territÓrios em conflito no alto sertÃo sergipano
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THERESA CRISTINA ZAVARIS TANEZINI
TERRITRIOS EM CONFLITO
NO ALTO SERTO SERGIPANO
Marcha dos camponeses na Fazenda Cuiab para a ocupao final do conjunto de edifcios que formam a sede da propriedade. Sergipe, 1996 (Terra, Sebastio Salgado, So Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 134 e 135). Marco da territorializao do MST no Alto Serto Sergipano.
So Cristovo-SE 2014
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THERESA CRISTINA ZAVARIS TANEZINI
TERRITRIOS EM CONFLITO
NO ALTO SERTO SERGIPANO
Orientadora: Prof.. Dr. Alexandrina Luz Conceio.
So Cristovo-SE
2014
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, como exigncia parcial para obteno do ttulo de doutora em Geografia.
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Ficha catalogrfica
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THERESA CRISTINA ZAVARIS TANEZINI
TERRITRIOS EM CONFLITO
NO ALTO SERTO SERGIPANO
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, como exigncia parcial para obteno do ttulo de doutora em Geografia, sob a orientao da Prof.. Dr. Alexandrina Luz Conceio.
Data da aprovao: ____/____/_____
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Prof.. Dr. Alexandrina Luz Conceio (Orientadora). Departamento de Geografia/Universidade Federal da Sergipe.
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Prof Dr Vera Lcia Alves Frana Departamento de Geografia/Universidade Federal da Sergipe.
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Prof. Dr. Ciro Bezerra Universidade Federal de Alagoas
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Prof. Dr. Marco Mitidiero Universidade Federal da Paraiba.
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Prof. Dr. Maria da Conceio Vasconcelos Gonalves Departamento de Servio Social/DSS/UFS
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Prof Marleide Sgio dos Santos (suplente)
Universidade Federal da Sergipe
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RESUMO
A Tese intitulada Territrios em conflito tem como objeto de estudo a reflexo crtica, de dois processos scio espaciais distintos e conflitivos, fundados na apropriao da terra: de um lado, a territorializao e a monopolizao do territrio pelo capital, hegemnica e vinculada ao processo de acumulao do capital em escala nacional e internacional, compreendido como desigual e combinado/ contraditrio; e, de outro lado, a resistncia e recriao camponesa como territorializao alternativa; analisando o papel contraditrio do Estado em face das territorialidades conflitantes, que traduzem espacialmente a luta de classes no campo. Ao se adotar a Geografia Crtica como referencial terico-metodolgico, compreende-se o espao social, como lcus das relaes sociais de produo, resultante de um processo de produo do espao pela prtica social e poltica das classes em confronto, por meio de seus movimentos sociais (olhar sociolgico), ou movimentos scios territoriais (olhar geogrfico) em uma abordagem relacional da concepo de territrio, que enfatiza os processos geogrficos de T-D-R; enquanto lutas sociais, como a verso geogrfica da questo agrria. Objetivou-se analisar os processos empricos que se desenrolaram historicamente na produo e transformao do espao agrrio do Alto Serto Sergipano, sobretudo nas trs ltimas dcadas. Defende-se nesta Tese duas ideias centrais: A conquista da terra por vrios movimentos scios territoriais, sobretudo o MST e a redistribuio fundiria massiva que marca a experincia de reforma agrria neste espao geogrfico, representou um ponto de inflexo na disputa territorial, revertendo o avano do capital e propiciou a recampenizao dos trabalhadores rurais sem terra, que constroem uma rea reformada; e esta constitui o ncleo que cria a possibilidade de gestao de um abrangente e politicamente significativo territrio campons na medida em que o MST promove alianas e esta poltica pblica articula o campesinato tradicional com os novos assentados, possibilitando a esses segmentos sociais exigirem seu reconhecimento enquanto agentes econmicos e sujeitos polticos, que lutam pela redistribuio de riqueza, renda e poder na regio.
Palavraschave: territrios em conflito. movimentos scio territoriais. reforma agrria. territrios alternativos. campesinato.
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RESUMO NA LINGUA ESTRANGEIRA
The thesis entitled Territories in conflict proposes a critical reflection as the study objective, of two distinct and conflictive social-spatial processes, based in land appropriation: on one hand, the territory expansion and monopolization by capital, hegemonic and linked to the process of capital accumulation in a national and international scale, understood as unequal and combined/contradictory; and, on the other hand, the resistance and landing recreation as the alternative expansion; analyzing the States contradictory role regarding the conflictive territoriality, which spatially demonstrate the conflicts between classes in the fields. Adopting Critical Geography as theoretical and methodological reference, the social space is understood as the place where production social relationships happen, which is a result of the production process of the space by social and political practices of the classes in the conflict, supported by its social movements (sociologic prospect), or social and territorial movements (geographical prospect) in a relative approach of the understanding of the concept of territory, which emphasizes the T-D-R geographical processes; furthermore the social conflicts are seen as the geographical version of the agrarian matter. This study aimed to analyze the empirical processes that were historically developed in the production and transformation of the agrarian landscape in Sergipes arid area, above all in the last three decades. The thesis defends two main ideas: The land acquisition by several social and territorial movements, mainly the MST (acronym for Landless Workers Movement) and the massive agrarian redistribution which highlights the experience of agrarian reform in this geographical space, represented a point of inflection in the territorial dispute, reverting the capital advance and enabling the reconstitution of landless workers, which build a reformed area; and this one constitutes the focus that creates the possibility of developing a broad and politically relevant agrarian territory whereas the MST promotes alliances and this public policy integrates the traditional agrarian workers class with the new settlers, enabling this social segments to demand their acknowledgment as economic agents and political subjects, who fight for wealth, income and power redistribution in the region.
Key-words: territories in conflict. social and territorial movements. agrarian
reform. alternative territories. agrarian workers class.
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Lista de tabelas
Tabela 01 Distribuio da Terra Agrcola no mundo: ndice de desigualdade
de Gini em ordem crescente primeira metade do sculo XX........................306
Tabela 02 Superfcie Agrcola Mdia de Pases Europeus 1972..............310
Tabela 03 Dimenso dos Estabelecimentos Agrcolas no mundo, conforme
teto ou piso da ltima classe de rea - 1996-2005 FAO (frica)..................314
Tabela 04 Dimenso dos Estabelecimentos Agrcolas no mundo, conforme
teto ou piso da ltima classe de rea - 1996-2005 FAO (Amrica)..............314
Tabela 05 Dimenso dos Estabelecimentos Agrcolas no mundo, conforme
teto ou piso da ltima classe de rea - 1996-2005 FAO (sia)....................315
Tabela 06 - Dimenso dos Estabelecimentos Agrcolas no mundo, conforme
teto ou piso da ltima classe de rea - 1996-2005 FAO (Europa)................316
Tabela 07 Dimenso dos Estabelecimentos Agrcolas no mundo, conforme
teto ou piso da ltima classe de rea - 1996-2005 FAO (Oceania)..............317
Tabela 08 rea Total e Nmero dos Estabelecimentos, por Estrato de rea -
Brasil 1995/1996 e 2006 IBGE..................................................................319
Tabela 09 Reforma Agrria da Espada na Amrica Latina no sculo
XX....................................................................................................................320
Tabela 10 Pases que estabeleceram limites para a propriedade no sculo
XX. ..................................................................................................................321
Tabela 11 Famlias assentadas no Brasil 1985 1995.............................330
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Tabela 12 Nmero de Famlias Assentadas por Ano Brasil 1995
2013.................................................................................................................331
Tabela 13 Evoluo do ndice de Gini dos estabelecimentos rurais, segundo
a Unidade da Federao 1985/2006 IBGE................................................337
Tabela 14 Distribuio dos Imveis Rurais conforme ndice de Gini Brasil e
Sergipe 2003 e 2011. ...................................................................................337
Tabela 15 Maiores propriedades/posses de cada estado INCRA
1985.................................................................................................................339
Tabela 16 Classificao dos Imveis Rurais pela rea Total Brasil - 1992 e
2003.................................................................................................................339
Tabela 17 Classificao de Imveis Rurais Brasil 1993.........................342
Tabela 18 Evoluo da Concentrao da Propriedade de Terra no Brasil
2003-2010........................................................................................................344
Tabela 19 Assentamentos Rurais Nordeste, Sergipe e Brasil - 1979
2009..............................................................................................................348
Tabela 20 Maiores propriedades do Alto Sertao Sergipano 1990.............381
Tabela 21 Primeiras conquistas da luta pela terra no Alto Serto Sergipano
1986 1996...................................................................................................383
Tabela 22 Quadro Famlias acampadas e assentadas 2006....................397
Tabela 23 O Complexo Jacar-Curituba em ordem cronolgica de criao
1997 a 2002....................................................................................................408
Tabela 24 Acampamentos e Movimentos 2010........................................414
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Tabela 25 Nmero de acampamentos no Alto Serto Sergipano................414
Tabela 26 Imveis Rurais segundo Categorias do Estatuto da Terra na
Microrregio Homognea Serto Sergipano do So Francisco - 1972...........438
Tabela 27 Estrutura Fundiria da MRH Serto Sergipano do So Francisco
1972...............................................................................................................440
Tabela 28 Territorializao dos Movimentos Scio-territoriais no Alto Serto
Sergipano - Primeira fase - 1979 a 1993.........................................................455
Tabela 29 O Alto Serto Sergipano no I Censo Nacional da Reforma Agrria
out/1996.......................................................................................................458
Tabela 30 O Alto Serto Sergipano no I Censo Nacional da Reforma Agrria
out/1996 .....................................................................................................459
Tabela 31 - Territorializao dos Movimentos Scio-Territoriais no Alto Serto
Sergipano em ordem cronolgica Conquistas da primeira fase da luta - 1979
a outubro de 1996...........................................................................................460
Tabela 32 - Territorializao dos Movimentos Socio-territoriais do Alto Serto
Sergipano por Municpio e em ordem cronolgica - 1979 outubro de
1996.................................................................................................................461
