadora do Ruartes

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“A gente tinha uma meta que era „salvar‟ o Sr. João”. Amparo conta que depois do

tratamento no CAPS, o usuário foi encaminhado para a Casa de Acolhida Adulta, nesta

ocasião, apresentava melhoras significativas em sua saúde física e mental, permaneceu em

acolhimento por sete meses, mas retornou às ruas, voluntariamente, o motivo foi um

desentendimento com outro beneficiado da casa. “E até hoje a gente tá nessa peleja, indo

visitar Sr. João, dia sim, dia não para tentar „retomá-lo‟”, desabafa. “Mas a gente ainda tem

esperança de melhorar a vida dele pra uma forma decente e humanizada”, conclui. Outro caso

mal sucedido foi o de *Victor, que vivia nas ruas desde criança, ele foi institucionalizado e

depois, ao atingir a maioridade, voltou aos logradouros públicos, onde após uma briga de rua

foi conduzido à Penitenciária Flósculo da Nóbrega, o presídio do Róger, e lá acabou morto

por outro detento, a razão do crime teria sido uma suposta coincidência de Victor ter sido

locado na mesma cela do assassino de seu irmão.

“Victor é uma vítima desse processo”, opina Amparo, ao comentar que ainda não há

no município serviço que acolha pessoas, nessa vulnerabilidade, em idade de 19 a 28 anos,

“tem o Centro Pop durante o dia, porém, à noite, não tem pra onde ir”. Ela defende a criação

de albergues na cidade e que a nova Casa de Acolhida Adulta possa atender essa faixa etária

desassistida.

Segundo Ingrid Bakke, coordenadora da Proteção Social Especial de Média

Complexidade, mesmo com público direcionado a faixa etária 29-59 anos, a Casa de Acolhida

Adulta (serviço da alta complexidade) existente, tem aberto exceções e atendido essa faixa

etária, em um esforço para proteger esses indivíduos.

A CASA DE ACOLHIDA ADULTA

Casa de Acolhida Adulta de João Pessoa é mais um serviço de proteção

à população em situação de rua, o órgão existe desde 2007 e acolhe

adultos em idade de 29 a 59 anos. A casa tem capacidade para atender 35

pessoas, 05 mulheres e 30 homens. O serviço, ativo 24h por dia,

funciona como um lar, quem ganha uma vaga na casa não precisa se

preocupar com expiração de prazo de acolhimento, pois, o tempo de permanência é

A

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“eu cheguei aqui

não valia nada e

agora já valo

alguma coisa”.

indeterminado, entretanto, um dos principais objetivos do serviço é ajudar a pessoa em

situação de rua a reconquistar sua autonomia e reconstruir sua história de vida, de modo que

não precise mais permanecer institucionalizado. O acesso dos usuários ao serviço é via o

Ruartes, o Centro Pop, Consultório na Rua e ainda pelos CAPS‟s. A equipe é composta por

22 profissionais, entre eles, assistente social, psicólogo e educadores.

De acordo com a coordenadora da Casa de

Acolhida Adulta, Halane Barros, as maiores

dificuldades que a casa encontra são; o

reestabelecimento dos vínculos familiares e a

inserção no mercado de trabalho, devido ao

preconceito por parte dos empregadores e à baixa

escolaridade de alguns (as) acolhidos (as).

Utilizando a rede de assistência, o órgão

encaminha os/as acolhidos/as- de acordo com a

necessidade de cada um- a cursos

profissionalizantes, a tratamentos de dependência

química de álcool e outras drogas e encaminhamento profissional. A inclusão dos/as

beneficiados/as no mercado de trabalho e o preconceito são desafios que o serviço enfrenta,

pois, nem sempre, depois de capacitado/a, o/a usuário/a consegue oportunidade de emprego.

*Pedro da Silva, 36, com apoio da Casa de Acolhida Adulta,

fez curso de Marcenaria, com duração de nove meses e auxílio

de bolsa de R$200 mensais, mas não conseguiu emprego na

área. Na busca de outras oportunidades de trabalho, Pedro já se

deparou com o preconceito. “Passei numa panificadora,

chamei o gerente e disse que estava precisando de trabalho, „o

que der pra arrumar pra mim está bom, arrume aí um serviços gerais‟, „tem comprovante de

residência? Tem documentos?‟, eu dei e ele percebeu que eu era desabrigado, „mora em casa

de acolhimento, é?‟, naquele momento, eu já senti que só porque eu era morador de rua, não

confiou”, relata. “Quando eles sabem que é morador de rua, dispensam logo!”, conclui.

