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lutas

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  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    TEMPOS DE LUTAS:AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

    Nilma Lino Gomes(Organizadora)

  • 2Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da EducaoFernando Haddad

    Secretrio-ExecutivoJairo Jorge da Silva

    Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeRicardo Henriques

  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    Nilma Lino Gomes(Organizadora)

    TEMPOS DE LUTAS:AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

    Braslia2006

  • 4Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Tempos de lutas: as aes afirmativas no contexto brasileiro./ Nilma Lino Gomes(Organizadora). Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao eDiversidade. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de EducaoContinuada, Alfabetizao e Diversidade. 2006. 119p.

    ISBN 85-296-0039-8

    1. Negros. 2. Aes afirmativas. 3. Educao dos negros. I. Brasil. Secretariade Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade. II. Nilma Lino Gomes.

    CDU: 37(=96)

    Copyrigth 2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade(SECAD/MEC)

    Departamento de Educao para Diversidade e Cidadania Armnio Bello Schmidt

    Coordenao-Geral de Diversidade e Incluso Educacional Eliane Cavalleiro

    Coordenao editorial Ana Flvia Magalhes PintoEdileuza Penha de SouzaMaria Lcia de Santana Braga

    Organizao Nilma Lino GomesReviso e Diagramao Vivien Gonzaga e SilvaCapa: Arte contexto

    Tiragem 2.000 exemplares

    Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade - SecadSGAS 607, Lote 50, Sala 205CEP: 70.200-670 Braslia DFTelefone: (61) 2104-6183

    Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos, contidos nesse livro, bem comopelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da Secad/MEC, nem comprometens Secretaria. As indicaes de nomes e a apresentaodo material ao deste livronlao implicam amanifestao de qualquer opinio por parte da Secad/MEC a respeito de condio jurdica dqualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco de suas frinteiras oulimites.

  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    SUMRIO

    APRESENTAO ................................................................................................... 7

    1 PARTE: CON RNCIA DE ABERTURA

    O impacto poltico-econmico das aes afirmativas ............................................. 13Wania SantAnna

    2 PARTE: AES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADE PBLICA BRASILEIRA:PROPOSTAS IMPLEMENTADAS E EM ANDAMENTO

    Poltica de cotas raciais nas universidades brasileiras o caso da UERJ ..... 21

    Renato Emerson dos Santos

    Cotas na UFBA: de dilemas e tergiversaes .......................................................... 47Joclio Teles dos Santos

    A proposta de Cotas para negros/as na Universidade Federal de Alagoas:contemplando a raa e o gnero ............................................................................... 57Moiss de Melo Santana

    3 PARTE: AES AFIRMATIVAS, UNIVERSIDADE E EDUCAO BSICA:REFLEXES SOBRE A LEI 10.639/03

    A frica na sala de aula: recuperando a identidadeafro-brasileira na histria e na literatura ................................................................... 69Fernanda Felisberto

    Geografia, territrios tnicos e quilombos ................................................................ 81Rafael Sanzio Arajo dos Anjos

    GALERIA DE FOTOS DO SEMINRIO ...................................................................... 105

    OS(AS) AUTORES(AS) ......................................................................................... 115

    EQUIPE DO PROGRAMA AES AFIRMATIVAS NA UFMG (ANO 2005) ........................ 116

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  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    APRESENTAO

    Aes Afirmativas na UFMG um programa de ensino, pesquisa eextenso que congrega 13 professores e 50 alunos da graduao e da ps-graduao dessa universidade. Desde o ano de 2002, esse programa vemimplementando uma poltica de permanncia bem-sucedida, destinada a jovensnegros, sobretudo, aos de baixa renda, regularmente matriculados nos cursos degraduao da UFMG. Visa a oferecer-lhes instrumental que possibilite essapermanncia na universidade, a entrada na ps-graduao e, simultaneamente,propiciar-lhes uma compreenso mais ampla sobre questo racial na sociedadebrasileira, valendo-se de uma proposta pedaggica voltada para a valorizaoda cultura negra.

    O presente livro surge como desdobramento de uma das muitasatividades realizadas pelo programa: o segundo Seminrio Nacional Aes Afirmativasna UFMG: acesso e permanncia da populao negra na educao superior, ocorrido naFaculdade de Educao da UFMG, no dia 11 de novembro de 2004. Nele,esto registradas a conferncia de abertura e as palestras realizadas durante oevento, as quais foram transformadas em artigos pelos intelectuais que asministraram. Dessa forma, os textos aqui apresentados compreendem versesampliadas dessas palestras, discutindo e problematizando a temtica das aesafirmativas, de um modo geral, e seus impactos polticos, econmicos, sociais eeducacionais, que vo desde a implementao das cotas raciais Lei 10.639/03.

    Alm das palestras, o seminrio contou com a exibio do vdeoinstitucional Aes Afirmativas na UFMG: entre o projeto e o gesto, de autoria daprofessora Dra. Maria Aparecida Moura (ECI/UFMG), com a ajuda dos bolsistasde extenso Cynthia Adriadne Santos (FAE/UFMG), Natalino Neves da Silva(FAE/UFMG) e Shirley de Jesus Pereira (ECI/UFMG). Alm de ser resultadode um trabalho de formao acadmica, tecnolgica e intelectual dos alunos, umdos objetivos do Programa Aes Afirmativas na UFMG, o vdeo o registrodas experincias em dois anos de trabalho da equipe de professores(as) e alunos(as)do programa.

    Durante o seminrio, contamos com a participao de profissionaisda Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD/MEC) e de intelectuais negros da Universidade Federal da Bahia, UniversidadeFederal de Alagoas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e da ONGAfirma Comunicao e Pesquisa, que ministraram palestras, descrevendo eanalisando a implementao das cotas nas universidades pblicas e discutindotemticas referentes Lei 10.639/03, que versa sobre o ensino de Histria dafrica e de Cultura Afro-brasileira nos currculos da Educao Bsica.

  • 8A organizao desta coletnea segue a mesma do seminrio que aoriginou. Constitui-se, portanto, de trs partes. O artigo que abre o livro e figuracomo a primeira parte da coletnea refere-se conferncia ministrada por WaniaSantAnna. Nesse artigo, intitulado O impacto poltico-econmico das aesafirmativas, a autora conclui que todos ns temos uma imensa tarefa terico-conceitual a cumprir no que diz respeito s aes afirmativas, e no podemosnos furtar a assumir essa responsabilidade. Ela ressalta que essas aes possuemconseqncias polticas, acadmicas e econmicas que extrapolam o campo daeducao em nvel superior, alcanando, por exemplo: o mercado de trabalho especialmente nos postos de trabalho abertos diretamente pelo Estado e aspolticas de crdito as aes afirmativas possuem uma dimenso redistributivae um grande potencial de operar processos de desconcentrao de renda. Nessesentido, seus impactos no so apenas polticos. So tambm econmicos. Essarealidade precisa ser mais bem compreendida pelos intelectuais e pela sociedadebrasileira.

    O segundo momento do seminrio constituiu-se da mesa redondaAes afirmativas na universidade pblica brasileira: propostas implementadase em andamento. Foram apresentadas e analisadas trs experincias deuniversidades pblicas que j instituram as cotas raciais como polticas de acessode jovens negros na universidade: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ), a Universidade Federal da Bahia (UFBa) e a Universidade Federal deAlagoas (UFAL).

    O artigo Poltica de cotas raciais nas universidades brasileiras o casoda UERJ, de Renato Emerson dos Santos, abre essa segunda parte da coletnea.O autor analisa o caso da UERJ e a implementao pioneira das cotas raciais noBrasil. Santos analisa que, apesar de ter implementado a reserva de vagas porfora de leis estaduais, pela sua localizao, no Rio de Janeiro, e pelo fato de tercursos considerados de excelncia acadmica e altamente elitizados, a UERJacabou ocupando, no ano de implantao das cotas, o centro da polmica e dadiscusso sobre as cotas em escala nacional. O artigo problematiza o fato de queaes como consolidar as polticas de permanncia voltadas para a garantia daqualidade da formao acadmica, instituir um sistema abrangente e democrticode acompanhamento dos alunos cotistas, coletivizar esforos e provocar atransformao das lgicas excludentes de construo institucional so alguns dosdesafios atuais, no s da UERJ, mas, tambm, das universidades pblicas que jimplementaram as cotas raciais. E eles vm sendo enfrentados.

    Joclio Teles dos Santos enfoca, no artigo Cotas na UFBA: de dilemase tergiversaes, o modo como a discusso sobre as cotas se apresenta nasociedade brasileira, a resoluo da Universidade Federal da Bahia, no ms demaio de 2004, e as reaes dos professores durante o processo para a aprovaodas polticas de aes afirmativas. Segundo ele, o contexto analisado dever ser

    NILMA LINO GOMES

  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    pensado em um contnuo de representaes locais relacionadas aos pases globais,especialmente aos Estados Unidos.

    O terceiro e ltimo artigo dessa parte A proposta de cotas paranegros/as na Universidade Federal de Alagoas: contemplando a raa e o gnero tem autoria de Moiss de Melo Santana. O autor apresenta, analisa e descreveo Programa Polticas de Aes Afirmativas para Afro-descendentes no EnsinoSuperior na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), que constitudo de umconjunto de aes com o objetivo de contribuir com a eliminao dedesigualdades scio-raciais. Esse programa, dentro de suas aes, instituiu o sistemade cotas para a populao negra, oriunda de escolas pblicas, no preenchimentode vagas relativas aos cursos de graduao. O programa se estrutura em quatrosubprogramas: 1) Polticas de Cotas; 2) Polticas de Acesso e Permanncia; 3)Polticas Curriculares e de Formao de Professores; e 4) Polticas de Produode Conhecimento, os quais so coordenados pela Comisso Permanente doPrograma de Aes Afirmativas da UFAL.

    A terceira parte da coletnea refere-se ltima mesa-redonda realizadano seminrio nacional, com o tema central: Aes Afirmativas, universidade eEducao Bsica: reflexes sobre a Lei 10.639/03.

    No artigo A frica na sala de aula: recuperando a identidade afro-brasileira na histria e na literatura, Fernanda Felisberto discute a obrigatoriedadeda Lei 10.639/03, como resultado dos esforos de educadoras(es) epesquisadoras(es) brasileiros, por uma educao pluritnica. No caso especficodos alunos afro-brasileiros, a Lei e todo o processo por ela gerado poderocontribuir na construo de uma auto-estima positiva do alunado negro, j que,ao longo dos anos, a histria dos africanos e descendentes, em nosso pas, foicontada, e ainda pode ser assim encontrada em alguns livros, na perspectiva dolugar do dominado ou como contribuio cultural culinria, samba, capoeira eoutras manifestaes culturais. A autora analisa o importante lugar ocupado pelaliteratura. Segundo ela, o impacto da Lei 10.639/03 atravessa fronteirasgeogrficas brasileiras e serve de experincia positiva para alguns pases da AmricaLatina e Caribe. No entanto, uma Lei com esse carter, que muda de formaestrutural a viso eurocntrica construda nos espaos de elaborao e reproduode saberes, escolas e universidades, tem que abrir outros dilogos para ointercmbio, principalmente, com a frica, j que ainda h, em nosso pas, umacarncia muito grande de bibliografia disponvel. nesse contexto que ela localizae analisa a produo da literatura afro-brasileira.

