tese carlos da silva

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0 MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NA LITERATURA E NO CINEMA por CARLOS AUGUSTO VIANA DA SILVA Orientador: Prof. Dr. Décio Torres Cruz Co-Orientadora: Profª. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco SALVADOR 2007 Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº 147 – CEP: 40170-290 – Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263-6256 – Site: www.ppgll.ufba.br – E-mail: [email protected]

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Trata-se da tese que relata sobre a literatura inglesa!

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    MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NA LITERATURA E NO CINEMA

    por

    CARLOS AUGUSTO VIANA DA SILVA

    Orientador: Prof. Dr. Dcio Torres Cruz

    Co-Orientadora: Prof. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco

    SALVADOR 2007

    Universidade Federal da Bahia Insti tuto de Letras

    Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingstica Rua Baro de Geremoabo, n 147 CEP: 40170-290 Campus Universitrio Ondina Salvador-BA

    Tel.: (71) 263-6256 Site: www.ppgll.ufba.br E-mail: [email protected]

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    MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NA LITERATURA E NO CINEMA

    por

    CARLOS AUGUSTO VIANA DA SILVA

    Orientador: Prof. Dr. Dcio Torres Cruz

    Co-Orientadora: Prof. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingstica, da Universidade Federal da Bahia UFBA, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Letras, no Curso de Doutorado em Letras e Lingstica.

    SALVADOR 2007

    Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras

    Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingst ica Rua Baro de Geremoabo, n 147 CEP: 40170-290 Campus Universitrio Ondina Salvador-BA

    Tel.: (71) 263-6256 Site: www.ppgll.ufba.br E-mail: [email protected]

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    Aos meus pais, Augusto e Neuza

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    AGRADECIMENTOS

    A todos os colegas, professores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingstica da UFBA, j que de alguma maneira colaboraram para a elaborao desta tese.

    Aos professores das disciplinas que cursei na UFBA Rosa Virginia, Ilza Ribeiro,

    Denise Chaeyerl e Florentina Sousa, pelas relevantes discusses sobre Lingstica, Lingstica Aplicada e Estudos Culturais.

    s professoras Vera Santiago, pelas importantes sugestes, por ocasio do Exame de Qualificao, e Eliana Franco, pelas contribuies fundamentais na co-orientao desta tese.

    CAPES, pela concesso da bolsa, no perodo de 2003 a 2005, para desenvolvimento da pesquisa.

    Ao meu amigo D. Henrique, pelas ajudas constantes com o computador e na reviso desta tese.

    Aos colegas do colegiado do Curso de Letras da FECLESC/UECE, pelo incentivo.

    A todos aqueles que fizeram e fazem parte da minha trajetria, principalmente minha famlia e aos meus amigos o meu grande patrimnio.

    E agradeo especialmente ao professor Dr. Dcio Torres Cruz, pelo privilgio de sua valiosa orientao.

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    Who would have thought that a book based on the lives of women in three different eras, all connected via a book, Virginia Woolfs Mrs. Dalloway, would become a best-seller and this years darling of the movie awards, winning two Golden Globes for Best Picture and Best Actress and generating a powerful dose Oscar buzz?

    (Curt Degenhart)

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    RESUMO

    Esta tese investiga a reescritura do universo literrio de Virginia Woolf para a literatura e para

    o cinema, por meio da observao das reescrituras do romance Mrs. Dalloway (1925): o filme Sra. Dalloway (1997), de Marleen Gorris; o livro As Horas (1998), de Michael Cunningham; e o filme As Horas (2002), de Stephen Daldry. Partimos da hiptese de que as narrativas reescritoras so mais tradicionais, tm novo arranjo linear e no seguem uma tendncia vanguardista, devido, principalmente, ao estilo dos tradutores. Para comprovarmos tal hiptese, analisamos algumas estratgias de traduo, empregadas na criao de imagens de Woolf para os novos pblicos, levantando, em cada narrativa, questes gerais sobre o enredo

    e a construo do tempo e do espao. As estratgias observadas, no filme Sra. Dalloway, foram as seguintes: linearidade (organizao narrativa), flashback, voice-over e montagem. No filme As Horas as estratgias foram as seguintes: delineao do enredo (criao de trs histrias paralelas), continuidade de elementos imagticos (montagem), silncio e expresses dos atores/atrizes e mltiplas perspectivas. A anlise levou-nos a concluir que essas narrativas tm formatos prprios (como arranjo linear particular) e no seguem a tendncia vanguardista do texto de Woolf, devido s questes inerentes ao meio cinematogrfico (ampliao de pblico, criao de narrativas lineares, influncia da narrativa clssica hollywoodiana, etc), mas, principalmente, devido ao estilo e concepo de criao dos prprios tradutores. A anlise fundamenta-se na idia de reescritura de Lefevere (1992), como um tipo de traduo, na concepo de traduo dos Estudos Descritivos de Toury (1995) e da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990) e em alguns estudos que tratam da relao literatura e cinema, tais como Bordwell (1985), Vanoye & Goliot-Lt (1994), Aumont et al (1995) e Cruz (1997).

    Palavras-chave: Cinema; Literatura; Reescritura; Traduo

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    ABSTRACT

    This dissertation investigates the rewriting of Virginia Woolfs literary universe to literature and to film, through the analysis of the rewritings of the novel Mrs. Dalloway (1925): the film Mrs. Dalloway (1998), directed by Marleen Gorris, the novel The Hours (1998), by Michael Cunningham, and the film The Hours (2002), directed by Stephen Daldry. Our hypothesis is that the rewriting narratives are more traditional, i.e. they have a new linear arrangement and do not follow an avant-garde tendency due, mainly, to their translators style. In order to confirm such hypothesis, we have analyzed some translation strategies, used in the creation of Woolfs imagery to new audiences. In each narrative, general questions on plot and on the

    construction of time and space have been taken into account. The strategies observed in the film Mrs. Dalloway were the following: linearity (narrative organization), flashback, voice-over, and montage; in the film The Hours, the following strategies have been investigated: delineation of plot (the creation of three parallel stories), continuity of image elements (montage), silence and actors/actresss expressions, and multiple perspectives. The analysis led us to conclude that these narratives have their own format (with a particular linear arrangement) and do not follow the avant-garde tendency of Woolfs novel due not only to the questions inherent in the cinematographic medium (the increase of the audience, the creation of linear narratives, influenced by the classic Hollywoodian narratives, etc), but also to the translators style and conception of creation. The analysis is based on Lefeveres idea of rewriting as a sort of translation (1992); on the conception of translation in Tourys Descriptive Studies (1995), on Even-Zohars polysystem theory; and on some studies that deal with the relationship between literature and cinema such as Bordwell (1985), Vanoye & Goliot-Lt (1994), Aumont et al (1995) and Cruz (1997).

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Diagrama triangular de Ogden e Richards .......................................................41

    Figura 2 nascemorre ..................................................................................................51

    Figura 3 Traduo Intersemitica...............................................................................51

    Figura 4 Reproduo de um momento do passado da personagem...............................136

    Figura 5 Descrio cnica do aeroplano ......................................................................144

    Figura 6 Descrio do presente e do passado da personagem.......................................147

    Figura 7 Apresentao do espao da personagem ........................................................150

    Figura 8 Alternncia de imagens .................................................................................157

    Figura 9 Compra de flores no Mulberrys....................................................................161

    Figura 10 Preparao final para a festa ........................................................................162

    Figura 11 Primeira situao comum entre as personagens ...........................................192

    Figura 12 Atividades individuais das personagens.......................................................199

    Figura 13 Ligao entre as personagens ......................................................................200

    Figura 14 Flores como elemento de transio..............................................................206

    Figura 15 Atitudes reveladoras de comportamentos.....................................................211

    Figura 16 Criao de espaos flmicos, do ponto de vista das personagens ..................211

  • 8

    SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................. 09 1 OS ESTUDOS DE TRADUO, A REESCRITURA E A TRANSMUTAO ....................................................................................... 16

    1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DE TRADUO....................................................... 16 1.2 A REESCRITURA QUE UM TIPO DE TRADUO: CONSIDERAES SOBRE A TEORIA DAS REFRAES............................................................................................ 24 1.3 A INTERSEMIOSE ENTRE AS LINGUAGENS LITERRIA E CINEMATOGRFICA.................................................................................................... 39

    2 A HIBRIDIZAO DOS GNEROS: UM DILOGO ENTRE O DISCURSO LITERRIO E O DISCURSO CINEMATOGRFICO........ 56

    2.1 CONSIDERAES GERAIS ..................................................................................... 56 2.2 A POTICA DA NARRATIVA LITERRIA............................................................. 69 2.3 A POTICA DA NARRATIVA CINEMATOGRFICA ............................................ 83 2.4 O TEMPO E O ESPAO NAS NARRATIVAS LITERRIA E FLMICA .................. 92

    3 MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NO CINEMA....................................................................................................... 110

    3.1 MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF............................................................. 110 3.2 SRA. DALLOWAY, DE MARLEEN GORRIS ............................................................ 133

    3.2.1 Linearidade (organizao narrativa) .................................................................. 134 3.2.2 Flashback ........................................................................................................... 144 3.2.3 Voice-over .......................................................................................................... 152 3.2.4 Montagem........................................................................................................... 156

    4 AS HORAS E A REESCRITURA DE MRS. DALLOWAY NA LITERATURA E NO CINEMA ................................................................. 166

    4.1 AS HORAS, DE MICHAEL CUNNINGHAM............................................................ 166 4.2 AS HORAS, DE STEPHEN DALDRY ...................................................................... 189

    4.2.1 Delineao do enredo (trs histrias paralelas).................................................. 189 4.2.2 Continuidade de elementos imagticos (montagem) ............................................ 200 4.2.3 Silncios e expresses de atores/atrizes............................................................... 210 4.2.4 Mltiplas perspectivas (o olhar do outro) ........................................................... 215

    CONCLUSO .............................................................................................. 225 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................ 229 REFERNCIAS FILMOGRFICAS......................................................... 242

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    INTRODUO

    A reescritura de textos literrios para outros meios de linguagem tem sido cada

    vez mais fonte de discusso pela natureza dialgica existente na relao entre a literatura e

    outras mdias. Esse dilogo constante se d pela traduo de linguagem que ocorre na

    interao entre os campos. No caso da literatura e do cinema, por exemplo, o processo pode

    ter mo dupla, ou seja, algumas obras literrias se transformam em filmes e alguns roteiros

    cinematogrficos se transformam em livros. Em ambos os casos, a reescritura favorece a

    difuso do texto de origem.