Quem faz uso de moradia provisória em unidades de acolhimento, como a Casa de

Acolhida Adulta não desfaz sua condição de morador/a de rua, mas tem acessos a direitos que

não obteria caso não fosse institucionalizado. É o caso de *José Ferreira, 46, que vivia nas

Halane Barros, coordenadora da Casa de Acolhida Adulta

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ruas sofrendo com o vício em álcool e com a

falta de apoio familiar, sem ter onde morar

pediu ajuda ao CAPS Rangel, ficou interno

por treze dias, para tratar-se do vício e depois

foi encaminhado para a Casa de Acolhida

Adulta onde está há quatro meses. “Quando

cheguei aqui, não tinha documento, já

consegui CPF, reservista e o título de eleitor e

também está para vir a segunda via do meu

registro pra eu tirar minha identidade”, conta.

“Depois que eu tirar a identidade, minha vida

muda totalmente, vou voltar minha vida

normal, vou trabalhar, procurar

morar num cantinho meu, se Deus

quiser, trabalhar, ganhar meu

dinheiro”, planeja. José tem

conseguido controlar o uso do

álcool e afirma que na casa resgatou

sua dignidade. “Eu estou

convivendo aqui nessa casa

pensando positivo, que é pra

quando eu sair, sair melhor do que

entrei, porque quando eu cheguei

aqui não valia nada e agora já valo

alguma coisa”.

O desejo dos/as acolhidos/as

de reconquistar sua autonomia

converge com o objetivo do órgão,

quem está interno sonha em ter uma

vida independente. “Daqui eu gosto

mais ou menos, o mais que a pessoa

gosta é de estar no canto da gente

Acolhida

Acolhido

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36

mesmo”, afirma *Ana Clara Nóbrega, 24, acolhida na casa há seis meses.

A coordenadora explica que a casa está sempre lotada e não é suficiente para atender

a demanda existente. “Não supre as necessidades, a Prefeitura está para abrir uma segunda

casa de acolhimento em Jaguaribe (bairro de João Pessoa), que é a Casa de Acolhida Adulta

II, provavelmente ainda esse ano (2015)”, afirma. Por mês, o número de acolhidos na casa

variou entre 25 e 39 pessoas.

Segundo o coordenador da Proteção Social Especial de Alta Complexidade, Expedito

Carvalho, os profissionais que atuarão na nova casa de acolhida ainda não foram contratados,

mas o local onde o serviço funcionará já está locado e mobiliado. O órgão será entregue até

dezembro desse ano e terá capacidade para acolher 30 pessoas na faixa etária de 29 a 59 anos,

seguindo a diretriz nacional. Contudo, Expedito explica que o município de João Pessoa tem

se preocupado também com a faixa 18-28, segundo ele, a coordenação da alta complexidade

pactuou com o MDS a construção de duas repúblicas que acolherão jovens, a partir de 18

anos, egressos dos serviços de acolhimentos a crianças e adolescentes, a previsão é que essas

repúblicas, que funcionam como lares, estejam em funcionamento em 2017.

A coordenação até o momento do fechamento dessa reportagem não forneceu os

demais dados solicitados, a exemplo de quantas pessoas acolhidas pelo órgão faziam uso de

álcool e outras drogas e quantas superaram a situação de rua.

Atendimentos Casa de Acolhida - 2015

Mês Nº Homens Nº Mulheres Total

Janeiro 33 05 38

Fevereiro 30 07 37

Março 29 05 34

Abril 25 05 30

Maio 28 06 34

Junho 21 04 25

Julho 23 04 27

Agosto 24 05 29

Setembro 26 08 34

Outubro 29 07 36

Fonte: Casa de Acolhida Adulta

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PERFIS

As histórias que seguem, foram contadas por pessoas que vivem ou já viveram nas

ruas de João Pessoa, e nelas encontraram medo, frio, fome, amigos, amores... Homens e

mulheres que em dado momento de suas vidas, enxergaram as ruas como único lugar, ao qual

podiam pertencer. Que foram ajudadas, ou não, por serviços públicos. Verdadeiros

sobreviventes de suas próprias experiências. Pais, mães, filhos, amantes, andarilhos, que

carregam junto às poucas mudas de roupas, ou nem tão poucas, sonhos, que acreditam ser

possíveis.

