territórios e territorialidades

26
 CAMPO-TERRITÓRI O: revista de geografia agrária, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014 TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADE E SEUS MÚLTIPLOS ENFOQUES NA CIÊNCIA GEOGRÁFICA TERRITORY, TERRITORIALITY AND MULTIPLE APPROACHES IN GEOGRAPHICAL SCIENCE Denison da Silva Ferreira Mestrando – Programa de Pós Graduação em Geografia/UFPA [email protected] Resumo O artigo aborda alguns aspectos da discussão que envolve o conceito de território e territorialidade sob o ponto de vista da ciência Geográfica. Trata-se de uma interpretação envolvendo as diferentes abordagens e concepções geográficas em torno do território configurando aquilo que alguns autores denominam múltiplos territórios e/ou multiterritorialidades . A análise foi elaborada com base nos estudos já desenvolvidos por diversos autores que se propuseram a discutir sobre a temática. Partimos do pressuposto de que os estudos territoriais se mostram cada vez mais emergentes frente aos processos de transformações do espaço geográfico mundial que refletem diferenciações não apenas de caráter político-econômico, mas, igualmente, de expressão simbólico-cultural, manifestadas nas mais diversas tramas do cotidiano vivido. O artigo está dividido em três eixos básicos: O  primeiro eixo busca vislumbrar a polissemia que envolve o conceito de território, de modo particular no âmbito da ciência Geográfica. O  segundo diz respeito às discussões sobre territorialidade enquanto conceito correlato ao território. E o terceiro e último eixo compreende as considerações finais acerca do tema proposto. Palavras-chave. Território. Territorialidade. Espaço. Relações de poder. Cultura. Abstract This article discusses some aspects of the discussion surrounding the concept of territory and territoriality from the point of view of geographical science. This is an interpretation involving different approaches and geographical concepts around the territory setting what some authors call multiple territories and / or multi territorialities. The analysis was  performed based on st udies already developed by several authors who proposed to discuss about the issue. We assumed that the territorial studies increasingly show against emerging transformation processes of global geographic space that reflect not only differences of  political and economic, but also cultural - symbolic character manifested in several daily  plots lived. The article is divided into three basic areas: The first axis search glimpse the  polysemy involving the concept of territory, particularly in the context of Geographic Science. The second concerns the discussion of territoriality as a correlate to the territory concept. And the third and last axle comprehends the final considerations about the  proposed theme. Keywords: Territory. Territoriality. Space. Power relations. Culture.  

Upload: juliano-rosa

Post on 04-Oct-2015

221 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Artigo versando sobre o conceito de território e territorialidade sob o ponto de vista da Geografia

TRANSCRIPT

  • CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    TERRITRIO, TERRITORIALIDADE E SEUS MLTIPLOS ENFOQUES NA CINCIA GEOGRFICA

    TERRITORY, TERRITORIALITY AND MULTIPLE APPROACHES IN GEOGRAPHICAL SCIENCE

    Denison da Silva Ferreira Mestrando Programa de Ps Graduao em Geografia/UFPA

    [email protected] Resumo O artigo aborda alguns aspectos da discusso que envolve o conceito de territrio e territorialidade sob o ponto de vista da cincia Geogrfica. Trata-se de uma interpretao envolvendo as diferentes abordagens e concepes geogrficas em torno do territrio configurando aquilo que alguns autores denominam mltiplos territrios e/ou multiterritorialidades. A anlise foi elaborada com base nos estudos j desenvolvidos por diversos autores que se propuseram a discutir sobre a temtica. Partimos do pressuposto de que os estudos territoriais se mostram cada vez mais emergentes frente aos processos de transformaes do espao geogrfico mundial que refletem diferenciaes no apenas de carter poltico-econmico, mas, igualmente, de expresso simblico-cultural, manifestadas nas mais diversas tramas do cotidiano vivido. O artigo est dividido em trs eixos bsicos: O primeiro eixo busca vislumbrar a polissemia que envolve o conceito de territrio, de modo particular no mbito da cincia Geogrfica. O segundo diz respeito s discusses sobre territorialidade enquanto conceito correlato ao territrio. E o terceiro e ltimo eixo compreende as consideraes finais acerca do tema proposto. Palavras-chave. Territrio. Territorialidade. Espao. Relaes de poder. Cultura. Abstract This article discusses some aspects of the discussion surrounding the concept of territory and territoriality from the point of view of geographical science. This is an interpretation involving different approaches and geographical concepts around the territory setting what some authors call multiple territories and / or multi territorialities. The analysis was performed based on studies already developed by several authors who proposed to discuss about the issue. We assumed that the territorial studies increasingly show against emerging transformation processes of global geographic space that reflect not only differences of political and economic, but also cultural - symbolic character manifested in several daily plots lived. The article is divided into three basic areas: The first axis search glimpse the polysemy involving the concept of territory, particularly in the context of Geographic Science. The second concerns the discussion of territoriality as a correlate to the territory concept. And the third and last axle comprehends the final considerations about the proposed theme. Keywords: Territory. Territoriality. Space. Power relations. Culture.

  • 112 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    Introduo

    Embora o debate em torno do conceito de territrio no se constitua uma

    novidade nas discusses geogrficas, tendo sua raz ainda na Geografia Poltica

    Clssica, a polissemia que envolve sua definio tem ensejado, nos ltimos anos,

    debates profcuos no seio de diversas reas das cincias humanas, particularmente no

    campo da cincia geogrfica onde a tradio dos estudos territoriais tem condicionado a

    um constante processo de redefinio do conceito valorizando assim uma multiplicidade

    de aspectos definidores (como relaes sociais cotidianas, multiescalaridade, poder,

    etc.) na interpretao dos fenmenos geogrficos contemporneos.

    Apesar de sua tradio no mbito da Geografia, a origem do termo territrio e o

    seu emprego nas cincias humanas no advm dos estudos geogrficos (HAESBAERT,

    2004; SAQUET, 2010) sendo sua utilizao originria ao campo das cincias da

    natureza, em especial da Biologia e da Zoologia, a partir dos estudos ligados Etologia.

    Na Geografia Friedrich Ratzel foi um dos precursores da abordagem do territrio

    associando-o ideia de espao vital, enquanto elemento fundamental no processo de

    desenvolvimento das Naes no contexto do expansionismo imperialista europeu do

    final do sculo XIX. Com o passar do tempo, a nfase dada outras categorias de

    anlise geogrfica (em particular da categoria espao e regio) de algum modo leva a

    um arrefecimento das discusses sobre territrio, que somente ganhar novo impulso a

    partir da dcada de 1960-70 (SAQUET, 2007; 2010) em pleno processo de renovao

    do pensamento geogrfico. A partir de ento que o conceito de territrio renasce de

    forma renovada e sistemtica, contemplando a noo de dinamismo, contradies,

    relaes de poder, identidades, redes de circulao e comunicao, etc.

    Essa redescoberta para usar a expresso de Saquet (2010) do conceito de

    territrio se funda agora em novas e atualizadas leituras encontrando-se desde territrios

    como abrigo1 at territrios vinculados ao ciberespao, em que o controle feito

    pelos meios informacionais os mais sofisticados (HAESBAERT, 2004). Trata-se de um

    desdobramento a partir de sua vinculao em uma perspectiva mais sistematizada da

    concepo de mltiplos territrios, e/ou daquilo que Haesbaert (2004; 2007; 2008;

    2009) denominou multiterritorialidade, conjugando uma multiplicidade ou

  • 113 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    diversidade territorial de justaposio ou convivncia, lado a lado, de tipos territoriais

    distintos e complexos.

    O fato que o debate sobre territrio foi retomado com a importncia que

    merece e suas qualificaes tambm so decorrentes dessa importncia. Uma delas, a

    territorialidade que, dentre outros, designa a qualidade que o territrio ganha de acordo

    com sua utilizao ou apreenso pelo ser humano (SPOSITO, 2009, p. 11), tem sido

    amplamente discutida em diferentes reas das cincias humanas com destaque para as

    abordagens geogrficas.