    Diante dessa condio de mistura dos gneros (GEERTZ, 2000, p.33) entre os

    campos, em que cada vez mais as fronteiras entre as artes se embaralham, a traduo se

    estabelece na zona limiar para dar conta das questes relacionadas transposio de uma

    linguagem para outra, conforme salientou Cruz (1997, p.2). Nesse sentido, a reescritura do

    texto literrio vista nos estudos atuais de traduo como uma instncia do fenmeno

    tradutrio. um novo tipo de traduo que legitima as variadas formas pelas quais os textos

    so difundidos nos sistemas literrios. Um exemplo pessoal sobre a questo merece destaque.

    Na dcada de oitenta, eu ouvia em vinil a cano Wuthering Heights, cantada por Kate

    Bush e, durante muito tempo, ela representava para mim apenas uma msica agradvel e,

    talvez, romntica, pela melodia, j que, naquele momento, ainda no tinha o conhecimento da

    lngua inglesa. Em 1996, estudando Letras, na Universidade Estadual do Cear, cursando a

    disciplina Literatura Inglesa I (Prosa em Lngua Inglesa), descobri que, na verdade, a msica

    fazia referncia a um dos maiores romances da lngua inglesa (O Morro dos Ventos Uivantes),

    escrito por Emily Bront em 1847. A partir de ento, pelo menos para mim, Wuthering

    Heights passou a ter duas dimenses: o texto de Bront e a reescritura de Bush. Mas, ser que

    para a grande maioria do pblico brasileiro haveria tambm essas mesmas dimenses?

  • 10

    Provavelmente, no, pois, para esse pblico, a msica divulgada nas mdias da poca continua

    sendo o texto o texto de partida.

    O reconhecimento de um fenmeno desses como traduo se deve,

    principalmente, reformulao das teorias de traduo e ao surgimento de novas propostas de

    anlise que levam em considerao no somente o produto, como faziam as anlises

    prescritivas, mas tambm o processo.

    Com essa nova postura, muitos estudos na rea de traduo audiovisual tentam

    sistematizar teorias e mtodos para darem conta do processo e apontam a cada dia novas

    possibilidades para entender como se do as reescrituras, seja pela traduo da linguagem

    verbal para a no-verbal, isto , a traduo intersemitica, conforme definida por Jakobson

    (1991), seja pela traduo da prpria linguagem literria de um contexto para outro.

    A investigao da questo da reescritura de obras literrias para outras linguagens

    e/ou contextos , certamente, um campo frutfero de estudo, mas ainda pouco explorado no

    nosso pas. Se levarmos em conta as inmeras obras da nossa literatura reescritas para as telas

    e as inmeras obras das literaturas estrangeiras que foram traduzidas atravs do cinema para o

    espectador brasileiro, podemos inferir que o processo de reflexo sobre essas prticas precisa

    ser expandido no contexto acadmico. Embora as pesquisas sobre traduo tenham avanado

    bastante nesse sentido, ainda a teoria literria e a semitica que se ocupam

    predominantemente com essa questo. Talvez esse fato se justifique por uma resistncia, por

    parte de alguns estudiosos, principalmente, da literatura, que ainda persiste em relao nova

    viso de traduo, que a de dar ao texto traduzido nas telas a condio de texto autnomo e

    produtor de significado. E isso, certamente, fere os princpios tradicionais do original. No

    difcil observarmos esse fenmeno na crtica cinematogrfica, por exemplo, em que, na

    maioria dos comentrios, o filme posto como uma adaptao da obra de partida por meio

    de anlises comparativas.

  • 11

    A traduo intersemitica ou transmutao discute o processamento das duas

    linguagens e coloca o texto de partida (o romance, o conto, uma pea etc) no sistema

    cinematogrfico, intermediando para o espectador o resultado de uma leitura, permitindo,

    ainda, a possibilidade de vrias outras leituras, assim como toda traduo o : uma reescritura,

    uma reinterpretao.

    Lefevere (1992), ao levantar essa questo da reescritura, discute a multiplicidade

    de interpretaes a que um texto submetido ao ser traduzido. O autor argumenta que as

    interpretaes se apresentam por meio de vrios textos, tais como resumos, resenhas crticas

    em revistas ou jornais, representaes em palcos ou nas telas e pela prpria traduo. Todos

    esses textos, produzidos a partir de leituras so, na viso de Lefevere, importantes porque

    difundem-se e alcanam leitores de todos os nveis. O romance Mrs. Dalloway (1925), da

    escritora inglesa Virginia Woolf, traduzido para o cinema e para a literatura, por exemplo,

    insere-se nessas questes, pois o discurso literrio da autora foi traduzido/reescrito para outros

    sistemas, criando uma imagem da sua obra para o leitor/espectador.

    O presente estudo investiga a reescritura do universo literrio de Virginia Woolf

    para os novos meios e contextos de linguagens, por meio da anlise das reescrituras de Mrs.

    Dalloway para a literatura e para o cinema. Essas reescrituras so trs narrativas: o filme Sra.

    Dalloway (1997), de Marleen Gorris; o livro As Horas (1998), de Michael Cunningham; e o

    filme As Horas (2002), de Stephen Daldry.

    O romance Mrs. Dalloway apresenta inovaes em sua estrutura, como a

    formulao do tempo, do espao, da prpria sintaxe e na sua tessitura como um todo. Dessa

    forma, o romance diferencia-se das narrativas tradicionais e passa a ser considerado um

    romance de vanguarda. A preocupao desse construto narrativo no na ao narrativa,

    propriamente dita, mas na introspeco, na apreenso do mundo particular dos personagens e

  • 12

    lida, predominantemente, com processos mentais. Por tal razo, essa narrativa tambm

    considerada romance impressionista, que apresenta leitura densa e de difcil compreenso.

    Devido a esses aspectos particulares da narrativa de Virginia Woolf, levantamos

    questes quanto traduo desse complexo universo literrio da autora para a linguagem do

    sistema cinematogrfico, ou seja, um conjunto organizado de elementos interrelacionados,

    ligados estrutura do texto flmico, e do prprio sistema literrio. O sistema cinematogrfico,

    como sabemos, tem como princpio bsico o enredo e a ao, exatamente o que no o mais

    importante para o desenvolvimento do discurso literrio de Woolf. Perguntamos, ento, se a

    traduo de uma narrativa to particular da escritora, de reconhecimento estilstico marcado,

    teria recebido o mesmo tratamento de quebra de paradigma e, consequentemente, semelhante

    impacto vanguardista no sistema cinematogrfico ou teria sido transformada numa narrativa

    mais aproximada da narrativa clssica? Como os tradutores (escritor, diretores e roteiristas)

    lidam com essa narrativa nos novos contextos?

    O objetivo da pesquisa , por meio da observao das reescrituras, investigar

    estratgias de traduo na reescritura da obra de Woolf na criao de imagens do universo

    literrio para novos pblicos. Partimos da hiptese de que as narrativas reescritoras so mais

    tradicionais, tm novo arranjo linear e no seguem uma tendncia vanguardista, devido,

    principalmente, ao estilo dos diretores. Isso se d, principalmente, pela apresentao de

    narrativas com nfase no enredo, redimensionando, assim, o universo literrio da autora para

    o espectador. O novo formato dado narrativa impressionista de Woolf reescreve o seu

    discurso literrio e consolida, por meio do cinema e da literatura, a sua imagem para outros

    sistemas.

    A indagao surgiu do estudo da traduo cinematogrfica de Mrs. Dalloway em

    minha pesquisa de mestrado, cuja anlise revelou que o novo tratamento dado ao enredo do

    filme teria resignificado o texto de Woolf por meio de uma proposta mais linear.

  • 13

    Um outro motivo que me impulsionou a investigar a questo da reescritura foi a

    partir de minha experincia em sala de aula de Literaturas de Lngua inglesa. Ao trabalhar

    com os alunos os textos literrios em ingls, comecei a perceber que eles procuravam outras

    formas de reescrituras desses textos como antologias, ensaios, resenhas crticas, e,

    principalmente, filmes, para suplementar a leitura desse texto. Vale lembrar que se trata de

    alunos de graduao e, na sua grande maioria, j professores da lngua, ou seja, so alunos

    capazes de lerem na lngua estrangeira.

    Diante desse fenmeno, comeamos a nos inquietar e passar a olhar com maior

    cuidado o funcionamento dessas reescrituras como fonte importante pela busca dos textos de

    partida ou da interpretao deles. Ao contrrio do que pensvamos at ento, a reescritura tem

    um papel importante no sistema literrio, pois tem o poder de refratar os textos e pode ser um

    forte aliado para o professor de literatura. Parti do seguinte pressuposto: se, para os alunos de

    formao em lngua estrangeira, capazes de lerem em ingls, as reescrituras so um meio

    importante de entrar em contato com o universo literrio, isso seria ainda mais aplicado ao

    leitor comum. Uma outra constatao, fruto da experincia em sala de aula, que para os

    textos recomendados para leitura, que so considerados como difceis, h uma grande

    tendncia dos alunos a consultarem tambm reescrituras. Nesse caso, enquadra-se a narrativa

    de Virginia Woolf que, por utilizar a tcnica do fluxo da conscincia, torna-se um texto

    complexo para o leitor no especializado. Esse um outro motivo, pelo qual optamos por

    trabalhar com Mrs. Dalloway e suas reescrituras nesta tese.

    O corpus da pesquisa constitudo de quatro narrativas: dois romances e dois

    filmes: o romance de partida Mrs. Dalloway (1925), escrito por Virginia Woolf; o filme Sra..

    Dalloway (1997), dirigido por Marleen Gorris; o romance As Horas (1998), escrito por

    Michael Cunningham; e o filme As Horas (2002), dirigido por Stephen Daldry. Para o

  • 14

    desenvolvimento da anlise desse corpus, partimos do romance Mrs. Dalloway at a

    reescritura mais recente pelo fato de tratarmos das imagens por ela criada.