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Cibele

Era um sábado, por volta das sete da noite, na minha mochila uma câmera e um

bloco de anotações, a noite estava agradável como a maioria das noites da cidade.

Caminhei pela orla de Tambaú, pelo Mercado de Artesanato Paraibano, ruas e ruas,

observando. Os avistei em grupos, e me custou crer que aquilo era mera estratégia de

segurança. Não, eles têm um elo, perceptível a qualquer olhar, mesmo ao mais desatento.

Amizade, familiaridade e proteção comporiam esse elo. Se os moradores de rua estão à

margem... à margem do quê? Do emprego, da casa própria, da família, da dignidade?

Também, mas antes disso, eles estão à margem de nós outros, porque entre os seus, eles

vão bem.

Encontrei *Cibele (38), em uma das calçadas que são próximas da Feirinha de

Tambaú, ela e mais onze pessoas. Corpo franzino, cabelos lisos amarrados levemente na

altura do pescoço, voz equilibrada e mesmo sem esperar minha visita, curiosamente,

tinha um texto pronto, como quem havia decidido com certa antecedência o que deveria

falar. Sentei ao seu lado. “Aquele ali, ó! É o meu minino”, ela apontou com o queixo um

rapaz altivo, de boné na cabeça e camisa nos ombros, entretido com outros adolescentes

do grupo. Cibele contou que ela e o marido vivem nas ruas há oito anos e que seu filho

veio juntar-se aos dois, há alguns meses.

Sua história vai sendo revelada em fragmentos. Só fragmentos. Ela preferiu assim.

Um relato de abandono quando ainda tinha um ano de idade- a mãe casou com outro e a

deixou com o pai. Um mergulho no oceano das drogas que a levou às ruas junto ao

esposo. Um filho adolescente que morava com a avó, mas foi ameaçado de morte por

uma facção criminosa da cidade e atingido por bala a caminho da escola e para não ser

executado veio morar com os pais. E uma vontade de sair das ruas, para protegê-lo.

“Quero mudar minha vida e tirar meu filho dessa vida, botar ele numa escola, pra ser um

homem, ser uma pessoa boa.”

Cibele disse que vive ali porque tem mais policiamento, porque ali, em Tambaú, a

tal facção não mata seu menino, que se sente mais segura em um bairro de classe alta,

apesar de seu filho já ter sido espancado ao ser confundido com usuário de drogas,

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ladrão, traficante. “Várias vezes os homens vêm pra abordagem e espancam meu filho, aí

eu não admito, eles acham ruim, diz que vai me levar presa. Eu digo que pode me levar,

que meu filho é de menor, não é nenhum ladrão, nenhum bandido, é como eu disse a

eles: Vai terminar ele se transformar em um bandido por causa da justiça mesmo”.

Cibele é mais uma mãe no mundo que quer proteger o filho.

“Eu queria mudar minha vida e tirar meu filho dessa vida, botar ele numa escola,

pra ser um homem, ser uma pessoa boa. Nessa rua, nenhuma criança é criada como uma

pessoa boa, porque se revolta”.

Depois de seu desabafo, Cibele simplesmente desconversa: A TV também veio

aqui essa semana. Compreendo a deixa: nossa conversa acabou. Então, peço pra fazer

uma foto sua, depois pergunto se alguém mais do grupo quer falar e um rapaz se agita:

-Eu quero! Se for pra ganhar alguma coisa, eu quero!

Despois de frustrá-lo, vou embora.

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Pedro

Quando fui, pela primeira vez, até a Casa de Acolhida Adulta, em João Pessoa, em

junho, apenas pude conhecer a equipe de profissionais e as dependências físicas do local.

A coordenadora, gentilmente passeou comigo pela casa, mostrou-me os quartos, a

piscina desativada, o quintal com hortaliças, a cozinha, a sala. A cada cômodo,

instintivamente procurei por elas, as pessoas que moraram lá. Vi um e outro, de relance,

mas ainda não tinha autorização para abordá-los. Não posso dizer que pareciam mal,

nem felizes. Só que havia um quê de tristeza em cada um deles da mesma forma que

transpareciam um quê de paz.

