tese anna izabel

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  • 7/25/2019 Tese Anna Izabel

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    Sumrio

    INTRODUO ................................................................................................. 13

    1 DESATANDO NS ....................................................................................... 37

    1.1 Educao, Escola, Pedagogia ................................................................ 38

    1.2 Crtica Organizao do Trabalho Pedaggico (OTP) na escola

    capitalista ...................................................................................................... 53

    2 PRINCPIOS E MATRIZES PEDAGGICAS DA EDUCAO DO CAMPO 63

    2.1 Pedagogia da Alternncia ....................................................................... 632.2 Pedagogia Socialista ............................................................................... 76

    2.3 Pedagogia do Oprimido .......................................................................... 87

    2.4 Educao do Campo ............................................................................... 96

    3 A LEDOC ..................................................................................................... 110

    3.1 Projeto Poltico Pedaggico .................................................................. 110

    3.2 Os estudantes e o processo seletivo .................................................... 115

    3.3 Os territrios: compreenso preliminar ................................................. 122

    3.4 Os Docentes ......................................................................................... 128

    3.5 O Currculo ............................................................................................ 133

    3.6 A Organizao do Trabalho Pedaggico .............................................. 138

    3.6.1 Alternncia da LEdoC ..................................................................... 139

    3.6.2 Organizao do Tempo Escola (TE) em tempos educativos .......... 144

    3.6.3 Trabalho .......................................................................................... 146

    3.6.4 Organicidade................................................................................... 148

    3.6.5 Tempo Comunidade ....................................................................... 151

    4 A ORGANIZAO DO TRABALHO PEDAGGICO: caminhada e

    aprendizados .................................................................................................. 155

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    4.1 Tempo Comunidade .............................................................................. 155

    4.2 Tempo Escola ....................................................................................... 190

    4.3 Tempo Escola e Tempo Comunidade ................................................... 222

    4.4 Instrumentos ......................................................................................... 246

    5 RUPTURAS E RESISTNCIAS .................................................................. 248

    5.1 Na prxis docente ................................................................................. 249

    5.2 No currculo ........................................................................................... 255

    5.3 Na organicidade .................................................................................... 260

    5.4 Na alternncia ....................................................................................... 2635.5 Condies Institucionais........................................................................ 265

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 276

    APNDICE ..................................................................................................... 282

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    INTRODUO

    Quem olha de onde

    Ainda que o gesto me doa,

    no encolho a mo: avano

    levando um ramo de sol.

    Mesmo enrolada de p,

    dentro da noite mais fria,

    a vida que vai comigo

    fogo:

    est sempre acesa.

    Thiago de Mello

    Um trabalho que se constri a partir do compromisso da pesquisadora

    com seu objeto de pesquisa, em que a unio entre sujeito e objeto , a todo

    instante, perseguida, em que a subjetividade da pesquisadora se coloca no s

    na anlise, mas nos fatos relatados, me faz supor que preciso comear

    esclarecendo quem a pesquisadora, de onde eu olho para a Licenciatura em

    Educao do Campo.

    Nasci e cresci em Braslia. E o que isso significa? Qual a relao com

    meu modo de viver o mundo? O que tem a ver com meu jeito de ser gente,

    mulher, me, educadora?

    Braslia no tem filhos!, era o que eu ouvia durante minha

    adolescncia. Sem filhos, sem razes, sem histria, sem sotaque... Ser? Ser

    brasiliense no indicava nada; nossas referncias eram as origens de nossos

    pais. Minha me carioca. Meu pai mato-grossense-do-sul. Que mistura!

    Sou filha de Braslia. Filha da cidade planejada, moderna, expresso do

    ideal modernista de racionalidade urbana, onde o planejamento tentou, e tenta,

    ocultar a desigualdade. Cresci no Plano Piloto, com seus espaos

    fragmentados em setores, espaos uniformes, funcionais, padronizados...

    Espaos disjuntos. Cidade que, sob a lgica da racionalidade instrumental,

    destinada a um homem abstrato. Aprendi, ento, a viver em um espao linear,

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    numerado, organizado, de modo que as coisas jamais se misturem. E esta

    viso cartesiana compe meu modo de pensar o mundo.

    Fui alfabetizada em escola pblica e depois fui para uma escola privada,

    catlica, tradicional, de disciplina rgida. Toda a minha experincia escolar foi o

    retrato do que Paulo Freire denominou de Educao Bancria, o que me fez

    question-la. No porque eu tivesse j uma viso crtica da educao, mas

    porque tinha dificuldade em atender ao que me exigiam: engolir, memorizar,

    aceitar, e, pior, deixar guardada curiosidade pelas coisas, pelo mundo. Fui uma

    m aluna!

    Em 1990 me formei em Pedagogia, com habilitao em magistrio de 2

    grau, que me credenciava a lecionar em cursos de magistrio. Um curso

    tambm fundado na tradio pedaggica. Ensinaram-me a fazer planos de aula

    seguindo rigidamente um modelo, inflexvel, centrado no professor, sem que a

    possibilidade da dialogicidade fosse sequer mencionada. Segui desconfiada do

    que me ensinaram...

    E desconfiada do que durante toda a minha vida escolar foi me

    apresentado como verdade, como nica possibilidade, procurava um caminho

    que no fosse aquele asfaltado, sinalizado, em que bastava seguir sem pensar.

    E como quem procura, acha, diz o ditado popular, encontrei -me com o

    professor Sato, que dirigia um programa do governo local com o objetivo de

    desenvolver um processo de formao continuada dos servidores dopblico,

    com um enfoque na formao integral do ser humano, entendido como ser

    complexo que atua profissionalmente mobilizando diversos saberes. Neste

    sentido, o processo de formao era compreendido para alm do

    desenvolvimento de conhecimentos tcnicos, que eram, em geral, o foco dos

    cursos de treinamento da poca.Sa da estrada asfaltada e para ela no voltei mais.

    Durante 10 anos me constru e reconstru como pedagoga trabalhando

    com formao continuada de professores do sistema pblico de ensino, tanto

    do Distrito Federal como de Gois, Minas Gerais, So Paulo e Mato Grosso do

    Sul.

    Na vivncia junto a esses professores preocupava-me entender o

    processo de construo de saberes que determina a prtica pedaggica doprofessor, refletindo sobre a complexidade de tal processo, a maneira como o

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    formador interfere na construo dos saberes e como os professores se

    relacionam com os diversos espaos/tempos de formao continuada.

    H alguns anos os Parmetros Curriculares Nacionais1haviam proposto

    a Educao Ambiental como tema transversal e, em decorrncia, vrios

    projetos chegavam s escolas de todo o pas. A curiosidade de menina queria

    se transformar em curiosidade da pesquisadora, mas incomodava-me o modo

    de fazer pesquisa em educao, principalmente, o distanciamento existente

    entre o pesquisador e seu objeto de pesquisa.

    Um novo encontro, agora com as professoras Leila Chalub e Lais

    Mouro, me apresentou a um novo caminho: reencontrei Paulo Freire, conheci

    Edgar Morin e Ren Barbier; aprendi a ver o cerrado com novos olhos.

    Desconfiei que houvesse uma relao entre a questo ambiental e a

    problemtica da fragmentao dos saberes, que h muito me instigava. Fui

    tateando no escuro, procurando pistas, arriscando ideias.

    Cheguei ao Mestrado em Desenvolvimento Sustentvel do CDS2 com

    um projeto de pesquisa que pretendia buscar um olhar complexo sobre a

    Educao Ambiental em articulao com a formao continuada de

    professores. Esta busca significaria o desafio de superar os condicionamentos

    socioculturais que engendram a lgica do meu pensamento e que me leva a

    negligenciar e a recusar tudo o que no est de acordo com as crenas,

    convices e verdades aprendidas no seio da cultura em que fui criada.

    Mas, se h determinaes scio-noo-culturais que aprisionam o

    conhecimento, impondo-se para garantir verdades absolutas e certezas,

    preciso considerar tambm as condies que mobilizam e libertam o

    conhecimento, que permitem a autonomia do pensamento; as brechas para

    buscar outras formas de entender as coisas, de libertar da priso paradigmticaas formas de pensar. Foi a este desafio que me lancei.

    O mestrado significou o mergulho na questo ambiental e, por

    caracterstica do CDS, que congrega estudantes de variadas formaes, o

    contato formidvel com diversos sujeitos e seus saberes inscritos em variadas

    reas do conhecimento. Cursei disciplinas variadas, que percorriam diversos

    campos do saber: cincias naturais, economia, direito, gesto, turismo,

    1Referenciais curriculares propostos pelo Governo Federal vigentes a partir de 1997.2Centro de Desenvolvimento Sustentvel da Universidade de Braslia

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    polticas pblicas. A elaborao de trabalhos coletivos nos colocava frente ao

    desafio de dialogar com uma diversidade de sujeitos, saberes e experincias.

    Conheci uma comunidade remanescente de quilombo do noroeste do

    Estado de Gois, apaixonei-me e fiz daquele lugar meu lcus para a pesquisa

    de campo. Em 2006 desenvolvi na escola dessa comunidade um projeto de

    formao continuada para suas professoras, com o objetivo de, por meio de

    oficinas de Educao Ambiental, promover a religao dos saberes, para que a

    comunidade se fortalecesse como coletivo social e pudesse reconstruir sua

    histria de vida e territorialidade.

    Durante um ano estive mensalmente na comunidade. A experincia

    extrapolou os muros da escola e a proximidade com os sujeitos da

    comunidade, sua cultura, seus dilemas, enfim, com a vida daquele lugar, foi

    para mim formativa, transformadora. A religao que eu pretendia operou-se

    em mim. Reencontrei-me com a vida na roa que conheci na infncia, com a

    ancestralidade que compe uma neta de camponeses.

    Em maro de 2007 defendi, para uma banca composta pelas

    professoras Dras. Leila Chalub e Lais Mouro e pelo Prof. Dr. Miguel Arroyo, a

    dissertao intitulada Tramando En-cantos do Forte: saberes e dilogos nos

    caminhos complexos da Educao Ambiental.

    Em seguida fui convidada pelas professoras Lais Mouro e Mnica

    Molina para compor a equipe do recm-criado Centro Transdisciplinar de

    Educao do Campo e Desenvolvimento Rural CETEC, da Universidade de

    Braslia, e dedicar-me, entre outros, realizao da Licenciatura em Educao

    do Campo.

    Desde abril de 2007 empenhei-me em viabilizar a Licenciatura, em um

    esforo contnuo de busca, na estrutura da UnB, das condies para tal, doprocesso seletivo ao registro dos candidatos aprovados, da coordenao geral

    docncia de disciplinas.