    Pode-se dizer ento, que na atualidade o debate em torno do territrio, assim

    outros conceitos correlatos como territorialidade e territorializao assume

    importncia imprescindvel para a geografia. Tal importncia exige que o conceito seja

    (re)visitado constantemente frente aos processos de re-ordenamento do espao

    geogrfico mundial em suas mltiplas dimenses (politica, econmica, simblico-

    cultural, etc.).

    Partindo dessas premissas, suscitamos neste breve enfoque fomentar o debate em

    torno do conceito de territrio e territorialidade vislumbrando a tradio e a relevncia

    dos estudos territoriais na interpretao dos fenmenos geogrficos contemporneos. A

    preocupao aqui produzir uma interpretao salientando diferentes abordagens e

    concepes em torno do conceito de territrio territorialidade na Geografia. Para tanto,

    ser de fundamental importncia um exerccio de reviso dos estudos j desenvolvidos

    por diversos autores que muito contriburam para o enriquecimento dos debates sobre o

    tema, em especial Raffestin (1993) Souza (2001), Haesbaert (2004; 2007; 2007a; 2009),

    Saquet (2006; 2007; 2009; 2010), Fernandes (2009) dentre outros.

    Vale ressaltar, porm, que em virtude da polissemia e da complexidade que

    envolve os estudos territoriais, a inteno aqui no responder a questo: o que

    territrio ou o que territorialidade? At porque, como bem salientou Haesbaert (2009),

    mais do que traduzir o que ou o ser do territrio, trata-se de discutir o seu devir,

    isto , em que problemtica nos envolvemos ou que questes prticas acionamos a partir

    dos conceitos de territrios e territorialidade academicamente construdos, sobre isso

    que buscamos refletir nesse breve ensaio terico.

    Ademais, partimos do pressuposto de que os estudos territoriais cumprem

    atualmente papel de destaque nos debates envolvendo a espacialidade humana, no

  • 114 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    apenas enquanto conceito puro, mas, da mesma forma, num sentido pragmtico,

    compreendendo sua dimenso ontolgica. Alm disso, entendemos que os estudos

    territoriais ser importante instrumento de analise visando uma conscincia voltada para

    questes sociais e espaciais, das quais a geografia, ao longo do tempo, tem ajudado a

    construir.

    A metodologia aqui utilizada compreendeu duas fases distintas e

    complementares. Primeiramente fez-se necessrio uma breve reviso bibliogrfica

    sobre o tema abordado vislumbrada a partir de estudos desenvolvidos por diversos

    autores que ao logo dos ltimos anos contriburam de forma significativa para o

    enriquecimento dos debates. Feito isso, a segunda fase consistiu na sistematizao do

    trabalho que encontra-se estruturado em trs momentos. O primeiro diz respeito ao

    debate sobre a polissemia que envolve o conceito de territrio no mbito da Geografia

    atentando para diferentes perceptivas conceituais. O segundo est relacionado mais

    especificamente s discusses envolvendo o conceito de territorialidade, enquanto

    conceito correlato ao territrio. E o terceiro e ltimo momento, compreende algumas

    consideraes finais acerca do tema abordado.

    O territrio e sua multiplicidade de enfoques na Geografia.

    Como j assinalado por Souza (2001) e Saquet (2010), o territrio tem sua raiz

    na chamada Geografia Clssica, e durante muito tempo esteve atrelado quase

    exclusivamente concepo de territrio nacional (ligada ao poder legal que o Estado

    tem de interferir na delimitao de fronteiras fsicas), ou vinculada ao aspecto fsico-

    natural. Assim, a despeito das observaes de Silva (2009), originalmente a discusso

    sobre territrio surgiu na Geografia Poltica do sculo XIX (na poca da consolidao

    dos Estados-Naes) onde prevalecia a noo de territrio como um espao de poder

    demarcado, controlado e governado e, assim, fixo (SILVA, 2009, p. 100).

    Ratzel, um Clssico da Geografia Poltica do sculo XIX, refere-se ao territrio

    como substrato (palco) para a efetivao da vida humana, sinnimo de solo/terra e

    outras condies naturais, fundamentais a todos os povos, selvagens e civilizados (sob o

    domnio do Estado). Na viso de Ratzel (1990) no elo indissocivel entre uma

  • 115 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    dimenso fsico-natural (solo e seus recursos) e uma dimenso poltica do espao (que

    se confunde com o estatal) que o territrio se define. Dizia ele:

    (...) fcil convencer-se de que do mesmo modo como no se pode considerar mesmo o Estado mais simples sem o seu territrio, assim tambm a sociedade mais simples s pode ser concebida junto com o territrio que lhe pertence (RATZEL, 1990. p. 73).

    E continua...

    (...) os organismos que fazem parte da tribo, da comuna, da famlia, s podem ser concebidos junto com seu territrio. Sem isso no possvel o seu desenvolvimento, assim como sem territrio no se poderia compreender o incremento da potncia e da solidez do Estado (idem, p. 74).

    Desse modo pode-se dizer que o territrio referido por Ratzel tem como

    fundamento a base fsico-natural do Estado-Nao. Trata-se de um territrio que, com

    sua populao, fronteiras, recursos naturais, etc., se constitui no suporte fundamental

    para o desenvolvimento de dada Nao e o fortalecimento de um dado Estado.

    Esse desenvolvimento, na perspectiva de Ratzel (1990), dependeria do

    controle e/ou manuteno e da conquista de novos territrios, ou seja, de novos

    espaos vitais. Nesse sentido, na viso de Ratzel, seria o controle da posse de novos

    territrios um dos fatores fundamentais na constituio o Estado:

    (...) a sociedade que consideramos, seja grande ou pequena, desejar manter sobretudo a posse do seu territrio sobre o qual e graas ao qual ela vive. Quando essa sociedade se organiza com esse objetivo, ela se transforma em Estado (RATZEL, 1990, p.76).

    Com efeito, o autor supracitado sublinha:

    Quando se trata de um povo em via de incremento, a importncia do solo pode talvez parecer menos evidente; mas pensemos ao contrrio, em um povo em processo de decadncia e verificar-se- que esta no poder absolutamente ser compreendida, nem mesmo seu incio, se no se levar em conta o territrio. Um povo decai quando sofre perdas territoriais. Ele pode decrescer em nmero mais ainda assim manter o territrio no qual se concentram seus recursos; mas se comea a perder uma parte do seu territrio, esse sem duvida o princpio da sua decadncia futura (RATZEL, 1990, p. 74).

    possvel notar a partir destes enunciados a associao entre solo/terra,

    territrio e o Estado-Nao. Tal associao traduz um das mais tradicionais formas de

    compreenso do territrio suscitadas no mbito da Geografia. Mesmo sendo um dos

    principias precursores dos estudos territoriais, Ratzel ser profundamente criticado no

  • 116 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    transcorrer do movimento de redescoberta do conceito de territrio, sobretudo a partir

    dos anos de 1960-70. Na perspectiva de Saquet (2010):

    (...) Ratzel faz uma tentativa de avanar na abordagem do territrio (povo) ligado ao solo/ambiente, sinalizando para alm da geopoltica atravs de elementos da cultura (religio) e da economia (comrcio), porm, em virtude de sua proposta terico-metodolgica com um carter institucional e burgus, no consegue abarcar coerentemente essas trs dimenses ao tratar do territrio. Por isso faz uma abordagem a servio do Estado alemo de sua poca, sem superar a viso naturalista de territrio (SAQUET, 2010, p. 31).

    Dessa forma, deve-se considerar que a anlise de Ratzel fundamentava-se nos

    pressupostos metodolgicos e filosficos prevalecentes em sua poca (que tinha como

    matriz terica o pensamento positivista). Mesmo assim, conforme argumenta Moraes

    (1998), j representava uma viso geogrfica avanada para sua poca na medida em que

    compreendia o espao como um lugar de equilbrio dinmico entre a populao de uma

    dada sociedade e os recursos disponveis para suprir suas necessidades (MORAES,

    1998, p. 56), definindo assim suas condies de progredir e expandir-se. Viso esta que,

    alis, esteve servio de um discurso de carter eminentemente expansionista.