Já era junho, quando voltei a casa, foi nessa ocasião que conheci *Pedro. Ele havia

sido avisado da minha visita, estava ansioso para conversar comigo, mas fez questão de

ser o último com o qual falei naquele dia. Estava de barba feita, roupa passada, blusa

azul sobreposta à camisa branca e sapatos. Um homem no auge da juventude, 36 anos.

Posso falar com você agora? Perguntei e ele levando uma cadeira, guiou-me até o

quintal. Num canto próximo a piscina descansou aquela cadeira junto a outra que lá

estava. Passava das quatro horas da tarde, o sol esmaecia de um jeito bem nordestino:

claro, altivo e forte. Mas, bem acomodados e debaixo da sobra do muro daquela casa

tivemos a conversa que presumo: a memória não me fará esquecer nunca.

Expliquei que gostaria de conhecer sua história e o que o levou a morar ali há um

ano e quatro meses, longe de sua família, e ele demostrou-se disposto. Contou-me que

aos nove anos perdeu o pai e desde então se tornou um dos responsáveis pela casa. Aos

quatorze anos, começou a trabalhar de ajudante de cozinheiro em usinas lá em uma

cidade do brejo paraibano, região em que morava. Suas irmãs, as duas, foram trabalhar

em casas de família para conseguir dinheiro para o próprio sustento. Pedro atribui as

suas razões de ter entrado no mundo do alcoolismo e ter levado uma vida torpe à falta

do pai.

“Comecei a fumar, beber, essas coisas... que quando a gente fica sem pai, né? O pai

é quem mais coloca o filho no cabresto, a mãe bota às vezes, mas a mãe sozinha, menino

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de 14, 16 anos, crescendo e tal... Aí fui crescendo, trabalhando, bebendo, vivendo a vida e

terminei na sujeira, em termo de bebedeira”.

Pedro evitava meu rosto o tempo todo, mas eu estava atento ao seu. Seu olhar

contemplava o nada, o chão, as próprias mãos e raramente a mim, entretanto, contava

tudo com exatidão, assumia tudo o que fizera na vida como quem queria ganhar alguma

remissão. Pedro sempre gostou de trabalhar, nunca teve problemas com outras drogas,

mas devido ao álcool perdeu o que já tinha e o que conquistou durante a juventude e

hoje restaram o arrependimento e a vontade de reconstruir sua história de vida. Já foi

casado durante oito anos, teve uma filha com a qual não mantém contato. O vício em

álcool trouxe problemas de convivência e a separação.

Não que Pedro não tivesse sofrido a separação da filha e da esposa, nem a perda

dos bens materiais, mas o que transpareceu causar mais dor aquele homem foi outra

ruptura. Algum tempo após a morte de seu pai, sua mãe foi beneficiada com uma

aposentadoria por viuvez e ele e suas duas irmãs herdaram a casa em que moravam.

Pedro vendeu a casa e gastou todo o dinheiro. Decepcionou a família.

“Vendi a casa, minha mãe ficou no aluguel e eu nessa vida andando pra cima e pra

baixo, bebedeira, prostituição, era o que mais rolava, o dinheiro que eu botava no bolso

era para festa. Eu não queria saber de outra coisa. Então cheguei a um ponto, já

descontrolado na bebida, a separação. Teve uma traição da parte dela, não da minha,

mas eu acho que dei um motivo para ela chegar a esse ponto de traição porque minha

vida era de bebedeira, minha vida foi essa aí: só de água a baixo. Aí eu terminei

vendendo essa casa, minha mãe não queria, aí eu tapeando, enganei, menti, tudo isso

para arrumar o dinheiro para ir pras festas. E teve o momento que eu tive que sair, até

porque o aluguel quem pagava era ela, porque chegou o ponto que eu não estava mais

trabalhando.”