    Rafael Sanzio Arajo dos Anjos, no artigo Geografia, territrios tnicose quilombos, visa a auxiliar na ampliao das informaes e do conhecimentosobre aspectos geogrficos da dispora africana e seu rebatimento na formaodo territrio e do povo brasileiro. Segundo o autor, a geografia a cincia doterritrio, e o territrio o melhor instrumento de observao do que est

  • contecendo no espao geogrfico. Ela expe a diversidade regional, asdesigualdades espaciais, as potencialidades da natureza e a heterogeneidade dapopulao. Essa a rea do conhecimento que tem o compromisso de tornar oslugares e suas dinmicas mais compreensveis, de dar explicaes para astransformaes territoriais e de apontar solues para as inconguncias eincompatibilidades espaciais.

    Como sempre fazemos em todas as publicaes do Programa,gostaramos de destacar as nossas parcerias e o apoio recebido de profissionaissensveis questo racial dentro e fora da universidade. So eles: a Pr-reitoriade Extenso da UFMG, a Fundao Universitria Mendes Pimentel, o CentroCultural da UFMG, a Faculdade de Educao da UFMG, a Escola de Cinciada Informao da UFMG, a Escola de Ensino Fundamental do CentroPedaggico da UFMG, a Fundao de Desenvolvimento da Pesquisa da UFMG,a Secretaria Municipal de Educao, a Fundao Centro de Referncia da CulturaNegra de Belo Horizonte e a Sob Distribuidora de Livros e CDs. Cada um, sua maneira, tm possibilitado a realizao do nosso trabalho. Agradecemos,tambm, ao Programa Polticas da Cor, do Laboratrio de Polticas Pblicas daUERJ que, com apoio da Fundao Ford, nos tem concedido o recurso financeiropara a implementao e realizao dessa experincia. Agradecemos, especialmente, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD/MEC), que possibilitou a publicao desta coletnea por meio do ProgramaDiversidade na Universidade.

    Finalizando, gostaria de registrar que a experincia do Programa AesAfirmativas na UFMG tem demonstrado que, com poucos recursos, mas commuita criatividade, compromisso, seriedade e dedicao, podemos ter resultadospara alm do esperado. o que revelam as experincias e os debates realizadosem nosso segundo seminrio nacional. Para tal, basta compreendermos que umatrajetria acadmica de sucesso um direito tambm do(a) aluno(a) negro(a) epobre, e no um privilgio das camadas mdias e altas. Quando analisamos oatual contra-ataque das elites conservadoras das universidades em relao s aesafirmativas, no podemos deixar de reconhecer a luta histrica e os avanos doMovimento Negro brasileiro. Hoje, as aes afirmativas so uma realidade noBrasil. No entanto, elas precisam se transformar em uma poltica pblica efetiva,extrapolando o lugar de iniciativa, projetos e programas de extenso. Elas precisamse transformar em polticas de Estado e num compromisso tico dos cidadose cidads brasileiros. Estamos lutando, a cada dia, para que essa realidade seconcretize.

    Nilma Lino GomesOrganizadora

    NILMA LINO GOMES

  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    1 PARTE: CONFERNCIA DE ABERTURA

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  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    O IMPACTO POLTICO-ECONMICO DAS AES AFIRMATIVASWania SantAnna

    Primeiro eu preciso fazer um registro. Eu gostaria que os leitores eleitoras fossem levados a acompanhar esta apresentao como a apresentaode algumas notas. O que quero dizer com isso? Quero dizer que so notas parauma reflexo coletiva que rene uma certa dose de experincia profissional nesse caso, de uma profissional que tem se dedicado a acompanhar a dinmicadas relaes raciais no Brasil , e tambm pessoal nesse caso, como membro(mulher) de uma comunidade que tem como experincia a vivncia do preconceito,da discriminao racial e do racismo.

    Nas duas situaes profissional e pessoal , me sinto particularmentetocada com o tom e o contedo dos debates em torno da implementao depolticas de ao afirmativa para a populao afro-descendente, no Brasil. Naminha opinio, o tom est, particularmente, aquecido. Isso no seria algo detodo negativo se no houvesse, nesse estado de aquecimento: primeiro, a tentativasistemtica de desqualificao dos argumentos apresentados por quem defendeas polticas de ao afirmativa; segundo, um claro desequilbrio entre o espaodedicado defesa das polticas de ao afirmativa e o espao dedicado aoataque nesse caso, os ataques tm obtido espao singularmente maior nosmeios de comunicao de massa, enquanto as defesas tm sido expressas,basicamente, em fruns, tais como seminrios e encontros voltados a umaaudincia dirigida; terceiro, o poder de influncia de formadores de opinio einstituies que, manifestadamente, se colocam favorveis e contrrios adoode polticas de ao afirmativa destinadas aos afro-descendentes; e quarto, ohistrico de atuao poltica e bagagem intelectual formal de membros dacomunidade negra para o enfrentamento desse debate.

    A bem da verdade, essa lista poderia ser ainda mais enriquecida.Relaciono esse conjunto apenas para iniciar, aqui, o nosso debate. Eu acreditoque cada um deles mereceria uma anlise cuidadosa de nossa parte. Nestemomento, eu tomo a ltima situao de constrangimento ao debate, o histricode atuao poltica e bagagem de intelectual formal de membros da comunidadenegra, apenas para ressaltar o seguinte: eu acredito que merece destaque o fatode estarmos, neste incio do sculo XXI, na posio de demandar um tratamentoespecial populao afro-descendente, populao que, no Brasil, possui umaparticular experincia de escravido, a experincia de populao escravizada.

    Alguns (ou muitos) podero dizer, com efetiva razo, que nsdemoramos muito a chegar a essa posio. De fato, elevar o debate sobrepromoo da comunidade afro-descendente, nesses termos transcorridos 116

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    anos de liberao do trabalho escravo , quase uma eternidade, toda sorte,esse momento reflete, tambm, a emergncia de um grupo que, a despeito detodos os constrangimentos sua formao educacional e poltica, pode se colocarna posio de questionar o que lhe reserva o futuro em termos de sua seguridadesocial, econmica e, tambm, poltica.

    Existe, sim, a emergncia de estratos mdios no interior da comunidadeafro-brasileira, estratos mdios que so conformados segundo, obviamente, oslimites que nos foram e nos so impostos, e que, nesse momento, foram odebate em torno das polticas de ao afirmativa. Existe, na minha opinio, uminconformismo sobre limites pr-impostos; existe uma contestao s idias sobrelugar adequado que se deve ocupar. Nesse caso, eu diria que os desejos demodernidade, de ascenso social e de qualificao da cidadania motivam asdemandas sociais, polticas e econmicas da populao afro-descendente, e esseaspecto do embate no deveria ser menosprezado ou minimizado em nossasanlises e em nossos debates.

    Os estudantes que ocupam reitorias, assemblias legislativas, ruas epraas pr-cotas, pr-polticas especiais de ingresso no possuem apenasquatro anos de estudos, eles possuem, pelo menos, onze anos de estudos equerem prosseguir a sua formao educacional. Na minha opinio, esses estudantesentendem, como vrios outros jovens com nvel de escolaridade semelhante,que ingressar e ocupar o mercado de trabalho em posio de competio exigeampliar o seu grau de qualificao, e que um dos caminhos para a qualificao o acesso formao de nvel superior, a graduao. Ou seja, aqui, ns podemosfazer uma inflexo e sublinhar o seguinte: os nossos jovens so, a exemplo dosdemais, tambm receptores das mensagens que, hoje, afirmam e re-afirmam asestratgias de ascenso social.

    O que nos espanta, a mim pelo menos, a percepo das opiniescontrrias s polticas de ao afirmativa de que essas mensagens no fossem, ouno pudessem ser, tambm, capturadas pela populao jovem e negra. Por queos nossos jovens haveriam de se contentar com a posio de assistente deenfermagem quando podem, legitimamente, imaginar ocupar a posio deenfermeiras e enfermeiros? Do ponto de vista analtico, no podemos deixar desublinhar que essa percepo limitada sobre o que os nossos jovens esperampara o futuro a projeo que fazem de seu futuro , em si, uma manifestaode preconceito que merece a nossa anlise terico-conceitual.

    Aqui, ns j podamos falar de impacto, impacto poltico e econmicodas aes afirmativas tal como sugere o ttulo desta exposio. No que dizrespeito, por exemplo, aos programas de ao afirmativa nas universidades especialmente nas universidades pblicas , impossvel negligenciar ou minimizaro seu impacto poltico e seu impacto econmico. No plano poltico, ns podemos

    WANIA SANTANNA

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    destacar, por exemplo, a oportunidade dos estudantes afro-descendentes teremacesso ao conhecimento. Conquistar o espao acadmico tem algo deessencialmente poltico. Alm disso, no caso brasileiro, essas instituies foramcriadas em um ambiente fundamentalmente poltico e tiveram, tambm, comogrande preocupao, a formulao de qual lugar a populao negra os afro-descendentes, os mestios deveria ocupar na sociedade ou, a bem da verdade,desaparecer na histria da nao.

    Sobre esse assunto sobre a histria de criao das universidades noBrasil , vale a pena a leitura do livro O espetculo das raas cientistas, instituies equesto racial no Brasil 1870-1930, de Lilia Moritz Schwarcz. O livro foi lanadoem 1993, mas continua extremamente atual e til ao nosso debate. Atual porquetemos, como o ttulo indica, a oportunidade de conhecer o pensamento e ospensadores que, em um momento crucial da histria do Brasil, imaginaram osnegros, e tambm os mestios, como um agrupamento que inviabilizava oprocesso civilizatrio brasileiro. Ou, como assinala a autora, em diversaspassagens do seu livro, a mestiagem existente no Brasil no s era descritacomo adjetivada, constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma possvelinviabilidade da nao (Schwarcz, 1993:13).

    Ento, acho particularmente genial que instituies como centros depesquisas, museus e faculdades especialmente as faculdades de Direito e deMedicina tenham sido, em sua criao, inspiradas por pensamentos e pensadorescomo esses, e que os estudantes negros, agora, um sculo e meio depois, queiramingressar nessas instituies.