Tabela 33 Impacto da Redistribuio Fundiria por municpio no Alto Serto
Sergipano 1979 a 1996 em relao ao ponto zero de 1972.......................463
Tabela 34 - Relao dos imveis desapropriados pelo INCRA no PA Jacar-
Curituba at 1999............................................................................................468
Tabela 35 - Imveis em desapropriao pelo INCRA no PA Jacar Curituba
1999.................................................................................................................469
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Tabela 36 Imveis no desapropriveis pelo INCRA...................................470
Tabela 37 Imveis a vistoriar.......................................................................470
Tabela 38 Assentamentos de reforma agrria do Alto Serto Sergipano
nov. 1996 dez. 2006......................................................................................472
Tabela 39 Territorializao dos Movimentos Scio-territoriais no Alto Serto
Sergipano out. 1986 dez. 2006.................................................................473
Tabela 40 Redistribuio Fundiria no Alto Serto Sergipano 1979 a
2006.................................................................................................................475
Tabela 41 Nmero de Imveis Rurais e rea Total, segundo Condio de
Domnio e por Estratos de rea Total, Territrio do Alto Serto Sergipano
Agosto 2003.................................................................................................480
Tabela 42 Distribuio do Nmero e rea Total segundo a Categoria de
Imvel Rural, por Municpio do Alto Serto Sergipano em Ordem Decrescente
por rea das Grandes Propriedades dezembro 2005..................................483
Tabela 43 N e rea de Grandes e Mdios Imveis do Alto Serto Sergipano
INCRA - Dezembro 2005.............................................................................485
Tabela 44 Comparao N e rea dos Latifndios por Explorao (1972) com
Grandes e Mdias Propriedades (dez. 2005) no Alto Serto Sergipano.......486
Tabela 45 Assentamentos pelo Crdito Fundirio no Alto Serto Sergipano
2003-2006........................................................................................................488
Tabela 46 Assentamentos por ano do Alto Serto Sergipano - jan 2007 a jan
2014.................................................................................................................492
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Tabela 47 Assentamentos de Reforma Agrria Alto Serto Sergipano 1986
a jan.2014.........................................................................................................00
Tabela 48 Comparao N e rea dos Latifndios por Explorao (1972) com
Assentamentos/Desapropriaes no Alto Serto Sergipano - entre 1979 e
fevereiro 2014.................................................................................................499
Tabela 49 Total do Nmero de acampamentos por ano e famlias envolvidas
nas fases da luta pela terra no Alto Serto Sergipano, e por municpios em 31
de janeiro de 2014..........................................................................................504
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SUMRIO
INTRODUO...................................................................................................16
CAPTULO 01: ESPAO E TERRITRIO NO DEBATE GEOGRFICO E
SUAS PARTICULARIDADES NA GEOGRAFIA
AGRRIA................................................................................37
1.1 A categoria Espao como conceito chave no debate
geogrfico...................................................................................................38
1.1.1 A ressignificao do espao no Debate da
Geografia..........................................................................................47
1.2 Um Breve Debate sobre Abordagem do territrio .................................65
1.2.1 Abordagem relacional do territrio na Geografia
Crtica................................................................................................76
CAPTULO 02: ESPACIALIZAO/TERRITORIALIZAO DAS CLASSES
SOCIAIS E O PAPEL DO ESTADO NO PROCESSO DE
PRODUO DO ESPAO......................................................86
2.1 O Capital/a Burguesia/ o Estado na produo do espao:
desenvolvimento desigual e combinado/contraditrio ........................89
2.2 Os processos geogrficos primrios (T-D-R) representam lutas sociais
.........................................................................................................................116
2.2.1 A territorializao do capital e do Estado homogeneza o espao: a
produo do espao abstrato, espao liso e territrio usado custa
da desterritorializao de outros grupos sociais...........................120
2.2.2 Espaos diferenciais e contraditrios e a abordagem marxista de
territrio.........................................................................................130
2.2.2.2 Aglomerados de excluso / territrios alternativos/ contra espaos/
constrangimentos ao espao hegemnico na geografia humanista
e cultural renovada.....................................................................140
CAPTULO 03: A PERDA DO DIREITO NATURAL DE PROPRIEDADE
PRIVADA DA TERRA DO CAMPONS NA GNESE DA
QUESTO AGRRIA............................................................150
3.1 A propriedade privada da terra condicionada pelo trabalho como
direito natural...........................................................................................151
3.2 A propriedade privada da terra condicionada pelo trabalho nos
debates sobre a sociedade civil e Estado, na Idade Moderna: do
direito natural ao direito civil.................................................................165
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CAPTULO 04: O DIREITO PROPRIEDADE DA TERRA: A TERRA COMO
FUNO SOCIAL...............................................................196
4.1 A inverso do significado da propriedade privada da terra na virada
conservadora da concepo poltica do liberalismo
econmico..............................................................................................215
4.2 A crise do Estado Liberal, a ascenso do Estado Social e do sentido
social do direito de propriedade a partir do sculo
XX.............................................................................................................234
CAPITULO 05: TERRITRIOS EM CONFLITO: A VERSO GEOGRFICA
DA QUESTO AGRRIA COMO EXPRESSO DA LUTA DE
CLASSES NO CAMPO..........................................................247
5.1 Os dois processos de avano capitalista na
agricultura......................................................................................................249
5.1.1 A territorializao do capital...........................................................249
5.1.2 A monopolizao do territrio pelo capital.....................................254
5.2 A Resistncia camponesa e a construo de territrios alternativos ao
espao hegemnico do capital..............................................................266
5.3 Movimentos sociais do campo e movimentos scio-territoriais e scio-
espaciais................................................................................................277
5.4 A formao de movimentos scio-territoriais, com destaque para o
MST ................................................................................................................289
CAPITULO 06: A REFORMA AGRRIA COMO POLTICA
REDISTRIBUTIVA.................................................................301
6.1 Um olhar sobre a distribuio da terra e as experincias de reforma
agraria no mundo ...................................................................................302
6.2 O Brasil na contramo da democratizao da terra.............................327
CAPITULO 07: Territrios em conflito no Alto Serto Sergipano: a
territorializao dos movimentos camponeses e a
construo de uma rea reformada...............................351
7.1 A diversidade de lutas e a unio das foras de diferentes movimentos
scio-territoriais na primeira fase da luta pela terra no Alto Serto
Sergipano - 1979 a 1996..........................................................................355
7.1.1 A luta dos povos tradicionais pela reterritorializaao: ndios Xoc e
remanescentes de quilombos.......................................................357
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7.1.1.1 A luta dos Xoc de reconquista do seu territrio..............361
7.1.1.2 Mocambo e Serra da Guia duas comunidades de remanescentes
quilombolas no Alto Serto Sergipano.........................................369
7.1. 2 A unio de foras dos movimentos sociais do campo STRs, Igreja
e nascente MST conquista a Barra da Ona e deslancha a reforma
agrria no Alto Serto Sergipano - 1986 1996..........................378
7.1.3 - A territorializao do MST no Alto Serto Sergipano 1996-
2006..............................................................................................385
7.1.3.1 O avano na conquista da terra no sentido da construo
de uma rea reformada..............................................................396
7.1.3.2 A disputa da Agua no Alto Serto Sergipano: a reverso do grande
projeto empresarial de irrigao Jacar Curituba para a reforma
agrria (1998)...............................................................................399
7.1.4 - A terceira e atual fase da luta pela terra e pela gua no Alto
Serto Sergipano - 2007 a 2013 ................................................412
7.1.4.1 A busca de alternativas num contexto de crise................413
7.1.4.2 - A disputa de concepes dos projetos de irrigao ......417
7.1.4.2.1 A concluso das obras de irrigao do Jacar Curituba e
a definio dos rumos produtivos.................................................417
7.1.4.2.2 Nova Califrnia X Manuel Dionzio...............................421
CAPTULO 8: IMPACTOS DAS LUTAS TERRITORIAIS E DA AO DO
INCRA NA TRANSFORMAO DA ESTRUTURA
FUNDIRIA DO ALTO SERTO SERGIPANO....................430
8.1 O espao agrrio do Alto Serto Sergipano antes da luta pela terra (o
ponto zero) ...................................................................................................433
8.2 A transformao da estrutura fundiria decorrente da territorializao
dos movimentos scio-territoriais de luta pela terra e das aes de
redistribuio fundiria .........................................................................443
8.2.1 A transformao da estrutura fundiria entre 1979
1996.................................................................................444
8.2.2 A transformao da estrutura fundiria decorrente do
processo de territorializao do MST no Alto Serto
Sergipano 1996
2006..................................................................................465
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8.2.3 A terceira fase da luta pela terra e pela gua: resultados da
busca por alternativas num contexto de esfriamento da
desapropriao por interesse social da reforma agrria - jan.
2007 a jan. 2014 ...............................................................489
CONCLUSES ..............................................................................................509
REFERNCIAS...............................................................................................532
APNDICE A TABELAS, QUADROS E MAPAS....................................... 550
ANEXO A TABELAS, MAPAS E QUADROS .............................................570
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INTRODUO
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A expresso Territrios em conflito compreende o objeto de estudo
desta Tese que tem como reflexo: dois processos scioespaciais distintos e
conflitivos que vem historicamente produzindo o espao agrrio do Alto Serto
Sergipano, seja, pela territorializao do capital, ou pela territorializao do
campesinato.