    A partir da dcada de 1960-70 o movimento de redescoberta do conceito de

    territrio, que aos poucos passa a romper com os preceitos terico-metodolgicos do

    pensamento positivista do final sculo XIX, reflete o prprio processo de renovao do

    pensamento geogrfico, estando agora sob influncia principalmente da corrente de

    pensamento pautada no materialismo histrico dialtico e da corrente fenomenolgica

    (pautada na fenomenologia) que juntas traduzem perspectivas mltiplas de anlise do

    territrio.

    No Brasil, titulo de exemplificao, destacam-se os estudos desenvolvidos por

    Souza (2001), Haesbaert (2004; 2007; 2007a; 2009), Saquet (2006; 2007; 2009; 2010),

    Fernandes (2009), dentre outros, que contriburam de forma significativa para o

    enriquecimento dos debates.

    Em Claude Raffestin (1993), um dos pioneiros na abordagem territorial,

    verifica-se uma concepo mltipla de territrio e territorialidade humana. Apesar de

    tecer uma anlise de base mais econmica e poltica do territrio, este reconhece a

    complementaridade entre as dimenses da economia, poltica e cultura. De acordo com

    este autor, o espao a base para a formulao do territrio, ou seja, o espao existe

    antes do territrio, ele a matria-prima para a construo deste ltimo.

  • 117 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    (...) espao e territrio no so termos equivalentes [...]. essencial compreender bem que o espao anterior ao territrio. O territrio se forma a partir do espao, o resultado de uma ao conduzida por um ator sintomtico (ator que realiza um programa) em qualquer nvel (RAFFESTIN, 1993, 143).

    Pode-se dizer assim que Raffestin (1993) no recorta o espao, mas transforma-o

    em substrato para a criao do territrio. No entanto, vale notar que um territrio

    enquanto tal, no exprime simplesmente um espao, mas um espao construdo por um

    ator sintagmtico (que realiza uma ao) de acordo com seus objetivos e interesses.

    (...) do Estado ao indivduo passando por todas as organizaes pequenas ou grandes, encontramos atores sintagmticos que produzem territrios [...], em graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos todos atores sintagmticos que produzem territrios (RAFFESTIN, 1993, p. 152).

    Tem-se ento que o territrio em Raffestin produzido por uma constelao de

    relaes que o indivduo ou grupos de indivduos os agentes sociais mantm entre si

    e com a natureza. Dessa forma, para este autor o territrio no poderia ser mais nada

    que um produto dos atores sociais. So eles que produzem o territrio, partindo da

    realidade inicial dada, que o espao. Afinal para ele o territrio se forma a partir do

    espao. Ao se apropriar de um espao concreta ou abstratamente, o ator territorializa

    o espao (RAFFESTIN, 1993, p.143).

    Essa apropriao de que Raffestin se refere, marcada por relaes de poder,

    enquanto aspecto fundamental para a compreenso do territrio, sendo exercido por

    pessoas ou grupos, sem o qual no se define o territrio. O poder, assim, relacional, pois

    est intrnseco em todas as relaes sociais. Desse modo, se o poder est em toda relao

    e se o espao anterior ao territrio, a concluso de Raffestin (1993) a de que o espao

    a priso original e o territrio a priso que os homens constroem para si (p, 144).

    Para Saquet (2010) uma limitao na anlise de Raffestin est na compreenso

    no conceito de espao. Expe que na medida em que Raffestin concebe o espao como

    substrato, como palco, pr-existente ao territrio, este autor reduz o entendimento do

    Espao natureza-superfcie, recursos naturais. De outro modo, Saquet (2010) sublinha

    que o espao no apenas palco, receptor de aes, substrato [...] ele tem um valor de

    uso e um valor de troca, distintos significados e elemento constituinte do territrio,

    pois eles so indissociveis (SAQUET, 2010, p. 77).

  • 118 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    exemplo de Saquet, Souza (2001) considera que Raffestin (1993) praticamente

    reduz o espao ao espao natural enquanto que territrio de fato torna-se,

    automaticamente, quase sinnimo de espao social. Tambm assumindo uma posio

    crtica em relao abordagem de Raffestin, Souza (2001, p. 96) reitera:

    (...) naturalmente se concorda com Raffestin aqui em que o espao anterior ao territrio. Mas acreditamos que este autor incorre no equvoco de coisificar e reificar o territrio ao incorporar ao conceito o prprio substrato material vale a pena dizer o espao social.

    E continua...

    (...) sem dvida sempre que houve homens em interao com o espao, primeiramente transformando a natureza (espao natural) atravs do trabalho, e depois criando continuamente valor ao modificar e retrabalhar o espao social, estar-se- tambm diante de um territrio e no s de um espao econmico; [no entanto] inconcebvel que um espao que tenha sido alvo de valorizao pelo trabalho possa deixar de estar territorializado por algum (SOUZA, 2001, p. 96, grifo nosso).

    Nesse sentido, este autor chama a ateno para o fato de que assim como o

    poder onipresente nas relaes sociais, o territrio est, outrossim, presente em toda

    espacialidade (2001, p. 96). Ademais, acrescenta que se todo territrio pressupe um

    espao social, nem todo o espao social um territrio (ibidem, p. 96). Assim sendo,

    para Souza (2001) embora Raffestin (1993) estabelea novas bases nos estudos sobre

    territrio, rejeitando a unidimensionalidade do poder que prevalecia na Geografia

    Poltica Clssica, este autor no chega a romper com a velha identificao do territrio

    como o seu substrato material. Partindo desse principio sua posio a de que

    (...) Raffestin no explorou suficientemente o veio oferecido por uma abordagem relacional, pois no discerniu que o territrio no o substrato, o espao social em si, mas um campo de foras, as relaes de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial (SOUZA, 2001, p. 97).

    No que pese as crticas atribudas abordagem de Raffestin (1993),

    indubitavelmente o que no pode ser esquecido so suas relevantes contribuies

    abordagem territorial, sendo considerado um pioneiro no debate em torno do territrio.

    Um dos aspectos a ser destacado nesse sentido diz respeito pluralidade de sua

    abordagem, pois, como bem observado por Souza & Pedon (2007), o territrio em

    Raffestin pode se analisado a partir das relaes de poder, mas tambm como palco de

    ligaes efetivas e de identidade entre um grupo social com seu espao.

  • 119 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    Um importante esforo no sentido de reconhecer as contribuies de Raffestin

    na anlise do territrio pode ser vislumbrado a partir dos estudos de Saquet (2006;

    2010) que aborda mltiplas faces de sua abordagem que podem ser agrupadas em pelo

    menos quatro vertentes de anlise: a) uma relacionada ao territrio do cotidiano; b)

    outra dizendo respeito ao territrio das trocas; c) uma terceira compreendendo um

    territrio de referncia (referimento) e; d) finalmente, uma vertente associada ao que

    denomina territrio sagrado (ver SAQUET, 2010 p. 150).

    Como observado por Saquet (2006), tambm no se pode esquecer a

    multidimensionalidade da abordagem de Raffestin em relao ao que este autor

    denominou sistema territorial, como fruto do resultado de relaes de poder do Estado,

    de empresas, organizaes e de indivduos, isto , de relaes dirias, ligadas

    dinmica poltica, econmica e cultural, que constituem malhas (conjunto de pontos e

    ligaes/conexes entre diferentes agentes sociais), ns (pontos de encontro de relaes

    sociais) e redes (ligaes entre dois ou mais agentes sociais).

    Sem querer adentrar no mrito da questo, oportuno frisar que no poucas

    vezes o conceito de territrio tem sido eventualmente confundido com o de espao.

    Como sugere Eduardo (2006) a essncia desta confuso reside exatamente no fato de

    que muitos autores, por partirem do pressuposto e que o territrio efetivado a partir

    da apropriao social do espao compreenso corretssima consideram-no apenas

    como sinnimo de cho, de propriedade, de rea, de limite administrativo (p. 178).

    Todavia, entende-se que evidentemente h diferenciaes entre espao e territrio, isto

    , eles no so sinnimos. O territrio uma construo histrica e, portanto, social, a

    partir das relaes de poder (concreto e simblico) que envolvem, concomitantemente,

    sociedade e espao geogrfico que tambm sempre de alguma forma natureza

    (HAESBAERT & LIMONAD, 2007, p. 42).