    As instituies acadmicas, no Brasil, foram criadas sob forte estmulode um lugar reservado aos negros e aos indgenas; faz todo o sentido doponto de vista do contraditrio que seja exatamente por elas (instituies dopensamento e dos pensadores) que tenhamos, talvez, a oportunidade de dizer:basta!

    No quero dizer com isso que todos os afro-descendentes ingressosnas universidades tenham que, por obrigao, assumir causas ou processos dereviso, mas, sem dvida, esse aspecto da histria das instituies acadmicasmerece vir a pblico. Isso porque, no caso brasileiro, essa a histria dessasinstituies e de seus pensadores. E isso um assunto poltico.

    Objetivamente falando, foram essas as idias que deram prestgio aosquadros que ingressaram nas universidades, possibilitaram a entrada dessesquadros em crculos polticos, fortaleceram-lhes o sobrenome, legitimaram ospleitos que solicitavam, deram-lhes, por exemplo, a oportunidade de angariarhomenagens, amealhar nomes em praas, escolas pblicas, avenidas, ruas eviadutos... Enfim, todos esses smbolos que, na sociedade moderna, uma vezinstitudos e lidos, conferem autoridade e reverncia. Ou seja, um campo derealizao poltica.

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    Sobre o histrico das instituies de formao acadmica, vale, aqui,abrir um parntese e mencionar uma experincia norte-americana, em cursoneste momento, e de carter, de fato, excepcional. Trata-se da corajosa atitudeda Sra. Ruth Simmons, reitora da Brown University, que, em 2003, lanou umaudacioso projeto de investigao sobre o envolvimento dessa universidade comsistema escravista.

    A idia organizar eventos acadmicos, pesquisas e outras atividadesque, nas palavras da reitora, ajudem a nao e a comunidade universitria apensar profunda, sria e rigorosamente sobre questes tais como escravido ereparaes , questes, hoje, tambm segundo suas palavras, colocadas ao debatenacional. Ela justifica a iniciativa utilizando, entre outros argumentos, o fato de ainstituio a Brown University ter sido criada por benfeitores oriundos dosdois lados do sistema pioneiros abolicionistas e senhores de escravos , ouseja, um passado de ntima relao com a histria da escravido americana, eisso, segundo a Sra. Simmons, d quela comunidade universitria, portantoacadmica, uma oportunidade e uma obrigao especial de contribuio aodebate em andamento. Ou seja, quisramos ns, no Brasil, poder contar cominiciativas semelhantes.

    Enfim, estou convencida das mudanas no plano das idias que estosendo colocadas em pauta a partir desse nosso debate, qual seja, o debate sobreo ingresso de estudantes afro-descendentes no meio acadmico, ungindo poresse perfil de enfrentamento. Poucos tm mencionado o fato de esses estudantesestarem, acima de tudo, se organizando em torno de um direito. E isso temforte implicao sobre a futura gerao de afro-descendentes.

    Assim sendo, em muitas partes do mundo, esses estudantes poderiamser considerados como autnticos revolucionrios no sentido que esses secolocam na posio de questionadores de regras que, objetivamente, tmimpedido a ampliao de suas habilidades e potencialidades especialmente aspossibilidades e habilidades intelectuais. surpreendente que, nesse momento,esses jovens no sejam percebidos discursiva e politicamente sequer comoestudantes. Ao contrrio, tm sido percebidos discursiva e politicamente como um grupo interessado em burlar leis, contrariar pressupostos expressos naConstituio, usurpar direitos de alguns outros estudantes aqueles que, porposio de classe, teriam o direito no s de concorrer s vagas universitriascomo de ocup-las. importante registrar que esses estudantes, os afro-descendentes, no esto pleiteando um ingresso sem exame, sem prova, sem aexperincia sofrvel do vestibular. No postulam um ingresso direto, uma admissodireta, mas a reserva de vagas mediante a aprovao em um exame. Na minhaopinio, isso algo para alm de sutileza.

    Questionar as regras de ingresso tem algo de essencialmente poltico.Os educadores que viveram a dcada de 1970, hoje j maduros profissionalmente,

    WANIA SANTANNA

  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    no deixaram de lembrar a movimentao estudantil em torno dos problemasrelacionados aos limites de vagas nas universidades pblicas daquela poca. Ento,porque aqueles grupos de estudantes podiam, quela poca, ser percebidos comopoliticamente coerentes e lcidos em seus pleitos e, hoje, os estudantes afro-descendentes no podem e no so percebidos dessa forma? O que os tornadiferentes dos estudantes daquela gerao?

    Um documento elaborado pelo Ministrio da Fazenda, e divulgadono site desse Ministrio no ano passado (2003) Gasto social do Governo Central2001-2002 , informava que 70% do gasto direto do governo central comeducao e cultura havia sido destinado ao ensino superior, e que as despesasrelacionadas a esse nvel de formao beneficiavam indivduos que se encontravamentre os 10% mais ricos da populao. Em outras palavras, esses percentuaisrevelam uma evidente restrio de acesso educao superior, francamentedeterminada pela renda insuficiente de parcela considervel das famlias brasileirase, especialmente, das famlias negras. O problema est no fato de o conjunto dasociedade brasileira vir a contribuir para que uma parcela privilegiada do pontode vista de sua renda, de seus rendimentos, usufruam desse benefcio.

    A divulgao desses dados causou muita polmica. Foi vista comouma possibilidade de se instituir a cobrana por esse servio ou, em outraspalavras, o fim do ensino pblico de nvel superior. Ultrapassando esse aspectoda polmica, eu gostaria de apontar o fato de as polticas de ao afirmativa nasuniversidades pblicas brasileiras serem, em grande medida, uma poltica decarter essencialmente redistributivo. Sendo verdade, como aponta o documentodo Ministrio da Fazenda, que os custos anuais de um estudante de graduaono sejam inferiores a 9 mil reais ao ano, significa dizer que o ingresso dacomunidade afro-descendente, dos estudantes afro-descendentes, emuniversidades pblicas, acarreta a transferncia de um valor substantivo de recursosque, de outra maneira, esto, nesse momento, sendo transferidos a uma parcelade perfil econmico muito distinto.

    Tambm estou convencida de que este um dos incmodos: as aesafirmativas para o ensino universitrio implicam uma poltica de redistribuiode renda. No estamos falando, exatamente, de Bolsa Famlia ou do repassede 45 reais ao ms s famlias que mantm os seus filhos nas escolas pblicas.Ns estamos falando de um volume de recursos significativamente maior e que,ao mesmo tempo, passa de uma mo outra, de um grupo a outro. Isso impacto econmico nas duas pontas, para aqueles que no tm e podem, dessaforma, passar a ter, e para aqueles que tm, e que, talvez, precisem, nesse caso,aloc-los na obteno de uma formao de nvel superior. Ento, no me admiraa gritaria revestida de um discurso supostamente moral, envolvendo mrito eoutros argumentos de natureza semelhante.

    Os dados do Censo 2000, divulgados pelo IBGE, revelando que apenas2,4% da populao autodeclarada parda e 2,1% da populao autodeclarada

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    preta haviam concludo o ensino de nvel superior, enquanto os brancos, comesse mesmo nvel de formao, atingia 9,9% ou seja, uma taxa cinco vezesmaior que as registradas para a populao negra , no chega, nesse caso, a serum problema moral, ou irracional, quando est em jogo uma poltica efetiva deredistribuio de renda. E isso compreensvel em um pas que exibe, segundoos bons estudos do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), os nveismais surpreendentes de concentrao de renda do planeta.

    Enfim, extrapolando, no plano econmico, ns podemos especularsobre as conseqncias da instituio de aes afirmativas em outras temticasque no apenas a educao de nvel superior, por exemplo, o mercado de trabalho especialmente nos postos de trabalho abertos diretamente pelo Estado; crdito e, nesse caso, poderamos citar apenas aqueles relacionados aos recursosdisponibilizados pelo Estado. Enfim, levar s ltimas conseqncias a dimensoredistributiva das aes afirmativas, e o potencial que elas tm de operar processosde desconcentrao de renda. Estou convencida, tambm, que todos ns temosa uma imensa tarefa terico-conceitual a exercer, e no podemos nos furtar aassumir essa responsabilidade.

    WANIA SANTANNA

  • TEMPOS DE LUTAS: AS AES AFIRMATIVAS NO CONTEXTO BRASILEIRO

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    2 PARTE: AES AFIRMATIVAS NA UNIVERSIDADEPBLICA BRASILEIRA: PROPOSTAS IMPLEMENTADAS

    E EM ANDAMENTO

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    POLTICA DE COTAS RACIAIS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS O CASO DA UERJ

    Renato Emerson dos Santos

    O debate sobre a democratizao racial da sociedade brasileira passa,neste incio do sculo XXI, pela entrada dos negros na universidade. Fruto daatuao do Movimento Negro brasileiro, a centralidade dessa agenda promoveainda o fato de que a democratizao da universidade, hoje, passa tambm pelodebate sobre a diversidade. Assim, a elitizao e a necessidade do ingresso depopulaes subalternizadas, no mbito de nossas hierrquicas relaes sociais, setornam temas obrigatrios, tambm pela atuao do Movimento Negro.

    Esse quadro veio sendo construdo a partir dos anos de 1990, atravsda difuso, em escala nacional, dos pr-vestibulares populares. Esse processoteve como ator central o movimento Pr-Vestibular para Negros e Carentes(PVNC), criado em 1993, em So Joo de Meriti, que chegou a contar, no finaldaquela dcada, com mais de 80 ncleos espalhados por toda a RegioMetropolitana do Rio de Janeiro. O PVNC no somente denunciou a elitizaoeconmica e racial da universidade brasileira, como tambm difundiu um formatoinstitucional de movimento (baseado no trabalho voluntrio, na autogesto e naausncia de compromissos financeiros) com alto poder de replicabilidade, euma forma de ao social baseada no cruzamento de agendas de discusso quepermitiu uma capilarizao social do discurso anti-racismo (que desmascara omito da democracia racial na sociedade brasileira), at ento circunscrito aosmovimentos negros e setores restritos da academia (Santos, 2003).

    Essa difuso da discusso racial, articulada problemtica da inclusono ensino superior, criou um contexto no qual se fortaleceu a idia da construode polticas pblicas voltadas para o acesso qualificado de negros na universidade,o que veio a culminar na criao de polticas de reserva de vagas para negros hoje um debate nacional. H, no final do ano de 2004, quatorze universidadespblicas com polticas de cotas raciais voltadas para negros j aprovadas,1 emtodas as regies do pas. So universidades federais e estaduais, cujas polticas decotas foram definidas atravs de deciso de seus conselhos superiores ou de leisestaduais (casos do Rio de Janeiro e Minas Gerais), em diferentes estgios deimplementao (algumas com as cotas j implementadas e j com alunosestudando; outras em implementao, com ingresso de alunos beneficiadosprevisto para 2005; e outras com as cotas aprovadas, mas ainda em estgio deregulamentao e com ingresso previsto somente para 2006) e com diferentesacmulos sobre suas experincias.