A territorializao do capital tem sido historicamente hegemnica no Alto
Serto Sergipano, em funo de projetos de desenvolvimento econmico,
apoiados pelo Estado. Na atualidade envolve diversas fraes burguesas
integradas no chamado agronegcio direta ou indiretamente vinculadas ao
processo de acumulao do capital em escala nacional e internacional. Sua
permanncia, transformando esse espao agrrio, est condicionada pela
lucratividade, portanto instvel e pode ser transitria. Por outro lado, a
produo camponesa do espao manifesta um modo de produzir e viver de
habitantes do Alto Serto, sendo um projeto de geraes dos camponeses
tradicionais, que vem resistindo aos processos de expropriao e anseiam por
autonomia na sua reproduo social. Essa territorializao alternativa ao
espao hegemnico vem sendo reforada pela recente recriao do
campesinato no bojo da reforma agrria.
Esse conflito na atualidade representado pela disputa de modelos
entre o agronegcio e a chamada agricultura familiar. O governo vem
assumindo esta distino em vrios estudos, como o do INCRA/FAO que
subsidiou a criao da Poltica Nacional de Apoio Agricultura Familiar
PRONAF, em 1995, mas ela foi pela primeira vez retratada e mensurada
oficialmente no Censo Agropecurio de 2006, que fez o corte metodolgico
entre estabelecimentos rurais familiares e no familiares (IBGE, 2009).
Existe uma abrangente e slida organizao que representa o interesse
do modelo do agronegcio no plano nacional a Confederao Nacional da
Agricultura e Pecuria CNA (que congrega sindicatos rurais patronais e
incorporou a antiga Sociedade Rural Brasileira SRB, dos pecuaristas),
presidida pela senadora Ktia Abreu, que tambm articula a atuante bancada
parlamentar ruralista no Congresso Nacional. A Unio Democrtica Ruralista
UDR, embora com menor visibilidade no momento atual outra entidade dos
latifundirios rurais, que faz acirrada campanha de enfrentamento, inclusive
armado, aos sem terra, em defesa do sagrado direito de propriedade,
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desconhecendo a clusula constitucional que exige o cumprimento da funo
social da terra (BRASIL, 1946, 1967, 1988) detalhada nas respectivas
regulamentaes (Estatuto da Terra, 1964 e Lei Agrria de 1993).
Por outro lado, a agricultura familiar uma designao muito ampla e
flexvel que abrange mdios e pequenos produtores rurais com diferenciados
nveis de capitalizao e diferentes formas de organizao poltica, sendo a
mais antiga dessas, o movimento sindical de trabalhadores rurais que congrega
Sindicatos de Trabalhadores Rurais STRs, nos municpios, federaes
estaduais, a exemplo da FETASE Federao dos Trabalhadores da
Agricultura de Sergipe e a Confederao Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura CONTAG; o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MST e outras dezenas de movimentos de luta pela terra (MLT, MLC, CARAS
etc); o Movimento dos Pequenos Agricultores Familiares MPA; a Federao
dos Trabalhadores da Agricultura Familiar FETRAF/Sul transformada em
FETRAF/Brasil (2004). Os agricultores familiares tambm so disputadas
pela prpria CNA.
A unificao de todos os produtores que utilizam prioritariamente a mo
de obra familiar, sob esta denominao, diferenciando-os dos produtores no
familiares que utilizam trabalhadores assalariados, foi problematizada por Sueli
Couto Rosa (s/d). A autora chamou a ateno para o fato de que, no bojo da
discusso dos critrios do PRONAF, em 19951, a CONTAG perdeu para a CNA
a prpria definio desse conceito: para a primeira s deveriam ser assim
considerados os pequenos produtores rurais que utilizassem exclusivamente
mo de obra familiar de forma permanente, aceitando apenas o assalariamento
temporrio nos momentos de pico do processo produtivo. Venceu a proposta
da CNA que admitia at dois assalariados permanentes, alm dos temporrios.
H distintas relaes de agricultores familiares com a agricultura
empresarial, tanto econmica, quanto de representao poltica. Grande parte
dos mdios e at dos pequenos produtores integram complexos
agroindustriais (CAIs) na condio de fornecedores de matria prima agrcola
ou pecuria e fazem parte da base social do movimento cooperativista,
comandado nacionalmente pela Organizao das Cooperativas do Brasil
1 No governo Itamar Franco, a poltica de crdito rural a juros subsidiados denominava-se Programa de Apoio aos Pequenos Produtores Rurais PROVAP (1994).
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OCB e da prpria CNA. Outros agricultores familiares, embora sejam parceiros
econmicos do empresariado rural em diversas cadeias produtivas, procuram
organizar-se politicamente de forma independente, na CONTAG e na
FETRAF/Sul ou FETRAF/Brasil (2004); todas elas vinculadas Central nica
dos Trabalhadores - CUT.
Todavia do ponto de vista econmico a grande maioria dos agricultores
familiares no integra as cadeias produtivas do agronegcio. Politicamente
uma parte dos trabalhadores rurais expropriados, os sem terra, que lutaram
para voltar condio de produtores diretos, reconquistando a terra, compem
a base social das dezenas de movimentos de luta pela terra, com destaque
para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST criado em
1984, que continuam na luta, mesmo quando se transformam em assentados.
Outra parte buscou uma organizao autnoma, buscando afirmar a
identidade camponesa diferenciada da agricultura familiar, no Movimento
dos Pequenos Agricultores Familiares MPA, criado em 1995.
A maioria absoluta dos agricultores familiares continua isolada em suas
unidades de produo em pequena escala, dispersas pelo campo e no se
organiza em nenhum movimento social do campo. Por essas consideraes a
expresso agricultura familiar no ajuda a compreender a verdadeira
polarizao que ocorre no campo brasileiro entre os dois modelos da
agricultura a terra de negcio, isto , a grande explorao capitalista ou
agricultura empresarial latifundiria (com a qual muitos agricultores familiares
esto integrados) e a terra de trabalho, ou seja, a agricultura camponesa,
como diferenciou Jos de Souza Martins em seu livro Expropriao e
Violncia: a questo poltica no campo (1980. p. 45)2.
No Brasil, os latifundirios concentram a terra (riqueza), a renda e o
poder no campo, buscando submeter os milhes de camponeses, na grande
maioria minifundirios (posseiros/ocupantes ou pequenos proprietrios) das
franjas das grandes propriedades rurais, e os que vivem e trabalham dentro
das mesmas (moradores, parceiros ou arrendatrios), aos diversos
mecanismos de sujeio e dependncia, mantidos na extrema pobreza. Esta
situao que expressa a questo agrria no pas ganhou visibilidade a partir
2 MARTINS, Jos de Souza. Expropriao e Violncia: A questo poltica no campo. So Paulo, ed Hucitec, 1980.
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das lutas das Ligas Camponesas que representavam os anseios desse
segmento social amplamente majoritrio e espacialmente disseminado da
populao rural. Desde ento, o conceito de campons ganhou um significado
especfico no pas tendo como significante os camponeses pobres, com
forte conotao poltica.
A manuteno e/ou retomada do conceito de campons por diversos
movimentos sociais do campo de carter popular (que integram a Via
Campesina MST, MPA, CPT, PJR, MMC etc)3 se d concomitantemente
sustentao terica da atualidade do mesmo por parte de alguns intelectuais4
no debate acadmico: antropolgico, sociolgico, econmico e geogrfico.
Ariovaldo Umbelino Oliveira, Alexandrina Luz Conceio, Bernardo
Manano Fernandes, Eliane Tomiasi Paulino, Marta Inez Medeiros
Marques, Valria de Marco, entre outros gegrafos crticos marxistas tm
sustentado a importncia e atualidade do conceito de campons.
O conceito de campesinato na atualidade no Brasil refere-se diretamente
ao modo de vida do amplo contingente de pequenos lavradores ou produtores
rurais (referncia ao pequeno tamanho da terra) dedicados agricultura de
subsistncia (Guilherme Costa Delgado), ou melhor, agricultura voltada
para o auto-consumo e a venda de excedentes, que representam os pobres
do campo (referncia ao nvel de renda, conforme o II Plano Nacional de
Reforma Agrria-PNRA), descapitalizados, que tm sido historicamente
excludos das polticas pblicas de desenvolvimento rural (crdito, assistncia
tcnica, polticas sociais). Em passado recente, em resposta s suas lutas
sociais, estes vm acessando programas governamentais no contexto do
combate a pobreza rural, alguns dos quais por meio da poltica de reforma
agraria.
Dada a formao da autora, desta Tese, em outras reas de
conhecimento das Cincias Sociais - Servio Social (graduao) e Sociologia
Rural (mestrado) perseguiu-se uma aproximao competente com o debate
3 Alm dos j citados MST e MPA passaram a integrar a Via Campesina a Comisso Pastoral da Terra - CPT, a Pastoral da Juventude Rural PJR, ambos ligados Igreja Catlica, o Movimento das Mulheres Camponesas MMC, entre outros.
4 Desde a ltima dcada do sculo XX Horcio Martins de Carvalho Ex Presidente da Associao Brasileira de Reforma Agrria ABRA, reafirma a pertinncia do conceito de campons no debate com outros intelectuais, como Ricardo Abramovay que o considerava superado e defendia sua substituio pelo conceito de agricultor familiar.
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terico-metodolgico travado no interior da cincia geogrfica, de certa forma
facilitada pelo fato de que, desde seu movimento de renovao, ele tem sido
permeado pela interdisciplinaridade, dialogando com as demais cincias
sociais o pensar e agir no espao.
A Geografia, como cincia social tem como objeto de estudo a
sociedade que objetivada via cinco conceitos-chave que se referem ao
humana modelando a superfcie terrestre: espao, paisagem, regio,
territrio e lugar. H diferentes concepes de cada conceito-chave que esto
vinculadas a uma das correntes do pensamento geogrfico: a Geografia
tradicional (em suas distintas correntes), a abordagem teortico-quantitativa, a
viso marxista e a cultural e humanista, as trs ltimas participantes do
mencionado movimento de renovao do pensamento geogrfico a partir de
meados do sculo XX.