    A esse respeito Saquet (2009, p. 81) faz questo de lembrar que:

    (...) o espao corresponde ao ambiente natural e ao ambiente organizado socialmente, enquanto que o territrio produto de aes histricas que se concretizam em momentos distintos e sobrepostos, gerando diferentes paisagens, logo, fruto da dinmica socioespacial.

    Nessa perspectiva, o mesmo autor considera que o territrio pode ser entendido

    como uma forma de apropriao social do ambiente; o ambiente construdo, em que

  • 120 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    h mltiplas variveis e relaes recprocas e unitrias. O homem age no territrio,

    espao (natural e social) de seu habitar, para produzir, viver (objetiva e subjetivamente)

    (SAQUET, 2006, p. 81).

    No obstante, fundamental reconhecer que espao e territrio no esto

    separados: um est no outro. O espao indispensvel para a apropriao e reproduo

    do territrio (SAQUET, 2009, p. 83), e como propugnara Haesbaert (2009) estes nunca

    podero ser separados, j que sem espao no h territrios, sobretudo quando se

    reconhece a trilogia tempo-espao-territrio como elementos indissociveis do real.

    Conforme frisado anteriormente, no Brasil diversos autores contriburam com o

    debate em torno do conceito de territrio. Uma importante interpretao nesse aspecto

    pode ser vislumbrada nos estudos desenvolvidos por Haesbaert (2004, 2004a, 2007,

    2007a, 2009). Expe este autor que

    (...) desde sua origem, o territrio nasce com uma dupla conotao, material e simblica, pois etimologicamente aparece to prximo de terra-territorium quanto de terreoterritor (terror, terrorizar), ou seja, tem a ver com dominao (jurdico-poltica) da terra e com a inspirao do terror, do medo especialmente para aqueles que, com esta dominao, ficam alijados da terra, ou no territorium so impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por outro lado, podemos dizer que, para aqueles que tm o privilgio de plenamente usufrui-lo, o territrio pode inspirar a identificao (positiva) e a efetiva apropriao (HAESBAERT, 2007a, p. 20).

    Nesse sentido o mesmo autor complementa que o territrio no est

    desvinculado de sua origem epistemolgica a posse de terra mas passa a ser

    concebido e dotado de uma carga cultural, isto , diz respeito tanto ao poder num

    sentido mais concreto, de dominao, quanto num sentido mais simblico, de

    apropriao (HAESBAERT, 2004; 2007a). A apropriao do espao por um grupo

    social passa a no ser mais compreendida sem o seu territrio, base de sua histria,

    cultura e sustentao.

    Alm das quatro vertentes bsicas referidas por Haesbaert (2004) (territrio

    natural; territrio poltico; territrio econmico e territrio cultural ou simblico-

    cultural), este autor faz uma distino entre o que denomina territrio unifuncional e

    territrio enquanto espao-tempo-vivido. O primeiro est relacionado lgica capitalista

    hegemnica, especialmente atravs da figura do Estado territorial moderno, defensor

    de uma lgica territorial padro [...] que no admite multiplicidade/sobreposies de

    jurisdies e/ou territorialidades (HAESBAERT, 2007a, p. 21). J o territrio enquanto

  • 121 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    espao-tempo-vivido aparece como resultado de processos diversos e complexos

    produzido nas tramas materiais e imateriais do cotidiano social (HAESBAERT, 2007a),

    ou seja, na vivncia e na identidade das pessoas.

    Assim, na tentativa de ver o territrio em sua multiplicidade de manifestaes,

    Haesbaert (2007a) sugere dois grandes tipos ideais ou referncias extremas frente

    s quais pode-se investigar o territrio: um mais funcional, priorizado na maior parte

    das abordagens, e outro, mais simblico, que vem se impondo em importncia nos

    ltimos tempos. No primeiro caso, o territrio visto como um domnio poltica e

    economicamente estruturado (dimenso mais concreta); enquanto que no segundo caso

    o territrio compreenderia uma apropriao mais simblico-identitria, determinados

    por aes de certos grupos sociais sobre o espao onde se reproduzem socialmente.

    Seria, assim, uma interpretao muito prxima do que Boligian & Almeida

    (2003) caracterizaram de perspectiva poltico-econmica e simblico-afetiva do

    territrio. Na primeira perspectiva, mais funcional, o territrio representa

    (...) a base espacial onde esto dispostos objetos, formas e aes construdas pelos atores sociais e historicamente determinadas segundo as regras do modo de produo vigente em cada poca, ou seja, pelas relaes sociais de produo (BOLIGIAN & ALMEIDA, 2003, p. 241).

    Por outro lado, na perspectiva simblico-afetiva, (...) territrio o espao das experincias vividas, onde as relaes entre os atores, e destes com a natureza, so relaes permeadas pelos sentimentos e pelos simbolismos atribudos aos lugares. So espaos apropriados por meio de prticas que lhes garantem uma certa identidade social/cultural (idem, p. 241).

    Assim, o territrio possui tanto uma dimenso mais subjetiva, que Haesbaert &

    Limonad (2007, p. 43) denominam conscincia, apropriao ou mesmo em alguns

    casos, identidade territorial, quanto uma dimenso mais objetiva, caracterizada como

    dominao do espao, num sentido mais concreto, realizada por instrumentos de ao

    poltico-econmica. Nessa interpretao as relaes de poder emergem como produtoras

    das relaes sociais e de identificaes diferentes, opondo relaes de produo e

    relaes de vivncia.

    Na perspectiva mais funcional, de carter poltico-econmica, o territrio

    apreendido como um local delimitado e controlado, atravs do qual se exerce um

    determinado poder, na maioria das vezes mas no exclusivamente relacionada ao

  • 122 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    poder poltico do Estado (HAESBAERT, 2004, p. 40). J na perspectiva simblica-

    cultural, tem-se o territrio como o produto da valorizao simblica de um grupo em

    relao ao seu espao vivido (idem, p. 40). Neste ltimo caso, o territrio

    compreendido pelo valor de uso, pelo vivido, pela subjetividade, refletindo a chamada

    identificao positiva com o espao, que adquire a mesma fora de realidade como as

    relaes de poder abstratas.

    Considerando tais perspectivas de territrio pode-se interpretar a ambigidade

    do territrio tanto no lado homogeneizador da globalizao como no lado diversificador

    da cultura (HAESBAERT, 2004, p. 40).

    Apesar desta distino, Haesbaert (2004) tambm chama a ateno para a

    necessidade de se considerar tanto o aspecto funcional quanto o aspecto simblico

    como parte integrante da realidade cotidiana que se manifesta nos territrios. Partindo

    desse principio este autor reitera que:

    (...) todo territrio , ao mesmo tempo e obrigatoriamente, funcional e simblico, pois as relaes de poder tm no espao um componente indissocivel tanto na realizao de funes quanto na produo de significados. O territrio funcional a comear pelo papel enquanto recurso, desde sua relao com os chamados recursos naturais (HAESBAERT, 2007a, p. 23).

    O mesmo autor complementa que enquanto, tipos ideais, estes nunca se

    manifestam em estado puro, ou seja, todo territrio funcional tem sempre uma carga

    simblica, por menos expressiva que seja, e todo territrio simblico tem sempre

    algum carter funcional por mais reduzido que parea (HAESBAERT, 2007a p. 23).

    Na viso de Haesbaert (2007), territrio, em qualquer acepo, tem a ver com

    poder, mas no apenas ao tradicional poder poltico. Ele diz respeito tanto ao poder no

    sentido mais explcito, de dominao, quanto ao poder no sentido mais implcito ou

    simblico, de apropriao (p. 20-21). Baseado em Lefebvre Haesbaert (2004) distingue

    apropriao de dominao. O primeiro sendo um processo muito mais simblico,

    carregado das marcas do vivido, do valor de uso, o segundo mais concreto, funcional

    e vinculado ao valor de troca. Pautado nessa distino Haesbaert (2007a, p. 41), reitera:

    (...) o territrio, imerso em relaes de dominao e/ou de apropriao sociedade-espao, desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominao poltico-econmica mais concreta e funcional apropriao mais subjetiva e/ou cultural-simblica (HAESBAERT, 2004, p. 95-96).