    Atuar na Licenciatura em Educao do Campo significou mergulhar em

    um campo novo, que emergiu durante a realizao do mestrado, e que me

    reaproxima do campo da educao e das teorias pedaggicas: a Educao do

    Campo.

    A vivncia na Educao do Campo, com os estudantes, nascomunidades, fortaleceu o enraizamento que por tantos anos ficou esquecido:

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    sou neta de campons, filha de um homem que nasceu no campo e dali saiu

    para estudar. Passei os fins de semana da infncia em uma casa de adobe,

    tomando banho de rio, comendo fruta no p.

    Trazendo na bagagem a formao como pedagoga, a experincia e a

    ancestralidade, e a ausncia de vinculao com as lutas sociais, lancei-me a

    um novo desafio, do qual faz parte a realizao do doutorado e a escrita desta

    tese.

    Minha segurana se alicera no saber confirmado pela prpria

    experincia de que, se minha inconcluso, de que sou consciente, atesta, de

    um lado, minha ignorncia, me abre, de outro, o caminho para conhecer.

    (Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia)

    A Licenciatura em Educao do Campo

    O curso de Graduao de Licenciatura em Educao do Campo (LEdoC)

    fruto de um movimento educativo que tem construdo um novo paradigma de

    educao e de escola para os povos do campo, forjado pelos movimentos

    sociais que, nas tenses da luta por um novo projeto de campo e de pas,

    conferem novos significados para a educao dos trabalhadores.

    A Licenciatura em Educao do Campo insere-se na histria de luta por

    uma poltica nacional de formao de educadores do campo e por condies

    de vida no campo3. No processo de reivindicao realizado em 1998 a I

    Conferncia Nacional Por Uma Educao do Campo4CNEC, que inaugura

    uma nova referncia para o debate da questo: a Educao do Campo, como

    contraponto ao silncio do Estado e aos 500 anos de abandono da educao

    rural.

    O termo Educao do Campo, batizado na I CNEC, fruto da luta

    dos educadores e educadoras do campo pelo direito educao. Refere-se

    3Campo compreendido como lugar de vida, de cultura, produo, moradia, educao, lazer,cuidado com o conjunto da natureza, e novas relaes solidrias que respeitem aespecificidade social, tnica, cultural e ambiental dos seus sujeitos (II CONFERNCIA, 2004),

    como espao de democratizao da sociedade brasileira e de incluso social e, portanto,vinculado a um novo projeto de desenvolvimento do pas.4Promovida pelo MST, UNICEF, UNESCO, CNBB e UnB

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    educao como um direito dos povos que vivem do e no campo, que somente

    ser garantido se articulado ao direito terra, gua, permanncia no

    campo, ao trabalho, s diferentes formas de produo e reproduo social da

    vida, cultura, aos valores, s identidades e s diversidades.

    Em 2004, a II CNEC aponta a falta de docentes com formao adequada

    como um dos maiores entraves para a ampliao da oferta da Educao do

    Campo, especialmente do Ensino Mdio.

    Em resposta luta dos movimentos sociais do campo o Ministrio da

    Educao (MEC) cria o Programa de Apoio Formao Superior em

    Licenciatura em Educao do Campo (Procampo) com o objetivo de apoiar a

    implementao de cursos regulares de licenciatura em educao do campo nas

    instituies pblicas de ensino superior do pas O Programa volta-se

    especificamente para a formao de educadores para a docncia nos anos

    finais do ensino fundamental e ensino mdio nas escolas do campo.

    Em 2007 o MEC por intermdio da Secretaria de Educao Superior e

    da Secretaria de Educao Continuada Alfabetizao e Diversidade convida a

    Universidade de Braslia (UnB) para protagonizar, junto a outras quatro

    universidades federais, um projeto piloto de licenciatura em educao do

    campo. O curso, que se inicia em 2007 como projeto, aprovado pelo

    Conselho Universitrio da Universidade de Braslia e torna-se um curso regular,

    ofertando 60 vagas anualmente.

    No entanto, importante salientar, a LEdoC no marca a entrada da

    Educao do Campo na universidade, que se inicia uma dcada antes quando

    professores de universidades brasileiras que vinham desenvolvendo atividades

    na rea de educao nos projetos de assentamento da Reforma Agrria, os

    movimentos sociais do campo e parceiros realizam o I Encontro Nacional dasEducadoras e Educadores da Reforma Agrria ENERA (1997) e, na

    sequencia de lutas pelo direito educao dos povos do campo, conquistam a

    criao do Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria PRONERA,

    em 1998.

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    O PRONERA5 criado com o objetivo de fortalecer a educao nas

    reas de Reforma Agrria tendo como referncia o desenvolvimento

    sustentvel e utilizando metodologias especficas que respeitassem as

    especificidades do campo e seus sujeitos.

    Portanto, o Procampo traz consigo os nove anos de experincias do

    PRONERA na realizao de diversos processos formativos em parceria com

    universidades pblicas, em cursos de Pedagogia da Terra, Licenciaturas,

    Direito, Agronomia, entre outros.

    A LEdoC tem como objeto a escola de Educao Bsica do Campo,

    com nfase na construo da organizao escolar e do trabalho pedaggico

    para os anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Mdio e como

    objetivo formar educadores do campo para atuarem na Educao Bsica em

    escolas do campo. Pretende, simultaneamente, contribuir para a construo

    coletiva de um projeto de formao de educadores que sirva como referncia

    para polticas de Educao do Campo.

    Tal experincia colocada em marcha em um novo campus, a

    Faculdade UnB Planaltina, criado no contexto de expanso da Universidade de

    Braslia, possibilitando LEdoC reconhecimento e participao em sua

    construo.

    O curso assumido por uma pequena equipe docente, da qual fao

    parte, ampliada por uma diversidade de docentes-voluntrios oriundos de

    vrios departamentos da prpria UnB e de outras universidades do pas, alm

    de estudantes de ps-graduao, que se lanaram ao desafio de receber os

    sujeitos do campo, historicamente excludos da universidade pblica em nosso

    pas.

    O desafio da Licenciatura em Educao do Campo no est apenas naespecificidade de seus sujeitos, mas comea na prpria materialidade de

    origem da Educao do Campo. A Educao do Campo no uma proposta

    pedaggica para as escolas do campo e o desafio da Licenciatura, portanto,

    no est na organizao do trabalho pedaggico em si.

    5O Programa Nacional de Educao na Reforma AgrriaPRONERA criado em 16 de abril

    de 1998, por meio da Portaria N. 10/98 do Ministrio Extraordinrio de Poltica Fundiria.Inicialmente vinculado ao Gabinete do Ministro, em 2001 o Programa incorporado ao INCRA.

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    A Educao do Campo, como afirma insistentemente Roseli Caldart, s

    pode ser compreendida na trade campo - poltica pblica - educao.

    O debate do campo precede o da educao, ou seja, no se trata de

    discutir a educao em uma perspectiva apenas pedaggica. O campo o

    primeiro elemento da trade porque a Educao do Campo nasce da luta dos

    sujeitos do campo, campo real, das lutas sociais, da luta pela terra, pelo

    trabalho, de sujeitos humanos e sociais concretos; campo das contradies de

    classe efetivamente sangrando (CALDART, 2007, p. 3). Nasce destas

    contradies, da precariedade das condies de vida no campo, da luta por um

    projeto de campo em contraposio ao projeto capitalista de um campo sem

    gente.

    A Especificidade da Educao do Campo , portanto, o campo, seus

    sujeitos e seus processos formadores.

    A Educao do Campo negatividade, no sentido de luta e de negao

    das condies desumanas postas pela sociedade capitalista; mas tambm

    positividade, pois sem se encerrar na denncia empreende prticas concretas

    de educao, de polticas pblicas, de produo; e ainda superao, pois tem

    um projeto de construo de outra concepo de campo, de cidade, de

    sociedade, de educao e de escola em uma perspectiva de transformao

    social e de emancipao de homens e mulheres (CALDART, 2007). uma

    utopia no sentido dado por Paulo Freire e Eduardo Galeano.

    A Educao do Campo afirma uma determinada concepo de

    educao. Educao compreendida no sentido da especificidade dos

    processos formativos dos sujeitos do campo, das matrizes que formam estes

    sujeitos, no se limitando a discusso pedaggica de uma escola para o

    campo, nem de aspectos didticos e metodolgicos, ao mesmo tempo em quesignifica a construo pelos sujeitos do campo de um novo desenho para as

    escolas do campo, que possa ter as matrizes formadoras dos sujeitos como

    espinha dorsal, que possa estar adequado s necessidades da vida no campo

    e que, fundamentalmente, seja formulado pelos sujeitos do campo, tendo o

    campo como referncia e como matriz.

    Isso demarca uma concepo de educao em perspectiva socialista e

    emancipatria que pensa a natureza da educao vinculada ao destino dotrabalho: educar os sujeitos para um trabalho no alienado, para intervir nas

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    circunstncias objetivas que produzem o humano. No se trata da relao

    entre educao e trabalho da viso neoliberal, que subordina a educao s

    exigncias de relaes de trabalho de um determinado modelo de

    desenvolvimento social pautado pelos interesses do mercado capitalista, em

    cada momento histrico.

    A materialidade de origem da Educao do Campo, a novidade

    epistemolgica que representa, os sujeitos que traz para a Universidade, faz

    com que sua implementao no seja trivial, no seja apenas mais um curso

    que a UnB oferece. Mas por qu?

    Porque a demanda dos movimentos sociais pela construo de um

    conhecimento cientfico que contribua com a formulao de um novo projeto de

    sociedade, o que coloca em questo o paradigma de produo de

    conhecimento da universidade pblica.

    A universidade pblica que, a servio da cincia cartesiana, excluiu a

    vida, as lutas sociais, a produo da existncia dos sujeitos, se v diante da

    emergncia de colocar em dilogo a cincia e a vida, o saber cientfico e o

    saber feito da experincia.

    Trata-se de um processo de transio de paradigmas, em que est em

    jogo a mudana na correlao de foras. A presena dos movimentos sociais

    do campo no territrio acadmico, fruto de seu processo de luta pelo direito

    educao, coloca em disputa paradigmas e ideologias, territrios imateriais.

    No contexto de transio paradigmtica e de crise da universidade a

    Licenciatura em Educao do Campo pode atuar como uma possibilidade de

    construo de novos sentidos, ocupando as brechas surgidas no paradigma

    emcrise e provocando novas fissuras que promovam transformaes.