Na perspectiva da abordagem crtica marxista identificam-se duas
categorias analticas para a construo do objeto desta Tese: espao e
territrio. A teoria do espao foi esboada em vrias obras do filsofo francs
Henri Lefebvre e desenvolvida e aprofundada no livro La Production de
LEspace, em 1974 (2006). O conceito produo do espao refere-se ao
espao entendido no como uma localidade, e sim como espao social,
vivido, concebido e percebido em estreita correlao com a prtica social; o
espao social como materializao da existncia humana.
Bernardo Manano Fernandes (2005)5 retoma a afirmao de Lefebvre
de 1974 e destaca que, os homens em suas relaes sociais produzem
diversos tipos de espaos sociais concretos, materiais e imateriais. O filsofo
marxista relacionou a produo do espao com a prtica social, como campo
de aes de um indivduo ou grupo social. Considera Fernandes (2005) que as
relaes sociais se movimentam e se fixam sobre o espao geogrfico;
produzem e transformam continuamente o espao social, contido no espao
geogrfico. A materializao da existncia humana conforma o espao social,
destacando a centralidade do trabalho nas relaes homem-natureza e homem
homem. Por isso enfatiza-se a produo do espao pela prtica social dos
grupos humanos construindo paisagens culturais. Mas isso no quer dizer que
5 FERNANDES, Bernardo M, 2005.
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o espao seja apenas produto da sociedade; tambm espao objetivado
funcional.
Fernandes (2005) define o espao geogrfico como aquele que
contm os elementos da natureza e os espaos sociais. Criado
originalmente pela Natureza, produzido e transformado pelo movimento das
foras naturais e da vida, construindo paisagens naturais. O espao ,
portanto, espao natural e social, introduzindo-se na sua compreenso o
movimento, o tempo histrico, os processos que definem a produo do
espao. Dessa forma busca sintetizar a concepo lefebvriana, retomando o
dilogo da superao da dicotomia entre a tradio da Geografia Fsica e da
Geografia Humana.
Rogrio Haesbaert (2002) reconhece que a geografia criica marca a
reaproximao com as cincias sociais em relao s bases filosficas que
norteiam o processo de elaborao do conhecimento6. Alexandrina Luz
Conceio (1991, p.85)7 j tinha ressaltado que a utilizao do mtodo
marxiano-engelsiano de interpretao da realidade social favoreceu a
interdisciplinaridade. Menciona a autora que, j em 1978 Milton Santos, referiu-
se ao marxismo como uma abordagem interdisciplinar.8
Roberto Lobato Corra (2005)9 ressalta que nos artigos da Revista
Americana Antipode, em 1977, Milton Santos elabora o conceito de formao
scio espacial, como elemento central da teoria e mtodo de uma geografia
nova, expresso que se contrape nova geografia apregoada pela corrente
teortico-quantitativa, desde meados da dcada de 1950.
Nos seus escritos Milton Santos reflete sobre a produo do espao pelo
capital. No captulo Espao e Dominao: Uma Abordagem Marxista (2003),10
o autor afirma que no espao organizado pelo homem, se identificam as
formas, os fixos e tambm as interaes espaciais, os fluxos. Decorrentes da
modernizao diferenciadora, relaes entre espao, tcnica e tempo so
introduzidas pelo capital definindo a dominao. O referente autor reflete ainda
6 Haesbaert, Rogrio. 2002.
7 Conceio, Alexandrina Luz. 1991.
8 Conceio (1991, p. 116) afirma ser de grande valia ler o capitulo IX Uma abordagem Interdisciplinar do livro de Milton Santos Por uma Geografia Nova (1978), no qual o autor sintetiza muito bem a questo da interdisciplinaridade na geografia.
9 Correa, Roberto Lobato et al (org) 2005.
10 Ver SANTOS, Milton. Economia Espacial: Crticas e Alternativas, 2003.
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sobre o movimento do capital na contemporaneidade que ele denomina de a
totalidade do diabo, discutindo como essas formas geogrficas que difundem o
capital mudam as estruturas espaciais, tanto no mundo rural, quanto no mundo
urbano.
O materialismo dialtico humanista de Lefebvre projeta a subjetividade
individual na coletiva, valorizando o papel ativo do sujeito coletivo, ou seja, das
classes sociais na histria diante do sistema econmico e poltico (Estado).
No trabalho O Estado, o poder e o socialismo em 1978 Nicos
Poulantzas (na sua fase gramsciana, superando o estruturalismo
althusseriano) assume uma perspectiva de luta de classes, vislumbrando o
papel dos sujeitos polticos, classes e fraes de classe que influenciam o
Estado de fora para dentro ou por dentro dos seus aparelhos, isto a relao
orgnica entre o Estado e a base econmica, na qual os movimentos sociais
como representao desses interesses ganham importncia. Dessa forma o
autor compreende que o Estado (que corresponde ao modo de produo
capitalista) no constitui um bloco monoltico; perpassado pela luta de
classes que se d no mbito da sociedade civil. Entretanto o fortalecimento do
Estado no elimina a possibilidade de sua superao. Para Lefebvre no
existe Estado sem contra-Estado, no existe poder sem contrapoder que o
ameace realmente (Kosminsky e Andrade, 1996).11
Para Lefebvre (2008, p. 57)12 as contradies do espao advm de sua
forma racional, do contedo prtico e social. O espao da sociedade capitalista
contraditrio dissimulado ou mascarado, embora parea lgico. Na prtica
comercializado, despedaado, vendido em parcelas.
Para analisar as contradies no espao: os conflitos assumida a
categoria territrio. O conceito de territrio dentro da opo terico-
metodolgica desta Tese supera a noo estatista referente ao territrio de
uma Nao, e abraa a abordagem relacional do territrio resultante da prtica
social das classes, articuladas de forma multiescalar. O conceito de territrio
permite compreender as formas com que a sociedade modela e organiza o
espao no qual se reproduz, particularmente o capital e os grupos populares.
11
Kosminsky, Ethel V; Andrade, Margarida M. de. O Estado e as classes sociais. In: Henri Lefebvre e o retorno Dialtica. So Paulo: Hucitec, 1996, p. 51 70.
12 Lefebvre, Henri. Espao e Poltica. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
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O conceito de territrio na abordagem relacional da Geografia Crtica
tributrio da retomada da centralidade do conceito de espao na anlise
geogrfica, e sua ressignificao, como espao social. Essa abordagem da
Geografia crtica enfatiza os processos de produo dos espaos sociais e dos
territrios. Nos anos oitenta do sculo XX, Claude Raffestin (1993) introduziu a
problemtica relacional que envolve diferentes atores sociais, em diferentes
escalas. Distintas relaes sociais ao se constiturem numa forma de poder
produzem um espao social especfico o territrio.
Raffestin (1993) e Santos (1996) definem os territrios como sistemas
de aes e sistemas de objetos, similitude ressaltada por Fernandes (2005, p.
63). Ambos entendiam que espao geogrfico e territrio ainda que diferentes,
so o mesmo. Todo territrio um espao (nem sempre geogrfico, pode
ser social, poltico, cultural ciberntico etc), embora nem sempre e nem
todo espao seja um territrio.
Para Fernandes (2005), retomando a definio de Milton Santos, do
territrio como totalidade, a abordagem do territrio feita pela geografia critica
considera que, mesmo constituindo-se em fraes de outros espaos materiais
(territrios concretos) ou imateriais, o territrio multidimencional, isto ,
considera o territrio como espao poltico, econmico e cultural, portanto, s
compreendido em todas as dimenses que o compem com as qualidades
multidimensionais, composicionais e completivas dos espaos.
O espao ressignificado como o lcus da reproduo das relaes
sociais de produo. As pessoas produzem espaos no movimento da vida, da
natureza e da artificialidade e produo de conhecimento, ao se relacionarem
diversamente e so fruto da multidimensionalidade (FERNANDES, 2005).
Os espaos sociais concretos (materiais e imateriais) so produzidos
a partir da intencionalidade, ou seja, um modo de compreenso que um grupo,
uma nao, uma classe social ou at mesmo uma pessoa utiliza para poder se
realizar, conquistar espaos e territrios. Nesse sentido, o territrio uma
totalidade restringida pela intencionalidade dos sujeitos sociais que buscam
materializar no espao um modo de existir, uma identidade. As relaes sociais
por sua diversidade criam vrios tipos de territrios que so territrios
contnuos e em reas extensas ou descontnuos em pontos e redes; formados
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por diferentes escalas (um espao pluriescalar ou multiescalar) e dimenses
(de uma nao e no interior da mesma).
Como foi dito, o conceito de territrio permite compreender as formas
com que a sociedade modela e organiza o espao no qual se reproduz,
particularmente o capital e os grupos populares. Os grupos sociais populares
criam espaos ou territrios alternativos, em relao ao espao
unilateralmente produzido pela lgica econmica do grande capital articulado
com a lgica poltico-econmica do Estado (respectivamente nas escalas
internacional e nacional), criticando esses espaos hegemnicos.
Nesta Tese a expresso conceitual Territrios em conflito entendida
no processo de apropriao da terra e envolve outros conceitos como
territorializao do capital monopolista, monopolizao do territrio pelo
capital, que so compreendidos a partir da discusso do papel do Estado
burgus, bem como resistncia e recriao camponesa como territorializao
alternativa, movimentos scioterritoriais e scioespaciais e reforma
agrria. Entende-se que os processos geogrficos de espacializao e
de territorializao, e seus desdobramentos na desterritorializao e
reterritorializao na escala subnacional so direta ou indiretamente vinculados
ao processo de acumulao do capital em escala nacional e internacional,
movimento esse compreendido como desigual e combinado, a partir dos
clssicos marxistas, retomados por gegrafos como Neil Smith (1988)13 ou
como Ariovaldo U. Oliveira (1988; 1991)14.
