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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Gabriel Kitofi Tonelo
O DOCUMENTÁRIO AUTOBIOGRÁFICO: O CINEMA DE CAMBRIDG E E A
OBRA DE ROSS McELWEE
Campinas
2017
Gabriel Kitofi Tonelo
O DOCUMENTÁRIO AUTOBIOGRÁFICO: O CINEMA DE CAMBRIDG E E A
OBRA DE ROSS McELWEE
Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Multimeios
Orientador: Prof. Dr. Fernão Vitor Pessoa de Almeida Ramos. Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno Gabriel Kitofi Tonelo e orientado pelo Prof. Dr. Fernão Vitor Pessoa de Almeida Ramos.
Campinas
2017
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO
GABRIEL KITOFI TONELO
ORIENTADOR - PROF. DR. FERNÃO VITOR PESSOA DE ALMEIDA RAMOS MEMBROS: 1. PROF. DR. FERNÃO VITOR PESSOA DE ALMEIDA RAMOS 2. PROF. DR. GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO 3. PROFA. DRA. MARIANA DUCCINI JUNQUEIRA DA SILVA 4. PROF. DR. HENRI PIERRE ARRAES DE ALENCAR GERVAISEAU 5. PROFA. DRA. ESTHER IMPÉRIO HAMBURGER Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca
examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno(a).
DATA: 14.08.2017
Ao Antônio.
Agradecimentos
À FAPESP – Processos 2013/08742-6 e 2015/02194-2 – pelo financiamento concedido para o desenvolvimento desta pesquisa.
Ao orientador, Prof. Fernão Pessoa Ramos, pela orientação generosa ao longo de todos esses anos. Meu interesse pelo estudo do cinema documentário e minha formação no assunto aconteceram a partir de seus escritos e aulas. Sendo assim, ressalto a honra de poder ter usufruído de tal interlocução durante esta trajetória, à qual espero fazer jus diante do possível caminho da docência e da pesquisa.
À Profª Ilana Feldman e ao Prof. Gilberto Alexandre Sobrinho, pelos valiosos comentários no exame de qualificação desta pesquisa.
Aos professores do Departamento de Cinema do IA/UNICAMP, Prof. Marcius Freire, Prof. Francisco Elinaldo Teixeira, Prof. Gilberto Alexandre Sobrinho, Prof. Alfredo Suppia, Prof. Pedro Maciel Guimarães e Prof. Nuno Cesar Abreu (in memoriam).
Aos amigos pesquisadores do PPG-Multimeios pela companhia de jornada, conversas e trocas, nestes quatro anos e meio. Especialmente, Jennifer Serra, Letizia Nicoli, Gustavo Soranz, Janaina Welle, Juliano Araujo, Regis Rasia e Rodrigo Gontijo.
Ao Renan Paiva Chaves, pelas leituras e comentários sobre o texto, em diferentes períodos. Da mesma forma, agradeço pela amizade e por compartilhar do entusiasmo pelos fenômenos, tomadas e suas materialidades.
Aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação – e do Instituto de Artes, como todo – pela solicitude e ajuda nos mais diversos trâmites ao longo da pesquisa. Em especial, à Letícia Machado e ao Rodolfo Marini Teixeira.
Ao Prof. Robb Moss, pela concessão da Fellowship que possibilitou minha estada por um semestre como pesquisador no departamento Visual and Environmental Studies (VES) da universidade Harvard.
Aos funcionários do departamento VES/Harvard Film Archive pelo auxílio em variados trâmites que envolveram a pesquisa no exterior: Katie DeMarsh, Jeremy Rossen, Liz Coffey, Laurel Gildersleeve.
A Ross McElwee, pela generosidade na acolhida em Cambridge e pelas diversas possibilidades de encontros, conversas e entrevistas, que regeram minha estadia lá e que puderam ser incorporadas a este estudo.
Aos cineastas que cederam cópias de seus filmes para análise e estudo nesta pesquisa: Ross McElwee, Alfred Guzzetti, Miriam Weinstein, Maxi Cohen, Jim Lane, Dario Guerrero e Jane Pincus (pelos filmes de Ed Pincus).
Aos cineastas, pesquisadores e professores de alguma forma vinculados ao cinema de Cambridge com quem pude conversar durante a estadia em Harvard ou posteriormente: Ross McElwee, Robb Moss, Alfred Guzzetti, Richard Peña, Jim Lane, Dario Guerrero.
Aos meus amigos de Santo André, Barão Geraldo e São Paulo que fazem parte de cada pedacinho deste trabalho. Aos amigos que fiz durante a estadia em Cambridge. Sintam-se devidamente abraçados e agradecidos.
À família Olmos: Antonio, Nilci, Thais e Vinícius, Marilea, Patrocínio e Brigit, pela acolhida, pela generosidade e pelo afeto.
Aos meus pais, Tonelo e Telma; meu irmão, Marcos, minha cunhada, Vivian, minha avó Therezinha e à Ivi por todo o carinho e amor que não se podem medir, nestes últimos trinta anos, bem como pelo apoio inabalável.
À Aline, pela honra de poder caminhar junto, há muitos anos. Agradeço por ser, além de companheira, minha melhor amiga e uma fonte diária de motivação. Da mesma forma, agradeço pela revisão cuidadosa, e amorosa, da versão final deste trabalho. Obrigado por compartilhar dos meus sonhos e por me deixar fazer parte dos seus.
Resumo
Esta pesquisa tem como objetivo realizar um estudo acerca da noção de
“documentário autobiográfico”, tomando como principal objeto a obra do cineasta
estadunidense Ross McElwee. A obra do diretor será abordada dentro da perspectiva do
cinema autobiográfico desenvolvido no contexto universitário da cidade de Cambridge
(EUA). Nascido em 1947 em Charlotte, Carolina do Norte, McElwee iniciou sua carreira
cinematográfica na década de 1970, como aluno do departamento do cinema do MIT, o
MIT Film Section. Sua carreira inclui títulos importantes para a história do documentário
autobiográfico estadunidense, como Sherman’s March (1986), Time Indefinite (1993) e
Bright Leaves (2004). McElwee pode ser considerado um dos principais diretores do
documentário autobiográfico, e também da cinematografia praticada em Cambridge. O
trabalho apresentado divide-se em três partes. A primeira delas busca levantar e responder
questões mais gerais sobre o que denominamos "documentário autobiográfico”, a partir
de um corpus filmográfico amplo e variado. Na segunda parte, realiza-se um resgate
histórico e conceitual do documentário autobiográfico de Cambridge, frisando sua relação
com a tradição do cinema direto estadunidense e sua projeção na obra de Ross McElwee.
A terceira parte dedica um olhar à noção de autobiografia desenvolvida por McElwee em
sua carreira. A obra de Ross McElwee traz em si um movimento de construção
autobiográfico contínuo, desenvolvido ao longo de mais de três décadas e sete filmes.
Trabalharemos analiticamente este movimento diacrônico, que incide em modo narrativo
na obra de McElwee. A cada novo filme é particularizada sua proposta artística,
afirmando-se sempre dentro do horizonte de um documentarista-autobiógrafo.
Palavras-chave: McElwee, Ross, 1947-; Documentário (Cinema); Autobiografia,
Cambridge (Mass., Estados Unidos).
Abstract
This research aims to study the notion of "autobiographical documentary”, taking
as its main object the work of American filmmaker Ross McElwee, seen within the
perspective of the autobiographical documentary which was developed in Cambridge
(MA) and its universities. Born in 1947 in Charlotte, North Carolina, McElwee began his
film career in the 1970s as a student at the MIT Film Section. His career includes
important titles for the history of the American autobiographical documentary, such as
Sherman's March (1986), Time Indefinite (1993) and Bright Leaves (2004). McElwee can
be considered one of the main representatives of the domain of autobiographical
documentaries, as well as of the kind of filmmaking which was practiced in Cambridge.
This study is presented in three parts. Part one seeks to raise and answer more general
questions about the domain of autobiographical documentary, based on a broad and
diverse filmographic corpus. In the second part, a historical and conceptual complexion
of Cambridge autobiographical documentary takes place, in which its relationship to the
tradition of American Cinema-Vérité is emphasized, as well as its projection into the work
of Ross McElwee. The third part looks at the notion of autobiography that was developed
by Ross McElwee in his career. Ross McElwee’s oeuvre brings in itself a movement of
continuous autobiographical construction, developed for more than three decades and in
seven films. This diachronic movement will be analytically looked at, which complicates
narratively McElwee's work with the release of each new film and particularizes his
artistic proposal as a documentarist-autobiographer.
Keywords: McElwee, Ross, 1947-; Documentary films; Autobiography; Cambridge
(Mass.)
Lista de Ilustrações
Figura 1: Recorte de jornal que abre a narrativa de The Alcohol Years (Carol Morley, 2000) – p. 38
Figura 2: O diretor Marcin Koszałka sendo sabatinado por sua mãe, em Such a Nice Boy I gave Birth to (1999) – p. 40
Figura 3: O casal Tom Joslin e Mark Massi em Silverlake Life: The View from Here (1993) – p. 63
Figura 4: O corpo sem vida de Tom Joslin em Silverlake Life: The View from Here (1993) – p. 64
Figura 5: A organização da comunidade negra de Natchez em Black Natchez (Ed Pincus e David Neuman, 1967) – p. 104
Figura 6: A experiência hippie em One Step Away (Ed Pincus e David Neuman, 1968) – p. 107
Figura 7: O desespero de Panola em Panola (Ed Pincus e David Neuman, 1970). – p. 109
Figura 8: Ed e Jane Pincus no início da filmagem de Diaries (1971 - 1976) – p. 129
Figura 9: A família Pincus na casa de campo em Vermont, último plano de Diaries (1971-1976) – p. 136
Figura 10: Premature (1980), de David Parry – p. 143
Figura 11: Diálogo entre Steve Kreines e sua mãe em trecho disponível de The Plaint of Steve Kreines as Recorded by his younger brother, Jeff (Jeff Kreines, 1974) – p. 144
Figura 12: A mãe de Mark Rance dirige-se vigorosamente ao cineasta em plano-sequência de Mom (1978) – p. 146
Figura 13: O pai de Miriam Weinstein em My Father, the Doctor (1972). – p. 149
Figura 14: Depoimento de Weinstein para a câmera em Living with Peter (1973) e o casal Weinstein cortando o bolo de casamento em We get married Twice (1973) – p. 150
Figura 15: A cineasta Miriam Weinstein e o filho em Call me Mama (1976) – p. 152
Figura 16: O grupo de Robb Moss acampando à beira do rio em Riverdogs (1982) – p. 154
Figura 17: O personagem Jim Tichenor, na ocasião de Riverdogs (Robb Moss, 1982) e em The Same River Twice (Robb Moss, 2002) – p. 155
Figura 18: Leacock e técnicos do MIT Film Section demonstram o Sistema sync-sound a Robert Gardner no programa Screening Room – p. 163
Figura 19: A fricção entre corpos, câmera e mundo em Leviathan (Lucien Castaing-Taylor e Verena Paravel, 2012) – p. 167
Figura 20: Manakamana (Pacho Vélez e Stephanie Spray, 2013) – p. 168
Figura 21: Felix e Susan Guzzetti falam para a câmera do filho, Alfred Guzzetti em Family Portrait Sittings (1975) – p. 172
Figura 22: Scenes from Childhood, de Alfred Guzzetti (1979) – p. 174
Figura 23: A fotografia tirada por Felix Guzzetti, pai do cineasta, em 1938, em Time Exposure (2012) – p. 176
Figura 24: A cineasta Nina Davenport e o namorado, Nick, em Always a Bridesmaid (2000) – p. 181
Figura 25: Nina Davenport e o nascimento do filho Jasper em First comes Love (2013) – p. 185
Figura 26: O diretor Marco Williams ao telefone em duas ocasiões de sua jornada em In Search of Our Fathers (1992), sua mãe e seu pai. – p. 188
Figura 27: O cineasta Jim Lane filma seu próprio reflexo em Long Time, no See (1982) – p. 189
Figura 28: A namorada da cineasta Mitch McCabe corta seu cabelo, em Playing the Part (1995) – p. 190
Figura 29: A história de Dario Guerrero em manchete de portal digital brasileiro, veiculada em 2014 – p. 191
Figura 30: Charleen Swansea ensina poesia para alunos do ensino médio em Charleen (1979) – p. 210
Figura 31: Charleen fala para a câmera de McElwee em Charleen (1979) – p. 212
Figura 32: McElwee posa ao lado de seu pai em fotografia apresentada no início de Backyard (1984) – p. 214
Figura 33: “Ficarei satisfeito quando esse olho grande desaparecer” diz o pai para o cineasta em Backyard (1984) – p. 216
Figura 34: Integrante do grupo sobrevivencialista e a designer de interiores Claudia, em Sherman’s March (1986) – p. 220
Figura 35: A irmã Dede dá conselhos amorosos ao cineasta, no início de Sherman’s March (1986) – p. 222
Figura 36: Charleen Swansea aplicando uma “lição” em McElwee em Sherman’s March (1986) – p. 224
Figura 37: Vestindo o uniforme do exército Confederado, McElwee elabora para a câmera os próximos passos de sua jornada, em Sherman’s March (1986) – p. 228
Figura 38: A reação da família McElwee ao anúncio do noivado em Time Indefinite (1993) – p. 233
Figura 39: Marilyn Levine e Ross McElwee na cerimônia de casamento, em Time Indefinite (1993) – p. 236
Figura 40: Charleen olha para a casa reconstruída após o incêndio, em Time Indefinite (1993) – p. 238
Figura 41: Adrian McElwee com uma semana de idade, no plano final de Time Indefinite (1993) – p. 239
Figura 42: McElwee filma uma missa católica em Six O’Clock News (1996) – p. 252
Figura 43: Adrian McElwee aos quatro anos de idade, em Six O’Clock News (1996) – p. 256
Figura 44: Deus – ou uma câmera de filmar – na pintura de Adrian McElwee, em Six O’Clock News (1996) – p. 257
Figura 45: As folhas de tabaco no “sonho” de McElwee em Bright Leaves (2004) – p. 259
Figura 46: O casal Massies canta novamente “Noite Feliz”, em Bright Leaves (2004) – p. 265
Figura 47: Adrian McElwee aos treze anos de idade, em Bright Leaves (2004) – p. 267
Figura 48: Vlada Petric durante sua “aula” a McElwee em Bright Leaves (2004) – p. 269
Figura 49: McElwee senta-se no “McElwee Park” para pensar, em Bright Leaves (2004) – p. 271
Figura 50: Adrian McElwee aos 21 anos de idade, em Photographic Memory (2011) – p. 290
Figura 51: “Como eu pude ficar tão velho?”. Ross McElwee em Photographic Memory (2011) – p. 296
Figura 52: “Maud” em dos diários de McElwee da década de 1970, em Photographic Memory (2011) – p. 298
Figura 53: “Até mais”, diz McElwee para Adrian, no plano final de Photographic Memory (2011) – p. 301
Sumário
Introdução ................................................................................................................................... 14
1. Sobre Documentários Autobiográficos ................................................................................... 20
1.1. Abordando o domínio dos documentários autobiográficos ............................................ 20
1.2. O documentarista-autobiógrafo – cineastas públicos, cineastas anônimos .................... 31
1.3. Estilo e intencionalidade em documentários autobiográficos ......................................... 36
1.4. Autobiografia e filmografias nacionais – um paralelo com o caso estadunidense .......... 46
1.5. Construção de identidade e narrativização de experiência ............................................. 55
1.6. Documentários autobiográficos, referencialidade e desconstrução ............................... 67
2. O Documentário de Cambridge e suas Universidades ............................................................ 92
2.1. Robert Drew em Harvard e Cinema Direto: preparação conceitual ................................ 92
2.2. A carreira e o pensamento de Ed Pincus ........................................................................ 100
2.3. A Experiência Autobiográfica de Diaries (1971 - 1976) .................................................. 125
2.4. A produção autobiográfica do MIT Film Section: filmes e cineastas. ............................ 137
2.5. Pós-MIT Film Section: Harvard e o departamento VES .................................................. 156
2.6. Documentário moderno e antropologia em Harvard: de Robert Gardner ao Sensory
Ethnography Lab ................................................................................................................... 161
2.7. A produção autobiográfica no contexto de Harvard...................................................... 169
3. A obra autobiográfica de Ross McElwee ............................................................................... 193
3.1. Introdução ...................................................................................................................... 193
3.2. Do Cinema Direto à Autobiografia: Space Coast (1979), Charleen (1979) e Backyard
(1984) .................................................................................................................................... 209
3.3. Sherman’s March (1986): a Guerra de Secessão dentro de si ....................................... 217
3.4. Time Indefinite (1993): A câmera e o calvário ............................................................... 229
3.5. Six O’Clock News (1996): Deus é uma câmera de filmar ............................................... 247
3.6. Bright Leaves (2004): Cinema e legado familiar ............................................................. 258
3.7. In Paraguay (2008): O defunto de um presente e a ética autobiográfica ...................... 272
3.8. Photographic Memory (2011): Um ciclo completo ........................................................ 288
4. Considerações Finais ............................................................................................................. 302
5. Referências Bibliográficas ..................................................................................................... 308
6. Anexo: Entrevista com Ross McElwee................................................................................... 318
14
Introdução
O interesse pelo desenvolvimento desta pesquisa partiu do contato com a obra do
cineasta estadunidense Ross McElwee. McElwee nasceu em 1947 e iniciou sua carreira
cinematográfica na década de 1970. Seu longa-metragem Sherman’s March – A
Meditation on the Possibility of Romantic Love in the South during an Era of Nuclear
Weapons Prolifer, lançado em 1986, é o filme pelo qual o cineasta é mais reconhecido.
Lidando tematicamente com aspectos relativos à sua vida pessoal, os filmes do diretor
inserem-se no debate acerca dos documentários autobiográficos. A particularidade de sua
obra como documentarista, neste sentido, refere-se ao fato de que McElwee não trabalhou
a noção de autobiografia em apenas um filme, isoladamente, mas dedicou sua obra inteira
à exploração deste aspecto. Este foi o ponto principal sobre o qual recaiu a decisão de
desenvolver um estudo aprofundado acerca de seus filmes.
McElwee inicia a abordagem autobiográfica no média-metragem Backyard,
lançado em 1984, continuando-a em seis longas-metragens subsequentes, sendo
Photographic Memory (2011) o último realizado até o momento. A partir de seus filmes,
entramos em contato com alguns dos principais acontecimentos que regem sua vida
adulta, em um período de trinta anos. Em Backyard (1984) McElwee apresenta-se como
um jovem artista iniciando sua carreira cinematográfica sob o olhar auspicioso de um pai
conservador. Em Sherman’s March (1986) acompanhamos sua jornada pelo Sul dos
Estados Unidos na tentativa de realizar um documentário que retrata tanto determinado
episódio da Guerra Civil estadunidense, quanto aspectos da vida amorosa do diretor. Seu
casamento, a morte de seu pai e o nascimento de seu primeiro filho são tematizados em
Time Indefinite (1993). O crescimento de seu filho e a evolução da relação entre ele e o
diretor são abordados em filmes como Six O’Clock News (1996) e Bright Leaves (2004).
O processo de adoção de sua filha é o tema de In Paraguay (2008). Em Photographic
Memory (2011), fechando um ciclo geracional, McElwee enxerga seu filho como um
jovem adulto em uma posição semelhante à sua quando iniciou sua própria carreira
artística, no período abordado em Backyard. Devido a este movimento de construção
autobiográfica contínua, seus filmes trazem algumas questões particulares em relação à
autobiografia no universo do cinema documentário e que suscitaram um estudo
aprofundado.
15
A bibliografia estrangeira que lida analiticamente com as possibilidades de
cruzamento entre autobiografia e documentário frequentemente aponta McElwee como
um dos principais representantes deste tipo de cinema. Desde a década de 1980, seus
filmes foram contemplados nos principais circuitos de festivais e, até o momento,
retrospectivas completas de sua obra foram exibidas na França, Bélgica, Portugal, Nova
Zelândia, Coréia do Sul, Equador e Suíça. Apesar disso, os filmes do diretor são pouco
conhecidos no Brasil. Seus documentários não foram incluídos em mostras
cinematográficas de destaque no país, e são praticamente inexistentes menções à sua obra
em bibliografia brasileira A partir da década de 2000 o documentário autobiográfico tem
sido um tópico forte nos estudos de cinema no Brasil. McElwee é um cineasta que tem
muito a contribuir para este debate. O esforço deste estudo concentra-se em trazer para
este domínio um pouco mais de conhecimento, a partir da análise de seus filmes.
A obra de McElwee insere-se em um contexto cinematográfico particular que
aponta para o universo dos documentários autobiográficos. O autor Jim Lane publica em
2002 o livro “The Autobiographical Documentary in America” (LANE, 2002), no qual
oferece análises da filmografia que compõe a noção de documentário autobiográfico nos
EUA. A partir do livro de Lane pôde-se enxergar os filmes de Ross McElwee sob uma
perspectiva histórica. A carreira de McElwee insere-se no contexto da produção
documentária de Cambridge (MA) e suas universidades. Trata-se de um movimento
iniciado no departamento de pesquisa, ensino e produção cinematográficos do MIT, o
MIT Film Section, no final da década de 1960. Seus fundadores foram os cineastas Ed
Pincus e Richard Leacock. Ao longo da década de 1970 o departamento recebeu e formou
diversos aspirantes a cineastas, sendo McElwee um deles. Especialmente a partir da
influência de Ed Pincus, o MIT Film Section concentrou uma variedade de diretores que
trabalharam com o desenvolvimento da noção de autobiografia aplicada à ótica do
documentário. Esta era uma produção ainda incipiente nos Estados Unidos. Os filmes
realizados no MIT Film Section propunham desdobramentos à noção de cinema direto
estadunidense, iniciada na década anterior. Cambridge desenvolveu uma tradição do
documentário autobiográfico que se perpetua até hoje. Após a experiência do MIT Film
Section, a noção de autobiografia perpassou as produções de alunos e professores do
departamento Visual and Environmental Studies (VES) da Universidade Harvard. Ross
McElwee é docente do departamento desde 1986 e a maior parte de seus filmes foi
realizada em intercâmbio com este ambiente universitário. Uma história detalhada deste
16
movimento é abordada no livro “American Ethnographic Film and Personal
Documentary: The Cambridge Turn” (MACDONALD, 2013), publicado pelo
pesquisador estadunidense Scott MacDonald em 2013. Apesar da produção documentária
de Cambridge ter sido referenciada por outros autores desde seu aparecimento, o livro de
MacDonald compila significantemente esta produção. A publicação percorre
cronologicamente os filmes e os diretores que fizeram parte deste episódio ainda pouco
conhecido, sugerindo aspectos que aproximam conceitualmente os filmes enquanto
proposta artística.
A força propulsora deste trabalho consistiu em estudar a noção particular de
“autobiografia” na carreira de McElwee. A primeira tarefa partiu, portanto, de delinear o
entendimento da noção de “documentário autobiográfico” com a qual trabalhamos e que
deu origem ao capítulo 1 deste trabalho. Para isso, considerou-se o visionamento de um
corpus extenso e variado de documentários – de diferentes nacionalidades, períodos de
lançamento e estilísticas – pertencente a este domínio. Não existiu a intenção de oferecer
uma relação completa dos filmes que poderiam ser enquadrados neste domínio, mas, sim,
a de apontar alguns dos principais questionamentos que fazem destes filmes um tipo
particular de produção no universo do cinema documentário. O capítulo propõe, também,
a exposição de títulos e cineastas menos trabalhados em bibliografia brasileira, com o
propósito de ampliar o repertório acerca do tema.
Partindo do pressuposto de que “documentário autobiográfico” não é um gênero
preestabelecido ou unânime em seu entendimento, trabalha-se primeiramente com uma
proposta de definição – o que exatamente entendemos aqui como “documentário
autobiográfico”? Seguindo-se a ela, outras questões que buscaram ser respondidas no
capítulo foram: qual o principal perfil dos cineastas-autobiógrafos? São cineastas famosos
ou anônimos? Quais as características metodológicas mais recorrentes em documentários
autobiográficos? Há, em última análise, alguma característica que seja decisiva para a
existência deste tipo de filme? Esta produção relaciona-se mais de perto com a filmografia
de algum país específico? Onde este tipo de produção figurou mais consistentemente?
Existem temas que os cineastas-autobiógrafos abordam mais recorrentemente? A última
parte do capítulo propõe um debate acerca das principais tendências analíticas que
permearam a noção de “autobiografia” no campo do documentário. Em especial, foram
lançadas algumas reflexões acerca da dicotomia “referencialidade” e “desconstrução” que
17
servem como subsídio para o aporte conceitual que permeia os filmes trabalhados em
seguida.
Consideramos que a obra de Ross McElwee se tornava um objeto de estudo mais
interessante a partir de sua constatação como parte de um episódio histórico maior.
Igualmente importante à tarefa de trazer luz à particularidade de McElwee enquanto
documentarista, portanto, era a escrita a respeito da história do documentário
autobiográfico de Cambridge. A possibilidade de produzir conhecimento (e partilhá-lo)
sobre um episódio pouco explorado da história do cinema documentário mundial era
preciosa o bastante para que deixasse de ser contemplada durante o tempo da pesquisa.
Justificamos esta decisão, também, ao sugerir que existe certa carência de estudos que
tragam mais “palpabilidade” à história do documentário autobiográfico, de uma maneira
geral. Tratou-se no capítulo 2 de expor a relação entre narrativas autobiográficas e o
ambiente universitário de Cambridge, onde ocorre um sistema de retroalimentação entre
cineastas/docentes e alunos que perdura há algumas décadas. As escolhas estéticas e
narrativas dos filmes de McElwee dialogam diretamente com o tipo de cinema
desenvolvido na região. Desta forma, o trabalho de explicar algumas das particularidades
deste episódio também se refere, invariavelmente, ao cinema de McElwee.
Este estudo contemplou uma pesquisa de campo, realizada durante seis meses no
departamento Visual and Environmental Studies (VES), da Universidade Harvard
(Cambridge-MA). Mais do que em relação ao capítulo 1, o contato estabelecido com
diversos tipos de fontes primárias de informação neste trabalho de campo foi decisivo
para o desenvolvimento dos capítulos 2 e 3. Para o estudo acerca do documentário
autobiográfico de Cambridge, privilegiou-se material de pesquisa que dissesse respeito à
gênese do pensamento deste fenômeno em publicações e entrevistas realizadas à época,
bem como em material filmográfico produzido no período. Da mesma maneira, a
possibilidade de entrevistar ou conversar com algumas pessoas que fizeram parte deste
episódio também se mostrou fundamental para a análise da produção em questão. Em
especial, destacamos o visionamento de filmes de acesso mais difícil de cineastas como
Ed Pincus, Robb Moss, Alfred Guzzetti, Miriam Weinstein, Ross McElwee, David Parry
e outros – alguns deles cedidos pelos próprios cineastas para o trabalho desta pesquisa.
Sublinhamos também as conversas e/ou entrevistas que foram realizadas durante o
período em Harvard com cineastas e pesquisadores como Richard Peña, Alfred Guzzetti
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e Robb Moss, para além do próprio Ross McElwee – cujas entrevistas foram compiladas
no anexo ao final da pesquisa.
O documentário autobiográfico de Cambridge, como mencionado, parte da
tradição do cinema direto estadunidense, propondo novos desdobramentos na década de
1970. Estes desdobramentos envolviam a possibilidade de uma construção narrativa que
contemplasse como matéria-prima temática o universo individual dos cineastas,
frequentemente em uma esfera doméstica ou familiar. Delineamos a primeira parte do
capítulo sugerindo que o início da longa relação entre cinema direto e Cambridge (ou
Boston, de maneira geral) pode ser detectada no estágio realizado por Robert Drew, em
1955, na universidade. Durante o ano que passou em Harvard, Drew dedicou-se ao
desenvolvimento da base conceitual para um novo tipo de telejornalismo, que culminou
alguns anos depois na produção do cinema direto. Em seguida, exploramos a ponte entre
o cinema direto e o desenvolvimento do documentário autobiográfico de Cambridge, sob
a perspectiva da carreira cinematográfica de Ed Pincus. As reflexões de Pincus
representam o principal aporte teórico do cinema desenvolvido no MIT Film Section.
Buscamos expor alguns dos pensamentos que nortearam o início da produção
autobiográfica de Cambridge e que evidenciam tanto a relação do grupo com a noção de
cinema direto quanto seu distanciamento de outras propostas de cinema que vigoravam
na época – como o Cinema-Vérité francês, na forma de Jean Rouch, ou o cinema
underground estadunidense, representado por Stan Brakhage, Jonas Mekas e outros.
Oferecemos um olhar mais prolongado acerca das escolhas metodológicas e narrativas de
Diaries (1971 - 1976), documentário autobiográfico realizado por Ed Pincus e que é uma
das principais influências da abordagem autobiográfica do cinema de Ross McElwee.
Em seguida, trabalhamos com a exposição de filmes e cineastas no contexto do
MIT Film Section e, posteriormente, do departamento VES da Universidade Harvard.
Tratam-se de comentários breves acerca de produções ainda pouco conhecidas, mas que
têm como objetivo tornar mais concreto o entendimento do cinema documentário
autobiográfico de Cambridge como um fenômeno com uma tradição narrativa própria,
desenvolvido a partir das universidades, e que se desdobra ao longo das décadas.
Historicamente, Harvard também abrigou outra contribuição para o documentário
moderno estadunidense, esta mais ligada ao filme etnográfico. Pôde-se expor um pouco
desta história, estabelecendo uma relação entre o cinema de Robert Gardner e a produção
19
recente de cineastas como Lucien Castaing-Taylor e o trabalho do Sensory Ethnography
Lab (SEL).
As elaborações desenvolvidas no capítulo 1 e no capítulo 2 servem como alicerce
conceitual e histórico para o trabalho realizado no terceiro e último capítulo, que é
dedicado à análise do aspecto autobiográfico nos filmes de Ross McElwee. Entendendo
que a construção autobiográfica em seus filmes acontece a partir de um movimento
contínuo, privilegiamos um olhar acerca da maneira através da qual este procedimento
particulariza a questão de “autobiografia” em sua carreira. A cada filme lançado, a “teia”
de relações entre McElwee, sua vida privada e seu trabalho artístico torna-se um pouco
mais complexa. A partir do “risco” desta complexidade, a carreira de McElwee traz
alguns questionamentos pouco antevistos na obra de outros cineastas-autobiógrafos.
Enfatizamos a análise da temporalidade dos filmes de McElwee como o elemento mais
interessante de sua proposta autobiográfica. Esta proposta é complicada desde o emprego
de narrativas construídas a partir de dois pilares estilísticos díspares entre si – a
metodologia vérité “versus” a narração em over – como também do próprio aspecto
autobiográfico contínuo de sua carreira, que fazem com que os filmes estejam sujeitos à
força da passagem do tempo. A questão temporal contínua na carreira de McElwee suscita
movimentos de reavaliação e de ressignificação, que ocorrem tanto para o próprio
cineasta e para aqueles próximos de si, quanto para os espectadores de seus filmes.
Decidiu-se por estabelecer uma análise “filme-por-filme” da obra de McElwee devido ao
fato de que seus documentários, como frisado, são pouco conhecidos. A partir desta
metodologia, pôde-se estabelecer alguns comentários acerca de cada filme, lidando com
eles separadamente. Assim, abordarmos o contraponto entre a exploração de aspectos da
vida individual do diretor e aspectos relativos ao mundo exterior que tornam particular
cada uma de suas empreitadas, bem como trabalhamos singularidades narrativas ou
estilísticas que vêm à tona no visionamento de cada filme.
20
1. Sobre Documentários Autobiográficos
1.1. Abordando o domínio dos documentários autobiográficos
A noção de autobiografia permeia o cinema documentário há mais ou menos meio
século. Não se trata de uma questão já esgotada temática ou estilisticamente. A cada ano
são lançados documentários que trazem a figura individual de seus criadores ao primeiro
plano de seus eixos temáticos. Narrar a respeito de si próprio, tornar aspectos da vida
individual do diretor como parte do conhecimento produzido pelos filmes é uma
estratégia que foi abordada de maneiras diversas. O que chamamos de documentário
autobiográfico é um fenômeno que permeou nosso entendimento do documentário
contemporâneo nas últimas décadas. Trata-se de uma noção que atravessou a filmografia
de países e continentes diversos: nos EUA, Europa, Brasil e América Latina, Oriente
Médio, extremo Oriente. Vários dos filmes que se relacionam com este universo
conceitual foram alvo de discussões no meio cinéfilo, crítico e acadêmico. Muitos deles
geraram frisson no circuito de mostras e festivais, muitos deles geraram comentários
acerca de um potencial “inovador” e muitos deles mostram-se, nos dias atuais,
suficientemente integrados à filmografia clássica de seus países de origem bem como à
história do cinema mundial.
Alguns exemplos notáveis deste tipo de filme podem ser mencionados para que
nos aproximemos das questões que envolvem o universo conceitual do qual fazem parte.
Em 1986, o diretor estadunidense Ross McElwee lança Sherman’s March – uma busca
de McElwee pelo amor romântico durante uma viagem pelo Sul dos Estados Unidos,
embrenhada por uma análise da sociedade sulista contemporânea em meio à herança da
Guerra Civil e ao temor de uma guerra nuclear. Sherman’s March obteve repercussão
maior do que a esperada, sendo distribuído amplamente nos Estados Unidos e chegando
à Europa. É possível sustentar que Sherman’s March foi um dos filmes que popularizou
o “gênero” do Documentário Autobiográfico, na década de 1980, entre um público não
tão restrito ao de cinéfilos, pesquisadores, docentes e estudantes de cinema. A autora
Catherine Russell entende Sherman’s March como um documentário autobiográfico
21
mainstream1 (RUSSELL, 1999, p. 290), colocando-o ao lado de Roger e Eu, lançado por
Michael Moore em 1989. Mesmo a ideia de Roger e Eu, entretanto, teria sido idealizada
por Moore após o contato que teve com o longa-metragem de McElwee, segundo este
aponta em entrevista (MEEK, 2004). Após seu lançamento, Sherman’s March recebeu o
grande prêmio do Júri de Melhor Documentário na edição de 1987 do Festival de
Sundance. O filme fora, em determinado momento da metade da década de 1990, o
décimo documentário de longa-metragem mais vendido até então (HUNT, 1994). Em
2000, Sherman’s March foi integrado ao acervo filmográfico da Biblioteca do Congresso
estadunidense (O National Film Registry), sendo preservado a partir de seu
reconhecimento como uma obra artística “Historicamente, culturalmente ou
esteticamente significativa” para o país. Mais recentemente, em setembro de 2014, a
revista inglesa “Sight and Sound” dedicou um número exclusivo ao cinema
documentário. Nela, a publicação promoveu uma ampla votação que destacasse os
documentários “mais importantes” já lançados, segundo cineastas e críticos. Na edição,
Sherman’s March ocupou o posto de 19º documentário mais importante da história na
lista dos cineastas consultados, e o posto de 77º na lista dos críticos.
A estranha jornada de McElwee que narra a expectativa (frustrada) de engatar um
relacionamento amoroso, levantando minúcias da vida particular do general William
Tecumseh Sherman (conhecido por ser, ao mesmo tempo, herói e vilão do exército da
União), e trazendo uma análise do arquétipo macho do Sul dos EUA suscitou interesse
suficiente para que McElwee continuasse esta abordagem em sua carreira posterior.
Seguindo-se a Sherman’s March, o diretor construiu uma obra inteiramente alicerçada
em longas-metragens autobiográficos, tendo realizado e lançado outros seis até o
momento presente. Durante um período de mais de três décadas, portanto, McElwee
partilha com os espectadores aspectos de sua vida individual que são cristalizados em
narrativa fílmica e que dão conta de alguns dos principais eventos de sua vida adulta,
familiar e doméstica. Este movimento abarca eventos como a morte de entes queridos,
seu casamento, o crescimento de seus filhos e a progressão de seu envelhecimento.
Outros cineastas trabalharam continuadamente com aspectos autobiográficos em
seus filmes, estabelecendo uma relação sequencial entre eles. É o caso do cineasta
1 Expressão que indica uma tendência dominante, ou um fluxo principal. O termo é frequentemente usado em um contexto de classificação de produtos culturais e pode ser entendido como o oposto de underground.
22
estadunidense Alan Berliner. Desde 1991, os filmes de Berliner trabalham narrativamente
com elementos relativos à sua vida individual e à história de sua família. Em Intimate
Stranger (1991) Berliner lança luz a aspectos da história privada de seu avô-materno que
permanecia envolta em mistério, até para si próprio, antes da feitura do filme. Em 1996,
o cineasta lança um de seus filmes mais conhecidos, Nobody’s Business. Este faz da
relação do diretor com seu pai seu principal tema, relacionando a história familiar dos
Berliner à História pública – a questão de sua herança judaica, tematizada neste filme,
será retomado em outros de seus filmes. Já em The Sweetest Sound (2001), Berliner
realiza uma reflexão acerca de nomes próprios, tomando o seu, “Alan Berliner”, como
um dos pontos de reflexão do filme. Em Wide Awake (2006), Berliner preocupa-se em
partilhar conosco a mazela da insônia, da qual sofre há muitas décadas. O problema toma
proporções grandes demais, influindo diretamente em seu trabalho e em sua vida privada,
que passa por complexificações com o nascimento de seu primeiro filho. Em seu último
filme, First Cousin Once Removed (2013), Berliner volta a sublinhar relações familiares.
O filme lida tematicamente com seu primo de segundo grau, Edwin Honig, um poeta e
tradutor de reconhecimento mundial que sofre do mal de Alzheimer.
Alan Berliner e Ross McElwee, dois dos principais cineastas que lidaram
continuamente com a noção de autobiografia em suas carreiras, apresentam
procedimentos estilísticos e narrativos totalmente diversos. A autoria de Berliner
enquanto documentarista recai ostensivamente em um trabalho de montagem vigoroso
realizado pelo próprio diretor. Berliner lança mão de cortes rápidos, de uma abundância
de efeitos sonoros e da utilização de vasto material de arquivo. A particularidade do estilo
de McElwee, por outro lado, parte de um refinamento da escola vérité aliado a um
meticuloso trabalho de narração em over. Tanto a obra de McElwee quanto a de Berliner,
entretanto, caracterizam-se por trazer à luz elementos da vida de seus criadores em uma
relação de causa e consequência que se envereda a cada filme lançado.
Autobiograficamente falando, a particularidade das carreiras de McElwee e Berliner
reside na possibilidade de atualizarmo-nos a respeito da vida dos diretores em cada novo
filme. Podemos nos surpreender com as “novidades” trazidas por eles e quiçá nos
sensibilizarmos quando descobrimos que o cineasta perdeu um ente querido tematizado
em um filme anterior, ou que este enfrentou algum tipo de situação traumática que é feita
visível na narrativa.
23
Outros cineastas trabalharam continuadamente com a noção de autobiografia em
suas obras, porém não em todos os filmes como é, praticamente, o caso de Ross McElwee
ou Alan Berliner. Alguns exemplos são os de cineastas-auteurs que detém carreiras
consistentes e significativas e que transitaram por uma vasta gama de tipos de filmes e
proposições narrativas: filmes experimentais, documentários e ficções. A autobiografia
detém um papel significativo na carreira de Chantal Akerman, um destes casos, em filmes
como News From Home (1976), Chantal Akerman par Chantal Akerman (1997), La-Bàs
(2006) e No Home Movie (2015), permeando o curso de sua obra até seu ponto final, com
a morte da diretora em 2015. Passamos, enquanto espectadores, a conhecer os traços da
paisagem do universo individual de Akerman a partir das cartas trocadas pela diretora
com sua mãe em um dos períodos em que morou nos Estados Unidos, como nos é narrado
em News From Home. O aspecto autobiográfico é retomado vigorosamente na última
década de sua carreira, em La-Bàs e em seu último filme, No Home Movie. Estes filmes
relacionam-se entre si a partir do momento em que trazem à luz o conhecimento acerca
de uma delicada condição mental e emocional da diretora, cujas narrativas nos sugerem
que Akerman estaria “segurando-se na mais fina e desgastada das linhas de vida”, como
aponta a autora Alisa Lebow (2016, p. 1). Finalizado apenas poucos meses antes do
falecimento de Akerman, No Home Movie é um filme que “pode apenas ser visto através
da moldura de seu suicídio, como um consciente ou insconsciente adeus” (LEBOW,
2016, p.1). A cineasta japonesa Naomi Kawase é outro destes exemplos. Kawase realizou
diversas narrativas documentárias autobiográficas pelas quais tornou-se reconhecida –
especialmente no início de sua carreira. Nestes filmes, a diretora trabalha narrativamente
com aspectos de sua relação com familiares, como a figura do pai que a abandonou (em
Embracing, 1992) ou da avó que a criou (Katatsumori, 1994 e Tarachime, 2006). Por
entre ficções e documentários, a autobiografia também permeia a obra da cineasta
francesa Agnés Varda, em filmes como Os catadores e eu (Les Glaneurs e La Glaneuse,
2000) ou As praias de Agnès (Les plages d’Agnès, 2008). Nestes, entre outros aspectos
que apontam para a individualidade de Varda, entramos em contato com a relação da
diretora com o ofício de filmar, revisitando momentos de seu passado cinematográfico e
refletindo sobre ele.
Em todos os exemplos citados, estamos diante de narrativas que sugerem que
sejam assistidas como “autobiográficas” – o que não é pouca coisa. Levando em
consideração o número integral de documentários produzidos e lançados ao redor do
24
mundo, e em todos os suportes disponíveis, é possível sustentar que dificilmente um
espectador médio, em uma experiência de consumo cotidiano de material audiovisual, irá
deparar-se com a oferta de um documentário autobiográfico para visionamento. Existem
poucos títulos disponíveis na database da plataforma Netflix e existe uma pequena
possibilidade de canais de televisão fechada como Canal Brasil, SundanceTV ou Curta!
incluírem em sua programação filmes que se enquadram neste debate. Em todas as
edições do Oscar, há poucos filmes – talvez apenas três – que trabalharam narrativamente
a transposição do universo individual de seus diretores como ponto do eixo temático dos
filmes. Um destes casos é Best Boy (1979), dirigido por Ira Wohl, cujo enredo narra a
história do primo do cineasta que sofre de deficiência mental, e que foi vencedor do Oscar
de melhor documentário em 1979. Em 1995, a exploração da cineasta Deborah Hoffmann
em relação à progressão do quadro de Alzheimer de sua mãe é o tema principal de
Complaints of a Dutiful Daughter (1994), foi indicada nesta categoria. Outro caso é o de
Troublesome Creek: A Midwestern (1995), dirigido por Steve Ascher e Jeanne Jordan,
que concorreu ao prêmio em 1996 e explora o momento instável da fazenda da família da
diretora Jeanne Jordan, colocando-o como microcosmo de um período de mudança na
economia americana do momento2.
Ainda que esta comparação dos documentários autobiográficos em relação ao
Oscar não revele objetivamente muitas coisas, ela pode ser um subsídio para o
entendimento de que, de maneira geral, a experiência de produção, visionamento e
recepção do cinema documentário enquanto fenômeno particular se relaciona de maneira
discreta com a possibilidade de autobiografia. Em outras palavras, pode-se sugerir que
fora de um grupo restrito de cinefilia e/ou de pesquisadores de cinema, a construção
narrativa autobiográfica documentária é ainda vista como ponto fora da curva diante do
senso comum da expectativa de produção de conhecimento dos documentários, como
uma novidade ou como fenômeno necessariamente atrelado à filmografia dos últimos
anos.
Neste sentido, sustentamos o interesse em refletir acerca das especificidades
epistemológicas de documentários que assumem narrativamente uma posição
2 Em alguns outros filmes indicados existe a transposição da figura do diretor como personagem ou
interlocução argumentativa nos filmes, de maneira ou outra, como Wim Wenders em O Sal da Terra (2014),
alguns filmes de Michael Moore (Tiros em Columbine [2002], Sicko [2007]), Werner Herzog em
Encounters at the End of the World (2007) ou Emad Burnat em 5 Broken Cameras (2012). Dificilmente
estes, entretanto, poderiam ser pensados sob a ótica da autobiografia da maneira que lidaremos daqui em
diante.
25
autobiográfica em contraponto aos documentários que não o fazem. Parte-se neste
trabalho de uma intenção de analisar o que torna os “documentários autobiográficos” um
fenômeno particular de produção de conhecimento dentro do universo da narrativa não-
ficcional. Propomos um debruçamento de amplo escopo a partir de um olhar para os
filmes diante daquilo que os une como experiência particular dentro do universo
conceitual da não ficção, antes mesmo de sublinhar o que porventura os diferencia
narrativamente e estilisticamente entre si. Utilizaremos o termo “documentário
autobiográfico” em relação à vasta gama de filmes que podem ser englobados por esta
adjetivação. Dois autores, em especial, podem ser ressaltados no que concerne a produção
analítica a respeito da possibilidade de autobiografia no cinema de não-ficção. Um deles
é Michael Renov, que dedicou grande parte de sua obra à análise de filmes e vídeos que
exemplificaram, renovaram e ampliaram a noção que temos da escrita autobiográfica no
cinema documentário. O outro é Jim Lane, autor de “The Autobiographical Documentary
in America” (LANE, 2002) e de outros artigos a respeito de cineastas-autobiógrafos como
Ed Pincus e Ross McElwee. Os trabalhos de Renov e Lane destacam-se por prover
análises de documentários autobiográficos a partir da consideração de um corpus
filmográfico mais amplo. Mesmo residindo na teoria do cinema, as reflexões destes
autores também buscam inspiração conceitual nos estudos específicos do campo da
autobiografia – dialogando com autores mais ligados à teoria crítica da literatura. As
ideias de Renov e Lane são importantes pontos de contato para a argumentação que se
desenvolverá ao longo do trabalho.
A expertise de Michael Renov no trato com a noção de autobiografia aplicada ao
cinema documentário, em um movimento analítico de mais de vinte anos, pode ser
destacada quando entramos em contato com duas de suas proposições, em um texto
publicado primeiramente em 2009: “a autobiografia fílmica não é nenhuma novidade”
(2014, p. 36) e “a autobiografia fílmica existe de várias formas” (2014, p. 39).
Englobadoras, as proposições de Renov são valiosas por dois motivos distintos. O
primeiro deles diz respeito a um convite à consideração de que a tematização narrativa
cinematográfica de aspectos relativos à vida individual do cineasta não é uma
exclusividade do período em que estamos vivendo. É possível afirmar que há uma
expansão atual, em números absolutos, de documentários que lidam com a noção de
autobiografia. Talvez seja tentador inferir que a intenção da parte de um cineasta de
narrativizar cinematograficamente algum aspecto de sua vida individual seja um
26
fenômeno ligado ao período em que vivemos, à popularização de ferramentas como os
blogs, vlogs e redes sociais de qualquer sorte; ou até mesmo da profusão de programas
televisivos como os talk shows ou os reality shows. Nota-se, entretanto, o início da
preocupação com o desenvolvimento de narrativas documentárias autobiográficas ainda
na década de 1960. Se no campo literário a escrita autobiográfica porta uma longa e
variada tradição, o início deste mesmo ímpeto no cinema está mais diretamente ligado ao
momento em que as técnicas e metodologias de filmagem tornaram-se acessíveis para
cineastas em modestas condições de produção. Aliado a isto, existia um momento
favorável à problematização, em arena pública, de questões tradicionalmente vinculadas
à esfera do privado. É o caso, por exemplo, da segunda onda do feminismo estadunidense,
que fomentou ideologicamente este tipo de produção no país – este será um ponto ao qual
nos debruçaremos mais longamente ao longo do trabalho.