    Colocam-se, ento, algumas questes. Quais so as brechas capazesde abrir o caminho para a mudana das relaes de produo do

    conhecimento cientfico? Como fazer, nessa transio, o exerccio de uma

    nova racionalidade e de novas prticas capazes de construir um novo projeto

    de sociedade, novas formas de relaes sociais?

    Como a universidade trilhar este caminho, que estratgias construir

    para transformar sua forma cartesiana e instituir um novo modo de formar

    educadores a questo que se coloca para a Licenciatura em Educao doCampo. Que espaos educativos? Que prxis? Que estratgias criamos?

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    Nesta trajetria teremos que refletir sobre duas questes centrais: em

    que medida se consegue incorporar prtica pedaggica universitria,

    historicamente centrada nos conhecimentos cientficos, os saberes da vida, do

    trabalho, dos movimentos sociais, da tradio camponesa, para alm de

    apenas reconhecer que os sujeitos do campo tm saberes, que produzem

    saberes? O que emerge da interao (antagonismos, complementaridades e

    concorrncias) entre a estratgia formativa da Licenciatura em Educao do

    Campo e as estratgias pedaggicas da Universidade?

    O caminho que se est construindo a partir da Licenciatura em

    Educao do Campo da Universidade de Braslia novo e incerto. Incerteza

    que no significa ausncia de meta, de rumo, de projeto, mas sim, o

    reconhecimento de que se trata de um caminho a ser construdo, de picadas

    a serem abertas no mato alto.

    Dedicar um olhar atento Licenciatura em Educao do Campo

    fundamental para a Universidade de Braslia. Significa a postura crtica da

    Universidade diante de uma inovao que ela protagoniza por meio da LEdoC,

    refletindo, durante a trajetria do curso, sobre as diversas questes que

    emergem do dilogo com os sujeitos do campo, sobre as incertezas e riscos do

    processo, e produzindo conhecimento a partir desta experincia.

    necessidade de reflexo aliou-se oportunidade de faz-la por meio

    de uma pesquisa implicada, em que a Licenciatura poderia se ver e ser vista

    por seus prprios sujeitos, no percurso da caminhada a partir da segunda

    turma.6Minha atuao na Licenciatura em Educao do Campo, compondo a

    equipe de coordenao e atuando como docente, e tendo participado desde os

    primeiros momentos de formulao da proposta pedaggica e do currculo,

    oferecem tal oportunidade.Esta pesquisa pauta-se pelo pressuposto de que a Licenciatura em

    Educao do Campo significa uma inovao para a formao de educadores,

    pelos princpios que adota tomando como referncia a luta dos movimentos

    sociais do campo, pela nova forma de organizao do trabalho pedaggico que

    6A primeira turma, iniciada em 2007, em parceria com o Instituto Tcnico de Capacitao ePesquisa da Reforma Agrria (ITERRA), foi realizada nas dependncias do Instituto de

    Educao Josu de Castro, em Veranpolis/RS. Portanto, a partir da segunda turma que aLicenciatura em Educao do Campo passa a ocupar espao dentro da Universidade deBraslia e a questionar sua forma.

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    a alternncia7exige, pelo movimento contnuo de ao e reflexo necessrio

    sua realizao, propondo contribuir sistematizando sua trajetria dentro da

    Universidade de Braslia.

    Universidade pblica e transio entre paradigmas

    A universidade, fundada sob a lgica da cincia e do poder, para formar

    quadros para o Estado ou mercado e, portanto, distante da sociedade e dos

    interesses sociais, um espao de disputas, disputa de conhecimentos, de

    pesquisa, de ideologias (S; MOLINA; FREITAS, 2010).

    As classes dominantes impem universidade seu modo de pensar a

    educao, reduzindo o sentido do que pblico, desarticulando educao,

    capitalismo e luta de classes, psicologizando e tecnicizando o pensamento

    educacional (LEHER, 2010).

    Mas a universidade pblica tambm um espao de contradies, onde

    se constroem ideologias e hegemonias e, portanto, pode ser espao de

    produo de contra-hegemonia. neste sentido que os movimentos sociais

    disputam o espao acadmico, por seu papel contra-hegemnico no debate e

    formulao de um novo projeto de campo e de pas (S; MOLINA; FREITAS,

    2010; JEZINE, 2010), desafiando a universidade a repensar seu papel social.

    Em especial, fazem emergir a preocupao com a educao da classe

    trabalhadora.

    Recorremos a Leher (2010) para tratar da relao da universidade com a

    educao da classe trabalhadora. Segundo o autor, a temtica da educao da

    classe trabalhadora perdeu relevncia na academia com a ofensiva neoliberal

    ao movimento de renovao pedaggica protagonizado pelos movimentos

    sociais a partir de 1980, que retomaram as discusses e prticas de Educao

    Popular. A presena da temtica, sem apoio das agncias nacionais e

    internacionais de financiamento, ficou enfraquecida na ps-graduao

    enquanto estavam fortalecidas perspectivas neopositivistas, ps-modernas e

    pedaggicas psicologizadas.

    7Estratgia de organizao curricular do Curso que ser abordado nos captulos seguintes.

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    Sob tal ofensiva, o pensamento educacional produzido na educao

    popular, assim como o pensamento socialista, estiveram ausentes na

    academia, ou estudados em perspectiva estritamente pedaggica,

    desvinculada da poltica. exemplar o estudo de Paulo Freire como mtodo de

    alfabetizao.

    So os movimentos sociais que vo gradativamente restabelecendo os

    nexos entre educao, capitalismo e classe. Mas a fora da ideologia neoliberal

    complexa e atua conformando, at mesmo ao que se opunham ao

    capitalismo (sindicatos, partidos polticos, movimentos sociais), ideia de que

    no existe alternativa integrao capitalista dependente na economia mundial

    (LEHER, 2010).

    Nas palavras de Leher, o transformismo da maior parte da esquerda

    coloca os socialistas (anticapitalistas) diante de um spero desafio: o de

    reverter a vitria do capitalismo dependente e de sua correspondente barbrie,

    expressas na naturalizao da ideologia neoliberal (2010, p. 26). A educao

    popular e a formao poltica so eixo central dos movimentos de massa que

    no se subordinam barbrie e, mesmo considerando com Mszros que a

    educao para todos, omnilateral e centrada no trabalho s ser possvel em

    uma sociedade para alm do capital, preciso empreender no contexto atual a

    batalha das ideias (Ibid.), produzindo ideias que possibilitem romper com o

    neoliberalismo.

    Ainda segundo Leher, os movimentos e os setores classistas na

    universidade precisam forjar um espao de produo de conhecimento contra a

    ordem social vigente, recusando aquele que no esteja comprometido com as

    lutas sociais, pois so as lutas sociais que fazem mover a histria.

    [...] para produzir conhecimento novo, a teoria no ser construda apartir de um ponto zero (a tradio crtica reinventada) e tampoucoest pronta. A teoria, igualmente, no pode ser produzida emambientes asspticos, alheios s lutas de classes e ao calor dasbatalhas sociais. O conhecimento emancipatrio tem de ser a prxisemancipatria e libertria conforme ensinou Paulo Freire e, maisrecentemente, protagonistas como os povos indgenas e camponesesZapatistas (no Mxico), o CONAIE (no Equador) e os camponeses doMST (no Brasil). (Ibid., p. 28)

    Trata-se de recusar os pressupostos e categorias centrais de umacincia acrtica e eurocentrada, a servio da extrao da mais-valia, que opera

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    na separao entre trabalho manual e intelectual e produz tecnologia para um

    modelo de desenvolvimento predador dos recursos naturais e humanos (Ibid.)

    Para construir um conhecimento novo preciso um dilogo de novo tipo entre

    universidade e movimentos sociais.

    Leff (2004) contribui com a discusso quando prope o dilogo de

    saberes como meio de construo de uma nova racionalidade que se

    contraponha racionalidade capitalista dominante. Para o autor, a construo

    de uma nova racionalidade se faz na busca de novas matrizes e implica a

    formao de um novo saber que articula os conhecimentos fragmentados,

    extrapolando as disciplinas tradicionais e a articulao das cincias pretendida

    pela interdisciplinaridade, para abrir-se ao terreno dos valores ticos, dos

    conhecimentos prticos e saberes tradicionais, por meio do dilogo de saberes.

    O dilogo de saberes compreendido como um dilogo entre seres

    marcados pela diversidade de saberes, que questiona o projeto totalizante do

    conhecimento objetivo e se inscreve em uma revoluo paradigmtica.

    Pretende articular o real, o simblico e o imaginrio, estabelecendo um espao

    de sinergias e complementaridades entre saberes e apontando para novas

    formas de compreenso deste mundo e desta realidade (Ibid., 2001, 2003).

    A Educao do Campo traz para o dilogo os sujeitos do campo e seus

    saberes. Sujeitos porque no h o sujeito do campo, h sim uma diversidade

    de sujeitos que incluem, entre outros, camponeses, ribeirinhos, povos da

    floresta, quilombolas, indgenas, enfim, uma diversidade riqussima de sujeitos

    coletivos, de identidades, de riquezas culturais. (ARROYO, 2005)

    A luta dos movimentos sociais pela ocupao de seu lugar no processo

    de produo de conhecimento cientfico significa para a universidade pblica

    um momento de transio, oportuno para que se abra um espao de escutadas experincias e saberes desses movimentos, e a universidade possa

    constituir-se como espao de dilogo. A universidade que se pretende

    democrtica, comprometida com a construo de um novo projeto de

    sociedade, deve assumir a tarefa de criar condies institucionais para a

    transio paradigmtica.

    Paradigmas so os princpios ocultos, tcitos que organizam o

    pensamento. Esto no ncleo no s do sistema de ideias como de toda

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    cogitao8e, portanto, controlam a lgica, embora sejam por ela controlada. O

    paradigma parece ser do domnio da lgica, mas est escondido debaixo da

    lgica; infralgico (subterrneo lgica), pr-lgico (anterior sua utilizao)

    e supralgico (superior lgica); inconsciente e sobreconsciente (irriga o

    pensamente consciente e controla-o); subterrneo e soberano (MORIN, 1991).

    Para Morin (1991, p.188), os indivduos conhecem, pensam e agem

    segundo os paradigmas inscritos culturalmente neles. Assim, tanto os

    raciocnios individuais como os sistemas de ideias so organizados em virtude

    dos paradigmas, que se referem no apenas ao saber cientfico, mas a todo

    conhecimento, todo o pensamento, todo o sistema noolgico9.

