teoria geral do processo (prof. pascarelli) revisado 2013

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1 TEORIA GERAL DO PROCESSO PROFESSOR FLÁVIO PASCARELLI JURISDIÇÃO. CONCEITO. CARACTERÍSTICAS. ESPÉCIES. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. ESCOPOS. ELEMENTOS. PODERES CONCEITO. O conceito de jurisdição tem por base a tripartição das funções do Estado. Como se sabe, o Estado exerce a soberania por meio de três funções: legislativa, administrativa e jurisdicional. Por isso, convém estabelecer em quais aspectos a jurisdição se diferencia das demais funções estatais. Pode-se dizer que a jurisdição se diferencia da legislação à medida que a primeira é exercida in concreto, isto é, aplica a norma a um caso concreto, enquanto que a segunda é exercida in abstrato, ou seja, o legislador cria a norma que deve ser aplicada a situações futuras. No que tange à administração, a diferença oferece certa dificuldade, porquanto esta também atua no plano concreto. Adotamos aqui as diferenças estabelecidas por Alexandre Câmara, para quem elas residem na imparcialidade do juiz, na revogação ou modificação do ato administrativo e no caráter substitutivo da jurisdição. Imparcialidade. Enquanto o juiz tem como pressuposto processual o desinteresse pelo resultado da sua atuação, visto que busca apenas fazer justiça e aplicar o direito objetivo ao caso concreto, de acordo com as provas dos autos, o administrador, por sua vez, tem toda a sua atividade pautada pela parcialidade, ou seja, tem total interesse nos resultados que a sua atuação pode proporcionar. Revogabilidade-modificabilidade do ato administrativo. O ato administrativo pode ser revogado ou modificado a qualquer tempo. Já o ato jurisdicional mais importante, a sentença de mérito, pode alcançar a imutabilidade, o que ocorre quando dela não se recorre ou quando todos os recursos já foram definitivamente decididos. Substitutividade da jurisdição. A função administrativa é originária. Ela sempre coube ao Estado. Já a função jurisdicional é exercida em substituição a das partes. Isso acontece como contrapartida à proibição de autotutela. Em outras palavras, o Estado substitui as partes na resolução dos conflitos de interesses. Estabelecidas essas diferenças, pode-se afirmar, adotando o critério funcional, que jurisdição é a função pela qual o Estado assegura ou restaura a ordem jurídica. Isto acontece mediante prévia provocação do Poder judiciário, encarregado constitucional da tutela dos direitos, sobretudo dos direitos fundamentais. TGP. JURISDIÇÃO. PROFESSOR FLÁVIO PASCARELLI.

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TEORIA GERAL DO PROCESSO

PROFESSOR FLÁVIO PASCARELLI

JURISDIÇÃO. CONCEITO. CARACTERÍSTICAS. ESPÉCIES. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. ESCOPOS. ELEMENTOS. PODERES

CONCEITO. O conceito de jurisdição tem por base a tripartição das funções do Estado. Como se sabe, o Estado exerce a soberania por meio de três funções: legislativa, administrativa e jurisdicional. Por isso, convém estabelecer em quais aspectos a jurisdição se diferencia das demais funções estatais.

Pode-se dizer que a jurisdição se diferencia da legislação à medida que a primeira é exercida in concreto, isto é, aplica a norma a um caso concreto, enquanto que a segunda é exercida in abstrato, ou seja, o legislador cria a norma que deve ser aplicada a situações futuras.

No que tange à administração, a diferença oferece certa dificuldade, porquanto esta também atua no plano concreto. Adotamos aqui as diferenças estabelecidas por Alexandre Câmara, para quem elas residem na imparcialidade do juiz, na revogação ou modificação do ato administrativo e no caráter substitutivo da jurisdição.

Imparcialidade. Enquanto o juiz tem como pressuposto processual o desinteresse pelo resultado da sua atuação, visto que busca apenas fazer justiça e aplicar o direito objetivo ao caso concreto, de acordo com as provas dos autos, o administrador, por sua vez, tem toda a sua atividade pautada pela parcialidade, ou seja, tem total interesse nos resultados que a sua atuação pode proporcionar.