    Esse movimento nacional tem como signo emblemtico o caso daUERJ, que foi, com a UNEB e com a UENF, pioneira na implementao dascotas, com o ingresso de alunos beneficiados pela poltica, a partir do ano de

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    2003. Apesar de ter implementado a reserva de vagas por fora de leis estaduais,pela sua localizao no Rio de Janeiro, e pelo fato de ter cursos considerados deexcelncia acadmica e altamente elitizados, a UERJ acabou ocupando, naqueleprimeiro ano, o centro da polmica e da discusso sobre as cotas em escalanacional.

    As primeiras leis que definiram as cotas na UERJ

    A definio da poltica de reserva de vagas segundo critrios raciais naUERJ, com todos os seus percalos, elucidativa de como avana a construode polticas pblicas voltadas superao das desigualdades raciais no Brasil. uma longa caminhada que tem, como traos marcantes, a luta incansvel doMovimento Negro, a capilarizao social e institucional de seus militantes, asresistncias polticas e institucionais, alm da vitria mais pelo constrangimentodo que pela conscientizao dos setores dominantes. A guetificao das iniciativas,das entidades, dos militantes e das idias do campo da luta anti-racismo, atravsde estratgias discursivas que tm a negao, o silenciamento e o recurso recorrentes teses da perversidade, ameaa e futilidade (sistematizadas por Hirschmannn,1992), vem aos poucos sendo rompida.

    O processo de preparao da Conferncia Mundial contra o Racismo,realizada em Durban em 2001, foi decisivo para a transformao desse quadro.O governo brasileiro teve de se posicionar diante da presso internacional acercadas desigualdades raciais que persistiam, no pas, desmentindo o mito dademocracia racial , criando um contexto e esferas institucionais que permitiramaos movimentos negros denunciar e propor polticas.

    Tal situao fortaleceu os movimentos negros, cuja luta tensionou nosomente o governo federal, mas, tambm, os governos estaduais, bem como osrepresentantes do poder legislativo nessas duas escalas. O mais significativoresultado dessa insero foi a criao de uma lei estadual instituindo cotas raciaisnas universidades pblicas vinculadas ao governo do estado do Rio de Janeiro(Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ; e Universidade Estadualdo Norte Fluminense UENF). Essa medida colocou a democratizao doacesso universidade como ponto central das polticas sociais, instaurando umnovo paradigma que aponta para a desconstruo do status quo, ao contemplaros grupos desfavorecidos, atravs da reverso dos processos de fortalecimentodesigual que perpetuam e autorizam sua subalternizao.

    Emblemtica dos impactos alcanados pela capilarizao de militantesdo movimento negro em diversas entidades e instncias de atuao, a lei que deuorigem s cotas raciais na UERJ foi gerada a partir de um projeto enviado por

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    um parlamentar cujo partido tinha um assessor com destacada atuao no campodas lutas anti-racismo. Esse assessor sugeriu a medida e o parlamentar, ainda quesem envolvimento com a temtica racial anterior ou posterior lei que eleprprio props!!! , submeteu o projeto, aprovado por unanimidade pelaAssemblia Legislativa e sancionado pelo governo do estado, na forma da Lei3.708, de 9 de novembro de 2001, que instituiu 40% das vagas para negros epardos.2 A aprovao da lei foi marcada, portanto, por um protagonismo domovimento negro submerso numa capitalizao dbia por parte do governodo estado: os ento mandatrios se apresentavam, mais do que o prprioparlamentar que props, como os pais da poltica, ao mesmo tempo em quesilenciavam em relao ao veto imposto ao tpico que determinava aresponsabilidade do governo do estado na alocao de recursos para aimplementao de medidas visando a garantir a permanncia dos alunosingressantes pelo sistema de cotas; silenciaram-se, tambm, quando da emergnciade polmica e contestaes em mbito nacional contra a implementao dapoltica.

    Essa lei, que institua a reserva de parte das vagas da universidade porcritrios raciais, na verdade, veio a se somar e se sobrepor a outra, que definia areserva de metade das vagas da universidade a estudantes egressos do sistemapblico de ensino bsico a Lei 3.524, de 28 de dezembro de 2000, que reservava50% das vagas a estudantes que tivessem cursado integralmente os ensinosFundamental e Mdio em escolas pblicas. Essa lei orientava uma inovao noVestibular da UERJ que, no mdio prazo, visava a modificar a prpria relaoentre a universidade e o sistema de ensino bsico, com a gradativa construo deum sistema de avaliao continuada da trajetria escolar dos candidatos oriundosdo sistema pblico ou seja, que as possibilidades de ingresso desse aluno nofossem definidas a partir de um exame, mas sim de vrios realizados ao longodo ensino mdio.3 Foi, para isso, implementado um sistema que dividia as vagasda universidade em dois vestibulares: um voltado para os alunos egressos darede pblica, chamado SADE (Sistema de Acompanhamento de DesempenhoEscolar), e outro voltado para os estudantes que tivessem cursado pelo menosparte de seus estudos, nos nveis Fundamental e Mdio, na rede privada,denominado Vestibular Estadual.

    Para compatibilizar as duas leis, uma que determinava o preenchimentode 50% das vagas por estudantes oriundos do sistema pblico do estado do Riode Janeiro, e outra que determinava o preenchimento de 40% das vagas pornegros e pardos, foi institudo o Decreto 30.766/2002, que regulamentava a leide reserva de vagas segundo critrios raciais, definindo que essas vagas fossempreenchidas da seguinte forma: primeiro verificava-se a quantidade deautodeclarados4 negros e pardos classificados para cada carreira, no mbito do

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    SADE; em seguida, as vagas faltantes para completar os 40% eram preenchidaschamando-se outros candidatos autodeclarados negros e pardos, tanto no mbitodo SADE quanto do Vestibular Estadual, a importando a classificao relativainterna ao grupo dos autodeclarados, e no sua classificao geral. Com isso,salvo uma situao em que houvesse dentro do SADE uma quantidade de negrose pardos suficiente para atender reserva, em todos os cursos com grandeprocura haveria mais de metade das vagas relacionadas ao preenchimento dascotas. Voltaremos a isso mais adiante.

    Alm dessas duas leis, no incio do ano de 2003, foi sancionada a Lei4.061, que reservava 10% das vagas de universidades pblicas do estado a alunosportadores de deficincia. Em meio polmica ento j instaurada, e com umaclara campanha contrria s cotas, chegava-se a dizer que todas as vagas dauniversidade seriam preenchidas por cotas!!! Seriam somadas todas as cotas,50% + 40% + 10% = 100%! Isso era dito mesmo aps a definio da forma decompatibilizao apontada no Vestibular para 2003.

    As resistncias em relao s cotas apareciam tanto dentro dauniversidade quanto fora dela ela. Dentro da comunidade acadmica, muito sealardeou o fato de a poltica ter sido definida por lei estadual, mobilizandocomo argumentos centrais: (i) o ferimento autonomia universitria, e (ii) que oprocesso era anti-democrtico, definido de cima pra baixo ou de fora pradentro.5 Isso nos alerta para dois aspectos: primeiramente, em certa medida, eno observados os processos polticos de construo dessas leis, tais argumentosrepresentam uma crtica representatividade da classe poltica eleita pelo votopopular!; em segundo, e de outro lado, diante da fora da construo institucionalde nossa sociedade, torna-se efetivamente dificultoso implementar uma polticadessa envergadura (que envolve a transformao de valores enraizados) sem umdilogo com a comunidade e sem um trabalho de mobilizao e sensibilizaoinstitucional apontando para uma significao positiva das transformaesderivadas da iniciativa. Isso vale para qualquer forma de definio da poltica seja por fora de lei ou por deciso interna da instituio , mas, quando ela aplicada por uma deciso externa comunidade acadmica, torna-seimprescindvel, por conta da mobilizao do argumento do ferimento autonomiauniversitria que deixa de ser apenas um princpio a ser defendido e passa arepresentar um signo identitrio, que neutraliza, enfraquece ou minimiza inclusiveas foras polticas internas favorveis medida.

    O Vestibular 2003, as polmicas e o deslocamentoda reao para o campo jurdico

    A preparao do Vestibular 2003 se deu, portanto, sob o signo deuma polmica na qual se sobressaam as reaes internas que aludiam, sobretudo,

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    a uma pretensa ineficcia da poltica que apontava que ela incide no lugar erradodas tenses e da produo das hierarquias sociais e a uma incorreo no processode sua definio evocando uma falta de dilogo com a comunidade universitriaacerca da questo. Entretanto, quando da divulgao dos resultados do vestibular,a polmica ganha outros contornos, instaurando-se em outras esferas e assumindoum grau de publicizao que, at ento, em poucos (talvez nenhum) momentosda histria republicana do pas havia sido conferido questo racial. Diversossetores se mostraram, ento, reativos a uma poltica que, em ltima anlise,introduzia critrios sociais na definio do acesso a recursos pblicos escassos.

    A divulgao dos dados sobre os resultados do primeiro vestibularcom cotas na UERJ, em 2003, em muito potencializou tais resistncias. A formacomo os dados foram divulgados, sem um tratamento e uma mais complexaexposio das diferentes situaes de cada curso, pela universidade, permitirama extremizao de argumentos que contradiziam no os resultados, mas, emltima anlise, a prpria natureza da poltica! O alarde feito em relao s baixasnotas de alunos ingressantes por cotas em alguns cursos, por exemplo, umacrtica natureza das cotas, que tratar desigualmente os desiguais, portanto,implica em aceitar, na universidade, candidatos com diferentes bagagens deformao e, assim, tambm com patamares de notas distintos. Com efeito,candidatos que ingressam pela reserva de vagas com notas inferiores s de outrosque disputam vagas no reservadas no refletem problemas, distores ouinjustias do sistema, mas sim, a prpria razo de sua existncia! Caso as notasdesses candidatos beneficiveis pelos sistemas (tanto oriundos de escolaspblicas quanto negros) fossem semelhantes ou superiores s dos outros, a reservano seria um artifcio necessrio.

    O ingresso de estudantes com pontuao entre 4,0 e 7,0 (em 110,0pontos possveis) em 10 cursos6 torna-se, portanto, nessa leitura, uma questopara soluo posterior, dentro da universidade, atravs da mobilizao de esforospela permanncia qualificada e pela correo de eventuais distores de formaoque esses alunos tragam do ensino mdio. Os dados que passam a ser relevantesso: quantos alunos tiveram notas muito baixas e quais as disciplinas quecontriburam para o rebaixamento de suas notas no vestibular. Tais dados soimportantes para a prpria formulao de polticas de fortalecimento dessesalunos aps ingressarem na universidade.