    O grande paradigma ocidental, caracterizado pela disjuno que opera

    entre sujeito/objeto; alma/corpo; esprito/matria; qualidade/quantidade; finali-

    dade/causalidade; sentimento/razo; liberdade/determinismo; existncia/

    essncia; exerce seu domnio na universidade que, por seu turno, alimenta o

    paradigma.

    Invisvel e invulnervel, o paradigma no pode ser atacado nem vencido

    diretamente, preciso que ele tenha gretas, fissuras, eroses, corroses no

    edifcio das concepes e teorias que segura; preciso que fracassem as

    tentativas de restauraes e reformas; preciso que surjam novas teses ou

    hipteses que no mais obedeam ao paradigma e, por fim, que as novas

    teses se multipliquem e se confirmem onde as antigas fracassaram (Ibid. p.

    193).

    A universidade fechada em si, em seus mtodos, tcnicas e saberes

    cientficos provoca crises, como formula Santos (1996), afirmando que o

    paradigma dominante atravessa uma profunda crise, resultado de uma

    diversidade de condies sociolgicas e tericas.

    8 Cogitao uma emergncia da computao pela complexificao do aparelho cerebral

    humano, ou seja, os processos computantes assumem no homem a forma cogitante(pensamento, linguagem, conscincia). Todo ser vivo efetua atividades computantes quecomportam as instncias informacional (extrai informao do meio), simblica (codifica ainformao em signos /smbolos), memorial (memoriza) e logicial (manipula/trata ossignos/smbolos efetuando operaes de associao conjuno, incluso, identificao - eseparaodisjuno, oposio, excluso). No homem o computo torna-se cogito por meioda linguagem, do pensamento, e da conscincia. (MORIN, 1996)9Noosfera um termo forjado por Teilhard de Chardin nos anos 20 para conceituar o universo

    onde habitam nossos smbolos, idias e mitos, indispensveis vida social. Noologia, por seuturno, o estudo dos seres que habitam a noosfera e seus princpios de organizao (MORIN,1991).

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    As condies sociolgicas esto assentadas na industrializao da

    cincia que, ao estabelecer um compromisso com o poder econmico, social e

    poltico levou ao colapso as ideias de autonomia da cincia e da neutralidade

    do conhecimento cientfico A industrializao da cincia caracteriza-se pela

    definio das prioridades cientficas em funo de tais compromissos; pelas

    relaes de poder autoritrias e desiguais entre os cientistas; pelo

    aprofundamento do fosso entre os pases centrais e perifricos em decorrncia

    de uma investigao baseada em instrumentos caros e raros (SANTOS, 1996).

    Nas palavras de Santos (1978, p.15) o compromisso da cincia com o modo

    de produo material acarretou o seu compromisso com o sistema social e,

    portanto, a sua corresponsabilizao na criao e gesto das contradies e

    conflitos dele emergentes (e dele decorrentes) e suas repercusses, quer a

    nvel interno, quer a nvel internacional.

    Em um movimento convergente, a concepo de universidade como

    lugar privilegiado de produo de conhecimento cientfico avanado, formadora

    das elites e isolada das demais instituies sociais, fundada na dicotomia entre

    alta cultura/cultura popular, educao/trabalho, teoria/prtica, entrou em crise10.

    Esta crise de hegemonia, segundo Santos (2005)se d na medida em que a

    universidade, incapaz de responder s exigncias sociais emergentes, leva os

    grupos sociais ou o Estado a buscar alternativas para atingir seus objetivos,

    fazendo com que deixe de ser considerada nica e exclusiva.

    As contradies entre as funes da universidade produzem uma tripla

    crise. Alm da crise da hegemonia, que emerge da contradio entre

    conhecimentos exemplares e conhecimentos funcionais, e que considerada

    por Santos (2005) como a mais profunda, manifestam-se ainda: a crise da

    legitimidade, da contradio entre hierarquizao e democratizao; a criseinstitucional, da contradio entre autonomia institucional e produtividade

    social11.

    Se a hegemonia da universidade no pode ser pensada fora das

    dicotomias em que est fundada - alta cultura/cultura popular,

    educao/trabalho, teoria/prtica a crise de hegemonia leva ao

    10Para Santos (2005) o questionamento da universidade um fenmeno to antigo quanto ela

    prpria, porm considera legtima a ideia de crise da universidade considerando que talquestionamento vem se intensificando nos ltimos anos.11Ver Santos (2005)

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    questionamento de tais disjunes. Neste contexto, a universidade criticada

    por no mobilizar os conhecimentos produzidos e acumulados em favor das

    problemticas sociais e dos interesses dos grupos sociais dominados.

    A crise indica a necessidade de pensar em outro modelo de atuao

    universitria que, no contexto de transio paradigmtica, transforme seus

    processos de produo de conhecimento e seus princpios, tornando-se um

    espao de confronto entre saberes.

    As configuraes de saberes so sempre, em ltima instncia,configuraes de prticas sociais. A democratizao da universidademede-se pelo respeito do princpio da equivalncia dos saberes epelo mbito das prticas que convoca em configuraes inovadorasde sentido. A universidade ser democrtica se souber usar o seusaber hegemnico para recuperar e possibilitar e desenvolvimentoautnomo de saberes no-hegemnicos, gerados nas prticas dasclasses sociais oprimidas e dos grupos ou estratos socialmentediscriminados (SANTOS, 2005, p. 228).

    A pergunta em que medida a LEdoC atua nas brechas provocadas

    pela crise de hegemonia da universidade pblica, atuando de forma contra-

    hegemnica para formar os intelectuais da classe trabalhadora do campo.

    Contra-hegemonia e formao de intelectuais orgnicos

    Para Gramsci cada grupo social possui sua prpria categoria

    especializada de intelectuais, ou seja, cria para si, de um modo orgnico, uma

    ou mais camadas de intelectuais, para atender necessidade de expanso da

    prpria classe.

    No existem homens no intelectuais. Intelectual todo homem, mesmo

    que s alguns assumam a funo de intelectual na sociedade.Todo homem exerce uma atividade intelectual criadora, o que significa

    dizer que o operrio, por exemplo, no se caracteriza pela atividade fsica e

    instrumental que exerce, mas por determinadas relaes sociais, pois, em

    qualquer trabalho fsico, mesmo o mais mecnico e degradado, existe um

    mnimo de qualificao tcnica, isto , um mnimo de atividade intelectual

    criadora (GRAMSCI, 1991, p. 7). No existe atividade humana em que esteja

    excluda a atividade intelectual, ou seja, no se pode separar o homo faberdo

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    homo sapiens, mesmo considerando que existam graus diversos de atividade

    especfica intelectual.

    Em suma, todo homem, fora de sua profisso, desenvolve umaatividade intelectual qualquer, ou seja, um filsofo, um artista, um

    homem de gosto, participa de uma concepo de mundo, possui umalinha consciente de conduta moral, contribui assim para manter oumodificar uma concepo de mundo, isto , para promover novasmaneiras de pensar (Ibid., p. 7-8).

    No sentido dado por Gramsci, intelectual todo aquele que exerce uma

    funo organizativa na sociedade, seja no campo da produo, no campo

    poltico e administrativo, ou no cultural. So categorias especializadas

    formadas pelos grupos sociais em seu desenvolvimento histrico para o

    exerccio da funo intelectual.A importncia das categorias intelectuais no mundo moderno faz surgir a

    escola, como vimos, para desenvolver a intelectualidade dos indivduos,

    multiplicar e aperfeioar as especializaes e promover a alta cultura.

    Gramsci afirma que a escola o instrumento para elaborar os intelectuais de

    diversos nveis (Ibid., p.9).

    A diferente distribuio dos diversos tipos de escola (clssicas eprofissionais) no territrio econmico e as diferentes aspiraes das

    vrias categorias destas camadas determinam, ou do forma, produo dos diferentes ramos de especializao intelectual. (Ibid.,p.20)

    Contrapondo-se concepo burguesa de educao, Gramsci afirmou

    que para a classe trabalhadora era preciso formular uma nova concepo de

    escola, indicando que nem um estudo objetivo, nem uma cultura

    desinteressada12 pode ter lugar nas nossas filas (. ..) (GRAMSCI apud DEL

    ROIO, 2006, p. 353).

    Na Itlia, a escola de classe burguesa, expressa na sequencia ginsio-

    liceu-universidade, formava a classe dirigente. Para a classe operria o Estado

    burgus organizou a escola popular e a escola profissional, cuja funo social

    era manter a diviso de classe, fazendo com que o filho do operrio fosse

    tambm um operrio.

    12 Desinteressada no tem um sentido de neutralidade, mas de uma orientao que no meramente prtica ou imediatista.

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    O conhecimento cientfico, nas condies instauradas sob o domnioburgus, est fora do alcance da classe operria, que fica submetidaa um conhecimento fragmentado, derivado da prtica profissional e auma baixa auto-estima, prpria dos dominados. Da a necessidadedessa classe criar instituies prprias que organizem oconhecimento. (Ibid., p. 325)

    A luta contra o capitalismo e a instaurao de um Estado operrio

    pressupunha a formao de uma massa de intelectuais orgnicos da classe

    operria em estreito vnculo com o processo de trabalho, que lhe fizessem

    capazes de conduzir o controle social da produo, fundamento do objetivo

    revolucionrio (Ibid.).

    Gramsci formula, portanto, a ideia sobre o papel dos intelectuais,

    orgnicos ou tradicionais, na construo da hegemonia de classe,compreendendo que sua relao com a sociedade histrica e se modifica

    segundo as situaes que vivem as sociedades (NOSELLA, 2002).

    Os intelectuais orgnicos (profunda e explicitamente envolvidos com sua

    classe) no so necessariamente progressistas, assim como os intelectuais

    tradicionais (clero, escritores, professores, filsofos, etc.) no so sinnimos de

    conservadorismo de direta. Esta compreenso fundamental para entender

    que o educador, que exerce seu compromisso poltico essencialmente nombito do poder ideolgico, no efetiva tal compromisso somente por uma

    militncia orgnica, mas o compromisso se expressa na forma e no contedo

    do prprio ato pedaggico, afirma Nosella (2002).

    neste sentido que expressamos a perspectiva contra-hegemnica da

    LEdoC, que assume o compromisso poltico de contribuir com o acmulo de

    foras e com a construo de uma nova cultura para a disputa da hegemonia

    pela classe trabalhadora do campo.

    O termo hegemonia, de origem Grega, se converte em conceito de teor

    poltico ao integrar a tradio marxista, mas Gramsci que aprofunda e

    reformula o conceito analisando como a burguesia produz e reproduz sua

    dominao nas sociedades capitalistas modernas, tendo como referncia a

    Itlia do incio do sculo XX (PRONKO & FONTES, 2012).