A perspectiva geogrfica assumida nesta Tese enfoca as
territorializaes conflitantes que traduzem espacialmente a luta de classes no
campo. A produo do espao se d pela prtica social das classes em
confronto o capital e o campesinato, por meio de seus movimentos sociais
(olhar sociolgico) ou movimentos scioterritoriais (olhar geogrfico),
segundo Fernandes (2005).
Quando sujeitos diferentes disputam a apropriao do espao, tendo
como ponto de partida a apropriao da terra, meio de produo fundamental e
sua expresso jurdica: a propriedade ocorre a territorializao do vencedor e a
13
SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual. Natureza, Capital e a Produo de Espao. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988.
14 OLIVEIRA, Ariovaldo. 1988 e 1991.
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desterritorializao do perdedor, enquanto movimentos scio-territoriais
simultneos, complementares, mas ao mesmo tempo, desiguais, contraditrios
e conflitivos (FERNANDES, 2005).
O objetivo geral dessa tese foi analisar as transformaes do espao
agrrio do Alto Serto Sergipano, ocorridas a partir dos processos geogrficos
distintos e conflitivos que representam as lutas sociais (territorializao das
classes): a territorializao do capital e a do campesinato. Investigou-se as
mudanas fundirias decorrentes dos referidos processos geogrficos e as
consequentes transformaes das relaes sociais de produo que
conformam a estrutura agrria no Alto Serto Sergipano, enfocando, sobretudo,
a recente territorializao dos movimentos de luta pela reforma agrria.
Especificamente buscou-se, de um lado, refletir sobre as relaes
sociais e de poder que produzem o espao agrrio a partir do confronto de
classes na luta pela terra, configurado por territrios distintos, mas envolvidos
em relaes de complementaridade e de conflitualidade. De outro lado,
buscou-se analisar o papel do Estado, avaliando em que suas aes, por meio
de polticas pblicas: de desenvolvimento regional, fundirias, agrrias,
agrcolas e sociais, reforam contraditoriamente as territorialidades em disputa.
O ponto de partida foi a hiptese de que a experincia da reforma
agrria refora o processo de recampenizao dos trabalhadores rurais sem
terra e, ao mesmo tempo, de forma indita no estado de Sergipe, abre a
possibilidade de gestao de um abrangente e politicamente significativo
territrio campons, em parte recriado pela reforma agrria, na medida em que
os movimentos ligados luta pela terra, particularmente o MST reforam
econmica e politicamente o campesinato tradicional, e os movimentos sociais
que os representam, pelos processos de aliana que protagonizam.
Essa experincia de construo de uma rea reformada evidencia o
carter estrutural da reforma agrria como poltica pblica e sua potencialidade
para alterar as condies de vida dos trabalhadores rurais, tanto na superao
da pobreza material como da pobreza poltica (DEMO, 2000), reforando o
modo de vida campons.
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Na menor escala de anlise15 - os assentamentos -, cada um deles
sendo institucionalmente criados pelo INCRA considerados uma rea
reformada enquanto sinnimo de projeto de assentamento de reforma agrria,
sobretudo onde h contiguidade ou proximidade espacial de vrios deles,
podem influenciar seu entorno pela experincia de luta coletiva, desde a fase
de acampamento, que continua na fase de assentamento pelas melhorias das
condies de trabalho e de vida: como estrada, posto de sade, escola etc.
Tomando-se o conjunto dos municpios do Alto Serto, a rea
reformada, ou seja, o novo espao agrrio que vem sendo produzido pelos
sem terra, pode constituir-se no ncleo poltico que articula e consolida o
territrio campons, na medida em que os Sem Terra16, quando conquistam a
terra e recriam a condio social camponesa se articulam com o campesinato
tradicional a partir dos movimentos sociais/socioterritoriais que os representam.
Esses movimentos tambm se apresentam como perspectiva de luta
para camponeses isolados ou apenas organizados em associaes nas vrias
localidades, sem articulao horizontal entre si e com forte integrao
verticalizada com o Estado, muitas vezes envolvidos pelos mecanismos
clientelistas da relao poltica tradicional com a populao rural (LISBOA,
2007).
Pelo protagonismo poltico desses sujeitos coletivos, a partir da
resistncia organizada enquanto movimentos socioterritoriais, em suas lutas
especficas e conjuntas, na disputa da terra, da gua e dos rumos das polticas
pblicas o Alto Serto Sergipano abriga no apenas um significativo
contingente numrico campons, mas um territrio de vida, de luta e de
construo da justia social17 alternativo ao espao hegemnico do capital.
Defende-se nesta Tese que os territrios alternativos no apenas
questionam, mas tambm interferem nos fluxos dos espaos hegemnicos,
como espao liso homogeneizante impostos pela ordem social e poltica
15
A expresso menor escala refere-se a determinado nvel de aproximao da realidade, menor unidade de anlise, conforme a autora (2005). Essa expresso est invertida em relao linguagem cartogrfica que seria maior escala.
16 Lideranas do MST chamam a ateno para a diferena importante entre as expresses
sem terra e Sem Terra, ressaltando que a segunda implica necessariamente na referncia da ao coletiva organizada enquanto base social desse movimento social em particular.
17 Referncia direta ao subttulo do livro: OLIVEIRA, A.U; MARQUES, M.I.M (Orgs.) O Campo
no Sculo XXI. So Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, 2004.
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dominante, criando neles suas rugosidades, representadas pela influncia da
ordem espacial no direcionamento dos processos sociais.
A relevncia desta temtica se evidencia pelo fato de que, em geral os
planos de desenvolvimento do Estado brasileiro em suas diversas escalas
espaciais (nacional, macro, meso e microrregionais ou ainda locais) foram e
so voltados, prioritria, seno exclusivamente para reforar o avano do
capital no campo, o que no semi-arido nordestino se traduz em propostas
modernizantes de implantao de grandes permetros irrigados, tendo como
marco no Vale do So Francisco o polo Juazeiro - Petrolina.
A reforma agrria permitiu que tal situao se invertesse, por meio de
um processo socioespacial que posiciona os camponeses de maneira mpar
para prosseguir na disputa dos recursos naturais terra e gua - das polticas
pblicas do Estado que definem os rumos do desenvolvimento regional com as
foras econmicas do grande capital nacional e transnacional aliada do
latifundirio local: projetos de irrigao e agroindustrializao, com base na
cooperao agrcola e na defesa de uma nova matriz produtiva fundada na
transio agroecolgica. Dessa forma lutam pela redistribuio de riqueza,
renda e poder na regio.
Neste sentido, a problemtica dos territrios em conflito delimitada ao
enfocar o processo de produo do espao em correlao com a prtica social
das classes em confronto, que funda a anlise dos processos empricos que se
desenrolaram historicamente na produo e transformao espao agrrio do
Alto Serto Sergipano.
enfatizada a forma especfica do processo de enfrentamento da
questo agrria, que aponta para um ponto de inflexo na disputa territorial,
isto , na tendncia histrica da apropriao da terra, que vem ocorrendo h
aproximadamente trs dcadas, singularizando o espao geogrfico do Alto
Serto sergipano: o processo de territorializao dos movimentos sociais do
campo pela reforma agrria, especialmente do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST. Como afirma Conceio S a luta pela reforma
agrria garante a apropriao do territrio pelos movimentos sociais do campo
de carter popular (CONCEIO, 2009)18.
18
Alexandrina Luz Conceio, maio de 2009. Comentrios da Professora em aula de Teoria Agrria/NPGEO/UFS.
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A acumulao de foras desses movimentos scioterritoriais e
scioespaciais vem se dando na relao direta com o processo gradual, mas
cumulativo, de redistribuio fundiria de forma massiva em relao
superfcie territorial dos seis municpios que formam o territrio institucional do
Alto Serto Sergipano, conforme estabelecido em 2003 pela Superintendncia
Regional do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INCRA/SR
23 e Secretaria de desenvolvimento Territorial - SDT do Ministrio do
Desenvolvimento Agrrio MDA: Canind do So Francisco, Poo Redondo,
Monte Alegre de Sergipe, Porto da Folha, Nossa Senhora da Glria e Gararu.
A institucionalizao deste territrio do Alto Serto Sergipano pelo
INCRA/SDT apenas reconheceu um processo de construo deste territrio de
luta pelos movimentos scio-territoriais; o mesmo sentido e a mesma
delimitao fizeram convergir o territrio institucional e o territrio real de que
trata esta tese.
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A escolha deste objeto se deve ao carter indito no Estado de Sergipe
da possibilidade de gestao de um abrangente e politicamente significativo
territrio campons, em parte recriado pela reforma agrria.
O Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais - MSTR e pastorais
sociais da Igreja Catlica (Diocese de Propri) foram responsveis pela
primeira luta vitoriosa no Alto Serto, em 1979 o territrio indgena Xoc,
nica tribo existente neste estado (FUNAI). Sete anos depois o MSTR e o MST,
juntos, com apoio das pastorais sociais fizeram a primeira
ocupao/acampamento que resultou no primeiro assentamento de reforma
agrria do INCRA no Alto Serto Barra da Ona no Alto Serto, em 1986. A
partir de ento esses movimentos isoladamente seguiram na conquista da
terra, com destaque para o MST, a partir de 1996.
Como resultado da reforma agrria em quase trs dcadas, existem
atualmente, em fevereiro de 2014, no Alto Serto Sergipano 97 assentamentos
de reforma agrria, nos quais vivem 5.302 famlias. O MST e, sobretudo o
MSTRT, lanaram mo de outros mecanismos de reordenamento fundirio,
para assentar, no primeiro caso 60 famlias (Banco da Terra) e, no segundo,
311 famlias, em 15 assentamentos rurais (Crdito Fundirio), com
intermediao do governo do estado de Sergipe, totalizando o acesso de 371
familias a mais de 4.030,37 hectares, em 16 assentamentos rurais.