    Outro dado que foi amplamente explorado foi a quantidade de alunoscotistas em relao ao total de vagas tanto no tocante ao conjunto da universidadequanto ao total, em alguns cursos especficos. No conjunto da universidade,63,5% dos candidatos estavam inseridos em algum dos critrios de cotas (ver oQuadro 1, no final do texto). Esse percentual variou de curso para curso: no

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    Direito, por exemplo, que foi o curso com maior nmero de mandados desegurana impetrados por candidatos que se sentiram injustiados, foram apenas52% das vagas preenchidas por cotistas (Csar (2004), Anexo Tabela 01). Namedicina, foram 69,5%, e no Desenho Industrial, 77,7%. Segundo Csar (2004),que trabalha com dados fornecidos pela prpria UERJ, na maioria dos cursos,as cotas no abrangeram 50% das vagas, sendo que, em cinco deles, no chegarama 20% Engenharia Cartogrfica, Engenharia Mecnica, Pedagogia (Caxias),Estatstica e Matemtica (ver o Quadro 2, no final do texto).

    Outro aspecto importante que no foi realado no debate o fato deque nem todo estudante cotista foi beneficiado pelas cotas. Ou seja, h estudantescotistas que ingressariam independentemente da reserva de vagas, habilitadospela sua pontuao caso concorressem no vestibular tradicional. O Quadro 1nos mostra que, dos 63,5% ingressantes cotistas, 22,3% (praticamente um tero)ingressariam sem a reserva, ou seja, so considerados cotistas, computados parafins de preenchimento das vagas reservadas e atendimento s leis, mas no forambeneficiados.

    Tais ponderaes, entretanto, passaram ao largo do debate pblico. Oque se sobressaa era que as cotas ferem o princpio do mrito, as cotas voinstaurar conflitos raciais dentro da universidade, a qualidade acadmica vaicair, em suma, o sistema de cotas institucionaliza injustias! Assim, mesmotendo sido esclarecido nos editais do vestibular, o sistema de cotas foi alvo deuma campanha de mdia, com notcias, editoriais, artigos de opinio, cartas deleitores, enfim, com uma massa de informaes contrrias e, muitas vezes,colocadas de forma a pr sob suspeita a imparcialidade que se espera da imprensa.No raro, eram veiculadas notcias cujo ttulo depunha contrariamente ao sistema,e cujo contedo trazia informaes cuja leitura apontava aspectos positivos.Artigos de opinio e depoimentos apresentados chegavam a conclamar candidatosa fraudarem o sistema, sobretudo de cotas raciais, sugerindo que todos seautodeclarassem negros afirmando que, no Brasil, diante do histrico processode miscigenao, todos poderiam se afirmar afro-descendentes, numabiologizao de um debate que aponta para a raa como um fato social, marcadopor uma relao de interao na qual o reconhecimento torna indivduosportadores de traos fenotpicos especficos suscetveis discriminao que produzhierarquias e desigualdades sociais.

    O processo de polemizao pela mdia bastante distorcedor eclaramente parcial contrrio s cotas, foi, na verdade, a expresso da reao desetores que eram contrrios s mudanas apontadas pelo sistema. Reclamartambm faz parte do jogo democrtico! Esse jogo, alis, se estendeu para outrasarenas, sobretudo a jurdica, mobilizando diversos atores e podemos afirmarque o deslocamento dos debates acerca da implementao da reserva de vagas

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    (sobretudo pelo critrio racial) para o campo jurdico, campo marcado pelapouca difuso do acmulo sobre a temtica, foi um aspecto crucial no caso daUERJ. Com efeito, no obstante a existncia de polticas de reserva de vagas emdiversas esferas da sociedade,7 a implantao da poltica de cotas para negros, naUERJ, provocou reaes de setores contrrios que promoveram uma verdadeirajuridicizao do debate. Tal padro de comportamento reativo, portanto, noincide de maneira semelhante em todos os casos de aplicao do princpio dotratamento desigual para os desiguais, que orienta as aes afirmativas. O casoda UERJ lapidar, e, baseando-se nele, muitos militantes do Movimento Negrochegaram a afirmar que o problema no so as cotas, mas sim, a cor das cotas.Destacaremos trs reaes nesse plano.

    Primeiramente, muitos candidatos que se consideraram injustiadospelo sistema mesmo apesar de esclarecidos pelos editais de que poderiam noobter vagas reservadas para as cotas buscaram no jurdico sustentao para oingresso na universidade. Foram impetrados 263 Mandados de Segurana (comgrande concentrao no Direito, com 85, e na Medicina, com 70), por candidatosque se sentiram prejudicados alguns, inclusive, cujas notas no eram suficientespara a seleo segundo os critrios tradicionais, mas que eram superiores s dealgum aluno beneficiado pelas cotas.8 O cerne da argumentao era quase sempreo desrespeito ao princpio constitucional da igualdade. Algumas dessas liminaresforam inicialmente concedidas, e, posteriormente, suspensas atendendo aoapelo da universidade, que via na chuva de liminares uma ameaa sua seguranae ordem pblica.

    Em segundo houve, tambm, dentro do espectro das reaes s cotas,no plano jurdico, o questionamento da constitucionalidade do sistema de cotaspelo deputado estadual Flavio Bolsonaro, atravs de duas representaes diretasde inconstitucionalidade junto ao Tribunal de Justia do Rio de Janeiro. Mas, aterceira, e talvez a mais significativa disputa no plano jurdico mesmo queainda no decidida foi com a entrada, pela Confederao Nacional dosEstabelecimentos de Ensino (CONFENEN, sindicato patronal dos donos deescolas particulares), de uma Ao Direta de Inconstitucionalidade junto aoSupremo Tribunal Federal, a mais suprema corte do pas. Consideramos maissignificativa porque ela permitiu, de maneira inexorvel, o deslocamento, noprprio campo do jurdico, do plano do direito individual para a esfera dosdireitos coletivos, atravs da interveno do Movimento Negro oito entidadesse articularam em torno de um grupo de advogados e, atravs da mobilizaoda figura jurdica do amicus curiae (que evoca a idia do interessado na causa queauxilia a corte na sustentao de determinada tese jurdica em defesa de interessespblicos que sero indiretamente afetados pela deciso), ganharam

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    reconhecimento como atores representantes do direito de uma coletividade. Esseprecedente vem tendo importantes desdobramentos, pois, mesmo a causa notendo sido julgada,9 o exemplo vem sendo seguido por diversas outras entidadescomprometidas com a defesa da democracia como um valor a servio decoletividades excludas, no pas.

    A criao de uma nova Lei de cotas

    A conjuno das reaes externas com as resistncias internas,confrontadas a uma grande presso social exercida no somente pelas entidadesdo Movimento Negro e outros setores representativos da sociedade civil, mastambm pelo aumento da conscincia social sobre a operao de mecanismosde excluso baseados em diferenas raciais e da necessidade de implementaode polticas para combat-las , fez com que, j no ano de 2003, ainda sob ocalor do ingresso da primeira turma do vestibular com sistema de cotas, secosturasse uma articulao entre a direo da universidade, o governo do estadoe setores do Movimento Negro, em torno da construo de uma nova lei, queunificasse e modificasse as leis anteriores que definiam as cotas. Ou seja, havia, deum lado, uma presso social que determinava que as cotas deveriam existir, e deoutro, setores preocupados em extingui-las ou, minimamente, cont-las (esse o melhor termo diante do debate que surgiu evocando o princpio darazoabilidade, que acusava, por seus defensores, um percentual consideradomuito alto de vagas ocupadas pelas cotas ainda que o nmero de vagasefetivamente preenchidas por candidatos beneficiados por elas fosse menor queisso), e requisitavam o estabelecimento de um novo patamar.

    Foi dentro desse clima, muito mais marcado pelas reaes do que poravaliaes consistentes do sistema afinal, no se pode julgar algo que sequerteve tempo de produzir impactos que fossem testados e avaliados , que foiconstituda a Lei 4.151, de 04 de setembro de 2003, que limitou em 45% onmero mximo de vagas a serem preenchidas pelas cotas, assim distribudas:20% para estudantes oriundos da rede pblica de ensino (no mais integralmente,mas, pelo menos, o ensino mdio), 20% para negros e 5% para pessoas portadorasde deficincia e integrantes de minorias tnicas. Na verdade, ela reservou 55% devagas para os no cotistas!

    A nova lei trouxe, efetivamente, mudanas substanciais em relao santeriores, alm dos percentuais menores e claramente limitados. Primeiramente,ela ps fim sobreposio: um candidato no pode mais concorrer a doistipos de cotas, ou, numa leitura inversa, ser contabilizado no preenchimento dedois tipos de cotas ele deve escolher a qual delas vai concorrer. No vestibular2003, um candidato oriundo do sistema pblico de ensino e autodeclarado negro

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    era contabilizado para fins de preenchimento das vagas do SADE e tambmdas cotas raciais. Agora, ou ele disputa os 20% das vagas para alunos oriundosde escolas pblicas, ou os 20% das vagas reservadas para negros.

    Em segundo lugar, o conceito de negros se tornou mais conciso e, aomesmo tempo, abrangente: no se fala mais de pardos e negros, mas somentede negros que, agora, em consonncia com os rgos oficiais e com o MovimentoNegro, unificam pretos e pardos. A vantagem argida foi de que, com essa novadenominao, aqueles brancos que poderiam se autodeclarar pardos, mas queno possuem os traos fenotpicos mobilizados na discriminao racial, no seautodeclarariam negros. Apenas o fariam aqueles pardos e pretos que efetivamentej foram ou tm a probabilidade de serem discriminados dentro do padro derelaes raciais brasileiras. Isso ainda um tanto subjetivo, mas, o argumentoganhou fora na medida em que, na experincia do vestibular 2003, setoresfavorveis e contrrios s cotas se manifestaram afirmando que havia fraudes candidatos brancos se autodeclarando pardos e at negros para auferir o benefciodas cotas.10

    Um terceiro aspecto, crucial nessa redefinio das cotas, a introduodo corte de renda na definio dos beneficirios das cotas. O texto da nova leiaponta taxativamente a categoria estudantes carentes. O patamar de rendamximo para caracterizao da carncia deve ser estabelecido pelas prpriasuniversidades. No primeiro ano de aplicao da lei, no Vestibular 2004, a UERJadotou o corte de R$300,00 per capita na famlia para definio dos beneficirios.A adoo do critrio renda na distribuio das cotas teve como objetivo garantiro acesso ao benefcio para aqueles que tm, pela baixa renda, maior dificuldadede preparao escolar e piores condies sociais de competio no vestibular.Portanto, nasceu sob a gide da busca de uma maior justia ao no favorecernem estudantes de classe mdia de escolas pblicas mais elitizadas nem negros.Decorrem, entretanto, algumas questes dessa aplicao. A primeira questo, naverdade um problema pelo qual a UERJ j foi confrontada no seu primeiro ano, que ela eleva o nmero de estudantes que ingressam na universidade semcondies financeiras de arcar com os custos de aquisio do conhecimento quea eles so delegados materiais diversos, alimentao, transporte, etc. Issoampliou, j em 2004, a responsabilidade da universidade na construo de polticasde fortalecimento econmico desses alunos para viabilizar a sua reteno e evitara evaso. Diante de um problema que se mostrou grave desde o incio da aplicaodesse critrio, a universidade, imediatamente, redefiniu os patamares mximosde renda: no Vestibular para 2005 o corte de renda R$520,00 per capita nafamlia.