Revogabilidade-modificabilidade do ato administrativo. O ato administrativo pode ser revogado ou modificado a qualquer tempo. Já o ato jurisdicional mais importante, a sentença de mérito, pode alcançar a imutabilidade, o que ocorre quando dela não se recorre ou quando todos os recursos já foram definitivamente decididos.

Substitutividade da jurisdição. A função administrativa é originária. Ela sempre coube ao Estado. Já a função jurisdicional é exercida em substituição a das partes. Isso acontece como contrapartida à proibição de autotutela. Em outras palavras, o Estado substitui as partes na resolução dos conflitos de interesses.

Estabelecidas essas diferenças, pode-se afirmar, adotando o critério funcional, que jurisdição é a função pela qual o Estado assegura ou restaura a ordem jurídica. Isto acontece mediante prévia provocação do Poder judiciário, encarregado constitucional da tutela dos direitos, sobretudo dos direitos fundamentais.

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De modo geral, a doutrina brasileira adota o conceito de jurisdição de Carnelutti ou o de Chiovenda.

Para o primeiro, a jurisdição tem como função a justa composição da lide, ou seja, “do conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência do outro”1.

Para o segundo, a jurisdição é uma “função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei, por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la praticamente efetiva”2.

Trata-se de concepções antagônicas3, porque estas têm por base teorias distintas sobre o ordenamento jurídico. Carnelutti é adepto à Teoria Unitária do ordenamento jurídico, a qual defende a ideia de que a norma de direito material se limita a criar expectativa de direito. O direito, assim, só surgiria com a sentença do juiz, capaz, portanto, de criar direitos subjetivos, na resolução de litígios. Chiovenda, da Teoria Dualista do ordenamento jurídico, defende que a norma material cria o direito, limitando-se a jurisdição a declará-lo, a fazer valer a vontade contida na norma.

CONCEITO DE JURISDIÇÃO NA DOUTRINA BRASILEIRA

Na doutrina brasileira, há diversos autores que colaboraram para a construção do conceito de jurisdição, dentre eles estão:

Moacyr Amaral Santos4, :“Esta função do Estado é própria e exclusiva do Poder Judiciário. É ele, dentro dessa função, que atua o direito objetivo na composição dos conflitos de interesses ocorrentes”.

1 CARNELUTTI, Francesco. Sistema di Diritto Processuale Civile. Vol. 1. Padova: Cedam, 1936, p. 40.

2 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. Campinas: Bookseller, 1988, p. 8.

3 Alguns autores as consideram complementares. Por todos: GRECO Filho, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. Volume 1: (Teoria Geral do Processo a Auxiliares da Justiça) 2 ed. rev. e atual.- São Paulo: Saraiva, 2007, p. 175.

4 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 1º vol., 25 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva 2007, p. 67.

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Vicente Greco Filho5 “:(...) jurisdição é o poder, função e atividade de aplicar o direito a um fato concreto, pelos órgãos públicos destinados a tal, obtendo-se a justa composição da lide.

Fredie Didier Jr6 : “A jurisdição é a realização do direito em uma situação concreta, por meio de terceiro imparcial, de modo criativo e autoritativo (caráter inevitável da jurisdição), com aptidão para tornar-se indiscutível.”

Cintra, Grinover e Dinamarco7: (...) é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. Essa pacificação é feita mediante a atuação do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressando imperativamente o preceito (através de uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através da execução forçada)”.

Alexandre Freitas Câmara8: “(...) a função do Estado de atuar a vontade concreta do direito objetivo, seja afirmando-a, seja realizando-a praticamente, seja assegurando a efetividade de sua afirmação ou de sua realização prática.”

Marinoni9: “(...) a jurisdição, atualmente, tem a função de tutelar (ou proteger) os direitos, especialmente os direitos fundamentais (...). O que se deseja evidenciar é que a função jurisdicional é uma consequência natural do dever estatal de proteger os direitos, o qual constitui a essência do Estado contemporâneo”.

Carlos Alberto Álvaro de Oliveira e Daniel Mitidiero10: “A jurisdição é antes de tudo poder – é uma das manifestações do poder do povo (art. 1º, parágrafo único, CRFB), canalizado no Estado, cujo exercício se leva a cabo por meio da função judiciária. A jurisdicionalidade

5 GRECO Filho, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. Volume 1: (Teoria Geral do Processo a Auxiliares da Justiça) 2 ed. rev. e atual.- São Paulo: Saraiva, 2007, p. 175.