Ainda que não haja nenhum tipo de consenso em relação ao que seja a “primeira”
obra autobiográfica no cinema documentário, existem alguns pontos de partida históricos
que podem ser mencionados. Renov sugere a década de 1950 como um período
importante para uma virada epistemológica no campo do cinema de não-ficção. Filmes
de auteurs franceses como Jean Rouch (Les Mâitres Fous [1955]; Moi, un Noir [1958] e,
posteriormente, Chronique d’un eté [1961]) e Chris Marker (Lettre de Sibérie [1958]; Si
J’Avais Quatre Dromedaires [1966] e Le Mystére Koumiko [1967]) exibiam
procedimentos narrativos que inovavam a relação entre cineasta e narrativa que até então
figurava no cinema documentário. Com o desenvolvimento de uma narração em voz over
autoral (RENOV, 2004: xxi), o conhecimento fornecido pelos filmes destes diretores era
implicado por noções “parciais” ou “situadas" – em contraponto a um conhecimento
onisciente-didático predominantemente relacionado ao documentário clássico e portador
de um discurso ideológico, organizacional ou estatal. Os filmes aos quais se refere Renov
desenvolveram procedimentos de narração em over que indicavam a aproximação do
texto à identificação do cineasta, personificado na narrativa. Embora as narrações não
apresentassem um texto estritamente autobiográfico per se, sugeriam discursos dotados
de carga subjetiva e distanciados de uma ética educativa, anunciando tempos de mudança
em questões relativas à transparência da figura do cineasta na narrativa documentária.
Michael Renov (2014, p.36-37) e Jim Lane (2002, p.12-13) sugerem o
desenvolvimento do cinema avant-garde estadunidense como um momento em que a
noção de autobiografia floresceu de maneira recorrente. No caso, cineastas como Stan
27
Brakhage (Window Water Baby Moving [1959] e Thigh Line Lyre Triangular [1961]),
Jonas Mekas (Walden: Diaries, Notes and Sketches [1969]), Jerome Hill (Film Portrait
[1973]), Hollis Frampton (nostalgia [1971]) e James Broughton (Testament [1974])
desenvolveram películas que, de maneiras distintas, trabalhavam narrativamente
passagens de suas vidas individuais. Neste mesmo período, o grupo de cineastas baseado
em Cambridge e Boston realizou narrativas documentárias autobiográficas sob uma ótica
metodológica ligada à tradição do cinema direto estadunidense. Este momento, também
relativo a um primeiro desenvolvimento da noção de documentário autobiográfico, é
representado por cineastas como Ed Pincus (Diaries [1971 - 1976]), 1980), Miriam
Weinstein (My Father, the Doctor [1972], Living With Peter [1973], We Get Married
Twice [1973] e Call Me Mama [1976]), Jeff Kreines (The plaint of Steve Kreines as
recorded by his younger brother, Jeff [1974]) e Mark Rance (Mom, [1978]).
Apesar das diferenças metodológicas e estilísticas que separam um filme como
Lost, Lost, Lost de Jonas Mekas, de Diaries (1971 - 1976), de Ed Pincus, é possível dizer
que eles se aproximam em um ponto: o conhecimento produzido por suas narrativas
depende, em parte, da transposição da figura individual de seus diretores como parcela
integrante do eixo temático dos filmes. Não é preciso mais do que poucos minutos diante
dos dois filmes para entendermos, enquanto espectadores, que estamos em contato com
obras tanto distintas quanto parecidas. Se a construção autobiográfica de Mekas propõe
uma montagem fragmentada, trabalho de câmera instável, cortes mais rápidos e uma
narração em primeira pessoa um tanto hipnótica, no caso de Pincus assistimos à
apresentação de sua família em um estilo vérité, com som sincrônico, tomadas mais
duradouras e com a interação do cineasta com outras pessoas, por detrás da câmera. Em
ambos os filmes, entretanto, nosso visionamento abre-se para um registro semelhante.
Existe uma ciência de que estamos sendo colocados pelos cineastas em uma posição
privilegiada de suas individualidades, da vida que vivem para além da tela, no mesmo
mundo que nós habitamos.
Os exemplos acima, ligados ainda à própria origem da noção de autobiografia no
cinema documentário, apontam para a outra proposição de Renov, a de que “autobiografia
fílmica acontece de diferentes maneiras”. A importância de se entrar em contato com o
maior número possível de documentários, de diferentes décadas e países, em que exista
uma intenção autobiográfica da parte do cineasta – e que esta intenção seja clara para o
espectador – parece fundamental para o entendimento desta noção ampla de
28
“documentário autobiográfico”. É só a partir da consideração de um número grande de
filmes que podemos afirmar que se construiu uma “linguagem” espessa deste fenômeno,
repleta de nuances e variáveis, a partir das quais os filmes preservam de maneiras distintas
seus estatutos autobiográficos. Nesta espessura de linguagem estão contidas diferentes
opções metodológicas e estilísticas; recursos de dramatização, reconstrução e fabulação;
amplitude de escolha no que concerne ao processo de montagem; diversas opções de
temporalidade narrativa; variações nos processos de autoinscrição do cineasta, no que diz
respeito à sua corporeidade, entre outros aspectos. Esta mesma acepção de uma visão
expandida do fenômeno fez com que a autobiografia literária se tornasse um campo de
estudo que tem como objeto uma produção que se desdobra por séculos, mas que se
preserva dentro do mesmo universo teórico e conceitual devido a questionamentos-chave
ao redor dos quais as obras voltam a gravitar. Célebres trabalhos dentro do campo teórico
da autobiografia são reconhecidos também em outros gêneros classificatórios, como
solilóquios, confissões, na própria poesia lírica, ou em ensaios. O teórico Georg Misch
sustenta que muitos autobiógrafos, se fossem pessoas de originalidade, teriam modificado
os tipos existentes de composição literária ou mesmo inventado o seu próprio gênero
(MISCH, 1950, p.4). Segundo Avram Fleishman: “Não pode haver iconoclastia onde não
há ícones sagrados, e a história da Autobiografia assemelha-se mais a uma coletânea de
trabalhos dos homens, do que a um código de classificação bibliotecária.” (FLEISHMAN,
1983, p. 1). Jean Starobinski coloca “Autobiografia não é um gênero com regras
rigorosas. Ela apenas requer que certas condições sejam cumpridas(...): que a experiência
pessoal seja importante, que ela ofereça uma oportunidade para uma relação sincera com
outra pessoa” (STAROBINSKI, 1980, p. 77). A produção de documentários
autobiográficos é consistente e antiga o suficiente para que este mesmo olhar inclusivo
seja utilizado em relação à ideia de autobiografia no cinema documentário. Além disto,
entendemos que esta experiência se constrói e renova-se com os diversos lançamentos
que, ano após ano, dispõem de narrativas autobiográficas construídas de maneiras ainda
inventivas.
O que, entretanto, seria comum ao domínio do documentário autobiográfico? Se
pode haver tanta divergência estilística e narrativa entre filmes de diferentes décadas e
países, o que faz com que eles estejam de alguma forma unidos em suas preocupações?
Considerando a análise de diversos documentários autobiográficos, quais características
seriam as mais partilhadas por eles? Em primeiro lugar, é possível dizer que há, em todos
29
estes filmes, um movimento comum de autorrepresentação que, aqui, chamamos de
“autobiográfico”. De maneira ou outra, estes filmes são construídos a partir da
transposição da figura do diretor (do realizador) para a narrativa fílmica. Nestes filmes, o
diretor assume-se como uma força argumentativa, pessoalizada, que pode configurar-se
como personagem e que cuja densidade dentro da narrativa fílmica é, ora mais, ora menos,
acentuada. A ideia de autobiografia pode perpassar um desdobramento temático
desenvolvido pelo cineasta no que toca aspectos de sua vida como “indivíduo”: aspectos
de sua vida doméstica, privada. Em outras palavras, é comum que em documentários que
enxergamos como autobiográficos, passemos a conhecer a relação do diretor com algum
aspecto de sua vida individual, para além de entrarmos em contato com sua sensibilidade
“artística” cristalizada na narrativa cinematográfica.
O visionamento de um grande número de narrativas documentárias
autobiográficas revelou ampla variedade no que diz respeito à maneira através da qual o
cineasta utiliza-se do plano temático de seu filme para partilhar (e expressar) algum
pormenor de sua relação com a própria vida e com o mundo à sua volta. Através destes
documentários tomamos conhecimento, por exemplo, da relação entre o diretor e seu
próprio ofício, enquanto cineasta; da tematização ou visibilidade de seu cotidiano
enquanto indivíduo (a casa onde mora, os lugares que frequenta); seus laços familiares,
tanto no que diz respeito à sua família imediata (esposa, esposo, filhos) ou em relação à
memória familiar (pais, avôs, avós); questões da relação entre o cineasta e sua própria
etnia; da relação entre o diretor e sua própria sexualidade; questões relativas à posição do
cineasta (ou daqueles que são próximos a ele) enquanto migrante ou exilado; sua relação
com um lugar: onde nasceu, cresceu, ou onde vive atualmente; e, ainda, uma forte posição
personificada e subjetiva no que toca o desenvolvimento intelectual e analítico deste
cineasta em relação a algum assunto do mundo “social” – posição esta que pode,
eventualmente, adquirir um caráter mais aprofundado de autorrepresentação.
Para além dos autores do campo do cinema documentário que escreveram sobre
os filmes autobiográficos, outro importante subsídio para a reflexão encontra-se na teoria
crítica da autobiografia literária. Este campo configurou-se enquanto tal principalmente a
partir da segunda metade do século XX. O trabalho foi preconizado pela obra
enciclopédica de Georg Misch, que organizou a história da autobiografia em quatro tomos
– desde a antiguidade à contemporaneidade – em um trabalho que pôde ser concluído
apenas postumamente, finalizado por seus discípulos em 1969. Criticamente, entretanto,
30
um importante trabalho para o desenvolvimento do campo teórico da autobiografia foi o
texto “Conditions and limits of autobiography”, publicado em 1955 por Georges Gusdorf
(GUSDORF, 1980), no qual “todas as preocupações e questionamentos - filosóficos,
psicológicos, literários e, mais geralmente, humanistas - foram pela primeira vez expostos
claramente (...) e compreensivamente” (OLNEY, 1980a, p. 9). O texto de Gusdorf integra
a compilação “Autobiography - Essays Theoretical and Critical”, editorada por James
Olney em 1980 e que, por si própria, também se tornou uma organização clássica do
debate crítico que permeou o campo da autobiografia a partir de então. A compilação é
formada por textos que buscavam resgatar os questionamentos que faziam da
autobiografia um produto cultural autônomo e de longa e variada tradição, como em uma
espécie de busca por sua ontologia (em OLNEY [1980a], [1980b], GUSDORF [1980],
MANDEL [1980], STAROBINSKI [1980], SAYRE [1980]); bem como contemplou o
início de uma reação crítica marcada por um teor desconstrutivista, colocando sob
suspeita a possibilidade referencial da linguagem e, assim, da própria noção de
autobiografia (SPRINKLER [1980], RENZA [1980]).
A teoria da autobiografia é um universo conceitual que se desenvolve de maneira
autônoma a partir deste momento e que chega até os dias atuais. Evidentemente, a
profusão de possibilidades de escrita do eu na contemporaneidade e na era digital evoca
mais e distintas questões que o campo vem sistematicamente respondendo ao longo dos
anos. Mesmo que estes desdobramentos não sejam o foco deste trabalho, o contato com
alguns textos que originaram a teoria crítica da autobiografia literária revelou-se um bom
subisídio para a análise dos documentários autobiográficos. Em outras palavras, há algo
de semelhante entre narrativas literárias autobiográficas e documentários autobiográficos
que pode tentar ser resgatado. Tanto os textos quanto os documentários autobiográficos
baseiam-se na transposição da figura individual do escritor ou do cineasta para a narrativa
que está sendo criada. Esta transposição, em ambos os casos, particulariza o tipo de
conhecimento que é entregue pelas narrativas e propõe uma maneira de identificação
distinta – dos leitores ou espectadores – aos textos ou filmes. A literatura autobiográfica
relaciona-se com o documentário autobiográfico em um nível epistemológico. Neste
sentido, podemos nos valer de algumas reflexões dos autores que escreveram criticamente
sobre a autobiografia literária, porém buscando manter no horizonte as particularidades
ontológicas do cinema documentário para realizar as comparações. Finalmente, sugere-
se neste trabalho um olhar que contemple uma análise sobre as diferentes maneiras pelas
31
quais o cinema documentário de fato ofereceu, nos últimos cinquenta anos, um número
significativo de narrativas que se assume ou pretende-se autobiográfica, antes de buscar
analisar se as teorias importadas da autobiografia literária aplicam-se ou não no caso do
cinema. Entrar em contato com o fenômeno dos documentários autobiográficos no
máximo possível de sua extensão, para apenas depois buscar um possível amparo teórico-
analítico, mostrou-se um caminho impreterível para o tipo de trabalho aqui realizado.
1.2. O documentarista-autobiógrafo – cineastas públicos, cineastas anônimos
Uma primeira reflexão que pode ser feita sobre a particularidade do domínio dos
documentários autobiográficos perpassa a consideração dos cineastas-autobiógrafos em
relação à maior ou menor projeção pública de suas carreiras. A distinção entre o ato
autobiográfico praticado por indivíduos “anônimos” e por “personalidades” é um ponto
frequentemente revisitado neste campo teórico. No caso da literatura, é possível dizer que
existe uma popular noção de “autobiografia” como gênero literário comercial, sobre o
qual existe intenso trabalho de publicidade e propaganda e que figura frequentemente em
estantes de lançamentos em livrarias. Tratam-se, neste caso, dos relatos autobiográficos
desempenhados por indivíduos que detém notoriedade nos seus campos de atuação e que
são conhecidos publicamente por um grande número de pessoas. Notadamente, artistas
pop, políticos, líderes militares, esportistas, empresários de sucesso – estes são indivíduos
que reconhecem sua influência diante do público e buscam narrativizar a própria história
de vida a partir da transposição em linguagem. São obras que, embora distintas em forma,
originalidade ou “valor literário”, aproximam-se no que concerne à projeção pública que
seus autores detêm.
Neste sentido, há algo em comum em autobiografias de estrelas do rock
internacional como Eric Clapton ou Keith Richards, a autobiografia de Benjamin Franklin
ou a de Malcolm X, as memórias do político José Serra relativo ao período do exílio
durante a ditadura, ou mesmo a autobiografia da atriz brasileira Vera Fischer. Em todos
estes casos (e em muitos outros, pois a oferta deste tipo de título é bastante recorrente), o
relato autobiográfico faz serviço a uma persona pública que já é consolidada previamente
à escrita e ao lançamento dos livros. Ou seja, tratam-se de narrativas autobiográficas cujos
autores são conhecidos pelo leitor antes mesmo do ato da leitura. Na maioria desses casos,
32
o interesse do leitor por este tipo de relato autobiográfico existe devido à fama
preestabelecida de seu autor. Da mesma maneira, a intenção autobiográfica também é
atravessada pela ciência da projeção pública de seu escritor. Segundo Georges Gusdorf,
narrativas autobiográficas de pessoas públicas compõem uma espécie de propaganda
póstuma para a posterioridade que, caso não existissem, colocariam em questão o risco
do esquecimento ou da estima a estas personalidades (GUSDORF, 1980, p. 36). Gusdorf
argumenta que a autobiografia realizada por estes autores adquire aspecto de um ponto
de vista “extra”, porém pessoalizado por eles próprios, que ajuda a compor uma
“paisagem” de suas personalidades, alimentando o desenvolvimento de uma persona que
já é pública. Há, desta forma, uma relação que aproxima este tipo de autobiografia à
construção de uma História “oficial”. Mesmo que existam tematizações de motivos
privados da vida destes indivíduos, ou seja, daquilo com que não temos contato diante de
seus feitos públicos (vitórias militares, discos gravados, eleições ganhas, atuações em
filmes), a narrativa sempre apontará para a projeção pública preestabelecida pelos
autores. Uma artista como Rita Lee, por exemplo, só decide colocar a pena no papel e
escrever sua história pois sabe que é Rita Lee, sendo esta uma ciência que nunca se
esvanece durante a escrita e no vislumbramento da projeção da obra autobiográfica para
o grande público.
Existe outra faceta da autobiografia, entretanto, que traz particularidade a esta
modalidade de escrita como linguagem autônoma. Historicamente, a autobiografia
tornou-se um veículo potencial para a transposição em linguagem da vida de indivíduos
anônimos, sem projeção pública anterior ao momento da escrita. Neste caso, trata-se da
possibilidade de narrar sobre si mesmo – e a partir de si mesmo – encarando a vida
própria, embora “anônima”, como objeto sobre o qual pode-se construir conhecimento.
A possibilidade de tornar-se célebre, portanto, concretiza-se com o reconhecimento de
uma narrativa sobre a vida própria que acontece após a escrita autobiográfica. Não existe,
nestes casos, o apontamento, direto ou indireto, a algum tipo de persona pública
justamente devido à sua prévia ausência, bem como inexiste a intenção de glorificação
ou alimentação deste mesmo tipo de personalidade. A ausência da necessidade de
referenciar feitos de uma persona pública caracteriza, dominantemente, uma produção de
conhecimento autobiográfico distinto. Este conhecimento tende a apontar para os
meandros de existência privada, pelo fato de que qualquer feito público – no sentido da
“fama” – não ultrapassa um nível de normalidade. É o caso de autores que, segundo
33
Gusdorf, “não estão contentes em oferecer ao leitor uma espécie de curriculum vitae,
retraçando passos de uma carreira oficial que, em relação à sua importância, não é mais
do que medíocre” (p. 37). Trata-se, segundo o autor, de uma outra natureza, sendo que o
ato da memória é levado por si próprio e que rememorar o passado satisfaz a inquietude
de uma mente que é ansiosa por recuperar o tempo perdido, fixando-o em um texto (a
autobiografia), escrito para a eternidade. A Autobiografia do homem “privado”, por assim
dizer, sustenta outro tipo de preocupação. Nas palavras do autor:
A aparição da autobiografia implica uma nova revolução espiritual: o
artista e o modelo coincidem, o historiador pega a si próprio como
objeto. Isso quer dizer que ele se considera um grande indivíduo, digno
da lembrança dos homens mesmo que, na realidade, ele seja um
intelectual mais ou menos obscuro. Aqui, entra em jogo uma nova área
social que inverte as classes e reajusta valores. Montaigne tinha certa
proeminência, mas era descendente de uma família de mercadores;
Rousseau, ninguém mais do que um cidadão comum de Genebra, era
uma espécie de aventureiro literário. Mesmo assim, ambos, apesar de
suas baixas escalas no “palco” do mundo, consideravam que seus
destinos eram dignos de serem transmitidos como exemplo. Nosso
interesse volta-se da história pública para a história privada: juntos aos
grandes homens que conduzem a história oficial da humanidade,
existem homens obscuros que conduzem a campanha de suas vidas
espirituais com o peito, travando batalhas silenciosas cujos meios e fins,
cujos triunfos e reveses, também merecem ser preservados na memória
universal. (GUSDORF, 1980: 31-32. Tradução Nossa.)
Existem, naturalmente, algumas distinções desta ideia se aplicada em relação aos
documentários. Se todos que podem segurar uma caneta e escrever uma frase podem
realizar autobiografia, como sugere James Olney (1980, p. 3), o mesmo fenômeno não
encontra correspondente no universo dos documentários autobiográficos. As grandes
personalidades do mundo público (políticos, artistas de destaque, líderes militares, líderes
religiosos ou figuras empresariais notáveis) não se utilizam do meio cinematográfico para
estabelecer relatos autobiográficos de suas carreiras e de suas vidas. Muitas destas figuras,
sim, têm suas vidas referenciadas e narrativizadas de maneira cinematográfica, porém não
sob a ótica da autobiografia. O trabalho biográfico em relação a estas figuras fica
geralmente incumbido à produção de terceiros e acontece tanto a partir de narrativas
documentárias (Senna [Asif Kapadia, 2010), George Harrison: Living in the Material
World [Martin Scorsese, 2011], Marley [Kevin MacDonald, 2012], e mais um sem-
número de exemplos) ou de relatos ficcionalizados, os docudramas (JFK [Oliver Stone,
34
1991], Gandhi [Richard Attenborough, 1982], Lula, o Filho do Brasil [Fabio Barreto e
Marcelo Santiago, 2009] e tantos outros).
É possível, entretanto, vislumbrar uma situação análoga a esta, que seriam as
narrativas autobiográficas realizadas por indivíduos que, de alguma forma, são
personalidades dentro do universo cinematográfico. Tratam-se de diretores que detém
certo reconhecimento por suas carreiras, sendo que este reconhecimento nunca passa
incólume pela construção narrativa autobiográfica. Não são, evidentemente, figuras
anônimas. Tome-se como exemplo um filme como JLG por JLG - Auto-retrato de
Dezembro (JLG/JLG - autoportrait de décembre, Jean-Luc Godard, 1994), cuja narrativa
provê conhecimento acerca do ponto de vista de Godard dentro da história do cinema, ou
em relação ao próprio ato criativo. Parte significativa do objetivo do filme como todo
reside no fato de entrarmos em contato com a visão de Godard a respeito de algum aspecto
de sua própria vida. Nosso visionamento é guiado pela acepção de Godard como um dos
principais cineastas da segunda metade do século XX, sendo que a construção de
conhecimento do filme cairia por terra caso esta informação fosse negligenciada. Como
sustentamos em relação a Rita Lee, o próprio Godard intenciona realizar uma narrativa
autobiográfica sabendo que ele é Godard – conhecendo e analisando seu lugar no palco
do mundo e vislumbrando que o filme será recebido como tal. Algo semelhante pode ser
esperado dos filmes autobiográficos de Agnès Varda, como Os catadores e eu (2000) ou
As Praias de Agnes (2008). Ambos os filmes oferecem reflexões acerca do ofício da
cinematografia e partem da acepção de Varda como uma cineasta que, como Godard,
detém uma longa e prestigiosa carreira. Neste mesmo sentido pode-se pensar a relação
entre Klaus Kinski e Werner Herzog exposta em Meu Melhor Inimigo - Klaus Kinski
(Werner Herzog, 1999) ou a viagem de Wim Wenders ao Japão em Tokyo-Ga (Wim
Wenders, 1985). Seja para o cineasta anônimo ou para grandes auteurs, entretanto, a
autobiografia tem exercido um similar papel sedutor:
Mas [a autobiografia] é também (ou, pode ser e frequentemente tem
sido) a mais rarificada e autoconsciente das performances literárias (...)
Duvido que muitas pessoas afirmariam que autobiógrafos mais antigos
como Santo Agostinho, Montaigne ou Rousseau faltavam com
consciência literária e valor literário, mesmo que o atormentado e
hipermoderno self talvez não tenha existido na época deles. (...) a
autobiografia exerce algo como uma atração fatal para quase todos os
homens e mulheres que se chamam de “escritores”. O desafiador risco
35
de escrever sobre suas próprias vidas direta ou indiretamente parece ter
um apelo irresistível para todos. (OLNEY, 1980, p. 4. Tradução nossa.)
A maior parte dos documentários autobiográficos encontra-se no universo do
cinema “muito independente” (LANE, 2002, p.8) e de diretores que podem ser
considerados antes “anônimos” do que personalidades públicas. O anonimato, neste caso,
refere-se mais a indivíduos instrumentalizados na técnica e na produção cinematográfica,
mas que cujas carreiras têm pouca projeção pública. Tratam-se de cineastas cuja
publicidade não vai muito além do círculo de relações onde estão inseridos
profissionalmente. Neste sentido, o documentário autobiográfico é um palco
frequentemente habitado por cineastas em início de carreira ou, ainda, profissionais de
longa data que não têm vasta produção de títulos ligados à sua autoria direta. Há também
uma série de documentários autobiográficos que foram realizados por pesquisadores e
professores de cinema (como Marco Williams, Tom Joslin, Robb Moss, Ross McElwee,
Alfred Guzzetti, Consuelo Lins, David Perlov, Ed Pincus3). Em geral, tratam-se de
cineastas cujas histórias e de cujas vidas sabemos muito pouco antes de assistirmos a seus
filmes – salvo, é claro, nas situações em que o espectador tem alguma relação com o
círculo profissional no qual o diretor está inserido. O autor Jim Lane aborda estas questões
e vê o cineasta-autobiógrafo como um indivíduo que não é uma figura pública e que,
através do relato de algum aspecto relativo à sua vida privada, produz História não-oficial:
Eles não são artistas com um corpo extenso de trabalho estabelecido
que pode engendrar grande reconhecimento ou um público numeroso.
O documentarista autobiógrafo é, mais frequentemente, um cineasta
trabalhando em anonimato, de maneira muito local e sob restrições de
baixo-orçamento. “Entramos” no filme com pouca preconcepção da
história do autor, uma situação correlata às autobiografias literárias não-
tradicionais, como as slave narratives, narrativas de captura, diários e
memórias. (LANE, 2002, p. 4. Tradução Nossa)
A reflexão de Lane em relação ao anonimato do cineasta e ao baixo-orçamento
empregado raramente foge à regra. É este tipo de relação, por exemplo, que aproxima
3 Marco Williams, professor de cinema na Tisch School of the Arts (NYU); Tom Joslin lecionou na University of Southern California; Robb Moss, Ross McElwee e Alfred Guzzetti lecionam no departamento VES da Universidade de Harvard; Consuelo Lins é docente da Escola de Comunicação da UFRJ; David Perlov foi professor universitário da Universidade de Tel-Aviv à época da feitura de seu diário fílmico; Ed Pincus foi professor do MIT Film Section e da Universidade de Harvard.
36
filmes distintos metodologicamente e estilisticamente como o Diário (Yoman) de David
Perlov, realizado entre 1973 e 1983 a um filme como Silverlake Life (1993, Tom Joslin e
Peter Friedman) ou Tongues Untied (Marlon Riggs, 1989). Há em todos estes cineastas
uma noção de anonimato diante do grande “palco do mundo”, como observou Gusdorf.
Todos eles, longe de serem personalidades “públicas”, criaram narrativas documentárias
autobiográficas nas quais pode-se detectar a intenção de compartilhar aspectos de suas
vidas individuais, privadas. Ainda nesta mesma linha de pensamento, diversos cineastas
tornaram-se reconhecidos justamente a partir da realização de narrativas documentárias
autobiográficas. Ross McElwee, o objeto central desta pesquisa, é certamente um dos
exemplos mais representativos. O cineasta obbteve reconhecimento com Sherman’s
March e dedicou sua carreira posterior aos desdobramentos desta noção de autobiografia.
O mesmo se a aplica a Ed Pincus que, apesar de já ter realizado diversos filmes, é o diário
filmado Diaries (1971 - 1976) que promove certa projeção de sua carreira na história do
cinema documentário e que influencia uma série de jovens cineastas da região de
Cambridge. Alan Berliner e Jonathan Caouette são, também, outros cineastas que se
tornaram reconhecidos pela tematização recorrente de aspectos de suas individualidades.
Neste mesmo sentido, pode-se dizer que a busca de Kiko Goifman por sua mãe biológica
em 33 (2002) projeta mais consistentemente sua carreira como documentarista, recebendo
também atenção da grande mídia em relação ao caso. Os Dias com Ele (2013),
documentário autobiográfico dirigido por Maria Clara Escobar, até então desconhecida,
foi o primeiro longa-metragem realizado pela cineasta e fora recebido calorosamente pela
crítica e pelo circuito de festivais.
1.3. Estilo e intencionalidade em documentários autobiográficos
Diferentes recursos estilísticos podem ser empregados para a construção de
narrativas documentárias que lemos como autobiográficas. E, ao mesmo tempo, este
“conhecimento autobiográfico” que é produzido não depende, necessariamente, de
nenhuma ferramenta narrativa específica. Evidentemente, há alguns recursos narrativos
que foram de maneira dominante relacionados à ideia de autobiografia no cinema
documentário. Em especial, a narração em voz over a partir de um texto em primeira
pessoa, narrada pela voz do próprio cineasta, é um dos elementos mais recorrentes em
narrativas documentárias autobiográficas – talvez esta seja a principal ferramenta
37
narrativa responsável pela popularização do termo “Filmes em primeira pessoa”,
frequentemente usado para a designação destas obras. A narração em over está presente
em documentários autobiográficos de cineastas como Agnès Varda, Alan Berliner, Nina
Davenport, Petra Costa, Kiko Goifman, Tony Buba e tantos outros. O recurso da voz over
em narrativas autobiográficas, por sua vez, pode ser construído de diferentes maneiras.
Jonas Mekas o faz a partir de um texto incantatório em um filme como Lost, Lost, Lost.
A voz over de Ross McElwee é um dos elementos pelos quais sua autoria é
frequentemente reconhecida, apresentada em textos rigorosamente construídos que
aparecem em todos os seus filmes a partir de Backyard (1984). Ao longo dos seis
capítulos do Diário, David Perlov utiliza-se da narração em primeira pessoa, entre outras
funções, como uma espécie de discurso indireto, por meio do qual reconstrói os diálogos
que ocorreram nas situações filmadas, como substituto à utilização do som direto
sincrônico. Nestes e em muitos outros casos, entretanto, a voz over pode ser relacionada
ao conhecimento produzido a partir da expertise do cineasta enquanto indivíduo – um
desenvolvimento intelectual analítico que se debruça sobre as imagens e que não traz em
si a possibilidade de identificação da circunstância espaço-temporal na qual foi escrita ou
gravada. A interação de um cineasta por detrás da câmera com as pessoas diante da lente
também é um elemento de autorreflexão frequentemente empregado em narrativas
documentárias autobiográficas. Filmes dos cineastas advindos da tradição de Cambridge
são exemplos desta abordagem, como é o caso de Ross McElwee, Nina Davenport (estes,
novamente), Ed Pincus, Marco Williams. Ou, ainda, colocar-se na frente da lente ou
filmar-se diante de um espelho é outro tipo de ferramenta estilística utilizada por
cineastas-autobiógrafos como via de processo autorreflexivo.
Como frisado, o conhecimento produzido por documentários que lemos ou
recebemos como autobiográfico independe – necessariamente – destas ou de outras
ferramentas narrativas: não é preciso que escutemos a voz de um cineasta, seja por detrás
da câmera ou através de uma narração em over, ou mesmo que ele nos torne visível seu
corpo ou rosto. Um exemplo interessante neste sentido é o documentário The Alcohol
Years (Carol Morley, 2000). No filme, a cineasta Carol Morley toma depoimentos de
diversas pessoas que faziam parte de sua vida pessoal na cidade de Manchester durante a
maior parte da década de 1980. Tendo deixado a cidade e retornando depois de muitos
anos, Morley tem o interesse de rememorar (ou descobrir) um período de sua vida
marcado pelo consumo excessivo de álcool e por sua frequência no circuito de casas
38
noturnas underground de Manchester. Através destes depoimentos, entramos em contato
com detalhes do comportamento social da cineasta durante o período. Passamos a saber
os pormenores de situações causadas pelo abuso do álcool ou, ainda, conhecemos detalhes
da vida sexual de Morley naquela circunstância. Dado o tom dos depoimentos das pessoas
que compartilharam aquele momento com a cineasta, torna-se claro que a presença de
Morley nas situações em questão poderia não ser algo tão prazeiroso. Se o período
marcado por este comportamento poderia ser encarado como vexatório para muitas
pessoas, ou como algo que preferivelmente pudesse ser “deixado no passado”, o caso de
The Alcohol Years acaba por fazer o contrário, resgatando uma história de juventude já
esquecida. Enquanto “descobre a respeito de si”, Morley pouco “advoga” pela própria
história: os depoimentos são tomados com uma câmera fixa (não há, nestes momentos,
uma relação corporal da diretora com a câmera que é evidenciada), não escutamos sua
voz em nenhum momento, tampouco a vemos diante da lente como parte do
conhecimento autobiográfico produzido pelo filme. É apenas a partir do depoimento de
seus amigos, construídos sobretudo em um discurso em segunda pessoa (dirigido
diretamente à cineasta, que imaginamos estar atrás da câmera), que se traça um panorama
da personalidade de Morley durante o período.
Figura 1: Recorte de jornal que abre a narrativa de The Alcohol Years (Carol Morley, 2000)
É evidente que um filme como The Alcohol Years depende de uma postura ativa
da parte da cineasta-autobiógrafa de, fundamentalmente, “querer” – de intencionar que a
39
narrativa cinematográfica que está dirigindo produza conhecimento a respeito de sua
própria vida. Em outras palavras, mesmo que Carol Morley abstenha-se de lançar mão de
elementos narrativos que façam o aspecto autobiográfico tomar forma a partir de uma
expertise analítica ativada por um discurso direto (como no caso de uma voz over) ou da
transposição “palpável” de sua consciência no momento da tomada (como se Morley
respondesse com sua voz, ou realizasse movimentos de câmera vigorosos diante do
depoimento de seus amigos), existe o desejo fundamental de criar uma narrativa fílmica
a partir de um universo temático que aponte para si própria. No caso de The Alcohol
Years, é evidente que existe uma intenção autobiográfica que é “pessoalizada” pela
cineasta desde o desejo de filmar pessoas que falem de seu passado, pela construção do
argumento via montagem, pelos trechos de imagens de cobertura que dramatizam os
episódios narrados pelos depoimentos, entre outros elementos. Em outras palavras, aquilo
que chamamos de “filme” só existe a partir do trabalho de indivíduos pensantes – neste
caso, fundamentalmente, a própria cineasta – em uma articulação cinematográfica. O
filme de Morley, entretanto, evidencia a existência de alternativas estilísticas para a
construção de um discurso autobiográfico a partir de ferramentas menos comuns neste
domínio de filmes.
Outro caso interessante na mesma linha de raciocínio é o documentário
autobiográfico polonês Such a good by I gave birth to (Takiego pieknego syna urodzilam),
dirigido por Marcin Koszałka4 e lançado em 2000. O curta-metragem de vinte e cinco
minutos foi o debut de Koszałka como diretor, quando ainda era estudante de cinema na
cidade de Katowice. No filme, Koszałka nos coloca na “privilegiada” posição, enquanto
espectadores, de experienciar um pouco de seu cotidiano na casa em que mora com seus
pais. Durante quase meia-hora, testemunhamos a situação caótica que o cineasta parecia
vivenciar diariamente. Assistimos quase que ininterruptamente a uma avalanche de
xingamentos, gritaria, discussões e criticismo que a família do diretor tem para consigo.
Diante da câmera de Koszałka, seus pais criticam os aspectos da vida do filho, questionam
seu comprometimento como estudante, a serventia da carreira que escolheu para si
próprio, a qualidade daquilo que é ensinado na faculdade onde estuda (afinal, qual seria
4 Such a good by I gave birth to obteve reconhecimento significativo na Polônia, tendo ganhado também
alguns prêmios em festivais europeus. Koszałka realizou dois outros filmes que se apresentam como
“continuações” de seu documentário autobiográfico, em que assistimos ao desenvolvimento da vida
individual do diretor e a relação com sua família. São eles It will be alright (Jakos to bedzie, 2004) e All
day together (Caly dziem razem, 2006).
40
a serventia de fazer um filme dentro da própria casa, senão a de desperdiçar tempo e
dinheiro?), bem como maldizem as saídas noturnas do diretor, sua vida social e sua falta
de recursos materiais. A narrativa de Koszałka nos apresenta seu ambiente doméstico
como um cenário praticamente “mais estranho que a ficção”, onde parece existir uma
histeria coletiva de tons hiperbólicos e absurdos. O aspecto mais interessante de Such a
good by I gave birth to para esta discussão reside no fato de que há a impressão de que
Koszałka “não precisa fazer nada” para expor a bizarra situação em que vive: não há
necessidade de nenhum tipo de manifestação sua, de provocação com a câmera, de algum
tipo de construção argumentativa em voz over, de algum diálogo. Como efetivamente
acontece em diversas das sequencias do filme, apenas ligar a câmera e sentar-se no sofá
parece suficiente para que a transposição da experiência cotidiana de Koszałka para o
filme aconteça. Em determinadas situações, portanto, como o filme de Koszałka mostra,
sua intenção autobiográfica é cumprida a partir da crença na possibilidade da câmera em
frisar determinadas circunstâncias espaço-temporais – uma maneira do registro
referenciar-se ao mundo material e à vida do diretor que é suficiente para saciar sua visão
artística-narrativa autobiográfica.
Figura 2: O diretor Marcin Koszałka sendo sabatinado por sua mãe, em Such a Nice Boy I gave
Birth to (1999)
41
A partir destes exemplos citados, podemos resgatar novamente a noção de “baixo-
orçamento” sobre a qual escreveu Jim Lane. A sugestão do autor, mais do que se referir
à noção tradicional de orçamento de produções cinematográficas, aponta para uma
proximidade do cineasta com os meios de feitura de seu próprio filme. A maioria dos
documentários autobiográficos contam com equipes pequenas (muitos cineastas, como o
próprio Koszałka ou Ross McElwee, trabalham majoritariamente solo em suas
produções) e com uma participação efetiva do diretor em uma ou muitas das funções
dentro do processo de realização dos filmes: fotografia, operação de câmera, captação de
som direto, narração (tanto a concepção do texto quanto a performance de sua gravação),
montagem e produção. Há uma noção de simplicidade e de “faça você mesmo” que
circunda as narrativas documentárias autobiográficas, de maneiras mais ou menos
acentuadas.
Tome-se como exemplo um filme como o brasileiro Os Dias com Ele (Maria Clara
Escobar, 2013), construído a partir de certa opacidade dos meios de produção e por
condições de filmagem modestas. O filme retrata o período de convívio entre a cineasta
e seu pai, Carlos Henrique Escobar, filósofo, professor e militante do partido comunista
brasileiro, exercendo intensa atividade durante a ditadura militar. O pai da cineasta
mudou-se para Portugal após sua aposentadoria e passou a viver isoladamente em
anonimato, ainda durante a pré-adolescência da diretora. O filme sugere a relação ausente
do pai para com a filha/cineasta, apontando, por exemplo, que a comunicação entre ambos
acontecia de maneira epistolar. A narrativa toca aspectos de um conhecimento “público”,
quando o pai de Maria Clara Escobar narra trechos de sua história como militante,
incluindo em seu depoimento os episódios de prisão e tortura pelos quais passou. Por
outro lado, o eixo temático de Os Dias com Ele também traz conhecimento acerca da
relação delicada entre pai e filha, mediada pela câmera e pela intenção da cineasta de
realizar o filme. Parte significativa da construção narrativa do filme alicerça-se na
utilização dos momentos normalmente encarados como o “resto” do material bruto,
trechos de material primeiramente separados para que seja descartado na montagem, “as
bordas”. Neste material incluem-se diversos intercâmbios entre a cineasta e seu pai, como
longas discussões sobre o projeto do filme que Maria Clara Escobar estaria efetivamente
querendo construir. A potencialidade autobiográfica de Os Dias com Ele reside no tête-
à-tête entre a filha e o pai, que transpira nuances de uma relação pautada na ausência e na
falta de convívio de ambos.
42
O visionamento de Os Dias com Ele sugere, na própria narrativa, que o trabalho
de captação de imagem é realizado pela própria cineasta. Há no filme o diálogo de Maria
Clara Escobar, sozinha, frente-a-frente com o pai, como matéria-prima narrativa, bem
como existe a incorporação da dúvida e de aspectos do processo de feitura do filme como
elementos estilísticos. Como em tantos outros documentários autobiográficos, Os Dias
com Ele pode suscitar uma sensação – provavelmente mais ilusória do que efetivamente
concreta – de que qualquer indivíduo com um aparato de filmagem poderia eventualmente
aventurar-se no desenvolvimento de uma narrativa autobiográfica a respeito de
determinado aspecto de sua vida individual que julga ser pertinente ou interessante
cristalizar em linguagem cinematográfica. “Simplicidade” ou “baixo-orçamento”,
entretanto, também não é uma regra fixa dos documentários autobiográficos e é neste
sentido que podemos pensar em Elena (2012), também brasileiro, dirigido por Petra
Costa, como um contraponto a esta ideia. As condições de produção de um filme como
Elena acarretam algumas reflexões acerca do conhecimento autobiográfico produzido por
sua narrativa.
Elena nos conta a história da irmã de Petra Costa, a atriz Elena Andrade, que se
suicidou em Nova Iorque no ano de 1990, quando a diretora tinha apenas sete anos. Com
evidentes inclinações artísticas, Elena decidiu estudar dança e teatro ainda adolescente.
Morou em São Paulo, onde integrou o grupo de teatro Boi Voador na década de 1980, e
rumou a Nova Iorque para iniciar os estudos universitários. Segundo o filme nos conta,
os planos artísticos e profissionais de Elena nos Estados Unidos não teriam dado tão certo,
sendo que a atriz teria em seguida voltado ao Brasil com sinais de depressão. Certo tempo
depois, Elena retorna aos EUA, desta vez acompanhada de sua mãe e de sua irmã, Petra,
cuja formação escolar deu-se também em solo americano. É neste momento da vida que
a atriz ingere um coquetel fatal de aspirinas, álcool e medicamentos psicotrópicos,
deixando uma carta de suicídio. Petra, depois de crescida, decide rumar os mesmos passos
da irmã em uma carreira de atriz. O filme constitui-se narrativamente como uma “carta”
endereçada à irmã, na qual a diretora medita acerca de momentos em que viveram juntas
e sobre o período pós-morte, analisando a constante presença de Elena em sua carreira,
em sua memória e na dor que carrega consigo.
Elena obteve significativo frisson da parte do público e da crítica, apresentando-
se como um filme detalhadamente construído, em que há pouco espaço para improvisos
de qualquer sorte. O documentário conta com uma numerosa equipe, muito maior do que
43
costumeiramente vê-se em outros documentários autobiográficos. São mais de trinta
pessoas que trabalharam ativamente no filme, em funções como as de roteiro, direção de
fotografia, direção de arte, preparação de elenco, som direto, edição e mixagem de som
(sound design), pesquisa de material de arquivo e composição de trilha sonora original.
Todo este trabalho transparece no filme. É evidente o rigoroso planejamento de cada um
destes elementos que compõe sua narrativa, resultando em uma qualidade técnica
impecável pela qual o filme foi elogiado. Aliado a este coordenado trabalho de produção
– que por si só requer muito tempo e dinheiro – o filme contou com um planejamento de
divulgação significativo (de vídeos virais no YouTube a propagandas em salas de cinema)
que também contribuiu para sua popularização.
A utilização de recursos estilísticos diversos e bem trabalhados no filme não fere,
por si só, o estatuto autobiográfico que reside em Elena. Pode-se entender sua narrativa
como a “busca” da diretora em tentar expressar a nós, espectadores, o que permanece da
irmã em sua memória e como as duas ainda estão ligadas intimamente, mesmo com o fato
de que Petra era ainda uma criança quando Elena se suicidou. Entramos em contato com
a estrutura familiar da diretora, sabemos as cidades onde morou, a profissão de seus pais,
sua classe social, as consequências do suicídio da irmã em sua vida e na de sua mãe, entre
outros elementos que apontam diretamente para a vida individual de Petra Costa. Para
além disso, o filme une o particular ao universal ao tematizar o aspecto da escolha do
“caminho das artes”, neste caso principalmente ligado ao universo das artes cênicas e do
espetáculo, como também naquilo que tange ao universo do feminino dentro deste
ambiente.
Por outro lado, a utilização de uma grande equipe responsável pelos mínimos
detalhes do filme é, de fato, um aspecto incomum se considerarmos pragmaticamente um
corpus mais extenso de documentários autobiográficos. Como frisado, a maioria deles é
realizada a partir de equipes bastante enxutas e uma parte significativa deles conta com
apenas o próprio cineasta como responsável pelo núcleo duro da produção da narrativa.
É possível sugerir que esta característica esteja ligada ao fato de que o contato com
narrativas autobiográficas, de diferentes suportes, pressupõe um constante exercício de
conexão entre seu autor e o lugar da produção do discurso. Em outras palavras, um filme
como Elena, cuja construção narrativa e roteirização é tão diluída em outras forças
pensantes (outros indivíduos), pode de alguma forma nos afastar do estabelecimento de
um elo com a diretora, distanciando-nos de sua subjetividade individual e do contrato de
44
intimidade entre cineasta e espectador que é determinante em vários outros
documentários autobiográficos. Por este motivo, as divagações e fabulações narradas por
Petra Costa a respeito de sua infância, em alguns momentos, podem gerar relativa
desconfiança da parte do espectador, que coloca o discurso autobiográfico da diretora sob
suspeita. Seriam estes sentimentos e lembranças a respeito de sua vida algo que a diretora
decidiu, em sua solidão, “de peito aberto”, compartilhar com nós, os espectadores? Até
onde teriam sido adaptados para servir à proposta estética e narrativa de Elena? Não se
trata, evidentemente, de abstrair o fato de que existe construção em qualquer obra
autobiográfica – da mais naturalista à mais fabulativa –, porém, muitos dos filmes
parecem apostar em um elo mais firme entre espectador e cineasta do que faz Elena.
Ao optar por uma equipe mais numerosa e por um esquema de produção mais
ambicioso em prol de um acabamento estético acentuado em diversas áreas do filme,
pode-se pensar que Petra Costa sacrifica, assim, parte de sua aproximação ao espectador.
O filme impressiona por sua beleza formal e pela construção narrativa cuidadosamente
pensada, mas a tradicional “autoridade” da linguagem cinematográfica, asséptica e
dificilmente reproduzível, está presente. Em outras palavras, parece mais difícil um
espectador considerar que poderia realizar um filme como Elena com poucos recursos ou
sem um esquema de produção cinematográfico tradicional amparando-o. Muitos
documentários autobiográficos, entretanto, fazem da possível subversão desta ordem um
aspecto que traz particularidade ao fenômeno.
Jim Lane sugere a proximidade que costuma existir entre o espectador e o diretor
de documentários autobiográficos no processo de feitura do filme. O documentário
autobiográfico pode inspirar uma noção de simplificação e clareamento do aparato da
produção cinematográfica que suscita ao espectador a ideia de que ele próprio poderia
cristalizar sua vida em filme:
Fazer filmes e vídeos torna-se uma parte de um mundo imaginável
para o espectador. Da mesma maneira que os leitores leem uma
autobiografia escrita com a sensação de que eles poderiam escrever
suas próprias histórias de vida, os espectadores de um documentário
autobiográfico assistem ao filme ou vídeo com uma sensação de que
poderiam filmar a própria vida. (...) Ao complicar uma reivindicação
referencial, a reflexividade no documentário autobiográfico serve
tanto para revelar o “fazer cinema” como um processo menos
intimidante para o espectador, quanto para mostrar que o cinema é
45
parte do mundo real do sujeito autobiográfico. (LANE, 2002, p. 18.