    Mais do que isso, a definio do corte de renda tem uma implicaopoltica fundamental para a sociedade brasileira (e, mormente, para a luta social

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    do Movimento Negro), visto que, tanto no uso do corte racial quanto do corteeconmico, no se est apenas introduzindo um critrio de aferio debeneficirios, mas est em jogo tambm a recomposio de identidades coletivasque orientam, sobretudo, as relaes raciais em nosso pas. Cabem aqui algumasnotas acerca desse aspecto, pois ele mobiliza argumentos como a tese da ameaa(Hirschmann, 1992), segundo a qual as cotas seriam mote para a criao deconflitos sociais, tanto dentro da universidade quanto fora dela, entre candidatosbeneficiados e prejudicados.

    A poltica de cotas para negros, ao significar positivamente a negritude,toca num dos mais significativos e complexos princpios de hierarquizao dasnossas relaes sociais no cotidiano, que a questo racial. Complexo, acima detudo, por no operar homogeneamente em todas as esferas, espaos e momentosconstitutivos das interaes, relaes e do tecido social brasileiro: a existncia derelaes raciais horizontais na esfera da vida privada (que , paradoxalmente,onde o racismo como valor orientador de comportamentos se reproduz) convive,em nossa sociedade, com a produo e reproduo de desigualdades baseadasem raa, o que evidencia a existncia tambm de relaes raciais marcadas pelaassimetria e verticalidade (Sansone, 1996; Telles, 2003).11 A ideologia dademocracia racial e um conjunto de leituras acadmicas que secundarizam araa como princpio produtor de hierarquias e desigualdades na nossa sociedade funciona(m) como suporte(s) manuteno das verticalidades atravs do realceconferido s (por vezes supostas, por vezes reais) horizontalidades existentes emmomentos e esferas especficas e/ou espordicas dos campos e espaos de nossotecido social cujo mais corriqueiro exemplo a aluso a um parente ou amigonegro quando algum acusado de praticar a discriminao racial. Sobre talreportamento, est construda uma imagem da sociedade brasileira como aquelaque, em contraposio americana, no possui conflitos raciais uma paz queestaria ameaada pela substantivao racial, segundo alguns, inventada, segundooutros, operada pela poltica de cotas.

    O complexo jogo de horizontalidades e verticalidades nas relaesraciais brasileiras atribui ainda mais complexidade aos impactos e s reaes poltica de cotas quando do cruzamento do critrio de renda. Isso porque,primeiramente, esse cruzamento atenta e reala a existncia de verticalidadesinternas ao grupo dos negros, atravs do corte de renda, excluindo os negrosdas classes mdia e alta do acesso ao benefcio das vagas reservadas ainda que,em relao aos brancos de classe mdia e alta, estes no mantenham relaeshorizontais na totalidade de sua experincia social, visto que tambm sofrem oracismo e a discriminao em diversos espaos e momentos de sua formao etrajetria social conforme nos iluminam as passagens anteriores do texto deSansone.

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    Por mais que devamos ser cautelosos e no confundir identidade comidentificao, e nem com o procedimento de autodeclarao,12 esse processo impactaconsideravelmente as identidades raciais de brancos e no-brancos na sociedadebrasileira, e lhes remete a uma releitura da forma como indivduos e grupos serelacionam. Auto-identificao, heteroidentificao e sentimento de pertencimentoso afetados. Jovens impedidos do benefcio das cotas podem ter o seu sentimentode pertencimento a grupos excludos fragilizado ainda que, por exemplo, jtenham vivenciado a experincia da discriminao, afinal, absolutamente inegvelque negros de classe mdia tambm so discriminados. Todo o processo emcurso de significao positiva da negritude13 pode ser fragilizado no cotidianoda universidade pela falta desse sentimento de pertencimento introduzido atravsdesse diferenciado acesso ao benefcio, tanto para jovens negros quanto paraaqueles oriundos do ensino pblico e de outras minorias como deficientes.14Eu no tenho nada a ver com isso: um jovem que tem negado seu acesso aum benefcio social coletivo cujo fato gerador tambm o acomete, ao ingressarna universidade atravs do mecanismo que , no senso comum, chamado desistema meritocrtico, pode negar seu pertencimento coletividade, sobretudodiante do acionamento de mecanismos discursivos constrangedores de umasignificao positiva da poltica de cotas.

    Esses aspectos tornaram a nova lei das cotas um texto controverso epolmico entre os diferentes setores do Movimento Negro podemos at arriscarque, nesse caso, predominam aqueles que so contrrios ao novo desenho.

    A mobilizao da universidade eas polticas de permanncia

    Em meio aos acalorados debates no seio da comunidade acadmica,no primeiro semestre letivo do ano de 2003, ingressaram na universidade osprimeiros estudantes cotistas. A primeira idia que emerge quando se pensano ingresso de estudantes cotistas a de que vo entrar na universidade alunoscom um perfil radicalmente distinto daquele que a ocupava, um perfil de alunosque ela no tinha. Isso, no caso da UERJ, uma meia-verdade: portanto, umameia-inverdade tambm! Como? A universidade j tinha, em considervelquantidade, alunos de baixa renda, oriundos do sistema de ensino pblico. Hduas diferenas ento: primeiro, at aquele momento, esses alunos se concentravamnos chamados cursos de baixo prestgio social, aqueles cujo vestibular menosconcorrido e que projetam, no futuro, menores salrios mdios;15 segundo, aentrada desses alunos, agora, marcada por um trao diferenciador no seuprocesso de acesso, o que permite tanto a sua estigmatizao quanto a politizaode sua presena e a produo de processos de transformao institucional apartir disso, possibilitando a construo de uma poltica diferencialista que

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    caracterizaria uma ao afirmativa. Tentaremos analisar brevemente como sedesenrola o processo.

    A Reitoria da UERJ, preparando-se para a implementao do sistemade cotas, criou, em 2002, uma comisso para elaborar um diagnstico da situaodos alunos e da universidade, e que apontasse tambm necessidades e propostaspara garantir a permanncia dos novos alunos no ano seguinte. Essa comissocontou, alm de professores e funcionrios da universidade, com representantesdos movimentos do campo dos pr-vestibulares populares, atravs do PVNC eda ONG Educafro (Educao e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes). Acomisso, valendo-se dos censos realizados pela universidade, ressaltou as seguintesconstataes como base para a constituio de suas propostas:

    - a universidade j contava com significativo nmero de alunos comrenda insuficiente para enfrentar os desafios e necessidades colocadospelos cursos universitrios, e esse nmero vinha aumentando nosltimos anos. Um exemplo era o aumento do ingresso anual dosalunos oriundos de famlias com renda mensal at cinco salriosmnimos o nmero havia passado de 843 estudantes, em 2001,para 1.140, em 2002, e estimava-se que se aproximaria de 1.500,em 2003;

    - naquele momento, 31,9% dos alunos da universidade pertenciam afamlias cuja renda era de at oito salrios mnimos. Alm disso,corroborando a tendncia de aumento do ingresso de estudantesmais pobres na universidade, entre 1997 (ano de realizao doprimeiro censo) e 2002, o percentual de alunos com renda familiarde at quatro salrios mnimos subiu de 8% para 10,7%;

    - a maioria dos alunos da universidade, j naquele momento, eramos primeiros de suas famlias (ou, membros da primeira geraodelas) a ingressarem em cursos de nvel superior. Apenas 36,4%dos pais e 29,6% das mes dos alunos da universidade j tinhamcursado nvel superior;

    - em 2002, portanto, antes da reserva, cerca de 30% dos alunos dauniversidade se autodeclaravam negros ou pardos.

    Tomando esses dados como prioritrios, a Comisso elaborou umconjunto de propostas que estruturariam um plano para a permanncia dosestudantes, a ser executado pelo Programa de Apoio ao Estudante (PAE). Aspropostas apresentadas algumas foram executadas tal qual a verso original,outras sofreram alteraes e adequaes, e outras no foram executadas, por

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    dificuldades de mobilizao interna ou, principalmente, por falta dos aportesexternos esperados foram as seguintes:16

    - criao de 1.500 bolsas exclusivas para alunos do primeiro ano,com renda familiar de at 5 salrios mnimos. Desse pblico, amaioria seria composta por alunos do SADE, autodeclaradosnegros. Os estudantes deveriam, segundo a proposta inicial, estarengajados em projetos de ensino, pesquisa ou extenso nauniversidade. Posteriormente, a comunidade acadmica considerouque o envolvimento de alunos recm-ingressos em projetos depesquisa poderia ser prematuro, e isso foi substitudo pelaparticipao em atividades acadmicas extra-curriculares;

    - aumento contnuo das bolsas j existentes taxa de 700/ano, portrs anos consecutivos, a partir de 2004. Esse aumento gradativodaria ao aluno carente uma boa chance de se manter, nos anosseguintes, em condies de concorrer s bolsas por seleoacadmica, visto que as 1.500 aludidas acima contemplariam apenasseu primeiro ano de formao;

    - concesso de 1.700 pacotes de tquetes transporte/alimentao porano, a partir de 2003, para alunos que no tivessem sidocontemplados com nenhum tipo de bolsa. A manuteno dosauxlios seria condicionada freqncia no curso: se o estudantefosse reprovado por falta, perderia os tquetes. Essa medida nochegou a ser implementada;

    - oferta, para qualquer aluno da UERJ, independentemente de rendafamiliar, de disciplinas instrumentais no obrigatrias: matemtica,portugus, informtica e ingls, em aulas nos trs turnos defuncionamento da universidade. A dificuldade de alocao da cargahorria docente para esse trabalho fez com que ele fosse, em 2003e tambm em 2004, ainda bastante restrito;

    - atualizao e informatizao das dezoito bibliotecas da UERJ, comaquisio de 7 mil exemplares/ano;

    - reestruturao da orientao acadmica, de modo a oferecer maiorapoio, em sistema de tutoria, inicialmente pensado para atender aosalunos com dificuldades de aprendizagem. Esse trabalho vem sendoiniciado para todos os alunos cotistas bolsistas, com professores decada departamento acompanhando, inclusive, a participao dosalunos bolsistas em atividades acadmicas extra-curriculares.