A mãe de Pedro hoje tem 82 anos, mora com uma das filhas, recebe ainda a

mesma pensão por viuvez, seu salário quase nem dá para seus remédios, ela sofre de

problemas cardíacos. Já perdoou o filho, outro dia marcaram encontro em um parque da

capital, o Solón de Lucena. A mãe, sofrida, pelas vezes em que ele pedia seu salário para

pagar a conta do mercado e desaparecia com o dinheiro, ou quando vendeu a casa e

gastou o apurado causando mais discórdia na família, ou quando, depois disso, para

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evitar qualquer tragédia, a mãe fez um empréstimo para devolver às filhas a parte que

lhes cabiam da herança subtraída por Pedro e ainda pelos dias em que Pedro, seu filho

ainda amado, sumia sem deixar pista, pelas vezes que seu coração de mãe presumiu a

morte dele, porque não voltava, dia após dia, Pedro não voltava. É disso que ele

apresenta mais remorso, das dores que causou à família, principalmente à mãe, e da dor

que causou a si mesmo.

“Minha mãe, mesmo eu praticando esse erro, ela sempre deu apoio: É filho, eu

dou um jeito. Fez empréstimo de cinco mil, dois e quinhentos para cada uma, e ainda

assim não deu, porque eu vendi a casa por quatorze mil, esse dinheiro todinho, eu

gastei.”

Pedro relata com carinho a dieta que a mãe precisa ter, como que saber de algo

sobre ela fosse importante para ele. Contou-me que ela não pode comer nenhum

alimento gorduroso e que toma todos os seus remédios de forma correta. Ele não espera

que a mãe o ajude financeiramente, pois sabe que ela vive de forma simples, mas garante

que se pudesse ela o faria.

Quando perguntei se Pedro se arrependia do que tinha feito à mãe e às irmãs, ele

esfregou o rosto e respondeu empolgado, como quem não aguentava mais esperar pela

pergunta.

“Me arrependo demais, oxe! Ave Maria, eu num sei não, não tem como sair da sua

cabeça! Quando você vê a sua mãe, na época tinha o quê, isso foi há uns quatro cinco

anos atrás, hoje tá com 82, nunca mais eu vi ela, que eu não vou na casa de minha irmã

que eu não posso ir, que a gente não se bate. A minha mãe, tudo bem, já marquei

encontro com ela e a gente conversou e tudo, a minha irmã não, vive no canto dela, eu

não sou assim de incomodar, olhar nos olhos assim e pedir, até pedir um perdão, eu não

sei, num é nem coragem, acho que vou me sentir muito envergonhado ou humilhado, eu

não sei, sei que peço muito perdão a Deus.”

Pronto. Acalmou-se. “Eu vendi a nossa casa, mamãe com um ano depois pagou

aluguel pra mim, pagou três anos de aluguel.”

É claro que nossa conversa havia se prolongado, Pedro fazia questão de não

encurtar detalhes, mas eu queria saber como ele chegou até Casa de Acolhida Adulta,

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então perguntei: Você já chegou a dormir nas ruas, a não ter onde ficar? Ele pediu calma,

disse que iria me contar depois e continuou a falar os por menores de cada coisa.

Por ter perdido a credibilidade da família e pelo uso de álcool, Pedro vagava por

várias cidades, passou nove meses em uma casa de acolhida em Campina Grande (PB),

durante esse tempo não deu notícias a ninguém, quando todos pensavam que ele havia

morrido ou estava preso, ele retornou para João Pessoa. Porém, não encontrou mais

lugar para ficar. Depois frequentou outros albergues em Maceió (AL), Pernambuco (PE)

e Natal (RN), mas sempre retornava a João Pessoa, onde atualmente reside.

Pedro aprendeu a controlar seu vício em álcool e sempre é chamado para

trabalhos informais, está sempre fazendo algo e gosta disso. Com o que ganha mantêm-

se sempre bem arrumado.

“Em geral, estou sempre fazendo uns bicos assim, é um dia, é uma semana, o que

vem eu pego, não quero saber, me regenerei muito, graças a Deus! A outra coordenadora

que trabalhava aqui gostava muito de mim, se apegou muito a mim, deu muito conselho,

me puxou pro lado do bem, ‘se regenere na vida, que você tem futuro, olho pra você

assim e você tem futuro’, então, mudei muito”.

Descreve-se como um cara pacato, compreensivo, que gosta de amizade, gosta de

compreensão e da verdade. Espera uma oportunidade de um emprego formal que lhe dê

estabilidade financeira para que possa alugar uma casa e sair do abrigo.