Tradução Nossa).
De fato, esta proposição de Lane parece efetivamente verídica no caso da obra de
cineastas-autobiógrafos como Ross McElwee, Tom Joslin, Marcin Koszałka, Alfred
Guzzetti, Nina Davenport, Maria Clara Escobar, Jonas Mekas, entre tantos outros
exemplos. Diversos dos filmes destes cineastas inspiram, de maneira ou outra, que a
possibilidade autobiográfica não se apresenta tão distante, técnica e metodologicamente,
de “pegar a câmera e filmar”. De maneira análoga à sugestão de James Olney – “aqueles
que podem escrever uma frase podem fazer autobiografia” –, é possível fazer coro à de
Lane, quando aponta que diversos documentários autobiográficos podem sugerir o “fazer
cinema” como um processo menos intimidante ou inatingível para o espectador comum.
Ainda neste mesmo raciocínio, sugere-se também que o elo entre cineasta e espectador
parece fortalecer-se nas narrativas em que a figura do cineasta transparece como sendo
responsável por parte significativa da produção do discurso – produção, filmagem,
finalização, narração.
Porém, cabe o questionamento: um filme como o de Marcin Koszałka – um dos
casos em que a situação no qual o cineasta está inserido parece “falar por si só” dentro da
narrativa – seria, de alguma forma, mais autobiográfico que a construção narrativa de
Petra Costa e sua extensa equipe para a feitura de Elena? Isto parece, no limite,
indecidível. Como frisado por diversas vezes ao longo do texto, autobiografia nos
documentários existe de diversas formas, incluindo-se aí o trabalho narrativo de um filme
como Elena, pulverizado em um sistema de produção e de equipe menos modesto. É
possível vislumbrar que Petra Costa decidiu narrar a história de sua irmã (e de si própria)
a partir de uma construção narrativa que dependia, enfim, de um rigor de produção mais
enfatizado. Em outras palavras, a visão artística da diretora para com a narrativa de Elena
talvez dependesse de situações mais controladas, com menos abertura para a
indeterminação e com um trabalho de equipe profissional que, caso ausente, poderia não
atingir o resultado estético e plástico do filme. Por conseguinte, a ausência deste rigor
poderia deixar de oferecer o apelo emocional da narrativa, ou não entregar suas metáforas
de maneira satisfatória. Alguns paralelos com a literatura: a autobiografia de Malcolm X
(1965) não deixa de estar integrada à bibliografia autobiográfica fundamental americana,
mesmo tendo sido realizada em colaboração com Alex Haley; em outro espectro, são
inúmeros os casos de publicações autobiográficas – comumente no caso de celebridades
46
– que contam com a colaboração, em maior ou menor escala, de ghost writers. O caso de
Elena, sendo assim, contribui para meditação acerca destas questões e do fenômeno dos
documentários autobiográficos como todo, quando coloca sob questionamento as
potencialidades e os limites da possibilidade de transposição da experiência individual do
cineasta-autobiógrafo para a narrativa. De qualquer maneira, o próprio fato destas
questões virem à tona no caso da estrutura narrativa de um filme como Elena sugere que
os procedimentos metodológicos empregados por um diretor parecem interferir
dominantemente no adensamento ou relaxamento do laço entre cineasta e espectador que
rege a experiência de visionamento dos documentários autobiográficos.
1.4. Autobiografia e filmografias nacionais – um paralelo com o caso estadunidense
É possível mencionar, como fizemos até aqui, o caso de documentários
autobiográficos que receberam notoriedade pelo público cinéfilo e pelo circuito de
festivais e mostras. Muitos destes filmes se tornaram alvo de análises acadêmicas e foram
referenciados por autores dedicados ao tema. Da mesma forma, pudemos ressaltar o nome
de determinados cineastas como alguns dos principais representantes que trabalharam
com esta caraterística – Ross McElwee, Alan Berliner, Chantal Akerman ou Agnès Varda.
Apesar disto, deve-se apontar que a quantidade de documentários autobiográficos
lançados nos últimos cinquenta anos é grande o suficiente para que uma apresentação em
totalidade destes filmes não seja um trabalho simples. A exposição destes títulos pode ser
possível a partir do recorte de filmografias nacionais. Como exemplo, o autor Efrén
Cuevas o fez em relação ao documentário autobiográfico espanhol, em artigo de 2012
(CUEVAS, 2012), assim como o autor Pablo Piedras também buscou fazer em relação à
filmografia documentária autobiográfica argentina (PIEDRAS, 2014). No que concerne
ambas as filmografias, entretanto, a profusão de filmes que podem ser inseridos no
domínio do documentário autobiográfico é um fenômeno não tão antigo, tendo ocorrido
mais propriamente a partir da virada do milênio. É o caso também de outros países da
América Latina, incluindo-se aí o Brasil, que apenas após a década de 2000 vivenciaram
a popularização deste tipo de filme.
Na filmografia brasileira há algumas incidências particulares anteriores que
podem ser citadas. Pode-se mencionar o caso de David Perlov, que entre 1973 e 1983
realiza seu diário filmado, Yoman, dividido em seis capítulos e realizado para a televisão
47
britânica. É difícil, entretanto, sugerir que Yoman seja um projeto totalmente ou apenas
integrado à filmografia brasileira. Embora nascido no Brasil, Perlov muda-se para Israel
ainda jovem e naturaliza-se no país, onde desenvolve praticamente toda sua carreira
cinematográfica. Outra experiência predecessora da noção de autobiografia no
documentário brasileiro é realizada na década de 1980, com o filme Sagrada Família
(Everaldo Vasconcelos, 1981), resultante do intercâmbio entre o Atelier Varan de Paris,
idealizado por Jean Rouch, e a Universidade Federal da Paraíba, em 1981. No filme,
realizado em super-8 e em com influência do estilo direto, Everaldo Vasconcelos tematiza
sua própria intimidade do cotidiano da casa onde mora, proporcionando uma “imersão
dolorosa no seu universo familiar” (LIRA, 2016). Outro destes casos é o de Seams,
dirigido por Karim Aïnouz quando o diretor ainda era radicado nos EUA, e lançado em
1993. Narrado em inglês, Aïnouz narra aspectos de sua juventude, através de entrevistas
com sua avó e suas tias-avós, expondo a amargura de um machismo endêmico vivenciado
na região.
É apenas na década seguinte que alguns lançamentos colocaram efetivamente em
vigor o debate, fomentado tanto pela crítica quanto pela academia, acerca dos
documentários autobiográficos no Brasil. Podem-se destacar os filmes Um Passaporte
Húngaro (Sandra Kogut, 2001) e 33 (Kiko Goifman, 2002), como os dois principais
responsáveis pelo início da popularização da tematização autobiográfica como
possibilidade narrativa na filmografia brasileira. Em Um Passaporte Húngaro, Kogut,
neta de imigrantes europeus, filma sua trajetória em busca da possibilidade de obter um
passaporte de cidadania húngara. Sua jornada traz à luz os meandros burocráticos que
envolvem este tipo de empreitada, tanto no Brasil quanto na Europa, bem como dialoga
com uma História pública ao tematizar nuances da imigração europeia para o solo
brasileiro, nas primeiras décadas do século XX. Já em 33, Kiko Goifman engaja uma
busca pelo paradeiro de sua mãe biológica à ocasião do seu aniversário de trinta e três
anos. Sua empreitada, que deveria ser completada (ou abandonada) em trinta e três dias,
envolveu conversas com detetives, diálogos com sua família e outras pessoas que
poderiam ter alguma relação com o episódio de sua adoção. Com aspectos de thriller noir,
a narrativa de Goifman é realizada a partir de uma fotografia em preto-e-branco, trilha
sonora não-diegética e uma narração em voz over bem pontuada textualmente, escrita na
primeira pessoa.
48
O autor Jean-Claude Bernardet realiza uma análise a partir destes dois filmes na
ocasião da IV Conferência do Festival É Tudo Verdade, em abril de 2004, denominando-
os como “Documentários de Busca” (BERNARDET, 2005) – um texto que retomaremos
adiante neste estudo –, ressaltando características dos filmes que efetivamente soavam
como novidades na filmografia brasileira de então. É possível sugerir que o adensamento
do debate acadêmico ou especializado em relação às possibilidades de autobiografia no
cinema documentário brasileiro fomentou também um interesse maior pela realização de
filmes que se enquadravam nesta categoria. Da mesma maneira, pode-se enfatizar a
importância de Santiago (João Moreira Salles, 2007), lançado alguns anos depois, para a
profusão deste mesmo interesse. A meditação de Salles, que parte de sua relação com o
mordomo Santiago e amplifica-se em outros temas, realiza-se a partir da incorporação de
um material estilístico diverso – entre eles, trechos de material bruto, material de arquivo
e um texto em voz over narrado em primeira pessoa. Santiago adquiriu um papel de “novo
clássico” da filmografia brasileira pela influência que exerceu no desenvolvimento de
outras experiências afins. Para além destes, a produção documentária autobiográfica
brasileira consiste em filmes – alguns já citados – dos quais podemos destacar: O Chapéu
do meu Avô (Julia Zakia, 2004), Ariel (Mauro Baptista Vedia e Claudia Jaguaribe, 2006),
Person (Marina Person, 2006), Querida Mãe (Patricia Cornils, 2009), Canoa Quebrada
(Guile Martins, 2009), Babás (Consuelo Lins, 2010), Diário de Uma Busca (Flavia
Castro, 2010), Vó Maria (Tomás Van der Osten, 2011), Oma (Michael Wahrmann, 2011),
O Espelho de Ana (Jessica Candal, 2011), Elena (Petra Costa, 2012), Otto (Cao
Guimarães, 2012), Os Dias com Ele (Maria Clara Escobar, 2013), Vida (Tatiana Villela,
2013), Mataram meu Irmão (Cristiano Burlan, 2013), Retrato de Dora (Bruna Callegari,
2014) e O Futebol (Sergio Oksman, 2015).
Se a produção de documentários autobiográficos se intensificou no Brasil a partir
da segunda metade da década de 2000, outros países contaram com o ápice desta
característica algum tempo antes. O caso mais notável, certamente, é o dos Estados
Unidos, cuja filmografia detém uma relação muito próxima com o desenvolvimento da
própria noção de documentário autobiográfico. Apresentaremos algumas particularidades
do caso estadunidense como via de amplição da reflexão sobre o tema. Na década de 1990
as narrativas documentárias autobiográficas já haviam se tornado uma possibilidade
vigorosa e dominavam o universo do documentarismo independente e da televisão dos
EUA. Na edição de 1997 do festival de Sundance – palco tradicional de filmes
49
documentários em caráter de inovação criativa –, a categoria de documentários pessoais
ou autobiográficos compôs a maior parte dos filmes inscritos para avaliação e curadoria
(AUFDERHEIDE, 1997). Fenômeno semelhante ocorreu no programa de televisão
P.O.V. (Point of View), veiculado na emissora pública PBS, que se dedica desde 1988 à
exibição de documentários realizados independentemente. Desde sua criação, o P.O.V.
foi responsável por levar à sala de estar da “família americana” diversos títulos
contundentes da filmografia documentária autobiográfica do país. É o caso dos filmes de
Ross McElwee (Time Indefinite foi veiculado em 1994, Bright Leaves em 2004), Alan
Berliner (Intimate Stranger em 1992, Nobody’s Business em 1997, The Sweetest Sound
em 2001), Marlon Riggs (Tongues Untied em 1991) ou a experiência-limite de Silverlake
Life: The View From Here, de Tom Joslin e Peter Friedman (veiclulado em 1993). A
autora Patricia Aufderheide também menciona (1997) o caso do serviço audiovisual
baseado em São Francisco, o ITVS (Independent Television Service). Na década de 1990,
o serviço contou com um aumento significativo do número de propostas de produção de
documentários autobiográficos por cineastas independentes. No ano de 1993 o “gênero”
correspondia à maior categoria destas propostas, totalizando um sexto dos projetos. Outro
exemplo da proliferação quantitativa dos documentários autobiográficos pode ser
extraído do corpus filmográfico da autora Alisa Lebow (LEBOW, 2008, p. 195-197), na
publicação “First Person Jewish”, lançada em 2008. Lebow realizou um levantamento de
cento e dezoito documentários autobiográficos dirigidos por cineastas judeus apenas –
sendo que a grande maioria (por volta de 70%) foi produzida nos EUA, seguidos de longe
pelo Canadá e pelo Reino Unido, e isto há quase dez anos.
Na introdução da publicação “The Autobiographical Documentary in America”,
o autor Jim Lane (LANE, 2002, p. 10) narra a anedota de que em 1982 mostrou um de
seus documentários autobiográficos ao cineasta francês Jean Rouch. O primeiro
comentário do cineasta em relação ao filme de Lane foi o de que “este filme só poderia
ter sido feito por um americano”. De fato, o comentário de Rouch, que impulsionou o
questionamento de Lane em sua pesquisa posterior, levanta algumas reflexões que
concernem a relação entre os Estados Unidos enquanto país, a sociedade americana e a
noção de autobiografia. De maneira geral, a construção narrativa “a respeito de si” sempre
esteve evidenciada na produção cultural e artística do país. É possível lançar algumas
hipóteses acerca do fato de que a produção de documentários autobiográficos dos EUA,
como exposto anteriormente, parece ter tomado proporções maiores do que em outros
50
países. Como apontou Lane, os documentários autobiográficos permearam a filmografia
estadunidense no mundo do cinema “muito independente”. Este fenômeno foi iniciado já
iniciado já no final da década de 1960 e na década de 1970. Posteriormente, o advento da
popularização do vídeo potencializou a possibilidade de construção narrativa
autobiográfica, culminando em um sem-número de títulos que inundou mostras e festivais
– como exemplificado pelos casos das televisões independentes americanas ou festivais
como os de Sundance.
A construção narrativa autobiográfica neste universo do cinema “muito
independente” está ligada à exploração do doméstico, do corriqueiro, do “banal”, de uma
maneira que aponta para outros aspectos culturais dos Estados Unidos da segunda metade
do século XX. Talvez o comentário de Rouch para Jim Lane – a respeito de tratar-se de
um documentário que poderia ser feito “apenas por um americano” – tenha relação com
a exposição de privacidade e intimidade que o filme de Lane aborda. De fato, em Long
Time no See, o filme sobre o qual Rouch comenta, Lane constrói um relato acerca de
eventos do último ano de sua graduação na Universidade de Harvard. Em especial, Lane
enfatiza o aspecto de desorientação, ou fracasso, que assola sua vida enquanto estudante
universitário prestes a se formar. Em um dos eventos, Lane filma a interação com um
professor, na qual conversam sobre os motivos pelos quais o aluno-cineasta foi reprovado
em uma disciplina. Em outros momentos, assistimos ao diretor em seu alojamento da
universidade, conversando via telefone com uma ex-namorada que parece não
corresponder ao seu afeto – algo que também se replica em um date com outra garota,
filmado pelo diretor e exibido final da narrativa.
A autobiografia como possibilidade de produção de conhecimento através da
linguagem – seja ela literária ou cinematográfica – parece ter uma relação particular com
os Estados Unidos enquanto país, desde antes de sua fundação. Como aborda o autor
Robert F. Sayre em relação à literatura (SAYRE, 1980, p. 147), é possível dizer que são
poucos os textos de escritores estadunidenses reconhecidos como divisores de água na
teoria crítica da autobiografia. Santo Agostinho, Santa Teresa D’Avila, Montaigne, Jean-
Jacques Rousseau, John Stuart Mill, Goethe, John Henry Newman, ou mesmo Michel
Leiris ou Jean-Paul Sartre – se chegarmos ao século XX – são exemplos de escritores
não-americanos reconhecidos pelo trabalho inovador na linha histórica da escrita
autobiográfica. Em outras palavras, é possível dizer que o imaginário que permeia a haute
literature da teoria crítica da autobiografia não passa, pelo menos em primeiro momento,
51
pela obra de escritores estadunidenses. Por outro lado, talvez mais do que qualquer outra
nação, a cultura estadunidense foi permeada por narrativas autobiográficas, em um
movimento que vai desde a independência e persiste até os dias atuais, nas mais diferentes
maneiras e suportes. Sayre sintetiza esta ideia:
A autobiografia nos Estados Unidos é, de alguma forma, tanto parte do
nosso vocabulário diário quanto de nossas heranças mais longínquas,
datando dos diários Puritanos e das narrativas de viagem dos séculos
XVII e XVIII; as narrativas indígenas de captura e as “biografias” e
“autobiografias” de chefes indígenas notáveis, as incontáveis estórias
de homens de negócio e celebridades, as estórias de protesto de ex-
escravos e vítimas, os contos de pioneirismo e “americanização” de
imigrantes, as desculpas enganosas de malandros e trapaceiros
(scoundrels and rogues), as totalmente artificiais “confissões
verdadeiras” em revistas de romance e pornografia, os yearbooks do
ensino-médio, álbuns de fotografia, currículos vitae e Who’s Who.
Autobiografia nos Estados Unidos não é apenas um gênero com origens
significativas e distintas obras clássicas; é também uma indústria, uma
mercadoria às vezes feita artesanalmente e às vezes por produção em
massa; como ternos de três peças, velhas mansões familiares e
caminhonetes pick-up. E como as roupas, os carros e as casas, ela (a
autobiografia) também é uma necessidade, ou quase uma necessidade,
que temos de ter - tanto por trabalho quanto por diversão - para que
digamos quem somos e por onde estivemos. (SAYRE, 1980, p. 147-
148. Tradução nossa).
Ilustrando as proposições de Sayre, é possível começar mencionando que a
experiência da escrita da própria declaração da independência dos Estados Unidos
aparece como passagem da narrativa autobiográfica de Thomas Jefferson. Diversos
outros textos autobiográficos fazem parte do corpus bibliográfico clássico estadunidense
– incoporado, por exemplo, à formação escolar. É o caso da autobiografia de outro dos
Founding Fathers, Benjamin Franklin, publicada ainda em 1791. Ou, também, o caso do
relato autobiográfico de Henry David Thoreau “Walden, ou a vida nos bosques”
(publicado em 1854) e a narrativa de Henry Adams em “A educação de Henry Adams”,
publicado em 1919 – ambos frequentemente apontados como os principais livros de não-
ficção da história dos Estados Unidos. Sublinhar este aspecto parece um importante
subsídio para sustentar a hipótese de que a própria noção de autobiografia está atrelada a
uma particularidade da produção de cultura estadunidense – ainda antes de outras
implicações tecnológicas que levaram a esta abordagem no cinema. Ao realizar uma
autoanálise e estabelecer uma comparação, é possível lançar a ideia de que o contato com
52
narrativas autobiográficas não atravessa a formação escolar no Brasil desta mesma
maneira. Este contato talvez seja mais claro a partir da poesia sob uma ótica
autobiográfica – como por exemplo, a obra de Manuel Bandeira, também incorporada ao
curriculum escolar e peça obrigatória em exames de vestibular. Vale frisar que,
evidentemente, existe autobiografia no Brasil. Esta produção é bem exemplificada pela
obra de escritores com propósitos distintos, como Pedro Nava, provavelmente o maior
memorialista da literatura brasileira (“Baú de Ossos” foi lançado em 1972, seguido de
outros seis títulos), ou Carolina Maria de Jesus, com “Quarto de Despejo” (1960); ou, em
outro escopo, pode-se mencionar um sem-número de autobiografias de celebridades que
inundam estantes de livrarias em tempos atuais. Porém pode-se questionar se uma obra
como a “Minha Formação” (1900) de Joaquim Nabuco é absorvida pela nossa cultura e
pela nossa formação da mesma forma que a “Educação de Henry Adams” o é, neste
mesmo sentido, nos EUA. A resposta parece ser negativa. Da mesma maneira, não
entramos em contato com a história de personalidades da história brasileira, como Getúlio
Vargas ou Carlos Marighella, a partir de relatos de próprio punho (mas, sim, em biografias
como as escritas por Lira Neto e Mário Magalhães, respectivamente), se em relação com
autobiógrafos estadunidenses como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, Frederick
Douglass, William T. Sherman, entre outros.
É possível seguir adiante com esta ideia. A autobiografia teve um papel
predominante em episódios históricos dos Estados Unidos, como é o caso das Slave
Narratives, cujos exemplos notáveis são a de Frederick Douglass “Narrative of the Life
of Frederick Douglass, an American Slave” (1849) ou “Twelve Years a Slave”, de
Solomon Northup (1853). Estas são narrativas autobiográficas de ex-escravos que
descreviam pormenores da vida de trabalho forçado, como a chegada (ou nascimento) ao
cativeiro, a relação com os senhores brancos, os castigos sob os quais eram submetidos,
os planejamentos e tentativas de fuga e, eventualmente, a conquista da liberdade. As slave
narratives inspiraram e trouxeram fôlego ao movimento abolicionista em diversos
estados estadunidenses. Outros clássicos da literatura autobiográfica do país oferecem
visões sobre a experiência afro-americana no século XX, transformando em linguagem
histórias individuais de crescimento em meio ao racismo e à segregação racial –
especialmente no Sul dos Estados Unidos. É o caso de obras como Black Boy (1945), de
Richard Wright, ou os livros autobiográficos da ativista Maya Angelou, cujo título I Know
Why The Caged Bird Sings (1969) é o primeiro, e mais conhecido, da série. Outras
53
autobiografias de forte inflexão política e de levante do movimento negro são escritas nos
EUA na década de 1960, como é o caso da autobiografia de Malcolm X, The
Autobiography of Malcolm X (1965), uma das principais narrativas da Black
Autobiography em meio ao movimento pelos Direitos Civis.
Além disto, como frisa Robert F. Sayre no trecho citado, há as diversas narrativas
autobiográficas de líderes militares, homens de negócio e outras histórias de sucesso que
contribuem para o imaginário do self-made man que parece estar tão integrada à
experiência estadunidense – I did it my way, como lembra Frank Sinatra. E, aproximando-
se da atualidade, é possível mencionar os Estados Unidos como berço da noção atual de
Reality Show (An American Family foi veiculado ainda em 1971) que, embora não se trate
de autobiografia per se, relaciona-se com certo momento de espetacularização do “Eu”
que é integrada à nossa experiência cotidiana. Chegando ao ano 2000, da mesma forma,
os polos tecnológicos americanos foram a casa das principais empresas que fomentaram
o desenvolvimento da Internet, blogs, vlogs, YouTube, Facebook e daí em diante.
Se a cultura que permeia a própria noção de “Estados Unidos” enquanto nação
passa pela consideração da narrativa autobiográfica como um ponto de apoio, há ainda
outros aspectos que fomentaram a produção de documentários autobiográficos
consistentemente no país, desde a década de 1960. A possibilidade de exploração do
doméstico, familiar, corriqueiro – cinematograficamente falando – também parece ter
encontrado um terreno mais profícuo no país antes, por exemplo, que no Brasil, sendo
que as razões para isso podem ser investigadas. Um destes motivos é relativo à
disponibilidade de recursos e o custo deste tipo de empreitada cinematográfica. Filmar
sempre foi uma atividade custosa, em qualquer lugar do mundo, principalmente quando
existe o propósito de uma construção narrativa – um filme como produto final. Muitos
dos filmes inseridos no universo do documentário autobiográfico nos EUA pressupunham
um tête-à-tête do cineasta com o mundo por um período de tempo prolongado – seja em
Walden: Diaries, Notes and Sketches de Jonas Mekas ou em Diaries (1971 - 1976) de Ed
Pincus. Esta relação fica mais visível diante do universo conceitual do cinema direto, do
qual a experiência autobiográfica do MIT Film Section apresenta-se como um
desdobramento. Estes filmes dependiam de momentos de intensidade dramática em
situações domésticas menos controladas, que necessitavam de um trabalho de filmagem
por períodos indefinidos, frequentemente longos, a fim de registrar a interação das
pessoas entre si ou com o cineasta por detrás da câmera. Adicionando-se o elemento do
54
som sincrônico à imagem como parte fundamental da proposta artística destes filmes, o
resultado é um tipo de cinema invariavelmente caro – levando-se em consideração a
condição “independente” dos filmes e a absorção/projeção pouco comercial dos filmes.
Em outras palavras, a produção de documentários autobiográficos em tempos “remotos”
como a década de 1960 parecia mais possível em um país como os EUA, onde a oferta
“material” de condições para filmagem para cineastas seria sensivelmente mais viável, se
em comparação com o Brasil da mesma época.
Mesmo que o acesso tecnológico fosse de fato um facilitador, é possível dizer que
existiram motivações ideológicas que possibilitaram a proliferação deste tipo de cinema
no país ainda neste momento. Como será tratado mais de perto no capítulo dois deste
estudo, o movimento pelos Direitos Civis na segunda metade da década de 1960, seguido
pelas demonstrações contra a Guerra do Vietnã e, após isso, a intensificação da segunda
onda do movimento feminista estadunidense na década de 1970, foram elementos que
contribuíram para uma agenda progressista em relação à tematização das liberdades
individuais. O olhar para o universo doméstico e familiar tornou-se político e proliferou-
se em diversas manifestações culturais. Ainda que seja possível detectar a politização da
abordagem do universo doméstico, individual, familiar e privado, também se pode dizer
que este tipo de tematização encontrou menos força no cinema da América Latina do
mesmo período. Neste momento, talvez o olhar para o “doméstico”, em países como o
Brasil, seria menos urgente do que o olhar para o que era propriamente “público”,
pensando no movimento de resgate de identidades nacionais que foi proporcionado pelos
cinemas-novos neste e em outros países da América Latina. Análoga a esta ideia, a
tematização do “individual”, como feito nos EUA, poderia também estar enfraquecida
diante de conjuntura das ditaduras militares que inspirava, antes, uma postura de união e
coletividade da parte dos artistas. Considerando a tematização autobiográfica como
menos imprescindível no momento, portanto, é possível sugerir que esta tenha
permanecido latente até um período de democracia e maior estabilidade onde pudesse
aflorar de maneira mais significativa.
55
1.5. Construção de identidade e narrativização de experiência
Outro forte veio do domínio do documentário autobiográfico reside na maneira
através da qual cineastas-autobiógrafos enxergam aspectos de suas experiências
individuais como parte de um fenômeno social maior, ao qual contribuem com uma
perspectiva própria. Neste sentido, a autobiografia é utilizada como via de entrada para o
debate acerca da construção de identidades, ao prover conhecimento sobre determinada
experiência por um diretor que está dentro da própria experiência. Ainda que não
exclusivamente, esta construção frequentemente refere-se à identificação de um cineasta
dentro de “grupos historicamente excluídos” (Historically excluded groups, ou HEGs).
Neste caso, referimo-nos a documentários autobiográficos de cineastas gays que lidam
tematicamente com a experiência homossexual; cineastas negros que lidam com questões
raciais; diretoras mulheres que partem de aspectos de uma experiência própria para uma
construção temática feminista; filmes realizados por migrantes, exilados, indígenas, entre
outros.
A autobiografia consolida-se como via de construção de linguagem desta
perspectiva não apenas em narrativas cinematográficas, mas também na literatura. São
vastos os textos críticos que apontam para este tipo de movimento, em que o autor
reconhece sua própria experiência como “parte de um todo”, tratando-o como um aspecto
intimamente ligado às narrativas autobiográficas. Dissertando sobre a importância da
autobiografia realizada por escritores negros estadunidenses no país, o autor James Olney
sugere que as narrativas autobiográficas conseguem representar aquilo que poderia ser
entendido como a experiência negra nos EUA, mais do que outros gêneros literários.
Seria através da autobiografia que estes autores teriam entrado no “templo” da literatura
e contribuído de maneira significativa para a preservação da História dos negros
americanos (1980a, p. 15). A possibilidade de transformar a experiência de um grupo
específico, frequentemente em situação de marginalidade social, em linguagem, é
também abordada por Robert F. Sayre. A autobiografia, neste ponto de vista, funciona
como instrumento de empoderamento, no qual os autores reconhecem suas experiências
individuais como exemplo de um grupo social maior. Nas palavras de Robert F. Sayre:
[A] autobiografia tem sido o maior tipo de literatura para os negros e
outros americanos oprimidos. A pessoa que pode escrever sua própria
56
história pode elevar-se de um status de desconhecido e inarticulado e
consegue, assim, relacionar esta história para os outros e à história dos
outros. A eficiência e autenticidade assumidas pela autobiografia – sua
historicidade – dá a ela maior autoridade que a ficção dos romances ou
do teatro, especialmente pelo fato de que estes romances têm chance
maior de terem sido escritos por brancos ou outras pessoas que não
viveram, eles próprios, este mesmo tipo de experiência. (SAYRE, 1980,
p. 167. Grifos do autor. Tradução nossa.)
Este fenômeno encontra reflexo na filmografia documentária autobiográfica,
sendo que alguns exemplos podem ser citados. A “experiência negra” nos EUA, segundo
a terminologia de James Olney, permeia filmes de cineastas afro-americanos como Marco
Williams, em In Search of Our Fathers (1992), ou Finding Christa (1991), dirigido por
Camille Billops. No caso de In Search of Our Fathers, documentário realizado ao longo
de um período de dez anos, o diretor Marco Williams retrata a busca pelo pai que nunca
conheceu. A busca pessoal de Williams toca um fenômeno público ao apontar para uma
realidade do grupo étnico no qual estava inserido. Como nos revela o filme, parcela
significativa dos jovens afro-americanos (47%) crescem sem a figura paterna nos lares.
O título do documentário é sintomático na medida em que o diretor sugere que a busca
por seu pai representaria a busca de muitos garotos negros pelo pai ausente: a busca de
Williams é, de fato, a “busca pelos nossos pais”. Já em Finding Christa (1991) a cineasta
Camille Billops tematiza o reencontro com a filha Christa, trinta anos após deixa-la para
adoção aos quatro anos de idade. Finding Christa, segundo o autor Jim Lane, “oferece
outra visão da família afro-americana, vista a partir da lente de uma mãe criticada por
‘abandonar’ sua filha e por buscar uma carreira na arte e uma vida com seu marido, que
não é o pai de Christa” (LANE, 1996).
Neste mesmo sentido, um paralelo com a produção autobiográfica literária
brasileira poderia ser feito a partir da narrativa de Carolina Maria de Jesus, em “Quarto
de Despejo” (1960). Carolina, negra e pobre, era moradora da favela do Canindé, às
margens do rio Tietê. Seu livro é escrito em formato de diário, no qual a autora relata seu
cotidiano como moradora da favela e como catadora de papel e sucata. Os primeiros
escritos de Carolina de Jesus foram apresentados a um jornalista, Audálio Dantas, durante
uma reportagem sobre a favela do Canindé, que possibilitou a publicação do diário da
autora. Neste caso, mais do que uma questão racial, a intenção de Carolina de Jesus,
sublinhada por diversas vezes em seu diário, é a de estabelecer um relato acerca da vida
de um indivíduo morador de uma favela, o favelado, a partir de sua experiência pessoal.
57
A narrativa da autora traz palpabilidade ao cotidiano de habitar em um barraco furado, de
frequentemente não ter o que dar de comer aos filhos, de catar papel para garantir o
mínimo necessário para a sobrevivência, de viver em meio ao abjeto, ao lixo e aos ratos,
de ser suscetível a violências de todas as sortes e de, finalmente, sentir-se abandonado
pela política e pela sociedade. Neste caso, o livro de Carolina de Jesus trata de trazer luz
ao cotidiano de um grupo social marginalizado, cuja experiência pouco era retratada nos
jornais da época.
Se a periferia, em especial, a favela, é o cenário a partir do qual Carolina Maria
de Jesus constrói um relato de experiência pessoal, outro paralelo pode ser feito, porém
agora com o documentário de Cristiano Burlan, Mataram meu Irmão (2013). O filme
contundente de Burlan obteve reconhecimento significativo em seu lançamento, tendo
também vencido a edição de 2013 do festival É Tudo Verdade. Em sua narrativa, o diretor
tematiza a circunstância da morte de seu irmão mais novo, Rafael, assassinado doze anos
antes da feitura do filme, no bairro do Capão Redondo – onde o diretor também cresceu.
A partir de depoimentos de familiares e amigos próximos do cineasta e de seu irmão,
Burlan traça o panorama de uma circunstância que, embora particular, toca uma
experiência coletiva em relação às nuances do crescimento em uma área pobre e
periférica. Diante de traços de desestrutura familiar e da proximidade à violência e às
drogas, um desvio de conduta do irmão do diretor custou-lhe a vida. A narrativa de
Mataram meu irmão apresenta crueza referencial que torna palpável a experiência do
microcosmo da periferia, a partir da experiência individual de Burlan como indivíduo que
viveu este cenário e que pode olhá-lo, também, com o distanciamento de quem conseguiu
deixa-lo.
Ainda em outra faceta desta particularidade do domínio da autobiografia, o
cineasta Marlon Riggs oferece a visão de sua experiência enquanto negro e homossexual
vivendo nos EUA, em Tongues Untied (1989). Entre a pluralidade de questões abarcadas
pelo filme de Riggs, encontra-se o fato de que o diretor nos oferece um olhar para a
situação de duplo-preconceito vivenciado pelos negros homossexuais estadunidenses,
grupo do qual faz parte e sobre o qual oferece uma visão nuançada. A construção de
identidade homossexual também permeia Tarnation (2004), a partir da experiência do
cineasta Johnathan Caouette e das vicissitudes do cenário instável de seu crescimento em
meio a uma delicada história familiar. Já o universo do feminino, sob diversas óticas, é
trazido para o protagonismo dos filmes de cineastas-autobiógrafas ainda no início desta
58
característica, na década de 1970. A cineasta Miriam Weinstein representa esta
abordagem em quatro filmes que tematizam o universo doméstico, familiar e matrimonial
no qual estava inserida (My Father, the Doctor [1972], Living With Peter [1973], We Get
Married Twice [1973] e Call Me Mama [1976]). É o caso, também, da análise geracional
realizada por Amalie Rothschild nas questões que concernem sua vida privada, a de sua
mãe e de sua avó em Nana, Mom and Me (1974). Em Joe and Maxi (1977), a cineasta
Maxi Cohen expõe a relação delicada entre si própria e seu pai. Outro exemplo é a
meditação realizada por Joyce Chopra sobre a possibilidade de trabalho durante a
gravidez, em Joyce at 34 (1974).
Em Journal Inachevé (1982), a cineasta Marilú Mallet toca a questão do exílio
territorial a partir de sua própria experiência. Em sua narrativa, Mallet tematiza a sensação
de deslocamento social e cultural resultante de um êxodo forçado pela ditadura militar de
seu país de origem. Mallet é uma cineasta de origem chilena que é forçada a deixar o país
após o golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende. Instalando-se no
Canadá, a diretora realiza trabalhos audiovisuais para uma emissora de televisão local,
estando em contato com outros imigrantes e exilados no no território canadense. Em sua
narrativa, Mallet tematiza a situação de exílio a partir do registro de encontros com outros
expatriados – um destes, com Isabel Allende – como também através de uma narração
em over na qual entramos em contato com algumas de suas reflexões ao longo do período.
Como o filme nos narra, a sensação latente de não-pertencimento territorial e cultural
reflete-se também em sua relação matrimonial. Casada com o cineasta australiano
Michael Rubbo (Waiting for Fidel [1974], Daisy: The Story of a Facelift [1982]), na
época integrante do National Film Board canadense, a realizadora expõe o atrito com o
marido, que parece pouco compreender a complexidade de uma situação de exílio. Em
uma discussão acalorada do casal, Rubbo argumenta sentir-se desconfortável diante do
encontro de Mallet com outros expatriados chilenos e coloca sob suspeita a validade da
empreitada fílmica da cineasta. Ao nos colocar diante desta e outras situações, a cineasta
tematiza a maneira através da qual a situação de exílio desdobra-se em diversas facetas
que compõem seu cotidiano privado.
Journal Inachevé é alvo de uma das análises de Bill Nichols em “Blurred
Boundaries” (1994, p. 86). Nichols aponta que através das estratégias de autoinscrição e
autoexaminação propostas pela cineasta no filme, Mallet configura um exercício de
preservação do “Eu”, frente a uma atípica situação, promovida pelo exílio, de
59
deslocamento forçado e de estranhamento cultural, territorial e relacional. O autor
trabalha com um universo conceitual que visa enxergar este tipo de produção como uma
alternativa ao olhar “tradicional” da antropologia fílmica daquele momento. Nos anos
1980 e 1990, a incorporação da autoexaminação como metodologia e estilística (como da
maneira vista no documentário de Marilú Mallet), apareciam consideravelmente na
produção de então. O processo de autoinscrição incorporado por Mallet em Journal
Inachevé sugereriria um desvio do paradigma clássico do documentário “Nós falamos
sobre Eles para Nós”. Nichols (1994, p. 86) aponta uma série de alternativas que se
aproximariam mais das estratégias adotadas pela cineasta no filme, como “Eu falo sobre
mim para mim mesmo e para outros como eu” ou ainda “Eu falo sobre nós para nós”; “Eu
falo sobre nós próprios para eles” e, finalmente, “Nós falamos sobre o que eles falam de
nós”. Estas proposições de Nichols, como viemos frisando até aqui, tende a relacionar-se
com as principais preocupações dos cineastas-autobiógrafos, a de transpor uma
experiência individual em linguagem de maneira a tocar uma experiência pública.
O ato de retratar o exílio enquanto experiência como faz Journal Inachevé
encontra um paralelo no documentário brasileiro Diário de Uma Busca, dirigido por
Flavia Castro e lançado em 2013. O filme de Castro une a exploração narrativa de uma
história pessoal com um plano social e histórico amplo, desde o momento do golpe de
1964 até o período da abertura. A realizadora inicia o filme com a intenção de investigar
a morte de seu pai, Celso, ocorrida em Porto Alegre no ano de 1984, em uma circunstância
que permanece nebulosa até a feitura do filme. O ato de explorar a circunstância da morte
do pai, entretanto, abre a possibilidade de analisar sua trajetória de vida. O pai de Castro
levou uma vida de devoção à militância esquerdista, sendo membro do Partido Operário
Comunista, assim como a mãe da diretora. Com o golpe, a família teve de partir para o
exílio, deixando o país ainda no início da década de 1970. Conforme o filme nos narra, a
diretora viveu boa parte de sua infância e juventude no Chile e na França antes de voltar
ao Brasil no período da abertura. Toda esta história é contada através de viagens da
diretora aos locais onde passou este período de sua vida (casas onde morou, escolas onde
estudou), através de entrevistas recorrentes com seus familiares (principalmente com sua
mãe e seu irmão) e de encontros com militantes que fizeram parte da vida de seu pai em
diferentes épocas.
A distinção mais evidente entre um filme como Journal Inachevé e Diário de Uma
Busca reside no emprego de temporalidades distintas. A narrativa de Castro aborda o
60
tema do exílio como rememoração, onde a feitura do filme encontra-se em uma
cirunstância temporal muito posterior ao período retratado. Neste caso, construir uma
narrativa cinematográfica autobiográfica a respeito do assunto toma forma a partir de
ferramentas como o resgate da memória familiar (e de amigos próximos) a partir de
depoimentos; o “retraçar” dos passos e a reocupação dos lugares onde habitou durante a
circunstância, bem como a recuperação de correspondências trocadas entre os envolvidos,
que têm a função de reanimar uma conjuntura espaço-temporal que encontra sua
materialidade no pretérito. Em Journal Inachevé, entretanto, a preocupação de Marilu
Mallet consiste mais em dar visibilidade àquilo que vive cotidianamente, trazendo à luz
situações que sejam significativas como representação da experiência de exílio que está
atravessando e que deseja compartilhar. Esta variedade de construção narrativa observada
nos filmes exemplifica dois largos caminhos distintos que podem ser trilhados por
cineastas-autobiógrafos. Um deles é voltado ao passado, à memória e à história familiar:
trazer conhecimento em relação a algo que já aconteceu ou que teve a origem em tempos
de outrora. Outro deles se preocupa em, de alguma forma, dar visibilidade ao presente da
vida individual do cineasta no período relativo ao registro fílmico.
Diário de Uma Busca também pode ser destacado como um filme que
particulariza a experiência dos documentários autobiográficos da América Latina. Um
número significativo de documentários autobiográficos latino-americanos oferece
narrativas que engendram um olhar para experiências individuais em relação à história
pública, principalmente no que concerne os processos ditatoriais pelos quais os países
passaram. No caso brasileiro, o documentário já citado Os Dias com Ele (Maria Clara
Escobar, 2012) faz coro a esta ideia, na medida em que se alicerça narrativamente no
intercâmbio entre a diretora Maria Clara Escobar e seu pai, preso e torturado durante a
ditadura militar. Na filmografia uruguaia, pode-se destacar Diga a Mário que não volte
(Decile a Mario que no vuelva, Mario Handler, 2007) e Segredos de Luta (Segredos de
Lucha, Maiana Bidegain, 2007). Na argentina, M (Nicolás Prividera, 2007); Os Loiros
(Los Rubios, Albertina Carri, 2003) e Papai Ivan (Papá Ivan, Maria Inés Roqué, 2004).
Na paraguaia, Espeto de Pau (Cuchillo de Palo, Renate Costa, 2010); e na chilena, O Eco
das Canções (El Eco de Las Canciones, Antonia Rossi, 2010); O Prédio dos Chilenos (El
Edificio de Los Chilenos, Macarena Aguiló, 2010); Rua Santa Fé (Calle Santa Fe,
61
Carmen Castillo, 2007)5. Todos estes filmes oferecem visões particulares de cineastas que
tiveram vidas individuais afetadas pelos processos ditatoriais latino-americanos, seja
diretamente em relação ao próprio realizador ou à história familiar.
Se um dos aspectos fortes da autobiografia é apresentar-se como porta de entrada
para a transformação de experiência em linguagem, de indivíduos que se reconhecem
como parte de um grupo maior de pessoas em situação de vulnerabilidade ou de injustiça
social e que demanda atenção – os casos previamente mencionados, como a autobiografia
negra, feminista, queer, entre outros –, o exato oposto também chega a acontecer. Um
caso interessante é o de Born Rich (2003), dirigido por Jamie Johsnon, um dos herdeiros
da companhia de farmacêuticos Johnson & Johnson. O diretor Johnson tematiza as
questões que permeiam seu cotidiano enquanto herdeiro de uma fortuna multibilionária –
como a reflexão sobre o que fazer de sua carreira e de seu tempo livres quando existe
prestígio e recursos materiais infinitos, mesmo antes de qualquer trabalho. O relato
autobiográfico de Johnson, ainda que talvez de maneira um pouco bizarra, provê uma
narrativa construída a partir do desejo de narrativizar cinematograficamente a posição
privilegiada de alguém que vive o dia-a-dia do jetset da juventude bilionária dos EUA,
abrindo-nos a possibilidade de entrar em contato com o questionamento de um universo
que, no limite, também somos alheios.
Ainda em outra faceta deste mesmo debate, podem-se mencionar experiências
fílmicas autobiográficas na qual o diretor busca retratar o embate próprio com uma
enfermidade. A cineasta Barbara Bader tematiza a experiência de viver com uma doença
crônica no filme Beautiful Piggies (1995), no qual fala a respeito do transtorno alimentar
que a acompanhava. Outra importante recorrência neste sentido é a experiência do HIV,
que foi abordada em alguns documentários autobiográficos. É o caso de Tom Joslin e
Peter Friedman (Silverlake Life: The View From Here, 1993), do português Joaquim Pinto
(E Agora? Lembra-Me, 2013) e do cineasta francês Hervé Guilbert (La Pudeur ou
l’impudeur, 1992), que lançam mão do discurso autobiográfico a fim de prover um olhar
sobre a doença a partir de quem a vive cotidianamente. Os filmes constroem esta
5 Tal apresentação de documentários autobiográficos latino-americanos foi possível a partir do trabalho realizado por Pablo Piedras e Natalia Barrenha, que culminou na mostra “Silêncios Históricos e Pessoais: Memória e Subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo”, ocorrida em São Paulo no ano de 2014. O catálogo da mostra (BARRENHA, Natalia e PIEDRAS, Pablo [orgs.], 2014) reúne descrições destes e outros filmes, bem como textos de autores como Maria Luisa Ortega e Michael Renov, este último traduzido pelo autor do presente estudo (RENOV, 2014).
62
transposição de experiência a partir de ferramentas narrativas e estilísticas distintas. E
Agora? Lembra-me tematiza o período no qual o diretor Joaquim Pinto estava sendo
submetido a um tratamento experimental para a Hepatite C. Pinto, homossexual e
portador do vírus HIV, realiza um filme que mescla diferentes metodologias de
autoinscrição. Há no documentário um movimento de memória em que o cineasta retoma
diversos aspectos de sua trajetória como realizador; há associações analíticas feitas pelo
diretor em over em relação a temas como religião, política e arte; existe um interessante
veio de captação e visibilidade de seu cotidiano em estilo direto; empregam-se trechos de
animação em stop motion, bem como de utilização de música não-diegética, entre outros
elementos. O sofrimento de Pinto, junto de seu companheiro, Nuno, em relação tanto em
relação à doença quanto ao tratamento agressivo a que é submetido é registrado e montado
através de uma macroestrutura cronológica.
Em alguns aspectos, E Agora? Lembra-me relaciona-se com Silverlake Life: The
View from Here, lançado vinte anos antes nos EUA. Silverlake Life é um filme
significativo no que concerne a intenção de transpor a experiência de cotidiano de um
casal gay estadunidense, mas, mais precisamente, no que diz respeito diretamente à
pandemia da AIDS ainda em um momento inicial, no começo da década de 1990. Pode-
se dizer que Silverlake Life é um filme que obteve perenidade, sendo frequentemente
revisitado até hoje em análises sobre o domínio dos documentários autobiográficos.
Tratando-se de uma experiência-limite no caso da autobiografia aplicada ao cinema
documentário, o filme evoca questões sobre as quais nos deteremos mais detalhadamente
ao longo do estudo.
Além dos diretores que assinam o filme, Tom Joslin e Peter Friedman, há um
terceiro elemento, Mark Massi, que contribui sensivelmente para o processo de filmagem.
Tom Joslin e Mark Massi nutriam um relacionamento de mais de vinte anos no início das
filmagens. Quando ambos foram diagnosticados com AIDS, Joslin, cineasta e professor
de cinema na University of Southern California, decidiu realizar um vídeo-diário que
tematizasse a vida conjugal do casal em meio ao desdobramento da doença em suas vidas
e corpos. O filme contou com o auxílio do ex-aluno de Joslin na faculdade, Peter
Friedman, cuja incumbência seria editar e finalizar o filme “no caso do desastre da morte”
– esta expressão é sugerida no script deixado por Joslin e que é mostrado no início do
filme. Silverlake Life inicia com um depoimento de Mark Massi a respeito da morte do
companheiro. Em seguida, o montador/diretor Peter Friedman apresenta-se através de
63
uma narração em over, dizendo que teve a tarefa de finalizar o filme que Joslin deixara
para trás. Caixas repletas das fitas de vídeo que Joslin e Massi filmaram durante os anos
– a matéria-prima bruta da narrativa de Silverlake Life – são reveladas na tela, marcando
o final do “prólogo” e o início da narrativa em si.