  • 34

    O Programa de Apoio ao Estudante, definido para executar taispropostas, foi ento orado em pouco mais de doze milhes e seiscentos milreais para o ano de 2003, dependendo de recursos que deveriam provir dogoverno do estado. Como, de tais recursos, apenas parte foi liberada e commuita luta, negociao e presso poltica no s da universidade, mas tambmde entidades dos movimentos sociais junto ao governo , o Programa foiexecutado apenas parcialmente, e a luta pela liberao de mais recursos continua.Entretanto, cabe uma reflexo sobre os marcos lgicos que estruturam oPrograma.

    H, na estrutura do Programa, algumas diretrizes que, podemos dizer,a um s tempo se complementam e se contradizem. De um lado, hmarcantemente uma indicao construo de processos de transformaoinstitucional, implcitos na reestruturao de bibliotecas, laboratrios de informticae, sobretudo, na oferta de disciplinas e na orientao acadmica. Tais medidasso de fortalecimento da instituio mas, tambm, apontam mudanas na lgicade construo institucional, podendo chegar a significar mudanas curriculares,incorporao permanente de demandas na carga horria docente paraacompanhamento dos alunos (at numa possvel vinculao institucionalizada deensino e pesquisa na trajetria dos discentes), etc. De outro lado, o mesmoPrograma aponta como fonte nica de recursos o governo do estado, e tomacomo bases do diagnstico que sustenta as suas propostas as informaessobre os alunos, e pouco sobre a prpria estrutura e funcionamento da instituioem sua complexidade. Esses dois aspectos revelam uma subjacente tendncia aencarar a poltica das cotas como uma externalidade: (i) os problemas que aoriginam so externos universidade (deteriorao do ensino pblico nos nveisFundamental e Mdio, alm do racismo que est presente em toda a sociedade,e no a elitizao da prpria universidade atravs de um afastamento histricoem relao realidade daqueles nveis de ensino e a construo de modelos deingresso, cujo signo emblemtico o vestibular, que funcionam como eficazesmecanismos de seleo social, e no somente seleo escolar); (ii) os problemasque dela derivam so externos instituio (so os alunos que so fracos, e asaes visando sua permanncia devem se concentrar neles e no em mudanasda lgica de construo institucional da prpria universidade); e (iii) as fontes desolues so externas investimentos que vm de fora, contrariando o que oprprio plano desenhado pela comisso j anuncia, que a mobilizao derecursos materiais, financeiros, humanos e intelectuais da prpria universidade!

    A tenso se estabelece, portanto, logo de sada, na definio do quantoda rotina e da estrutura da universidade tero que ser alterados e transformadospelo ingresso dos estudantes cotistas. Cada membro da comunidade acadmica(docente, discente ou servidor tcnico-administrativo) que contrrio poltica,

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    quando convencido de que ela irreversvel diante das presses sociais que seestabelecem, desloca o centro da sua resistncia da negao das cotas para a noalterao da estrutura e do cotidiano da universidade. O primeiro passo paraisso a despolitizao da nova presena. Isso feito dentro desses processospolticos de negociao que caracterizam o cotidiano da universidade como umpacto social de extrema complexidade atravs de uma tendncia que ainvisibilizao dos alunos cotistas. Essa invisibilizao que, primeira vista (e nosdiscursos da direo da universidade),17 aparece como uma saudvel medidacontra a estigmatizao dos alunos em seu cotidiano, tem como efeito colaterala recomposio das identidades coletivas dos alunos ingressantes. Se, no vestibular,eles eram autodeclarados (negros ou pardos, portanto, cotistas raciais), vestibulandosdo SADE (portanto, cotistas de escolas pblicas) e/ou vestibulandos do Estadualno-negros (portanto, no-cotistas, aqueles que entraram por mrito), o cortede renda nas polticas de permanncia provoca a diviso entre carentes e nocarentes, com a desracializao de sua presena (central para os ingressantes pelosistema de cotas raciais) e com a emergncia de um novo grupo identitrio: odos estudantes de baixa renda.

    Com efeito, no vestibular do ano de 2003, a aplicao das duas leis dereserva de vagas no previa o atendimento a cortes de renda na definio dosbeneficirios dos sistemas de cotas. Ingressaram, tanto nas cotas para estudantesoriundos de escolas pblicas, quanto nas cotas raciais, e inclusive no vestibularestadual, estudantes de variados nveis de renda, com variados nveis denecessidades materiais ou acadmicas. As propostas definidas pela comisso,que deram origem ao PAE, entretanto, trabalham com a categoria carente, deacordo com o corte socioeconmico. Isso define algumas marcas na construodessa poltica:

    - primeiramente a desracializao das polticas de permanncia, coma emergncia da categoria carente como base para definio dogrupo beneficirio, define uma poltica de cunho assistencialista ede base universalista, e assim impede a possibilidade de construode uma poltica diferencialista que caracterizaria uma ao afirmativa;

    - esse tom influencia os tipos de fortalecimento centrais na polticade permanncia da universidade: fortalecimento econmico, atravsdas bolsas; fortalecimento instrumental e acadmico, atravs dasdisciplinas complementares e atividades extra-curriculares;

    - impede-se, dessa forma, a possibilidade de um trabalho deconscientizao poltica dos alunos acerca dos processos de exclusosocial que geram a prpria poltica que os beneficiou, e so silenciadasas possibilidades de reconstruo das estruturas de saberes que

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    compem a universidade. Mudanas curriculares, incorporao denovas temticas atravs da valorizao das experincias histricas esociais dos grupos que ingressam atravs das cotas, tudo isso suprimido pela adoo da categoria carente, que trabalha com aidia de que a renda uma varivel social independente, e noatrelada a mecanismos de excluso baseados em outros princpiosde diferenciao e hierarquizao, como a raa.

    Desconstri-se, dessa maneira ou, melhor colocando, restringe-se ainiciativas pontuais e localizadas , a possibilidade de construo de uma polticade ao afirmativa como poltica diferencialista que evoca necessariamente atransformao da instituio. Essa tendncia, que j se anunciava hegemnica, nombito do PAE, continua dominante no novo programa voltado para pensar aspolticas de permanncia dos estudantes, criado em 2004, o Programa de IniciaoAcadmica (PROINICIAR). Apesar de apresentar flagrantes avanos em relaoao PAE, fruto da consolidao de aprendizagens obtidas naquela experincia, oPROINICIAR no chega a ser uma poltica diferencialista. Os avanos so,sobretudo, alm (i) das conquistas polticas no tocante ao aumento do nmerode bolsas junto ao governo do estado (1.300 atualmente), (ii) a diretriz demobilizao e articulao institucional visando ao aproveitamento de recursos ede trabalhos potenciais e j existentes no seio da comunidade acadmica, (iii) acapilarizao dos esforos em torno das polticas de permanncia junto sunidades acadmicas e departamentos, o que permite (iv) trabalhar buscandoatender s dificuldades especficas de cada curso e, assim, (v) o vnculo dofortalecimento dos alunos transformao institucional.

    O PROINICIAR nasceu, dessa forma, atravs do dilogo entre a novadireo18 da Sub-Reitoria de Graduao e as diferentes unidades acadmicas, emque se buscou um diagnstico das necessidades e dificuldades especficas dosalunos ingressantes e, ao mesmo tempo, um mapeamento de possibilidades dedinmicas de trabalho por cada unidade visando qualificao e ao fortalecimentodos estudantes cotistas. Desses dilogos, o Programa foi construdo sobre trseixos: o Eixo das Disciplinas Instrumentais, o Eixo das Oficinas e o Eixo Cultural.Tendo a Sub-Reitoria de Graduao como articuladora, os dois primeiros eixosso executados pelas unidades acadmicas, a partir de suas possibilidades e ofertas,enquanto o eixo Cultural fruto de parceria com a Sub-Reitoria de Extenso eCultura este ltimo eixo contempla sesses comentadas de filmes, idas a teatro,salas e concertos e espetculos variados, visitas a museus e participao em gruposde arte popular.

    Alm desses trabalhos visando permanncia, executados pela Reitoria,e que, por conseguinte, se lanam a um olhar global da universidade, h iniciativaspontuais que tambm apontam exemplos e possibilidades e, assim, contribuem

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    com outras aprendizagens no processo. Destacaremos, aqui, pela nossa insero,o Projeto Espaos Afirmados, vinculado ao Programa Polticas da Cor (do qualsomos coordenadores) do Laboratrio de Polticas Pblicas.

    O Espaos Afirmados (ESAF) um projeto de permanncia queatende a alunos das reas de Educao e Humanidades da primeira turma decotistas do ano de 2003, e conta com suporte financeiro da Fundao Ford. Oprojeto tem seu trmino previsto para o final de 2004, tendo iniciado seu trabalhocom os alunos cotistas ingressantes na universidade no primeiro semestre letivode 2003/1 no ms de junho. As atividades contemplaram um total de 156 alunos,selecionados entre 396 candidatos.

    Os trabalhos foram concentrados em quatro linhas principais:fortalecimento acadmico, fortalecimento instrumental, fortalecimento poltico-cultural e o acompanhamento monitorial (ver Quadro 3, Estrutura Lgica doProjeto Espaos Afirmados, no final do texto). O ESAF, diferentemente do quepreconizam quase todos os discursos sobre a construo de polticas depermanncia para alunos cotistas, no oferece bolsas, ou seja, no trabalha pela escassez de recursos com o fortalecimento econmico dos alunos. Foramoferecidos cursos, realizadas palestras, debates, oficinas de teatro e cinema, mostrade filmes com discusso sobre os mesmos, visitas, etc. Tais linhas foramperpassadas por uma diretriz fundadora, de incentivo ao protagonismo dosalunos atravs do estmulo sua insero em dinmicas de produo. Nessesentido, os alunos foram estimulados a produzir uma pgina WEB do projeto confeco que se encontra em andamento atravs do Curso de ComunicaoDigital , e um Boletim Impresso, j com um nmero editado.

    Tais atividades tm tido como efeito potencializar a qualidade nagarantia da permanncia desses estudantes, para o qu a coeso criada entre eles,em torno do projeto, vem sendo um trao fundamental. De fato, a sala doESAF se transformou numa referncia de aglutinao dos alunos do projeto sendo freqentada tambm por outros estudantes cotistas , contribuindo naformao de laos e redes de solidariedade que so estratgias fundamentaispara a sua permanncia na universidade.