Trs povos tradicionais se lanaram na luta pela terra reconquistando
seus territrios seculares, e, portanto se reterritorializando: as 108 famlias da
tribo Xoc, reconquistaram a ilha de So Pedro em 1979 e a fazenda Caiara
em 1992, formando um territrio de 4.317 hectares em Porto da Folha. Neste
mesmo municpio as 114 famlias da comunidade Mocambo foram
reconhecidas como remanescentes quilombolas, em 2000, apropriando-se do
territrio de 2.100 hectares. Por fim, as 197 famlias da comunidade quilombola
de Serra da Guia, em Poo Redondo, tiveram reconhecimento legal do seu
territrio de 9.013,16 hectares, em 2012.
O processo cumulativo de territorializao dos movimentos scio-
territoriais, recuando a 1979 at janeiro de 2014 totalizou finalmente 116
assentamentos/tribo/comunidades, com 6.092 famlias e 104.612,28 hectares
que conformam um grande territrio campons nucleado pela reforma agrria.
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Este amplo reordenamento fundirio (mais de 100.581, 91 hectares)
confere ao Alto Serto Sergipano o carter de uma rea reformada em
construo, conceito resgatado de Jos Gomes da Silva (1971). Para o autor,
quando se conjugam determinadas condies como: uma slida organizao e
ao radical dos movimentos sociais do campo, com uma redistribuio
fundiria massiva (relativa a determinado espao geogrfico) e a sinergia de
entidades governamentais e no governamentais trs elementos constitutivos
de uma rea reformada, a poltica de reforma agrria possibilita a segmentos
sociais excludos e jamais consultados, exigirem seu reconhecimento enquanto
agentes econmicos e sujeitos polticos.
Esse universo campons que reconquistou o direito de propriedade da
terra consiste num universo dinmico que ser acrescido a cada vitria das
1575 famlias acampadas em 48 ocupaes e pela regularizao fundiria do
significativo contingente de pequenos posseiros, o que evidencia o
significativo peso numrico dos vrios segmentos do campesinato no Alto
Serto Sergipano.
A postura tica poltica assumida pela pesquisadora se afirma engajada
com o ponto de vista dos camponeses, dando visibilidade sua luta. Essa
investigao geogrfica sustentada no mtodo do materialismo histrico
dialtico e foi analisada com a utilizao combinada de diversas tcnicas e
instrumentos quali-quantitativos.
Entre as fontes secundrias, a pesquisa bibliogrfica resgatou a
discusso terico-conceitual, e procurou dialogar particularmente com a
produo do prprio NPGEO, sobretudo com os estudos sobre o Alto Serto
Sergipano.
A pesquisa de dados censitrios em fontes oficiais, sobretudo do INCRA
(estatsticas cadastrais), permitiu a caracterizao da estrutura fundiria em
alguns momentos 1972, 1993, 2003, dez. 2005, 2013, para permitira a
anlise das transformaes fundirias desse espao agrrio.
A pesquisa jornalstica impressa conseguiu captar momentos de
mobilizao e reivindicaes dos movimentos scio-territoriais do Alto Serto
Sergipano, de maior repercusso do embate entre os territrios em conflito, e
de inauguraes de assentamentos por autoridades ou reconhecimento dos
territrios dos povos tradicionais. Os sites dos movimentos sociais que
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representam interesses da elite e dos trabalhadores sem terra, alm dos
rgos federais e estaduais foram pesquisados.
Dentre as fontes primrias, a pesquisa documental procurou analisar os
movimentos sociais e o papel do Estado, nos protocolos de inteno assinados
entre eles, nos atos oficiais publicados. Os dois tipos de listagens de
assentamentos (24/02/2014) e a listagem de acampamentos (de 31/01/2014)
foram fontes primrias nessa investigao (so listas operacionais para o rgo
no publicadas), base para as sistematizaes da evoluo da reforma agrria
no Alto Serto Sergipano.
O trabalho de campo in loco caracterizou-se por duas tcnicas
combinadas: a observao participante assistemtica (perspectiva diacrnica),
refletindo a insero da pesquisadora no Alto Serto, desde 1995, em
atividades de ensino, pesquisa e extenso universitria, que oportunizaram
observar por dentro alguns dos processos analisados, inclusive enquanto
membro do Colegiado de Desenvolvimento Sustentvel do Territrio do Alto
Serto, desde 2003, representando a Universidade Federal de Sergipe,
juntamente com Alcidia Silva. Em muitos desses momentos foram realizadas
entrevistas no estruturas com lideranas ou base dos movimentos scio-
territoriais e scioespaciais.
Entrevistas semi-estruturadas individuais ou grupais realizadas com
gestores, tcnicos governamentais e de ATES, lideranas de movimentos
sociais, assentados e acampados foram realizadas entre 2006 e 2013, na
busca das informaes acerca dos projetos empresariais/governamentais e dos
projetos de reforma agrria.
Entrevistas estruturadas (perspectiva sincrnica) foram realizadas com
461 famlias assentadas, entre novembro de 2006 e fevereiro de 2007,
centradas nas dimenses terra, trabalho, produo, renda, patrimnio,
condies de vida, organicidade em movimentos sociais, avaliao de polticas
publicas, amostra estratificada em cada um dos 54 PAs, mais os Xoc, o
Mocambo e o Bom sucesso, totalizando 77 assentamentos/tribo/comunidade
(universo em outubro 2006). No entanto dificuldades retardaram a tabulao
eletrnica dos dados, impossibilitando sua anlise no mbito desta tese, que
reorientou a investigao para a terra. Ao tempo em que consistiu um limite
desta tese (em relao ao projeto de pesquisa), obrigando sua reorientao e
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34
retardando sua concluso, representa a possibilidade concreta de continuidade
da investigao sobre a reforma agrria no Alto Serto Sergipano.
Esta Tese est estruturada em oito captulos, alm desta Introduo e
das Concluses. O primeiro captulo enfatiza a retomada do espao como
conceito chave da geografia pelos gegrafos crticos, sobretudo seu ncleo
radical calcado no materialismo dialtico, com nova significao enquanto
espao social e o papel das classes e do Estado na produo desse espao
que expressa o desenvolvimento capitalista desigual e combinado. Resgata na
trajetria do pensamento geogrfico a mudana da definio de territrio
enquanto superfcie de uma Nao que se constitui no espao vital para o
Estado, a uma abordagem relacional, em diversas escalas e envolvendo
diversos atores (institucionais) e sujeitos polticos. Especificamente aponta a
partir de quando e com que significado surge na trajetria do debate terico da
geografia agrria, o conceito de territrio, e como o desenvolvimento capitalista
no campo e a resistncia do campesinato comeam a ser tratados de forma
articulada enquanto territrios em conflito.
O segundo captulo retoma o debate sobre os processos geogrficos
primrios de espacializao, territorializao-desterritorializao-
reterritorializao (TDR), reforando a perspectiva que os trata enquanto
expresses espaciais da luta de classes. Aborda por um lado a produo do
espao pelo capital/burguesia e Estado, que se torna dominante e, de outro
lado, a espacializao/territorializao dos grupos populares, que procura
manter ou (re)construir territrios alternativos ao espao hegemnico.
O terceiro captulo entra na discusso do direito fundamental que est
em jogo nos territrios em conflito o direito de propriedade da terra. Retoma
as origens do debate na filosofia social e no jusnaturalismo que condicionavam
a propriedade da terra ao trabalho como direito natural (humano fundamental).
E situa as lutas sociais camponesas, suas (raras) vitorias em momentos
histricos anteriores, que demonstraram a correlao direta entre distribuio
mais igualitria da propriedade da terra e democracia social e politica, situando
a questo agrria, e a inverso desse direito na discusso global do Modo de
produo capitalista.
O captulo quatro continua a reflexo terico-histria sobre o direito de
propriedade da terra pontuando a relao da significao distorcida desse
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35
direito como um direito civil individual e absoluto da burguesia com o
desenvolvimento da sociedade e do Estado liberal. Somente com a crise
econmica, social e poltica desse Estado, a partir do inegvel protagonismo
das foras socialistas no acirramento da luta de classes foram gestadas
experincias de construo de formas de Estado Social (socialistas
revolucionrios e produto do pacto social democrata Welfare State) que
possibilitou a retomada do sentido social do direito de propriedade expresso na
funo social da terra.
O quinto captulo retoma o clssico debate sobre o desenvolvimento do
capitalismo no campo, por meio dos dois processos de avano do capital
territorializao e monopolizao do territrio pelo capital; e a
espacializao/territorializao camponesa, que procura manter ou (re)construir
territrios alternativos ao espao hegemnico. Nesse sentido territrios em
conflito analisado como a verso geogrfica da questo agraria, por isso a
anlise centrada nos movimentos scioterritoriais e socioespaciais,
colocando a apropriao do espao e os processos de TRD no centro da luta
das classes, com destaque, no Brasil para o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST.
O captulo seis aborda o enfrentamento efetivo da questo agraria por
meio da poltica redistributiva de terras. Estende o olhar sobre a situao da
distribuio da terra e experincias de reforma agrria no mundo, que apontam
num sentido geral para uma poltica estratgica de Estado ao delimitar o
tamanho mximo para a propriedade da terra em diversos pases, enquanto o
Brasil aparece na contramo da democratizao da terra, na medida em que
vem concentrando sua estrutura fundiria.
O stimo e o oitavo captulos dialogam entre si, se complementam
para mostrar os territrios em conflito no Alto Serto Sergipano, estando o
stimo centrado na luta pela terra; e o oitavo nos resultados dessas lutas a
redistribuio fundiria.