  • 123 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    Nessa direo o autor supracitado (HAESBAERT, 2007, p. 28) sublinha ainda

    que o territrio simblico invade e refaz as funes num carter complexo e

    indissocivel em relao funcionalidade dos territrios (dominao) que por sua vez,

    toma-se, mais do que nunca, tambm, simblica um simblico, porm, que no advm

    do espao vivido, mas da reconstruo identitria em funo dos interesses dos atores

    hegemnicos.

    Assim, devemos primeiramente distinguir os territrios de acordo com aqueles

    que os constroem e/ou controlam, sejam eles indivduos, grupos sociais, Estado,

    empresas, instituies etc. Alm disso, faz-se necessrio reconhecer que os objetivos do

    controle social atravs de sua territorializao variam conforme a sociedade ou cultura, o

    grupo e, muitas vezes, com o prprio indivduo (HAESBAERT, 2007a, p. 22).

    Para Souza (2001) a questo primordial, quando se fala de territrio, no na

    realidade quais so as caractersticas geoecolgicas e os recursos naturais de uma certa

    rea, nem tampouco as ligaes afetivas e de identidade de um determinado grupo com

    seu espao, mais o verdadeiro Leitmotiv o seguinte: quem domina ou influencia e

    como domina ou influencia este espao (p. 78-79). Por esta viso fica claro que as

    relaes de poder constituem elemento central na definio de territrio. Afirma que

    territrios existem e so construdos (e desconstrudos) dentro de escalas temporais das

    mais diferentes e que podem ter um carter permanente, mas tambm podem ter uma

    existncia peridica ou cclica.

    Marcos Aurlio Saquet (2006; 2007; 2007a; 2009; 2010) tambm traz

    contribuies significativas no sentido de construir uma argumentao terico-

    metodolgica que articule o tempo, o espao e o territrio, englobando, aspectos da

    economia, da poltica, da cultura e da natureza exterior ao Homem que ele denomina de

    E-P-C-N. Para este autor (SAQUET 2010, p. 160) as relaes/interaes da economia-

    poltica-cultura-natureza so mltiplas, complexas, heterogneas, e esto em unidade, a

    cada perodo, momento e lugar ou em cada relao espao-tempo. Em suas palavras,

    (...) as foras econmicas, polticas e culturais, reciprocamente relacionadas e em unidade, efetivam o territrio, o processo social, no e com o espao geogrfico, centrado e emanado na e da territorialidade cotidiana dos indivduos, em diferentes centralidades, temporalidades e territorialidades. Os processos sociais e naturais, e mesmo nosso pensamento, efetivam-se na e com a territorialidade cotidiana. a, neste nvel, que se d o acontecer de nossa vida e nesta que se concretiza a territorialidade (SAQUET, 2007, p. 57).

  • 124 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    Dessa maneira, este autor procura mostrar que o territrio significa natureza e

    sociedade, economia, poltica e cultura; idia e matria; identidades e representaes;

    apropriao, dominao e controle. Adverte assim que os territrios podem ser

    temporrios ou mais permanentes e se efetivam em diferentes escalas, envolvendo,

    sempre, a sntese dialtica do natural e do social que reside no homem (SAQUET,

    2010, p.128). Assim, entende que

    (...) no territrio, h temporalidades e territorialidades, des-continuidades; mltiplas variveis, determinaes e relaes recprocas e unidade. O territrio, [...] espao de vida, objetiva e subjetivamente; significa cho, formas espaciais, relaes sociais, natureza exterior ao homem; obras e contedos. produto e condio de aes histricas e multiescalares, com desigualdades, diferenas, ritmos e identidade(s). O territrio processual e relacional, (i)material (SAQUET, 2007, p. 73).

    Dito com outras palavras, (...) o territrio significa heterogeneidade e traos comuns; apropriao e dominao historicamente condicionadas; produto e condio histrica e trans-escalar; com mltiplas variveis, determinaes, relaes e unidade. espao de moradia, de produo, de servios, de mobilidade, de des-organizao, de arte, de sonhos, enfim, de vida (objetiva e subjetivamente). O territrio processual e relaciona, (i)material, com diversidade e unidade, concomitantemente (SAQUET, 2006a, p. 83).

    No entanto, conforme observou Fernandes (2009 p. 2002), isso no significa

    dizer que tudo territrio, mas sim que o territrio um todo, e este todo parte da

    realidade.

    Quando compreendemos o territrio como um todo, estamos entendendo sua multidimensionalidade. Isso significa que ao analisar os territrios por meio de uma ou mais dimenses, somente uma opo, o que no implica em desconsiderar as outras dimenses. O princpio da multidimensionalidade nos ajuda a compreender melhor o da totalidade, j que so as dimenses que a compem (FERNANDES, 2009, p. 2002).

    As dimenses, de que se refere este autor, so formadas pelas condies

    construdas pelos sujeitos em suas prticas sociais na relao com a natureza e entre si.

    Nas mltiplas dimenses do territrio, afirma Saquet (2007), que so produzidas

    relaes sociais, econmicas, polticas, ambientais e culturais. Cada combinao

    especfica de cada relao espao-tempo produto, acompanha e condiciona os

    fenmenos e processos territoriais (SAQUET, 2009).

    Assumindo essa perspectiva Saquet (2009, p. 81) afirma que o territrio

    considerado produto de mudanas e permanncias ocorridas num ambiente no qual se

  • 125 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    desenvolve um grupo social. Territrio significa, assim, apropriao social do

    ambiente; ambiente construdo, com mltiplas variveis e relaes recprocas

    (SAQUET, 2009, p. 81). Esta apropriao do ambiente, por ele referida, no expressa

    simplesmente uma apropriao da terra em termos materiais, mas precedida por

    relaes sociais que, comunicadas, compreendem relaes espaciais de poder.

    (...) a terra tomada territrio quando h comunicao, quando meio e objeto de trabalho, de produo, de trocas, de cooperao. O territrio um produto socioespacial, de relaes sociais que so econmicas, polticas e culturais e de ligaes, de redes internas e externas que envolvem a natureza. Por esta via o espao fsico entra nas relaes e nas estruturas sociais (SAQUET, 2006, p. 76).

    Nesse sentido, Saquet (2010) reitera que o territrio resultado e condio da

    relao social-natural sendo apropriado e ordenado por relaes econmicas, polticas e

    culturais compreendidas interna e externamente a cada lugar. H no territrio a

    multidimensionalidade do homem, que natureza e sociedade ao mesmo tempo. O

    social contm a natureza homem e sua natureza exterior. Ns homens (e mulheres)

    somos, estamos e reproduzimos a natureza e sociedade, simultaneamente. Produzimos

    territrio(s) e territorialidade(s) (SAQUET, 2010, p. 173). Assim sendo, os homens

    tm centralidades na formao de cada territrio, cristalizando relaes de influncia,

    efetivas, simblicas, conflitos e identidades.

    A pluriescalaridade (ou multiescalaridade) um princpio bsico para a

    compreenso das diferentes escalas dos territrios. Para Fernandes (2009) podemos

    entender a pluriescalaridade como uma territorialidade diferencial. Nesse sentido este

    autor se refere uma multiterritorialidades suscitada a partir de diferentes tipologias de

    territrios. Ora, vale frisar que na sua perspectiva tipologia de territrios e

    multiterritorialidade no se confundem. Da tipologia nasce a multiterritorialidade e

    so objetos distintos. As territorialidades so as representaes dos tipos de uso dos

    territrios (FERNANDES, 2009, p. 10).

    Partindo dessa distino Fernandes (2009) prope trs tipos ou tipologias de

    territrios que tm como referncia as relaes (de poder) praticadas por classes ou

    grupos sociais. O primeiro tipo de territrio referido por este autor est associado ao

    espao de governana da Nao, que compreende a prpria base geogrfica sob

    jurisdio da Nao, geradora de multiterritorialidades por conter todos os outros tipos

  • 126 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    de territrios produzidos pelas relaes das classes sociais. o ponto de partida da

    existncia das pessoas. O territrio ou Espao de Governana est organizado em

    diversas escalas e instncias, como estados, provncias, departamentos e municpios,

    que se constituem enquanto fraes integradas e independentes deste territrio.