    Primeiro, delinearemos o construto narrativo dos romances, com base em aspectos

    da construo narrativa: consideraes gerais sobre o enredo, a construo do tempo e do

    espao. A escolha desses aspectos se deve importncia que eles exercem na articulao do

    discurso literrio de Woolf. Em seguida, discutiremos, tambm, os mesmos aspectos de

    construo narrativa para os filmes, mas, alm disso, descreveremos e analisaremos algumas

    estratgias de traduo, utilizadas nessa construo. No filme Sra. Dalloway, descreveremos

    as seguintes estratgias: linearidade (organizao narrativa); flashback; voice-over; e

    montagem. No filme As Horas, as estratgias so as seguintes: delineao do enredo (criao

    de trs histrias paralelas); continuidade de elementos imagticos (montagem); silncio e

    expresses dos atores/atrizes; e mltiplas perspectivas (o olhar do outro). importante

    enfatizar que as estratgias descritas no so, necessariamente, as mesmas nos dois filmes.

    Isso se deve ao fato de que a estratgia analisada de acordo com a relevncia que ela tem na

    construo de cada uma das narrativas. Finalmente, refletiremos sobre o papel dessas

    estratgias e os efeitos por elas causados sobre o formato dos textos reescritores.

    Vale ressaltar que as reflexes e as questes levantadas na anlise do corpus so

    resultados da minha leitura, tanto da obra de Virginia Woolf quanto das reescrituras. No

    entanto, as leituras so reguladas e fundamentadas pelos princpios da literatura (teoria e

    crtica), pelas teorias de traduo, pelos estudos flmicos, pela crtica cinematogrfica e pelas

    prprias reescrituras dos textos nas diferentes mdias.

    O estudo fundamentado em algumas posies tericas que nos possibilitam a

    discusso de todas as questes postas e o desenvolvimento da anlise proposta. Os princpios

    da traduo intersemitica, discutidos por Plaza (2001), fornecem-nos elementos para o

    entendimento do processo de transmutao do signo de um sistema para outro. A viso de

  • 15

    traduo como reescritura, de Lefevere (1992), possibilita-nos a perceber a reescritura como

    uma traduo do romance de Woolf para a literatura e o cinema como uma reescritura do

    universo literrio da autora. A discusso sobre a relao cinema e literatura e sobre os

    prprios estudos flmicos so subsidiados por autores, tais como Eisenstein (1929), Bordwell

    (1985), Goliot & Lt (1994), Aumont et al (1995), Brito (1995), Coutinho (1996), Cruz

    (1997), Metz (1997) e outros. Para a conduo da anlise, os pressupostos dos estudos

    descritivos de traduo de Toury (1995) e da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990)

    so importantes e subjazem todas as discusses. O primeiro, pelo fato de considerar o texto

    traduzido sob o ponto de vista do sistema de chegada. O segundo, por conceber a traduo

    como dilogo constante com as estruturas sociais, o que caracteriza uma ampliao do

    conceito.

    A tese est subdividida em quatro captulos. Os dois primeiros formam o

    arcabouo terico. O primeiro apresenta questes sobre os estudos descritivos de traduo,

    sobre a idia de reescritura como um tipo de traduo e sobre a traduo intersemitica. O

    segundo descreve as especificidades da literatura e do cinema. Traa um perfil da potica de

    cada um dos campos, levando em considerao a estrutura, o discurso e o trnsito dialgico

    entre as narrativas literria e cinematogrfica e a articulao do tempo e do espao nas

    narrativas literria e flmica.

    Os terceiro e quarto captulos apresentam a anlise do corpus. A partir da

    delineao do construto narrativo das reescrituras, observamos essa delineao em relao ao

    texto de partida, investigando como os tradutores lidaram com a construo de imagens do

    universo de Woolf nos textos reescritores.

  • 16

    1 OS ESTUDOS DE TRADUO, A REESCRITURA E A TRANSMUTAO

    Este captulo prope discutir questes relacionadas traduo intersemitica, ou

    seja, a transmutao dos signos verbais por meio de sistemas no-verbais. Para a presente

    discusso, levaremos em conta definies, classificaes e, sobretudo, reflexes sobre a

    prtica tradutria entre sistemas diferentes de linguagens. Levaremos em conta as discusses

    acerca das novas tendncias nos estudos de traduo que abordam no somente o produto,

    mas tambm o processo.

    O captulo est subdividido em trs sees. A primeira seo trata dos

    pressupostos tericos dos estudos descritivos e as novas abordagens de anlises do texto

    traduzido. A segunda, discute a reescritura como uma instncia da traduo. A terceira seo

    aborda a questo da intersemiose entre as linguagens literria e cinematogrfica.

    1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DE TRADUO

    Com o advento dos estudos das novas teorias da traduo, como a Desconstruo,

    os Estudos Descritivos, o conceito de Reescritura como traduo, uma nova atitude se

    estabeleceu no processo tradutrio de forma bastante pertinente. Os mtodos de anlise

    terico-prescritivos, que davam traduo um carter de transcrio de uma lngua-fonte para

    uma lngua-alvo, tinham como base a idia da equivalncia entre os textos. As novas

    perpesctivas de anlises passaram, com o avano dessas novas teorias, a ser descritivas. No

    se considera, pelo menos luz delas, a traduo como resultado de equivalncias ou

    fidedignidade com um texto original, mas sim um estudo que leva, tambm, em

    considerao o processo, o contexto e o pblico receptor.

  • 17

    Os estudos tradicionais de traduo tinham como caracterstica principal a nfase

    na questo da literariedade e da equivalncia, as chamadas teorias lingsticas da traduo.

    Cristina Rodrigues (2000, p.25-26) apresenta trs vias produtivas de contato entre lingstica

    e traduo: uma via foi a de Nida, a outra, de Catford, e uma terceira seguida pela lingstica

    contrastiva.

    John Catford estabelece, em seu quadro de anlise, a busca por uma

    sistematizao lingstica da traduo, tendo como base a idia de equivalncia. Eugene Nida,

    por sua vez, usa a lingstica como um instrumental para anlise e soluo de questes de

    traduo. O autor tambm utiliza a idia de equivalncia, mas, diferente de Catford, trata da

    equivalncia dinmica, ou seja, sugere que o tradutor precisa manter equilbrio de

    redundncia, no sentido de manter proporo semelhante de informao nova e informao

    previsvel sem sobrecarregar o canal de comunicao. Nesse sentido, Nida est muito mais

    preocupado com o receptor e a reproduo de mensagens equivalentes do que com a

    combinao das partes do enunciado, uma vez que se baseia na teoria da comunicao. E a

    lingstica contrastiva caracteriza-se pelo uso da traduo para fornecer critrios bsicos para

    a comparao entre lnguas.

    Para Rosemary Arrojo (2000, p.12), Catford percebe a traduo como um veculo

    de substituio do texto da lngua de partida pelo seu equivalente na lngua de chegada. Mary

    Snell Hornby (1995, p.15), tambm discutindo a postura terica de Catford, afirma que a

    questo central na prtica de traduo, para ele, a procura dos equivalentes, dando teoria o

    poder de definir a natureza e a condio dessas equivalncias.

    Nessa perspectiva, a traduo passa a ser apenas um transporte de significado de

    uma lngua para outra, dando ao texto traduzido uma limitao na sua dimenso interpretativa

    por se restringir idia de transferir o mesmo termo para a lngua de chegada, conforme

    discute Arrojo:

  • 18

    Se pensarmos o processo de traduo como transporte de significados entre lngua A e lngua B, acreditamos ser o texto original um objeto estvel, transportvel, de contornos absolutamente claros, cujo contedo podemos classificar completa e objetivamente. Afinal, se as palavras de uma sentena so como carga contida em vages, perfeitamente possvel determinarmos e controlarmos todo o seu contedo e at garantirmos que seja transposto na ntegra para outro conjunto de vages. Ao mesmo tempo, se compararmos o tradutor ao encarregado do transporte dessa carga, se restringe a garantir que a carga chegue intacta ao seu destino. Assim, o tradutor traduz, isto , transporta a carga de significado, mas no deve interferir nela, no deve interpret-la (ARROJO, 2000, p.12).

    A discusso acima sintetiza bem a viso tradicional de se perceber o processo

    tradutrio, visto como um fenmeno muito mais lingstico e isolado, resultado de um

    processo esttico que no leva em considerao as questes do contexto no qual a traduo

    est ocorrendo. A viso de traduo, em questo, torna-se problemtica, pois desconsidera os

    fenmenos institucionais, culturais e polticos, que regem o processo tradutrio. Ademais,

    forja um apagamento do tradutor como se fosse possvel a sua total invisibilidade diante da

    tarefa, j que pressupe a chegada de uma carga intacta a seu destino final, como se o

    tradutor no fosse, antes de tudo, um leitor, e o texto a ser traduzido no fosse passvel de

    interpretaes.

    Walter Benjamin, em 1923, j se posicionava diante desse fato, discutindo os

    problemas da literariedade impostos pelas teorias tradicionais de traduo, apontando novas

    perspectivas na maneira de conduzir os estudos:

    Uma teoria que busca na traduo s a reproduo de sentido no mais parece ser de valia. verdade que seu emprego tradicional sempre toma esses conceitos como uma antinomia insolvel. Pois a que pode propriamente conduzir a fidelidade repetio do sentido? Fidelidade, na traduo, de cada palavra, no assegura que se reproduza o pleno sentido que ela tem no original. Pois este no se esgota em sua significao potica conforme o original, mas a adquire pela forma como o significado se une ao modo de significar a palavra em questo (BENJAMIN, 1992, p.xvii).

    Percebemos que, tanto em Arrojo quanto em Benjamin, existem severas crticas

    idia de traduo como um simples veculo de transporte de significados de uma lngua para

    outra. Tais crticas contribuem para o questionamento sobre os conceitos de equivalncia,

  • 19

    literariedade e fidelidade, to enfatizados nas anlises tradicionais. Implicitamente, instaura-se

    uma nova proposta, que contribui bastante para o avano nas investigaes sobre o fenmeno

    tradutrio.

    A partir do final da dcada de setenta, os estudos de traduo se expandiram e se

    transformaram em uma disciplina. Esses estudos dialogam com vrias reas do conhecimento

    que incluem Lingstica, Literatura, Histria, Antropologia, Psicologia e outras.

    Diferentemente das teorias lingsticas, as teorias de traduo nesse novo momento so, de

    certa forma, um veculo de difuso de idias em diferentes sistemas do conhecimento. Um

    exemplo importante para ilustrar a mudana de perspectiva puramente lingstica nos estudos

    de traduo a teoria skopos postulada, principalmente, por Hans Vermeer (1992, p.44-45).