O captulo sete apresenta a territorializao dos diversos movimentos
scioterritoriais camponeses, e os movimentos socioespaciais que os apoiam
na produo desse novo espao agrrio no perodo de 35 anos desde 1979 at
2014, dividido em trs fases: 1979 e 1986 a 1996; 1996 a 2006 e 2007 a
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fevereiro de 2014. Os territrios em conflito referem-se disputa da terra, mas
tambm da gua, focando nas vitrias dos sem terra e povos tradicionais.
O oitavo captulo apresenta os resultados do confronto entre os
territrios em conflito, por meio do gradual processo de apropriao da terra ao
longo das mesmas trs fases, tratadas agora no mais como luta, mas como
efetiva territorializao dos movimentos scio-territoriais. O outro polo dos
territrios em conflito a desterritorializao dos latifndios por explorao
(grandes e mdias propriedades improdutivas), de 1972, estabelecido como
ponto zero para a anlise da redistribuio fundiria, analisando esse
elemento contraditrio das aes do Poder Pblico, sobretudo o INCRA. O
desfecho da disputa territorial, que vem transformando a estrutura fundiria do
Alto Serto Sergipano, tambm pode ser visualmente demonstrado pela
cartografia dos assentamentos em trs momentos, 1992, outubro de 2006 e
2013 (que inclui os dois territrios quilombolas).
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CAPTULO 01
ESPAO E TERRITRIO NO DEBATE GEOGRFICO E SUAS
PARTICULARIDADES NA GEOGRAFIA AGRRIA.
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38
In Elias de Castro (2005); Paulo Csar da Costa Gomes (2005) e
Roberto Lobato Corra (2005) apresentam a Geografia, como cincia social,
que tem como objeto de estudo a sociedade, objetivada via cinco conceitos-
chave espao, paisagem, regio, lugar e territrio.
H diferentes concepes de cada conceito-chave da Geografia
vinculadas s correntes do pensamento geogrfico, conforme as matrizes
filosficas que as fundamentam, como foram situadas no captulo 1: a
geografia tradicional (em suas distintas correntes de razes positivista,
historicista e idealista dialtica/anarquista) e as correntes do mencionado
movimento de renovao do pensamento geogrfico, a partir de meados do
sculo XX: a abordagem teortico-quantitativa (neopositivista), a Geografia
crtica (de raiz materialista dialtica/ marxista) e a geografia humanista e
cultural renovada (neo-historicista e fenomenolgica).
Este segundo captulo resgata os conceitos de espao e territrio na
trajetria do pensamento geogrfico. O que importante registrar, de incio,
que a estrutura lgica do captulo expressa uma reflexo baseada na inter-
relao entre os dois conceitos, que se busca, e refere-se coerncia da
concepo de territrio, em relao concepo de espao, dentro do
referencial terico-metodolgico nos quais se inscrevem. Tambm ser
mencionado quando o espao e/ou o territrio aparecem enquanto sinnimos
implcitos ou interligados aos demais conceitos geogrficos fundamentais.
1.1 A categoria Espao como conceito chave no debate geogrfico
Conforme Rogrio Haesbaert (2002) a retomada da categoria espao
como conceito geogrfico chave deveu-se aos gegrafos crticos, sobretudo,
ao seu ncleo radical marxista. Nesta abordagem, o espao adquiriu nova
significao enquanto espao social e passou a ser enfatizado o papel das
classes e do Estado na produo do espao, originando o conceito de territrio
com nova significao, coerente com essa nova definio espacial e nova
abordagem relacional do territrio, multi ou transescalar. Em suma, Castro
(2005), Gomes (2005) e Corra (2005) afirmam que, atualmente, para todas as
correntes da Geografia consenso a centralidade do espao, ou melhor, do
espao geogrfico, embora ainda com significados distintos.
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39
Da mesma forma, nos estudos territoriais a definio clssica de
territrio no foi superada, tendo havido uma diversificao do significado
desse conceito. Houve rebatimentos das novas significaes dos dois
conceitos nos estudos sobre o campo, como parte da renovao terico-
metodolgica do pensamento geogrfico que se espraiou para todos os ramos
do conhecimento geogrfico.
Segundo Gomes (2005) etimologicamente espao do latim spatium
visto como contnuo ou como intervalo no qual os corpos esto dispostos
conforme certa ordem. A noo de espao para In Elias de Castro (2005) e
Roberto Lobato Corra (2005) utilizada pelo senso comum e em diversas
cincias sociais, como referncia geral de localizao e extenso (delimitando
caractersticas diferenciadoras das reas). Castro (2005), Gomes (2005) e
Corra (2005) identificam na cincia geogrfica moderna cinco conceitos-
chaves que expressam a ao humana modelando a superfcie terrestre:
espao, paisagem, regio, territrio e lugar.
Rogrio Haesbaert (2002, p.142) no apresenta o espao entre os [...]
conceitos bsicos da geografia: uma proposta de sistematizao. 19. Todavia o
espao est presente implicitamente de duas maneiras: primeiramente como
uma categoria geral por trs de todos os demais conceitos que privilegiam
determinadas dimenses do mesmo e em segundo lugar, relaciona-se com o
conceito de meio ambiente20, sobre o qual o autor explicita sua importncia na
Geografia Fsica em vrias correntes e tambm na Geografia Cultural, de
Berque.
Dentre os conceitos geogrficos-chave, Corra (2005) enfocou em seu
artigo o significado do conceito de espao atribudo pelas diversas correntes
geogrficas e um conjunto de prticas espaciais (conceitos operacionais para o
estudo do espao geogrfico). Na Geografia, como afirma Corra (2005) o
espao geogrfico foi entendido como poro especfica da superfcie da Terra.
19
Os conceitos listados por Haesbaert (2002) diferenciam-se da classificao de Castro (2005), Gomes (2005) e Corra (2005), por aparentemente suprimir o conceito de espao e acrescentar em relao aquela os conceitos de meio ambiente e redes, o primeiro relaciona-se com os conceitos de espao e paisagem e este ltimo com os conceitos de regio e territrio.
20 O meio ambiente, segundo Haesbaert (2002), possui carter predominantemente objetivo; a dimenso do espao privilegiada a natural; em diversas escalas. Com relao ao enfoque das relaes sociedade/natureza forte com relao natureza e fraco em relao sociedade.
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Na Geografia Clssica, entre 1870 e 1950, o espao no era considerado o
objeto da Geografia, estando o contedo desta noo embutido em outros
conceitos.
Os estudos de geografia fsica, conforme Gomes (2005) tiveram como
antecedentes no sculo XVIII, os trabalhos de Buache (de 1752) sobre as
bacias hidrogrficas como demarcadores naturais das regies naturais e, em
meados do sculo XIX, os trabalhos dos gelogos Lyell (Inglaterra) e Beaumont
(Frana), com base no conceito de meio21. Nos dois casos referiam-se a uma
noo objetiva do espao, embutida nesses conceitos.
No ltimo quartel do sculo XIX, a geografia institucionalizou-se como
cincia, nas universidades europeias, particularmente na Alemanha a partir das
contribuies de Alexander Humboldt e Karl Ritter. Esses autores inicialmente
no separavam a cincia natural e a cincia humana, espao e tempo,
geografia e histria em suas formulaes. Os dois autores no trabalhavam
diretamente com o conceito de espao, mas o contedo da noo de espao
depreende-se dos outros conceitos por eles elaborados.
Para Alexander Humboldt, na obra Quadros da Natureza (ANO) a
categoria definidora do espao era a natureza, na sua dimenso mxima do
universo, enquanto cosmoviso, isto , de tudo o que est fora do limite do
homem. Humboldt sofreu influncia da Zoologia e da Zootcnica (disciplinas da
Biologia). Para ele a paisagem surgia a partir do buclico (desde o sculo XVIII
a vida natural e do campo era retratada artisticamente), mas o olhar do
gegrafo devia ir alm da paisagem, voltado interpretao do que via.
Num caminho oposto ao de Humboldt (ANO), Karl Ritter (ANO)
inaugurou o mtodo cientfico de leitura minuciosa e detalhada da geografia, a
partir da delimitao de escalas menores para se enxergar as particularidades,
introduzindo o conceito de lugar, enquanto poro, localidade enquanto
sinnimo de regio22, que permitiu maior preciso e aprofundamento dos
estudos geogrficos. Ritter (ANO) levou em conta em sua teorizao a histria
como tempo linear, cronolgico, quando afirmava que a localidade tem em sua
21
Meio era sinnimo de regio. 22 Conforme Conceio em explanao em sala de aula (ACRESCENTAR DADOS) no Tpico
de HPG no segundo perodo de 2009, os gegrafos assim como Ritter compreendem a regio como poro de rea, com latitude e longitude, com um elemento fsico determinante. Mas, diferentemente daquele autor hoje est implcita no conceito de regio uma conotao poltica.
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existncia uma singularidade. Para este autor o homem visvel, mas no faz
parte da natureza, continua fora da paisagem.
Outro autor clssico da Geografia moderna foi Friedrich Ratzel, em cujas
obras: Geografia Poltica (de 1880), Antropogeografia; Solo, a Sociedade e o
Estado no sculo XIX, o espao aparece como base indispensvel da vida do
homem. No centro de sua teorizao est o conceito de espao vital,
compreendido a partir da Geografia Fsica, da influncia do clima e da
vegetao sobre a vida humana; como solo, meio, tal qual Lyell, acima referido.
E, como Humboldt, sofre influncia organicista e evolucionista da Biologia. O
meio o espao que propicia as condies de vida, alimento e moradia23,
encerrando condies de trabalho, naturais ou socialmente produzidas.