“Tudo de bom tem aqui, o que você imaginar tem, uma medicação se você

precisar, tudo isso. Mas aqui é, como você sabe, uma casa de passagem, não é pra morar

aqui uma vida inteira, tem que procurar um objetivo, eles ajudam dum lado, você corre

do outro, pode ficar parado não, e eu sou assim.”

É prestativo, sempre ajuda aos amigos do abrigo, quando algum deles adoece, ele

quem é chamado para ser o acompanhante no hospital, e tem orgulho disso, de ser, na

casa, a pessoa com a qual todos podem contar e confiar, algo que não conseguiu ser com

sua família.

“Eu menti muito, através da bebedeira, mas eu sempre gostei da verdade. Hoje eu

fico olhando assim, eu aprendi muito na vida, passei por muitas coisas ruins, a gente

passa mesmo, a pior coisa foi o desabrigo, quando eu acabei com tudo, em relação à casa,

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que a minha mãe pagou três anos de aluguel, depois disse, ‘-dê seus pinotes’-, que era

difícil pra ela. Fiquei na rua.”

É o que ele está tentando até hoje: Seguir em frente sozinho. “O que eu quero é tá

no meu canto. A casa me dá esse apoio, como dá aos outros, mas a gente tem que

procurar o da gente, isso aqui né pra eternidade não. Ainda que me dessem uns cinco

anos mais numa casa dessas, eu não queria, eu quero meu trabalho, um lar, deixar minha

vaga pra outro”.

Enquanto o sol se despedia de nós aproveitei para me despedir de Pedro,

agradeci e estendi minha mão para um cumprimento, ele recebeu. Sai de lá muda, mas

em pensamento, parafraseei a antiga coordenadora da casa: “se regenere na vida, que

você tem futuro, olho pra você assim e você tem futuro”.

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Sandro

Era maio, às sete e meia da manhã quando cheguei ao Centro Pop. Já havia

visitado o local outras vezes, mas não naquele horário. Um grupo de 25 ou 30 pessoas

aguardava a primeira refeição do dia. Os cumprimentei. Bom dia! Poucos responderam.

É a assistente social? Perguntou um deles. Não. E respondi quem era. Uma grade

separava os moradores em situação de rua e eu das dependências do centro, estávamos

em uma espécie de calçada/corredor. Todos animados, conversavam, sorriam e uma

dupla de mulheres dividia um tronco de cana de açúcar com os demais. Você quer?

Perguntou-me uma delas. Não. Obrigada. Onde você conseguiu? O cara ali nos deu.

E as moças, minoria -em número- no grupo, estavam vestidas de forma parecida,

shorts jeans grudado ao corpo e blusas de algodão estampadas e os rapazes de

bermudas de tactel e camisas também leves, mas alguns usavam calças. Com bolsas,

mochilas e sacolas nas costas ou encostadas na parede ou largadas no chão, eles

lembravam alguém que volta pra casa depois de uma longa viagem. O guarda do recinto,

que era mais uma espécie de porteiro do que guarda, convidou-me para entrar,

entretanto, recusei. Em pouco tempo o coordenador chegou e liberou a abertura da

grade. Foi solicitado então, que todos dispusessem em uma pequena mesa os objetos

perigosos que portavam.

Facas, facões, canivetes de variados tamanhos e formas foram pelos moradores e

moradoras retirados de suas mochilas e sacolas e revelados em cima da mesa. As

meninas que estavam com o tronco de cana embrulharam uma pequena faca em uma

camisa e a esconderam noutra sacola, se alguém mais além de mim percebeu o ato,

ignorou também. Depois disso, fiquei aguardando que tudo progredisse dentro da

normalidade.

Que tomassem café.

Que ganhassem seu material de higiene.

Que tomassem banho.

Se penteassem.

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Descansassem.

E até dormissem. Para que finalmente viessem falar comigo.

Já era quase onze da manhã quando *Sandro decidiu falar, naquele dia já havia

escutado várias histórias, o que tornou a dele interessante? Apenas a sinceridade

embutida em tudo o que ele dizia.

“Minha história de vida é muito simples, eu gosto de tomar cachaça todos os dias,

fazer amigo e também ajudar, assim, muitas pessoas que eu encontro. Eu olho carro para

arrumar um trocado para comprar minha cachaça, comprar minha maconha que é pra

esquecer a tristeza da vida que eu vivo. Que eu durmo na rua. Agora arrumei uma

companheira que é muito legal, que tá me ajudando, terminei de tirar meus documentos,

pretendo arrumar um emprego pra sair da rua.”