    De acordo com os postulados da teoria, a traduo passa a ser vista sob uma perspectiva

    funcional e sociocultural. Ou seja, a traduo funcionalmente adaptada aos objetivos e aos

    contextos especficos. A teoria skopos contribui para colocar o texto de chegada em foco. A

    traduo funciona como um texto e, como tal, no mais determinada primeiramente pelo

    texto de partida, mas pelo seu prprio skopos (seu propsito), mudando o olhar sobre os

    estudos de traduo. Enquanto as anlises tradicionais se limitavam a avaliar um determinado

    texto traduzido, sob o ponto de vista da lngua de partida, observando, principalmente,

    aspectos relacionados fidelidade ou no ao texto traduzido, as novas propostas de anlise

    levam em conta a traduo numa dimenso muito maior, ou seja, focaliza-se na funo que

    ela exercer na comunidade receptora. Na perspectiva tradicional, a anlise se concentrava

    sobre o produto da traduo como nico objeto de investigao. Nessa nova perspectiva, a

    anlise deve tambm levar em considerao todo o processo tradutrio, e o prprio contexto

    passa a ser relevante para se entenderem as estratgias de traduo e a sua recepo no

    contexto de chegada.

  • 20

    Jos Lambert & Hendrik Van Gorp (1985, p.50-51) tratam dessa abordagem como

    sendo de natureza sistmica e reconhecem que a relao da traduo com o contexto

    bastante discutida entre os estudiosos. No entanto, acrescentam que preciso combinar e

    conectar sistematicamente todos os aspectos tanto nos nveis inter-sistmico quanto no

    intrasistmico. Isso que dizer que todos os aspectos do processo de traduo devem ser

    descritos e discutidos por meio de uma anlise que considere no somente o sistema que

    envolve o autor e o texto, mas tambm o leitor e o sistema receptor da traduo como um

    todo.

    O princpio dos estudos descritivos de Gideon Toury est associado a essa idia.

    O autor, ao postular sua teoria, esclarece:

    Se optamos por concentrar esforos nos textos traduzidos e/ou em seus constituintes, em suas relaes intertextuais, em seus modelos e normas de comportamento de traduo ou em estratgias recorrentes soluo de problemas particulares, o que constitui o objeto de uma disciplina propriamente dita de Estudos de Traduo so mais fatos (de observao ou de reconstruo) da vida real do que simplesmente entidades especulativas resultantes de hipteses preconcebidas e modelos tericos. , portanto, por sua prpria natureza, emprico e deve ser trabalhado como tal (TOURY, 1995, p.1).1

    Por meio do pensamento acima, Toury esclarece a sua postura em relao s

    novas formas de se lidar com os objetos nos estudos de traduo. O objetivo das investigaes

    no mais prescrever normas para o processo, nem procurar erros, mas a busca de uma

    descrio de comportamentos regulares dos tradutores para que entenda como as tradues

    so feitas. Isso seria o cerne das questes tericas, desenvolvidas por esses estudos.

    A traduo, na perspectiva de Toury, centra-se no plo receptor e tenta

    sistematizar um mtodo de anlise que consolida a interao do texto traduzido com o sistema

    1 Todas as tradues sem referncias, ao longo desse trabalho, so do autor.

    Whether one chooses to focus ones efforts on translated texts and/or their constituents, on intertextual relationships, on models and norms of translational behaviour or on strategies resorted to in and for the solution of particular problems, what constitutes the subject matter of a proper discipline of Translation Studies is (observable or reconstructable) facts of real life rather than merely speculative entities resulting from preconceived hypotheses and theoretical models. It is therefore empirical by its very nature and should be worked out accordingly.

  • 21

    receptor. O mtodo em questo uma elaborao da teoria dos polissistemas desenvolvida

    por Itamar Even-Zohar (1990) da escola de Telavive.

    De acordo com Else Vieira (1996, p.124), a teoria teve seus alicerces na

    orientao histrica dos formalistas de Leningrado, no Estruturalismo de Praga e na semitica

    russa. Sua formulao traz grandes contribuies para a contextualizao da traduo, j que

    trata da interao entre o meio e o ato de traduzir, considerando, nas anlises, todo o aparato

    organizacional social do sistema literrio a que se prope traduzir.

    A teoria dos polissistemas pressupe que as normas sociais e as convenes

    literrias na cultura de chegada ditam as pressuposies estticas dos tradutores e, como

    conseqncia, afetam suas decises no momento da traduo. Nesse contexto, o processo

    tradutrio passa a ser bem mais amplo. Como reforam Andr Lefevere (1992) e Toury

    (1995), a teoria da traduo parece transcender os aspectos lingsticos. Nessa nova viso, o

    processo da traduo tenta descrever no somente o processo de transferncia de um nico

    texto, mas o processo de produo de traduo que possa transformar o sistema literrio como

    um todo.

    Clem Robyns (1994, p.406-409), por meio da noo ampliada de traduo,

    corrobora essa idia de transformao do sistema. Ao discutir a traduo e a identidade

    discursiva, o autor prope que os discursos de chegada devem ser estudados e no somente as

    culturas e os textos isoladamente, pois esses elementos representam apenas tipos especficos

    de prticas discursivas que esto inseridas num conjunto de outras prticas dentro de um

    sistema cultural. Nesse sentido, a traduo poderia ser redefinida como a migrao e a

    transformao de elementos discursivos entre discursos diferentes (literrio, acadmico,

    poltico, cinematogrfico, etc) em que cada um desses discursos pode ser descrito como

    ocupante de uma posio no sistema maior e como fundador de seu prprio sistema.

  • 22

    Even-Zohar (1990, p.12) refere-se teoria dos polissistemas como uma correlao

    de sistemas literrios e no-literrios com a sociedade. O autor percebe o sistema literrio

    como um conjunto de fenmenos semiticos que so agregados dinmicos e, como um

    sistema no apenas sincrnico e diacrnico, ele tambm heterogneo. Assim, o termo

    polissistema enfatiza a idia de uma multiplicidade de relaes na heterogeneidade da cultura.

    Por considerar essa heterogeneidade cultural, a teoria dos polissistemas rejeita a idia de

    julgamento de valor e selees elitistas, e, por essa razo, no tem a preocupao apenas com

    obras canonizadas. Entretanto, reconhece a existncia de hierarquias culturais. Ao apoiar-se

    no pressuposto de movimento dinmico de estratos dentro de um sistema de Tynianov, Even-

    Zohar (1979, p.118) estabelece as relaes centro-periferia para tratar dos movimentos

    centrfugos e centrpetos entre diferentes estratos no sistema. Nesse sentido, Even-Zohar

    corrobora a idia de Tynianov no que diz respeito s tenses entre foras conservadoras ou

    inovadoras, polticas, tipos e modelos dentro da estrutura do sistema como um todo.

    Um outro ponto importante para a teoria de Even-Zohar sobre o estatuto

    respectivo dos estratos, com base em Klovskij. O autor discute a desigualdade entre os vrios

    estratos e a forma como estes se deslocam da posio cannica para a no-cannica e vice-

    versa (EVEN-ZOHAR, 1979,119). O postulado de Even-Zohar uma tentativa de explicar a

    funo de diferentes tipos de textos numa dada cultura, desde os cnones literrios at os mais

    marginais. O pensamento do autor refora a idia de que a traduo de um determinado texto

    est ligada a uma rede de relaes sistmicas, condicionadas a fatos sociais. Ou seja, o

    processo de traduo sofre limitaes do contexto em que est inserido.

    Para apresentar a nova teoria, o autor argumenta que a traduo deve ser

    considerada no somente como uma simples reproduo de textos de um sistema para outro.

    Ao contrrio, d ao texto traduzido a condio de elemento integrante do sistema literrio de

    um pas, introduzindo a idia de que toda traduo tambm faz parte da cultura de chegada.

  • 23

    Ao reconhecer todos os aspectos envolvidos no processo como relevantes para a traduo,

    Even-Zohar infere que:

    [1] O problema da traduzibilidade deve ser reformulado. No to importante descobrir que sempre pouco provvel que um enunciado traduzido seja idntico ao seu original. Uma questo mais satisfatria parece, ao invs, ser sob quais circunstncias e de que forma particular, um enunciado/texto alvo b se relaciona (ou relacionvel) a um enunciado/texto-fonte a.

    [2] Visto que os procedimentos de traduo produzem certos objetos num sistema-alvo e que so hipoteticamente envolvidos nos processos de transferncia (e procedimentos) em geral, no h razo para confinar as relaes de traduo somente aos textos propriamente ditos (...) (EVEN-ZOHAR, 1990, p.75).2

    2 1) The problem of translability must be reformulated. It is of no great value to discover that it is always of a

    lower probability that a translated utterance be identical with its original. A more adequate question seems rather to be under what circumstances, and in what particular way, a target utterance/text b relates (or is relatable) to a source utterance/text a. 2) Since translational procedures produce certain products in a Target system, and since these are hypothesized to be involved with transfer processes (and procedures) in general, there is no reason to confine translational relations only to actualized texts (...).

    Percebemos, por meio desse posicionamento, o quanto Even-Zohar contribuiu

    para os estudos de traduo, j que mudou uma perspectiva de anlise que ficava no mbito da

    comparao de textos. Ao reconhecer as limitaes que esse tipo de anlise dava aos textos

    traduzidos, ampliou os estudos para uma compreenso mais histrica, social e cultural do

    funcionamento dos textos originais e dos textos traduzidos. Os princpios da teoria dos

    polissistemas formalizaram os estudos descritivos de traduo e esto associados ao conceito

    de reescritura de Lefevere (1992), o que ser discutido na prxima seo, j que esse conceito

    configura-se como resultado de um desenvolvimento da teoria. Os pressupostos tericos, em

    questo, so importantes para reforar a nova dimenso contextual do conceito de traduo

    aqui proposto, que considera as diferentes leituras de uma obra literria para diferentes meios

    de linguagem como prtica tradutria.

  • 24

    1.2 A REESCRITURA QUE UM TIPO DE TRADUO: CONSIDERAES SOBRE A TEORIA DAS REFRAES

    Um conceito importante para a ampliao das novas abordagens de anlise do

    texto traduzido o de reescritura, apresentado por Lefevere (1992), como uma forma de

    traduo. Segundo esse conceito, a traduo a reescritura de um texto de partida e as

    reescrituras, segundo o autor, afetam profundamente a interpenetrao dos sistemas literrios,

    no somente pelo fato de projetar a imagem de um escritor ou uma obra em outra literatura ou

    por fracassar em faz-lo, mas tambm por introduzir novos instrumentos no corpo de uma

    potica, delineando mudanas. Como exemplo dessas mudanas, Lefevere (1992) aponta o

    caso da ode que, segundo o autor, tornou-se um acessrio do sistema literrio francs na

    poca da Pliade, por meio de tradues do latim. Uma outra situao parecida ocorreu um

    pouco antes na Itlia em que a ode, tambm inspirada nas tradues do latim, tinha

    imediatamente assumido o lugar ocupado pela canzone na potica do final da Idade Mdia

    (LEFEVERE, 1992, p.38-39).