6 DIDIER Jr, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo de Conhecimento, vol. 1- Salvador: Editora Podivm, 2007, p.65.

7 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pelegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15ed., São Paulo: Malheiros editores, 1999, p. 129.

8 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. I, 12 ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 72.

9 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. volume 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 134.

10 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo e Parte Geral do Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2010, p. 125.

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de um ato é aferida na medida em que é fruto de um órgão estatal dotado de império, investido em garantias funcionais que lhe outorguem imparcialidade e independência, cuja função é aplicar o direito (e não apenas a lei) de forma específica, munido o seu pronunciamento de irreversibilidade externa.”

CARACTERÍSTICAS DA JURISDIÇÃO. As características da jurisdição variam de doutrinador para doutrinador. Ficamos com as estabelecidas por Câmara, para quem elas são em número de três: inércia, substitutividade11 e natureza declaratória. Outros incluem a lide e a definitividade.

Inércia. Desde o início de nossa disciplina (ao estudarmos o princípio da demanda) buscou-se tornar claro que a jurisdição possui uma inércia inicial, ou seja, o juiz só age quando provocado, o que acontece pelo exercício do direito de ação. A regra é excepcionada em algumas situações, como ocorre com a possibilidade do juiz determinar de ofício a instauração do inventário (art. 989 do CPC) ou da concessão do habeas corpus de ofício.

Substitutividade. A resolução de conflitos era, inicialmente, exercida pelos próprios conflitantes. Com o avanço do direito, tal função passou a ser exercida pelo Estado, via da função jurisdicional. Também aqui a regra é excepcionada: legítima defesa e desforço imediato para a tutela da posse (art. 1.210 do CC/2002).

Natureza declaratória. Ao se afirmar que a jurisdição se caracteriza por sua natureza declaratória, faz-se uma opção pela Teoria Dualista do ordenamento jurídico, ou seja, a jurisdição não cria direitos subjetivos, apenas limita-se a declará-los. Em outras palavras, a jurisdição reconhece direitos preexistentes. Um bom exemplo é o usucapião, pelo qual uma pessoa, decorrido certo prazo, pode pedir que o juiz, por sentença, converta a sua posse em propriedade. Nesse caso, o direito de propriedade surgiu quando preenchidos os requisitos estabelecidos em lei para a aquisição do domínio e não com a sentença do juiz, a qual se limitou a declarar tal direito.

Lide. A lide não é elemento essencial à jurisdição. Basta verificar que no processo cautelar há atividade jurisdicional e nela não há lide, ou ainda, na jurisdição voluntária, na qual não existe litígio a ser dirimido. Um bom exemplo é a ação de separação consensual, porque os interesses são convergentes.

Definitividade. Ainda que somente o ato jurisdicional (sentença de mérito) possa adquirir imutabilidade, outros há, com a mesma natureza jurisdicional, que poderão ser revistos ou

11 A imprestabilidade do conceito de substitutividade para caracterizar a jurisdição é sustentada, por exemplo, em OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo e Parte Geral do Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2010, p. 122.

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modificados pelo próprio Poder judiciário. É o caso das medidas cautelares. Aliás, o processo cautelar e a jurisdição voluntária servem para esclarecer que nem toda sentença é capaz de adquirir imutabilidade, tornar-se definitiva.

ESPÉCIES DE JURISDIÇÃO. Em sentido estrito só existe uma jurisdição, a que expressa a soberania estatal. Ela é um e indivisível. Entretanto, para efeitos meramente didáticos, nela podem se distinguir alguns aspectos, permitindo, por isso, determinadas classificações.

De início, a jurisdição será classificada quanto ao tipo de pretensão, quanto ao grau (hierarquia), quanto ao órgão e quanto à fonte. Depois, será estabelecida a distinção entre jurisdição contenciosa e voluntária.