Sandro foi casado e teve quatro filhos com a mesma mulher, deixou sua casa há

quase dois anos, para levar uma vida que não desejava ter. O álcool lhe tira tudo, até as

sandálias. “Eu tou descalço, o chinelo eu perdi ontem, só que hoje, daqui pra de noite eu

arrumo outro, sem precisar gastar, nem roubar”, afirmou, parecendo contar com a

solidariedade de alguém para conseguir novos calçados.

Ele não é o único da família que experimentou a rua, a sua mãe foi a primeira, por

ter se viciado em crack, tornou-se moradora de rua, foi espancada e morta há oito anos

(2007), até hoje não se sabe quem a matou. Sandro entristece ao falar da mãe, sua voz se

amiúda, seu rosto contrai. “Eu acho que eu me afogo mais na cachaça, eu bebo mais com

falta de minha mãe também. Foi uma dor enorme.”, mas ao falar de seus filhos aparenta

um misto de orgulho e paz, “vejo eles, estão tudo estudando, tudo inteligente, tem dois

meninos e duas meninas”, e recita seus nomes como quem reza: “*Ramon, *Gabriel,

*Daiane e *Carol”.

Dependente de crack também, contou que usa a droga duas vezes por dia e que

pretende fazer tratamento para largar o vício. “É uma droga muito ruim.” Sandro nesse

momento se pôs a tossir, levou a mão à altura da boca e massageou o cavanhaque

recém-desenhado, conteve a tosse. “Só que eu me controlo, tem gente que não consegue

se controlar, passa o dia todinho usando, à noite esquece até de dormir”. Parecendo

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conhecer bem o mundo em que vive revelou ter medo da noite e que gostaria de possuir

um lugar seguro para o repouso noturno.

Sandro tem seus bons dias, que é quando está lúcido, assim trabalha guardando

carros, mas em seus dias piores, está embriagado e vagando pelas ruas. “A sociedade fica

muito assustada quando vê a gente, porque a gente tá embriagado. Aí pensa que a gente

vai tomar um celular dela, um dinheiro, porque a gente, pra não fazer isso, pra não

chamar a atenção da sociedade, dizer que a gente é mau, a gente pede: Arruma um

cinquenta centavos pra comprar um cafezinho? Mas só que o cafezinho, a gente diz logo,

o café é branco, é a cachaça, a gente não mente, a gente é realista, porque comida não

falta pra gente, é a noite todinha, comida, roupa, lençol, a gente não gasta com isso”.

Bem decidido sobre o que deseja para o futuro, os planos de Sandro cabem em

poucas palavras: Quer se tratar, ter um emprego, se estabilizar e ser voluntário no

Centro Pop. “Pra ajudar outras pessoas igual a eu, na minha situação, pra mostrar que

tem jeito, só basta querer”. Sandro quis posar pra foto exibindo seu braço, com inchaço

recém-adquirido em uma briga de rua.

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Maria

“A minha vida “foi” muito simples, nunca conheci a minha mãe verdadeira,

quando eu tinha um ano de idade meu pai me deixou com a minha tia- meu pai me deu à

minha tia... daí começou a minha revolta...”.

Conheci a moça que me contou essa história, quando fui à Casa de Passagem de

João Pessoa. Vou chamá-la de *Maria (22). Ao chegar naquele serviço, prontamente a

equipe da casa me recebeu, serviu café com biscoitos arredondados e tratou logo de

esclarecer que eu estava no local “errado”, que há algum tempo a Casa de Passagem

havia se transformado em Casa de Diagnóstico para Criança e Adolescente em

vulnerabilidade social, foi quando eu perguntei sobre a moça que estava lá na sala com

uma criança agarrada em seu colo, a Maria. De imediato explicaram que ela estava ali

por causa da criança que era muito pequena, mas era uma exceção, noutros casos, a mãe

em situação de desabrigamento deveria ficar na Casa de Acolhida Adulta, enquanto que

seus filhos, caso os tivessem, ficariam na Casa de Diagnóstico ou em outro abrigo

público. Mas compreendendo que Maria estava em situação de rua, pedi para conversar

com ela.