    Com esse posicionamento, Lefevere compactua com os pressupostos tericos que

    do prioridade ao plo receptor do sistema de chegada. Assim como Toury e Even-Zohar,

    Lefevere concebe a traduo como um sistema de interao com outros sistemas semiticos e

    como uma fora de delineao de sua literatura. Segundo Vieira, alm de compartilhar com

    essa idia, Lefevere acrescenta novas direes, introduzindo novas dimenses, como a de

    poder. A autora complementa:

    Ele enfatiza o papel dos agentes de continuidade cultural, do contexto receptor na transformao de textos e criao de imagens de autores e culturas estrangeiras, bem como o da traduo na criao de cnones literrios. Ou seja, as tradues, produzidas dentro dos limites ideolgicos e poetolgicos da cultura receptora, tm tambm um efeito retroverso ao criarem imagens da cultura e cnones transculturais (VIEIRA, 1996, p.138).

  • 25

    Nesse sentido, a traduo assume um dilogo permanente com as estruturas

    sociais e adquire uma grande autonomia e poder de transformao nas relaes de formao

    do cnone de uma determinada obra. Ao ser posta dentro dos princpios da potica de um

    certo sistema de chegada, a traduo estabelece dilogos entre fronteiras culturais e se difunde

    por meio de diferentes linguagens e cdigos.

    Lefevere (1982, p.3), ao discutir a teoria literria e a literatura traduzida, apresenta

    algumas fases de abordagem na anlise da traduo literria. At o incio do sculo vinte, os

    estudiosos estabeleciam em suas anlises um tipo de esttica estilstica comparativa. A idia

    central era observar quo belas ou at sublimes certas expresses ou grupos de frases eram no

    texto de partida e quanto dessa beleza perdia-se na traduo. Essa postura, segundo o autor,

    favorecia a supervalorizao de uma lngua em detrimento da outra, estabelecendo uma forma

    de imperialismo lingstico.

    No final do sculo dezenove, os estudiosos acreditavam que a anlise da traduo

    literria seria capaz de funcionar como base para afirmaes sobre problemas da filosofia

    lingstica ou at da psicologia da lngua. Segundo Lefevere (1982:4), esse tipo de anlise

    liderava afirmaes sobre a psicologia de diferentes autores, especialmente naqueles casos em

    que um autor original traduzia outro. Como resultado desse tipo de abordagem, o autor

    conclui que: isto levou produo de trabalhos do tipo X como tradutor de Y, nos quais

    alguma afirmao era feita sobre X ou Y, ou sobre ambos, mas raramente sobre a traduo

    (1982, p.4).3

    3This led to the production of a number of monographs of the X as translator for Y type, in which some

    statement was often made about X or Y, or both, but rarely about translation (LEFEVERE, 1982, p.4).

    O desenvolvimento da lingstica moderna mudou radicalmente o estudo de textos

    traduzidos. Os lingistas interessados em traduo quase nunca analisavam tradues da

    literatura, porque eles as consideravam complexas demais. Nessa perspectiva de anlise, que

    lida com elementos puramente lingsticos, esse um ponto de vista totalmente justificvel.

  • 26

    As abordagens em questo tentam construir modelos, ou, pelo menos, propor descries do

    processo de traduo que fossem relevantes para o ensino da traduo. Um modelo construdo

    com base na literatura traduzida teria que levar em conta todos os tipos de complexidades, tais

    como conotao, aluses ou caractersticas especficas de certos gneros e formas, elementos

    que no estariam presentes, ou pelo menos nesses termos, em textos menos complexos, ou

    seja, os no-literrios. Isso refora o uso da noo de equivalncia em que as anlises tinham

    como base elementos lingsticos ideais com a utilizao de exemplos normalmente fictcios.

    Com o surgimento da traduo automtica de textos, os esforos foram

    concentrados no estudo do processo de traduo, simplesmente porque um modelo

    operacional desse processo era absolutamente necessrio para o funcionamento da mquina.

    Ao se excluir a literatura traduzida do estudo do processo de traduo, os lingistas deram a

    impresso de que h mais ou menos dois processos diferentes de traduo: um vlido para a

    traduo da literatura e outro para a traduo de qualquer texto no literrio.

    A distino entre possveis diferentes processos de traduo levanta uma outra

    discusso que a competncia do tradutor nessas duas vertentes. Lefevere (1982, p.5) aponta

    que todas as tradues literrias tm sido representadas como arte. Assim, pode-se at

    afirmar que certas tradues literrias feitas sob essa competncia tm sido aceitas como

    literatura da cultura alvo. Esse argumento parece plausvel se observarmos o nmero de

    tradues de escritores estrangeiros em nosso pas que nunca sero lidos, ou pelo menos lidos

    por poucos, na lngua de partida. E, no entanto, so bastante lidos e at discutidos por meio da

    traduo, e poucos ou quase nenhum desses leitores se preocupam com o fato de tratar-se de

    uma traduo.

    Porm, a tentativa de isolar a especificidade da traduo literria em relao ao

    processo de traduo como um todo vem, na viso de Lefevere (1978, p.5), de um conceito de

    literatura ainda tacitamente aceito por muitos lingistas e tericos da literatura, que a idia

  • 27

    de linguagem literria em oposio linguagem comum ou coloquial. Essa idia

    usada como um critrio para traar uma linha divisria entre os textos literrios e no-

    literrios, argumento insustentvel na literatura contempornea. Alguns exemplos que

    reforam a quebra da oposio o caso da poesia moderna que usou uma linguagem no

    muito distante da linguagem coloquial; e os romances modernos, especialmente os realistas,

    que usaram linguagem similar.

    Assim, no escopo da traduo, no se pode traar uma distino radical entre

    textos literrios e no-literrios. Lefevere (1982, p.5) sugere, em vez disso, uma distino

    gradual. Essa distino de natureza gradual tem implicaes para a competncia especfica

    dos tradutores literrios. O autor sustenta:

    Ser obviamente de um tipo diferente da esperada dos tradutores que lidam com a bioqumica, voltando ao exemplo anterior. Mas isto no necessariamente implica que a competncia esperada do tradutor de literatura deva ser algo concebido como de carter superior. O tradutor de textos histricos, por exemplo, tambm tem a sua competncia que diferente tanto da do tradutor literrio quanto da do tradutor de textos de bioqumica. Porm este no um argumento plausvel para se comear a estabelecer distines entre traduo literria, bioqumica, histrica, nuclear, diettica. A subdiviso do processo de traduo dessa forma somente leva total atomizao: todo tipo de traduo teria que ter o seu prprio processo especfico. 4

    Com tal argumento, a discusso de Lefevere, em relao ao fazer tradutrio,

    apresenta uma inteno de contextualizar o processo e questiona um discurso de superioridade

    dos tradutores literrios. A discusso do impasse sobre a subdiviso ou no do processo de

    traduo e sobre a competncia do tradutor torna-se mais produtiva quando o autor pressupe

    uma transcendncia aos aspectos lingsticos e insere os fatores extra-lingsticos, como

    pontos importantes para a anlise de um texto traduzido, seja literrio ou no-literrio.

    4 It will obviously be of a different kind than that expected of translators of texts dealing with biochemistry, to go

    back to a previous example. But this does not necessarily imply that the competence expected of the translator of literature should somehow be thought of as being of a higher order. The translator of historical texts, e. g., also has his or her competence, which is different from both that of the translator of literature and the translator of texts on biochemistry. Yet this is no valid reason to start establishing distinctions between literary, biochemical, historical, nuclear, dietetic translating. Subdividing the translation process in this way only leads to total atomization: every kind of translation would have to have its own specific process.

  • 28

    Assim, o ponto de vista de Lefevere converge para os princpios da teoria dos

    polissistemas de Even-Zohar (1990) e para os estudos descritivos de traduo, apresentados

    por Toury (1995). Ao propor a distino gradual dos textos literrios e noliterrios, em vez

    da radicalizao na distino, o autor compactua com a idia de que a traduo e o seu

    processo no podem mais estar ligados somente a questes lingsticas. Portanto, no podem

    ser mais dissociados dos contextos e da cultura.

    A especificidade da competncia do tradutor literrio no se apresenta mais

    somente no nvel do processo tradutrio, mas tambm na forma como o produto, ou seja, a

    traduo, funciona na lngua ou na cultura-alvo. Portanto, para Lefevere (1992, p.6), o estudo

    da literatura traduzida no deve contribuir somente para os estudos de traduo, mas tambm

    para o estudo da literatura como um todo.

    Apesar de Lefevere adotar princpios da teoria dos polissistemas, Vieira (1996,

    p.143) vislumbra um novo direcionamento dado pelo autor a essa teoria. Enquanto Even-

    Zohar dinamiza a sua teoria pela interao de vrios sub-sistemas literrios, estabelecendo a

    posio de domnio que cada sub-sistema busca nos eixos sincrnicos e diacrnicos, Lefevere

    dinamiza a sua teoria pelo conceito de crescimento, resultado da interao de fatores

    intrnsecos e extrnsecos. Segundo a autora:

    Ao invs de sub-sistemas literrios conflitantes, percebemos em Lefevere que a metaliteratura ou as refraes exercem um papel ancilar. que elas propiciam o crescimento e a sobrevivncia dos textos ou determinam seu ostracismo, e o resultado desse papel ancilar que as refraes empurram uma literatura numa certa direo (VIEIRA, 1996, p.143).