Na abordagem anarquista Elisee Reclus (ANO) na leitura sobre as
relaes entre o Homem e a Natureza, enfatiza que [...] os humanos so um
componente integral da Natureza [...], formada de elementos fsicos (o relevo,
o clima etc.), ecolgicos (os vegetais e os animais) e humanos com a qual
mantm laos de interdependncia (BOINO, 2010, p. 31-32). Reclus era
partidrio da unidade da geografia, ou seja, estudava as interrelaes entre os
fatores naturais e humanos. Questionando os que acusam a obra reclusiana
como meramente descritiva, ou os que a retomam de forma fragmentada,
Boino afirma que o referente gegrafo;
[...] desenvolveu um pensamento geogrfico global e coerente [...] Seus trabalhos cobrem o conjunto do campo da geografia, tanto em geografia humana, quanto em geografia fsica [...] pois Reclus defendia a unicidade da geografia. (BOINO, 2010, p.28).
Nos dois textos de Elisee Reclus analisados, dentre seus inmeros
trabalhos geogrficos, escritos entre 1864 e 1905 - Da Ao Humana sobre a
Geografia Fsica (de 1864) e em Geografia Comparada no Espao e no
Tempo (de 1894) - ele raramente utiliza o termo espao e quando o faz em
geral para qualificar uma medida de tamanho, uma extenso: espao
insuficiente, espaos de grandes extenses (RECLUS, 2010a, p.58-68);
23
Informao verbal (Acrescentar outros dados, alm destes, Conceio, explanao oral, 2009).
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espao restrito, a astronomia contempla o espao sem fim, espao mais
vasto (RECLUS, 2010b, p. 72-88).
Nesses dois trabalhos Reclus utiliza diferentes conceitos de espao,
destacando a escala planetria. O conceito mais utilizado tanto em 1864,
quanto em 1894 a terra ou a Terra, com algumas variaes - superfcie da
(nossa) terra, aspectos geogrficos da terra, formas terrestres, por exemplo: A
terra o corpo da humanidade e o homem a alma da terra [.] Essas obras
teis (drenagens, irrigao etc.) constituem autnticas revolues geogrficas e
que mudam o aspecto da terra sobre espaos de grande extenso. (RECLUS,
2010a, p.52-68).
A Terra e suas formas precisas que constituem individualidades o
objeto de estudo da geografia comparada para Reclus, em 1894:
[...] a histria da Terra e aquela da humanidade em suas aes e reaes contnuas desde as origens conhecidas at os tempos que se preparam [...] buscaremos seguir a evoluo da humanidade em relao s formas terrestres e a evoluo das formas terrestres em relao humanidade. (RECLUS, 2010b, p.78-79).
Na mesma escala mxima refere-se nos dois trabalhos: planeta, globo,
mundo, mapa mundi; superfcie do planeta, dos continentes/continental, dos
desertos; regies vitais do planeta, inumerveis fenmenos da vida planetria.
Em menor escala (nacional) refere-se, apenas em 1894, a pas e grande
ptria (num sentido objetivo prprio pas e subjetivo pas da felicidade).
Em escala indefinida utiliza nas duas obras: regies a serem comparadas e
nomeadas; natureza, terra (cultivada) ou solo, e referindo-se a localizaes
nomes de locais, lugares, zonas, distritos, provncias com nome prprio
caracterstico. Nestes trabalhos raramente mencionou meio ambiente, meio(s)
ou paisagem.
Ao analisar as relaes entre homem e natureza, em 1864 seu foco
recaiu na reflexo sobre a ao destrutiva do homem sobre a Terra, dialogando
com G. P. Marsh. A questo da preservao do equilbrio natural no se
colocava para Reclus como respeito a uma ordem exterior imutvel.
Reclus (2010) afirmava que as condies naturais podem ser
determinantes de, um ponto de vista relativo, quanto menos avanada for
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43
organizao social, mas como a histria geral modifica o valor relativo de todas
as coisas, h aspectos da natureza que, mesmo sem terem mudado, passam a
exercer uma ao diferente, porque as interaes entre os elementos de um
determinado meio evoluem e a sociedade controla cada vez mais os elementos
naturais, sem que o equilbrio do meio seja, necessariamente, ameaado
(BOINO, 2010).
Sendo a natureza dinmica, transformando-se incessantemente o
Homem deve;
[...] evitar atentar contra certos laos de interdependncia que o liga a seu meio, o que por efeito de retorno, poderia ser-lhe fatal. Nessa perspectiva, o fato de tentar preservar o equilbrio natural, no deve absolutamente impedir o Homem de ordenar a utilizao da natureza. Ele deve desenvolver em contrapartida seu conhecimento do funcionamento do mundo para levar em conta os possveis fenmenos de retroaes e assim prevenir-se de certos perigos. (BOINO, 2010, p. 33).
Na sua Geografia Comparada, em 1894, (RECLUS, 2010b) preocupou-
se com referncias espaciais ligadas imaginao e aos sentimentos e
beleza (esttica): tanto num sentido nostlgico24, quanto num sentido de
esperana ligados a lendas msticas25, histria sagrada26, com inmeros
exemplos (fruto da observao) e, por fim, ligados aos ideais anarquistas:
O mundo mudou de orientao: no olha mais para o passado. s centenas foram fundados nos Estados Unidos, no Mxico, no Brasil, na Austrlia, at mesmo na velha Europa, na frica em grande quantidade, colnias e falanstrios pelos quais se busca com maior ou menor sucesso estabelecer sociedades de trabalhadores felizes. Mas este o lado muito pequeno da experimentao geral. Alm dessas inmeras empresas que tentam aplicar no solo as foras industriais, os procedimentos qumicos e a fora solidarizada do trabalho livre e que na falta de outro mrito, tm ao menos um valor de estudo psicolgico a sociedade inteira, com o turbilho de seus diversos modos de agir, tornou-se um vasto campo de estudos e experincias para transformao geral das coisas [...] outros homens de ideal pensam em humanizar a grande ptria unir-se
24
Sentido nostlgico - ptria perdida, paraso perdido 2 referncias. 25
Ligados a lendas msticas paraso, El Dorado, parasos naturais, pas da felicidade, jardim das delcias, antigo paraso terrestre 6 referncias.
26 Ligados histria sagrada [...] o cristianismo para desviar de vs esperanas terrestres mostrou o paraso no cu [...]; os cristos esperam ainda um milagre para que a terra divinize-se sob o governo direto de um Rei de Gloria. (RECLUS, 2010, p.95-96).
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com ela de modo mais ntimo, fazer dela uma residncia de felicidade para todos aqueles que nela se encontram. (RECLUS, 2010b, p. 95-96, grifos nossos??).
Esse o verdadeiro objetivo dos homens, dos quais Reclus (2010)
compartilha explicitamente como gegrafo dedicado s [...] pesquisas
comparadas pelos continentes e pelos sculos [...] como parte dessa busca.
Boino (2010, p. 30-31) 27 analisa a obra LHomme et la Terre (1905, tomo I,
p.108) na qual Reclus (2010) prope-se a analisar o mundo como ele - O
meio sempre infinitamente complexo.. O carter integracionista e dinmico
do conceito de meio, sinnimo de Natureza, utilizado por Reclus no se refere
a uma justaposio de elementos mais ou menos independentes, mas a um
sistema complexo, formado de elementos interdependentes, um todo
sustentado por interaes constantes.
A relao entre espao e tempo intrnseca ao conceito de meio, que tem
uma dupla dimenso: o meio-espao, apreendido no plano sincrnico,
caracteriza-se pelos mil fenmenos exteriores constituindo um sistema de
interaes complexas (sentido integrador) articulado com o meio tempo,
apreendido no plano diacrnico, em sua evoluo, suas transformaes
incessantes, suas repercusses sem fim.
No prefcio de O Homem e a Terra (de 1905), a noo de espao est,
mais uma vez, implcita em diversos outras definies espaciais (em ordem
escalar decrescente): cosmos, universo, Terra, planeta, Natureza, meio,
regies do globo, paisagens do planeta, todas as regies do universo,
superfcie das regies etc. Reclus (2010b), afirmou ter estudado em sua Nova
Geografia Universal os homens nas diversas regies do globo.28.
27
Foram analisados trs textos de Reclus da coletnea Coelho, Plinio A. (Orgs.) Elise Reclus - Da ao humana na Geografia Fsica e Geografia Comparada no espao e no tempo. So Paulo: ed Imaginrio/Expresso e Arte, 2010, que tambm contm o prefcio de O Homem e a Terra, de 1905 e um artigo de Paulo Boino, O pensamento geogrfico de lise Reclus, de 2008.
28 No prefcio de O Homem e a Terra, Reclus (2010, p.46) afirmou sua pretenso de elaborar
uma Histria humana geral, do homem na sucesso das eras, levando em conta as condies do solo, do clima, de toda ambincia, que mostraria o acordo dos Homens e da Terra, os modos de agir dos povos explicados por sua harmonia com a evoluo do planeta, a miragem sedutora de descobrir a lei de um progresso humano [...] perseguir no tempo cada perodo da vida dos povos correspondendo mudana dos meios, observar a ao combinada da Natureza e do prprio Homem reagindo sobre a Terra que o formou..
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Boino (2010, p.16) foi incisivo em afirmar que, alm de todas as
referncias naturais, [...] desde a origem, a geografia abordou as questes
econmicas, polticas e sociais e foi por escolha voluntria que a corporao de
gegrafos abandonou esses terrenos [...], ao que se acrescenta aqui por
opo terico-metodolgica fundada em determinada viso de mundo.
Lucien Febvre (historigrafo) ao escrever sobre a evoluo da geografia
Humana, em 1922, criou as expresses determinismo geogrfico e
possibilssimo, consolidando a referida diviso da cincia geogrfica a partir
da relao sociedade-natureza29. A perspectiva que considera a importncia
primordial do meio ambiente como base para o entendimento da relao
homem-natureza, para os processos de desenvolvimento econmi