    O segundo tipo territorial refere-se propriedade como espao de vida, que

    pode ser particular ou comunitria. constitudo pelas propriedades privadas no

    capitalistas, familiares ou comunitrias, e as propriedades capitalistas. Todos os

    sistemas polticos criam propriedades com diferentes formas de organizao do espao.

    As propriedades podem ser definidas pelo seu valor de uso e/ou pelo seu valor de troca.

    Segundo este autor,

    Os segundos territrios so fraes do primeiro, mas devem ser distinguidos porque as relaes sociais que os produzem so diferentes. Um territrio propriedade privada no pode ser confundido com um territrio espao de governana (FERNANDES, 2009, p. 12).

    O terceiro territrio por sua vez, de acordo com a classificao de Fernandes

    (2009), diz respeito ao espao relacional considerado a partir de suas conflitualidades

    reunindo todos os tipos de territrios. Este est relacionado s formas de uso dos

    territrios, portanto s suas territorialidades. O exemplo dado por este autor pode ser

    vislumbrado pela circulao da mercadoria. Empresas expandem e perdem territrios de

    acordo com o aumento e diminuio do consumo de seus produtos.

    No obstante, de acordo com o mesmo autor (FERNANDES, 2009), tambm

    podemos nos referir aos territrios do narcotrfico que se expandem ou refluem de

    acordo com as correlaes de foras entre as faces ou das aes da polcia. Tal

    processo sintetizaria o carter peridico ou cclico dos territrios referido por Souza

    2001, dai ento uma aproximao da abordagem destes dois autores.

    Ainda sobre a importncia da escala na anlise do territrio, Haesbaert (2004,

    2007) chama a ateno para a existncia de uma multiterritorialidades que envolve

    como condies bsicas a presena de uma grande multiplicidade de territrios e

    territorialidades. Dessa forma este autor (HAESBAERT, 2004; 2007) se refere a uma

    multiterritorialidade (ou seja, uma dinmica combinada de mltiplos territrios e

    territorialidades) reunida em trs elementos bsicos denominados territrios-zona,

    territrios-rede e aglomerados de excluso. Os territrios-zona so forjados a partir de

    uma lgica zonal compreendendo os territrios mais tradicionais com reas e limites

  • 127 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    relativamente bem demarcados como, por exemplo, o prprio Estado-Nao, ou o

    espao de governana referido por Fernandes (2009) , onde a organizao em rede

    adquire um papel secundrio. Os territrios-rede por sua vez compreendem os

    territrios configurados a partir de uma lgica reticular; so espacialmente

    descontnuos, dinmicos e mais sobrepostos onde prevalece a lgica econmica.

    Por fim, os aglomerados de excluso expressam mesclas confusas de territrios-

    zona e territrios-rede sem uma cartografia espacialmente bem definida. Representam

    os grupos sociais segregados cuja insegurana e instabilidade territorial os impedem de

    exercer efetivo controle sobre seus territrios de vida (HAESBAERT, 2004).

    Assim, de acordo com este autor (HAESBAERT, 2007a, p. 30) dentro da

    diversidade territorial do nosso tempo devemos levar em conta, em primeiro lugar, essa

    distino crescente entre uma lgica territorial zonal e uma lgica territorial reticular,

    sem perder de vista a importncia dos territrios-rede no processo de integrao e

    articulao do mundo contemporneo.

    Os territrios-rede so por definio, sempre, territrios mltiplos, na medida em que podem conjugar territrios-zona (manifestados numa escala espacialmente mais restrita) atravs de redes de conexo (numa escala mais ampla) (HAESBAERT, 2007a p. 40).

    Como acrescenta este mesmo autor (HAESBAERT, 2007a), dentro dessa

    complexa relao entre redes e reas ou zonas como os dois elementos fundamentais

    constituintes do territrio [...], devemos destacar a enorme variedade de tipos e nveis de

    controle e/ou conteno territorial (p. 30).

    Alm dos autores mencionados, tambm no se deve esquecer as contribuies

    de Milton Santos (1999) no debate sobre territrio. Apesar de o espao (geogrfico)

    permanecer como a categoria principal em sua anlise, este autor tambm enaltece a

    concepo de territrio usado, vislumbrando o uso e o controle social cristalizado no

    territrio. Sua nfase econmica, mas sinaliza, tambm, para o reconhecimento da

    poltica da cultura e da natureza como elementos constituintes do espao e da

    configurao territorial. Sublinha que,

    (...) o territrio no apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O territrio tem que ser entendido como o territrio usado, no o territrio em si. O territrio usado o cho mais a identidade. A identidade o sentimento de pertencer quilo que nos pertence. O territrio o fundamento do trabalho, o lugar da residncia, das trocas materiais e espirituais e do exerccio da vida (SANTOS, 1999, p. 08, grifo nosso).

  • 128 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    Reiterando Santos (1999) expe que o territrio o lugar em que desembocam

    todas as aes, todas as paixes, todos os poderes, todas as foras, todas as fraquezas,

    isto , onde a histria do homem plenamente se realiza a partir das manifestaes da sua

    existncia (p. 07). Isso pressupe compreender o territrio para alm dos aspectos

    estritamente funcional ligado uma lgica poltico-econmica expressa nas relaes

    de poder, pois, como j assinalado por Haesbaert (2007), as relaes de poder tm no

    espao um componente indissocivel tanto na realizao de funes quanto na

    produo de significados.

    A territorialidade e suas mltiplas dimenses: consideraes sob o ponto de vista geogrfico.

    Conforme advertido por Haesbaert (2007 a), assim como o territrio, o debate

    em torno do conceito de territorialidade tambm assume dimenses mltiplas: desde

    uma concepo como sendo mais ampla que a do territrio, perpassando pela percepo

    da territorialidade como algo mais restrito isto , uma simples dimenso do

    territrio alm da abordagem diferenciadora, que separa e distingue claramente

    territorialidade e territrio.

    Na construo do conceito de territorialidade emerge outros conceitos, como

    espao, territrio, poder, lugar, dentre outros, que em alguns aspectos relacionam-se

    apenas de forma secundria e em outros aparecem de maneira direta no podendo ser

    reduzidos, simplificados ou separados, pois esto unidos por um elo terico complexo

    dinmico (HEIDTMANN, 2008).

    Para o antroplogo Little (2002), a territorialidade pode ser entendida como um

    esforo coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com

    uma parcela especfica de seu ambiente biofsico, convertendo-a assim em seu

    territrio ou homoland2. Ao que parece, este autor no discerniu bem a prpria

    noo de territrio concebendo-o enquanto materialidade quando se refere ao ambiente

    biofsico, como se houvesse uma espcie de estaticidade e/ou separao da dimenso

    espacial (ambiente biofsico) e social, sem considerar assim que o territrio resultado

    da prpria construo scio-histrica, como salienta Saquet (2010).

    Raffestin (1993) sustenta que a territorialidade deve ser entendida como

    multidimensional e inerente vida em sociedade.

  • 129 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    (...) de acordo com nossa perspectiva, a territorialidade assume um valor bem particular, pois reflete o multidimensionamento do vivido territorial pelos membros de uma coletividade, pela sociedade em geral. Os homens vivem ao mesmo tempo, o processo territorial por intermdio de um sistema de relaes existenciais e/ou produtivistas (RAFFESTIN, 1993, p. 158).

    Partindo desse principio Raffestin parte do sustenta que a territorialidade pode

    ser definida como um conjunto de relaes que se originam num sistema tridimensional

    sociedade-espao-tempo (RAFFESTIN, 1993, p. 160). Nessa perspectiva o prprio

    territrio ganha uma identidade, no em si mesma mas na coletividade que nele vive e o

    produz, sempre em processo dinmico, flexvel e contraditrio (por isso dialtico)

    recheado de possibilidades que s se realizam quando impressas e espacializadas no

    territrio.

    Ainda nesse aspecto Saquet (2010) acrescenta que a territorialidade traduz o

    conjunto daquilo que se vive cotidianamente: relaes com o trabalho, com o no-

    trabalho, com a famlia etc. Ou seja, ela multidimensional, conforme frisado

    anteriormente por Raffestin (1993). Ainda faz-se necessrio reiterar que esse conjunto

    no exprime simplesmente um carter funcional, pois,

    (...) a territorialidade, alm de incorporar uma dimenso mais estritamente poltica, diz respeito tambm s relaes econmicas e culturais, pois est intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas prprias se organizam no espao e como elas do significado ao lugar (HAESBAERT, 2007, p, 22).