    Como desdobramentos desse trabalho, alm do baixo ndice de evasodos alunos do projeto, temos a criao de uma Comisso de Alunos Cotistaspelos alunos do ESAF e a sua ativa participao, junto a outros coletivos deestudantes negros de outras universidades, na construo futura de um EncontroEstadual de Estudantes Negros.

    Em termos acadmicos, os alunos do Espaos Afirmados vmdemonstrando o quanto um projeto de permanncia ainda que comsignificativas limitaes frente ao que pode e deve ser feito pode transformara sua trajetria. Com efeito, as linhas de fortalecimento que o projeto ofereceu

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    constituram no somente suporte para a reteno dos alunos, mas, tambm,instrumentos para que estes superassem as barreiras e os choques que se lhesapresentam quando do ingresso na universidade. Os resultados so louvveis:entre os alunos contemplados pelo projeto, 88% tiveram, no primeiro semestrede 2003, aprovao em todas as disciplinas que cursaram. No segundo semestredaquele ano, esse ndice foi de 82%.

    Talvez o mais significativo resultado quantificvel do ESAF tenha sido,at o momento, a insero de 36 alunos em projetos de pesquisa e extenso(com bolsas), na universidade e fora dela. Alguns destes o foram atravs decontatos realizados pelas respectivas coordenaes junto ao ESAF, demonstrandono somente a qualidade alcanada na formao desses alunos, mas tambm oreconhecimento institucional que o Espaos Afirmados vem conseguindo junto comunidade acadmica da UERJ.

    Esses dados, de um lado, permitem estabelecer a comparao entre odesempenho acadmico de estudantes no cotistas com cotistas, e discernir, dentrodesse grupo, o comportamento de estudantes cotistas com um programa deapoio e permanncia frente queles que no dispem de tal suporte. No obstantetal comparao ser animadora, ela prpria revela uma das limitaes aindaprementes no processo de implementao das cotas na UERJ: a no consolidaode um sistema aberto, amplo e abrangente de acompanhamento da implementaoda poltica. Cabem, nesse sentido, algumas notas sobre aspectos cruciais.

    A fluidez e contrariedade das informaes que a universidade vemapresentando para a comunidade tem se mostrado um ponto nodal no debateatual, inclusive provocando reaes de entidades do Movimento Negro. Emdezembro de 2003, um relatrio foi lanado pela coordenao do PAE edivulgado na imprensa, apontando (nos nmeros do primeiro semestre) que,com base em trs variveis (Coeficiente de Rendimento, ndices de Evaso eNmero de Alunos com Aprovao em todas as Disciplinas), o rendimentoacadmico dos cotistas apresentava-se superior ao dos no-cotistas. Em meadosde 2004, entretanto, outro relatrio, lanado pela Sub-Reitoria de Graduao(trabalhando tambm com os nmeros de 2003), com base em uma varivel(ndice de Aprovao por Nota), apontava um rendimento inferior dos cotistasem relao aos no cotistas. Esse segundo relatrio afirma taxativamente ainadequao das variveis utilizadas no relatrio anterior para acompanhar eavaliar o comportamento e a trajetria acadmica dos estudantes cotistas. Isso grave porque define: (i) a contrariedade nas avaliaes de que, a segunda temconseqncias avassaladoras tanto no plano interno UERJ, com o reforo estigmatizao cotidiana e a imposio de constrangimentos aos alunos cotistas,acusados de baixar o nvel da instituio, quanto no plano externo, servindo de

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    instrumento argumentativo contrrio replicao da poltica de cotas em outrasuniversidades; e (ii) a falta de um sistema de acompanhamento e avaliao slidona instituio, que seja capaz de extrapolar a observao dos alunos (o que acabapor reificar a idia de que seu eventual fracasso responsabilidade deles, porsuas distores de formao e deficincias de toda sorte econmica, social,educacional, cultural, etc.) e abarque tambm o comportamento da instituio,quais as suas reaes, seus esforos e resultados decorrentes, consolidando valoresque apontam para sua responsabilidade na eficcia e qualidade dessa poltica ede seus desdobramentos.

    Para no concluir

    A experincia da implementao do sistema de cotas na UERJ algoque deve ser mais observado e explorado analiticamente, pois serve comoexemplo lapidar para a replicao dessa poltica no momento atual, em que elaest sendo difundida por todo o pas. Ela mostra que no basta definir a polticade reserva de vagas: os desafios se avolumam quando de sua implementao,pois o alcance social inerente a ela em muito extrapola a universidade e suavinculao com os outros nveis do nosso sistema educacional. H processos efenmenos polticos e sociais cruciais para a construo do projeto nacional emjogo e a questo da supresso das desigualdades raciais emerge como elementocentral, nesse sentido. A forma como tais polticas so desdobradas no interiorda universidade evidenciam percursos de uma complexa negociao que , naverdade, a reestruturao de pactos sociais, em torno de diferentes caminhospara a democratizao real da sociedade.

    Os avanos so flagrantes, e mais flagrante ainda que cada avanocoloca novos desafios. Consolidar as polticas de permanncia voltadas para agarantia da qualidade da formao acadmica, capilarizar, com qualidade ecomplexidade, a discusso por todas as instncias de construo da universidade,mobilizando e coletivizando esforos e provocando a transformao das lgicasexcludentes de construo institucional, bem como construir um amplo,abrangente e democrtico sistema de acompanhamento da implementao dapoltica so alguns dos desafios atuais. E eles vm sendo enfrentados.

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    QUADRO 1 VESTIBULAR UERJ / 2003

    DISTRIBUIO PERCENTUAL DO TOTAL DE VAGAS OCUPADAS NA CLASSIFICAO

    oacifissalCedopiT

    laudatsE EDAS latoT

    satsiverpsagav()584.2=

    satsiverpsagav()584.2=

    satsiverpsagav()079.4=

    sodaralcedotuA

    oautnoP 40,31 70,4 11,71

    avreseRsodrap/sorgen 67,6 - 67,6

    EDASavreseR - 42,61 42,61

    latoT 08,91 13,02 11,04

    sodaralcedotua-oN

    oautnoP 25,63 58,5 73,24

    EDASavreseR - 25,71 25,71

    latoT 25,63 73,32 98,95

    latoT 33,65 76,34 00,001

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    QUADRO 2 VESTIBULAR UERJ / 2003

    PERCENTAGEM DE CANDIDATOS COTISTAS POR CURSO

    87,77 lairtsudnIohneseD 22,04 aigolocisP

    75,96 anicideM 02,93 acisF

    05,26 acimuQairahnegnE 00,93 aifosoliF

    78,06 oirtuN 05,73 siebtnoCsaicniC

    00,06 OIR-sacigloiBsaicniC 05,73 acimuQ

    38,55 oartsinimdA 82,53 OIR-aigogadeP

    00,55 acitmrofnI 57,33 olanoGoS-sarteL

    33,35 OIR-acinceMairahnegnE 05,33 OIR-acitmetaM

    05,25 omsilanroJ 33,33 laicoSoivreS

    03,25 otieriD 05,23 aifargonaecO

    76,15 aigolotnodO 00,23 edneseR-oudorPedairahnegnE

    00,05 siaicoSsaicniC 76,13 olanoGoS-aigogadeP

    00,05 megamrefnE 92,92 olanoGoSaifargoeG

    46,84 acirtlEairahnegnE 05,72 olanoGoS-sacigloiBsaicniC

    05,74 liviCairahnegnE 00,52 olanoGoS-airtsiH

    05,74 sacilbPsealeR 00,52 olanoGoS-acitmetaM

    00,74 setrA 33,32 aigoloeG

    17,54 sacimnocEsaicniC 05,22 saixaC-IaigogadeP

    00,54 acisFoacudE 05,71 acifrgotraCairahnegnE

    00,44 OIR-aifargoeG 52,61 JRPI-acinceMairahnegnE

    00,44 OIR-airtsiH 05,21 saixaC-IIaigogadeP

    33,34 OIR-oudorPedairahnegnE 31,8 acitstatsE

    27,14 OIR-sarteL 00,0 saixaC-acitmetaM

  • 42

    QU

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    Referncias bibliogrficas:

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    SANTOS, Renato Emerson dos. Racialidade e novas formas de ao social: o Pr-Vestibularpara negros e carentes. In: Santos, Renato Emerson dos; Lobato, Ftima. Aes Afirmativas:polticas pblicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.

    TELLES, Edward. Racismo brasileira: uma nova perspectiva sociolgica. Rio de Janeiro:Relume-Dumar: Fundao Ford, 2003.

    Notas:1 So elas: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Estadual do

    Norte Fluminense (UENF), Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Universidadede Braslia (UnB), Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade Estadual deMato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Federal do Paran (UFPR), UniversidadeFederal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de So Paulo/Escola Paulista de Medicina(UNIFESP/EPM), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade do Estado

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    de Minas Gerais (UEMG), Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES),Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT). H, ainda, o caso da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),que no reserva vagas, mas atribui pontuao adicional aos estudantes egressos de escolaspblicas e para negros, em seu vestibular.

    2 O texto da referida Lei dizia, em seu artigo 1: Fica estabelecida a cota mnima de at 40%(quarenta por cento) para as populaes negra e parda no preenchimento das vagasrelativas aos cursos de graduao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJe da Universidade Estadual do Norte Fluminense UENF.

    3 A idia era implementar quatro fases de avaliao, sendo trs nos primeiros semestresletivos da 1a, 2a e 3a sries do ensino mdio, e a quarta no segundo semestre letivo da 3asrie. Como isso dependia de recursos suplementares do governo do estado, e essesrecursos no vieram, foi adotado apenas um vestibular, em duas fases, no ltimo ano.

    4 O procedimento utilizado pela UERJ para identificar os beneficirios da poltica de cotasraciais foi a autodeclarao dos prprios candidatos, o mesmo utilizado pelo IBGE paraa gerao das estatsticas oficiais. Vale a ressalva, entretanto, de que as categorias utilizadaspelo IBGE so diferentes daquelas apontadas na Lei 3.708: o rgo utiliza pretos epardos, cuja proximidade dos indicadores socioeconmicos permite que sejam somadose classificados como negros. Negros, para o IBGE, so, portanto, a soma de pretos epardos, e no sinnimo de pretos como sugere a referida Lei.

    5 Nilcia Freire, ento reitora da UERJ, comentando o processo de instaurao das leis,coloca que, em ambos casos, as contribuies da UERJ, documentadas por meio depareceres encaminhados ALERJ [Assemblia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro],no foram incorporadas s leis (Freire, 2004:72).

    6 Os cursos aludidos, de menor pontuao mnima no vestibular 2003, foram CinciasBiolgicas (So Gonalo), Engenharia Civil, Engenharia Mecnica, Engenharia de Produo(Resende), Engenharia Eltrica, Fsica, Matemtica (So Gonalo), Odontologia, Pedagogia(Caxias) e Ci