Pretensão. Jurisdição penal e Jurisdição civil. Na primeira, a jurisdição tem como objeto pretensões de natureza punitiva, ainda que o habeas corpus e a revisão criminal representem pretensões não punitivas levadas ao Estado-juiz. Jurisdição civil é a que não é penal (princípio excludente), ou seja, aquela que tem por objeto pretensões de qualquer natureza que não sejam o HC e RC ou que tenham escopo punitivo.

Grau. Jurisdição inferior e Jurisdição superior. A primeira é exercida por órgão de primeiro grau de jurisdição, ou seja, aquele que tem competência originária para conhecer e julgar determinada causa. A segunda é exercida por órgão no exercício do segundo grau de jurisdição, ou seja, aquele que tem competência recursal. Fala-se em hierarquia, porque o órgão de segundo grau tem o poder de reformar ou confirmar a decisão proferida pelo órgão de primeiro grau.

Órgão. Jurisdição comum e Jurisdição especial. A jurisdição especial tem competência para causas determinadas, é composta pela Justiça do Trabalho, Justiça Militar e Justiça Eleitoral. A jurisdição comum tem competência residual, ou seja, julga causas que não sejam da competência da Justiça do Trabalho, da Justiça Militar ou da Justiça Eleitoral.

Fonte. Jurisdição de Direito e Jurisdição de Equidade. Pela primeira, o juiz deve fundamentar a sua decisão em disposições legais, essa é a regra geral. Pela segunda, permite-se ao juiz, excepcionalmente, decidir com fundamento na equidade (art. 127 do CPC, art. 7o. do CDC), com forte presença do seu sentimento de justiça.

Jurisdição contenciosa e voluntária. O Código de Processo Civil, já no art. 1º, diz que “a jurisdição civil, contenciosa e voluntária, é exercida pelos juízes, em todo território nacional, conforme as disposições que este Código estabelece”. Conclui-se, pois, que o legislador dividiu a jurisdição civil em contenciosa e voluntária.

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A jurisdição contenciosa pressupõe divergência de interesses, conflito jurídico; na jurisdição voluntária, diferentemente, não haveria tal divergência de interesses.

Discute-se, doutrinariamente, sobre a natureza jurídica da “jurisdição voluntária”. Duas teorias travam este interessante debate: a Teoria Administrativista, considerada clássica, segundo a qual ela teria natureza administrativa, e a Teoria Revisionista ou Jurisdicionalista, nela reconhece-se a atividade tipicamente jurisdicional.

Para os administrativistas, doutrina majoritária, no âmbito da jurisdição voluntária o juiz exerce atividade meramente administrativa: administração pública de interesses privados. Tal atuação se justificaria pelo fato de que existem atos jurídicos praticados por particulares que interessam não somente a eles, mas a toda coletividade. Exemplificam com o casamento e seus possíveis desdobramentos (separação e divórcio consensuais), alienação judicial dos bens dos incapazes, dentre outras situações .

Alexandre Freitas Câmara apresenta os argumentos das duas correntes:

Para os administrativistas, a jurisdição voluntária não possui natureza jurisdicional pelos seguintes motivos: a) não tem por fim a composição de lides; b) não teria natureza substitutiva; c) não teria natureza declaratória, mas constitutiva; d) não teria aptidão para produzir a coisa julgada.

Já os revisionistas, respondem a todos os argumentos apresentados pelos clássicos. Perceba-se: a) a lide não é elemento essencial à jurisdição, na própria jurisdição contenciosa podem ser encontrados atos jurisdicionais que não estão relacionados diretamente com o encerramento da lide: no processo cautelar, por exemplo, não se discute a lide; b) a ideia de substitutividade está ligada ao fato de que o juiz exerce uma atividade que, originariamente, não era sua, é o que acontece, por exemplo, quando a lei exige a participação do Poder Judiciário na alienação dos bens dos incapazes. Ela está ordenando que o juiz substitua a atividade do incapaz; c) nas sentenças constitutivas, o juiz atuará um direito pré-existente à situação jurídica alterada, exemplificam com a separação consensual, quando a lei exigia o lapso temporal de mais de um ano para que os cônjuges pudessem se separar, antes de desconstituir, portanto, o juiz declara; d) embora seja verdade que a jurisdição voluntária não produza a coisa julgada, ela não se mostra essencial para efeito de caracterizar a jurisdição, pois, como já demonstrado, a sentença cautelar (ato de jurisdição contenciosa) também não tem esse condão.