Então, a moça veio, trazendo a criança, que parecia fazer parte de sua vestimenta,

de tão agarrada que estava ao corpo da mãe.

“Eu chamo minha tia de mãe, pra mim ela é como a minha mãe, eu amo ela

demais, apesar das circunstâncias...”.

A mãe adotiva (tia) de Maria sempre viajava a trabalho e a deixava aos cuidados

de sua filha biológica, a *Alice. Entretanto, Maria conta que essa prima a deixava com

fome e a colocava de castigo por qualquer motivo, a agredia muito e até com urtiga.

Então, certo dia, chateada com mais uma surra que a prima pretendia lhe dar, resolveu

que a mataria.

“Eu tinha oito anos de idade, correndo dela, para ela não bater em mim dentro de

casa, me tranquei no quarto da minha mãe e fui para o banheiro que tinha lá, abri a

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gavetinha, no espelho, né, onde ficavam as escovas, e encontrei chumbinho, um frasco de

colírio cheio de chumbinho de rato, então, o que foi que eu fiz?”

Naquele momento, Maria desprendia o olhar em minha direção, mas pude ter

quase certeza de que ela nem me via, ela assistia àquela cena vivida há mais de dez anos.

“Aproveitei enquanto a minha prima foi tomar banho, porque ela sempre teve

essa mania de antes de comer deixar a comida esfriando na mesa, então eu pensei: ‘Ela

vai me pagar agora!’ Eu já cansada de tanto ser maltratada por ela. Coloquei o

chumbinho dentro do almoço. Ela comeu essa comida todinha, até o último arroz que

tinha, depois começou a passar mal. Não chamei socorro, não liguei pra ninguém, a sorte

foi que ela pediu ajuda a vizinha, então foi daí que começou, eu fugi de casa porque ela

disse a minha mãe que quando saísse do hospital ia me matar e eu não duvidava disso

não. Então, eu sai pra rua...”.

Maria explica que depois desse evento, estava sempre fugindo, ora aparecia, ora,

mandava notícias, ora, nem isso. Passou a perambular pelas ruas, mas na rua, viveu

momentos ainda mais difíceis.

“Fui pra rua e não ganhei nada não, só ganhei um abuso, fui abusada. Meu filho é

de um abuso, mas eu nunca rejeitei o meu filho, a gestação dele eu tive normal, tomei as

vacinas, fiz pré-natal, fiz tudo, o problema foi que eu era menor, tinha dezessete anos,

não tinha condição de ficar com ele, então, nessa hora, meu pai se aproveitou e me

tomou (o filho), entendeu?”.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2015), na Paraíba,

por dia, uma pessoa é estuprada. Mas a violência sofrida por Maria, nunca foi notificada,

pois, ela não foi à delegacia prestar a denúncia, é mais um caso invisível. São histórias

como a dela que fizeram o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização não

governamental, responsável pelo anuário, considerar tais estatísticas apresentadas

como “incompletas e inconsistentes”.

Maria disse que após o ocorrido, procurou sua mãe adotiva e contou tudo, mas

ninguém a levou a delegacia, nem para o hospital, nem para qualquer outro tipo de

apoio. Contou que teve que se recuperar do trauma, sozinha, entretanto, revela que ficou

deprimida e começou a beber e a usar maconha.

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“Já cheguei ao ponto, de querer morrer, sabe? De jogar tudo pra cima! Pra mim foi

muito difícil! Aí foi quando eu conheci o pai dessa criança que eu tenho agora,

entendeu?”.

Ela conta que conheceu seu atual companheiro na rua, e que só tem mais contato

com ele, por causa da criança, por quem ele é “apaixonado”, que ele trabalha limpando

carros, fuma maconha e é muito ciumento, chegou até a queimar suas roupas mais

curtas.

“Ele acha que me comprou em uma loja!”

Maria até gosta de ficar na Casa de Diagnóstico, onde ela e sua criança estão

protegidas dos perigos que a rua oferece, entretanto, seu maior desejo é sair dali e ter

um lugar somente seu.

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Maria Romarta Ferreira da Silva

Universidade Federal da Paraíba

Comunicação Social| Jornalismo

Trabalho de Conclusão de Curso

Grande reportagem (escrita)

Orientadora Drª Glória Rabay

Ilustração da capa: Vant Vaz

João Pessoa, PB, Novembro de 2015