    Nesse sentido, necessrio levar em conta, dentre outros, os lugares em que a

    territorialidade se desenvolve e os ritmos que ela implica, sem deixar de considerar

    aspectos da dinmica interna e externa ligada a ela, conforme sublinha Raffestin (1993).

    Nas palavras de Souza (2001), a territorialidade tem a ver com um certo tipo de

    interao entre homem e espao, a qual , alis, sempre entre seres humanos

    mediatizada pelo espao (SOUZA, 2001, p. 99). importante ressaltar, todavia, que a

    territorialidade no se define pela simples relao com o espao, mas se manifesta em

    todas as escalas espaciais e sociais. Ela consubstancial a todas as relaes e seria

    possvel dizer que, de certa forma, a face vivida da face agida do poder

    (RAFFESTIN, 1993, p. 161-162). Sendo assim, conceber a territorialidade como uma

    simples ligao com o espao seria fazer nascer um determinismo sem interesse.

    sempre uma relao, mesmo que diferenciada [...] (RAFFESTIN, 1993, p. 161). Com

  • 130 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    isso, pretende-se dizer que a territorialidade manifesta-se em todas as escalas, desde as

    relaes pessoais e cotidianas at as complexas relaes sociais (SAQUET, 2010).

    Reconhecendo a importncia da escala na anlise da territorialidade, Saquet

    (2009) descreve as seguintes palavras;

    A territorialidade um fenmeno social que envolve indivduos que fazem parte do mesmo grupo e de grupos distintos. H continuidade e descontinuidade no tempo e no espao; as territorialidades esto intimamente ligadas a cada lugar: elas do lhe identidade e so influenciadas pelas condies histricas e geogrficas de cada lugar (SAQUET, 2009, p. 88).

    Reiterando este mesmo autor (SAQUET, 2006; 2010) aponta para a dimenso

    subjetiva da territorialidade entendendo-a como o desenrolar todas as relaes dirias

    que efetivamos. Ou melhor, ela corresponde s nossas relaes sociais cotidianas em

    tramas, no trabalho, na famlia, na Igreja, nas lojas, nos bancos, na escola etc. Estas

    relaes, as territorialidades, que constituem o territrio de vida de cada pessoa ou

    grupo social num determinado lugar.

    (...) a territorialidade o acontecer de todas as atividades cotidianas [...] resultado e determinante do processo de cada territrio, de cada lugar; mltipla, e por isso, os territrios tambm o so, revelando a complexidade social, e ao mesmo tempo, as relaes de domnios de indivduos ou grupos sociais com uma parcela do espao geogrfico, outros indivduos, objetos, relaes (SAQUET, 2010, p. 129).

    E complementa...

    (...) compreendemos a noo de territorialidade como um processo de relaes sociais, tanto econmicas, como polticas e culturais de um indivduo ou de um grupo social. A territorialidade corresponde s relaes sociais e s atividades dirias que os homens tm com sua natureza exterior. o resultado do processo de produo de cada territrio, sendo fundamental para a construo da identidade e para a reorganizao da vida quotidiana (SAQUET, 2009, p. 8).

    Desse modo para este autor as territorialidades so, simultaneamente, resultado,

    condicionantes e caracterizadoras da territorializao e do territrio. Significa as

    relaes dirias, momentneas, que os homens mantm com sua natureza inorgnica,

    para sobreviver biolgica e socialmente (ibidem, 2010, p. 129). Est ligada ao

    cotidiano e ao lugar de vivncia dos indivduos e dos grupos sociais. Dessa forma, a

    territorialidade se materializa no lugar e parece refletir as dimenses culturais, polticas,

    econmicas e sociais, organizando-se na desordem e na complexidade das relaes

    diversas. Assim, quando se fala em territorialidade estar-se falando de todos os

  • 131 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    processos espao-temporais e territoriais inerentes a nossa vida na sociedade e na

    natureza (SAQUET, 2009, p. 85). Nada se faz ou se pensa sem articular, identificar e

    concretizar na e com a territorialidade cotidiana (SAQUET 2010, p. 177).

    Ora, j foi dito que a concepo de territorialidade ampla e complexa podendo

    estar ou no associada a uma base territorial num sentido fsico-espacial. Somente

    titulo de exemplificao, numa espcie de reviso terica sobre as diversas formas com

    que a concepo de territorialidade pode ser entendida, Haesbaert (2007, p. 25) suscita

    dois elencos de posies. 1) territorialidade num enfoque mais epistemolgico

    abstrao, condio genrica (terica) para a existncia do territrio (dependendo,

    assim, do conceito de territrio proposto) e; 2) territorialidade num sentido mais

    ontolgico podendo ser: a) como materialidade (ex. controle fsico do acesso atravs

    do espao material); b) como imaterialidade (ex. controle simblico, atravs de uma

    identidade territorial ou comunidade territorial imaginada e; c) como espao vivido

    (frente aos territrios, formais-institucionais), conjugando materialidade e

    imaterialidade.

    Buscando valorizar a dimenso ontolgica do territrio, Haesbaert (2007)

    sustenta que a territorialidade no apenas algo abstrato, num sentido que muitas

    vezes se reduz ao carter de abstrao analtica, epistemolgica.

    Ela tambm uma dimenso imaterial, no sentido ontolgico que, enquanto imagem ou smbolo de um territrio, existe e pode inserir-se eficazmente como uma estratgia poltico-cultural, mesmo que o territrio ao qual se refira no esteja concretamente manifestado como no conhecido exemplo da Terra Prometida dos judeus, territorialidade que os acompanhou e impulsionou atravs dos tempos, ainda que no houvesse, concretamente, uma construo territorial correspondente (HAESBAERT, 2007, p, 23).

    A partir do exemplo citado, Haesbaert (2009, p.106) parte do entendimento de que

    embora todo territrio tenha uma territorialidade [...] nem toda territorialidade, ou se

    quisermos, tambm, aqui, espacialidade possui um territrio (no sentido de sua

    efetivao material). Sendo assim, a ideia de territorialidade vista tanto como uma

    propriedade de territrios efetivamente construdos quanto como condio (terica)

    para sua existncia deve ser concebida como sendo mais ampla que a de territrio,

    englobando-(HAESBAERT, 2007a e 2009), uma vez que a territorialidade pode ser a

    dimenso simblica, o referencial territorial (simblico) para a construo de um

    territrio, que no obrigatoriamente existe de forma concreta. Com efeito, quando

  • 132 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    falamos em territorialidade sem territrio devemos tomar cuidado para esclarecer a

    que concepo de territorialidade ou a que relao entre territrio e territorialidade

    estamos nos referindo (HAESBART, 2007a, p. 27).

    Nas palavras de Milton Santos (2007) a territorialidade no provm do simples

    fato de viver num lugar, mas da comunho que com ele mantemos. Afinal, para este

    autor o territrio em que vivemos mais que um simples conjunto de objetos,

    mediante os quais trabalhamos, moramos, mas tambm um dado simblico, sem o qual

    no se pode falar de territorialidade (SANTOS, 2007, p. 83-84). Nessa direo, Santos

    (apud HEIDTMANN, 2008, p. 43) reitera que o territrio sem vida meramente um

    espao fsico recortado geograficamente para delimitar algo, mas as aes existentes

    nele remetem territorialidade.

    Nesse sentido, a territorialidade est ligada s relaes sociais e s atividades

    dirias que os homens tm com sua natureza exterior. E, de acordo com Saquet &

    Briskievicz (2009), o resultado do processo de produo de cada territrio, sendo

    fundamental para a construo da identidade e para a reorganizao da vida cotidiana. O

    territrio s se efetiva quando os indivduos so e esto em relao com os outros

    indivduos. Essa relao social, que plural, multiforme e recproca, no territrio,

    concebida por Saquet (2010) como territorialidade.