Figura 3: O casal Tom Joslin e Mark Massi em Silverlake Life: The View from Here (1993)
O que se segue por volta de noventa minutos de documentário é uma narrativa que
segue uma macroestrutra cronológica de eventos. Através dos momentos registrados por
ambos e justapostos em narrativa, faz-se possível um olhar para o íntimo do cotidiano do
casal, predominantemente no que concerne as transformações do ambiente doméstico de
Massi e Joslin mediante o desenvolvimento da doença. Para além de momentos de tarefas
domésticas cotidianas, assistimos a recorrentes visitas de ambos a consultas médicas,
laboratórios para a realização de exames, como também a busca por tratamentos
alternativos que pudessem surtir efeito. Em diversos momentos do filme, Joslin e Massi
utilizam-se da câmera como meio de pontuar temporalmente o desenvolvimento da
doença em seus corpos, falando sobre novos sintomas e discutindo tentativas de
amenização desses. Acompanhamos a atividade do casal em viagens que realizam no
período e nas conversas que travam com familiares ou amigos próximos.
64
O encadeamento de eventos através de uma montagem cronológica oferece
visibilidade do progresso da deterioração da saúde do casal. Esta visibilidade torna-se
mais palpável no caso de Tom Joslin, cujo quadro apresenta-se mais grave do que o do
companheiro. Entendemos através das imagens e dos diálogos registrados por Joslin que
a doença se manifestou mais agressivamente e rapidamente em seu corpo. Ouvimos suas
queixas a respeito do avanço da enfermidade e como ela impossibilita a realização de
tarefas cotidianas. Em determinado momento da narrativa, os esforços do casal voltam-
se para amenizar a dor de Joslin e trazê-lo conforto, sugerindo que sua morte não tardará.
A sequência da morte de Joslin é um trecho pelo qual Silverlake Life é frequentemente
lembrado. Os últimos dias do diretor são registrados por seu companheiro, que o filma no
leito de morte, magro e débil, podendo pronunciar apenas poucas palavras e dizendo que
não se sente bem. Em um corte seco revela-se o cadáver de Joslin, ainda com os olhos
abertos, registrado pela câmera nas mãos do parceiro. Em voz off, com as mãos e a voz
trêmulas, o parceiro diz que o ama, canta uma canção e diz que irá terminar o filme para
ele.
Figura 4: O corpo sem vida de Tom Joslin em Silverlake Life: The View from Here (1993)
Por este momento crítico, é difícil pensar em outro documentário autobiográfico
que tenha levado a cabo o processo de “filmar a própria morte” de maneira que faz o filme
65
de Joslin. Mais de vinte anos após o lançamento de Silverlake Life e de sua veiculação na
televisão pública, são frequentes os comentários de espectadores que relatam a
capacidade do filme em fazer-nos ver as consequências da AIDS através de um relato
tocante que, por momentos, parece “real demais”. A experiência autobiográfica aqui
oferece-nos um lugar espectatorial privilegiado a respeito da vida de um casal que nutre
amor incondicional um pelo outro e que deseja eternizar uma passagem – provavelmente
a mais difícil vivenciada por eles até então. Este período de suas vidas, é importante notar,
está sendo registrado cinematograficamente nunca apenas como uma maneira pela qual o
casal poderia rememora-lo depois – como se fosse apenas um home movie familiar – mas,
sim, para que os espectadores pudessem entrar em contato com esta experiência. Em sua
análise sobre o filme, Susanna Egan aponta que Silverlake Life
Oferece acesso privilegiado e de fato muito doloroso, a um território
tão privado, a ponto de tornar-se tabu, permitindo que os
telespectadores reconheçam de forma pungente os momentos da solidão
mais terrível dos autobiógrafos ainda respondendo às forças criativas
do relacionamento. O envolvimento [do casal] com o público era um
movimento deliberado, político, de sua parte. Sua determinação
obstinada em filmar cada fase da doença, morte, luto e a continuidade
da doença coloca em primeiro plano as fontes mais íntimas do impulso
autobiográfico e sua dependência de um público cauteloso e atento.
(EGAN, 1994, p. 609-610)
O período registrado por Joslin (com Mark Massi, e finalizado por Peter
Friedman) refere-se, sobretudo, a um momento inicial do aparecimento e da pandemia da
AIDS, em que existia pouco conhecimento a respeito da doença – desde sua
multiplicidade de facetas à sua reação a tratamentos clínicos. Joslin identifica e decide
cristalizar, a partir de sua própria experiência, um momento particular em que se mostra
evidente a “impotência” diante da falta de conhecimento sobre a doença. Note-se, por
exemplo, os vários tratamentos alternativos, às vezes um tanto peculiares, que são
buscados pelo casal ao longo do filme. Em outras palavras, a partir do corte circunstancial,
espaço-temporal, da narrativa, os estados de consciência de Tom Joslin e de seu
companheiro que transbordam nos registros fílmicos – seus diálogos, suas discussões,
suas escolhas – apresentam-se como representantes de uma geração de indivíduos que
viveram o momento.
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Um dos comentários a respeito do DVD de Silverlake Life no site de compras
online Amazon.com diz “Sou grato por Tom Joslin ter tido a coragem de nos deixar ver
sua vida e sua morte”6. Isto diz respeito, primeiramente, à ideia da partilha do processo
autobiográfico que envolve Silverlake Life. Terceirizar parte do registro e da finalização
do relato fílmico é a única possibilidade de um cineasta tematizar o acontecimento de sua
própria morte. Mas, para além disso, o comentário aponta para a possibilidade do
autobiógrafo em reconhecer sua vida como um fenômeno que é digno de transformação
em linguagem, de cristalização de uma experiência que é individual – mesmo que, sob os
olhos da história pública, não seja uma vida mais do que “ordinária”. Trata-se, aqui, de
estabelecer um jogo entre o presente e a posterioridade que, como ilustra o caso de
Silverlake Life, vislumbra a morte do autobiógrafo como fenômeno inevitável. A
empreitada autobiográfica de Tom Joslin vai ao encontro de algumas proposições de
Georges Gusdorf, em seu texto fundante publicado em 1955. No sentido análogo à
proposta de um filme como Silverlake Life, Gusdorf disserta sobre a cristalização da
história pessoal em linguagem, para a posterioridade, como interente à intenção
autobiográfica:
Cada um de nós tende a pensar em si próprio como o centro de um
espaço vivo: eu conto, minha existência é significativa para o mundo e
minha morte deixará o mundo incompleto. Ao narrar minha vida, dou
testemunho acerca do meu próprio “Eu”, mesmo após a minha morte,
e, assim, posso preservar este precioso capital, que não deve
desaparecer. O autor de uma autobiografia dá uma espécie de alívio à
sua própria imagem através da referência ao ambiente (environment)
com a sua existência independente; ele olha para si próprio “sendo” e
deleita-se quando outros olham para ele – ele nomeia-se testemunha de
si próprio; e, aos outros, ele nomeia como testemunha daquilo que sua
presença torna insubstituível. (...)
O homem que se dá o trabalho de contar a respeito de si próprio sabe
que o presente se distingue do passado e que ele não será repetido no
futuro; ele tornou-se mais ciente das diferenças do que das
similaridades. Dada a mudança constante, dada a incerteza dos eventos
e dos homens, ele acredita que fixar sua própria imagem é algo útil e
valioso, de modo que ele possa ter certeza de que ela não irá desaparecer
como todas as coisas no mundo. (GUSDORF, 1980. p. 29-30. Tradução
nossa)
6 “I'm thankful that Tom Joslin had the courage to allow us to see his life and death”, disponível em
<http://www.amazon.com/Silverlake-Life-The-View-Here/product-
reviews/B00009ME9G/ref=cm_cr_dp_synop?ie=UTF8&showViewpoints=0&sortBy=bySubmissionDate
Descending#RYRLV87ZUWA2>
67
1.6. Documentários autobiográficos, referencialidade e desconstrução
Jim Lane e Michael Renov são autores que escreveram consistentemente sobre
documentários autobiográficos, contemplando diversas de suas particularidades. Mesmo
direcionando suas análises para o cinema, ambos buscaram estabelecer diálogo com
alguns dos principais teóricos relacionados aos estudos da autobiografia – sobretudo
literária. Este diálogo foi subsídio para a reflexão sobre o período em que uma parte da
filmografia recente evocou a transformação da noção de autobiografia que era praticada
até então. Em especial, trata-se de um movimento intensificado na década de 1980, em
que o sistema de crença que alicerçou o cinema direto foi posto sob questionamento por
uma leva de filmes. O momento, denominado por Renov como “pós-vérité”, colocou em
cheque estruturas narrativas dos documentários que buscavam prover um senso de
referência concreta ao mundo material e à vida de seus diretores. Esta corrente de
pensamento, aliada a certo élan desconstrutivista, inspira-se em diversos campos da
produção intelectual e artística. Em diálogo, os escritos de Renov e Lane contemplam
visões que evocam a importância do debate para a noção de documentário autobiográfico
que, cabe notar, não se restringe apenas a este período. Os desdobramentos de tais
questões circundam tanto a filmografia quanto as análises acadêmicas contemporâneas a
respeito do cinema autobiográfico. A exposição do debate também é benéfica para o
entendimento do universo de questionamento no qual se inserem nossos principais
objetos de estudo – Ross McElwee e o cinema autobiográfico de Cambridge. Buscaremos
resgatar alguns pontos ao longo deste subcapítulo.
A principal obra de Jim Lane é “The Autobiographical Documentary in America”,
publicado em 2002. Um dos pontos fortes da publicação consiste em apresentar o debate
de natureza dialética que permeou a teoria crítica da autobiografia literária e que se
desdobrou também na produção cinematográfica. Trata-se do diálogo existente entre
teóricos de uma autobiografia dita “clássica” e um movimento de autores, sobretudo a
partir da década de 1970, que ofereciam uma visão questionadora em relação à
possibilidade da autobiografia de construir conhecimento referencial que apontasse para
o mundo real, para os seres que o habitam e para a vida do autobiógrafo a partir de uma
noção unitária. Classicamente, enxergava-se a autobiografia como um tipo de narrativa
através da qual indivíduos poderiam estabelecer relatos que, no limite, buscavam apontar
68
para aspectos de uma vida vivida pelo autor, fora do domínio do texto. Em determinado
momento, entretanto, esta posição foi desafiada por teóricos que colocaram sob
questionamento a possibilidade de a linguagem estabelecer laços referenciais com o
mundo concreto e com pessoas reais. Sem que haja uma conexão concreta, indexal, entre
a linguagem escrita e a experiência real (o presente fenomenal, o que Paul John Eakin
chama de “a coisa em si”, the thing itself), qualquer tipo de relato autobiográfico estaria
diante de constante suspeição. A autobiografia, portanto, estaria inexoravelmente ligada
ao mundo da fabulação e da criação – ela não escaparia, desta forma, de um domínio de
construção narrativa ficcional.
Pode-se explorar um pouco mais este argumento a fim de entendermos
posteriormente sua projeção nos documentários autobiográficos e em sua crítica. John
Paul Eakin percebe, no movimento supracitado, uma mudança de perspectiva do “fato
para a ficção”, acompanhada por autores críticos ao conceito do “self” e das funções
referenciais da linguagem (EAKIN, 1992. p. 29). É o caso de teóricos como Paul De Man
(1979), John Sturrock (1977) e Michael Sprinkler (1980). O artigo publicado por De Man
em 1979, “Autobiography as De-Facement”, é um dos principais textos desta corrente de
pensamento do final da década de 1970. De Man (1979, p. 921) critica a visão de que a
existência de um texto autobiográfico dependeria de fatos e de eventos verificáveis de
uma maneira menos ambivalente do que faz o texto ficcional. O autor questiona até que
ponto a autobiografia dependeria de um referente (neste caso, o autor e sua vida “real”,
para além do texto), se é a partir do próprio ato autobiográfico que o modelo (o
autobiógrafo) cria a si próprio. Nas palavras de De Man:
Mas teríamos tanta certeza que a autobiografia depende da referência,
da mesma maneira que uma fotografia depende de seu tema ou que uma
figura (realista) depende de seu modelo? Assumimos que a vida produz
a autobiografia assim como um ato produz suas consequências, mas não
poderíamos sugerir, com igual justiça, que o projeto autobiográfico
pode por si próprio produzir e determinar a vida, e que qualquer coisa
que o escritor faça é, na realidade, governado pelas demandas técnicas
do autorretrato e, assim, é determinado, em todos seus aspectos, pelos
recursos de seu meio? (DE MAN, 1979, p. 920. Os grifos são do autor.
Tradução nossa).
De Man continua este argumento referindo-se às ideias de Phillipe Lejeune,
apontando que a identidade da autobiografia não aconteceria em um nível estrutural,
69
representacional e cognitivo, mas, sobretudo, em um nível contratual entre leitor e texto
(o “pacto autobiográfico”). O leitor, neste caso, se tornaria o elemento responsável pela
verificação da autenticidade do texto, analisando a “assinatura” do autobiógrafo e a
consistência de seu comportamento ao longo da narrativa, “na medida em que ele tem
sucesso ou falha em honrar o acordo contratual que assinou” (1979, p. 923).
Não havendo, portanto, elementos textuais que garantam ao texto autobiográfico
este status, De Man aponta que a autobiografia não seria um modo ou um gênero, mas
“uma figura de leitura ou entendimento que ocorre, de certo modo, em todos os textos”
(1979, p. 921). Elementos como a assinatura do nome próprio do autor na página principal
do texto autobiográfico ou a suposição de que seu conteúdo se refere à vida do escritor
não conferiria mais autenticidade ao texto do que uma obra de ficção: “Parece, portanto,
que a distinção entre ficção e autobiografia não é uma polaridade ‘ou um, ou outro’, mas
que ela é indecidível” (1979, p. 921). Logo, De Man aponta para a impossibilidade da
autobiografia em fornecer conhecimento verificável sobre seu próprio autor, da mesma
forma que sugere a impossibilidade de existência da linguagem que substitua ou aponte
de maneira verificável para elementos além do texto:
O interesse pela autobiografia, portanto, não é o de que ela revela
autoconhecimento fidedigno – ela não faz isto – mas que ela demonstra
de uma maneira chocante a impossibilidade de fechamento e de
totalização (isto é, a impossibilidade de tornar-se a ser) de todos os
sistemas textuais baseados em substituições tropológicas. (DE MAN,
1979, p. 922. Tradução nossa.)
Visões similares são replicadas por Louis A. Renza (1980), em “The Veto of
Imagination – A Theory of Autobiography” e Michael Sprinkler (1980), em “Fictions of
the Self – The End of Autobiography”. A partir destes textos pode-se sugerir que existia
um movimento crítico que buscava por à prova consensos clássicos sobre a autobiografia,
estudando os limites entre “fato” e “ficção” dentro do campo. Este movimento crítico é
amparado, também, por obras literárias reconhecidas como “anti-autobiográficas”. É o
caso de “Roland Barthes por Roland Barthes”, publicado por Roland Barthes em 1974, e
a obra “Fils”, publicada em 1977 por Serge Doubrovsky, que batizou o termo
“autoficção”. Segundo aponta Paul John Eakin (1992, p. 25), a ideia de Doubrovsky
contrapunha o conceito de “pacto autobiográfico” de Lejeune, criando em Fils uma
70
narrativa ficcional em que o protagonista, o autor e o narrador compartilhariam do mesmo
nome. Não apenas isto, mas diversas das estruturas de referencialidade expostas na obra
seriam verificáveis: lugares, nomes e datas fariam alusão à sua vida real, mas a maneira
através da qual a narrativa seria articulada e desenvolvida seria a partir de uma ótica de
construção ficcional, fabulativa.
O autor James Olney explica que, para os autores deste momento de criticismo, o
texto apresenta uma vida própria, sendo que o “eu” não está presente em nenhuma parte:
trata-se apenas de “texto”, que não apresenta nenhuma relação endêmica com o escritor
que o autoriza (OLNEY, 1980a, p. 22). Questionando se de fato neste momento o texto
autobiográfico não existiria para além de uma condição de “ficção do eu” (“fictions of the
self”), Olney expõe a questão:
O self, portanto, é uma ficção e também é a vida. E por detrás do texto
de uma autobiografia existe o texto de uma “autobiografia”: tudo que
resta são caracteres em uma página e estes também podem ser
“desconstruídos” para demonstrar a própria escassez de sua existência.
Tendo dissolvido o self em texto e depois o texto em ar rarefeito,
diversos críticos (com a húbris peculiar ao criticismo moderno?)
anunciaram o fim da autobiografia. (OLNEY, 1980a, p. 22. Os grifos
são do autor. Tradução nossa.)
Tal panorama conceitual não se restringiu à produção literária, refletindo-se
também no cinema documentário autobiográfico. Neste “novo” momento, a narrativa
como meio de apontar e descrever o mundo histórico, de maneira a sublinhar a
“ancoragem” da relação entre filme e mundo fenomenal, foi posta sob suspeita, de
diferentes maneiras. Michael Renov é um dos autores que escreveu mais
consistentemente sobre o período. Renov sugeriu tendências da nova filmografia que
dialogavam com uma inspiração crítica desconstrutivista. Diversos capítulos da coletânea
“The Subject of Documentary”, que reúne textos seus ao longo de duas décadas de
trabalho, apontam conceitualmente para este panorama teórico. Renov refere-se a uma
produção filmográfica contemporânea como representante da “nova autobiografia” do
cinema e vídeo (RENOV, 2004, p. 104-119). A produção pertenceria a um momento de
virada epistemológica na história do cinema documentário que faz parte da era “pós-
vérité” (RENOV, 2004, p. 171-181), termo cunhado pelo próprio autor.
71
Frente à produção influenciada por novas possibilidades tecnológicas – em
especial, o vídeo como suporte fílmico – Renov sugere uma “nova subjetividade” que
teria emergido no cinema. Os filmes realizados no contexto da “nova subjetividade”
apresentavam modelos de construção de conhecimento e de referência ao mundo material
que se distinguiam do pensamento dominante no cinema documentário até então –
nominalmente, apresentava-se um desvio do conjunto metodológico-estilístico proposto
pelo cinema direto. A autobiografia desenvolvida neste cenário proposto por Renov
evocava antes um aspecto de fratura narrativa do que coerência. Segundo o autor, o
autobiógrafo, neste novo momento, apresenta-se como um sujeito fragmentado e em um
sítio de instabilidade, construindo a si próprio a partir de um fluxo autoquestionador: “Se
o que estou chamando de ‘a nova autobiografia’ tem qualquer pretensão de precisão
teórica, é devido a este trabalho de construção da subjetividade como um lugar de
instabilidade – fluxo, tração, reavaliação perpétua – ao invés de coerência.” (RENOV,
2004. p. 110). Em um movimento semelhante aos críticos previamente mencionados,
Renov sugere a insuficiência de determinados termos classificatórios frente à nova
produção, apontando que: “os limites taxionômicos de termos como diário, autobiografia
e ensaio precisam ser superados. ” (RENOV, 2004. p. 106).
No texto “New Subjectivities: Documentary and Self-Representation in the Post-
Vérité Age”, publicado pela primeira vez em 1995, Renov sublinha o entendimento da
“nova subjetividade” mencionando filmes e vídeos da década de 1980 e 1990 como
suporte à sua hipótese. Utilizando-se amplamente de noções de objetividade e
subjetividade, o autor sugere o novo momento (a era pós-vérité) como uma reação ao
cinema direto da década de 1960 e à experiência televisiva de An American Family. O
momento seria influenciado pelo movimento feminista e envolveria tanto cineastas
quanto videomakers que trabalharam com questões de autorrepresentação nos filmes –
novamente, enfatizando a construção autobiográfica de identidades “fluidas, múltiplas, e
até mesmo contraditórias” (2004. p. 178). Renov cita especialmente o caso de filmes que
exploram a identidade exílica, como o caso de Jonas Mekas em Lost, Lost, Lost, Chantal
Akerman em News from Home (1975), o filme Journal Inachevé de Marilu Mallet (1982)
ou a relação entre história pública e família no filme History and Memory, de Rea Tajiri
(1991). Da mesma forma, o autor aponta que o período foi marcado por filmes de
cineastas que trabalham narrativamente construções identitárias ligadas à sexualidade,
72
como é o caso de Tongues Untied, de Marlon Riggs (1989), e Sink or Swim, de Su
Friedrich (1990).
Este corpus fílmico trabalhado por Renov também foi utilizado por outros teóricos
cujas análises são frequentemente citadas em estudos sobre documentários
autobiográficos. Entre estas, pode-se destacar o termo “documentário performático”,
cunhado por Bill Nichols na década de 1990 e exposto pela primeira vez na publicação
“Blurred Boundaries: Questions of meaning in contemporary culture” (NICHOLS, 1994).
A concepção de Nichols de documentário “performático” é por vezes tomada,
equivocadamente, como sinônimo de “autobiográfico”. Podem ser abertos parênteses
aqui a fim de explicar esta distinção, também como via de reforçar o entendimento tanto
das proposições de Nichols quanto das de Renov. Com a noção de “documentário
performático”, Bill Nichols, como Renov, problematizava as mudanças epistemológicas
com as quais os filmes pareciam trabalhar, principalmente no que concerne à maneira
atenuada que as narrativas, neste novo momento, aspiravam referenciar-se a questões do
“mundo histórico”. Para Nichols, o documentário performático seria um modo de
documentário que “não chama nossa atenção tão diretamente para as qualidades formais
ou para o contexto político do filme, mais do que desvia nossa atenção da qualidade
referencial do documentário, de maneira geral” (NICHOLS, 1994, p. 93. Tradução
nossa.).
Questionando, portanto, a “qualidade referencial do documentário”, Nichols
aproxima-se conceitualmente da noção pós-vérité sugerida por Renov. Também diante de
filmes como Tongues Untied (Marlon Riggs, 1989), History and Memory (Rea Tajiri,
1991) e Journal Inachevé (Marilu Mallet, 1983), Nichols sugere que, nos documentários
performáticos as técnicas observacionais não dão mais a impressão de “capturar” o reino
referencial por si próprio – o mundo histórico enquanto tal – o tanto quanto “colocam
tensão nas qualidades de duração, textura, e experiência, frequentemente advindas da
associação íntima com atores sociais que performam virtualmente de acordo com os
códigos expressivos que nos são familiares pela ficção” (NICHOLS, 1994, p. 95). As
técnicas interativas, “que tradicionalmente incorporam o cineasta dentro do mundo
histórico que ele ou ela filma, agora dão mais ênfase às dimensões afetivas da experiência
do cineasta, de sua posição subjetiva e disposição emocional” (p. 96). Já as técnicas
reflexivas, “se empregadas, não nos afastam tanto dos processos do próprio filme, em
73
relação ao tanto que chamam nossa atenção para as intensidades e subjetividades que
rondam e banham a cena como representada” (p. 96).
O conceito ao redor da noção de “documentário performático”, desta forma,
procurava respaldar analiticamente a maneira através da qual um filme como Tongues
Untied, por exemplo, apontava para a figura do diretor Marlon Riggs. Como colocado
por Nichols, o filme é explorado narrativamente de com o propósito de dar vazão a uma
certa dimensão subjetiva e emocional de seu diretor a partir de uma relação mais “frouxa”
em seu comprometimento com a tematização do mundo histórico e da materialidade –
como o cinema direto/vérité e seus desdobramentos vinham fazendo até então. A
conceituação de “documentário performático”, entretanto, não aponta necessariamente
para os casos de filmes em que a figura individual do cineasta é, de alguma forma,
transposta para a narrativa – aquilo que, aqui, entendemos como “autobiográfico”. Um
filme como Forest of Bliss (Robert Gardner, 1985) é sugerido por Nichols no corpus dos
“documentários performáticos” por apresentar-se como “uma deflexão do documentário
daquilo que tem sido seu maior senso comum: o desenvolvimento de estratégias para a
argumentação persuasiva sobre o mundo histórico” (NICHOLS, 1994, p. 94). De fato,
Forest of Bliss foi um filme que apresentou alternativas à representação do “mundo
histórico”, principalmente no contexto do filme etnográfico e em perspectiva com a
carreira anterior de Robert Gardner, sendo construído narrativamente a partir de um
comprometimento analítico menor do que o visto anteriormente em filmes deste universo
conceitual. Porém, ainda que Forest of Bliss dialogue “autoralmente” com a carreira
anterior de Robert Gardner, não existe nenhum elemento que potencialize no filme uma
ideia de escrita sobre si próprio – certamente não é um documentário cujo visionamento
traz à tona algum aspecto da individualidade de Gardner que possa ser lido como
“autobiográfico”. Em outras palavras, a noção de “documentário performático”, embora
contemple largamente um conjunto de filmes que pode ser visto sob a ótica da
autobiografia, não se dedica exclusivamente a elucidar este tipo de questão. É possível
dizer que o conceito de Nichols dedica-se a refletir acerca de certo tipo de procedimento
narrativo que pode ser lido como autobiográfico. Trata-se de um corpus temporalmente
delimitado, que emergiu em uma produção filmográfica contemporânea à época da
análise – década de 1980 e começo da década de 1990 – e que destoava do universo
conceitual que regeu o documentário até então.
74
Com base nas reflexões de Nichols, voltemos à análise de Renov. O autor é
pertinente na asserção de que os filmes citados apresentam o “Eu” de seus diretores,
servindo a uma possível ótica autobiográfica, sendo construído narrativamente de
maneira pouco antevista – principalmente se a comparação recai sobre o conjunto de
valores ético-narrativos do cinema direto, como é o caso de sua análise. Tomando-se
como exemplo um filme como News from Home, é possível dizer que o “Eu” da diretora
Chantal Akerman, em termos biográficos, apresenta-se sensivelmente mais dissolvido,
atenuado, se este procedimento fosse colocado em comparação com a maneira através da
qual um filme do primeiro momento do cinema direto constrói seus personagens. A
relação entre Chantal Akerman – um indivíduo de carne e osso que tem uma vida
particular e insubstituível, para além da tela e de seu relato cinematográfico – e a narrativa
de News from Home constrói-se mais a partir do oferecimento de dúvidas do que de
asserções. Supomos, enquanto espectadores, que as cartas lidas pela voz over ao longo da
narrativa apontam para o intercâmbio de mensagens entre a diretora e sua mãe, porém o
esforço de Akerman concentra-se menos em fazer da leitura das cartas um ponto de
inflexão onde existe um fio narrativo calcado pela relação de causa-e-consequência, ou
de conflito-e-resolução. Sua voz mistura-se com os sons da cidade em locais que supomos
fazer parte de sua rotina como moradora da cidade de Nova Iorque, frequentemente
tornando-se pouco inteligível junto aos outros elementos da trilha sonora. A construção
narrativa de News From Home transpira a experiência de Akerman naquela circunstância
espaço-temporal através de entrelinhas que resistem à checagem factual/referencial (o
cross-checking), ou seja, da maneira através da qual os eventos de fato apontam para a
vida que existe para além da narrativa. É neste sentido que Renov aponta a construção de
subjetividade nos filmes a partir de “um lugar de instabilidade”, de fluxo e constante
reavaliação, menos preocupado com a “coerência” suscitada pela construção do “Eu” na
autobiografia clássica.
News from Home e os outros filmes citados por Renov, portanto, utilizam-se de
estratégias narrativas, estilísticas e metodológicas que fogem da lógica referencial para
uma construção autobiográfica. É possível dizer que as análises de Renov evocam tanto
o pensamento teórico quanto a produção artística de uma época que se mostrava ainda
preocupada em oferecer alternativas à noção de autobiografia que permeava parte do
imaginário da época. A ideia de que os relatos autobiográficos devessem necessariamente
dar vazão narrativa a um longo período da vida do autobiógrafo; serem construídos a
75
partir de uma estrutura dominantemente cronológica ou mesmo constituírem-se de
eventos públicos notáveis da vida do autor eram estruturas às quais o “novo momento”
da autobiografia resistia. O momento aprofundava o privilégio do auto em relação ao bios
– utilizando-se aqui da terminologia de James Olney (1980a, p.19-20) – como exploração
das potencialidades da autobiografia como linguagem autônoma. Desta forma, produções
deste período suscitavam o teste de estratégias narrativas que colocassem à prova a
maneira através da qual a “subjetividade” do cineasta e sua experiência enquanto
indivíduo poderia entrar em contato e em vibração com o espectador e sua própria
individualidade.
Há algumas ponderações que podem ser feitas em relação às proposições de
Renov. É interessante notar que o corpus fílmico trabalhado por Renov ao longo das
décadas não inclui nenhum filme da produção autobiográfica de Cambridge, ou mesmo
filmes de alguma forma vinculados à estilística do cinema direto. O nome de Ross
McElwee é mencionado en passant, porém a partir da ênfase não da herança de sua obra
em relação à metodologia de Cambridge, mas sim a partir da maneira que a voz over de
McElwee é atravessada mais por um aspecto de autoquestionamento e perplexidade, em
lugar de uma voz que emana certeza sobre o que diz (RENOV, 2004, p. xxi).
Evidentemente, como sugere Renov, o tratamento criativo da voz over de McElwee de
fato engaja um movimento de jogo com a meditação de seu criador a respeito de aspectos
de sua própria vida. A estilística de McElwee, entretanto, depende igualmente do pilar
vérité que ancora estas reflexões ao aspecto palpável da evolução de sua vida como
indivíduo que acompanhamos, enquanto espectadores, pelo curso de mais de três décadas.
Lost, Lost, Lost (1975), de Jonas Mekas, é um dos filmes aos quais Renov frequentemente
volta-se em suas elaborações teóricas. O filme de Mekas, canônico e muito revisitado em
outras análises sobre a relação entre cinema documentário e autobiografia, é também
marcado por uma construção narrativa que evoca, nas palavras do próprio Renov, mais
“fragmentação” do que “coerência”. É possível questionar, entretanto, o porquê de Renov
não ter se focado em uma obra como Diaries (1971 - 1976) de Ed Pincus, realizada no
mesmo período e tão vertiginosa quanto a obra de Mekas em relação às suas aspirações
artísticas no que concerne a potencialidade autobiográfica no cinema documentário. Ou,
ainda, o porquê de inexistir menção a outros filmes de um primeiro momento do
documentário autobiográfico nos EUA, como Nana, Mom and Me (Amalie Rothschilid,
1974), Joe and Maxi (Maxi Cohen, 1978) ou o quarteto de filmes da cineasta Miriam
76
Weinstein, My Father, the Doctor [1972], Living With Peter [1973], We Get Married
Twice [1973] e Call Me Mama [1976]. Pode-se sugerir que a atenção de Renov esteve
voltada tanto para uma produção cinematográfica quanto para concepções teóricas
vinculadas a outra corrente de pensamento vigente. Suas elaborações conceituais nutrem
um posicionamento disposto a construir, ou debater, a noção de um novo cinema
autobiográfico. Se há força analítica para apontar aquilo que seria a nova subjetividade
autobiográfica no cinema e no vídeo, pode-se questionar a que exatamente Renov se
refere como sendo o documentário autobiográfico velho, ou clássico.
Renov contempla analiticamente, ao longo de sua carreira, diferentes estratégias
fílmicas metodológicas sob a ótica da autobiografia, como a possibilidade de uma
construção narrativa em que o eu do cineasta transpira como parte importante da força
argumentativa dos filmes. O autor parece associar a possibilidade criativa de
autobiografia em um “novo” momento a partir de uma relação do discurso com a
revelação de “verdades interiores”, bem como com processos de provocação de dúvida e
evasividade. Vide texto posteriormente publicado pelo autor, já em 2009:
Que esperança temos em produzir relatos factuais ou verificáveis se os
filmes construídos sobre assuntos dos quais o cineasta possui um
conhecimento especial ou mesmo exclusivo – isto é, o “eu” – são
codificados pela evasão e pela dubiedade?
Colocando de outra forma, as “verdades” que a autobiografia oferece
são frequentemente aquelas relativas ao interior muito mais do que ao
exterior. Estou tentado em chamá-las de verdades psicológicas, mas
isso apenas revela uma preferência por um tipo de psicologia (o modelo
psicanalítico) em despeito de outro (o modelo behaviorista, em
ascensão nos anos 1950, no qual o Cinema Direto baseia sua busca pela
verdade.) (RENOV, 2014, p. 34)
É interessante que Renov assira que a “busca pela verdade” do cinema direto está
baseado em um modelo behaviorista. Pode-se de fato afirmar que parte significativa da
produção de conhecimento que alicerça a tradição do cinema direto – seja no início dos
anos 1960, em seu desenvolvimento na década de 1970 ou em sua herança para o cinema
contemporâneo – baseia-se em uma noção, de alguma forma, de análise comportamental.
A interação dos seres humanos com outros seres humanos e com o mundo material à sua
volta, por meio de diálogos, olhares e gestos, que podem denotar as relações de afeto ou
77
laços emocionais entre eles e que exteriorizam estados de consciência particularizados
por determinada circunstância espaço-temporal – tudo isto, efetivamente, faz parte do
universo conceitual no qual o cinema direto insere-se como possibilidade de construção
narrativa documentária. O aspecto de análise de comportamento que perpassa o
conhecimento produzido pelos filmes do cinema direto, entretanto, aponta não somente
para os filmes que se constroem a partir da subtração de elementos de reflexividade e/ou
interação – como é o caso, por exemplo, do comportamento travado entre John Kennedy
e sua cúpula em uma reunião, que testemunhamos em uma sequência de Crisis (Robert
Drew, 1963). A análise do comportamento entre o(s) corpo(s) em cena e a câmera – e em
especial, o indivíduo que segura ou autoriza esta câmera (o cineasta) – a partir de laços
sanguíneos, afetivos ou emotivos entre as partes, é um dos elementos que faz com que
determinados filmes produzam conhecimento que lemos e recebemos como
“autobiográfico”, cujos muitos casos são exemplificados ao longo deste trabalho. Renov
aponta que as verdades que a autobiografia oferece “são frequentemente aquelas relativas
ao interior muito mais que ao exterior”, porém deve-se frisar que não necessariamente ou
exclusivamente há de ser desta forma. É em outro trecho deste texto que Renov aponta
que “a autobiografia fílmica existe de várias formas” (2014, p. 39). Seguindo este
raciocínio, pode-se sustentar que a aproximação da possibilidade autobiográfica com o
modelo de produção de conhecimento do cinema direto é uma delas e que, frisamos, não
deve ser encarada como antiga ou obsoleta. Cineastas-autobiógrafos utilizam-se destas
metodologias em seus filmes – seja de maneira parcial ou dominante – de acordo com
uma intenção e visão artísticas, para a obtenção de determinados efeitos narrativos que,
provavelmente, não seriam obtidos através do emprego de outro tipo de metodologia.
A visão da construção de “novas subjetividades” em um momento pós-vérité
parte, como frisamos, da consideração de Renov acerca dos primeiros cânones do cinema
direto e da experiência de An American Family, veiculado no início da década de 1970
em uma emissora pública de televisão norte-americana. Renov aponta o fato de que o
início da produção do cinema direto era marcado por uma aura de pretensão de
objetividade em relação à possibilidade do registro imagético-sonoro de eventos do
mundo e uma subsequente narrativização destes eventos em forma de filme.
Efetivamente, como sublinhado pelo texto clássico de Brian Winston (1993), também
evocado por Renov, é possível dizer que no início dos anos 1960, existia a crença de uma
aproximação mimética do filme em relação à realidade. Através do recuo observativo da
78
câmera no ato de filmar, do emprego de uma narrativa cronológica nos moldes de causa-
e-consequência, da supressão de elementos que evidenciassem imageticamente a
presença da equipe de filmagem na tomada, da rarefação da voz over, entre outros
elementos, cineastas encabeçados por Robert Drew, como os irmãos Maysles e Richard
Leacock, acreditavam estarem inseridos em um terreno fílmico da objetividade e
imparcialidade. Além disto, Renov replica uma crítica frequente a An American Family,
a de que a versão veiculada do protótipo de Reality Show também propôs em sua
montagem final o mesmo jogo com a pretensão de objetividade em um ambiente
doméstico, diante das transformações em humores e afetos da família Loud ao longo dos
meses de filmagem. A falha de An American Family consistiria no fato de que a presença
da equipe de câmera e a intenção de narrativizar a vida dos Loud em forma fílmica influiu
consideravelmente no comportamento dos membros da família para consigo próprios e
diante da câmera – fenômeno cujos traços teriam sido apagados em sua totalidade da
narrativa de An American Family. A consequente separação do casal Loud, ao longo do
registro do programa, seria fruto da complexa relação entre a produção de An American
Family e a família, sobre a qual existe, por exemplo, a estória do envolvimento afetivo
do produtor Craig Gilbert com a matriarca Patricia Loud. A supressão destas informações
nos episódios da série consistiria, para diversos de seus críticos, em uma deslealdade
moral e ética.
Com efeito, pode-se sustentar que o desenvolvimento da metodologia do cinema
direto em seu início era envolto por certa ingenuidade no que concerne à possibilidade de
um discurso fílmico “objetivo” diante do registro e narrativização dos eventos e das
pessoas que habitam o mundo em que vivemos. Entretanto, não se pode restringir o
pensamento metodológico do cinema direto apenas a esta tentativa do alcance de uma
postura “objetiva”, neutra ou imparcial, do registro fílmico em relação ao mundo. Há de
se levar em consideração o desenvolvimento pelo qual passou a noção de cinema direto
a partir, principalmente, da segunda metade da década de 1960, e nos filmes de seus
cineastas mais criativos. Os próprios cineastas estadunidenses envolvidos com a
concepção do cinema direto (ou boa parte deles) reavaliaram criticamente o
posicionamento teórico-metodológico inicial do grupo. A filmografia de cineastas como
Ed Pincus, Albert e David Maysles e Richard Leacock mostra que o cinema direto é
alicerçado em um forte terreno conceitual, que dialoga com sua própria tradição e que
cujo florescimento em novas frentes é detectável ao longo dos anos. Se Jane (1962),
79
produzido por Robert Drew e dirigido pelos irmãos Maysles, pode ser citado como um
exemplo deste primeiro momento do cinema direto sobre o qual recai a crítica de Renov,
poder-se-ia também enxergar a evolução deste procedimento – no que concerne à
interação e à reflexividade da relação entre equipe de filmagem/personagem – em um
filme como Gray Gardens (1977). A sugestão é a de que existe mais complexidade na
noção de “cinema direto” enquanto fenômeno e como possibilidade de construção/entrega
de conhecimento via narrativa fílmica do que normalmente tenta enquadrar seu
criticismo.
Talvez o problema maior consista na carga valorativa que um termo como “era
pós-vérité” carrega consigo. De alguma forma, o termo promove a ideia de que o cinema
direto como alicerce conceitual teve um prazo de validade demarcado, tornando-se
obsoleto como possibilidade de registro e narrativização do mundo em que vivemos a
partir de determinado período. Renov, por exemplo, aponta que a era pós-vérité toma
forma mais propriamente da metade da década de 1970 em diante. A filmografia
escolhida por Renov para análise, de fato, compromete-se pouco com a noção de cinema
direto ou sua tradição – filmes como Lost, Lost, Lost ou History and Memory engajavam-
se em outros questionamentos emergentes para suas propostas artísticas de representação
do mundo e da representação do “Eu”. No período, entretanto, houveram outras
experiências fílmicas em florescimento que não compartilhavam necessariamente uma
visão fragmentada de sujeito, nem mesmo encaravam o uso dos alicerces metodológicos
do cinema direto como uma possibilidade nostálgica. Ainda na década de 1970 e na
década de 1980, o debate acerca do desenvolvimento do cinema direto estava em
ascensão. Cineastas como Ed Pincus e seus pupilos estudavam possibilidades criativas de
lidar com a cotidianidade (everydayness) e com a representação do “Eu” do cineasta e de
seu universo doméstico em um movimento que apenas começou na metade da década de
1970 e consolidou-se na década de 1980. Existia uma ebulição teórica acontecendo em
centros universitários como o MIT Film Section que apontava para novos caminhos do
cinema direto. Um dos princípios destes caminhos consistia na consideração de aspectos
de autorreflexão do cineasta, de seu universo doméstico e de seus laços familiares – uma
narrativa decididamente autobiográfica – que partia de desenvolvimentos tecnológicos e
metodológicos que ainda estavam sendo estudados.
Diversos filmes citados por Renov no período pós-vérité, de 1970 a 1995, segundo
o autor, baseiam-se na tematização de construção identitária para suas empreitadas
80
autobiográficas. É interessante mencionar, entretanto, que alguns cineastas, realizaram
filmes sob esta mesma motivação ideológica, porém com meios e fins narrativos distintos
dos filmes analisados pelo autor. Há exemplos que podem ser destacados nos filmes já
citados até aqui: a motivação feminista é latente nos filmes das cineastas Miriam
Weinstein, Amalie Rothschild, Maxi Cohen e Joyce Chopra. A construção de identidade
homossexual figura em Silverlake Life: The View From Here (1993). O olhar para
questões de identidade racial é proposto na busca de Marco Williams em In Search of
Our Fathers (1992). Estes filmes constroem-se a partir de metodologias que flertam com
o cinema direto e dependem de estruturas referenciais para seus efeitos narrativos.
Em outras palavras, talvez a função normativa de expressões como “Era Pós-
Vérité” e “Nova subjetividade” parecem conflitar com a concomitância, à época, da
produção de filmes que também ampliavam, atualizavam e evoluíam a noção de
“documentário autobiográfico” a partir de outras metodologias – sensivelmente mais
referenciais ou vérité – e que nem por isto careciam de valor inovador. É neste sentido
que o autor Jim Lane apresenta uma análise reativa às ponderações de Renov. No primeiro
capítulo de “The Autobiographical Documentary in America”, Lane aponta que, segundo
a lógica de Renov, se o documentário autobiográfico constrói um sujeito que se apresenta
em uma posição totalizante (ao invés de fragmentada), nos moldes da autobiografia
“clássica”, o documentário seria epistemologicamente suspeito (LANE, 2002, p. 26) neste
novo cenário. O ponto de Lane é o de que a tentativa de pensar uma “nova” autobiografia
cinematográfica parece ser um movimento apressado, principalmente diante do fato que
não houve detenção acadêmica anterior em relação a um consenso daquilo que seria a
“velha” autobiografia. Nas palavras de Lane:
Devido ao fato de a academia ainda ter de conceituar o que seria a
“velha” autobiografia no Cinema e no Vídeo Documentário, não
devíamos ter cautela em definir a “nova” ou “anti-autobiografia”, às
custas da velha? O fato do sujeito ser totalizante ou não, centrado ou
descentrado, parece ser uma questão além do ponto em termos daquilo
que a nova autobiografia deveria ser. O Documentário Autobiográfico
oferece uma plenitude de possibilidades para a autoinscrição cinemática
– seja ela certa ou incerta. (LANE, 2002, p. 28. Tradução nossa.)
Se Renov propõe que a “nova” autobiografia é marcada por uma construção
subjetiva atravessada pela “instabilidade”, pela fragmentação e por um movimento
81
autoquestionador, Lane sugere que, mesmo neste novo momento, a aposta em estruturas
narrativas referenciais para a construção autobiográfica não deixa de ser uma opção
artisticamente válida. É possível sugerir que a resposta de Lane a Renov reivindica o
entendimento de que o élan desconstrutivista que permeou a autobiografia em
determinado momento da história não apresenta um fim em si mesmo.
Renov, em sua definição acerca da “nova autobiografia”, baseia-se amplamente
na noção de autobiografia proposta pela experiência da leitura de Roland Barthes par
Roland Barthes. Publicado em 1975, trata-se de um texto frequentemente revisitado por
autores adeptos a este momento de criticismo de uma autobiografia dita “clássica”, no
que diz respeito à adesão de uma narratividade biográfica, cronológica ou historicista
como aporte narrativo. De fato, neste período, Barthes apresentava uma postura
abertamente desconstrucionista em relação ao sujeito-autor. Como exemplo, pode-se
resgatar uma de suas passagens mais conhecidas: “Não digo: 'Vou-descrever-me', mas:
'Escrevo um texto e o chamo de R.B.'. Dispenso a imitação (a descrição) e me confio à
nominação. Então eu não sei que no campo do sujeito não há referente? ” (BARTHES,
2003, p. 69). Há de se considerar, também, que a evolução da obra de Barthes mostra que
tal postura foi sensivelmente abrandada pelo autor, com o passar do tempo. É interessante
notar como “A Câmera Clara”, sua obra derradeira, apresenta-se como uma contrarreação
à postura arrojada de Barthes no livro anterior. Paul John Eakin assere (1992, p. 18) que
no final da década de 1970, Barthes manifestou uma melancolia profunda a partir da
percepção de seu envelhecimento. Eakin menciona que Barthes experienciava “um
remorso em relação à sua carreira, percebendo uma ruptura completa entre sua vida
mental e sua vida emocional” (1992, p. 18), confessando o desejo de “escapar da prisão
da metalinguagem crítica, e através de uma linguagem mais simples e com mais
compaixão, fechar a lacuna entre a experiência privada e o discurso público”.
“A Câmera Clara”, publicado no ano da morte de Barthes, em 1980, apresenta
preocupações autobiográficas bastante distintas daquelas que podem ser detectadas em
sua obra de cinco anos antes. O luto pela morte recente da mãe e a sensibilidade diante
da efemeridade da vida transpiram e apresentam-se em um texto matizado por tons
emotivos consideravelmente menos detectáveis na obra anterior. Em pouco tempo, a
noção de repúdio sobre a comunicação genuína entre autor e leitor dá lugar a seu oposto,
ao que Eakin aponta como o desejo de fechar a lacuna entre uma experiência privada e o
discurso público. Outra pista interessante deixada por Barthes, e que se apresenta como
82
um ponto interessante para este estudo, é o protagonismo que a foto de sua mãe tem em
sua análise, como um lembrete da transitoriedade do tempo e a força de sua
transformação. Para Barthes, como aponta Eakin, a fotografia é a mais referencial de
todas as artes, “autoralmente testificando a presença daquilo que retrata. Na visão da
lente, poderíamos dizer, sempre existe um referente. E Barthes encontra nas fotografias a
verdade de que estes referentes realmente existiram: ‘Toda fotografia é um certificado de
presença’” (EAKIN, 1992. p. 19).
É possível lançar a hipótese de que a transposição de conceitos da literatura e das
narrativas autobiográficas literárias para o cinema documentário às vezes ocorra de
maneira um pouco apressada, no que diz respeito a observância das particularidades
ontológicas que distinguem ambos os sistemas. As proposições de Paul de Man em um
texto como “Autobiography as De-Facement”, por exemplo, dialogavam necessariamente
com uma longa tradição literária e transpiravam um momento intelectual que colocava
em cheque possibilidades de representação a partir da linguagem escrita e do sistema
simbólico das palavras. No caso do cinema, entretanto, a relação umbilical entre
imagem/som e o mundo (o presente fenomenal, “a coisa em si”) é bastante distinta da
construção literária autobiográfica, sendo que a transposição conceitual entre os sistemas
oferece resistência. Talvez seja interessante concentrar-se na consideração do fato de que,
antes de sua morte, Roland Barthes, outrora o “eu sem referente”, postula que a fotografia
era a mais referencial de todas as artes. Admitindo a relação conceitual entre cinema e
fotografia, portanto, o documentário poderia servir a si próprio de sua referencialidade
para o oferecimento de uma perspectiva ontologicamente única como alternativa de
construção narrativa autobiográfica.