    Segundo Gramsci, hegemonia um complexo sistema de relaes e de

    mediaes, um conjunto de atividades culturais e ideolgicas protagonizadas

    por intelectuais, que organizam o consenso e a capacidade de direo. Uma

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    classe mantm seu domnio por ser capaz de, indo alm de interesses

    corporativos estreitos, conformar todo o conjunto da sociedade s suas formas

    de pensar, sentir e agir (PRONKO & FONTES, 2012; NOSELLA, 2002).

    Hegemonia no , portanto, apenas exerccio de poder, de dominao

    de uma parte da sociedade por outra, mas antes a direo que se exerce com

    o consentimento da sociedade, fruto da legitimidade histrica que uma

    determinada classe conquistou (NOSELLA, 2002).

    O conceito gramsciano de hegemonia precisa ser compreendido no bojo

    da concepo ampliada de Estado que formula. Para Gramsci existem dois

    grandes planos superestruturais: a sociedade poltica ou Estado, que exerce o

    domnio direto ou o comando de uma sociedade; e a sociedade civil, que

    corresponde funo de hegemonia que a classe dominante exerce no

    conjunto da sociedade por meio dos aparelhos privados de hegemonia

    (PRONKO & FONTES, 2012). A concepo de Estado, portanto, vai alm do

    aparelho estatal para incorporar as organizaes que atuam na sociedade civil.

    Neste sentido, hegemonia no apenas um conjunto de instrumentos de

    coero, mas um sistema de liderana intelectual e de produo de consenso.

    Por sua vez, revoluo no apenas a tomada de poder do aparelho poltico-

    coercitivo (Estado em sentido estreito), mas pressupe a construo de contra-

    hegemonia, de um modo prprio de pensar, sentir e agir das classes

    dominadas/oprimidas que, organizadas, so capazes de exercer a direo

    intelectual e moral da sociedade, para superar a diviso de classe e libertar das

    formas de opresso. Aqui Paulo Freire, para quem a tarefa histrica dos

    oprimidos a de superar a contradio opressor-oprimido, encontra-se com

    Gramsci.

    A hegemonia, embora dominante, no esttica nem absoluta, masenraizada nos processos de luta e, portanto, toda relao de hegemonia

    pressupe, como possibilidade, a existncia de experincias, relaes e

    atividades contra-hegemnicas (Ibid., p. 392).

    A perspectiva contra-hegemnica da LEdoC est na realizao de uma

    prxis pedaggica em que a produo de conhecimento seja realizada pelos

    prprios trabalhadores, eliminando a diviso entre trabalho manual e

    intelectual; explicitando a luta de classes e as contradies da sociedadecapitalista e produzindo conhecimento a partir delas; superando a

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    fragmentao ao vincular o conhecimento cientfico e humanista prtica

    social.

    Objeto de estudo, metodologia e estrutura do trabalho

    Esta pesquisa tem como objeto de estudo as estratgias de organizao

    do trabalho pedaggico na formao de educadores do campo, tendo em vista

    seus impactos contra-hegemnicos na transformao da lgica dominante na

    universidade pblica, com os seguintes objetivos:

    Objetivo Geral: Realizar uma anlise crtica da organizao do trabalho

    pedaggico na LEdoC, identificando inovaes e submisses ao paradigma

    dominante na universidade, em relao ao paradigma da Educao do Campo.

    Para tanto empreendi a tarefa de sistematizar a experincia da

    LEdoC/UnB no perodo de 2008 a julho de 2011, no que se refere

    organizao do trabalho pedaggico, tendo como referncia:

    - A concepo de educao e de escola do movimento da Educao do

    Campo;

    - Os limites e possibilidades colocados na relao dialtica com as

    estratgias pedaggicas e administrativas da universidade pblica;

    - A possibilidade de uma concepo de universidade pblica e de prxis

    acadmica que se articule com os princpios da Educao do Campo.

    O encaminhamento metodolgico tem como orientao a pesquisa-ao,

    um tipo de pesquisa social de base emprica e argumentativa, concebida e

    realizada em estrita associao com uma ao e na qual o pesquisador e os

    participantes esto envolvidos de forma cooperativa ou participativa

    (THIOLLENT, 1988). Apesar de ser considerada uma pesquisa do tipo

    participativa, difere da Pesquisa Participativa, pois no se limita observao

    participante, mas exige realmente uma ao por parte das pessoas ou grupos

    envolvidos no problema sob observao e, ainda, pressupe uma ao no

    trivial, ou seja, que problemtica e exige investigao para ser elaborada e

    conduzida (Ibid.).

    BARBIER (2002) prope uma pesquisa-ao existencial e integral,apresentando as noes necessrias para sua compreenso. Apresenta

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    noes e no conceitos porque entende que a ideia de noo d nfase

    compreenso, ao como, ao raciocnio por aproximaes, enquanto a ideia de

    conceito tem nfase na explicao, no porque, no raciocnio lgico. Segundo

    o autor, tais noes so entrecruzadas numa abordagem em espiral. So elas:

    a complexidade, segundo o paradigma proposto por Morin; escuta sensvel;

    pesquisador coletivo; negociao e avaliao; mudana; processo; autorizao;

    implicao.

    Estapesquisa se dar pela adoo de algumas noes propostas e de

    alguns instrumentos do mtodo, combinando-os com outras estratgias, de

    forma a adequar s caractersticas do objeto de pesquisa. Portanto, adotamos

    as seguintes noes:

    - Complexidade

    Segundo Morin (2002) a complexidade um problema, um desafio e

    no uma resposta, um desafio construo de um novo modo de pensar que

    articula, faz pontes, pe em dilogo (no sentido de dialgica de vrias lgicas

    simultneas), procura a interao/modos de relao (complementaridades,

    antagonismos e concorrncias) entre os elementos de um fenmeno,

    aproximando-se da realidade concebida como complexa.

    Complexificar significa abandonar a ideia de que tudo aquilo que escapa

    ordem - a desordem, a incerteza, etc. - deve ser rejeitado e, se possvel,

    eliminado. Significa enfrentar as eventualidades, os erros, as incertezas e os

    perigos do processo de conhecimento, estando consciente das mutilaes,

    limitaes e iluses que operam neste processo.

    O paradigma da complexidade traz pesquisa-ao seus trs princpios:

    Dialgico: coexistncia dos processos antagnicos

    Recursivo: os efeitos ou produtos de um processo so ao mesmo tempocausadores e geradores do prprio processo, ou seja, os estados finais

    so necessrios gerao dos estados iniciais.

    Hologramtico: a parte no est somente no todo, pois o todo est, ele

    prprio, presente, de certa maneira, na parte que se encontra nele

    (MORIN, 1991, p.73). No podemos reduzir o todo s partes nem as

    partes ao todo. Assim, na relao parte-todo temos que: o todo maior

    que a soma das partes, porque todo o estado global apresenta novasqualidades emergentes, alm das qualidades de seus componentes; o

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    todo inferior soma das partes, porque toda a relao implica

    imposies.

    - Escuta Sensvel

    A escuta sensvel diz respeito ao reconhecimento e aceitao

    incondicional do outro, no sentido buberiano13de relao. O pesquisador apoia-

    se na empatia para sentir o universo afetivo, imaginrio e cognitivo do outro,

    para compreender, identificando-se com o outro. A escuta sensvel comea

    por no interpretar para suspender todo o julgamento. [...] Ela aceita deixar-se

    surpreender pelo desconhecido que, constantemente, anima a vida

    (BARBIER, 2002, p. 97). S depois, estabelecida uma relao de confiana

    entre os sujeitos, tratar-se- de atribuir um sentido aos fatos, sem esquecer

    que cada experincia pessoal nica e no redutvel a um modelo qualquer. A

    escuta sensvel afirma, ainda, uma atitude de coerncia do pesquisador que

    tambm comunica suas emoes, seu imaginrio e seus sentimentos, para

    estar inteiro, consistente, com o grupo. (BARBIER, 2002)

    - Processo

    A noo de processo, por sua vez, refere-se rede simblica e dinmica,

    inscrita no tempo e no espao, construda pelo pesquisador. Um processo

    repleto de incertezas, de estados que no podem ser previstos a priori, de

    elementos que oscilam em um movimento de estruturao, desestruturao,

    reestruturao ou exploso.

    - Implicao

    A implicao uma noo que se contrape e radicaliza o padroconvencional de separao entre sujeito e objeto de pesquisa, entre

    observador e observado. Significa uma relao dialgica entre os sujeitos da

    pesquisa, considerando o pesquisador um destes sujeitos. Assim, o que o

    pesquisador observa e interpreta no independente da sua formao, de

    13Para Buber atravs da palavra que o homem se introduz na existncia, se faz homem e sesitua no mundo com os outros. O homem , portanto, um ente de relao e o outro , assim, imprescindvel para sua realizao existencial. O que fundamenta sua existncia so as

    palavras-princpio proferidas: EU-TU ou EU-ISSO, duas possibilidades do EU revelar-se comohumano. As palavras-princpio revelam atitudes do homem face ao mundo e diante do ser. Cf.Matin Buber. EU e TU. Trad. De Newton Aquiles Von Zuben. SP: Centauro, 2004.

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    suas experincias e, sobretudo, de seu prprio mergulho na situao

    investigada (THIOLLENT, 1988).

    As fontes dos dados foram:

    - Os registros da prpria pesquisadora sobre os momentos coletivos de

    gesto pedaggica do Curso no perodo de 2008 a julho de 2011, enquanto

    atuava na coordenao geral (administrativa e acadmica), na coordenao de

    turmas e na docncia de quatro disciplinas;

    - Os documentos oficiais e os produzidos durante seu desenvolvimento:

    Projeto Poltico Pedaggico, programas, cronogramas, relatos, relatrios,

    memoriais, etc.;

    - O registro em gravao de debates entre a equipe docente durante

    algumas das reunies pedaggicas;

    - A memria da experincia da pesquisadora em sua atuao em todas

    as instncias e tarefas do Curso.

    O que pode parecer um privilgio para um pesquisador pela amplitude

    de acesso ao objeto de estudo, e o , se constituiu tambm, antagnica e

    complementarmente, na maior dificuldade para a elaborao deste texto.

    Primeiro pela dificuldade do necessrio afastamento para alcanar um olhar em

    que a neblina das relaes e emoes pudesse ser em parte dissipada;

    segundo pela dificuldade em lidar com tantas informaes e por fim dar-lhes

    uma organizao que pudesse ser inteligvel ao outro.