    Para a sustentao dessa nova proposta, Lefevere (1982:6-13) traa uma separao

    fundamental entre dois conceitos de literatura e, conseqentemente, duas vertentes de anlise

    nos estudos literrios: o conceito de corpus e o conceito de sistema. A vertente que lida com o

    conceito de corpus tem caracterstica prescritiva e restringe a posio que a traduo pode

    ocupar no estudo da literatura. Lida com o conceito de traduo boa ou ruim, pois tem

  • 29

    como foco principal o texto literrio como produto. Segundo o autor, essa concepo tem

    como base dois princpios essencialmente romnticos: a noo de genialidade e a noo de

    sacralizao do texto literrio (noes que dividem a traduo literria das outras). Ambos os

    conceitos esto ligados aos mesmos princpios dos texto religiosos, ou seja, a genialidade

    representa a manifestao de algo divino no autor do texto. E se um texto literrio produto

    da genialidade, ele pode ser considerado boa literatura (cannica) e, conseqentemente,

    pode ser usado como padro para avaliao ou produo. Qualquer tentativa de deteriorao

    desse texto torna-se quase um sacrilgio. , portanto, um texto nico e a sua traduo

    representa uma ameaa para o carter nico do original e, portanto, para o conceito exato de

    literatura com um corpus. Por isso, o texto no pode ser traduzido.

    Podemos perceber que, nessa vertente, h um corpus cannico sagrado como a

    noo central da teorizao literria. Para apresentar a sua outra vertente, o autor usa

    simplesmente a idia de dessacralizao dos textos literrios e acrescenta o conceito de

    sistema literrio (LEFEVERE, 1982, p.13).

    Lefevere, de forma alguma, nega a importncia que alguns textos literrios

    assumem em determinados sistemas literrios e na sociedade na qual a literatura est inserida.

    O que o autor nega o fato de que esses textos existam, para todos os efeitos, somente na sua

    forma nica, j que os textos literrios so circundados pelo que ele chama de textos

    refratores. Os textos refratores so aqueles processados para determinadas audincias, ou

    adaptados para uma determinada potica ou para uma determinada ideologia. Como exemplo

    desse tipo de texto, Lefevere apresenta as dissertaes produzidas na Alemanha Oriental entre

    1933 e o presente. Os mesmos textos so facilmente adaptados (ele at fala que talvez

    reduzidos fosse a melhor palavra para se definir a questo) para os devidos contextos. Em

    ambos os casos, as ideologias desses contextos so radicalmente opostas. O processo de

    refrao, segundo o autor, para que ambos sobrevivam.

  • 30

    Um outro exemplo que poderamos acrescentar para ilustrar a questo da refrao

    de um texto por meio da ideologia o caso da reescritura de textos para o pblico infantil. O

    stio do Pica Pau Amarelo, com base na obra de Monteiro Lobato, por exemplo, est sendo

    reescrito para TV atualmente com leituras diferentes daquelas da dcada de oitenta. Essas

    novas releituras levam em conta o contexto sociocultural atual das crianas brasileiras, ao

    inserir elementos tais como os novos recursos tecnolgicos (elementos visuais e sonoros) dos

    meios de comunicao e a prpria contextualizao da linguagem, que levam em conta a

    forma atual de interao entre as crianas.

    A releitura de Monteiro Lobato na TV entra em consonncia com um

    posicionamento poltico do autor nas dcadas de 30 e 40, por ocasio da tentativa de ampliar o

    mercado editorial brasileiro para um pblico maior. Segundo John Milton (2002, p.27),

    Lobato buscou popularizar o livro (incluindo as tradues), fazendo com que fosse vendido

    como mercadoria em lojas e bancas de jornais, produzindo capas atraentes, reduzindo, assim,

    muito da aura que o circundava, pois, para ele, a leitura deveria tornar-se uma atividade

    recreativa. A traduo passa, ento, a desempenhar um papel fundamental no sistema literrio

    brasileiro, como refora Milton:

    O novo consumidor de classe mdia, ou de classe mdia baixa, muito provavelmente no conhecia lnguas estrangeiras, no havia herdado biblioteca, no usufrua capital cultural, mas estaria preparado para ampliar o prprio conhecimento (MILTON, 2002, p.27).

    Na concepo de sistema de Lefevere, os textos refratores, ou metatextos, so os

    principais responsveis pelo estatuto de canonizao de um corpus, pois a prpria potica de

    uma literatura j uma refrao, medida que no momento da sua primeira formulao, ela

    reflete implcita ou explicitamente a prtica dominante desse perodo. A partir das

    reescrituras, alguns textos literrios saem da periferia do sistema para o centro.

    Segundo Vieira (1996, p. 143), em meados da dcada de 80 que Lefevere

    gradualmente substitui o termo refrao por reescritura e expande o construto terico de

  • 31

    sistema. O uso do termo sistema, segundo Lefevere (1992, p.12), no tem relao com o

    termo Sistema (com letra maiscula) nem tampouco com a conotao Kafquiana, no sentido

    de referir-se aos aspectos mais sinistros dos poderes. O sistema, para o autor, um termo

    neutro, descritivo e usado para designar um conjunto de elementos interrelacionados que por

    acaso dividem certas caractersticas que os diferem de outros elementos que no pertencem ao

    sistema.5

    5 A neutral, descriptive term, used to designate a set of interrelated elements that happen to share certain

    characteristics that set apart from other elements perceived as not belonging to the system.

    Ao estabelecer a operao do sistema literrio, Lefevere (1992, p.14) aponta um

    mecanismo de controle partilhado por dois elementos: um interno e outro externo ao sistema.

    O elemento interno representado pelos tradutores que reimprimem determinadas obras que

    contrariam a viso predominante do que deveria ser literatura (a potica), ou do que deveria

    ser a sociedade (ideologia). Esses profissionais, na maioria das vezes, reescrevem obras

    literrias at que elas se tornem aceitas na potica e na ideologia de uma determinada poca

    ou lugar. No caso dos filmes, temos os roteiristas e diretores.

    O elemento externo representado pelo poder, ou seja, pessoas, editores e

    instituies que auxiliam ou impedem a escrita, leitura ou reescritura de uma literatura e

    denominado patronagem. Esse elemento est mais interessado na ideologia da literatura do

    que na potica e consiste basicamente de trs componentes: o ideolgico, o econmico e o

    status. O componente ideolgico diz respeito s limitaes na escolha e no desenvolvimento

    do objeto. O componente econmico diz respeito questo da escrita e reescritura como meio

    de sobrevivncia. E o status diz respeito aceitabilidade por determinados grupos e seus

    estilos.

    Os dois elementos representam, na verdade, restries e exercem influncias sobre

    a escrita e a reescritura da literatura. Porm, alm das restries, outras tambm se configuram

    no cenrio desse processo, tais como a idia do universo do discurso, ou seja, um universo

  • 32

    formado pelos conceitos, pessoas, lugares e outros aspectos que afloram nos textos; a prpria

    lngua na qual o texto reescrito; e no caso da traduo, o prprio texto de partida. Vieira

    (1996, p.144) apresenta a discusso de Lefevere:

    Lefevere ressalta tambm que pelo menos uma dessas restries regula as atividades de reescrita literria. A reescrita, por sua vez, influencia os destinos da obra. A historiografia, por exemplo, faz, com a obra, como um todo, o que a crtica faz com textos individuais ou a encaixa na corrente ideolgica ou poetolgica ou a reduz a escritas menores. Na mesma linha de raciocnio, a antologizao tende a refletir os julgamentos da histria literria e a moldar o gosto do pblico, principalmente o dos estudantes que so apresentados aos autores atravs de antologias.

    Observamos, por meio dessa posio, a interseo constante entre os textos e as

    restries a que so submetidas as suas reescrituras dentro de um sistema. Observamos

    tambm que as reescrituras detm um poder importante na formao do cnone e no

    estabelecimento do texto enquanto elemento pertencente ao sistema alvo. Nesse contexto, a

    traduo tambm uma forma de reescritura, j que est sujeita a todas as modalidades de

    restries, mas assume uma dimenso importante como sinal de abertura de um sistema alvo,

    por meio da manipulao de conceitos e palavras que representam o poder numa determinada

    cultura. Dessa forma, a traduo, na linha terica de Lefevere, concebida, assim como os

    estudos descritivos, como fenmeno de cultura pelas observaes conferidas ao produto, j

    que a anlise s pode ser feita a partir de um elemento concreto, o texto. Contudo, tambm

    concebida como processo, pois esse elemento no a nica fonte a ser considerada.

    Portanto, valemo-nos dessa discusso terica de Lefevere para observar e analisar

    o nosso corpus. Muitas so as razes pela quais optamos por tais princpios, mas o prprio

    fato de estarmos trabalhando com vrias leituras de um romance j parece ser um argumento

    suficiente para justificar a escolha. A primeira questo que levantamos o fato de estarmos

    lidando tambm, em nossa anlise, com a traduo de objetos de linguagens diferentes, sendo

    descartada qualquer possibilidade de emprego de mtodos lingsticos de anlise de traduo.

    Esse posicionamento, provavelmente, reduziria a anlise ao estudo de equivalncias entre

  • 33

    aspectos da obra original, os romances e os filmes, considerando o grau de fidelidade que o

    tradutor teria conferido traduo. A outra questo que, ao lidarmos com a traduo nesses

    termos, estamos contribuindo para uma ampliao do prprio conceito de traduo que nos

    facilita inserir as anlises de adaptao de obra literria para o cinema nos estudos de traduo

    e tratar das reescrituras de uma obra literria como diferentes formas de traduo.

    Ao adotarmos essa postura terica, estamos tomando como base princpios da

    sistematizao terico-metodolgica dos estudos da adaptao como traduo, de Patrick

    Cattrysse (1992). O autor recorre a postulados da teoria dos polissistemas de Even-Zohar

    (1990) e aos estudos descritivos de Toury (1995) para defender e consolidar o argumento de

    que o processo de transmutao entre signos do texto literrio para o texto cinematogrfico

    uma tarefa essencialmente de traduo. Portanto, pelo reconhecimento de tal estatuto, o autor

    reivindica a insero dos estudos da adaptao dentro dos estudos de traduo, contribuindo,

    assim, para a ampliao do conceito de traduo. Trata-se de uma posio relativamente

    recente e, ainda, controversa em alguns setores da academia. Isso se deve, entre outros fatores,

    s questes postas acima em que o texto literrio assume uma posio de intocvel e a sua

    adaptao para outro meio de linguagem implicaria, necessariamente, na sua desfigurao

    enquanto objeto artstico.

    Catrysse (1995, p.17) constata que se trata de um erro considerar que, ao contrrio

    da adaptao (flmica ou qualquer outra), a traduo seria mais fiel ao texto de partida.

    Assim, a adaptao, como a traduo, tambm segue os critrios de aproximao ou

    distanciamento de um texto-fonte, por isso, no pode ser dissociada da prtica tradutria. A

    idia central que norteia o argumento de Catrysse que a traduo lingstica ou literria e a

    adaptao flmica se distinguem sob o ponto de vista do processo de produo, pois o

    processo de criao d-se em contextos sociais diferentes, como tambm da recepo, pois o

    contexto social de recepo de um texto literrio diferente da leitura e recepo de um

  • 34

    filme, por exemplo. Dessa forma, Catrysse revisou o conceito de traduo e ampliou o foco de

    interesse da disciplina.