Em outras palavras, a reação de Jim Lane em relação a Renov leva-nos a inferir
que talvez os estudos de autobiografia no cinema documentário tenham se alinhado muito
rapidamente ao discurso de viés desconstrutivista, antes que houvesse suficiente detenção
sobre o que as narrativas cinematográficas poderiam contribuir para a noção de
autobiografia, em um nível mais fundamental. Pode-se questionar o porquê de determo-
nos tão longamente, aqui, em proposições de textos como os citados de Michael Renov –
que, no limite, também não se tratam de propostas necessariamente novas, datando de
duas a três décadas atrás. Sugerimos, aqui, que a herança do élan pós-estruturalista é até
hoje reproduzida com força na teoria crítica e nas análises que se fazem dos
documentários autobiográficos. Em linhas gerais, parece continuar a existir bastante
83
preocupação com a identificação de metodologias e aspectos narrativos que sublinhem
que o ato de narrar a respeito de aspectos da própria vida, no cinema documentário, deve
permanecer sob constante suspeição diante das vicissitudes do trabalho com a linguagem.
Um exemplo que pode ser extraído do contexto nacional é a discussão a respeito
de alguns dos primeiros filmes relativos à produção autobiográfica no Brasil. Em um
debate consistente sobre o assunto, o autor Jean-Claude Bernardet discorreu sobre os
procedimentos metodológicos de 33, de Kiko Goifman (2002) e Um Passaporte
Húngaro, de Sandra Kogut (2001), filmes que denomeia “Documentários de Busca”.
Bernardet serve-se de diálogos que travou com Kogut e Goifman sobre o
desenvolvimento narrativo dos documentários e sobre a relação de cada um deles com
suas empreitadas, questionando o limite dos papéis de diretor e personagem que são
trazidos para o primeiro plano na discussão sobre estas e outras narrativas autobiográficas.
Sandra Kogut ressalta o fato de que em determinados momentos atuou como
“personagem” no momento da tomada, fingindo desconhecimento acerca de determinado
fato que ainda não havia sido revelado diante da câmera e que julgava importante para a
construção narrativa. Goifman, por sua vez, revela que a sequência em que visita uma
cartomante para questioná-la sobre o paradeiro da mãe biológica, em 33, ocorreu no início
de sua jornada e não como aparece na narrativa, em seu final – intervenção esta
deliberadamente omitida por sua persona durante o filme. Diante destas e outras
revelações “invisíveis” ao espectador de filmes como 33 e Um passaporte Húngaro,
Bernardet comenta:
Seria oportuno agora remeter a uma questão já discutida durante esta
conferência, que nos leva a perguntar se esses dois filmes são
documentários ou filmes de ficção. Eu tenderia a dizer inicialmente que
são filmes de ficção elaborados com materiais extraídos de situações
reais. Quer dizer, no fundo se trata de uma espetacularização da vida
pessoal, com, certamente, duas facetas: como toda arte autobiográfica,
é uma arte que expõe a pessoa, mas que, na mesma medida em que
expõe a pessoa, a mascara. Nada como a arte biográfica para a pessoa
não se revelar, enquanto os leitores (ou os espectadores) acreditam que
ela se revela.
Essas pessoas-personagens obedecem a uma construção dramática. Os
personagens têm objetivos, os personagens enfrentam obstáculos (que
eles superam ou não superam), alcançam seus objetivos ou não,
exatamente como nos filmes de ficção, e tudo isso organizado numa
narrativa. Então, creio que podemos falar de uma vida pessoal que se
molda conforme as regras da ficção. Ou de uma ficção que se alimenta
84
diretamente da vida pessoal; eu diria uma ficção que coopta a vida
pessoal. (BERNARDET, 2005, p. 148-149)
O argumento de Bernardet remete, de várias maneiras, ao filão crítico que tende a
pensar o manejo da linguagem como agente de uma guinada para a “ficção” do discurso
autobiográfico. O apontamento de que há uma “espetacularização da vida pessoal”, um
discurso que “expõe ao mesmo tempo que mascara” ou mesmo o fato de colocar sob
suspeita que possa existir comunicação entre autor e leitor/espectador sob a ótica da
autobiografia (“Nada como a arte biográfica para a pessoa não se revelar, enquanto os
leitores [ou os espectadores] acreditam que ela se revela”) alinham-se a certo ceticismo
em relação às possibilidades referenciais do documentário autobiográfico. Ainda neste
sentido, diante dos artifícios de construção narrativa indicados pelos diretores, Bernardet
opta por utilizar o termo “ficção” em contraponto à utilização de “documentário”.
De maneira análoga à realizada em relação às proposições de Michael Renov, é
possível realizar alguns comentários sobre o posicionamento de Bernardet. Pode-se
sugerir que as metodologias narrativas empregadas tanto por Sandra Kogut quanto por
Kiko Goifman não ferem, por si só, nem o estatuto destes filmes enquanto
“documentários” e nem, em nosso ponto de vista, enquanto narrativas autobiográficas. O
fato de Goifman ter optado por manusear a ordem de um dos eventos narrativizados em
33 ou o fato de Sandra Kogut ter comportado-se na tomada fílmica de maneira, de certa
forma, “desleal”, em prol do sucesso narrativo em Um Passaporte Húngaro, não são
estratégias que, em essência, colocam em cheque a proposição autobiográfica dos filmes.
Existe a impressão de que títulos classificatórios como “documentário” ou
“autobiografia” poderiam ser empregados apenas a obras atravessadas por uma espécie
de pureza narrativa ou que empregassem o “grau zero” da linguagem cinematográfica.
Segundo o argumento de Bernardet, questionar a ordem cronológica em apenas um evento
de uma narrativa autobiográfica seria suficiente para colocar em suspeição a própria
possibilidade de existência da autobiografia enquanto linguagem autônoma do domínio
da não-ficção.
De encontro a este argumento, entretanto, é possível sustentar que a possibilidade
de “construção” existe na mais ortodoxa das narrativas autobiográficas e constitui-se
como parte inerente do próprio trabalho com a linguagem. Existem, evidentemente,
narrativas autobiográficas cujo “jogo” reside justamente em lidar de maneira ambígua
85
com a possibilidade de referência ao mundo “real” e a possibilidade de fabulação e
invenção do “eu” – uma potencialização do artifício que, certamente, não se aplica à
intenção de todos os cineastas-autobiógrafos e seus documentários. Novamente, frisa-se
que “autobiografia” e “documentário” parecem ter passado por processos de suspeição
semelhantes, justamente pela relação com o real que ambos os conceitos apresentam –
“como a autobiografia, também o documentário resiste aos simples prazeres daquilo que
é imaginário, e deriva seu prestígio a partir da ilusão referencial que produz”, aponta a
autora Susanna Egan (EGAN, 1994, p. 600). Frisar a possibilidade de manipulação da
matéria-prima cinematográfica em narrativa não faz com que inexista a possibilidade de
encarar a autobiografia, ou documentário, como sistemas particulares de produção e
recepção de conhecimento.
Além disso, pode-se sugerir que existe um exercício de “identificação” do
espectador que distingue seu visionamento de filmes ficcionais, se em relação aos
documentários – incluindo-se, aí, os documentários autobiográficos. Em texto baseado
nas teorias de Jean-Pierre Meunier, a autora Vivian Sobchack dedica-se a expor o que
nomeia de “consciência documentária” (documentary consciousness), o conjunto de
condições que distinguem a maneira através da qual nos identificamos com filmes
documentários. Sobchack aponta que a estrutura das distinções percebidas que
experienciamos com a imagem cinematográfica foram subsumidas e elididas pela teoria
de identificação cinematográfica baseada na psicanálise lacaniana (SOBCHACK, 1999,
p. 241). Nas palavras de Sobchack:
Assumindo o "desconhecimento" regressivo do espectador da imagem
para o referente, e combinando o "irreal" e o "ausente" na ordem
privilegiada do Imaginário, esse modelo teórico dominante é altamente
problemático para investigar a estrutura da identificação documental. O
motivo é que este modelo trata o senso fenomenológico do espectador
do "real", na maneira que ele se relaciona com a representação
cinematográfica de qualquer espécie, como se fosse essencialmente
fantasmático em sua natureza, e parece não permitir as diferenças
estruturais que distinguem o nosso envolvimento com imagens
cinematográficas que consideramos como representações
documentárias do "real" daquelas que consideramos como
representações reais de uma "ficção". (SOBCHACK, 1999, p. 241.
Tradução nossa.)
86
Sugere-se, aqui, que existe uma tendência analítica que busca identificar as
maneiras através da qual determinados discursos autobiográficos acabam por revelar a
máscara do autobiógrafo, ou que busca jogar luz nos sulcos da linguagem que evidenciam
a fratura de uma expectativa quiçá naturalista – uma expectativa que, no limite, talvez
não devesse existir. Da mesma forma que existe o questionamento acerca da possibilidade
de “invenção” referente a qualquer documentário autobiográfico, parcela significante do
sucesso destes filmes recai na maneira em que podemos crer que muitos de seus aspectos
narrativos, de fato, apontam para a vida de seu criador, que transcorre para além da tela.
Tome-se como exemplo a recepção de um filme como Sherman’s March, de Ross
McElwee. O filme que levou o diretor ao reconhecimento apresenta uma potencialidade
do uso de artifícios narrativos que levanta curiosidade acerca de até que ponto estamos
diante de uma faceta de McElwee enquanto personagem e enquanto um corpo que aponta
para sua individualidade no mundo “real” – um dopplegänger, segundo o autor Scott
MacDonald. Parte de nosso envolvimento com McElwee em Sherman’s March depende
da acepção de que diversos elementos da quixotesca jornada do personagem/diretor
apontam para uma vida vivida para além da tela. Esta é uma expectativa não apenas do
público, mas de seu diretor. Entretanto, quando Scott MacDonald entrevista Ross
McElwee a respeito do filme, o autor assere que sua motivação na jornada em busca do
amor romântico pelo Sul dos Estados Unidos só poderia ser uma “muleta” narrativa sobre
a qual o cineasta se debruça para fins cinematográficos: “Sherman’s March finge ser a
respeito de sua busca pelo amor, mas na realidade você apenas está usando isto para fazer
um longa-metragem”. McElwee, entretanto, responde negativamente: “Não sei se
concordo com a noção de que a busca pelo amor é um simples MacGuffin em Sherman’s
March. Parte de mim realmente estava esperando que a mulher certa se materializasse
pela miasmática névoa do Sul” (MACDONALD, 2014, p. 163-164). Se parte da mágica
de Sherman’s March deliberadamente depende da construção hiperbólica da persona
desajeitada de McElwee, levando as coisas às últimas consequências em uma jornada com
destino incerto pelo Sul dos Estados Unidos, outra parcela de sua mágica reside nas
diferentes maneiras através das quais o filme “toca o mundo” – tanto o “mundo” de seu
criador quanto o mundo que compartilhamos em sociedade. McElwee leva a cabo a
potencialização de uma caricatura de si próprio como parte do efeito dramático de
Sherman’s March, porém, em contraponto, elementos como a relação de cumplicidade e
afeto entre a irmã Dede e si próprio; ou a suspeição de seu pai e de sua família em relação
87
ao seu ofício enquanto documentarista; a preocupação de Charleen Swansea com o
diretor; a tematização da enfermidade e morte da mãe de McElwee – estes e outros
aspectos adquirem força narrativa justamente por apontarem para a vida que o cineasta
vive cotidianamente.
Tomemos novamente uma sugestão de Bernardet para análise, a de que “Nada
como a arte biográfica para a pessoa não se revelar, enquanto os leitores (ou os
espectadores) acreditam que ela se revela”. Questiona-se, entretanto, o quanto este
aspecto seria dominante na “arte biográfica”, no caso dos documentários autobiográficos.
O argumento aqui é o de que mesmo que exista a possibilidade do cineasta-autobiógrafo
“esconder-se” ao longo do relato, são muitos os casos em que se busca o oposto. Diversos
cineastas apostaram no cinema documentário como maneira de revelação, cristalização
de uma vida ou compartilhamento de determinado aspecto individual justamente pelo
aspecto referencial possibilitado por ele. Da mesma forma, parte importante da força
narrativa destes filmes reside no estabelecimento de um pacto em relação ao desejo
sincero de revelação, da parte do cineasta, e da crença nesta sinceridade, da parte do
espectador.
Em outras palavras, encarar um filme como Silverlake Life: The View from Here
a partir de uma perspectiva “ficcional” seria negligenciar a contundência referencial
evocada por sua narrativa. Como já descrito, assistimos ao cotidiano do casal Tom Joslin
e Mark Massi durante um período prolongado de tempo, construído dominantemente a
partir de uma macroestrutura cronológica e que apresenta uma construção dramática de
desenvolvimento narrativo progressivo, causa e consequência. Joslin faz do registro
fílmico – no vislumbramento de uma narrativa futura – uma maneira de cristalizar o
processo pelo qual estava passando e que o levou à morte. A câmera está presente até nos
últimos de seus dias. Na impossibilidade física de realizar o trabalho de filmagem, seu
parceiro leva adiante a empreitada, dividindo sua própria tristeza diante da morte iminente
do diretor com a tarefa inadiável do registro fílmico em um momento crítico. Estamos
juntos do parceiro Mark Massi e do corpo inerte de Tom Joslin na última homenagem do
parceiro, uma canção e uma declaração de amor regida pelo enquadramento de câmera e
mãos trêmulas. O autor Bill Nichols comenta sobre a cena:
Mark Massi segura a câmera que treme, apontada para o corpo morto
de seu amante na cama que eles têm compartilhado por anos. O
88
conhecimento, na sua associação tradicional com a coerência e o
controle, exige que se expanda para abranger a experiência trêmula e
imediata em si própria, pois tais momentos devem ser nomeados como
uma forma de “conhecer”. Não apenas a forma (filme caseiro
diarístico), mas o estilo (a visão trêmula da câmera, o embargamento na
voz de Massi, a sensação palpável de espaço entre os “rápidos e os
mortos”7 quando a câmera de Massi procura manter tenazmente a visão
do corpo nu e inerte de Joslin) atestam um conhecimento embutido no
coração e repleto de sabedoria (conhecimento desse sistema maior do
qual fazemos parte). (NICHOLS, 1994, p. 10-11. Tradução nossa.)
Utilizamo-nos da interpretação de Bill Nichols acerca da cena da morte de Tom
Joslin como subsídio para o entendimento acerca de como filmes que bebem da herança
do cinema direto produzem conhecimento autobiográfico. O rol de elementos que
compõem a tomada do corpo morto de Joslin, conforme filmado por seu parceiro, aponta
para a particularidade insubstituível da circunstância espaço-temporal que a engloba. Este
conhecimento de “particularidade insubstituível” evoca a máxima de Heráclito, quando
diz que não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. O presente fenomenal sugerido por
Heráclito na imagem do fluxo de um rio é representado pela tomada de Mark Massi e
aponta tanto para a realidade externa, material, quanto para a realidade interna, aquela
que diz respeito à tomada de consciência dos corpos em cena. Materialmente, não existiria
outra circunstância espaço-temporal que pudesse substituir a tomada realizada por Massi,
momentos após a passagem do parceiro, com os olhos ainda entreabertos e com feição
fixa. Como apontado por Bill Nichols, a tomada evoca também um estado de espírito
particular – uma tomada de consciência que seria irrecuperável em outra circunstância. O
chacoalhar da câmera, a voz embargada de Mark Massi, o canto da canção de despedida,
a visão de um companheiro de décadas morto no leito do lar do casal – todos estes
elementos traduzem-se naquele momento preciso na relação entre o que é feito visível
pela tomada e o corpo de quem segura a câmera.
Por esta tomada e pela construção narrativa como todo, existe um aspecto quase
“messiânico” que rege a empreitada de Tom Joslin para com Silverlake Life: Joslin morre
diante da câmera como teste da potencialidade referencial do cinema documentário
aplicado a uma ótica autobiográfica. Há um aspecto de coragem na conduta de Joslin,
7 O autor faz referência à expressão “the quick and the dead”, utilizada em contextos de duelos de armas de fogo em narrativas de faroeste. Pode-se interpretar que Nichols refere-se ao “espaço palpável” entre a morte e a vida justapondo a câmera vacilante de Mark Massi – a vida em sua emoção – diante do corpo morto do parceiro Tom Joslin.
89
que, como frisado, adiciona o elemento “câmera” a um caminho que reconhecia como
cheio de desventura e frustração, tendo como finalidade assumir-se como representante
de uma situação delicada, porém que julgava importante que fosse registrado, cristalizado
e compartilhado enquanto narrativa. Existe, na atitude de Joslin e do parceiro em
Silverlake Life, um “impacto emocional da ‘realidade’”, conforme coloca Susanna Egan
em relação ao filme, que “impede qualquer simples evasão pós-estruturalista” (EGAN,
1994, p. 609).
De alguma maneira, pode-se sugerir que houve um questionamento crítico
vigoroso acerca da possibilidade de relação com o mundo que postulam filmes inseridos
no universo conceitual do cinema direto e que parece ter-se perpetuado. Há um
sentimento de inclinação em encontrar a “arte autobiográfica”, no seu estado mais puro,
em movimentos que possivelmente escapem à lógica referencial. “Invenção”, neste caso,
não estaria ligada à maneira através da qual um filme lança mão de diversos recursos
estilísticos para potencializar a “âncora” da relação entre narrativa e a vida de seu criador,
mas, sim, a criatividade residiria justamente nos aspectos pós-vérité. Se a noção de uma
suposta “objetividade” foi designada a filmes que se derivam do cinema direto, a
“subjetividade” autobiográfica residiria em seu contraponto, na utilização de elementos
estruturais que se afastam desta noção.
O esforço aqui, finalmente, reside em trazer luz à maneira através da qual
cineastas-autobiógrafos e teóricos refletiram sobre a relação particular que poderia ser
estabelecida entre cinema documentário e autobiografia, sobretudo a partir da lógica das
potencialidades referenciais deste tipo de cinema. Postulamos que a adesão a certa ótica
vérité aplicada aos documentários autobiográficos não apresenta relação intrínseca com
o valor criativo das obras. A “subjetividade” autobiográfica, portanto, não se evidencia
distinta em sua qualidade se comparamos um caso como Lost, Lost, Lost, de Jonas Mekas
com Diaries (1971 - 1976), de Ed Pincus. Ambos os filmes preservam seus estatutos
autobiográficos de maneiras diferentes, utilizando ferramentas distintas para
determinados efeitos narrativos e sendo intencionados e concebidos pelos seus diretores
justamente enquanto tais. É importante evidenciar, entretanto, que o filme de Jonas Mekas
e o de Ed Pincus – por meio de seus materiais imagéticos e sonoros, estruturas narrativas
e metodologias empregadas – relacionam-se com a vida de seus criadores e com a
realidade que os cerca de maneiras diferentes. Esta é uma discussão válida que contribui,
90
como todo, para o entendimento da amplitude do fenômeno dos documentários
autobiográficos.
Diversos autores trabalharam mais de perto com documentários autobiográficos
que sublinham esta possibilidade referencial como matéria-prima narrativa. Autores
como Susanna Egan (1994), Jim Lane (2002), Scott MacDonald (2013), William
Rothman (1996) são alguns dos quais que apresentam reflexões acerca da produção
autobiográfica sob uma ótica que se inclina a olhar a maneira através da qual a relação
entre cineasta, mundo e narrativa apresenta-se particularmente no caso do cinema
documentário. No campo da prática, é possível dizer que o trabalho conceitual/artístico
que aconteceu a partir da década de 1970 em Cambridge, sobretudo na experiência do
MIT Film Section, foi um centro aglutinador pioneiro deste tipo de reflexão. A produção
de Ed Pincus (e, posteriormente, de seus alunos e outros cineastas influenciados por seu
trabalho) evidencia o interesse na exploração de uma possibilidade de cinema
autobiográfico balizado pela tradição do cinema direto.
É possível dizer que Diaries (1971 - 1976) continua sendo um dos documentários
que mais firmemente pôs à prova a possibilidade de narratividade autobiográfica a partir
da herança conceitual do cinema direto. Realizado em um período total de dez anos (cinco
de filmagem e mais cinco de espera, antes de sua finalização), o diário filmado de Ed
Pincus talvez não tenha recebido tanta atenção crítica – isto se pensarmos na ambição do
projeto como todo. Como frisado, o filme de Pincus é pouco exposto na obra crítica de
autores a quem comumente recorre-se nos estudos dos documentários. Pode-se lançar a
ideia de que o filme de Pincus tenha caído em uma espécie de “buraco negro” teórico-
crítico, devido à época de seu lançamento em relação ao ínterim conceitual no qual estava
inserido. Pincus realizou o filme entre 1971 e 1976, porém lançou-o apenas no início da
década de 1980. O autor Jim Lane8 aponta que as primeiras exibições “públicas” de
Diaries aconteceram ao longo de um semestre, em uma disciplina de cinema
documentário lecionada por William Rothman em 1981, na Universidade Harvard. É
possível vislumbrar que, neste novo momento, a narratividade autobiográfica do filme –
ainda que trouxesse novidades – talvez estivesse muito atrelada ao desenvolvimento
conceitual do cinema direto para que fosse visto sob a perspectiva de “novidade” nos
estudos críticos. Conforme exemplificado pelos textos de Michael Renov aqui citados e
8 Em troca de e-mails realizada para esta pesquisa, em janeiro de 2016.
91
debatidos, talvez neste novo momento existisse euforia crítica maior para a análise de
filmes e vídeos que rompessem mais deliberadamente com qualquer herança do cinema
direto – já, neste momento, epistemologicamente suspeito. Hipotetiza-se, portanto, que a
força do momentum pós-vérité, como sugerido por Renov, tenha colocado o
reconhecimento da inventividade de uma obra como Diaries sob a égide de uma “velha
novidade”. Ou seja, a observância de uma unidade identitária, a utilização da construção
narrativa cronológica, o rigor com uma montagem sensivelmente menos “fragmentada”
– todos estes elementos poderiam soar narrativamente conservadores em um momento de
ruptura, sobretudo, de diversas destas estruturas referenciais.
É possível dizer que Pincus inaugura uma série de questões em relação à
possibilidade da construção autobiográfica sob a ótica do cinema direto, de sua
metodologia e estilística particular. Sua influência desemboca na experiência
autobiográfica de Cambridge, em suas universidades, que é responsável pela formação
autoral de Ross McElwee. A estilística do cinema direto aplicado à ótica autobiográfica
não é restrita a determinado período. Tal aporte metodológico desdobra-se como uma das
muitas possibilidades de construção narrativa e da possibilidade de o cineasta-
autobiógrafo referenciar-se a uma experiência individual, que figurando como matéria-
prima narrativa de diversos documentários autobiográficos contemporâneos. O
desenvolvimento histórico deste fenômeno e algumas das suas principais questões serão
expostas no capítulo seguinte.
92
2. O Documentário de Cambridge e suas Universidades
2.1. Robert Drew em Harvard e Cinema Direto: preparação conceitual
O documentário autobiográfico de Cambridge concentra-se em dois focos, sendo
eles a experiência do MIT Film Section e a produção da Universidade Harvard, a partir
da atividade do departamento Visual and Environmental Studies (VES), havendo
intercâmbio desta produção entre as duas universidades. Desde a década de 1950 o debate
fomentado em centros universitários de Cambridge privilegiou uma noção do fazer
documentário a partir de um viés autoral em diferentes facetas – entre elas, a do
documentário autobiográfico. O desenvolvimento do documentário autobiográfico
relacionado à região parte da tradição do cinema direto e relaciona-se com suas as
questões metodológicas, estilísticas e narrativas. Tal produção foi tematizada
academicamente ao longo das décadas por autores como Jay Ruby (1977 e 1978), William
Rothman (1996) e Jim Lane (1997 e 2002), havendo também análises que tratam
especificamente de cineastas que podem ser relacionados a esta produção, como Ross
McElwee. Em 2013, a principal publicação a respeito do tema é lançada, “American
Ethnographic Film and Personal Documentary: The Cambridge Turn”, de Scott
MacDonald9 (2013). A publicação de MacDonald expõe em extensão a produção
documentária de Cambridge sob a ótica do filme etnográfico (na produção de cineastas
como John Marshall, Robert Gardner e Timothy Asch) e a do documentário
autobiográfico, tomando como objeto de estudo a obra de cineastas como Ed Pincus,
Alfred Guzzetti, Robb Moss de Ross McElwee. No texto, MacDonald aglutina a produção
de Cambridge e seus cineastas em torno de posicionamentos éticos e metodológicos
comuns.
De maneira distinta se em comparação a metrópoles como Nova Iorque ou Los
Angeles, a região de Boston, onde a cidade de Cambridge está inserida, é reconhecida por
9 Scott MacDonald já lidara anteriormente com a obra de diversos cineastas pertencentes à história do cinema de Cambridge, como Ross McElwee e Robb Moss, na série de publicações “A Critical Cinema”. Atualmente em seu quinto volume, trata-se de uma série de livros publicada desde 1988 no qual o autor realiza uma compilação de entrevistas com cineastas independentes norte-americanos. Parte do trabalho de entrevistas realizado para “American Ethnographic Film and Personal Documentary: The Cambridge Turn” foi publicado em um livro seguinte, “Avant-Doc” (MACDONALD, 2014), que conta com depoimentos de cineastas pertencentes ao grupo de Cambridge, como o próprio Ross McElwee, Alfred Guzzetti, Ed/ Jane Pincus e Nina Davenport.
93
concentrar em uma área pequena um número elevado de instituições de ensino superior e
centros de pesquisa de excelência. Os casos mais notáveis são a Universidade Harvard e
o MIT, cujos prédios principais estão separados por uma distância de menos de dois
quilômetros na cidade de Cambridge, além de universidades como a Boston University,
o Emerson College e a Berklee College of Music – maior faculdade independente de
música do mundo. Separadamente ou integrados às universidades, a região abriga número
significativo de museus, arquivos e bibliotecas de todas as áreas do conhecimento, sendo
destino frequente de pesquisadores de várias partes do mundo.
A inclinação à produção de conhecimento e a epistemofilia são, portanto, parte
integrante da atmosfera de Cambridge e Boston. É possível sugerir que este foi um dos
motivos pelos quais o cinema documentário, em sua modernidade, encontrou na região
um espírito profícuo para o desenvolvimento, tanto a partir do interesse da população
intelectual (professores, pesquisadores) quanto em relação à grande disponibilidade de
estrutura material e recursos financeiros. Da mesma forma que os grandes estúdios,
produções ficcionais de sucesso comercial e Hollywood são relacionados à região de Los
Angeles, ou se a produção do cinema avant-garde e underground encontram berço em
Nova Iorque, Boston abrigou uma porção de episódios caros ao documentário moderno
estadunidense e abrigou diversos dos cineastas relacionados a ele. Principalmente ao
redor de suas universidades, a produção realizada em Boston foi responsável pelo
avançamento de questões conceituais e metodológicas especificamente no campo do
cinema documentário. Os cineastas ligados a esta história fazem parte de um sistema de
retroalimentação teórico e prático que fomenta o senso de um pensamento firme e autoral
em relação ao documentário da região. Existiu, e até hoje existe, um processo de
colaboração entre os cineastas, não necessariamente em relação à feitura prática dos
filmes, mas em relação a um debate crítico que fomenta a produção regional. Diversos
dos filmes são realizados total ou parcialmente com vínculos institucionais-acadêmicos,
utilizam os centros de produção das universidades e tem o auxílio de prêmios e verbas
delas destinados para este fim. Há um fenômeno consolidado na região de docentes que
também são cineastas, bem como a existência de alunos-cineastas que posteriormente
tornam-se professores. Autores estritamente teóricos da região costumam dar visibilidade
em seus escritos à produção local, assim como é o caso dos cineastas frequentemente
citarem ideias destes como influência para os seus filmes.
94
Pode-se afirmar que este debate entre alunos, professores e cineastas, bem como
o incentivo à produção fomentado pelo ambiente universitário, foram elementos
importantes para a edificação de metodologias e posturas éticas frente a um novo cenário
do documentário, possibilitado por diversos tipos de inovação tecnológica. A introdução
de uma maior mobilidade no aparato cinematográfico, principalmente a partir da redução
de peso das câmeras de 16mm, bem como a possibilidade da captação portátil de som
direto e sincrônico, foram elementos que impulsionaram a reavaliação da relação entre o
cineasta e o registro do mundo ao redor. Houve uma simplificação do processo de feitura
e finalização cinematográficos que sugeria uma aproximação maior do indivíduo-cineasta
(ou de uma equipe modesta) com o processo de captação imagético e sonoro. Surfando
na onda conceitual de inspiração realista, fomentou-se um senso de liberdade
cinematográfica proporcionado por uma virada tecnológica e epistemológica que era
vivido no campo do documentário. Esta “porta para o mundo” foi apresentada mais
consistentemente a partir das proposições de Robert Drew e as primeiras produções de
seu grupo. As narrativas de filmes como Primary (1960), Crisis (1963) ou The Chair
(1963), introduziram uma nova possibilidade de construção de conhecimento que se
pautava menos em uma lógica narrativa analítica e didática. Diferentemente, Drew e seu
grupo buscavam realizar narrativas documentárias que privilegiassem uma estrutura
dramática, pautada na interação dos indivíduos com as pessoas ao redor de si, bem como
com os elementos do mundo material que os rodeavam. A noção de cinema direto deriva
desta virada epistemológica e constitui uma tradição própria, apresentando variações
metodológicas e desdobramentos ao longo das décadas. O cinema autobiográfico
realizado em Cambridge é um destes desdobramentos, que aponta para uma série de
valores alicerçados pela noção de cinema direto. Diversos cineastas importantes para a
história do cinema direto tiveram alguma relação com Cambridge ou com a região de
Boston, como é o caso de Robet Drew, Richard Leacock, dos irmãos Maysles, Frederick
Wiseman e Ed Pincus.
Um ponto de partida interessante para o pensamento acerca da relação entre a
noção de cinema direto e o documentário autobiográfico realizado em Cambridge
consiste no fato de que a preparação conceitual desta metodologia foi desenvolvida por
Robert Drew na universidade Harvard, durante um ano sabático em 1955. Bem
documentada (O’CONELL, 1992; DREW, 1955; 2001; 1988), a passagem de Drew pela
universidade Harvard consistiu no estudo acerca de novas possibilidades de produção e
95
veiculação de narrativas documentárias para a televisão, em um momento que
prenunciava transformações tecnológicas e epistemológicas na produção audiovisual.
Drew passou o ano como Fellow da Fundação Nieman, que faz parte da universidade.
Desde 1938, a Fundação Nieman dedica-se a abrigar, anualmente, jornalistas de diversos
países, incentivando a reflexão acerca do “estado da arte jornalística”, bem como
financiando pesquisas que promovam seu desenvolvimento. Segundo Drew (2001), o
ponto de partida de seu estudo consistia em analisar o porquê os documentários
veiculados nas emissoras de TV eram monótonos, refletindo acerca do que poderia ser
feito para que este material audiovisual se tornasse envolvente e entusiasmante. Drew
refere-se à necessidade de uma abordagem editorial que “valorizasse a realidade
capturada com a intimidade de uma câmera still” (DREW, 2001), e que levasse em
consideração a inovação tecnológica que possibilitaria isto nos filmes. A “televisão
documentária” (documentary television), nos moldes de Drew, dependeria do domínio
desta tecnologia e de sua transposição em narrativa de uma maneira satisfatória.
Drew relata que seus mentores em Harvard sugeriram uma incursão pelo estudo
de formas narrativas como contos curtos, romances e textos dramáticos, para a reflexão
acerca da adaptação destas formas para conteúdo televisivo. Drew concluiu que os
documentários exibidos na televisão, naquele momento, realizavam um mau uso do meio,
consistindo em “palestras sonoras ilustradas com imagens” (DREW, 1988, p. 391).
Segundo Drew, estes filmes, “baseados verbalmente”, tinham um limite preestabelecido
em relação à quantidade de poder que poderiam gerar no público (O’CONNOR, 1992, p.
33). Diferentemente, o interesse e o entusiasmo de um espectador em relação ao conteúdo
televisivo, sugeria Drew, residiria em uma lógica dramática. Os espectadores
envolveriam-se com os personagens, assistindo a como eles reagem em relação aos
eventos do mundo, e responderiam intelectualmente e emocionalmente a partir do
desenvolvimento narrativo dramático:
A lógica dramática funciona porque o espectador está vendo por si
próprio e existe suspense. O espectador pode se interessar pelos
personagens. Os personagens se desenvolvem. Coisas acontecem. Seja
este drama um filme, ou um jogo de futebol, ou uma peça bem-montada,
o espectador fica apto a utilizar seus sentidos da mesma forma que seus
pensamentos; suas emoções da mesma forma que sua mente. A lógica
dramática ganha força em uma curva que pode atingir níveis elevados.
Quando funciona, isto coloca os espectadores mais em contato com o
96
mundo, em contato consigo próprios e com revelações sobre eventos,
pessoas e ideias. (DREW, 1988, p. 391. Tradução nossa.)
Por conseguinte, a construção narrativa dramática aplicada ao documentário
televisivo deveria proporcionar uma sensação ao espectador de “estar lá”, privilegiando
a vivência de uma experiência antes de buscar esgotar intelectualmente ou didaticamente
um assunto:
O que isto adiciona para o espectro jornalístico é a habilidade de deixar
os espectadores experienciarem a sensação de estar em outro lugar,
atraindo-os para desenvolvimentos dramáticos da vida de pessoas
inseridas em histórias de importância. (...) Ao longo do meu ano como
(fellow na) Nieman, minha missão estava se tornando clara: transmitir
experiência. Deixar para os outros o resto – a exposição, a análise e a
elucidação – para os meios de comunicação mais adequados a essas
tarefas. (...) O tipo certo de programação documentária deveria criar
mais interesse do que ele possa satisfazer, mais questionamentos do que
ele possa tentar responder. (DREW, 2001. Tradução nossa.)
Ainda durante a estadia em Harvard, Drew assistiu ao documentário televisivo
Toby and the Tall Corn, dirigido e fotografado por Richard Leacock, que proporcionava
“sentimento e experiência que eram fortes o suficiente para superar uma narração inane”
(DREW, 2001). Iniciando a longa parceria entre ambos, Leacock foi procurado por Drew
para uma reunião, relatando que o produtor buscava uma maneira de tornar o jornalismo
televisivo menos verbal e mais baseado na observação da realidade, com o intuito de
prover ao público “uma sensação daquilo que estava acontecendo” (LEACOCK, 2012. p.
208). É possível dizer que a defesa deste tipo de sensação narrativa foi o mote norteador
da carreira de Leacock e dos projetos em que participou, inclusive sendo incorporado ao
título de sua autobiografia, denominada “a sensação de estar lá” (“the feeling of being
there”). O resultado do encontro entre Leacock e Drew sugeriu que eram necessários
ainda mais desenvolvimentos técnicos e metodológicos para a implementação narrativa
que tinham em mente. Como final de sua estadia em Harvard, Drew escreve um artigo
que sumariza seus estudos em relação ao futuro do documentário jornalístico. No artigo,
intitulado “See it then” e publicado nos Nieman Reports de 1955, o produtor enfatiza o
mesmo entusiasmo discutido com Leacock em relação à narrativização da realidade a
97
partir de uma perspectiva mais observativa e menos didática. Drew refere-se ao método
utilizado por Edward Murrow no programa jornalístico See it Now:
Ele entra nos mundos particulares das pessoas privadas e reporta a
realidade de uma maneira que nunca foi feita. (...) Seu método é
“mostrar” ao espectador ao invés de “contar” a ele. O resultado disto é
compreender as notícias dando ao espectador a informação e o estímulo
para que ele produza o sentido por ele próprio. Em sua essência, a nova
forma de Murrow dá ao espectador uma sensação de ter experienciado
as notícias. (DREW, 1955. p., 34. O grifo é do autor. Tradução nossa.).
Segundo Drew (2001) o período entre 1955 e 1960 foi destinado à concepção e
desenvolvimento das técnicas de montagem, formação da equipe, aperfeiçoamento do
equipamento e a busca da estória ideal para o debut de suas produções televisivas. O
resultado viria com Primary, realizado por Robert Drew e Richard Leacock, que narra o
envolvimento de John F. Kennedy nas eleições primárias de 1960. Primary é o marco do
início daquilo que será chamado de cinema direto norte-americano. Durante a década de
1960, as ideias de Drew, cristalizadas nas produções de seu grupo, Drew Associates, serão
objeto de constante revisão e crítica. Cineastas e teóricos ligados à região de Cambridge,
Boston e suas universidades terão parte no desenvolvimento deste debate. É importante
destacar que o protopensamento do cinema direto elaborado por Robert Drew em Harvard
em 1955 é imbuído da noção de que o Documentário em sua modernidade urgia por
prover um senso de “experiência” vivida ao espectador, de uma maneira que ainda não
aparecia no horizonte do documentarismo de então. Em sua fala, Drew refere-se a uma
narratividade documentária calcada em “exposição, análise e elucidação” como
inadequada à virada tecnológica da década de 1950 e ao desenvolvimento de uma
programação televisiva envolvente. O que estava em jogo, portanto, era uma reação
epistemológica em relação à ética educativa que permeava dominantemente o Cinema
Documentário nas primeiras décadas de sua história. A construção de conhecimento em
narrativas documentárias, neste novo momento, substituiria o didatismo elucidativo pelo
desenvolvimento dramático. Buscava-se poder construir uma narrativa que privilegiasse
em imagens e sons a interação das pessoas com seus pares e o intercâmbio destas com o
mundo das superfícies ao redor. Neste mesmo sentido, tratava-se de representar o mundo
a partir da transposição da experiência de habitá-lo e de conviver com outros indivíduos.
O conhecimento proveniente deste tipo de narrativo dependeria da identificação, ou da
98
vibração, da experiência do espectador com as experiências dos indivíduos filmados e das
circunstâncias em que estão inseridos. Uma liberdade de fruição espectatorial que Drew
sugere, como citado, “criar mais interesse do que ele possa satisfazer e mais
questionamentos do que ele possa tentar responder”.
A produção dos Drew Associates, desta forma, abriu caminho para uma estética
narrativa do documentário que valorizava o “estar no mundo” da câmera e do cineasta em
circunstâncias espaço-temporais determinadas. O sucesso de um filme como Crisis, neste
novo momento, dependia que os cineastas partilhassem durante dois dias o mesmo local
e o mesmo espaço do presidente John F. Kennedy ou do governador do Alabama George
Wallace na disputa em relação ao sucesso ou não da matrícula dos dois primeiros
estudantes negros da Universidade do Alabama. Capturar a “História sendo feita” sugeria
que existiria apenas uma chance para que determinado registro fosse feito: perde-lo uma
vez significava perde-lo para sempre. Da mesma forma, era imperioso que a narrativa
montada sublinhasse a ciência dos personagens em relação aos desdobramentos do caso
à medida em que acontecessem. Tratava-se de proporcionar uma experiência ao
espectador de, de alguma forma, viver (ou reviver) a mesma circunstância dos
personagens nos filmes, partilhar das mesmas surpresas e ter a possibilidade de reagir de
maneira análoga a eles durante a experiência original que viveram. A relação entre
cineasta e personagem/mundo sob a ótica da valorização da tomada e de sua
circunstância, conforme os filmes produzidos por Robert Drew, funda o alicerce
conceitual do cinema direto e inicia um pensamento cinematográfico que será reavaliado
e desdobrado nos EUA pelas décadas seguintes, como na experiência autobiográfica de
Cambridge. Indo um pouco além, a produção documentária autoral de Cambridge, em
diferentes épocas e a partir de nuances distintas, relaciona-se de diversas formas com a
noção de “experiência” ressaltada por Drew em suas pesquisas. Pode-se resgatar aqui a
hipótese de Scott MacDonald, de que a produção de Cambridge giraria em torno da escola
filosófica originada na região, o Pragmatismo, criado por William James e Charles S.
Peirce. MacDonald sustenta que a produção cinematográfica de Cambridge, em sua
heterogeneidade, gravita ao redor desta noção:
Os tipos de documentário que são mais relacionados a Cambridge não
reportam, fundamentalmente, descobertas ou oferecem polêmicas. Em
vez disso, eles buscam observar cinematograficamente e reconstituir
experiência real, para que os cineastas e seus públicos possam entender
99
o processo da vida humana mais completamente. (MACDONALD,
2013, p. 8. Tradução nossa.)
É possível sugerir, portanto, que o vínculo do documentário autobiográfico de
Cambridge com a noção do cinema direto inicia com o fato de que o desenvolvimento da
metodologia aconteceu em uma de suas universidades. Richard Leacock, para além de
seu contato com Drew neste momento, terá influência direta neste episódio, como
fundador e professor do MIT Film Section, trabalhando com produção, inovação e
docência no departamento por vinte anos, de 1968 a 1988. Além da dupla, é interessante
mencionar que outros cineastas ligados à noção de cinema direto também tiveram relação
com a região de Boston. Albert e David Maysles nasceram na cidade e ambos estudaram
Psicologia na Universidade de Boston. Os Maysles participaram das primeiras produções
dos Drew Associates e em 1962 fundaram a própria companhia, a Maysles Films, pela
qual realizaram filmes como Showman (1963), Salesman (1968, sendo que parte do filme
também se passa na Nova Inglaterra) e Grey Gardens (1976). Os filmes dos irmãos
Maysles contribuíram tanto para o cinema direto do início da década de 1960 quanto para
seus desdobramentos na década de 1970. Ed Pincus e Ross McElwee são cineastas ligados
à história de Cambridge que relatam que o interesse pela produção cinematográfica partiu
com o visionamento de alguns dos filmes dos Maysles. Frederick Wiseman também
nasceu em Boston e graduou-se em direito pela Boston University. Titicut Follies,
lançado em 1967 e o primeiro de seus documentários que obteve uma resposta maior da
comunidade cinematográfica, foi filmado em uma instituição de saúde mental em
Bridgewater, estado de Massachussets. O filme foi realizado juntamente com John
Marshall, cineasta ligado à universidade Harvard e que contribuiu, de maneiras diversas,
para a produção de cineastas como Ed Pincus e Ross McElwee10.
10 Marshall forneceu o equipamento e o primeiro tipo de instrução cinematográfica para que Ed Pincus e David Neuman filmassem o longa-metragem de estreia da dupla, Black Natchez (MACDONALD, 2014, p. 82). Outro exemplo é a colaboração de Ross McElwee como cinegrafista de N!Ai, The Story of a !Kung Woman, um dos filmes que John Marshall realizou na Namíbia com a tribo dos !Kung.
100
2.2. A carreira e o pensamento de Ed Pincus
Ed Pincus é um dos principais nomes relacionados ao documentário
autobiográfico de Cambridge. Um dos fundadores do MIT Film Section, Pincus
influenciou uma série de jovens cineastas que passaram pelo departamento. Ross
McElwee o menciona em praticamente todas as entrevistas quando indagado acerca das
principais referências para sua obra. Miriam Weinstein afirma “Ed era o representante-
ancião da cena de Cambridge” (MACDONALD, 2013, p. 131). Em depoimento a Scott
MacDonald, Robb Moss sugere que embora jovens espectadores achem que a obra de
Ross McElwee marcou o início dos documentários autobiográficos, “havia muitas
pessoas realizando explorações sync-sound antes de Ross e, como realizador e docente,
Ed (Pincus) esteve no início deste impulso particular em direção à autobiografia”
(MACDONALD, 2006, p. 185). Lucia Small afirma ter sido indiretamente influenciada
pelo trabalho de Pincus, dado que suas principais referências foram o trabalho de
cineastas como Ross McElwee e Robb Moss (WHITE, 2013). Nina Davenport, aluna de
Ross McElwee e Robb Moss, enquadra-se neste mesmo caso.
Ed Pincus é menos popular que outros cineastas relacionados ao cinema direto
estadunidense, como os irmãos Maysles, D.A. Pennebaker ou o próprio Richard Leacock.
A influência de sua figura e de sua produção para o cinema documentário desenvolvido
em Cambridge é grande o bastante, entretanto, sendo que sua obra deve ser colocada em
evidência. Os filmes produzidos e lançados por Pincus entre 1965 e 1970 apresentam
elementos temáticos e estilísticos que auxiliam a compreensão das motivações
existenciais de Diaries (1971 - 1976). A parca distribuição de sua obra tem relação com
o isolamento social do diretor e de sua família vivido após a finalização do filme.
Terminado no início da década de 1980, Diaries foi o último projeto cinematográfico de
Ed Pincus antes de um hiato de mais de vinte anos, período no qual abdicou totalmente
da produção e do ensino cinematográficos. Este hiato foi quebrado na metade da década
de 2000, quando a diretora Lucia Small11 se juntou a Pincus para um novo projeto,
11 Antes do contato com Pincus, Lucia Small realizara o documentário autobiográfico My Father, the Genius (2002), que tematiza a figura de seu pai, o excêntrico arquiteto Glen Howard. Na metade da década de 2000, Small e Pincus conhecem-se no júri de um festival de documentários e estabelecem uma parceria que resultou em The Axe in the Attic. No documentário, Pincus e Small viajam para as regiões afetadas pelo furacão Katrina a fim de oferecer um ponto-de-vista mais aproximado a respeito da tragédia, estabelecendo contato com indivíduos que sofriam os prejuízos causados por ela. O filme conta com uma postura reflexiva da dupla bem demarcada, sendo que as discussões referentes ao processo em
101
finalizado em 2007, The Axe in the Attic. Small e Pincus também realizaram
conjuntamente seu último filme, One Cut, One Life (2015), que tem parte de sua narrativa
dedicada à tematização dos períodos finais da vida do cineasta, após o diagnóstico de uma
uma doença fatal. Pincus faleceu em novembro de 2013.