    As escolhas que fiz so interpretaes marcadas pelas minhas emoes

    de coordenadora-docente-amiga-pesquisadora. Devo confessar que no foi

    tarefa fcil.O texto est organizado em quatro grandes partes.

    Primeiro parto das concepes dominantes no pensamento pedaggico

    para chegar aos princpios e matrizes formadoras da Educao do Campo, que

    so os referencias que buscamos para a organizao do trabalho pedaggico

    da LEdoC.

    No segundo captulo apresento a estrutura da LEdoC: o projeto poltico-

    pedaggico, os sujeitos - estudantes, seus territrios e os docentes - e ocurrculo.

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    O terceiro captulo apresenta a organizao do trabalho pedaggico da

    LEdoC, ou seja, com que ferramentas praticamos os princpios e matrizes da

    educao do campo.

    Em seguida, no quarto captulo, descrevo nosso caminhar, as idas e

    vindas, as dificuldades e nossas invenes para realizar um curso de

    graduao em alternncia, para sujeitos do campo, com formao por rea de

    conhecimento.

    No captulo cinco empreendo a tarefa de construir uma interpretao dos

    dados da experincia no sentido de, tomando como referncia a base

    conceitual apresentada, identificar as prticas contra-hegemnicas da LEdoC,

    analisando em que avanamos e o que repetimos da forma/frma escolar

    capitalista.

    Nas consideraes finais retomo as perguntas iniciais, retornando ideia

    da LEdoC como ao contra-hegemnica capaz de contribuir no processo de

    transio paradigmtica, refletindo sobre em que medida esta contribuio

    possvel e quais os seus limites.

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    1 DESATANDO NS

    O conhecimento uma aventura que no s comporta riscos,

    mas que se alimenta de riscos

    Edgar Morin

    ... no se conhecer permanecendo na praia contemplando as espumas das ondas.

    Deve-se correr o risco, necessrio atirar-se na gua e nadar.

    Martin Buber

    Como quem se arrisca a fazer a trilha com a botina, como diz umquerido amigo, sempre que nos aventuramos a percorrer o cerrado por

    caminhos inexistentes, preciso saber aonde se quer chegar (mesmo que a

    deciso seja no chegar a lugar nenhum, apenas apreciar o caminho);

    preciso ter um mapa (de papel ou de cabea); alguma sabedoria; e

    ferramentas essenciais. Os princpios e matrizes formadoras da Educao do

    Campo so para mim como ferramentas: lanternas, que iluminam o caminho,

    ampliam minha viso; o cantil de gua que garante a vida; o canivete que mepermite experimentar frutos; a corda que me permite ir at onde no alcano.

    Olhar para a Licenciatura em Educao do Campo com a pretenso de

    compreender seu movimento, seu fazer-se, para sistematizar e registrar no

    limite do que se conseguir apreender de um processo to complexo, uma

    tarefa que fao de dentro deste movimento, de sua dinmica, vivendo suas

    tenses, contradies, conquistas, descobertas, dificuldades, enfim, implicada,

    mergulhada, comprometida com o curso, com a equipe docente e,principalmente, com os estudantes e os povos do campo. este

    comprometimento que define o traado desta escrita.

    E por onde poderia comear uma pedagoga? Quantas opes... E uma

    deciso: comearei percorrendo a construo histrica das concepes

    dominantes de educao, escola, ensino, pedagogia, considerando que

    necessrio partir desta compreenso para a efetiva mudana de paradigma a

    que nos propomos na LEdoC.

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    1.1 Educao, Escola, Pedagogia

    A educao da natureza do ser humano, inerente experincia

    humana, o modo pelo qual o ser humano se humaniza, tornando-se um ser

    de cultura e diferenciando-se dos demais animais. Educao no depende de

    escola, se d desde os primrdios da humanidade, por meio das relaes

    familiares e sociais. Para TARDIF (2010), educao um termo indefinvel,

    pois varia segundo as pocas, as culturas e os autores, mas mesmo

    considerando que qualquer definio parcial e incompleta opta por uma

    abordagem funcionalista, inspira-se em Durkheim e define a educao como a

    ao exercida pelos adultos sobre e com as crianas, a fim de integr-las sua

    comunidade e lhes transmitir a sua cultura. Tal ao tem suas caractersticas

    prprias nas sociedades tradicionais e se altera ao longo da histria da

    humanidade.

    Com inspirao marxista, Saviani (2008b) define educao como um

    fenmeno prprio dos seres humanos, uma exigncia do e para o processo de

    trabalho sendo ela, ao mesmo tempo, um processo de trabalho. O que

    diferencia os homens dos animais o trabalho, ou seja, a necessidade humana

    de produzir continuamente sua existncia, adaptando a natureza s suasnecessidades. Pelo trabalho, na produo da existncia, o homem produz o

    mundo da cultura. A educao situa-se na categoria de trabalho no-material14,

    trata da produo de ideias, conceitos, valores, smbolos, hbitos, atitudes,

    habilidades, ou seja, da produo do saber. Educao trabalho. O trabalho

    educativo para Saviani o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada

    indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente

    pelo conjunto dos homens (Ibid, p. 13).Educao , portanto, diferente de ensino. com os gregos, que

    questionam a natureza e a sociedade e se afastam da tradio, da repetio de

    modelos de pensar e agir, que surge o ensino. A sociedade fechada, fundada

    na religio, na autoridade e em uma ordem social tradicional, modelo trazido

    desde a origem da espcie humana, rompida na Grcia Antiga com a

    14 Cf. Saviani, 2008b, p. 11 a 13. Assumimos com Freitas (1995) a crtica concepo de

    educao como trabalho no-material entendendo que esta perspectiva exclui o trabalhosocialmente til como princpio educativo, colocando a relao com o mundo mediada pelaaula, ou seja, apenas como recurso didtico.

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    emergncia da democracia15. O novo regime poltico, o pensamento racional e

    a descoberta de outras culturas faz com que os gregos questionem a educao

    baseada no saber cotidiano transmitido pela famlia e grupos sociais. Contudo,

    os gregos no conheceram esta instituio que chamamos escola, um lugar

    permanente e coletivo para onde vo todas as crianas para se submeterem a

    um mesmo programa e ao comum de professores (TARDIF, 2010).

    As escolas so criaes humanas surgidas, no ocidente, durante a Idade

    Mdia, com as escolas crists que, mais do que transmitir conhecimentos de

    forma rudimentar em uma relao entre mestre e jovem como no imprio grego

    ou romano, vo se constituir como um meio moral organizado com um objetivo

    formativo. Neste sentido a escola no apenas um local onde um mestre

    ensina, mas um meio moral, em que os jovens sero convertidos ao

    cristianismo (GAUTHIER, 2010).

    Reproduzimos abaixo um quadro apresentado por Gauthier que

    esclarece, em resumo, as diferenas entre a concepo de educao

    sistematizada na Antiguidade e na Idade Mdia, dando os argumentos para a

    afirmao de que a escola surge na Idade Mdia.

    Quadro comparativo das concepes da escola

    da Antiguidade e da Idade Mdia

    Antiguidade Idade Mdia

    Diversidade de objetivos. No h

    um fim nico

    Quer se dotar o indivduo de

    conhecimentos, de habilidades

    que podem se adquirir

    separadamente (belo corpo, belo

    esprito, belo orador, belo msico).

    Tenta-se formar o esprito para

    parecer bem

    Unidade de objetivo. Direo moral

    precisa: cristianizar

    Quer-se agir sobre a

    personalidade com profundidade,

    formar certa atitude da alma,

    converter(conventere): voltar-se

    para (voltar-se para Deus e

    desviar-se das coisas terrestres).

    Tenta-se tocar a alma: o mais

    profundamente possvel

    15 Nos seus primrdios, reservada elite Ateniense, aos homens livres, privilgio de umaminoria.

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    Mestres diferentes sem ligao

    entre si (gramtica, pedtriba,

    citaredo, retor).

    Essas disciplinas se ignorammutuamente. Cada mestre

    persegue seu objetivo.

    Ensino com contedos

    heterogneos

    Disperso

    Mestres diferentes unidos

    (compartilhando o mesmo objetivo)

    Cada mestre ensina a sua rea,

    participando do objetivo comum. Ensino com contedo homogneo

    (unidade de ensino)

    Concentrao

    Em lugares diferentes.

    Contatos ocasionais mestre-aluno Alunos temporrios

    Em um mesmo lugar

    Contatos estritos, contnuos epermanentes (convictos).

    Alunos permanentes

    A Antiguidade teve mestres A Idade Mdia teve a escola: um

    meio moral organizado

    (GAUTHIER, 2010, p. 76)

    Para Gauthier (2010) a escola recebe da sociedade a tarefa de instruir,

    transmitindo saberes e habilidades que no podem ser dados nem pela famlia

    nem em outras instituies sociais de maneira sistemtica e contnua.

    No mesmo sentido, Saviani (2008b) afirma que a escola est

    relacionada com o problema da cincia, pois existe para propiciar a aquisio

    dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado, ou seja, ao

    saber cientfico.

    Ora, a opinio, o conhecimento que produz palpites, no justifica aexistncia da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada naexperincia de vida dispensa a at mesmo desdenha da experinciaescolar [...]. a exigncia de apropriao do conhecimentosistematizado por parte das novas geraes que torna necessria aexistncia da escola. (Ibid, p.15)

    A funo social da escola seria, portanto, socializar o saber

    elaborado/cientfico, transmitindo os instrumentos de acesso a este saber.