    Assim como Catrysse, Lefevere tambm teve a sua contribuio na ampliao do

    foco nos estudos de traduo. Segundo Paulo Oliveira (1999, p.57), no incio da dcada de

    noventa, as propostas de Lefevere relativas s novas noes e categorias para os estudos de

    traduo modificaram a abordagem da disciplina. A traduo passa, ento, a ser considerada,

    nessa viso, a reescritura de um texto de partida.

    Ao observarmos o redimensionamento do romance Mrs. Dalloway, ao ser

    traduzido para a literatura e para o cinema, por exemplo, podemos levantar alguns pontos

    sobre a idia de reescritura. Explica-se: a obra assumiu uma nova proposta narrativa quando

    traduzida para outro sistema, ou para outra linguagem. Ou seja, questes temticas ou at

    mesmo estruturais do romance de partida foram enfatizadas, mas os enredos apresentam

    traos particulares, ligados ao contexto potico e poltico em que as produes esto inseridas.

    Por conseguinte, a reescritura desse texto , de certa forma, manipulada sob o ponto de vista

    das interpretaes feitas pelos agentes, envolvidos na traduo (escritor, roteiristas e diretores

    etc), j que a realizao de um filme uma tarefa essencialmente coletiva.

    Ainda sob essa perspectiva, parece relevante ressaltar tambm o aspecto

    manipulador do processo de reescritura. Para justificar esse posicionamento, Lefevere

    apresenta o poder das reescrituras para introduzir novos conceitos, gneros, mecanismos

    numa determinada sociedade. Para esclarecer como se d o processo de manipulao,

    Lefevere (1992, p.1-7) estabelece uma diferena importante entre os leitores comuns e os

    especialistas. Segundo o autor, esses especialistas tm uma importncia muito grande na

    criao da imagem do texto para o pblico em geral porque so os responsveis pela recepo

    e sobrevivncia desses textos. Para ilustrar essa idia, temos:

    Quando os leitores comuns de literatura (e deveria ficar claro que o termo no implica julgamento de qualquer natureza. Simplesmente se refere

  • 35

    maioria dos leitores nas sociedades contemporneas) dizem que eles leram um livro, o que eles querem dizer que tm uma certa imagem deste livro em suas mentes. Este construto sempre livremente baseado em algumas passagens selecionadas do texto propriamente dito do livro em questo (as passagens includas em antologias usadas na educao secundria ou universitria, por exemplo), suplementadas por outros textos que reescrevem o livro de outras formas, tais como resumos em histrias literrias ou em obras de referncia, resenhas em jornais, revistas, ou peridicos, alguns artigos de opinio, apresentaes no palco ou na tela, e por ltimo, mas no menos importante, as tradues.6

    6 When non-professional readers of literature (and it should be clear by now that the term does not imply any

    value judgment whatsoever. It merely refers to the majority of readers in contemporary societies) say they have read a book, what they mean is that they have a certain image of that book in their heads. That construct is often loosely based on some selected passages of the actual text of the book in question (the passages included in anthologies used in secondary or university education, for instance), supplemented by other texts that rewrite the actual text in one way or another, such as plot summaries in literary histories or reference works, reviews in newspapers, magazines, or journals, some critical articles, performances on stage or screen, and last but not least, translations.

    Percebemos, por meio do discurso do autor, que h uma grande variedade de

    formas de reescritura de um texto e que essas reescrituras exercem um poder de apresentar,

    consagrar e difundir novos parmetros. A traduo assume tambm a condio de criadora de

    imagem de um texto, o que amplia radicalmente as distines tradicionais no escopo da

    disciplina. O prprio Lefevere afirma:

    As tradues so, portanto, apenas um tipo de texto que cria a imagem de um outro texto. Outros tipos seriam a crtica, a historiografia, o comentrio e a antologia, que sero desconsideradas neste espao, mas no deveriam ser desconsiderados nos estudos da traduo (apud OLIVEIRA, 1999, p.58).

    As questes de reescritura do texto esto muito ligadas a uma potica do sistema

    literrio na qual se estabelecem ideologias e se chega ao prestgio literrio de uma

    determinada obra. As reescrituras, segundo Lefevere (1992), tm um papel de grande

    relevncia na difuso de uma obra literria num dado sistema. O autor cita como exemplo a

    poesia de John Donne que parecia desconhecida e no era lida desde algumas dcadas aps a

    sua morte at a sua redescoberta por T. S. Eliot. Ele cita tambm outros escritores modernos e

    os clssicos feministas publicados nas dcadas de vinte, trinta e quarenta, reeditados nas

    dcadas de setenta e oitenta.

  • 36

    Quanto ao papel das reescrituras, ainda poderamos apresentar os exemplos das

    adaptaes literrias que difundem o universo literrio de alguns autores e fazem renascer os

    seus livros. Aqui no Brasil, poderamos citar, entre muitos outros, a minissrie Os Maias

    (2001), transmutada do romance de Ea de Queiroz, e os filmes Memrias Pstumas (2001) e

    Dom (2003), transmutados do romance de Machado de Assis. Em todos os casos, os textos

    reescritos nas telas contriburam para que os livros fossem reeditados, facilitaram a volta aos

    textos de partida, motivando a leitura deles.

    Um outro exemplo de reescritura a minissrie Presena de Anita, escrita por

    Manoel Carlos, que foi ao ar, na Rede Globo, em 2001. A trama foi inspirada no livro

    homnimo de Mrio Donato (1948). O romance brasileiro anterior ao clssico Lolita do

    escritor russo Wladimir Nabokov, publicado em 1955. Ambos tratam do mesmo assunto, ou

    seja, o caso de amor entre uma adolescente e um quarento, mas que tomaram direes

    diferentes. O romance de Donato causou muita polmica, provocou tanto a leitura por parte

    dos jovens quanto a crtica severa por parte da Igreja. Essa reao dupla de grande aceitao

    e, ao mesmo tempo, rejeio se deu pelo fato de o livro abordar um tema considerado tabu

    para a sociedade da poca. Segundo Jadyr Pavo (2002, p.116), o romance fez sucesso por

    uma dcada. Logo em seguida, juntamente com o escritor, foi esquecido. A traduo para a

    TV em 2001, pela Rede Globo, retoma os mesmo temas do romance, mas diferente dele, no

    sofre mais rejeio por parte do pblico. Isso porque as questes tratadas so, naquele

    momento de sua exibio, temas recorrentes, discutidos abertamente em outros programas,

    como as novelas, por exemplo, e no sofrem mais censura institucional, principalmente, por

    parte da igreja. Ao contrrio, a srie foi um grande sucesso.

    O romance de Nabokov, por sua vez, foi difundido aqui no Brasil por meio da

    traduo, tanto na literatura quanto no cinema. As tradues cinematogrficas de Stanley

    Kubrick (1962) e Adrian Lyne (1998) ampliaram o pblico receptor da obra literria e

  • 37

    contriburam para que a personagem Lolita se tornasse um smbolo de jovem sedutora. Esse

    fato pode ser interpretado do ponto de vista da interferncia da produo e distribuio

    hollywoodiana e do alcance da lngua inglesa nos centros produtores de cultura, conforme

    observou Dcio Cruz (2004).

    importante ressaltar que embora o romance de Donato j tivesse sido

    transmutado para a TV em A Outra Face de Anita (1964) pela TV Excelsior, parece que foi a

    obra de Nabokov que ficou como referncia. Uma evidncia clara disso a prpria

    reportagem da Revista poca, publicada dias antes da estria da minissrie em 2001,

    intitulada A Lolita Brasileira. Vejamos que o romance brasileiro anterior ao romance

    norte-americano, mas no parece ter alcanado a dimenso do clssico estrangeiro. Alguns

    elementos contextuais podem nos dar suporte para uma explicao do fenmeno. O romance

    brasileiro foi alvo de crtica e at da sugesto de recolhimento dos exemplares pela associao

    das Senhoras Crists de So Paulo (VELLOSO, 2002, p.116), representando, para a poca,

    um produto cultural que subvertia os princpios morais familiares. O romance estrangeiro,

    alm de ter sido lido por meio da traduo, ainda foi difundido pelo cinema e pela prpria

    crtica literria, j que Nabokov tem o prestgio de bom escritor. E isso explica, de certa

    forma, o impacto das reescrituras no estabelecimento da obra no sistema literrio brasileiro.

    A minissrie Presena de Anita alcanou uma conquista importante: a motivao

    da reedio do livro e, conseqentemente, a volta de sua leitura. Por meio dessa minissrie de

    TV, o universo literrio do escritor Mrio Donato foi reescrito num novo contexto para uma

    nova audincia, e boa parte dela, provavelmente, seria influenciada a consultar o texto de

    partida.

    Tratando dessa questo, Cruz (1997, p.3) discute a presena de um grande nmero

    de reescrituras das obras de Shakespeare e Jane Austen, na dcada de noventa, nos Estados

    Unidos. O autor apresenta alguns dados que corroboram o nosso argumento quanto ao papel

  • 38

    que as reescrituras assumem nos sistemas de chegada. O filme Sense and Sensibility,

    traduzido de um romance de Jane Austen, publicado em 1811, segundo o autor, ficou em

    cartaz por vrias semanas, nos Estados Unidos, no ano de 1996, com cinemas lotados. O

    romance uma comdia refinada que trata de forma satrica a importncia do dinheiro e do

    casamento para a classe mdia inglesa daquela poca. O filme Jeffrey, por outro lado, que

    trata de assuntos bem mais atuais como as relaes humanas naquela dcada e o problema da

    Aids, ficou poucos dias em cartaz e atraiu um pequeno pblico. Diante desse fato, Cruz faz as

    seguintes indagaes:

    Qual ser o fator que gera esse interesse? A fuga das complexidades da realidade atual, onde as relaes humanas se tornam cada vez mais complicadas? Ou a busca de uma histria divertida, bem escrita e bem contada? Talvez as duas alternativas (CRUZ, 1997, p.3).