Parte das razões pelas quais Pincus afastou-se da produção cinematográfica e de
seu envolvimento com as universidades da região de Cambridge estão expostos na
narrativa de Diaries. O cineasta e sua família estavam sofrendo ameaças de morte da parte
de Dennis Sweeney, ativista e colaborador de Pincus no projeto de Black Natchez, seu
primeiro filme. Posteriormente diagnosticado como esquizofrênico, Sweeney acreditava
que o realizador fazia parte de uma conspiração maligna secreta, ao lado do deputado
Allard Lowenstein, assassinado por Sweeney anos depois. O problema culminou na
mudança definitiva da família Pincus para uma fazenda no estado de Vermont, por onde
o cineasta permaneceu em um estilo de vida low profile pelas décadas seguintes. Aliado
a isto, são frequentes os comentários a respeito de que a experiência de Diaries fora
vertiginosa o bastante para que Pincus se abstivesse de enveredar por outra empreitada
cinematográfica por anos. Em entrevista a Scott MacDonald, o realizador afirma que o
filme, além de ter cumprido tudo aquilo que desejava realizar cinematograficamente no
período, teria exigido muito dele próprio (MACDONALD, 2014, p. 95). Ross McElwee,
em entrevista para esta pesquisa, afirma que Pincus haveria dito a ele que “não tinha
certeza que haveria algo a mais para aprender como documentarista – ao menos, não como
um documentarista-autobiógrafo”. Diaries, como outros documentários autobiográficos
aqui trabalhados, pressupôs um envolvimento emocional acentuado das partes
envolvidas, desencadeando efeitos de tensão emotiva por um período indefinido na vida
da família. A narrativa de One Cut, One Life, realizado por Pincus e Lucia Small quarenta
anos após a feitura de Diaries, revela o impacto provocado pelo filme, no momento em
que entra em pauta a possibilidade de uma nova empreitada autobiográfica, desta vez
relativa à tematização da morte eminente do realizador.
andamento são parte importante da narrativa. Pincus e Small desfizeram a parceria após o término do filme, restabelecendo-a no início da década de 2010. Recebendo a notícia da doença fatal de Pincus, a dupla decide tematizar o último ano de sua vida, em um momento em que Small também passava pelo luto da perda de duas amigas próximas. O trunfo de One Cut, One Life (deixando de lado algumas delicadas questões éticas trazidas pelo filme) é resgatar a figura de Pincus, sua obra e sua família quarenta anos após a experiência de Diaries. Para um espectador familiar da vertiginosa experiência de Diaries é comovente poder rever Jane Pincus e sua força, em sua maturidade, lidando com situações complexas, bem como ver os filhos do casal, Ben e Sami, como adultos e, no novo momento, pais de suas próprias crianças.
102
Pincus despertou seu interesse por fotografia e, em seguida, por cinema, quando
ainda era estudante de filosofia. Tanto no campo das artes quanto no campo das ciências
humanas, o foco de suas atenções constituiu-se em trabalhar materialmente com a
realidade e compreender o mundo a partir de seu funcionamento fenomenológico.
Segundo Jim Lane, Pincus era “profundamente influenciado por discussões filosóficas a
respeito da consciência, fenomenologia Kantiana, as ideias de Stanley Cavell que levaram
à publicação de The World Viewed e as teorias de Walter Benjamin sobre o impacto
político e social da reprodutibilidade técnica” (LANE, 1997, p. 4). O interesse pela
materialidade evoluirá para o fascínio pela possibilidade de captura e representação da
experiência vivida e, de maneira geral, do ciclo da vida12.
Nascido no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, em 1938, Pincus graduou-se em
filosofia pela Universidade de Brown, em 1960, tendo em seguida feito a pós-graduação
em Harvard de 1961 a 1964, obtendo o título de mestre. Neste período, começou a
interessar-se por fotografia still, tendo assistido a uma aula sobre o tema no recém-criado
Carpenter Center for the Visual Arts13. O interesse pelo cinema aconteceu a partir do
visionamento de Showman na própria universidade, filme que tematiza o empresário de
cinema Joe Levine em seu cotidiano, dirigido pelos irmãos Maysles e lançado em 1962.
Mais do que o eixo temático do filme, entretanto, o que chamou a atenção de Pincus fora
um “sentimento místico da realidade, como (poder) tocar sua textura” (LEVIN, 1971. p.
331). Lembrando-se do momento quarenta anos depois, em entrevista a Scott MacDonald,
Pincus lembra trechos em que os irmãos Maysles, ao filmarem pela luz da janela ou de
maneira semelhante, “produziam reflexos (flares) na lente, tornando os grãos visíveis.”.
12 O interesse pela meditação acerca do ciclo da existência persistirá em outras atividades que Pincus
realizou em sua pausa cinematográfica, durante a vida de fazendeiro em Vermont. À época de seu obituário, Pincus foi lembrado não apenas pela sua produção cinematográfica (por ela, também), mas por seu sucesso em atividades pouco relacionadas diretamente ao cinema. Entre estas, pode-se destacar o próspero trabalho na fazenda de cultivo de flores da família Pincus (Third Branch Flower Inc.), como também o comando de um centro de ensino e prática da arte marcial japonesa Aikido, da qual Pincus era sensei. A expressão Aikido, compêndio entre luta, filosofia e crenças religiosas, traduz-se em “caminho da unificação com a energia da vida”. O dojo da família, “Aikido of Champlain Valley”, é hoje liderado pelo filho do diretor, Ben Pincus.
13 O Carpenter Center for the Visual Arts é o edifício onde funcionam até hoje as atividades do departamento Visual and Environmental Studies, no qual Pincus lecionou na década de 1980 e hoje lecionam Ross McElwee, Robb Moss e Alfred Guzzetti. O prédio – o único edifício projetado por Le Corbusier nos EUA, e sua última obra – também abriga instituições como o Harvard Film Archive.
103
O diretor complementa: “Fiquei impressionado com a qualidade tátil destas tomadas e
comecei a pensar mais seriamente sobre cinema. ” (MACDONALD, 2014, p. 80)
A primeira oportunidade verdadeira de realizar um filme surgiu em 1965. O debut
de Pincus no cinema documentário foi impulsionado pela motivação ideológica, algo que
será repetido em outros de seus filmes, como One Step Away e o próprio Diaries. Como
outros jovens da época, o diretor estava engajado politicamente no movimento pelos
Direitos Civis e tinha o desejo de fazer algo para contribuir com ele. No momento,
diversos estudantes e ativistas rumaram para o Sul dos Estados Unidos, principalmente
para o Mississipi, sugerindo que no local havia uma “união de consciência” em relação
ao movimento. Diante dos relatos sobre a existência de organização da comunidade negra
a fim de resistir e protestar por condições sociais mais igualitárias, Pincus e David
Neuman (que será seu parceiro em diversos outros filmes), rumaram no verão de 1965 à
cidade de Natchez, onde havia efervescência política. Natchez era, também, o centro de
atividades da Ku Klux Klan na região. Pincus acreditava que seria necessário registrar e
trazer à tona esta circunstância particular empregando algo similar à técnica dos irmãos
Maysles (LEVIN, 1971, p. 331) – referindo-se à narrativização os acontecimentos a partir
do recuo observativo da câmera, o som sincrônico como elemento imperioso à tomada e
a montagem cronológica.
Pincus e Neuman permaneceram por mais de três meses em Natchez (LEVIN,
1971. p. 332). Residindo em uma casa no subúrbio da parte negra da cidade, voltaram
com quarenta horas de material cujo resultado final tornou-se o filme de pouco mais de
sessenta minutos. A temática de Black Natchez gira em torno da organização da
comunidade negra da cidade que se dividia em dois polos. Segundo o filme nos conta, no
verão de 1965, seguindo a onda dos protestos pelos Direitos Civis, duas organizações
começaram os trabalhos na cidade a fim de conscientizar e organizar a população negra.
As demandas passariam pela possibilidade de voto, pela instituição de direitos iguais
perante à lei e ao sistema judiciário, condições igualitárias de emprego, remuneração e
educação. Apesar de reivindicações comuns, os dois grupos promoviam maneiras
distintas de protestar por direitos. Um deles era o NAACP (National Association for the
Advancement of Colored People), organização fundada ainda no início do século XX e
que encontrava o seu poder basicamente na classe-média e na burguesia negra,
empresários e pastores. Em geral, o NAACP demandava a luta e a conscientização através
de uma via democrática, buscando assegurar o registro e a possibilidade de voto dos afro-
104
americanos. Por outro lado, havia o FDP (Mississipi Freedom Democratic Party), uma
organização política que falava pelos negros pobres, maior parte da população, com um
viés mais assertivo, radical e revolucionário14
Figura 5: A organização da comunidade negra de Natchez em Black Natchez (Ed Pincus e David
Neuman, 1967)
No filme, a reivindicação pela definição do órgão que representaria a comunidade
intensifica-se após um atentado ao carro do chefe do NAACP. Pincus e Neuman filmam
debates ocorridos em praça pública, bem como nos escritórios das organizações, igrejas
e escolas. A falta de unanimidade dos grupos em relação à atitude a ser tomada é
14 Em vias de comparação, Pincus aponta (MACDONALD, 2014, p. 84), que a tradição não-violenta de Martin Luther King tinha como contraponto um poder efervescente representado pela figura de Malcolm X, nova no cenário político, e o seu discurso que sugeria a revolução “por qualquer meio necessário” (“by any means necessary”). O filme também apresenta uma outra pequena organização, o “Deacons for Defense”, que propunha o armamento da população e a tática de guerrilha para defenderem-se frente à violência praticada pela Ku Klux Klan. O tipo de acesso que Pincus e Neuman tiveram dentro da comunidade leva a crer que o longo período que ficaram no local foi importante para este tipo de abordagem. Havia a necessidade de, enquanto cineastas brancos, conquistar a confiança de que estavam trabalhando a favor de uma causa comum.
105
enfatizada. Segundo a linha de ação de cada organização, o NAACP promovia a
pacificação e pedia paciência à população antes de qualquer tipo de ação, enquanto
representantes do FDP (e da maior parte da população), sustentava a necessidade de
ocupar as ruas e marchar até a parte branca da cidade, sugerindo um embate mais direto.
O impasse entre os dois pontos-de-vista não é desfeito até o término do filme, e Black
Natchez faz de sua principal matéria-prima narrativa a visibilidade das diferentes
possibilidades de organização e ação que ocorriam na comunidade negra da cidade do
Mississipi naquele momento específico. Estilisticamente e metodologicamente falando,
Black Natchez inclui-se em um primeiro momento do cinema direto, no sentido de que se
furta de incorporar à dominantemente à narrativa a participação ou endereçamento dos
personagens aos cineastas. Black Natchez evita estruturar a narrativa em torno de um
personagem central, da mesma forma que não tenta oferecer um clímax à situação de crise
que está instaurada. A maneira através da qual a montagem é trabalhada em Black
Natchez, como um “mal-necessário”, e a expectativa de que o espectador assuma um
posicionamento ou um julgamento diante do filme é comentada por Pincus, cinco anos
depois:
Naquele momento, em 1965, eu tinha uma noção de Cinéma-Vérité
como uma espécie de fluxo. O que o cineasta do Cinéma-Vérité queria
fazer era capturar este fluxo e a montagem era uma infeliz necessidade.
Mas idealmente, o tempo real e o filme seriam exatamente a mesma
coisa – uma ideia meio Andy Warhol – e, de alguma forma, isto
demandaria ao público uma verdadeira sintonização aos detalhes mais
minuciosos, para que eles se tornassem realmente participantes ativos
como espectadores. (LEVIN, 1971, p. 332. Tradução nossa.)
Em 1967, na época da finalização e lançamento de Black Natchez, Pincus e
Neuman já haviam filmado o próximo filme da dupla, One Step Away, finalizado no ano
seguinte. Originalmente financiado para exibição televisiva, One Step Away nunca fora
ao ar, tendo apenas parca distribuição em salas do circuito alternativo de cinema. O
conteúdo do filme foi considerado agressivo para a “sala de estar” da família
estadunidense pelos executivos da emissora de televisão financiadora (LEVIN, 1971, p.
341) e, após a exigência de diversos tipos de adequação do documentário, a veiculação
foi deixada de lado. One Step Away revela um desenvolvimento temático que se aproxima
da temática abordada por Pincus posteriormente em Diaries (1971-1976). Se em Black
Natchez, o desejo de filmar partiu do interesse em participar e trazer conhecimento acerca
106
dos protestos pela igualdade de Direitos Civis, a demanda por um engajamento em
questões políticas continua a existir em One Step Away, porém de maneira diferenciada.
Pincus e Neuman almejavam retratar a experiência da sociedade americana
contemporânea a partir da privacidade dos lares e da exploração temática de núcleos
familiares em sua intimidade. O projeto inicial proposto para a PBL (Public Broadcasting
Laboratory, uma nova emissora que havia surgido) consistia em que os cineastas
pudessem fazer filmes sobre diferentes famílias estadunidenses: “Uma família do
Appalachia, uma família de um gueto negro, uma família de imigrantes indianos”
(LEVIN, 1971, p. 339), exemplifica Pincus.
No caso de One Step Away, decidiu-se por trabalhar com aspectos da cultura
hippie, fenômeno amplamente difundido no momento. Inicialmente, o filme tematizaria
o funcionamento de uma comunidade rural de subsistência no norte da Califórnia. Como
nos mostra sua primeira sequência, porém, o rápido desmantelamento da comunidade faz
com que seus integrantes rumem a San Francisco, um dos principais polos do movimento,
e o eixo temático do filme concentra-se em acompanhar a tentativa de viver tal estilo de
vida na cidade grande. Desdobrando-se em relação a Black Natchez, a experiência hippie
em One Step Away é retratada a partir de uma narrativa que se articula em relação à
individualidade dos personagens. Sabemos seus nomes, entendemos os laços afetivos
que portam uns com os outros e traços de suas personalidades são explorados.
Majoritariamente, estas informações são narrativizadas a partir da interação dramática
entre os personagens e dos diálogos que travam nas situações cotidianas em que estão
inseridos. Em outras palavras, o cerne metodológico da captação da tomada concentra-se
ainda no recuo observativo da câmera e o som sincrônico como elemento imperativo das
cenas. Em comparação a Black Natchez, One Step Away também é mais permissivo em
relação à montagem. Se no filme anterior existia uma postura purista no que concerne a
preservação do “fluxo da realidade” de maneira mais vigorosa, One Step Away admite,
em alguns momentos, montagens “clipadas”, a utilização de elementos como jump-cuts
e de trilha sonora não-diegética, bem como de momentos de montagem paralela que
quebram a linearidade espaço-temporal narrativa. Em sua maioria, são elementos que
buscam dialogar com a vibe despojada e “cool” da experiência hippie retratada pelos
cineastas.
Pincus e Neuman acompanham o cotidiano do casal Harry e Rickie, que tem o
principal destaque no filme, em suas interações com outros membros da comunidade de
107
San Francisco. Rickie é mãe de uma criança pequena que acompanha o casal nas situações
filmadas. One Step Away concentra-se em narrar os questionamentos que permeavam o
imaginário do grupo naquele momento presente. Entre as várias situações registradas por
Pincus e Neuman, a maioria delas ocorridas dentro dos apartamentos onde os personagens
viviam em comunidade, debate-se sobre a própria experiência hippie e as principais
motivações de tal estilo de vida. Questiona-se a necessidade de qualquer autoridade e de
valores tradicionais (trabalho, escola, família) e sublinha-se o interesse pela vida
comunal, pelo consumo restrito apenas a fins de subsistência e pelo amor livre. Debate-
se a respeito das drogas como veículos de acesso à interioridade do “Eu” e à essência da
existência humana. Existe entusiasmo especialmente em relação ao ácido lisérgico (LSD),
que a maioria dos personagens declarara fazer uso. O consumo de maconha é uma
constante no filme, sendo particularmente impactante seu oferecimento aos filhos dos
personagens, bebês ou crianças pequenas – trecho que se tornou um dos empecilhos
relativos à liberação do filme na emissora pública de televisão. Em um destes momentos,
a personagem Rickie sopra a fumaça do cigarro de maconha no rosto do seu filho,
argumentando que ele demonstra gostar e aborrecendo-se por ter de dar satisfações em
relação a como cuida do bebê.
Figura 6: A experiência hippie em One Step Away (Ed Pincus e David Neuman, 1968)
108
A experiência também é tematizada a partir de seus lados “negativos”. Em um
deles, Rickie perde provisoriamente a guarda de seu filho, sob a alegação de que as
condições mínimas de higiene e instalação não estariam sendo oferecidas à criança. A
posição frágil no que diz respeito à independência moral e estrutural do grupo vêm à tona
quando o pai da personagem tem de ser chamado ao local e convive com o grupo por
algum tempo. O pai questiona quão justo seria submeter o bebê às condições impostas
pelo estilo de vida da filha e dos companheiros, ressaltando que se tratava de um
posicionamento ideológico complexo, do qual o bebê não poderia compartilhar. Algo
semelhante acontece em uma visita de Harry a seu pai. A conversa travada entre os dois
deixa implícito que o personagem depende, ao menos parcialmente, do dinheiro do pai
para se sustentar, tendo largado a universidade e não estando trabalhando. O tête-à-tête
entre duas gerações revela um ponto interessante: o pai, de orientação marxista,
compartilha o desejo em colaborar para a melhora da vida em sociedade e da experiência
humana, porém não consegue compreender como o estilo de vida hippie – identificando-
o sob sob uma ótica niilista – contribuiria para a causa. Ainda nesta mesma linha, One
Step Away aponta o “lado ruim” da experiência do amor livre praticado por Harry e
Rickie, ao registrar situações em que as relações extraconjugais são a causa de fricção
entre o casal, que protagoniza cenas de ciúme não desviadas das lógicas mais tradicionais
de relação monogâmica.
O eixo temático de One Step Away apresenta, portanto, diversos elementos que
sugerem uma aproximação aos questionamentos de ordem temática que serão
desenvolvidos em Diaries em relação à esfera da vida individual de Ed Pincus. A
experimentação fará parte da vida do casal Pincus durante os cinco anos da filmagem, de
1971 a 1976, de maneiras que lembram a experiência vivida pelo casal hippie Harry e
Ricky. Como em One Step Away, o realizador e a esposa Jane também buscam uma
alternativa à união monogâmica (este, que é um dos principais plots de Diaries), bem
como existe a tematização do uso de alucinógenos, a reavaliação da divisão laboral entre
o casal, tanto dentro quanto fora de casa. Os hippies, como sugere Pincus, entretanto,
acreditavam que viviam em uma sociedade pós-industrial e que não existia a necessidade
de trabalhar – algo que o casal Pincus encara de maneira diferente em Diaries
(MACDONALD, 2014, p. 86). De qualquer maneira, One Step Away revela o olhar de
Pincus em relação às estruturas familiares, o cotidiano e as liberdades individuais como
matéria-prima temática potencial que será desdobrada em seu diário fílmico.
109
Do material filmado para Black Natchez origina-se o curta-metragem Panola, de
vinte minutos, finalizado em 1970, cinco anos após o registro das imagens. Apesar das
tomadas de Panola terem sido realizadas na mesma circunstância das de Black Natchez,
é possível dizer que as tomadas do curta-metragem dificilmente poderiam fazer parte da
proposta artística do filme de 1965. No artigo sobre a obra de Pincus de 1997, Jim Lane
aponta que Panola faz parte da mudança epistemológica observada na carreira do cineasta
desde o início de Black Natchez até a filmagem de Diaries (LANE, 1997, p.5). O curta-
metragem gira em torno da figura de Panola, um alcóolatra que vive em uma região pobre
da parte negra da cidade de Natchez. De maneira bastante distinta à “captura do fluxo da
realidade” proposta em Black Natchez, o personagem Panola dirige-se diretamente para
a câmera de Pincus e Neuman, fazendo-se sublinhar a presença da equipe de filmagem
naquele momento preciso. Entre a sobriedade e a embriaguez, Panola transita por Natchez
como uma figura conhecida por incorporar uma eterna performance, sendo que seu
discurso apresenta uma relação indiscernível entre seriedade e devaneio. A presença da
câmera adiciona um elemento extra à figura enérgica de Panola. O ápice da relação entre
cineasta e objeto, em sua particularidade, toma forma na última sequência do filme.
Panola convida os realizadores para que entrem em sua casa, ordena que filmem suas
parcas condições de habitação e, em uma espécie de transe, conduz uma performance
vigorosa entre choro, gritos e pedidos para que seja morto.
Figura 7: O desespero de Panola em Panola (Ed Pincus e David Neuman, 1970).
110
Neste sentido, Jim Lane aponta que Pincus, autoralmente falando, só estaria apto
a aceitar a posição autoconsciente de Panola no começo dos anos 1970, quando começa
a reconsiderar os postulados do cinema direto e embarca no projeto autobiográfico de
Diaries. (LANE, 1993, p.5). Evidentemente, o documentário autobiográfico marca a
ruptura de Pincus com uma postura deliberadamente recuada e observativa de cinema
direto observada no início de sua carreira cinematográfica em Black Natchez e que foi se
abrandando nos filmes seguintes. A experiência de Diaries parte da ênfase do universo
individual e doméstico como o ponto central do eixo narrativo do documentário.
Filmando totalmente solo pela primeira vez, sua interação na tomada com as pessoas ao
redor é o alicerce metodológico sobre o qual a narrativa se constrói.
O depoimento de Pincus na entrevista dada ao autor G. Roy Levin em 1970 revela
o ponto de maturidade temático e estilístico de sua obra, imediatamente antes do início
das filmagens de Diaries. Ao final da entrevista, Pincus ressalta o interesse em continuar
trabalhando com temas que dizem respeito à motivação política do momento, porém de
uma maneira diferente se comparada à política revolucionária, como teria sido o caso de
Black Natchez. Naquela circunstância, Pincus almejava olhar para a política envolvida
nas instituições que regiam o cotidiano dos indivíduos e a maneira através da qual temas
“privados” adquirem aspectos que dizem respeito à coletividade. Em suas palavras:
Eu mudei. Tive muitos altos e baixos nos últimos anos, mas agora
tenho uma atitude muito cínica em relação às possibilidades de
revolução política. O que quero fazer são filmes que digam o que
quero dizer e que de alguma forma relacionem-se a instituições
políticas. Não apenas instituições políticas em si, mas instituições que
determinem a política dos indivíduos e a qualidade de suas vidas –
como a família, o ato de ser um homem, ser uma mulher, a qualidade
do trabalho que as pessoas fazem, a maneira pela qual as pessoas
compram produtos – de modo que isto aumente a consciência das
pessoas, mostrem-nas possibilidades onde elas talvez não tenham
pensado antes como possibilidades. (LEVIN, 1971, p. 371. Tradução
nossa.)
Black Natchez, portanto, surge dominantemente a partir da intenção de contribuir
para o movimento dos Direitos Civis no Sul dos Estados Unidos. A cultura hippie,
retratada em One Step Away, foi um fenômeno social efervescente que teve parte no
movimento pelos Direitos Civis, e dizia respeito diretamente à postura antibelicista em
relação à Guerra do Vietnã, partilhada por Pincus e por outros jovens. Já a fala do cineasta,
111
transcrita acima, vai ao encontro das propostas de debate mobilizadas pela segunda onda
do feminismo nos Estados Unidos, um dos principais movimentos de organização social
do final da década de 1960 em diante. Se a primeira onda do feminismo se concentrou na
luta pela asseguração dos direitos constitucionais das mulheres – como o sufrágio – a
segunda onda do movimento focalizava em questões que, de maneira geral, diziam
respeito à experiência feminina da ordem da vida cotidiana em um âmbito público e
privado. Buscava-se debater questões como as da equidade de gênero no trato laboral–
tanto em relação ao trabalho remunerado quanto ao trabalho doméstico – questões de
sexualidade e direitos reprodutivos ou questões relativas à organização familiar e ao
casamento.
Na circunstância do início da filmagem de Diaries, a esposa de Ed Pincus, Jane
Kates Pincus, já portava um significativo histórico como militante. Enquanto na
faculdade, participou ativamente de movimentos anti-racismo fomentados pelo CORE
(Congress for Racial Equality) e o NAACP, bem como pelo trabalho em passeatas
antiguerra (LUCY, 2008, p. 2). No final dos anos 1960, Jane envolveu-se com um coletivo
de mulheres da cidade de Cambridge, Bread and Roses, que reunia-se no MIT. Após uma
conferência a respeito da saúde e do corpo feminino, Jane Pincus e outras ativistas
desenvolveram o projeto de Women and their Bodies, publicado em 1970. Lançado
inicialmente na forma de zine, a publicação partiu da troca das experiências pessoais das
autoras, que organizaram o conhecimento ao longo de doze tópicos, como “Gravidez”
(escrito por Jane Pincus e Ruth Bell), “Controle de Natalidade”, “Aborto”, “Doenças
Venéreas” e outros. O livro, escrito por mulheres e para mulheres, obteve largo
reconhecimento ao tratar de tabus e tornou-se revolucionário por lidar abertamente com
questões como a do aborto, ainda ilegal na época. Em 1973, o livro foi publicado pela
editora mainstream Simon and Schuster já como “Our Bodies, Ourselves”, nome que
permanece até os dias atuais. “Our Bodies, Ourselves” é considerado o primeiro guia
coletivo estadunidense de saúde da mulher e é reeditado, ampliado e reavaliado
constantemente desde a década de 1970, tendo sido reproduzido em mais de trinta línguas.
Jane Pincus continuou a contribuir com as reedições do livro até o ano de 2005. Em 1970-
1971 Jane realizou o documentário Abortion, conjuntamente com outras três militantes,
que contou com equipamentos, processamento e salas de montagem do MIT para sua
produção. Apesar da pouca projeção pública, Jane Pincus afirma que o filme foi o
112
primeiro sobre a temática do aborto a ser de fato finalizado nos Estados Unidos
(MACDONALD, 2014, p. 99).15
De maneira mais direta, Diaries (1971 - 1976) traz algumas referências aos
questionamentos levantados pelo movimento feminista. Entre elas, são pontos fortes da
narrativa o aborto realizado por Jane em 1971, as implicações da abertura do casamento
de Ed e Jane para relações extraconjugais ou a discussão em relação à divisão do trabalho
entre o casal, em meio ao crescimento dos filhos pequenos. Evidentemente, o fato destas
questões narrativas estarem incorporadas a um filme cujo controle de produção, em última
análise, concentra-se na mão de Ed Pincus, suscita o debate acerca da maneira através da
qual Jane torna-se objetificada pelo diretor e por sua empreitada. Estas nuances são
incorporadas à própria narrativa de Diaries como um teste acerca das possibilidades da
construção de um documentário autobiográfico pautado por uma nova abordagem
metodológica e por um terreno ideológico efervescente. De qualquer maneira, em
entrevista a Scott MacDonald, Ed Pincus coloca que a decisão por fazer de seu universo
individual e doméstico a matéria-prima de Diaries relacionava-se com os
questionamentos lançados pelo movimento feminista, partilhando a ideia de que “o
pessoal é político”, e com a noção de que o momento demandava que, ao invés do
“Outro”, devia-se examinar a própria vida: “Nós devíamos olhar para dentro”, Pincus
constata (MACDONALD, 2014, p. 92). O cineasta resgata o slogan do grupo militante
de extrema-esquerda Weather Underground (ou, “The Weathermen”, uma facção radical
do movimento estudantil ativista SDS – “Students for a Democratic Society”), que dizia
“O porco está em nós” (The Pig is in us). A mesma posição aparece na entrevista dada a
G. Roy Levin imediatamente antes do início da filmagem de Diaries, em que Pincus
sugere: “Algumas pessoas dizem que existe um porco em todos nós. E nós temos de
descobrir o que é este porco” (LEVIN, 1971, p. 369). Em 1977, na pausa de cinco anos
entre o registro e a montagem de Diaries, Pincus ressalta que o fato de se colocar como
“objeto”, como personagem de seu filme aos olhos de si próprio e dos espectadores,
consistiria em uma reação necessária ao cinema direto produzido até então. O cineasta
aponta que existia uma tendência em tratar os personagens como “Outro”, observando-os
distante e comicamente como “macacos em um zoológico”. “Nós”, sugere Pincus,
15 Segundo relatos, a narrativa de Abortion tem várias partes e é construída a partir de diferentes estratégias metodológicas, até mesmo com o uso do sync-sound em algumas passagens. Jane Pincus fala sobre o filme em algumas ocasiões, como nas entrevistas dadas a Katelyn Lucy (2008) e Scott MacDonald (2014, p. 100).
113
enquanto cineastas do cinema direto, “colocávamo-nos acima deles, ríamos de suas
inconsistências, gaucheries, e suas tentativas de manipular os outros” (PINCUS, 1977, p.
172). Segundo o realizador, a demanda era a de que o cineasta do cinema direto, em sua
violência metodológica no trato com o outro, virasse a câmera para si próprio:
Cineastas que filmaram por mais de uma década desta forma nunca
foram filmados e nunca se viram neste tipo de espaço cinemático.
Existe uma estranha experiência existencial a respeito de ver-se a si
próprio no filme, ver-se da maneira que as pessoas te veem... Que
experiência humilhante e degradante aparecer da mesma forma que os
outros. Qual é a natureza de todas nossas vidas e nossas relações com
os outros, nossas pequenas mentiras e fingimentos? A presunção da
superioridade moral do cineasta e de sua cultura são desafiados. Um
novo tipo de cineasta emergiu, que lida com essas questões. Ele acha
seu material diretamente ao seu redor. Ele relaciona-se com as antigas
tradições do Cinema-Vérité americano na medida em que tem um
respeito profundo pelo mundo da maneira que este existe
independentemente da presença da câmera. E, apesar de
frequentemente participar de diferentes maneiras no filme, ele, em
geral, não manipula ações para a câmera. (PINCUS, 1977, p. 172-173.
Tradução nossa.).
E, ainda:
Alguns cineastas dessa nova geração, direta ou indiretamente
influenciados pelo movimento feminista, começaram a achar
significância no que era chamado de “pessoal”; eles começaram a evitar
personalidades famosas, eventos notórios e assuntos obviamente
grandiosos (...) Pela primeira vez, o cotidiano tornou-se um objeto
possível. Pessoas normais em situações corriqueiras, não mais definidas
por um papel social que costumavam ser a porta de entrada para
tornarem-se o assunto de um filme – piloto de carros de corrida, atriz,
prisioneiro, pessoa pobre, político. A justificativa para que se tornassem
personagens era, frequentemente, apenas a de que tinham uma relação
com o cineasta ou que eram de alguma forma acessíveis a ele.
(PINCUS, 1977, p. 172. Tradução nossa.).
O tipo de documentário autobiográfico relacionado a Cambridge, portanto, situa-
se temporalmente em um momento de reação à primeira produção do cinema direto.
Como característica deste novo momento, passa a existir o ímpeto de representação de
um universo temático mais diretamente ligado à figura individual dos próprios cineastas.
Neste caso, não havia mais o interesse em filmar e construir conhecimento a partir da
história de indivíduos públicos ou personagens de destaque. A noção de observação
114
“mosca-na-parede” e a subtração narrativa de elementos que revelassem a presença dos
cineastas na tomada dão lugar à participação e à ênfase da interação do realizador com as
pessoas filmadas no momento da tomada. Buscava-se tematizar a experiência
estadunidense naquele momento específico a partir da vida individual do cineasta, de seu
cotidiano e daquilo que sua interação com as pessoas mais próximas de si poderia
oferecer, frequentemente em uma esfera familiar. Esta postura foi incentivada tanto por
elementos de ordem ideológica, como frisado, quanto por uma virada tecnológica. O
desenvolvimento de câmeras e gravadores menores e menos custosos possibilitou o
registro imagético-sincrônico a partir de uma equipe de uma pessoa só, o próprio cineasta,
que foi determinante para o sucesso dos filmes realizados no período.
Pincus foi um dos principais articuladores do debate que permeou o MIT Film
Section durante a década de 1970 no que diz respeito às possibilidades da narratividade
autobiográfica calcada na tradição do cinema direto estadunidense e nas inovações
tecnológicas desenvolvidas no departamento. A proposta de autobiografia que se
desenvolveu no MIT Film Section apresentava pontos de disparidade em relação a outras
experiências que estvam sendo conduzidas no universo do cinema documentário, como a
praticada por Jean Rouch ao redor da noção de “Cinema Verdade”. É interessante
ressaltarmos esta distinção a fim de esclarecer a proposta de autobiografia conduzida por
Pincus e pelo projeto do MIT Film Section. Um debate entre Jean Rouch e Ed Pincus
tomou forma em uma compilação de entrevistas publicada em 1971 e representa, grosso
modo, as posturas antagônicas entre o documentário moderno em sua forma norte-
americana e francesa. Em “Documentary Explorations: 15 Interviews with Film-Makers”
(LEVIN, 1971) o autor estadunidense G. Roy Levin realiza entrevistas com quinze
documentaristas que, naquele momento, estariam ligados ao desenvolvimento de novas
propostas fílmicas. O autor conversa com cineastas como Lindsay Anderson, Jean Rouch,
Richard Leacock, D.A. Pennebaker, Albert e David Maysles, e Frederick Wiseman, para
além de Ed Pincus.
O diálogo entre Pincus e Rouch partiu de comentários sobre o filme que iniciou a
obra de Frederick Wiseman. À primeira vista, a obra de Wiseman pode ser encarada como
um contraponto ao documentário autobiográfico de Cambridge, que se engaja em
questões de participação e reflexividade da figura do cineasta na narrativa fílmica,
culminando em uma temática autobiográfica. Wiseman abstém-se de seguir o suposto
“passo adiante” do cinema direto, optando pela narratividade pautada em um criterioso
115
recuo observativo da câmera, sendo esta uma metodologia que pouco mudará durante os
cinquenta anos de carreira do diretor. A obra de Wiseman, entretanto, aproxima-se
epistemologicamente mais ao cinema de Cambridge do que à obra de Jean Rouch. A
interpretação do debate entre Rouch e Pincus pode trazer esclarecimento à questão. Na
entrevista com Jean Rouch, o autor G. Roy Levin pergunta ao diretor sua opinião acerca
de Titicut Follies (1967), longa-metragem de estreia de Wiseman. Rouch, apesar de
evidenciar o apreço que tinha por John Marshall (que foi co-diretor e fotógrafo do filme),
reagiu ao filme com “horror”:
Jean Rouch: Não há esperança. Não há absolutamente nada positivo
naquilo. Nada. É um relato negativamente certo de si próprio sobre uma
situação.
Levin: Mas você o vê como “verdadeiro”?
Jean Rouch: Então você tem de expressar isso. Eu gostaria que ele
tivesse falado algo, expressado qual é sua tese. Aquilo (o filme)
significa que temos de suprimir este sistema policial? Ou que se deve
permanecer em um hospital psiquiátrico? Significa que aquele hospital,
em particular, é uma desgraça? Não é óbvio. Talvez seja óbvio para os
americanos, mas não para estrangeiros. (...) É como se você fosse a um
hospital para crianças retardadas e não mostrasse nada além disso. Há
uma fascinação com o horror aqui (nos EUA). Por exemplo, um filme
sombrio como Noite e Neblina é um filme profundamente humano
precisamente porque existe a narração, porque há uma mão que guia.
Em Titicut Follies não existe nenhuma (guia), é um relato certificado,
que poderia talvez ser interpretado como um relato cínico e
sadomasoquista. Eu perguntei a John Marshall... qual o nome do jovem
garoto com quem ele fez o filme?
Levin: Wiseman.
Jean Rouch: Wiseman. Qual foi a reação de Wiseman diante de tudo
aquilo? Ele teve prazer naquilo? Ele ficou feliz? E John Marshall disse
que existia uma fascinação com o lugar, e que esta fascinação era uma
fascinação com o horror – que é uma fascinação estranha e que devia
ter sido expressada (no filme). (LEVIN, 1971. p. 141-142. Tradução
nossa.)
A crítica de Rouch a Wiseman e Marshall em Titicut Follies é endereçada a Pincus
na entrevista feita por G. Roy Levin para o mesmo livro. Pincus rebate vigorosamente os
apontamentos de Jean Rouch:
ED PINCUS: Em primeiro lugar, acho que Jean Rouch tem mais
expectativas em relação aos cineastas do que eu tenho. Olhe, Wiseman
116
estava preocupado o suficiente em ir lá e passar alguns meses em
Bridgewater16. Não sei quanto a você, mas eu não conseguiria passar
três meses lá. David17 foi captar som direto lá um dia e me contou como
era. Wiseman mostrou preocupação suficiente em fazer isto – ninguém
mais fez. Em segundo lugar, apenas estar lá filmando, silenciosamente,
foi muito mais forte do que seria o terror de “baixo nível” que um
cineasta medíocre poderia conseguir realizar estando lá. De alguma
maneira, aquele tipo de dureza e inexorabilidade era muito, muito mais
forte. Em terceiro lugar, eu não estou interessado na solução de
Frederick Wiseman para o problema, porque acho que ele não é capaz
de dá-la. Não acho que seja problema dele. No nível mais primário,
temos primeiro de ver as coisas – este é um exemplo de como fazer
calúnia (em relação ao filme), quando ninguém nem ao menos tinha
visto aquilo antes.
A outra coisa é que eu acho que Rouch... eu vi apenas um de seus filmes,
Chronique d’un été, e achei simplesmente horroroso. Eu achei o nível
de envolvimento dele pretensioso e risível. Eu achei aquele andar pelo
corredor, conversando com seu assistente18 e discutindo um sistema de
arte, realidade e atuação, obnóxio. Toda a sua noção de cinema é uma
realidade totalmente criada para a câmera, criada pelo cineasta. A
realidade tem o menor dos papéis em seu filme. (LEVIN, 1971. p. 367.
Tradução nossa.).
Interpretando primeiramente a reação de Jean Rouch a Titicut Follies, é possível
dizer que Rouch não enxerga no filme de Wiseman um propósito além do de expor o
cotidiano assombroso de uma instituição como Bridgewater. Para Rouch, o filme parece
não ser mais do que uma exposição dos espectadores a uma espécie de Freak-Show que
busca satisfazer uma curiosidade quiçá sádica das pessoas que o assistem (e dos cineastas)
em relação ao horror e ao abjeto. A comparação que Rouch faz a um filme como Noite e
Neblina é contundente. Para Rouch, se um cineasta se dispõe a trabalhar narrativamente
uma temática delicada ou polêmica, é imperativo que exista algum tipo de elaboração
crítco-analítica de sua parte e que esta torne-se parcela integrante da narrativa que está
sendo criada. Caso esta posição analítica esteja ausente, o filme cairia em um voyeurismo
desnecessário. Rouch parece apontar certa predileção do público estadunidense por este
tipo de conteúdo que, em sua visão, carece de desenvolvimento intelectual mais aguçado.
Neste sentido, é interessante mencionar ainda que esta entrevista foi concedida em 1970,
16 A instituição retratada em Titicut Follies. 17 David Neuman, parceiro de Pincus em praticamente todos seus filmes pré-Diaries. 18 Edgar Morin.
117
antes da produção e veiculação de An American Family, que levará a exposição de
intimidade familiar e a noção de voyeurismo a um patamar distinto19.
Ed Pincus, por sua vez, rebate aos apontamentos de Rouch manifestando que o
sucesso de Wiseman residiria, antes de tudo, no fato de ter passado meses acompanhando
e filmando a instituição. Pincus ressalta que poucos cineastas teriam força de vontade o
suficiente para vivenciar durante um longo período de tempo o pesado dia-a-dia de
Bridgewater. Para cineastas como Pincus seria imprescindível que Wiseman dedicasse
tempo de trabalho considerável (e muitos rolos de película) registrando o funcionamento
da instituição que era objeto de seu filme. Sendo assim, somente a partir do engajamento
do diretor com uma porção significativa de cotidiano e do funcionamento natural de
coisas e pessoas que se cria a possibilidade de trabalhar narrativamente a realidade a partir
da captação e da utilização dos raros momentos de força dramática que podem vir a
acontecer diante da câmera. A paciência no trato com a realidade e seu registro é peça
fundamental para uma tentativa de fornecer ao espectador a possibilidade de experienciar
determinada situação – a “sensação de estar lá” – lembrando aqui a expressão utilizada
por Richard Leacock e as reflexões de Robert Drew originárias do cinema direto. Tendo
sucesso nesta empreitada, o cineasta dará condições ao espectador de tirar suas próprias
conclusões a respeito do tema, abstendo-se ele próprio de promover um comentário
analítico mais demarcado a respeito do assunto a que se propõe abordar, como
reivindicado por Rouch. Sobre este aspecto Wiseman afirma, no mesmo conjunto de
entrevistas realizados por G. Roy Levin: “(Meus filmes) têm um ponto de vista que te
permitem – ou, esperançosamente, te pedem – para pensar, para que descubra o que você
acha a respeito daquilo que está acontecendo” (LEVIN, 1971, p. 322. Tradução nossa.).
Levin realiza as entrevistas no início da década de 1970. A partir do livro, é
possível notar que ainda neste momento havia um debate intenso acerca das
possibilidades de construção narrativa no documentário frente à virada tecnológica e
epistemológica acarretada no início dos anos 1960. Os excertos das opiniões de Jean
Rouch, Ed Pincus e Frederick Wiseman revelam que dez anos após do lançamento de
filmes como Primary ou Chronique d’un été o conjunto de questões que envolvia as
noções de cinema direto e cinema-vérité não trazia respostas unânimes entre os cineastas
19 A partir do final dos anos 1970, Rouch teve um engajamento maior com a produção e a academia estadunidenses. Em 1977, o diretor leciona uma série de cursos de verão nos EUA, juntamente com John Marshall, Richard Leacock, e outros cineastas. Além disto, Rouch leciona na Universidade de Harvard durante quatro verões consecutivos, entre 1980 e 1983.
118
envolvidos. A publicação do livro de entrevistas de Levin ocorre oito anos após o
congresso convocado em 1963 pela agência nacional de radiodifusão e televisão francesa,
a ORTF (Office de Radiodiffusion-Télévision Française), em Lyon, e que contou com os
principais representantes do novo documentário francês e estadunidense. No artigo “The
Documentary Film as Scientfic Inscription”, Brian Winston (1993) ocupa-se de expor o
pensamento antagônico dos dois grupos em relação aos caminhos do documentário
naquele momento. De maneira geral, a posição estadunidense (na forma de diretores
como Robert Drew, os irmãos Maysles e Richard Leacock) era marcada pela crença da
possibilidade de uma objetividade mimética em relação ao mundo, proporcionada por
uma estilística do recuo observativo da câmera e da supressão de elementos de
transparência ou reflexividade do processo fílmico durante a montagem. A perspectiva
de uma posição narrativa objetiva em relação à representação da realidade era refutada de
antemão por cineastas do grupo francês (como Jean Rouch ou Jean-Luc Godard), que
enxergavam em processos de reflexividade da equipe e do cineasta a maneira de endereçar
a “realidade” da filmagem de modo mais justo, ou mesmo “verdadeiro”, vide Chronique
d’un été.
É possível dizer que em 1970, no período das entrevistas realizadas por Levin, a
crença purista e cientificista da objetividade a partir de uma metodologia de recuo
observativo da câmera e de uma montagem transparente dava sinais de desgaste, mesmo
entre diversos cineastas do grupo americano. Ainda que de maneira geral muitos destes
recursos continuassem a ser empregados em filmes destes realizadores, pode-se afirmar
que não existia o mesmo ímpeto aventureiro que motivou as experiências de Robert Drew
na busca de uma possível “verdade” em relação ao registro do mundo em narrativas
documentárias. Este é o caso do próprio Frederick Wiseman. Embora seus filmes
partilhassem (e continuem partilhando) diversas das características que fizeram com que
o cinema direto fosse vinculado a certa noção de “pretensão de objetividade”, Wiseman
sempre admitiu um forte ponto-de-vista subjetivo em relação a seu processo criativo20,
diferentemente da postura assumida por Drew, Leacock ou pelos irmãos Maysles no
início de suas carreiras.
Neste momento, Ed Pincus também fez parte de uma leva de cineastas que se
opunha criticamente às soluções narrativas e aos efeitos de dramaticidade dos filmes do
20 Este ponto é trabalhado marcadamente na entrevista de Wiseman a G. Roy Levin (LEVIN, 1971, p. 313-328).
119
grupo Drew, que eram vistas como mascaradas por uma aura de pretensão de
objetividade. Entretanto, cabe questionar: se Pincus revela interesse pelos
desdobramentos do cinema direto em direção à desconstrução do mito da objetividade, à
participação do cineasta na narrativa documentária e à possível exploração da figura
individual do diretor como matéria-prima temática para os filmes, por que teria realizado
uma crítica tão vigorosa de Chronique d’un été? Por que, para Pincus, o envolvimento de
Rouch no filme seria “pretensioso e risível” e a realidade teria "o menor dos papéis” na
narrativa?
É interessante pensar que a crítica de Pincus revela a posição do diretor dentro da
tradição do cinema direto estadunidense, refletindo alguns valores não-negociáveis (ou
pouco negociáveis) para esta escola de cineastas. Mesmo que neste momento Pincus e
outros diretores já tivessem uma reação crítica, como frisado, à postura do “primeiro”
cinema direto que se supõe o “portador do archote” da representação da realidade, existe
ainda o apreço por filmar e representar o mundo a partir de uma observação paciente, bem
como há um desgosto por situações deliberadamente provocadas para a encenação. Pincus
entende que existe um mundo em complexo funcionamento independente da presença da
câmera e há o desafio de qualquer cineasta em ao menos tentar representa-lo, respeitando
o ballet da interação natural entre seres e as superfícies materiais que os circundam. Para
o diretor, a construção narrativa de Frederick Wiseman em relação a Bridgewater em
Titicut Follies não é um fato dado. Como Pincus frisa em sua resposta a Rouch para o
entrevistador G. Roy Levin, ela é fruto do trabalho do cineasta de entender, capturar e
reconstruir uma espécie de fluxo da realidade ao qual esteve exposto cotidianamente,
durante meses. Este seria o caminho pelo qual o realizador poderia oferecer um relato
narrativo que fizesse jus à experiência que vivenciou, a “sensação de estar lá”,
oferecendo-a em forma de filme para a liberdade interpretativa dos espectadores.
Neste sentido, Pincus entende que Rouch apresenta uma postura arrogante ao
reconhecer o filme de Wiseman como “mero fato”. Segundo o realizador, nunca teria
havido um movimento, entre os documentaristas franceses, de tentar representar o mundo
em seu funcionamento independentemente da presença da câmera. A interação entre
cineasta e personagens, bem como os procedimentos de entrevista que vemos em
Chronique d’un été, seria, portanto, uma crítica pretensiosa de Rouch a um terreno ético
com o qual ele não teria experiência para colocar-se como figura de autoridade. Já em
120
1977, Pincus publica o artigo “New Possibilities in Film and The University”, em que sua
posição em relação a este tema é bem exposta:
Os franceses nunca experimentaram de verdade com a possibilidade de
filmar o mundo independentemente da presença da câmera. Desde o
início, o cinema deles reconhecia a câmera como uma ruptura do fluxo
da realidade. Assim, nos primeiros filmes do Cinema-Vérité francês o
cineasta está frequentemente presente como um guia e um manipulador
dos eventos para a câmera (também em alguns filmes ficcionalizados
do Cinema-Vérité estadunidense, como David Holzman’s Diary). Nós
raramente vemos interações espontâneas e eventos nestes filmes, mas
em vez disso, o assunto dominante parece ser as pessoas falando sobre
seus sentimentos. Os americanos eram céticos em relação à entrevista.
As pessoas são cautelosas durante entrevistas, e apresentam uma
espécie de imagem que pode ser interessante se também temos seus
momentos menos cautelosos, para que suas entrevistas sejam colocadas
em perspectiva. Isto faltava nos filmes franceses. Por outro lado, há uma
qualidade distinta em uma pessoa americana ou francesa sendo
entrevistada. Ao menos externamente, os franceses parecem mais sérios
e comprometidos, e falarão sobre questões grandiosas mais facilmente.