    Algumas consideraes

    Procurou-se elucidar aqui que o conceito de territrio rene noes de vida, de

    espao social e de espao vivido, podendo ainda ser interpretado como resultado de uma

    apropriao poltico-econmica e/ou simblico-cultural do espao por grupos sociais

    que imprimem uma representao particular a este espao a partir de uma construo

    social e histrica.

    Os diversos autores mencionados apontam para a existncia de diversos

    territrios (concretos e simblicos) e territorialidades (individuais e coletivas) que se

    sobrepe no espao geogrfico e que so multidimensionais e multiescalares. Isso

    significa que alm do territrio estruturado a partir de uma lgica poltico-econmica,

    de carter mais funcional, o territrio tambm remete construo de pertencimento, de

    identidade coletiva, como experincias concretas do espao social.

  • 133 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    Ademais, ao contrrio de algumas postulaes do senso comum e at do meio

    acadmico-cientfico, o territrio no se constitui simplesmente como ocorrncias,

    posio ou distribuio de objetos no espao, isto , o territrio no se define como

    mero receptculo sinnimo de espao como palco onde se desenvolvem as atividades

    humanas, a prpria natureza e os recursos naturais nele contidos. De outro modo,

    necessrio reconhecer a dimenso social e histrica. A cincia geografia tem feito um

    grande esforo nos ltimos anos no sentido de ampliar a viso de territrio enquanto

    simples suporte fsico de atividades econmicas ou quadro de localizao de agentes

    buscando dar visibilidade ao territrio enquanto uma construo histrica e social que

    de alguma forma se apresenta geograficamente.

    Em concluso, suscitamos que estas breves consideraes contribuam no

    apenas no fomento dos estudos sobre territrio e territorialidade, mas, igualmente, no

    sentido de oferecer mecanismos analticos que possibilitem melhor compreenso acerca

    da prpria realidade em que vivemos. Isso significa ultrapassar o mbito do terico, ou

    melhor, do conceito puro vislumbrando o carter ontolgico dos territrios atravs

    das mltiplas manifestaes de sua existncia. Esta uma necessidade de nosso tempo

    diante de tantos processos de transformaes socioespaciais que se colocam em questo

    e que, cada vez mais, refletem uma multiplicidade de territrios e territorialidades

    produzidos e reproduzidos nas mais diversas tramas do cotidiano.

    Notas

    1. De acordo com Haesbaert, (2004), o territrio como abrigo est relacionado uma dimenso muito mais concreta, dizendo respeito aos grupos sociais cujos parcos recursos de sobrevivncia fazem com que ainda dependam diretamente de alguns aportes fsicos do meio.

    2. Para o antroplogo Little (2002), a palavra inglesa homeland tende a ser traduzida como ptria em portugus. Mas o significado mais comum de ptria faz referncia a um Estado-Nao, o que desvia o termo homeland de seus outros significados possveis referentes s territorialidades de distintos grupos sociais dentro de um Estado-Nao. REFERNCIAS BOLIGIAN, Levon; ALMEIDA, Rosngela Doin. A transposio didtica do conceito de territrio no ensino de geografia. In: GERARDI, Lcia Helena de Oliveira (Org.). Ambientes: estudos de geografia. Rio Claro: Programa de Ps-Graduao em Geografia /UNESP, 2003. p. 235-248.

  • 134 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    EDUARDO, Mrcio Freitas. Territrio, trabalho e poder: por uma Geografia relacional. Campo-Territrio, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 173-195, ago. 2006. FERNANDES, Bernardo Manano. Sobre tipologias de territrios. In: SAQUET, Marcos Aurlio; SPOSITO, Eliseu Savrio (Org.) Territrio e Territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. So Paulo; Expresso Popular, 2009. p. 197-216. HAESBAERT, Rogrio. O mito da desterritorializao: do fim dos territrios multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. _________. Identidades territoriais: entre a multiterritorialidade e a recluso territorial (ou: do hibridismo cultural essencializao das identidades). In: ARAJO, Frederico Guilherme; HAESBAERT, Rogrio (Org.). Identidade e Territrios: questes e olhares contemporneos. Rio de Janeiro: accss, 2007, p. 93-123. ___________. Territrio e Multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia. Rio de Janeiro, ano 11, n. 17, p. 19-44, mar. 2007a. _________. Dos mltiplos Territrios Multiterritorialidade. In: Heidrich, lvaro et al. (Org.). A emergncia da multiterritorialidade: a ressignificao da relao do humano com o espao. 1 ed. Porto Alegre (RS): Editora da ULBRA e Editora da UFRGS, 2008. p. 19-36. _________. Dilemas de conceitos: espao-territrio e conteno territorial. In: SAQUET, Marcos Aurlio; SPOSITO, Eliseu Savrio (Org.) territrio e territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. So Paulo; Expresso Popular, 2009. p. 95-120. HAESBAERT, Rogrio; LIMONAD, Ester. O territrio em tempos de Globalizao. etc..., espao, tempo e crtica, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 39-52, ago. 2007. HEIDTMANN, Henrique Carlos. A sensibilidade territorial das polticas pblicas: um estudo em comunidades ribeirinhas na Amaznia Legal. 2008. 182f. Tese (Administrao Pblica) Fundao Getlio Vargas, Escola de Administrao de Empresas de So Paulo, So Paulo, 2008. LITTLE, Paul E. Territrios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Braslia: UNB, 2002. MEDEIROS, Rosa Maria. Territrio, espao de Identidade. In: SAQUET, Marcos Aurlio; SPOSITO, Eliseu Savrio (Org.) Territrio e Territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. So Paulo; Expresso Popular, 2009. 217-228. MORAES, Antnio Carlos Robert de. Geografia: pequena histria crtica. 16 ed. So Paulo, Hucitec, 1998. RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. So Paulo: tica, 1993.

  • 135 Territrio, territorialidade e seus mltiplos Denison da Silva Ferreira enfoques na cincia Geogrfica

    CAMPO-TERRITRIO: revista de geografia agrria, v. 9, n. 17, p. 111-135, abr., 2014

    RATZEL, F. Ratzel. Traduo de Antnio Carlos Robert de Moraes. 1 ed. So Paulo: tica, 1990. SANTOS, Milton. O dinheiro e o territrio. GEOgraphia, Rio de Janeiro, Ano 1. n. 1, p. 7-13, 1999. _________. Espao do Cidado. 7. Ed. So Paulo: Editora da USP, 2007. SAQUET, marcos Aurlio. Campo-Territrio: consideraes terico-metodolgicas. Campo-Territrio, Uberlndia, v. 1, n. 1, p. 60-81, fev. 2006. _________. Proposies para estudos territoriais. GEOgraphia, Rio de Janeiro, ano 08 , n. 15, p. 71-85, Jun. 2006a. _________. As diferentes abordagens do territrio e a apreenso do movimento e da (i)materialidade. Geosul, Florianpolis, v. 22, n. 43, p. 55-76, jan./jun. 2007. _________. Por uma abordagem territorial. In: ________; SPOSITO, Eliseu Savrio. (Org.) Territrio e Territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. So Paulo; Expresso Popular, 2009. p. 73-94. _________. Abordagens e concepes de territrio. 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2010. SAQUET, Marcos Aurlio; BRISKIEVICZ, Michele. Territorialidade e identidade: um patrimnio no desenvolvimento territorial. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, v. 1, n. 31, p. 03-16, 2009. SILVA, Carla Holanda. Territrio: uma combinao de enfoques material, simblico e espao de ao social. Geografar, Curitiba, v. 4, n. 1, p. 98-115, jan./jun. 2009. SOUZA, Edevaldo Aparecido; PEDON, Nelson Rodrigo. Territrio e Identidade. Associao dos Gegrafos Brasileiros, Trs Lagoas, ano 4, v. 1, n. 6, p. 126-148, nov. 2007. SOUZA, Marcelo Lopes. O territrio: sobre espao e poder, autonomia e desenvolvimento. In CASTRO, In Elias et al. Geografia: conceitos e temas 3 Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 77-116. SPOSITO, Maria Encarnao Beltro. Introduo. In: SAQUET, Marcos Aurlio; SPOSITO, Eliseu Savrio. (Org.) Territrio e Territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2009. p. 11-16.

    Recebido em 04/01/2013 Aceito para publicao em 11/07/2013.