    O prprio autor chega concluso de que qualquer que seja a explicao para esse

    fenmeno, o sucesso dessas reescrituras, tanto na tela como nos palcos provoca a leitura dos

    textos originais e ajuda a manter a literatura viva. Um outro exemplo apresentado por Cruz

    o caso do lanamento do filme Quatro casamentos e um Funeral, que colocou uma edio

    de poemas de W. H. Auden na lista de best-sellers. Isso se deu pelo fato de, no filme, o nome

    do autor ser mencionado e um de seus poemas Funeral Blues declamado. Assim, evidencia-

    se tambm o impacto das adaptaes sobre a literatura.

    Com essa discusso sobre a definio de reescritura, que engloba diversos gneros

    textuais e mecanismos de construo da imagem de outro texto, colocamos o texto

    cinematogrfico de Marleen Gorris, o texto literrio de Michael Cunningham e o texto

    cinematogrfico de Stephen Daldry como reescrituras do romance de Woolf. Levamos em

    considerao, para efeito de nossa anlise, dois pontos importantes defendidos por Lefevere:

    as diferentes reescrituras desses textos, por meio da crtica, tanto literria, quanto

    cinematogrfica e o novo valor que as adaptaes assumem nos estudos de traduo.

    Lefevere (1992, p.9), tentando incluir o audiovisual na sua proposta, diz:

  • 39

    O mesmo processo bsico de reescritura est em ao na traduo, na historiografia, nas antologias, na crtica e na editorao. Est obviamente tambm em ao em outras formas de reescritura, tais como adaptaes para filme e televiso, mas essas fogem minha rea de competncia e por isso no sero tratadas aqui.7

    A idia de traduo como reescritura amplia os estudos de traduo e d traduo intersemitica novas perspectivas de anlise. O termo adaptao, por sua natureza

    polissmica, utilizado h muito tempo nos estudos tradicionais como sinnimo de modificao de um texto de um sistema de linguagem para outro. Nessa nova viso, a

    adaptao passa a ser considerada uma instncia da traduo, vista no como semelhana, mas, principalmente, como diferena.

    Continuando nossas consideraes sobre o ato tradutrio, discutiremos, na prxima seo, questes mais especficas do processo de transmutao do signo. Teremos,

    como base, alguns princpios da Traduo Intersemitica.

    1.3 A INTERSEMIOSE ENTRE AS LINGUAGENS LITERRIA E CINEMATOGRFICA

    Julio Plaza (2001, p.17), na tentativa de formulao de uma teoria prpria da

    traduo intersemitica, recorre a princpios da semitica peirceana para tratar de questes

    relacionadas ao signo e a sua transmutao nas diferentes linguagens. O autor se apia na

    idia de Charles Peirce no que diz respeito ao tratamento do signo no como unidade

    monoltica, mas um complexo de relaes tridicas (signo, objeto e interpretante). Essas

    relaes esto sempre ocasionando um poder de autogerao, o que caracteriza o processo

    sgnico como um contnuo. Essa definio de signo de Peirce, portanto, explica o processo de

    ao do signo (semiose) como uma transformao de signos em signos. Dessa forma, tal

    fenmeno ocorre por meio de uma relao de momentos num processo sequencial-sucessivo

    ininterrupto. Essa relao dinmica assim discutida pelo autor:

    7 The same basic process of rewriting is at work in translation, historiography, anthologization, criticism, and

    editing. It is obsviously also at work in order forms of rewriting, such as adaptations for film and television, but these are outside of my area of expertise and will therefore not be dealt with here.

  • 40

    A idia mais simples de terceiridade dotada de interesse filosfico a idia de um signo ou representao. Um signo representa algo para a idia que provoca ou modifica. Ou assim um veculo que comunica mente algo do exterior. O representado seu objeto; o comunicado, a significao; a idia que provoca, o seu interpretante. O objeto de representao que a primeira representao interpreta. Pode conceber-se que uma srie sem fim de representaes, cada uma delas representando a anterior, encontre um objeto absoluto como limite. A significao de uma representao outra representao. Consiste, de fato, na representao despida de roupagens irrelevantes; mas nunca se conseguir despi-la por completo; muda-se apenas de roupa mais difana. Lidamos apenas, ento, com uma regresso infinita. Finalmente, o interpretante outra representao a cujas mos passa o facho da verdade; e como representao tambm possui interpretante. A est nova srie infinita! (PEIRCE, 1980, p.93).

    Percebemos por meio do pensamento de Peirce que o processo de ao do signo

    uma condio essencial da linguagem, e a prpria atitude humana de pensar se d pela

    mediao dos signos, j que pensamos atravs deles. Partindo dessa idia, instaura-se a

    primeira relao dessa ao constante dos signos com o fenmeno tradutrio, pois se verifica,

    desde ento, um carter de transmutao de signos em signos.

    O processo constante de transmutao entre os signos torna o pensamento

    necessariamente uma traduo, j que, quando pensamos, traduzimos o que est presente em

    nossa conscincia, sejam imagens, sentimentos ou concepes em outras apresentaes que

    funcionam tambm como signos. Como conseqncia, qualquer pensamento a traduo de

    outro pensamento para o qual ele funciona como interpretante (PLAZA, 2001, p.18).

    Essa discusso de Plaza esclarece o posicionamento de Peirce, no que diz

    respeito ao processo de significao e classificao do signo, por considerar todo

    pensamento como um signo, colocando o prprio homem como um signo tambm. Como

    refora Peirce:

    que a palavra ou signo usado pelo homem o prprio homem. Se cada pensamento um signo e a vida uma corrente de pensamento, o homem um signo; o fato de cada pensamento ser um signo exterior prova que o homem um signo exterior. Quer dizer, o homem e o signo exterior so idnticos, no mesmo sentido em que as palavras homo e homem so idnticas. A minha linguagem, assim, a soma de mim prprio; porque o homem o pensamento (PEIRCE, 1980, p.82).

  • 41

    Para entendermos melhor essas relaes constantes de significao que so

    imanentes prpria constituio do signo, na sua dinmica de reproduo de significados,

    precisamos recorrer aos princpios da relao tridica de Peirce na qual esto apresentadas

    questes ligadas problemtica do significado. Com essa relao, o autor estabeleceu que

    todo processo sgnico opera entre os trs elementos de semiose.

    Dcio Pignatari (1987, p.41)8 se apia no diagrama triangular em que Ogden e

    Richards tentaram traduzir a relao tridica de Peirce com relao ao significado para

    interpretar os problemas envolvendo os termos signo ou representante, objeto ou referente e

    interpretante:

    Com base nesse diagrama triangular e com referncia ao signo, ao objeto e ao

    interpretante, essas trs tricotomias, consideradas as mais importantes de Peirce, foram

    situadas no vrtice-do-signo, no vrtice do objeto e no vrtice-do-interpretante. Para efeito

    dessa discusso sobre as questes da traduo intersemitica, concentraremos a ateno no

    vrtice do objeto, ou seja, o signo em relao ao seu objeto, que pode ser um cone, um ndice

    ou um smbolo.

    8 Esse diagrama apresentado por Pignatari uma interpretao e adaptao do diagrama de Ogden e Richards.

    Nele, o autor apresenta o terceiro vrtice criado por Peirce, chamado interpretante, que o signo de um signo, pois que engloba no somente Objeto e Signo como a ele prprio, num continuo jogo de espelhos.

    Figura 1(Diagrama triangular de Ogden e Richards)

  • 42

    Os cones so signos que operam pela grande semelhana entre suas qualidades,

    seu objeto e seu significado. Os cones so tambm signos de qualidade em relao aos seus

    objetos imediatos. Os significados que denotam so meros sentimentos, tais como o

    sentimento despertado por uma pea musical ou uma obra de arte. Ao olhar mais

    profundamente para esse tipo de signo, Peirce (1980, p.27) estabeleceu tambm os chamados

    hipocones, ou cones j materializados, tais como as imagens, os diagramas, as metforas.

    As imagens so consideradas aquelas de qualidade primeira; os diagramas so aqueles que

    representam relaes didicas e anlogas entre as duas partes constituintes, e as metforas so

    aquelas que tendem representao e traam algum paralelismo com algo diverso. Para

    Pignatari (1987, p.46), o cone um signo que est no nvel da primeiridade, ou seja, no reino

    dos possveis.

    Os ndices operam antes de tudo pela contigidade de fato vivida. So signos

    determinados pelo seu objeto dinmico que esto para com ele em relao ao real. Ao

    considerarmos o ndice em relao ao seu objeto imediato, ele um signo de um existente.

    Como exemplo, poderamos citar as fotografias instantneas que, por representarem, em

    certos aspectos, os objetos, so instrutivas. Isso se d pelo fato de ter semelhana com a

    realidade a qual representam, por corresponder, com detalhes, a essa realidade.

    Os smbolos operam, sobretudo, por contigidade institutiva, ou seja, por uma

    aproximao existente entre sua parte material e o seu significado. O seu objeto dinmico o

    determina apenas no sentido de ser assim interpretado. Dessa forma, o smbolo depende de

    uma conveno ou hbito. , portanto, em relao ao seu objeto imediato, um signo de lei.

    Percebemos, a partir das definies dessas caractersticas de signos, que eles se

    completam no processo de semiose. Assim, o signo no um objeto, mas um processo de

    intermediao, que tende comunicao para dentro e autopreservao concretiva para

    fora, ou seja, dois movimentos de posies opostas centrfugo e centrpeto. Segundo Plaza

  • 43

    (2001, p.22), esse processo de dentro para fora, de transformao num outro tem um grande

    efeito na dinmica da semiose. Ele afirma:

    Esse processo de remessa, para dentro e para fora, de transformao num outro, evidencia, de um lado, o enraizamento do smbolo no-simblico, isto , no ndice e no cone, evidenciando, de outro lado, que s h signos produzindo sentidos para interpretantes, descartada a possibilidade da coisa atravs do signo (o signo torna presente a ausncia do seu objeto), porque esta, a coisa substituda, j signo para um interpretante (PLAZA, 2001, p.22).

    Com esse posicionamento do autor, parece clara a condio de continuidade do

    signo na produo de sentido e significao. E essa continuidade plena da tricotomia o que

    caracteriza a linguagem na sua funo representativa e comunicativa e a relao do signo com

    o pensamento.

    Lcia Santaella (1985, p.75-78), no intuito de sintetizar a grande quantidade de

    definies de signo, algumas mais detalhadas e outras mais simplificadas, distribudas pelos

    textos de Peirce, tenta esclarecer que o signo um sinal que representa ou est no lugar de

    algo, ou seja, o seu objeto. Assim, algo s poder funcionar como signo se