Para Câmara, a diferença entre a jurisdição voluntária e a jurisdição contenciosa residiria no tipo de pretensão apresentada ao juiz, pois pode haver processo sem lide, mas jamais sem pretensão, porquanto a jurisdição, em qualquer das suas formas, só se movimenta quando devidamente provocada.

Esclarece, ainda, que se a pretensão é de integração de um negócio jurídico de direito privado, está no campo da jurisdição voluntária; se não for este o caso, insere-se no campo da jurisdição contenciosa.

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PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. A função jurisdicional é orientada por certos princípios que não podem ser violados, sob pena de nulidade ou até inexistência do ato praticado. Eles decorrem da própria lei ou da natureza da atividade jurisdicional. Como eles variam de autor para autor, foram adotados aqui os elencados por Cintra-Grinover-Dinamarco12: a) investidura; b) aderência ao território; c) indelegabilidade; d) inevitabilidade; e) inafastabilidade; f) juiz natural; g) inércia.

Investidura. A jurisdição só pode ser exercida por pessoa investida de jurisdição. Somente o Estado pode dar ao juiz o poder de dizer o direito, em razão do que a pessoa, assim investida, passa a atuar legitimamente como órgão ou agente estatal. .

Indelegabilidade. A jurisdição é indelegável, ou seja, o juiz não pode delegar a qualquer outro órgão o exercício da sua função jurisdicional. Deve exercê-la pessoalmente. Cumpre ressaltar, porém, que a Constituição Federal e o próprio CPC afastam este princípio em situações específicas.13

Aderência ao território. A jurisdição é distribuída entre os vários órgãos que integram o Poder Judiciário. Tais órgãos exercem a jurisdição no âmbito de suas competências e de determinados territórios estabelecidos pela CF e pelas leis de organização judiciária.

Indeclinabilidade (inafastabilidade). Observados os pressupostos processuais e as condições da ação, o juiz não pode deixar de decidir sobre as questões materiais que lhe são submetidas pelas partes (art. 126 do CPC). Nesse sentido é que o art. 5º.,XXXV, da CF, diz que nem a lei excluirá da apreciação jurisdicional lesão ou ameaça a direito.

Inevitabilidade. Uma vez proposta a demanda, as partes têm que se submeter à decisão jurisdicional. Portanto, ficam elas em estado de sujeição perante o Estado.

Juiz natural. A causa deve ser julgada por órgão jurisdicional pré-constituído, independente e imparcial. Trata-se de garantia constitucional (art. 5o., XXXVII e LIII, CF), inserida na cláusula do devido processo legal.

A expressão “juiz natural” não deve ser interpretada literalmente, como se fosse a pessoa física investida de jurisdição. Na verdade, o legislador se refere ao “juízo natural”, assim compreendido o juízo (local de atuação do juiz), cuja competência para a causa deverá estar estabelecida previamente por regras abstratas.

12 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pelegrini. DINAMARCO , Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15 ed., São Paulo: Malheiros editores, 1999, p. 135-137.

13 A doutrina aponta as hipóteses previstas no art. 102, I, da CF (delegação pelo STF para execução dos seus julgados) e no art. 492 do CPC (na ação rescisória, o relator delega competência ao juiz de direito da comarca onde deva ser produzida a prova).

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Inércia. Conforme esclarecido em explicações anteriores, a jurisdição deve ser provocada para poder atuar. Por isso, o art. 2o. do CPC é claro quando diz que “Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais.”

ESCOPOS DA JURISDIÇÃO. São três os escopos da jurisdição: jurídico, social e político.

Jurídico. Pela atividade jurisdicional, garante-se a ordem jurídica. Isso acontece quando o juiz, respondendo a uma pretensão, aplica o direito objetivo, seja para decidir um conflito (jurisdição contenciosa), seja para integração de um negócio jurídico (jurisdição voluntária).

Social. É duplo o escopo social da jurisdição: pacificação com justiça e educação da sociedade.