    Segundo Saviani pela mediao da escola que acontece a passagem do

    saber espontneo ao saber sistematizado, da cultura popular cultura erudita,

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    o que se d em um movimento dialtico, em que a ao escolar permite que se

    enriqueam os saberes sem excluir os anteriores, de forma que o acesso

    cultura erudita possibilita a apropriao de novas formas por meio das quais se

    podem expressar os prprios contedos do saber popular. (SAVIANI, 2008b,

    p. 22)

    Barbieri (2011) nos alerta que a compreenso do que escola, o sentido

    da escola, uma construo histrica e da Antiguidade at nossos dias

    assumiu e assume muitos sentidos. Percorrendo a histria16, Barbieri vai

    revelando os sentidos dados educao e mostra como que esta vai sendo

    considerada verdadeira se institucionalizada, escolarizada, lembrando que o

    processo de consolidao da escola como instituio se deu sob pressupostos

    funcionalistas. Apresenta os vrios sentidos de escola e rene-os em trs

    vises, trs concepes de escola (Ibid., p. 80):

    - viso neutro-criadora: fundamentada nos pressupostos funcionalistas e

    estruturo-funcionalistas de sociedade, concebe a escola como apartada do

    contexto social, tendo como papel constituir, criar e formar a sociedade ao lado

    de outras instituies e, como principal funo, contribuir para o equilbrio e

    sobrevivncia dessa mesma sociedade;

    - viso sistmico-reprodutora: fundamentada na premissa da inexistncia

    de conflitos entre as classes sociais, concebe a escola como parte integrante

    do sistema social com o papel de ser um dos aparelhos de manuteno da

    hegemonia da classe dominante, tendo como funo reproduzir os

    pressupostos e ideologia da sociedade capitalista;

    - viso estratgico-transformadora: fundamentada na natureza dialtica

    dos conflitos existentes nas relaes sociais, concebe a escola como parte

    constitutiva da sociedade civil, com o papel de realizao da contra-ideologiada classe dominante, com a funo de participar efetivamente do processo de

    contra-hegemonia necessrio transformao e recriao da estrutura e

    funcionamento de nossa formao social.

    A concluso de Barbieri de que no h a escola, mas sim escola e

    escolas e que as concepes so, irrefutavelmente, uma questo de classe, j

    16Os pensadores visitados so Henri Marrou, Mario Manacorda, Emile Durkein, Samuel Bowles

    e Herbert Gintis, Louis Althusser, Christian Baudelot e Roger Establet, Pirre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Antonio Gramsci, e os estudiosos da educao brasileira.

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    que, segundo Marx&Engels, as ideias dominantes de um determinado perodo

    histrico so as ideias da classe dominante (Ibid.).

    A Pedagogia chega por ltimo, no sculo XVII. Surge como a

    codificao de certos saberes prprios ao docente, isto , um conjunto de

    regras, de conselhos metdicos que no devem ser confundidos com os

    contedos a ensinar, e que so formulados para o mestre, a fim de ajud-lo a

    ensinar ao aluno, para que este aprenda mais, mais depressa e melhor

    (GAUTHIER, 2010, p. 126). Pedagogia , nesta perspectiva, mtodo.

    A dimenso pedaggica s surge com a ampliao das escolas que,

    segundo Gauthier deveu-se a quatro fatores. Em primeiro lugar Reforma

    Protestante. Lutero, ao afirmar que s as Escrituras Sagradas tm autoridade e

    defender a sua leitura pelo povo, enfatiza tambm a necessidade de educar o

    povo e reivindica a criao de escolas para todas as crianas. Naquela poca a

    maioria da populao no sabia ler e escrever e, apesar de o cristianismo ser

    uma religio erudita, conhecer as Escrituras era privilgio da elite e do clero, ao

    povo eram ensinados apenas os seus ritos.

    Em segundo lugar a Contrarreforma Catlica, que significa a reao dos

    catlicos Reforma Protestante, quando percebem a necessidade de tambm

    fundarem escolas para dominar as almas. Para isto, fundam uma milcia

    religiosa, os jesutas, com a tarefa de combater o protestantismo para alm dos

    muros dos mosteiros. Para cumprir sua tarefa, criam colgios ao redor do

    mundo.

    O terceiro fator seria o novo sentimento da infncia, ou seja, o fato de a

    infncia tornar-se uma preocupao para o adulto, em se reconhecer a sua

    especificidade. A criana, primeiro tratada como um pequeno adulto, depois

    como um brinquedo encantador da famlia, se torna uma preocupao moral. preciso educar moralmente a criana, policiar seus costumes, o que ser feito

    no pela famlia, mas por homens da Igreja. Da advm a criao de

    instituies religiosas para a educao da infncia.

    O ltimo fator se resume na frase de Charles Dmia: abrir uma escola

    fechar uma priso. Para resolver os problemas causados pela libertinagem

    dos jovens, especialmente os filhos do povo, que ameaam a ordem social, era

    preciso instru-los. Surge o argumento sobre a funo social da escola.

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    A Pedagogia emerge, portanto, para resolver o problema de como

    ensinar grupos grandes e heterogneos. Para ensinar j no basta dominar o

    contedo, so precisos mtodos e procedimentos detalhados para dar aulas.

    Diz respeito a mecanismos de controle, organizao (no sentido de negao

    da desordem), gesto do tempo, gesto do espao, s normas de conduta,

    a sistemas de vigilncia e organizao dos saberes. Nas palavras de

    Gauthier (2010, p. 133) um discurso e uma prtica de ordem que visam

    contrapor-se a toda forma de desordem na classe.

    Como mtodo para manter a ordem e controle de todos os elementos de

    uma classe de alunos, preocupada em como ensinar simultaneamente a um

    grande nmero de alunos, a Pedagogia assume as seguintes caractersticas,

    evidenciadas nos Tratados de Pedagogia17, escritos em sua maioria por

    religiosos:

    - o mestre, para dominar uma classe, deve situar-se diante dela de modo

    que possa ver todos os alunos e assim se coloca em uma pequena tribuna, um

    tablado para que olhe os alunos de cima e possa controlar o funcionamento do

    grupo, ou seja, todos os alunos simultaneamente;

    - os alunos devem ser agrupados em classes segundo suas

    capacidades;

    - cada criana deve ter um exemplar do mesmo livro18;

    - o mestre deve fazer a gesto do tempo. Assim, a permanncia dos

    alunos na escola cuidadosamente planejada, os horrios das atividades so

    definidos em uma sequncia que no permita tempo ocioso, ou seja, o tempo

    todo cronometrado. Para garantir que os alunos estivessem sempre ocupados,

    os jesutas inventaram os deveres escritos;

    - o mestre deve fazer a gesto do espao. assim que se concebe aescola como um lugar fechado para o mundo exterior, evitando distraes. O

    17Introduo geral didtica ou arte de ensinar, de Ratichius;A grande didtica: tratado da arteuniversal de ensinar tudo a todos, de Comenius; A escola paroquial ou a maneira de bemensinar em escolas pequenas, de Jacques De Batencour; Regulamentos para as escolas dacidade e diocese de Lyon, de Charles Dmia; Conduta das escolas crists, de Jean-Baptiste LaSalle; e o clebre Ratio Studiorum, dos Jesutas. So tratados precisos sobre a maneira deensinar escritos por docentes e para docentes e no por uma elite intelectual que no

    ensina.(GAUTHIER, 2010)18 A inveno da imprensa torna possvel esta exigncia, pois torna o livro um objeto deconsumo usual e no mais um objeto de luxo. (GARTHIER, 2010)

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    espao regulamentado segundo critrios de modo que a classe se torna um

    lugar especializado que serve a fins precisos;

    - o mestre deve dirigir o aluno, ditando sua postura, seus deslocamentos

    e sua conduta, estabelecendo um mecanismo de controle dos corpos. A fila

    o mtodo para gerir os deslocamentos dos alunos; o silncio deve ser mantido;

    as atividades se sucedem sem perda de tempo; os alunos devem ser vigiados,

    usando-se mecanismos prprios ou mesmo a vigilncia simblica como a ideia

    de que Deus te vigia; h uma estrutura de castigos, recompensas e punies

    para dirigir a conduta dos alunos;

    - a escola organizada em torno dos saberes a transmitir que seguem o

    seguinte ordenamento: primeiro a formao crist (catecismo, missa diria e

    preces), em seguida o domnio dos rudimentos (ler, escrever e contar) e por

    ltimo a civilidade (costumes).

    Para Gauthier os tratados de pedagogia do sculo XVII so os

    fundadores do pensamento pedaggico, pois inauguram um mtodo de ensino

    e, assim, manifestam uma nova preocupao.

    Os tratados so concebidos para definir as aes dos mestres noseu ensino a grupos filhos do povo. No se limitam a conselhos para

    uso de um preceptor, numa perspectiva individual; ultrapassam algica do contedo como sempre ocorrera, e vo mais longe do queuma crtica retrica, como fizeram os humanistas do Renascimento.Esses tratados de pedagogia sistematizam processos de ensino edefinem completamente a relao com o outro (o grupo), e isso a fimde garantir a sua converso ( 2010, p. 146).

    No simples conceituar Pedagogia hoje. H uma ampla discusso

    epistemolgica principalmente no que se refere distino entre Pedagogia e

    Didtica. Sem entrar em tal embate terico, adotaremos a ideia de quePedagogia Cincia da Educao e seu objeto o trabalho pedaggico, ou

    seja, a prxis educativa e as relaes entre seus atores.19 J a Didtica

    considerada aqui como uma rea da Pedagogia, que tem o ensino como objeto

    de estudo (FRANCO & PIMENTA, 2010).

    Muitos caminhos percorreu a Pedagogia desde seu surgimento, mas

    sabemos que sempre voltada organizao dos meios, contedos, espaos,

    19Conceituao aceita por Selma Garrido Pimenta, Jos Carlos Libneo, Maria Amlia SantoroFranco e Clermont Gauthier.

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    tempos e mtodos para que a escola cumpra a funo social determinada pela

    hegemonia em cada momento histrico.

    A histria das ideias pedaggicas20nos mostra que a Pedagogia segue

    a histria da humanidade e a funo social da escola em cada fase, contexto,

    momento. Mas traz em si as marcas de sua origem, o que chamamos de

    Pedagogia Tradicional. Tradicional porque as prticas criadas no sculo XVII

    se perpetuam at o sculo XIX constituindo uma tradio pedaggica na

    Europa, trazida ao Brasil pelos jesutas e aqui tambm perpetuada. Mesmo

    com a revoluo industrial, em que a escola se submeter aos princpios

    econmicos dominantes, no so alteradas as ideias fundantes de ordem e

    eficincia, ao contrario, so levadas ao extremo.

    No Brasil, segundo Saviani (2008a), a Pedagogia Tradicional exerce seu

    monoplio desde colonizao, de 1549 at 1932, primeiro em sua vertente

    religiosa por mais de duzentos anos e depois na coexistncia das vertentes

    religiosa e leiga, at o surgimento da Pedagogia Nova.

    Para Gauthier (2010), a Pedagogia Tradicional um saber-fazer

    conservador, prescritivo e ritualizado que foi se constituindo como um cdigo

    de ensino uniforme, ou seja, uma tradio e, neste sentido, encerra quatro

    caractersticas centrais. Primeiro define modelos de conduta, trazendo

    comportamentos vindos do passado o que na perspectiva pedaggica diz

    respeito a ensinar como foi ensinado, repetindo as maneiras de fazer a escola.