Eu sempre achei que isto não fosse verdade, apesar de que os cineastas
franceses parecem achar. Quando Godard queria referir-se à
autenticidade do documentário em seus filmes, ele parece ter ido a uma
abordagem Jean Rouchiana do mundo, entrevistando seus personagens,
e os resultados sempre foram a parte mais fraca de seus filmes,
arrogantes, pretensiosos e falsos. Pode-se indagar o que teria acontecido
se sua busca pela autenticidade no documentário fosse inspirada pelo
Cinema-Vérité estadunidense, com sua tradição de espontaneidade e do
mundo independente à câmera. Quando mais tarde os cineastas
estadunidenses tentaram examinar a influência da câmera no mundo,
eles portavam uma tradição que tinha, em certa medida, testado as
possibilidades da câmera tentando não provocar uma ruptura nele (no
mundo). (PINCUS, 1977, p. 177-178)
No momento, Pincus acabara de filmar Diaries (1971 - 1976) e encontrava-se no
período de pausa de cinco anos entre o término da filmagem e o processo de montagem.
Seu escrito refere-se justamente ao tipo de questão que buscava endereçar no filme.
Diaries apresenta uma qualidade distinta da relação autorreflexiva entre cineasta e câmera
que, neste caso, culmina em uma abordagem autobiográfica. Diferentemente do que
aponta em relação ao documentário francês nos moldes de Chronique d’un été, Pincus
entende que a presença, ou a ênfase, da câmera e do cineasta na narrativa fílmica não se
traduz em uma ruptura total do fluxo da realidade. Em Diaries, Pincus buscará explorar
a adição do elemento “câmera” à sua atmosfera doméstica, familiar e social. O desafio
consistiria em engajar sua declarada intenção em realizar um filme às nuances e
121
delicadezas de sua vida individual por um período de cinco anos. Existe, portanto, um
“caldeirão” pré-fílmico que compõe a circunstância sobre a qual Pincus debruçar-se-á.
Em sua análise sobre os documentários autobiográficos, Susanna Egan toca neste
mesmo ponto, ao sugerir documentários autobiográficos como Silverlake Life, que
“posicionam a vida pré-textual como controladora da narrativa e usam o meio fílmico
bastante explicitamente como maneira de registrar as surpresas da contingência” (EGAN,
1994, p. 611. Tradução nossa). Em Diaries, Ed e Jane Pincus vivem um momento pós-
1968, em que têm um casal de filhos pequenos para criar, em meio à efervescência das
questões evocadas pelas liberdades individuais – experimentações no campo do trabalho,
da família e do amor. A este cenário, instável por si só, é adicionado o fator “Ed Pincus e
sua câmera”, que entra em vibração com os elementos que compõem a vida da família.
Ao longo dos cinco anos de sua empreitada, o realizador evidencia que a maneira que a
presença da câmera e da “intenção fílmica” se relaciona com o curso de sua vida
individual. Para Pincus, portanto, seria importante frisar que a câmera não é responsável
pela criação de uma situação totalmente nova e, sim, por um flexionamento entre as partes
que pode adquirir contornos complexos. A relação cineasta-câmera-mundo testada por
Diaries seguiria o mesmo “respeito” da tradição do Cinema Direto estadunidense em
relação à intenção de retratar o mundo em seu funcionamento, entretanto flexionado pela
presença da câmera e pela intenção autobiográfica. Em linhas gerais, esta será a cartilha
seguida pelo cinema autobiográfico de Cambridge, que desenvolve este debate e tem sua
gênese propriamente na experiência do MIT Film Section.
É interessante mencionar que a ideia de autobiografia naquele momento já
perpassara produções cinematográficas de outros núcleos de produção nos EUA, porém
de maneira distinta às propostas pelos cineastas de Cambridge. Em especial, ressalta-se a
produção do cinema underground estadunidense. Cineastas como Stan Brakhage, Jonas
Mekas, Jerome Hill, Hollis Frampton e James Broughton desenvolveram películas que,
de maneiras bastante distintas entre si, exibem relatos e construções acerca de alguma
passagem ou período da vida do próprio artista. Tomando Brakhage como exemplo,
Window Water Baby Moving (1959) e Thigh Line Lyre Triangular (1961) são alguns de
seus filmes que portam aspectos autobiográficos na medida em que Brakhage realiza o
registro do parto de seu primeiro e terceiro filho, respectivamente. São filmes silenciosos,
exibem uma montagem bastante fragmentada, ao estilo próprio do diretor, e utilizam-se
de diversos recursos que alteram as propriedades imagéticas do que foi filmado (no caso
122
do segundo filme, inclusive, uma recorrência bem maior da escrita direta sobre a película
fílmica). Vemos nestes trabalhos um questionamento recorrente das possibilidades e
propriedades do filme como meio e como expressão artística.
A possibilidade da gravação de som sincrônico à tomada e a utilização desta
matéria-prima como elemento para a construção da narrativa é um aspecto que diferencia
substancialmente os dois tipos de produção. O autor Scott MacDonald utiliza-se da
expressão “Documentário Pessoal” (Personal Documentary) alternadamente à de
“Documentário Autobiográfico” para designar a produção de Cambridge. Segundo ele, o
documentário pessoal consiste em “explorações e representações das vidas pessoais dos
cineastas, durante as quais os membros da família, amigos e outros são registrados com
som sincrônico, ou com a ilusão de som sincrônico, interagindo conversacionalmente
com os cineastas” (MACDONALD, 2013, p. 4). No mesmo sentido, Jim Lane, para quem
o som sincrônico também é uma questão fundamental da autobiografia fílmica de
Cambridge, sustenta que:
Para os novos documentaristas, a câmera e o gravador de fita magnética
eram ferramentas que serviam para explorar e apresentar seus mundos,
apoiando-se no estatuto semiótico dos meios fílmicos e sonoros. (...)
Assim, o documentário autobiográfico era fundamentalmente diferente
do avant-garde autobiográfico em um nível formal. A estética
cinematográfica era colocada mais a serviço da exploração do mundo
social em vez de desafiar a tradição da arte representacional. (LANE,
2002, p. 14. Tradução Nossa.)
Ed Pincus sugere que os cineastas do documentário autobiográfico da década de
1970 utilizavam o som sincrônico de maneira que seus filmes seriam localizados em um
“reino totalmente diferente” do cinema, se em relação ao New American Filmmaking
(PINCUS, 1977, p. 171). Em entrevista a Scott MacDonald já em 2014, Pincus enfatiza
que a possibilidade de “capturar a vida” tinha a ver com o som, e muitos dos cineastas do
outro grupo faziam filmes silenciosos – ou, ao menos, não captavam som no momento do
registro imagético. Pincus recorda sua participação da conferência sobre cinema
autobiográfico da cidade de Buffallo em 1973, onde estavam presentes diversos
representantes do cinema underground estadunidense e na qual sentiu-se totalmente fora
de lugar. O cineasta conta a respeito de uma longa discussão travada com Stan Brakhage,
que asserira que “Tudo o que está sendo visto na tela é exatamente o que aconteceu” –
123
sendo que para Pincus, diferentemente, o entendimento do mundo tinha a ver também não
apenas com a imagem, mas também com o som (MACDONALD, 2014, p. 96).
Ainda com a intenção de traçar a paisagem ideológica-midiática do período,
podemos retomar os comentários acerca da produção e a veiculação de An American
Family, que trouxe um olhar para “dentro” da instituição familiar estadunidense e é
considerado uma experiência primitiva da nossa noção atual de Reality Show. O material
da série foi captado durante o ano de 1971 e exibido na emissora pública de televisão PBS
(Public Broadcasting Service) no ano de 1973. Idealizado pelo produtor Craig Gilbert e
realizado pela dupla de cineastas Alan e Susan Raymond, An American Family consistiu
no registro do cotidiano de uma família californiana de classe-média, os Loud, durante
seis meses. Esta atividade resultou na captação de trezentas horas de material bruto e foi
condensada em doze episódios, veiculados semanalmente durante quase três meses no
horário nobre (prime time) da emissora. An American Family e seu sucesso foram
responsáveis por tornar os Loud ícones de escala nacional. Como exemplo, a matriarca
da família, Pat Loud, foi vista como modelo de mulher poderosa e independente. Outro
caso é o de Lance Loud, um dos filhos do casal, que se tornou um ícone LGBT pelo fato
de sua homossexualidade ter sido tematizada abertamente ao longo dos doze capítulos.
Ao realizar o trabalho, a equipe de An American Family deveria manter-se recuada
e não interferir de nenhuma maneira nas atividades dos membros da família, o que se
provou praticamente impossível. Após a veiculação da série, diversas fontes
documentaram os bastidores da produção e a consequente influência que a equipe de
câmera (bem como a promessa de uma veiculação nacional) teve em relação à flexão dos
comportamentos dos membros da família para uns com os outros. O ápice deste aspecto
teria sido a consequente separação do casal Loud durante a filmagem e que se tornou um
dos clímaces narrativos da série. Uma das histórias que circundam o processo21 é o de
que o produtor da série, Craig Gilbert, teria se aproximado afetivamente da matriarca da
família, sendo um dos pontos que levaram o casal ao divórcio.
Entretanto, a ocultação da relação complexa entre equipe, família
Loud/personagens e o sucesso da série foi criticada pela geração de cineastas do Cinema-
21 Uma interessante exposição dos bastidores da produção de An American Family encontra-se no filme Cinema Vérité (Shari Springer Berman e Robert Pulcini, 2011), realizado como telefilme para a emissora HBO. No formato de docudrama, Cinema Vérité narra o processo de pré-produção e filmagem de An American Family, enfatizando a relação existente entre a equipe e a família Loud e trazendo à tona as consequências deste envolvimento para a série.
124
Vérité dos anos 1970, envoltos por um novo conjunto de valores éticos se em comparação
à década anterior. Abster-se da inclusão de detalhes do processo e da relação entre a
equipe e os personagens seria o procedimento natural na produção do cinema direto do
início da década de 1960 (Drew, Leacock ou os primeiros filmes dos irmãos Maysles),
porém para este “novo” grupo de cineastas, em relação a An American Family, esta opção
seria tanto um desperdício da parcela mais interessante do tema tratado, como também
uma espécie de imoralidade, ou mentira ética. No texto de 1977, Pincus ressalta o fato de
que não existiu menção de que o produtor da série teria se apaixonado por Pat Loud, e
constata que “tornar a câmera visível de maneira automática (“simplista”, by rote) é
realizar uma função sem utilidade, mas esconder os seus efeitos quando eles são
consequenciais é mentir” (PINCUS, 1977, p. 170). Em um texto escrito na década de
1990 em que disserta a respeito do início de sua carreira como cineasta, no período de sua
passagem pelo MIT Film Section, Ross McElwee revela inquietação similar à de Ed
Pincus ao falar sobre suas sensações diante de uma das sequencias mais significativas de
An American Family:
Em uma memorável cena de An American Family, Bill Loud, cujo
casamento com Pat está desintegrando, deixa a mulher e os filhos e
muda-se para um apartamento. A equipe de filmagem o acompanha à
medida em que ele desencaixota alguns pratos na cozinha, tentando
decidir onde coloca-los. Ele está totalmente sozinho naquela cozinha –
só que na verdade, ele não está. A equipe de filmagem está enfiada lá
dentro, não mais longe do que a um metro dele. A equipe não diz nada.
Nenhum questionamento, nenhuma palavra de conforto. Nada. Eles
fingem ser invisíveis. É um momento excruciantemente esquisito, tanto
para Bill Loud quanto para o espectador. (McELWEE, 2005, p. 3.
Tradução nossa.)
125
2.3. A Experiência Autobiográfica de Diaries (1971 - 1976)
Em 1971, Ed Pincus dá início à filmagem de Diaries com a proposta de filmar
eventos de sua vida cotidiana, em diversas frentes, pelo período de cinco anos. A
experiência contaria ainda com a espera de mais cinco anos após o término das filmagens
antes da montagem do material – Diaries foi finalizado apenas em 1981. A versão final
consiste em um filme de três horas e vinte minutos de duração. Apesar de ter sido
terminado apenas no início da década de 1980, Pincus exibia trechos (rushes) do material
bruto do filme para os alunos do MIT Film Section na década de 1970 como material
didático (McELWEE, 2012). Diretamente, Diaries pôs à prova escolhas metodológicas e
estruturas narrativas que são a marca registrada do documentário autobiográfico de
Cambridge. As mais importantes destas estruturas seriam a acepção da equipe de uma
pessoa só (one person crew) como condição irrevogável para o sucesso da empreitada
autobiográfica; o registro imperioso (bem como sua utilização na narrativa) de imagem
com o respectivo som sincrônico (sync-sound) que a acompanha no momento da tomada;
a construção da narrativa autobiográfica a partir de uma macroestrutura cronológica; e o
realce da figura do cineasta no momento da tomada fílmica a partir de seu
endereçamento/interação com os corpos em cena, enfatizando a lógica dramática calcada
no diálogo.
Inserido no contexto de inovação tecnológica do MIT Film Section, o início da
experiência de Diaries também dependeu do desenvolvimento de um modus operandi
particular para a filmagem. Pincus afirma que assim que surgiram as possibilidades de
“filmar intimamente com uma boa imagem e um bom som” (MACDONALD, 2014, p.
96) também se criou a opção da feitura de Diaries. Neste caso, o diretor ressalta o
desenvolvimento de uma câmera Éclair relativamente menor que as outras (pesando
apenas cinco quilos) e o gravador de fita magnética Nagra SN: uma peça de equipamento
pequena o suficiente para que fosse carregada no bolso do cineasta ou em uma pequena
bolsa a tiracolo22. Mais particularmente, Diaries contou com um projeto desenvolvido
por Ed Pincus e Stuart Cody, técnico do MIT Film Section, de ligação por sinal de rádio
wireless entre a câmera e o gravador de fita magnética. Em termos práticos, no momento
22 Ross McElwee também enfatiza o uso do Nagra SN para a feitura de Sherman’s March, como desenvolvimento significativo em relação ao Nagra IV – uma maleta de por volta de seis quilos que deveria ficar pendurada no corpo do cineasta - e que foi usado no anterior Backyard.
126
em que Pincus acionasse o funcionamento da câmera, o sistema emitiria um sinal de rádio
para o gravador de fita magnética que também iniciaria a gravação. Desta forma, câmera
e gravador poderiam estar desvinculados fisicamente e o acionamento de ambos
dependeria apenas de uma pessoa (no caso, o próprio cineasta). Acoplado ao gravador
estaria um microfone de lapela (lavalier), que possibilitaria que as pessoas filmadas por
Pincus portassem o conjunto próximas de si. Em grande parte de Diaries este set-up foi
usado, o que deixava livre uma das mãos do cineasta para a utilização de uma lente zoom
que, por sua vez, permitia o distanciamento entre Pincus e as pessoas filmadas com
liberdade de enquadramentos dinâmicos. Em suma, tratava-se de alcançar o conjunto de
possibilidades fílmicas do cinema direto a partir de uma equipe composta pelo cineasta,
autossuficiente.
Em 1972, um ano após o início da filmagem de Diaries, Pincus publica um artigo
na revista Filmmakers Newsletter, “One Person Sync-Sound: A New Approach to
Cinema Vérité” (PINCUS, 1972), em que detalha sua metodologia para o registro do
filme. Para além de uma explicação técnica, Pincus enfatiza que o conjunto técnico-
metodológico de Diaries possibilitava a aproximação entre cineasta e personagens de
uma maneira ainda não experienciada pelos cineastas do cinema direto. Pincus escreve
que “As recorrentes questões sobre explorar as pessoas e tirar vantagem delas no Cinema-
Vérité tradicional tornam-se minimizadas quando o cineasta entra no espaço do filme de
igual para igual” (PINCUS, 1972). A motivação de Pincus, como frisado, residia na
crença de que a interação do cineasta com seus pares em um nível particular e sua posição
como parte integrante da narrativa faria com que sua própria figura fosse “objetificada”
de maneira similar às dos personagens retratados. Desta forma, a relação de poder entre
“cineasta” e “personagem” poderia – supostamente – tornar-se mais justa.
William Rothman é um dos autores que tocaram nos pontos nevrálgicos desta
questão, ao enfatizar o caráter violento da metodologia do cinema direto – mesmo que o
cineasta desenvolva estratégias em busca do apaziguamento desta relação desigual entre
ele e as pessoas filmadas. A aproximação de Rothman com as questões éticas do cinema
direto acontecem em vários de seus textos ao longo de sua carreira. Referindo-se ainda
mais precisamente ao primeiro momento do cinema direto, o autor propõe (ROTHMAN,
1988, p. 105) que existe uma fantasia de “virgindade e impotência” relativa ao cineasta
que está por detrás da câmera e em uma posição recuada diante da “observação” do
mundo. O segredo deste cineasta, entretanto, residiria em uma certa posição divina, que
127
na realidade comanda que o mundo se revele em frente à lente, para sua subsequente
reautorização em forma de narrativa. Este cineasta demanda, entretanto, a isenção de sua
responsabilidade calcando-se na ilusão de uma não-interferência direta em relação às
pessoas e aos eventos no momento da tomada.
Já em um texto de 1996, “Eternal Vérités”, Rothman toma os documentários
autobiográficos dos cineastas de Cambridge como ponto análise subsequente deste tema.
O autor sugere que o trabalho desempenhado pelos cineastas do MIT Film Section, sob a
liderança de Ed Pincus e Richard Leacock, tinha como ponto de partida a intenção de
reumanizar, de alguma forma, a figura do cineasta em relação ao mundo no qual estava
inserido. A aspiração destes cineastas seria “reconciliar as demandas conflitantes de
filmar e viver, ao aprender a filmar o mundo sem revogar-se dele” (ROTHMAN, 1996.
p. 82). Rothman reconhece em Diaries (1971-1976), de Ed Pincus, e Sherman’s March,
de Ross McElwee os dois grandes épicos que resultam da experiência conceitual do MIT
Film Section, ambos estando calcados em uma “busca romântica” da parte do cineasta.
No caso de Pincus e em relação à empreitada de realizar um filme sobre sua experiência
matrimonial, o ato de filmar ameaça uma consolidação de seu isolamento – e não sua
libertação para que viva integradamente dentro de uma comunidade. Sendo assim, o
conflito entre o romântico e o ordinário, entre o filmar e o viver, surge como “o obstáculo
primário para o objetivo do cineasta, o de tornar-se totalmente humano”. (ROTHMAN,
1996. p. 82). O veredito de Rothman é o de que mesmo que os cineastas invistam em
procedimentos que façam com que suas próprias figuras também estejam complicadas
narrativamente, documentários como Diaries
...certamente demonstram que há um aspecto irredutível de revogação
e isolamento, bem como de violência, no papel do cineasta do Cinema
Direto, mesmo se as pessoas se endereçam diretamente ao realizador
por detrás da câmera; mesmo se as outras pessoas têm a permissão de
virar a câmera para o cineasta, tornando ele ou ela visível; e mesmo se
ele rompe seu silêncio e entra em conversações com os outros
personagens do filme. (ROTHMAN, 1996. p. 83)
Jim Lane sugere que questões éticas acarretadas pelo filme de Pincus, como as
apontadas por Rothman, também figuram como debate dentro de seu eixo narrativo. Lane
refere-se especialmente às reivindicações que tomam parte em situações de Diaries
quando personagens femininas da narrativa (como a própria esposa Jane e também Ann
128
e Christina, com quem o diretor mantém relações amorosas ao longo do filme), endereçam
ao cineasta as possíveis violações éticas de sua postura. Segundo Lane, estas personagens
“habilmente apontam as relações de poder existentes entre cineasta e pessoas filmadas,
que Pincus frequentemente tenta negar” (1997, p.10). O visionamento de Diaries sugere
que apesar das alternativas metodológicas propostas por Pincus, outras (e novas) questões
éticas são evocadas em relação ao adentramento do universo familiar a partir da
metodologia do Cinema Direto na sua forma participativa/reflexiva.
Há, como já frisado, um cenário pré-fílmico particular sobre o qual a experiência
de Pincus se alicerça. O cineasta e sua esposa estavam casados há onze anos. Ambos
ideologicamente atentos aos movimentos sociais que circundavam o momento, Ed já era
professor do MIT Film Section e Jane estava engajada na militância feminista do grupo
responsável pela publicação de Our Bodies, Ourselves. O casal tinha dois filhos
pequenos, Ben e Sami. Em meio à efervescência ideológica e social nos Estados Unidos
pós-1965 (movimento pelos Direitos Civis, demonstrações antiguerra, feminismo), o
casal decide vivenciar a experiência do casamento aberto: ambos poderiam viver casos
extramaritais. Pincus propõe um período de cinco anos de filmagem durante os quais
acreditava que a família passaria por diversos tipos de transformações. Através desta
estratégia, a matéria-prima de Diaries seria a maneira através da qual as pessoas
apresentam mudanças de comportamento, opiniões, humores, estados de consciência,
bem como transformações físicas, por um período de tempo prolongado. À fricção em
potencial que seria causada tanto pelo casamento aberto quanto pelo crescimento dos
filhos em meio a uma época de experimentação e reavaliação de valores seria adicionada
a intenção em realizar um filme sobre o período.
129
Figura 8: Ed e Jane Pincus no início da filmagem de Diaries (1971 - 1976)
Os motes mais significativos de Diaries são expostos pouco tempo após o início
da narrativa. Em algumas das primeiras sequencias do filme, Jane, ao ser questionada
pelo marido, revela seu desconforto com a empreitada fílmica que está sendo conduzida.
Em suas respostas, a esposa do cineasta revela que a presença da câmera cria uma camada
de autoconsciência que dificilmente poderia ser superada. Em uma de suas falas, Jane
aponta: “Eu sinto que tenho de atuar, sendo que em minha vida toda tentei não fazer isto”.
Como uma reação ao cinema direto clássico, Diaries tematiza de antemão o
flexionamento dos comportamentos dos personagens diante da câmera na circunstância
da tomada como condição sine qua non para o discurso fílmico, neste caso,
autobiográfico. Entretanto, outro ponto forte da experiência de Diaries consistia em
filmar por um período de tempo prolongado – cinco anos – a fim de testar de que maneira
a relação das pessoas com determinado assunto se transformaria com o tempo. Pincus
aponta que diferentemente de outros filmes do Cinema Vérité, que procuram definir uma
pessoa através do registro de um curto período de tempo, ele pode “olhar para as pessoas
mais como estados de transformação. As pessoas podem ser tratadas mais como ‘vir-a-
ser’” (PINCUS, 1972, p. 25). As sequencias de Diaries revelam que, ao longo dos anos,
a câmera de Pincus e sua “intenção fílmica” acabam por tornar-se mais próximas da
experiência cotidiana de sua família e das pessoas envolvidas na empreitada. Com o
tempo, a presença da câmera deixa de ser uma grande novidade para as crianças, da
mesma forma que a performance de amigos e colegas de trabalho do diretor revela-se
130
aparentemente mais incorporada à sensação de conforto e naturalidade. Dessas, a
mudança de atitude de Jane em relação ao projeto é a mais palpável, sendo colocada em
evidência na narrativa. Em entrevista a Scott MacDonald, Jane ressalta que o ódio que
tinha em relação ao projeto no início das filmagens deu lugar a um desejo genuíno de ser
filmada, ao reconhecer-se como uma mulher “realmente interessante” (MACDONALD,
2014, p. 100).
Outra instância da transformação de pessoas e consciências, opiniões, desejos,
humores e afetos consolida-se na abordagem temática do relacionamento amoroso entre
o casal Pincus, que leva à consideração endossada pelo próprio diretor de que Diaries
seria, em última instância, “uma história de amor” (MACDONALD, 2014, p. 91). A
experimentação do casamento aberto é tematizada nos primeiros minutos do filme,
quando a narrativa apresenta Ann, uma de suas amantes durante o período filmado. Ao
longo das três horas de Diaries, são diversas as situações em que a interação entre os
personagens, majoritariamente, entre Ed e Jane, revela a constante reavaliação da situação
amorosa do casal, em meio à tematização de novas pessoas na vida de cada um deles.
Decididamente mais instável do que harmoniosa, a experimentação do casal Pincus de
uma alternativa à monogamia é abordada em diversas de suas discussões. Em cada uma
delas, um novo cenário é disposto, em que uma das partes mostra-se menos satisfeita do
que a outra em relação à situação “atual” da experiência. Não são incomuns
demonstrações de ciúmes ou de indicações que sugiram o desejo de uma separação total
do casal. Aproximando-se de seu final, entretanto, Diaries sugere o apaziguamento das
tensões existentes entre o cineasta e sua esposa, bem como a decisão por estabelecer uma
vida familiar nuclear – que culmina na mudança dos Pincus para o campo, em Vermont,
onde a família permanecerá pelas próximas quatro décadas.
A busca por formas de relacionamento alternativas é uma das muitas
características que faz Diaries apresentar-se como o retrato de uma época, consolidado a
partir do visionamento da experiência particular da família Pincus. Ainda neste aspecto,
Diaries tematiza uma postura pró-aborto (ainda proibido e ligado à causa feminista da
década de 1970) ao mostrar o procedimento realizado por Jane em 1971. O naturismo é
um ponto presente no filme, sendo recorrentes as sequencias em que vemos os corpos nus
de praticamente todos os personagens envolvidos: Ed, Jane, seus filhos pequenos, seus
amigos e amantes, em diversas situações nas quais parece haver pouco ou nenhum
constrangimento em relação à câmera. A experimentação de drogas também é tematizada:
131
ainda no início do filme, Pincus filma a si próprio durante uma “viagem” de mescalina
durante uma visita à California, no chalé de Jim McBride (diretor do “falso”
autobiográfico David Holzman’s Diary [1968]). Em uma sequência perto da metade do
filme que aborda uma das discussões do casal, Jane reivindica uma reavaliação da divisão
de trabalho dentro e fora de casa: a esposa questiona o fato de ter de cuidar da maior parte
dos afazeres domésticos e do trato com as crianças enquanto Ed trabalha como professor,
sugerindo pensarem em uma alternativa mais justa. Scott Macdonald frisa que o fato de
Pincus tematizar estas questões consolidava-se como uma confrontação à ideia de que o
que se passava dentro da vida familiar, “desde quanto dinheiro eles ganham até a natureza
de suas atividades sexuais” (MACDONALD, 2013, p. 143), deveria manter-se em um
âmbito privado. Através de seu filme, o realizador torna públicas estas e outras questões
que constituíam um relacionamento matrimonial, bem como cristaliza episódios que
dizem respeito a um cenário individual, mas que também se referia à realidade de outros
jovens casais no início da década de 1970. MacDonald sustenta que Pincus foi um dos
poucos cineastas que retratou as experiências desta geração, a partir de um ponto de vista
de dentro da experiência, e as maneiras nas quais isto afetou a vida cotidiana dos casais
e de suas famílias (MACDONALD, 2013, p. 150).
São diversas as características metodológicas e estilísticas de Diaries, assim como
sua estrutura narrativa, que endossam as opiniões de Pincus expressas em seus escritos e
entrevistas da época. Evidentemente, o conjunto de inovações tecnológicas que
antecederam o início de Diaries serviam não apenas a uma questão de minimização de
gastos ou de praticidade, mas referiam-se sobretudo à visão artística de Pincus em relação
a um tipo de narratividade autobiográfica possibilitada por uma nova conjuntura. Nunca
negando sua ligação com a tradição do cinema direto estadunidense, com Diaries Pincus
almejava trabalhar a “sensação de estar lá”, porém voltada para o universo das interações
domésticas e cotidianas, e fazendo-se de si próprio um personagem ativo do filme. A
matéria prima imagética-sonora de Diaries é composta através de tomadas realizadas em
situações não deslocadas, ou pouco deslocadas, do cotidiano “normal” do cineasta e de
seus personagens. Como expressado anteriormente por Pincus, as sequencias de Diaries
evocam dominantemente a combinação de um cenário pré-filmico (“o mundo
independentemente da presença da câmera”) com o elemento extra, composto por sua
câmera e sua intenção fílmica. A câmera faria o papel de flexionar a consciência e o
comportamento dos corpos em cena em relação uns aos outros e ao mundo material ao
132
redor, porém sem desestruturá-lo totalmente. A experiência de Pincus, segundo sugere
Jim Lane, enfatiza a importância de tornar o cotidiano visível como uma maneira de
explorar a “natureza da subjetividade e das interações humanas, que a câmera tem a
capacidade única de retratar” (LANE, 2002, p. 53). Sendo assim, ao empunhar a câmera
(e o gravador de som) em situações integradas a seu cotidiano, Pincus via neste tipo de
registro uma maneira particular de escrita autobiográfica, que sobrepunha
substancialmente a tomada fílmica ao “ato de viver”. A consubstancialidade do registro
de imagem e som a uma circunstância de situação dramática que reconhecemos como
pertencente à vida pessoal do cineasta confere uma noção à tomada de escrita
autobiográfica no “tempo presente” e que parte de uma motivação existencial distinta da
dos textos escritos. O processo de construção do texto autobiográfico literário, em
qualquer uma de suas alternativas (memórias, diários, ensaios) sugere, dominantemente,
que seu autor esteja de alguma forma diante do passado para a subsequente transcriação
escrita.
De modo geral, à maneira através da qual a narratividade de Diaries é conduzida
subjaz um comprometimento de Ed Pincus com a noção de uma escrita autobiográfica
calcada na potencialização da referencialidade de seu discurso. O diretor enfatiza
procedimentos narrativos que construam uma experiência “palpável” dos eventos
profílmicos: o mundo material, da maneira que é apresentado à câmera na circunstância
da tomada fílmica. Nesta circunstância, não apenas as palavras pronunciadas, mas os
gestos feitos, os silêncios, o mundo concreto dos objetos, tudo isto adquire relevância e
significado em uma narrativa autobiográfica investida em explorar momentos cotidianos
da relação entre o cineasta e as pessoas ao seu redor. Um artigo da revista Film Comment
publicado em 1981, logo após o lançamento de Diaries, ressalta aspectos análogos a estes
como uma das particularidades da empreitada fílmica de Pincus. O autor Stephen Schiff
sublinha a relação entre os estados de consciência de Ed Pincus particularizados pelo
momento da tomada e sua expressão fílmica-corpórea que vemos na tela:
O falecido fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty acreditava que um
homem expressa o “todo” de seu ser não apenas no que ele diz e faz,
mas nas minúcias de seus movimentos, o jeito que ele gesticula, a
maneira que ele anda pelo espaço de uma sala, ou mesmo que ele lança
um olhar sobre um objeto distante. Os movimentos da câmera de Pincus
transmitem quem ele é da mesma maneira que qualquer ação
intencional, e, assistindo a eles, nós descobrimos (Pincus) como um
133
auteur de uma maneira que nunca poderíamos descobrir Hitchcock,
Welles ou Ophuls. Este é um processo misterioso, mas não precisa
parecer tão obscuro. A perícia de Pincus na composição dos quadros,
por exemplo, varia ao longo do filme, dependendo não apenas de seu
objeto (...), mas também de seu estado de consciência. O quão mais
calmo e mais confiante está Pincus, mais bonitas são suas tomadas.
(…). Com a maturação de si próprio e de Jane, com a brandura de seus
problemas, o estilo cinemático torna-se mais preciso e mais pitoresco.
(SCHIFF, 1981. Tradução nossa.)
Algo semelhante ao apontamento de Schiff é encontrado no texto de Susanna Egan
que lida com documentários como Silverlake Life, que herdam muito das características
conceituais originadas em Diaries. Egan ressalta a maneira através da qual estes
autobiográficos remetem-se à “experiência original” do cineasta, ao tornar visíveis os
elementos materiais e interações interpessoais que, no limite, dizem respeito diretamente
à sua vida cotidiana. Ressaltando a ideia de consubstancialidade entre a expressão fílmica
e a realidade fenomenal, Egan sugere a expressão “irromper” (ou “transbordar”, burst
out) da experiência em relação ao quadro. Egan sustenta: “...os cineastas utilizam a
câmera, ademais, como que para dramatizar especificamente o espectro mais amplo do
material original e a natureza aleatória do especular; em ambos, a mobília, os aposentos,
o cenário e as pessoas irrompem do quadro como um lembrete constante daquela
experiência original a que a experiência filmada se refere”. (EGAN, 1994, p. 607).
É possível dizer que Pincus constrói a narrativa de Diaries como o teste de uma
hipótese, sendo que o diretor se abstém de investir em elementos estilísticos ou
metodológicos que fujam desta lógica referencial. Na medida em que a interação entre os
corpos em cena (e também do cineasta) com o mundo das superfícies é a principal
matéria-prima de Diaries, o realizador abre mão quase totalmente de utilizar recursos
estilísticos que não frisam narrativamente sua particularidade espaço-temporal. É o caso
da utilização econômica de ferramentas de discurso indireto como os letreiros e a narração
e voz over, que no filme portam funções bastante restritas. A função principal dos
letreiros em Diaries é sublinhar a narratividade cronológica, de modo a tornar
quantificada a passagem do tempo da experiência filmada, durante as três horas de filme.
Neste sentido, Pincus delimita o tempo a partir das estações do ano, em letreiros como
“Verão de 1972”, “Primavera de 1973” ou “Inverno de 1975”. O apontamento das
estações do ano tem um papel importante em Diaries na medida em que torna mais
palpável a visualização da transformação física dos personagens (principalmente os filhos
134
do casal Pincus) durante os cinco anos de filmagem, mas também cria outro vínculo
referencial visto que o clima delimitado das estações do ano no nordeste dos EUA –
verões quentes e invernos muito rigorosos – flexiona a maneira através da qual seus
habitantes desempenham atividades cotidianas, bem como altera significantemente a
paisagem exterior. No caso da voz over, Pincus emprega o recurso como amparo narrativo
nos momentos em que a interação entre os personagens deixa insuficientemente claro
algum aspecto temático que o diretor deseja ressaltar. É o caso, por exemplo, da
ocorrência de alguma quebra espacial narrativa que tem de ser justificada (como “Jane e
Eu deixamos as crianças com meus pais e fomos à Califórnia para férias de duas
semanas”), ou o caso do fornecimento de informação suplementar em relação a algum
ponto temático. Um destes casos é quando Ed acompanha Jane à consulta médica na qual
é discutida a possibilidade de realizar um procedimento de ligação de trompas uterinas.
Mesmo tendo dito ao médico que desejaria ir adiante com o procedimento, Pincus ratifica
em over ao final da sequência: “Jane decidiu postergar a ligação de trompas”. Neste caso,
este amparo estilístico serve à narrativa no sentido de que a gravidez indesejada de Jane
e a realização de seu aborto serão tópicos abordados posteriormente pelo filme.
A recusa de Pincus em investir potencialmente no procedimento de narração em
voz over reside no fato de que esta articulação narrativa é desprovida de um estado de
consciência ligado a uma circunstância espaço-temporal que é feita visível na narrativa.
Evidentemente, a narração em over em sua utilização comum não traz consigo
ontologicamente a clareza em relação ao momento em que foi escrita ou gravada. Além
disso, dominantemente, narrações em over são fruto de um debruçamento prolongado de
esforço racional, resultando em discursos coerentes e frequentemente dotados de
densidade analítica e juízos de valor. Uma rápida autoanálise revela que nós, enquanto
seres no mundo, dificilmente apresentamos um rigor analítico ou conceitual irretocável
nas interações cotidianas que travamos com nossos pares. Com Diaries, Pincus buscava
retratar a si próprio e as pessoas ao seu redor não na performance de suas expertises
intelectuais, mas na performance daquilo que é ordinário: menos em suas condições de
mitos e mais como seres passíveis de incongruências, hesitações, contradições e sensíveis
a alterações de temperamento. Em entrevista a Scott MacDonald, Pincus constatou que
“a maioria das coisas que as pessoas dizem são estúpidas. Durante a edição de Diaries,
pensava ‘Meu Deus, eu realmente disse isso? Ela realmente disse isso?’. Mas, estúpido
ou não, aquilo que dizemos é parte essencial daquilo que somos” (MACDONALD, 2014,
135
p. 96). Em texto de 1977, Pincus justifica esta metodologia ao enfatizar a unicidade
espaço-temporal das tomadas como matéria-prima narrativa, asserindo que “Tudo pode
ser dito em entrevistas ou na narração em over, mas nem tudo pode ser mostrado. Talvez
a principal preocupação do cinema agora seja aquilo que não pode ser dito, mas deve ser
mostrado” (PINCUS, 1977, p. 175).
Outro comprometimento conceitual de Ed Pincus em relação a Diaries é a
disposição de uma macroestrutura narrativa cronológica. Segundo aponta Jim Lane,
originalmente Pincus estaria convencido de que o projeto completo de Diaries seria a
exibição das 27 horas de seu material bruto em ordem cronológica (LANE, 1997, p. 10),
ideia esta que foi deixada de lado alguns anos após o término da filmagem. Entretanto, a
narrativa, embora longa, é conduzida a partir de uma estrutura de causa-e-efeito,
responsável pela manutenção do interesse dramático em relação a alguns pontos
temáticos principais do filme – em especial, a discussão acerca da vida conjugal de Ed e
Jane, que entrecorta toda a narrativa. De maneira geral, a espectatorialidade de Diaries
consiste em uma espécie de fluxo no qual imerge-se aos poucos até que se torne pleno o
entendimento de sua proposta narrativa. No início do filme, Pincus não enfatiza
procedimentos narrativos que nos apontem o que devemos buscar na experiência
audiovisual à qual estamos expostos. Da mesma forma, existe pouco didatismo quando
novos personagens são apresentados à narrativa - pouco sabemos, em um primeiro
momento, da relação entre o personagem e o cineasta que justifique sua inclusão no filme.
É neste aspecto que a reexposição dos personagens a partir de uma narrativa cronológica
faz com que ao longo do filme emerjam traços de seus comportamentos físicos,
personalidades, mudanças de temperamento e do tipo de laço que mantém com o cineasta,
sempre a partir de interações dramáticas com outros personagens ou com o próprio
Pincus. Também neste sentido o autor Stephen Schiff disserta a respeito de como o
sentido da narrativa de Diaries é construída em seu visionamento:
Ao esticar tão pouco material sobre uma extensão (de tempo) tão ampla,
Pincus fez com que a pele de seu filme pareça esticada e resiliente.
Saltando de um incidente parcialmente esboçado para outro, o
espectador começa a preencher as lacunas e a sensação que (este
procedimento) transmite é bastante como um suspense. É como se
Diaries desencadeasse algum impulso narrativo inconsciente – um
poder de conexão enevoante, conectivo, não diferente da persistência
da visão que transforma as fotos em filme quando elas são piscadas
vinte e quatro vezes por segundo. Aliviadamente, Diaries não insiste
136
em sua narrativa. A estória simplesmente forma-se, coalesce, tão
misteriosamente como a geada em uma janela. O que é surpreendente é
que há uma história, que quando olhada em pedaços como este, (mostra
que) a vida produz narrativa, repleta de seus próprios motes, viradas e
trechos de suspense. Você consegue ver isso acontecer. (SCHIFF, 1981.
Os grifos são do autor. Tradução nossa.)
Figura 9: A família Pincus na casa de campo em Vermont, último plano de Diaries (1971-1976)
Neste sentido, a pouca concessão de Pincus a elementos estilísticos que se
desviassem da proposta de narratividade autobiográfica que buscava testar em Diaries
revela sua posição vigorosa em relação ao novo cenário. Diaries é um dos principais
alicerces do Documentário Autobiográfico de Cambridge e influenciou diretamente a
obra de cineastas como Ross McElwee. Diversos de seus elementos estilísticos ou
metodológicos (cronologia, equipe de uma pessoa só, narratividade a partir da interação
dramática, ênfase no cotidiano e no sync-sound) serão recorrentes na obra destes
cineastas.
À ocasião de uma retrospectiva dos filmes de Ed Pincus realizada em 2012 no
Harvard Film Archive, McElwee escreveu sobre o apreço por Diaries e sua influência
para uma geração de cineastas:
137
(O filme) é luminoso em sua caracterização da intrincada trama do
cotidiano. Almoços são preparados, uma criança é levada ao médico,
um filhote de cachorro é comprado, o pai de Jane faz uma visita, Ed vai
a um casamento, o filhote torna-se um cachorro adulto. O mundano
torna-se transcendente. Esse fluxo sem fim de atividades com amigos e
família é o pano de fundo evanescente para o desejo de Ed e Jane de
redefinir o que significa alguém estar casado, criar uma família e,
também, o que significa expor esse experimento caótico e amável para
a câmera. (...) Ed descreveu seu trabalho como uma tentativa de
reconciliar o trivial com o profundo e provar a fragilidade e o heroísmo
da vida cotidiana. Diaries continua a inspirar diversos documentaristas,
incluindo eu mesmo, a perseguir essas mesmas reconciliações e
revelações. Mas, mais importante, com pathos e humor abundantes,
Diaries revela a qualquer espectador as fascinantes ressonâncias e
ritmos dos incontáveis momentos mundanos que fazem a vida de uma
pessoa – e isso constitui o viver. (McELWEE, 2012. Tradução nossa.)
2.4. A produção autobiográfica do MIT Film Section: filmes e cineastas.
Um dos principais polos de produção cinematográfica de Cambridge neste
momento consistiu na experiência do MIT Film Section. O MIT Film Section foi o
departamento de pesquisa, ensino, produção e inovação cinematográfica do
Massachusetts Institute of Technology (MIT). O departamento foi fundado em 1967 com
a contratação de Ed Pincus, a quem Richard Leacock juntou-se no ano seguinte. A dupla
trabalhou em conjunto até o início dos anos 1980, quando Pincus passou também a
lecionar na universidade Harvard (até 1983) e em seguida muda-se definitivamente para
o estado de Vermont, afastando-se tanto da docência quanto da produção
cinematográfica. Leacock permanece lecionando no MIT até 1988, quando se aposenta
da instituição e muda-se para Paris com a companheira Valerie Lalonde, onde realiza seus
últimos filmes e reside até o fim da vida.
De 1967 a 1974 o MIT Film Section recebeu alunos de graduação de outras áreas
da universidade que desejavam realizar incursões pela atividade cinematográfica. Porém,
a “época de ouro” do departamento, no que concernem desenvolvimentos da arte
cinematográfica aplicada ao documentário e à formação de cineastas-chave desta história,
deu-se com a instauração de um programa de mestrado, em 1974. Tratava-se de um
programa de dois anos em que os alunos aprendiam cinema de um ponto de vista também
teórico, porém predominantemente prático. Era enfática a noção de que o cineasta deveria
dominar o núcleo duro de funções da produção documentária (imagem/som e montagem)
138
a fim de poder desempenhar qualquer um ou todos os papeis. Durante o curso, os alunos
realizavam um ou mais de seus próprios filmes, que deveriam ser finalizados e entregues
como trabalhos de conclusão23, juntamente com um “memorial” descritivo-analítico em
que justificavam suas escolhas estéticas e narrativas.
No período de 1974 a 1980, o MIT Film Section formou cineastas importantes
para o desenvolvimento do documentário de Cambridge. Principalmente a partir do
contato com Ed Pincus, muitos destes realizadores enveredaram na noção de
autobiografia fílmica. É o caso do próprio Ross McElwee (formado na primeira turma de
pós-graduandos do departamento, em 1977), Robb Moss (Absence [1981], Riverdogs
[1982], The Tourist [1991], The Same River Twice [2002]), Mark Rance (Mom [1978] e
Death and the Singing Telegram [1983]), Jeff Kreines (técnico do departamento e diretor
do pioneiro The Plaint of Steve Kreines as Recorded by his brother Jeff [1974]), Joel
DeMott (Demon Lover Diary [1980]) e Ann Schaetzel (Breaking and Entering [1980]).
Para além destes cineastas, o MIT Film Section também contou com alunos como o Prof.
Richard Peña, formado em 1978, ex-curador do Festival de Cinema de Nova Iorque e
atualmente docente da Columbia University. Já a partir da década de 1980, o enfoque do
MIT Film Section tornou-se mais abrangente no que diz respeito à acepção de outros tipos
de expressões audiovisuais que não apenas aquelas restritas à sala de cinema e à arte do
cinema documentário. Um engajamento maior com a ideia de ampliar a abrangência das
mídias eletrônicas e, posteriormente, digitais, com outros setores artísticos (museus,
instalações, hipermídia) é o que circunda o trabalho do sucessor do Film Section, o MIT
Media Lab, que abriu suas portas em 1985 e funciona até os dias atuais.
Porém, é possível dizer que a experiência de 1967 a 1980 do MIT Film Section
concentrou-se predominantemente no debate e no desenvolvimento de questões ligadas
ao cinema documentário, a partir do legado do cinema direto norte-americano. O
departamento oferecia um enfoque significantemente mais prático e livre se comparado
ao trabalho que estava sendo desenvolvido no Film Study Center de Harvard na década
de 1960 e 1970. O fomento à produção e ao desenvolvimento de técnicas e metodologias
que simplificassem (e barateassem) cada vez mais o registro de imagem e som sincrônico
impulsionou o interesse de muitos de seus alunos. Também neste momento, pensava-se
23 Richard Leacock constata que foram realizados mais de quarenta filmes de conclusão de curso no MIT, alguns de “reconhecimento considerável”, segundo ele, como Charleen de Ross McElwee, Premature, de David Parry, e Space Coast, de Ross McElwee e Nicholas Negroponte. (LEACOCK, 2002, p. 283)
139
na inovação tecnológica (característica bastante relacionada à filosofia operante do MIT,
de maneira geral) relacionada ao cinema documentário como possibilitadora de uma
inovação epistemológica – da natureza do conhecimento que era produzido por filmes
documentários. Em parte, tratava-se de pensar o sync-sound como característica
irrevogável do processo cinematográfico e da representação fílmica do mundo. Alfred
Guzzetti, que já trabalhava em Havard neste período, relata que “eles (no MIT) achavam
que uma vez que conseguissem fazer funcionar esta máquina do sync-sound, ela poderia
dizer-nos verdades sobre a sociedade que nunca tínhamos conhecido” (MACDONALD,
2014, p. 111).
Segundo Ed Pincus, sua contratação no MIT e, consequentemente, a fundação do
MIT Film Section, deu-se a partir da visualização de Black Natchez por alguns
professores de humanidades do MIT (MACDONALD, 2014, p.67). O filme suscitou
nestes docentes (lefties, ou, “de esquerda”, segundo Pincus) a importância de que o MIT
dialogasse com as novas possibilidades de representação cinematográfica da época. É
Richard Leacock, entretanto, que acaba tornando-se uma espécie de “porta-voz” do
departamento, a partir de sua chegada em 1968. Leacock era reconhecidamente um
entusiasta da ciência e do trabalho dos cientistas, e já havia trabalhado com professores
do MIT em documentários educacionais sobre física. Além de mostrar conforto maior
que Pincus em relação ao trato acadêmico e interdepartamental com outros professores
do MIT, Leacock dá sinais de pensar no cinema para além de uma esfera artística, como
ferramenta para outros tipos de trabalho, por exemplo relacionados à ciência e à
divulgação científica. Em sua autobiografia, Leacock incorpora um “manifesto” do
trabalho do departamento, escrito por ele à época, que sumariza as intenções do MIT Film
Section:
O que pretendemos fazer aqui no MIT é oferecer uma sofisticada
instalação para a feitura cinematográfica que pode produzir filmes
sonoros em 16mm. Com esta instalação, poderemos tanto treinar
estudantes que queiram tornar-se cineastas profissionais quanto assistir
aqueles que têm outros interesses específicos, mas que querem usar o
cinema como uma ferramenta em seus trabalhos, ou como uma maneira
de comunicação daquilo que estão fazendo. Também podemos
deliberadamente realizar projetos que buscam usar o cinema de maneira
que, na nossa avaliação, não foram explorados no passado.