Com a lide (conflito de interesses qualificado pela resistência à pretensão) quebra-se a paz social. Esta pode ser restaurada pela sentença judicial, a qual pode ser considerada justa se nela foi aplicado o direito objetivo de acordo com as provas colhidas no processo.

Pela jurisdição também se educa a sociedade, pois quando o juiz encerra o conflito aplicando bem o direito objetivo, ele ensina que a ordem jurídica não pode ser violada impunemente e, ao mesmo tempo, que todo aquele que tiver o seu direito lesionado ou ameaçado de lesão pode acessar o Poder Judiciário que irá obter a adequada tutela jurisdicional.

Político. É triplo o escopo político da jurisdição: afirmação do poder estatal, culto às liberdades públicas e garantia de participação da sociedade na decisão política.

Com a sentença, o juiz afirma ou reafirma o poder do Estado, restaurando a autoridade estabelecida na legislação, isto porque a estabilidade do próprio Estado depende do comportamento das pessoas, conforme a norma jurídica.

Cabe ao Estado a estrita observância dos direitos fundamentais de todos os componentes da sociedade. Quando isso não acontece, o jurisdicionado tem à disposição ações como o mandado de segurança e o habeas corpus, pelas quais as liberdades públicas podem ser asseguradas.

Finalmente, pela jurisdição o povo pode participar das decisões políticas tomadas pelos administradores, democratizando a gestão pública. Para tanto, o jurisdicionado dispõe da ação popular e da ação civil pública.

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ELEMENTOS DA JURISDIÇÃO. Alguns elementos são indispensáveis para que a jurisdição cumpra os seus escopos. Cinco são os identificados pela doutrina:

a) Cognitio (notio). Corresponde ao conhecimento de uma pretensão apresentada em juízo, com o fim de fazer valer o direito estatal. Logicamente, isso só será possível se, precedentemente, satisfeitos forem os pressupostos processuais e as condições da ação.

b) Vocatio. Diz respeito à faculdade de convocação de todos que possam colaborar para a resolução da causa posta em juízo.

c) Coertio. Compreende a faculdade do uso da força para efetivo cumprimento das ordens emitidas no processo, as quais podem recair sobre pessoas ou coisas.

d) Iudicium. Faculdade de, pela sentença, encerrar definitivamente o conflito, tornando a lide juridicamente irrelevante.

e) Executio. Possibilidade que o Estado tem de fazer valer as suas decisões judiciais mediante uso da força pública.

PODERES DA JURISDIÇÃO. Os órgãos jurisdicionais (Ministros, Desembargadores e Juízes) para cumprirem a função jurisdicional são investidos de determinados poderes. A doutrina elenca quatro deles:

a) Poder decisório. As decisões jurisdicionais devem ser cumpridas, não podem ser revistas por qualquer outro Poder estatal. Em se tratando de jurisdição contenciosa, tais decisões adquirem imutabilidade no momento em que não mais for possível a interposição de qualquer recurso, situação concretizada pela formação do fenômeno da coisa julgada.

b) Poder de coerção. Por este poder, os juízes podem remover eventuais obstáculos que dificultem o bom desenvolvimento do processo judicial, podendo aplicar sanções às partes e a terceiros, além de convocar o auxílio da força policial.

c) Poder de documentação e investigação. Os juízes podem deferir ou indeferir a prova requerida, determiná-la de ofício e até mesmo participar da sua produção, neste último caso pela inspeção judicial, determinando, posteriormente, a devida documentação dos atos processuais praticados.

d) Poder de execução. É o poder de impor o cumprimento da decisão diante daquele que se nega a cumpri-la voluntariamente. Quando necessário, o juiz utilizará o seu poder coercitivo.

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REFERÊNCIAS

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. vol. I, 12 ed. Rio de Janieor: Lumen Juris, 2005.

CARNELUTTI, Francesco. Sistema di Diritto Processuale Civile. Vol. 1. Padova: Cedam, 1936.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pelegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. Campinas: Bookseller, 1988.

DIDIER Jr, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo de Conhecimento, vol. 1. Salvador: Editora Podivm, 2007.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. Volume 1: (Teoria Geral do Processo a Auxiliares da Justiça) 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Mitidiero, Daniel. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo e Parte Geral do Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2010.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 1º vol., 25 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva 2007.

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