    Mas uma tradio tambm promove a modificao dos modelos, usando a

    experincia para adaptar-se a novos contextos, porm, por seu carter

    prescritivo, constri um reservatrio de respostas, dizendo o que fazer. As

    coisas no so questionadas, no h perguntas, apenas respostas. Por fim, os

    comportamentos se tornam rituais e adquirem um status quase sagrado.A tradio pedaggica assumiria seu apogeu com o sistema de ensino

    mtuo, surgido na Inglaterra do sculo XVIII, com o objetivo de alfabetizar o

    maior nmero de alunos, em menor tempo e com menor custo, aplicando

    escola os mtodos de diviso do trabalho criados pela industrializao

    nascente, mantendo a ideologia de ordem e controle em vigor h dois sculos,

    mas trazendo uma novidade: a funo econmica da escola.

    20 Cf. Histria das Idias pedaggicas no Brasil, de Demerval Saviani; Histria das IdiasPedaggicas, de Moacir Gadotti;A pedagogia, de Clermont Gauthier.

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    A crtica tradio pedaggica surgir apenas nos fins do sculo XIX e

    incio do XX, sob as luzes da cincia, pelos partidrios da pedagogia nova.

    Vrios autores21 questionam o saber pedaggico tradicional, vigente h trs

    sculos, pregando a superao da tradio e a necessidade de fundar a

    pedagogia sobre a cincia.

    [...] no se quer mais que a pedagogia seja simplesmente aexpresso ingnua da tradio educativa [...] deseja-se que elacorresponda a um conjunto de saberes positivos e a um saber-fazerproveniente de verificaes cientficas. Assim mais do que fundar-sesobre a tradio e arriscar-se a perpetuar erros graves, a pedagogiase baseia agora na cincia, para iluminar sua prtica. No ser poissurpreendente constatar que, entre os primeiros grandes nomes dapedagogia nova, encontrem-se Montessori e Decroly, assim como

    seus predecessores Itard e Sguin, que so mdicos experientes nosmtodos de observao cientfica. (GAUTHIER, 2010, p. 189)

    O movimento da escola nova surge pela iniciativa de diversos autores e

    variadas experincias pedaggicas colocadas em curso: por Dewey22, em

    Chicago e Kerschensteiner, na Alemanha, ambos em 1894; por Binet, em 1898

    que publica uma obra em que declara guerra pedagogia tradicional; por

    Montessori em 1900; Decroly, em 1907. Em 1921 realizado o Primeiro

    Congresso Internacional de Educao Nova e em seguida surgem as

    experincias de Neill (escola de Summerhill) na Inglaterra, Freinet e Cousinet

    na Frana, entre outros, tendo em comum a oposio pedagogia tradicional e

    a educao centrada na criana e no nos conhecimentos a transmitir. Agrupa,

    portanto, vrios autores que desenvolvem maneiras diferentes de fazer escola

    em contextos nacionais diversos.

    Gauthier critica o modo com que o movimento escolanovista se define

    em oposio pedagogia tradicional, pois denunciam a tradio como se esta

    fosse uma doutrina viva, pertencendo a um determinado autor e com

    argumentos precisos quando, na verdade, trata-se de um objeto sutil de

    mltiplos componentes, que est impressa na vida de cada um sem que se

    21Gauthier cita Charbonnel, H. Marion, G. Compayr, Binet, Claparde22Jonh Dewey: representante da Pedagogia Ativa, escola pragmtico-experimental americana,

    que compreendia a escola como instrumento para a reforma total da sociedade, instrumento de

    mudana, mas no as decorrentes da luta de classes, pelo contrrio, aquelas necessrias paraevit-la, mantendo a ordem social vigente.

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    perceba, ou seja, combatem uma tradio que eles prprios viveram como

    alunos, fazendo uma oposio maniquesta.

    A tradio feita de prontos-para-pensar e repousa sobre o fato de

    que cada um age por imitao, sem refletir. A tradio que ospartidrios da pedagogia nova condenam teve, como vimos, umaorigem real e partidrios declarados, mas, trs sculos depois, alocomotiva ainda avana sobre seus trilhos sem condutor, propulsadaunicamente pela fora do hbito. Os partidrios da pedagogia novaviram um personagem onde havia apenas um espectro, tomaram osefeitos da tradio por uma doutrina. (Ibid., p. 192)

    De qualquer forma, com todas as crticas que se possa elaborar em

    relao ao movimento escolanovista, certo que teve consequncias

    concretas no pensamento pedaggico, operando uma revoluo copernicanano ensino ao situar o centro da gravidade no aluno e no mais no programa .

    Esta a revoluo copernicana qual a psicologia convida o educador

    (BLOCH apud GAUTHIER, 2010, p. 2010).

    Ao contrrio da pedagogia tradicional, centrada na cultura a ser

    transmitida pelo professor ao aluno, a pedagogia nova substitui o ensino do

    mestre pela aprendizagem do aluno e se define, por conseguinte, como uma

    pedagogia do sujeito (Ibid., pag. 198). Suas principais ideias so: a criana um ser integral, distinto do adulto, com maneiras prprias de pensar e agir;

    cabe escola o desenvolvimento da totalidade das dimenses do humano;

    desenvolver a criana significa fazer desabrochar os dons que j traz consigo

    ao nascer; o papel do professor responder s necessidades da criana,

    criando um ambiente favorvel aprendizagem; as atividades devem favorecer

    a expresso da criana e ter como ponto de partida seu ambiente natural e

    social; o interesse surge do prprio indivduo e no pode ser estimulado doexterior.

    a Saviani (2008a) que recorremos para compreender como se deu e o

    que significou o movimento escolanovista no Brasil. Foi no contexto de ebulio

    social da dcada de 1920, que culminaria com a Revoluo de 1930, que

    emerge no campo educacional um movimento renovador impulsionado pelos

    ventos modernizantes do processo de industrializao e urbanizao (p. 193)

    que se opunha Igreja Catlica, conflito esse que se consuma com a

    publicao do Manifesto da Educao Nova em 1932, articulado pelo que

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    Saviani denomina de trindade cardinalcia do movimento da Escola Nova:

    Loureno Filho, Ansio Teixeira e Fernando de Azevedo.

    de Loureno Filho a primeira publicao brasileira que divulga o

    iderio renovador no pas, o livro Introduo ao Estudo da Escola Nova, de

    1932. Segundo Saviani, Loureno Filho foi quem melhor articulou os dois

    aspectos que definem o movimento de renovao pedaggica: a presena do

    trabalho no processo de instruo tcnico-profissional e a descoberta da

    psicologia infantil.

    Os estudos de biologia, psicologia e sociologia sero o trip cientfico

    sobre o qual se assenta o escolanovismo apresentado por Loureno Filho que

    traria, para Saviani, a base psicolgica do movimento renovador.

    A base sociolgica ficaria a cargo de Fernando de Azevedo para quem o

    ideal da Escola Nova envolvia trs aspectos: a escola nica, entendida como a

    escolarizao de cinco anos obrigatria e gratuita a partir dos sete anos de

    idade; a escola do trabalho entendido como o estmulo s experincias e

    interesses das crianas satisfazendo sua curiosidade intelectual; e a escola-

    comunidade, que diz respeito organizao da escola de forma que a classe

    se convertesse em uma colmeia para a qual todos trabalhariam exercitando o

    trabalho em grupo e a solidariedade. Para Fernando de Azevedo (AZEVEDO

    apud SAVIANI, 2008a) havia duas concepes de Escola Nova, com origem e

    bases diferentes:

    - A educao ou escola nova, concebida por Bover, Claparde, Ferrire,

    e entre os americanos Dewey, orientada pelos seguintes princpios: 1) maior

    liberdade para a criana, proporcionando condies mais favorveis ao seu

    desenvolvimento natural, pela atividade livre e espontnea; 2) o princpio da

    atividade (mtodos ativos, escola ativa), inspirado pela ideia de que a criana um ente essencialmente ativo, cujas faculdades se desenvolvem pelo

    exerccio; 3) o respeito pela originalidade pessoal de cada criana e, em

    consequncia, a individualizao do ensino, fundamentada na ideia de que a

    cada um devida a educao que lhe convm (a escola sob medida de que

    fala Claparde).

    - A educao nova, para quem a infncia no apenas

    desenvolvimento, mas tambm uma iniciao em uma civilizao que elaencontra j feita. Assim, na iniciao e no no desenvolvimento que a escola

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    pe o acento, procurando compreender as necessidades do indivduo por meio

    das necessidades da comunidade, como tambm organizar a escola como uma

    comunidade de vida, orientada segundo os princpios da solidariedade, da

    cooperao e do sacrifcio parcial do indivduo para o bem coletivo. Esta

    segunda acepo coloca-se em oposio aos ideais individualistas da escola

    liberta e ativa, que prope a libertao da criana levada s ltimas

    consequncias, assumindo os ideais sociais e, em alguns casos, socialistas, da

    escola do trabalho e da escola-comunidade, organizadas com o objetivo de

    desenvolver na criana suas tendncias cooperadoras e criadoras, alm de

    conduzi-la cultura a aos deveres dos adultos.

    Apesar de deixar claro sua opo pela segunda concepo, Saviani nos

    alerta sobre o quo contraditrias so as palavras acima citadas de Azevedo

    em relao a outros documentos seus23.

    Ansio Teixeira traria para o movimento as bases filosficas e polticas,

    enfatizando a importncia da educao para a democracia, a educao como

    direito de todos e jamais um privilgio. Considerava a educao um elemento-

    chave para o processo de modernizao e acreditava que por meio da

    educao se poderia consolidar as conquistas democrticas da Revoluo. A

    educao era, portanto, elemento central para o que considerava um processo

    revolucionrio.

    [...] para Ansio Teixeira o sentido de partido revolucionrio ligava-se necessidade de levar s ltimas conseqncias a revoluodemocrtica liberal, mantendo, pois, como referncia material a baseprodutiva em sua forma capitalista. (SAVIANI, 2008, p. 225)

    A Escola Nova se constituiu em contraposio Pedagogia Tradicional,

    como uma reao categrica, intencional e sistemtica contra a velha

    estrutura do servio educacional, artificial e verbalista, montada para uma

    concepo vencida (MANIFESTO, p. 411).

    O Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova defendia a aplicao dos

    mtodos cientficos aos problemas da educao, fundando-se no aspecto

    biolgico segundo o qual todo o indivduo pode ser educado at onde permitam

    suas aptides naturais, de modo que todos os grupos sociais fossem

    contemplados com as mesmas oportunidades educacionais.

    23Ver Saviani 2008a, captulo