Pretendemos projetar e construir novos equipamentos com ênfase
especial em 8mm e gravação em videotape a fim de reduzir o custo e a
dificuldade da feitura de cinema para fins não-profissionais.
140
Finalmente, eu e aqueles que trabalham comigo devemos continuar a
trabalhar como cineastas ativos, envolvidos com os estudantes mais
como colegas de trabalho do que como professores. (LEACOCK, 2012,
p. 277. Tradução nossa.)
Este trecho do “manifesto” do MIT Film Section revela uma de suas missões,
particularmente no que diz respeito à motivação de Richard Leacock dentro do
departamento. Existia o interesse no fomento da inovação do aparato tecnológico em
busca da simplificação, clareamento e barateamento da produção fílmica. Em suma, havia
um esforço conjunto pela facilidade de acesso à feitura cinematográfica como via
alternativa de produção de conhecimento. Indo ao encontro do relato de Alfred Guzzetti,
já citado, acreditava-se que o acesso à produção cinematográfica nas mãos de indivíduos
menos vinculados ao cinema em sua profissionalização poderia revelar “verdades
desconhecidas” à sociedade. No relato de Guzzetti ou no “manifesto” cunhado por
Richard Leacock frisa-se o som sincrônico como parte inerente ao registro
cinematográfico e à construção narrativa. No artigo de 1977 em que Pincus discorre a
respeito da experiência em andamento de Diaries, o cineasta faz coro a esta ideia:
(...) Pode-se plausivelmente sustentar que a unidade fílmica básica é a
tomada juntamente com o som que a acompanha (...) Daqui em diante
gostaria de usar a expressão “tomada fílmica” (no sentido do take) como
incluindo ao menos a possibilidade do som sincrônico que acompanha
a imagem cinematográfica. Devemos notar que a gravação sonora de
algo implica que este algo existe. (PINCUS, 1977, p. 160. Tradução
nossa.).
Durante os anos do MIT Film Section, Leacock, Pincus e uma trupe de técnicos
desenvolveram aperfeiçoamentos para o sync-sound tanto na bitola de 16mm quanto na
de super-8mm, sendo que o uso de ambos os sistemas foi encorajado aos estudantes para
suas produções. Em entrevista para esta pesquisa, o professor e ex-aluno do MIT Film
Section Richard Peña24 assere que, em última análise, o sonho de Leacock em relação ao
24 Richard Peña também foi assistente de edição do diário filmado de Ed Pincus, Diaries (1971 - 1976). O Prof. Peña pôde ser entrevistado para esta pesquisa durante a estadia na Universidade Harvard, entre 2015 e 2016, onde Peña também se encontrava como professor visitante do departamento Visual and Environmental Studies. A história de Peña e sua relação com o MIT Film Section apresenta uma interessante conexão com o Cinema Brasileiro e latino-americano. Em entrevista, Peña relata que a decisão de estudar no MIT Film Section partiu de sua experiência no Brasil entre 1974 e 1975. Neste momento, travou contato com Paulo Emilio Salles Gomes (a cujas aulas assistiu durante seis semanas),
141
sync-sound seria cristalizado posteriormente, com o desenvolvimento das câmeras de
vídeo mais portáteis e de melhor qualidade25. Um dos maiores legados deixados pelo MIT
Film Section, portanto, foi o de estabelecer-se como um polo de pesquisa dedicado ao
avanço epistemológico no campo do Cinema Documentário a partir da inovação
tecnológica. Demandava-se o esforço pela implementação de metodologias que
facilitassem o acesso, de diferentes maneiras, ao registro imagético-sonoro sincrônico.
O contato com a produção de Ed Pincus foi fundamental para o desenvolvimento
de documentários autobiográficos por diversos dos cineastas-alunos do MIT Film
Section, como Ross McElwee, Robb Moss, Ann Schaetzel, Mark Rance e outros. Em sua
autobiografia, Richard Leacock frisa o distanciamento que tinha de Ed Pincus em relação
a esta questão, afirmando que “Pincus estava interessado em filmes ‘diarísticos’; eu sentia
que isto era impossível. Alguns estudantes foram pelo meu caminho, outros seguiram
pelo caminho dele. Ainda penso sobre isto e continuarei a fazê-lo.” (LEACOCK, 2012,
p. 308). Os trabalhos finais redigidos pelos alunos do MIT Film Section (como
MCELWEE, 1977; RANCE; 1977 ou MOSS, 1979) evidenciam como o
desenvolvimento das possibilidades metodológicas do cinema direto – e o florescimento
para uma inclinação ao documentário autobiográfico – estavam no cerne das questões
discutidas do departamento. Estas discussões iam acerca da variação entre observação e
interação/participação do realizador com o mundo ao redor; a proximidade ou o
distanciamento com o “objeto” fílmico ou a maneira através da qual as configurações de
equipe e de equipamento (tecnologia) adequavam-se a determinado projeto.
O trabalho final de Ricahrd Peña (1978) busca problematizar o Documentário
moderno estadunidense, na forma do cinema direto, passando pelo grupo Drew e pelo
Carlos Augusto Calil e outros pesquisadores. Peña estava interessado na ideia do “acesso” à produção cinematográfica em países latino-americanos. Apesar do apreço pelo cinema de Leacock, Pennebaker e outros cineastas do grupo do Cinema Direto estadunidense, sua ida ao MIT Film Section determinou-se pela ciência de que o departamento experimentava com bitolas menores, como o Super-8, e outros tipos de inovações do aparato cinematográfico. Na mesma linha de pensamento do manifesto do MIT Film Section escrito por Leacock, Peña interessava-se pela simplificação e barateamento da produção fílmica em prol de sua desvinculação de uma ótica profissionalizante e elitista. 25 De fato, o último período da produção de Richard Leacock (realizada na França, após 1988, com a companheira Valerie Lalonde), consiste totalmente na utilização de câmeras de videotape Hi-8. Em filmes como Les Oeufs a la Coque de Richard Leacock (1991), o diretor passa a registrar e narrativizar eventos mais próximos de seu cotidiano. Não se trata necessariamente de uma abordagem autobiográfica de sua maneira mais densa, mas existe um ponto-de-vista autorreflexivo em que Leacock sublinha sua posição como profissional recém-aposentado e explorador de um novo país, uma leveza em relação ao último
período de sua vida que permanece em toda sua última produção.
142
cinema de Jean Rouch, chegando em Ed Pincus e em uma avaliação crítica do trabalho
feito pelos estudantes do MIT Film Section. Peña, como outros teóricos/cineastas que
viveram este momento cinematográfico “de dentro” da experiência, exnergava a
produção contemporânea como uma reação ao cinema direto clássico, apontando para os
novos questionamentos temáticos, metodológicos e éticos suscitados pelos filmes:
Pode-se ver como a obra de Pincus oferece um exemplo da evolução do
cinema-vérité americano para longe do modelo Drew em certa direção
(...) O indivíduo extraordinário é substituído (…) pelo cineasta ele
próprio, de certa maneira. Repentinamente, os “objetos” do cinema-
vérité Americano viram-se e encaram a câmera. ” (PEÑA, 1978. p.26).
Peña ainda constata que, naquele momento, o Cinema-Vérité e, especialmente, o
trabalho vindo do MIT, constituía a única vanguarda significativa do cinema
estadunidense (PEÑA, 1978, p. 5). Segundo o autor, “certamente o trabalho dos docentes
e dos funcionários, assim como parcela significativa do trabalho dos alunos, está
vislumbrando novos caminhos no cinema, cujos efeitos ainda serão sentidos” (PEÑA,
1978, p. 5). Comentaremos algumas das experiências autobiográficas extraídas do
contexto do MIT Film Section.
a) David Parry, Jeff Kreines, Mark Rance
Em seu trabalho de conclusão de curso, o aluno David Parry aponta que se o
cinema direto dos anos 1960 poderia ser entendido através da metáfora da “mosca na
parede”, a produção da década de 1970 seria metaforizada pela “mosca no espelho”
(PARRY, 1979, p. 6). Para Parry, no momento em que viviam, “a verdade subjetiva
tornou-se o espécime mais nobre para análise, e a autobiografia torna-se quase que um
‘cartão de visitas’” (PARRY, 1979, p. 6). Em sua dissertação, Parry reflete sobre a
experiência da realização de Premature, filme rodado durante sua passagem pelo curso,
entre 1977 e 1979, e finalizado totalmente no ano seguinte. A circunstância de Premature
inicia-se com o nascimento prematuro de sua primeira filha, aos seis meses de idade.
Parry tematiza o desenvolvimento da filha durante o período de incubação, no qual o
diretor e sua esposa não sabiam se o bebê sobreviveria e se desenvolveria sem sequelas.
143
Um ano e meio após este momento, a esposa do cineasta engravida novamente e a
possibilidade de um aborto é colocada em questão. O filme desenvolve-se, portanto,
durante um período de crise familiar. Diversas sequencias de interação entre o cineasta e
sua esposa denotam o momento de instabilidade pelo qual passavam, no qual também a
empreitada fílmica – o ato de registrar a crise – coloca-se como um elemento de tensão e
conflito.
Figura 10: Premature (1980), de David Parry
Uma figura de destaque no desenvolvimento da metodologia do documentário
autobiográfico do MIT Film Section é Jeff Kreines. Na década de 1970, Kreines era
empregado da área técnica do departamento, tendo colaborado para a produção dos alunos
do MIT Film Section. Kreines é apontado como responsável pelo desenvolvimento da
metodologia do one-person-crew aliada à exploração doméstica ou familiar, que fora
aprimorada por Ed Pincus para a feitura de Diaries. Kreines empregou a metodologia no
filme The Plaint of Steve Kreines as Recorded By His Younger Brother, Jeff, lançado
ainda em 1974. O filme de Kreines lida com a circunstância doméstica que englobava o
momento da saída de seu irmão mais velho do lar, a fim de viver sozinho pela primeira
vez em um apartamento. O documentário é frequentemente apontado como uma
144
experiência pioneira do cruzamento entre cinema direto e autobiografia. Em diversas
entrevistas, e em diferentes momentos de sua carreira, Ross McElwee refere-se ao filme
de Kreines como influência preponderante para seu desejo de filmar sob uma ótica da
exploração do cotidiano familiar, considerando-o capaz de transformar “os detalhes
mundanos da própria vida do cineasta em algo digno de cinema” (MCELWEE, 2005,
p.5). Ed Pincus também menciona o filme em artigo publicado em 1977 (PINCUS, 1977,
p. 170), no qual avalia a produção do MIT Film Section naquele momento.
Figura 11: Diálogo entre Steve Kreines e sua mãe em trecho disponível de The Plaint of Steve
Kreines as Recorded by his younger brother, Jeff (Jeff Kreines, 1974)
Kreines estabeleceu um relacionamento próximo com outros dois alunos/cineastas
do MIT Film Section, Mark Rance e Joel DeMott, que também realizaram documentários
autobiográficos no período. Em seu trabalho final, Mark Rance (1977) escreve sobre a
experiência da feitura de Mom (1978), um dos filmes entregues na conclusão de curso do
MIT. Alguns anos depois, em 1986, Rance publica o artigo “Home Movies and Cinema-
Vérité” (RANCE, 1986), no qual sublinha a importância do MIT Film Section no
desenvolvimento do cinema autobiográfico estadunidense. Rance expõe a relação do
departamento com a tradição do cinema direto e o ímpeto em fazer do cotidiano e das
relações familiares a matéria prima das narrativas documentárias:
145
Um ótimo cinema pode ser criado a partir de uma temática simples, de
filmes caseiros?
Talvez seja para colocar esta questão que estou buscando mostrar aqui
as conexões elementares entre o tipo de cinema vérité/direto que eu
pratico e filmes caseiros. O cinema direto, o cinema independente
americano e os filmes caseiros partilham uma fascinação e uma
obsessão com a vida cotidiana. A história do MIT Film/Video Section
é a história de cineastas-caseiros profissionais tentando trazer a vida
cotidiana para o cinema documentário. (RANCE, 1986. p. 98. Tradução
nossa.)
Em Mom, documentário de trinta e sete minutos, Rance tematiza a relação distante
entre si próprio e sua mãe no período em que a acompanha a uma viagem de estudos e
trabalho para Nova Iorque. O realizador registra momentos juntos da mãe nos dias que
antecedem sua participação como assistente em um desfile de moda, área com a qual
desejava começar a trabalhar. Em sua dissertação, Rance aponta que não havia retornado
à casa de sua família pelos quatro anos anteriores à filmagem. Sua volta coincidira com
o momento em que a mãe deixava o lar, no qual vivia com o marido, em busca de
emancipação, decidindo viver em outro local (RANCE, 1977, p.2). Na maior parte do
filme, Rance acompanha o dia-a-dia de sua mãe no trato com outras pessoas envolvidas
na produção do desfile de modas, bem como seu engajamento nas tarefas relativas ao
evento, em um registro dominantemente recuado e observativo. A complacência da mãe
do cineasta com a empreitada cinematográfica do filho consistia na crença de que o
propósito do filme seria o de apoiar a busca da mãe por um novo cenário e trazer
visibilidade ao seu trabalho na carreira que almejava iniciar. O conflito entre os propósitos
do cineasta e da mãe/personagem vêm à tona na última parte do filme, em uma discussão
iniciada quando Rance é cobrado por não ter filmado nenhuma parte “importante” do
desfile de modas que a mãe participara. Em um plano sequência de quase dez minutos, o
distanciamento entre mãe e filho vem à tona e a relação particular travada entre ambos
naquele momento específico transborda quando a mãe aponta vigorosamente seu
sentimento de subserviência em relação à família e aos filhos durante décadas26.
26 O diretor continua o trabalho autobiográfico iniciado por Mom no longa-metragem Death and the
Singing Telegram, lançado em 1983, que também lida com conflitos dentro de sua família. O autor Jim Lane oferece (2002) uma das poucas análises sobre o filme, de difícil acesso.
146
Figura 12: A mãe de Mark Rance dirige-se vigorosamente ao cineasta em plano-sequência de Mom (1978)
b) Joel DeMott, Ann Schaetzel, Miriam Weinsein
Mark Rance e Jeff Kreines foram protagonistas de outro documentário
autobiográfico que merece menção, Demon Lover Diary, lançado em 1980 por Joel
DeMott, aluna do MIT Film Section. Também a partir de uma metodologia one-person-
crew a cineasta narra os bastidores da filmagem do filme de horror “B” Demon Lover, no
qual Jeff Kreines – seu companheiro – participa como diretor de fotografia e Rance como
técnico de som direto. O filme torna-se o testemunho de uma produção caótica,
atravessada por desorganização generalizada, falta de recursos e relações interpessoais
tempestivas. Se claramente estamos acompanhando a produção de um filme ficcional que
tem grandes chances de ser um fracasso total, a narrativa conduzida por Joel DeMott
torna-se bastante envolvente, à medida que a situação de tons absurdos na qual a cineasta
e seus amigos estão envolvidos torna-se repleta de tensão e ameaças reais. A narrativa de
Demon Lover Diary culmina com a fuga do trio de cineastas do set de produção sob a
ameaça de serem alvejados por tiros de espingarda. Tanto Mom quanto Demon Lover
Diary partem de uma estrutura narrativa cronológica e calcada na proximidade do
cineasta com seus pares a partir de uma metodologia de sync-sound. O filme de DeMott,
entretanto, conta com uma narração em voz over em primeira pessoa pela qual entramos
em contato com as meditações de DeMott sobre o que estavam vivendo na circunstância.
Este elemento narrativo é particularmente importante no sentido da construção da
147
cineasta como uma mulher que experienciava o ambiente predominantemente masculino
e, não-raro, machista, dos bastidores da produção cinematográfica27.
Breaking and Entering, dirigido pela aluna/cineasta Ann Schaetzel, foi realizado
no MIT Film Section e lançado em 1980. Segundo os relatos sobre o filme realizados por
Scott MacDonald (2013) e Jim Lane (2002), Schaetzel é responsável pelo registro em
sync-sound e da montagem do filme, porém é a narração em over em primeira pessoa
realizada pela diretora que ocupa função especial na narrativa. Breaking and Entering
tematiza o retorno de Schaetzel à casa de seus pais em Washington, cidade onde passou
sua juventude. Lane aponta que a cineasta desempenha o papel de “observadora
autobiógrafa” (2002, p. 159) no ambiente familiar, registrando sobretudo “momentos
domésticos discretos”. Segundo os relatos acerca do filme, Schaetzel apresenta uma
postura passiva no momento da tomada, pouco ocupando o papel de interlocutora ativa
nos momentos cotidianos que registra. A esta postura contrapõe-se a função que
desempenha em voz over, marcadamente assertiva e agressiva.
A narrativa de Breaking and Entering constrói-se como uma declaração vingança
da cineasta em relação à sensação de dano que seus pais a causaram na juventude.
Segundo a análise de Jim Lane, a cineasta assere em voz over, no início do filme, o
principal propósito da narrativa: “Eu voltei para casa em um estado de raiva. Voltei para
machucar meus pais. Voltei para machucá-los porque eles me machucaram. É simples
assim.” (LANE, 2002, p. 158). Através da narração em over Schaetzel explica, ao longo
do filme, que anos atrás seus pais teriam sido responsáveis por a ter separado de um
homem por quem teria se apaixonado aos dezesseis anos e com quem teria feito amor
pela primeira vez. Julgando sórdido o relacionamento da filha, os pais da cineasta
proibiram seu contato com o rapaz, mandaram-na para fora do país e ameaçaram-no de
morte. A violência do acontecimento, expõe a cineasta, acarretaram graves consequências
psicológicas em sua vida, como o fato de sentir-se apavorada pela ideia de sexo, daquele
momento em diante. Scott MacDonald sugere que a vingança de Schaetzel em Breaking
and Entering parece suscitar o que a teórica Laura Mulvey assere como cinema de
“política de terra queimada” (scorched Earth filmmaking), um cinema feminista que
27 A autora Patricia Zimmerman expõe esta questão em extensão, na análise que realiza de Demon Lover Diary. Ver ZIMMERMAN, 1990.
148
“conscientemente nega ao espectador os prazeres usuais do cinema” (MACDONALD,
2013, p. 191).
Joel DeMott e Ann Schaetzel, por meio de Demon Lover Diary e Breaking and
Entering, podem ser pensados como parte de um grupo de cineastas mulheres que na
década de 1970 realizaram documentários que expuseram diferentes facetas da
experiência feminina a partir de relatos autobiográficos. A maioria deles eram realizados
a partir de procedimentos de visibilidade do cotidiano doméstico ou da exposição de
relações familiares, e também frequentemente a partir de uma metodologia próxima das
preocupações do cinema direto da década de 1970. Neste sentido, o caso de Miriam
Weinstein também pode ser mencionado. Weinstein não foi propriamente aluna do MIT
Film Section – a cineasta obteve o diploma de mestrado (MFA) em cinema pela Boston
University –, porém mantinha contato com representantes da produção de Cambridge,
reunindo-se com Ed Pincus e outros cineastas. Weinstein sustenta que “em 1968, uma
época de tremenda convulsão social, os jovens que trabalhavam com mídia se reuniam na
casa/escritório de Ed. Havia muita discussão sobre como cobriríamos os eventos que
estavam acontecendo, como disseminaríamos informação, etc.” (MACDONALD, 2013,
p. 131).
Entre 1972 e 1976, Weinstein lançou quatro documentários autobiográficos de
curta-metragem, nos quais abordava tematicamente algumas questões que norteavam sua
vida individual, familiar e doméstica naquele momento. Seus filmes vão ao encontro da
noção do endereçamento de questões privadas como um tema público e político, na verve
da segunda onda do feminismo estadunidense. Lembrando a publicação do guia coletivo
de saúde da mulher Our Bodies, Ourselves ainda em 1971, os filmes de Weinstein tornam-
se um exemplo cinematográfico da problemática do universo doméstico feminino, em
meio a reavaliação de temas como trabalho, família e casamento, no qual a cineasta toma
a si própria e as pessoas próximas de si como modelo.
O primeiro de seus filmes, My Father, the Doctor (1972), consiste em uma série
de entrevistas realizadas pela cineasta com seu pai. Estas entrevistas revelam o tipo de
expectativa que o pai, médico, teria para com a filha, no que concerne, sobretudo, sua
carreira profissional. Dois pontos principais emergem da conversa de Weinstein com seu
pai. Um deles é relativo a certo descontentamento, ou desconfiança, que o pai tem com o
ofício da filha enquanto documentarista. Em uma abordagem que será replicada em tantos
outros documentários autobiográficos – como no caso de Ross McElwee (Backyard,
149
Sherman’s March, Time Indefinite), Alan Berliner (Nobody’s Business), Richard P.
Rogers (Elephants) e Nina Davenport (Always a Bridesmaid e First Comes Love) – torna-
se evidente o argumento de que a produção cinematográfica não seria, necessariamente,
um projeto de carreira “sério” e, sim, um desperdício de talento e de inteligência dos
filhos. Outro ponto que é ressaltado no argumento do pai da cineasta diz respeito à
separação laboral entre homens e mulheres, neste caso, entre “filhos homens” e “filhas
mulheres”. Em um destes momentos, Weinstein pergunta por que não teria sido
incentivada em seguir uma carreira na área da saúde, como o pai, recebendo a resposta de
que a medicina não seria uma carreira adequada para as mulheres. Seu pai argumenta que
muitas poucas mulheres poderiam ser boas médicas, e que teria incentivado apenas um
filho homem a seguir a carreira.
Figura 13: O pai de Miriam Weinstein em My Father, the Doctor (1972).
Em Living With Peter (1973), a reflexão de Weinstein gira em torno da questão
da necessidade ou não do casamento. Morando junto com o companheiro Peter Feinstein,
sem terem se casado, o esforço da cineasta consiste em levantar opiniões acerca do
significado do matrimônio, bem como estabelecer um panorama da expectativa de família
e amigos perante a questão. Os amigos da cineasta apresentam posições em geral
progressistas em relação ao assunto – casar-se deveria corresponder a um desejo genuíno
e não a uma necessidade. A mãe da cineasta, entretanto, ainda que concorde com o direito
150
de escolha da filha, sugere que tanto o ato de casar-se quanto a maternidade seriam
elementos “naturais” à condição feminina. Weinstein e o companheiro por fim decidem
casar-se, assunto que é tematizado em seu filme seguinte, We Get Married Twice (1973).
Neste, a realizadora aborda o fato de ter realizado duas cerimônias de casamento. A
primeira delas, da maneira que a cineasta o companheiro “queriam”, fora dedicada a
amigos próximos e sem tons religiosos. Entretanto, a pressão moral e familiar culminou
na realização de outra cerimônia, com ambas as famílias presentes, e celebrada a partir
da tradição judaica – uma cerimônia realizada em hebraico (não filmada, mas cujo áudio
é incorporado ao filme), bem como a festa posterior. O contraponto entre as duas
celebrações é sentida pelo casal. Em depoimento para a câmera, Weinstein comenta o
senso de seriedade proveniente do matrimônio religioso, tendo se sentido quase culpada
durante a cerimônia e experienciando a “responsabilidade por ser judia”.
Figura 14: Depoimento de Weinstein para a câmera em Living with Peter (1973, à esquerda) e o
casal Weinstein cortando o bolo de casamento em We get married Twice (1973, à direita)
O último dos filmes de Weinstein, Call Me Mama (1976), é realizado e lançado
anos após o casamento, quando o casal já tinha um filho pequeno. Neste caso, a cineasta
tematiza sua vida após o nascimento do filho, evidenciando que dedica seu tempo quase
integralmente à criança. Weinstein explica em sua voz over que o próprio o fato do
documentário ser filmado por outra pessoa relaciona-se com a impossibilidade de abster-
se da atenção ao filho, a fim de que pudesse segurar a câmera e realizar um filme.
Assistimos à cineasta em situações cotidianas com a criança, levando-a para passeios e
visitando uma amiga, também mãe de uma criança pequena. A diretora sublinha o ponto
151
de que o marido não é o tipo de “pessoa que consegue cuidar do bebê”. Frisando ter
afastado-se do trabalho e de outras atividades, Weinstein ressalta o propósito do filme ao
constatar que almejava mostrar “como é ter um filho, de verdade”. A relação entre
maternidade e trabalho encontra paralelo em um documentário autobiográfico lançado
em 1972, Joyce at 34, no qual a cineasta Joyce Chopra tematiza o reflexo da maternidade
em sua carreira cinematográfica durante o período de gravidez.
Figura 15: A cineasta Miriam Weinstein e o filho em Call me Mama (1976)
c) Robb Moss
Atualmente professor do departamento VES em Harvard, Robb Moss também
produziu seus primeiros documentários autobiográficos durante a passagem pelo MIT
Film Section, onde formou-se em 1979. No tempo em que estudou no departamento,
Moss realizou os documentários Absence e Riverdogs, ambos dialogando com as
discussões que permeavam o departamento no momento. A dissertação entregue por
Moss ao final do curso reúne um relato mais alongado a respeito de particularidades da
filmagem de Riverdogs, mas também contém elucidações teóricas aguçadas em relação à
ideia de autobiografia e ao tipo de cinema direto que estava sendo debatido no
departamento. O texto de Moss torna-se, portanto, um rico documento que transpira o
pensamento cinematográfico de Cambridge, ainda na década de 1970.
152
Absence, de maneira semelhante a filmes como Mom, Breaking and Entering ou
mesmo a Backyard (Ross McElwee) tem como ponto de partida o retorno de Moss para
a casa de sua família, depois de um longo tempo afastado. Segundo o relato de Scott
MacDonald sobre o filme (2013, p.243), o filme constitui-se em uma série de situações
cotidianas em que o cineasta interage por detrás da câmera com família e amigos. Sua
“ausência” da circunstância familiar no tempo anterior à filmagem dá lugar a uma espécie
de estranhamento interpessoal que transborda nas interações filmadas por ele. Em sua
dissertação, Richard Peña traça alguns comentários sobre o filme de Moss, sustentando
que “de certa forma, o assunto do filme, ou seu foco, não é o fato de que Moss está de
volta, mas o de que ele esteve ausente. A distância – física e cronológica – traduz-se em
uma distância pessoal” (PEÑA, 1979, p. 31). Moss parece interessado em tentar entender
a maneira através da qual a figura do cineasta transforma o eixo temático dos
documentários autobiográficos de “ordinário” para “particular”. A ideia, segundo Moss,
é a de que a relação do cineasta com seu “objeto” é a condição sine qua non para a
existência de uma narrativa autobiográfica. Nas palavras de Moss:
Em Absence o objeto do filme – minha viagem para casa, o clima da
viagem, meu relacionamento com minha família, etc. – teriam
acontecido sem a presença da câmera. Entretanto, sem a minha
presença, o objeto do filme deixa de existir. Isto é fundamentalmente
diferente do que, digamos, os filmes Drew, onde o que está sendo
proposto são os eventos que estariam acontecendo independentemente
de qualquer câmera ou equipe. O que estou dizendo aqui, creio, é o que
que parece distinguir o “filme pessoal” dos documentários em geral. O
objeto do filme pessoal simplesmente deixa de existir sem a presença
física ou criativa do cineasta. Não estou dizendo que qualquer pessoa
poderia ter feito Happy Mother’s Day, mas estou dizendo que qualquer
um poderia ter filmado o evento dos quíntuplos de Fischer. Em Absence
não existia filme antes do cineasta chegar. (MOSS, 1979, p. 10-11.
Tradução nossa.).
Em Riverdogs, Moss realiza uma narrativa acerca de um grupo de pessoas que,
assim como o próprio diretor, passavam metade do ano excursionando e acampando à
beira do rio Colorado, que entrecorta o Grand Canyon. Moss aponta (1979, p. 4 e 5) que
as viagens pelo rio (river trips) faziam-no entrar em contato com diversos dos valores que
acreditou durante os anos 1960. Essas viagenso proporcionavam o afastamento de
grandes centros urbanos e da poluição, bem como enfatizavam uma maneira diferente de
vida em comunidade, distinto de um sistema de competição, que sugeria esforços
153
conjuntos para a melhor subsistência do grupo. Riverdogs busca reconstituir a experiência
de uma destas viagens. Sua narrativa é construída sobretudo a partir da observação de
eventos do dia-a-dia da vida no rio, desde atividades de deslocamento na água ou
alpinismo das montanhas, momentos de alimentação do grupo e, principalmente, os
momentos de reunião e tomada de decisões em que os integrantes discutiam acerca dos
próximos passos da viagem. Em Riverdogs, não existe um desenvolvimento temático que
aponte explicitamente para aspectos da vida individual de Robb Moss, como a
visibilidade de um cotidiano doméstico ou algum conflito familiar. No mesmo sentido da
citação anterior, Moss aponta, entretanto, que a relação entre si próprio e os integrantes
do grupo ao qual também pertencia fazia com que o filme não pudesse ser realizado por
outra pessoa. O diretor reflete acerca da possibilidade do cinema direto, neste novo
momento, de traduzir a particularidade da relação entre o cineasta e elementos do mundo
material (o mundo das superfícies):
Cinema é essencialmente a respeito do mundo visível, do mundo das
superfícies. No ato de filmar, descreve-se como as coisas se parecem
por fora. Todos nós entendemos o sentido do mundo visível de maneiras
conectadas com nossa própria experiência. (...)
O mundo visível tem enormes poderes associativos para nós; estamos
todo o tempo investindo no mundo com sentimento e com memória.
Fazendo isto, transformamos nossa experiência do universo físico em
um lugar que parece se relacionar a nós enquanto seres humanos. Tente
descrever alguém que você conhece bem. Minha sensação é a de que as
pessoas se parecem menos com suas descrições físicas do que com
nosso relacionamento com elas. Quando vejo meu irmão, não vejo
determinado formato de rosto ou cor de cabelo, vejo meu “irmão”. O
fato de conseguirmos obter qualquer emoção ou significado deste show
de luzes oscilantes bidimensionais chamado cinema simplesmente
reflete nossas tentativas neste tipo de construção-de-sentido em um
contexto mais amplo de nossas vidas. (...)
Acho que quando alguém é forçado a tentar fazer sentido, com a
câmera, a partir dos eventos que o cercam, são exatamente estes atos de
descoberta, de “olhar”, como Ricky (Leacock) os chama, que são
reveladores e centrais para o sucesso e para a vitalidade do Cinema-
Vérité. Talvez eu esteja afirmando isto muito vigorosamente. Por
exemplo, eu ficaria muito interessado se Little Edie tivesse filmado
Grey Gardens. Pode-se assumir que o filme dela seria um tanto maluco
e pessoal. Se Edie poderia ou não ter traduzido sua relação com o
mundo fenomenal para a tela (sua relação com os objetos de seu
passado), é uma questão problemática, precisamente por causa de sua
proximidade com tudo. Os Maysles podiam ver Grey Gardens talvez
de uma maneira mais próxima do que Little Edie, ou ao menos mais do
jeito que “nós” poderíamos experienciar seu mundo. Edie teria filmado
seus gatos favoritos, enquanto os Maysles apenas filmaram os gatos.
154
No filme do rio (Riverdogs), a questão de se eu poderia transformar o
que é essencialmente um assunto pessoal em um filme não-pessoal (no
sentido descrito) é uma das problemáticas centrais do filme. (MOSS,
1979, p. 17-20. Tradução nossa.)
Figura 16: O grupo de Robb Moss acampando à beira do rio em Riverdogs (1982)
Os personagens apresentados em Riverdogs serão reexpostos mais de vinte anos
depois no longa-metragem The Same River Twice, provavelmente o filme mais conhecido
de Moss. Neste, o cineasta vai ao encontro de algumas das pessoas que fizeram parte da
expedição, buscando tematizar a maneira através da qual o tempo transformou ou
preservou valores que os levaram, num primeiro momento, às viagens pelo rio. Não tão
surpreendentemente, a maioria dos personagens não passou a viver integralmente um
estilo de vida comunal ou hippie, mas constituíram família e trabalhavam em empregos
“normais”. Entretanto, o espírito progressista e atento à coletividade rege a vida
profissional de diversos dos personagens, de maneiras diferentes. Dois dos personagens,
Barry e Cathy, enveredaram-se pela carreira política, tendo cargo de prefeito das cidades
onde moravam no período em que foram filmados por Moss, em cidades dos estados da
Califórnia e de Oregon, respectivamente. O fluxo do “rio da vida”, entretanto, se
relacionado à ideia de progresso e/ou transformação, apresenta-se diferentemente na vida
155
de cada personagem. Um deles, Jim, é mostrado como um dos mais enfáticos líderes do
grupo em Riverdogs. Vinte anos depois, em The Same River Twice, vemos que o
personagem continua dedicado à vida de guia de rio (river guide), apresentando uma
relação sensivelmente mais estreita com a natureza e com a abstenção material do que os
colegas. Em The Same River Twice, as filmagens que Moss realizou décadas antes para
Riverdogs são o ponto de amparo para a lembrança e reavaliação de um momento
particular da vida dos personagens (e do cineasta) carregado de juventude, bem como da
reflexão acerca da passagem do tempo, do envelhecimento e da mortalidade.
Figura 17: O personagem Jim Tichenor, na ocasião de Riverdogs (Robb Moss, 1982) e em The Same
River Twice (Robb Moss, 2002)
Se em Riverdogs Moss apresenta-se como um “observador autobiógrafo”,
utilizando-nos da expressão de Jim Lane, em The Same River Twice há uma ênfase maior
em sua interação com os amigos de longa data, bem como uma exploração maior de suas
personalidades por meio da fala e da entrevista, que aparece mais recuada no filme
original. Moss não apresenta um panorama biográfico de sua vida “atual” no momento
do registro, como faz em relação aos seus colegas de juventude. Entretanto, como Scott
MacDonald aponta, a interação de Moss com os personagens em diversas sequencias de
The Same River Twice revelam a mistura “de amizade, afeição, nostalgia,
desapontamento, frustração, importunação, respeito e autoconsciência que continua a
caracterizar seus relacionamentos, assim como a intimidade que continua a existir para
com ele (o cineasta)” (MACDONALD, 2013, p. 256. Tradução nossa). O terceiro capítulo
156
da trilogia iniciada com Riverdogs e continuada em The Same River Twice consta como
o projeto atual no qual Robb Moss está trabalhando28.
2.5. Pós-MIT Film Section: Harvard e o departamento VES
Além do MIT, outro polo da produção dos documentários de Cambridge
concentrou-se na universidade Harvard. Tanto os estudos quanto a produção
cinematográfica em Harvard são atualmente representados pelo departamento Visual and
Environmental Studies (VES). Diversos cineastas-autobiógrafos que passaram pelo MIT
Film Section continuaram a carreira como docentes na universidade vizinha. Ed Pincus
lecionou em Harvard de 1981 a 1983, após sua saída do departamento. Ross McElwee é
docente desde 1986 na instituição, portando o título de “Professor de Prática
cinematográfica”. Robb Moss também inicia o trabalho de docente em 1986 e atualmente
detém o posto de decano do departamento. Alfred Guzzetti é outro cineasta que pode ser
visto sob esta ótica e que leciona no VES, porém, diferentemente de Moss e McElwee, o
cineasta começa a dar aulas da universidade ainda em 1968. A partir da produção
cinematográfica e da docência de Pincus, McElwee, Moss e Guzzetti, a autobiografia
continua sendo um elemento do horizonte artístico de Cambridge. Cineastas como Marco
Williams, Jim Lane e Nina Davenport são exemplos de alunos do departamento VES que
desenvolveram documentários autobiográficos a partir do contato com um ou mais dos
professores que passaram pelo MIT Film Section.
As atividades do departamento VES também concetram trabalhos na área das artes
visuais, instalações, fotografia still e cinema de animação. No caso do cinema live-action,
é possível dizer que o departamento mantém uma relação estrita (porém não exclusiva)
com a pesquisa e a produção – discente e docente – no campo do cinema de não-ficção,
não apenas no que concerne o documentário autobiográfico. Um exemplo atual é o
trabalho do Sensory Ethnography Lab (SEL), que é sediado no departamento VES e
28 Esta informação está disponível na página de Moss no website do departamento VES-Harvard. Após
The Same River Twice, Moss realizou documentários em conjunto com Peter Galison, cientista e professor da universidade de Harvard. Secrecy (2008), tematiza a confidencialidade de assuntos internos do governo estadunidense, e Containment (2015) coloca em perspectiva questões acerca da produção de energia nuclear.
157
engaja tanto corpo docente quanto alunos em seus projetos. Liderado pelo
professor/cineasta Lucien Castaing-Taylor (Leviathan [2012], Sweetgrass [2005]) o
trabalho do Sensory Ethnography Lab é destaque da produção de não-ficção
contemporânea, tendo obtido espaço tanto no circuito de mostras e festivais quanto em
análises acadêmicas. Nos últimos anos, outros documentaristas que obtiveram certa
projeção referiram-se publicamente à educação cinematográfica que tiveram no
departamento VES. É o caso, por exemplo, de Joshua Oppenheimer, formado em 1997.
Oppenheimer é diretor de The Act of Killing (2012) e, mais recentemente, de The Look of
Silence (2015). The Act of Killing concorreu na categoria de Melhor Documentário da
edição de 2013 do prêmio Oscar juntamente com outros dois filmes dirigidos por diretores
advindos de Harvard: The Square, de Jehane Noujaim, sobre a crise política e social
egípcia, e Dirty Wars, de Richard Rowley, sobre abusos cometidos pelas forças militares
dos EUA durante a “Guerra ao Terror”, em países como Afeganistão e Iêmen. Os
diretores referiram-se positivamente (SUTHERLAND, 2014) à educação
cinematográfica não-ortodoxa recebida em Harvard como determinante para a visão
artística dos filmes. Para além dos cineastas que compõem o corpo docente atual do
departamento VES (Ross McElwee, Robb Moss, Alfred Guzzetti, Lucien Castaing-
Taylor), outros realizadores significativos na história do cinema documentário passaram
pelo departamento, seja por períodos mais prolongados ou como professores visitantes.
É o caso de Robert Gardner, Chantal Akerman, David MacDougall, Ed Pincus, Dušan
Makavejev, Raoul Ruiz e Jean Rouch.
A inclinação do departamento VES para o ensino do cinema documentário em sua
teoria e prática também influenciou a obra de ex-alunos conhecidos pela realização de
filmes ficcionais, como é o caso de Andrew Bujalski. Bujalski (Funny Ha Ha [2002],
Mutual Appreciation [2005]) é um dos diretores relacionados ao gênero mumblecore
(junto a cineastas como Joe Swanberg e os irmãos Mark e Jay Duplass), que foi
desenvolvido a partir dos anos 2000, sobretudo nos EUA. O cineasta constata que a
“educação em cinema documentário” que recebeu no VES moldou sua filosofia e sua
metodologia como realizador (HODDER, 2005). Os filmes mumblecore são feitos a partir
de uma ótica ultra-independente, orçamentos baixos, equipes mínimas e uma visão de
“faça-você-mesmo” que se desdobra nas produções. As narrativas são marcadas por uma
investida naturalista, por cenas que se alicerçam em longos diálogos com tons de
improviso, pela filmagem em locações (tanto internas quanto externas, em um
158
engajamento com o mundo “real”) e por uma temática que frequentemente gira em torno
de conflitos sociais, amorosos e existenciais de jovens adultos. Bujalski realizou seu filme
de conclusão de curso no VES sob a orientação de Chantal Akerman no período em que
a cineasta passou como professora visitante do departamento.
Ainda em 2005, Ross McElwee fala a respeito das produções de alunos e
professores do departamento VES. O cineasta/docente relata que antes de um
direcionamento específico em relação à exploração autobiográfica ou antropológica, o
departamento “encoraja os estudantes a ver o que há de complexo e interessante sobre a
vida cotidiana, e isto remonta ao legado do cinema-vérité” (HODDER, 2005). Sendo
assim, é possível dizer que a produção atual do departamento VES relaciona-se com a
tradição da região de Boston e Cambridge no que concerne sua aproximação com o
cinema direto e seus desdobramentos como pano de fundo conceitual – algo que, como
colocamos, se originou ainda com a produção de Drew e passou pela experiência do MIT
Film Section. McElwee explica que os filmes dos alunos do departamento
...refletem uma paciência em observar o mundo, ao invés de tentar
controla-lo e configurá-lo de maneira que ele transmita sua mensagem.
(...) É cada vez mais difícil aderir a este desejo de apresentar o mundo
mais ou menos calmamente e em sua complexidade, sem
sensacionalizá-lo. Se há uma quase-filosofia operante vinda do
departamento, é a de que existem outras maneiras de interagir com o
mundo, e de que um tipo diferente de filme pode ser alcançado. [Graças
ao legado de Gardner e o sucesso de Alfred Guzzetti em proteger e
construir o programa de Cinema de Harvard], estas formas de fazer
cinema foram mais do que estimuladas, elas prosperaram aqui, e nossos
estudantes saíram e realmente constituíram marcos nestas áreas.
(HODDER, 2005. O grifo é do autor. Tradução nossa.)
Diferente do viés predominantemente prático do MIT Film Section, entretanto, o
cinema que foi desenvolvido em Harvard passou, historicamente, pelo diálogo mais
amplo com o campo das humanidades e da arte, a partir de um viés teórico também
enfatizado. Em entrevista de 2005, a autora Giuliana Bruno29, professora do
departamento, ressalta o trabalho no Carpenter Center como o desenvolvimento de uma
tradição de Harvard em pensar o cinema a partir da filosofia (HODDER, 2005). Como
29 O foco do trabalho de pesquisa de Giuliana Bruno concentra-se na intersecção entre cinema, artes visuais e arquitetura. Uma de suas publicações mais conhecidas é “Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film” (BRUNO, 2002).
159
exemplo desta relação, é possível mencionar o caso de autores como o filósofo alemão
Hugo Münsterberg, admitido como docente em Harvard em 1892 a convite de William
James. Münsterberg é autor de “The Photoplay: A Psychological Study”, publicado em
1916, considerado um dos primeiros tratados de estudos de cinema. Outro caso é o de
Rudolf Arnheim, teórico da arte e do cinema, que foi contratado como professor de
Psicologia da Arte em 1968, e permaneceu no Carpenter Center até 1974. Já Scott
MacDonald, como frisado, lança a hipótese de que o cinema da região poderia advir da
noção de experiência do pragmatismo, escola filosófica desenvolvida por Charles S.
Peirce e William James, que foi professor de Harvard e também criador do campo da
psicologia experimental (MACDONALD, 2013. p. 7-8).
O fomento do debate crítico propiciado pelo ambiente universitário fez com que
diversos dos cineastas da produção de Cambridge também dispusessem de ideias fortes
sobre Cinema e as exprimissem em textos, como é o caso dos escritos de Robert Gardner
e Ed Pincus. Além disso, é notável o fato de que existia, e existe, um intercâmbio entre
teoria e prática que alimenta tanto os escritos de autores da região quanto seus cineastas.
Pode-se dizer que a obra de maior impacto teórico sobre os cineastas da região de
Cambridge que lidaram com desdobramentos do documentário moderno foi a de Stanley
Cavell, filósofo estadunidense que se juntou ao corpo docente de Harvard em 1963,
permanecendo na instituição até 1997. Ao longo das décadas, Cavell contribuiu de
diversas maneiras para o desenvolvimento do campo dos estudos fílmicos da
universidade, como na fundação do Harvard Film Archive (arquivo fílmico e cinemateca
de Harvard) em 1979, em conjunto com Robert Gardner. Cavell especialmente a partir
das ideias de “The World Viewed: Reflections on the Ontology of film”, é um nome ao
qual cineastas e teóricos da região de Cambridge frequentemente se referenciam em seus
textos como inspiração filosófica, desde a década de 1970 até períodos mais recentes30.
30 Em “New possibilities for film and the university” (PINCUS, 1977), Ed Pincus evoca as ideias de Cavell em sua exposição acerca do trabalho que estava sendo realizado no MIT Film Section, ressaltando as inovações técnicas desenvolvidas no departamento e apontando para a produção, principalmente no que diz respeito à recente experimentação com narrativas autobiográficas, como o “próximo passo” do cinema direto norte-americano. Nos dois principais textos em que Ross McElwee escreve a respeito de sua própria obra (McELWEE, 2005 e 1999), o diretor evoca trechos de The World Viewed, citando-o como inspiração motivacional para a visão artística de seus primeiros filmes. Segundo o autor Charles Warren (WARREN, 2014), McElwee assistiu às palestras de Stanley Cavell em Harvard na primeira metade dos anos 1980. No momento, McElwee ocupava-se do processo de montagem de Sherman’s March e iniciava sua carreira docente na Universidade, ainda na função de monitor de docência (Teaching Assistant).
160
William Rothman é outro caso de autor que apresenta uma relação estrita com a
produção cinematográfica de Cambridge. Rothman doutorou-se em filosofia pela
universidade Harvard, lecionou na instituição, dedicou parte de seus escritos à análise da
obra de Stanley Cavell e The World Viewed (ROTHMAN e KEANE, 200031), e também
contemplou diversos dos cineastas advindos do ambiente universitário de Cambridge em
suas análises32. Segundo Jim Lane33, foi durante as sessões de um curso de cinema
documentário lecionado por William Rothman em 1981 na universidade que ocorreu a
primeira exibição pública de Diaries (1971 - 1976), de Ed Pincus. Lane, autor de “The
Autobiographical Documentary in America” (LANE, 2002), também faz parte da história
da produção cinematográfica – tanto teórica quanto prática – de Cambridge. O autor
graduou-se pela universidade Harvard e trabalhou como teaching assistant de Jean Rouch
entre 1981 e 1983, no mesmo período em que Ed Pincus lecionou na instituição, após
deixar o MIT Film Section. Lane trabalhou na distribuição de Diaries (1971 - 1976), logo
após seu lançamento, em 1981 e publicou em 1997 um dos primeiros artigos que busca
enxergar a obra de Pincus em sua extensão (LANE, 1997).
31 Em “Reading Cavell's The World Viewed: A Philosophical Perspective on Film” (ROTHMAN e KEANE, 2000), os autores propõem uma leitura da obra de Stanley Cavell. The World Viewed é analisado em sua totalidade, capítulo por capítulo. Entendendo The World Viewed como uma obra subexplorada da teoria do cinema, Rothman e Keane buscam meditar mais demoradamente por frases e conceitos da obra de Cavell que julgam pouco explorados. É interessante mencionar, também, o trabalho de David N. Rodowick em relação à obra de Stanley Cavell. Rodowick lecionou no departamento VES na década de 2000. Em “The Virtual Life of Film” (RODOWICK, 2007), Rodowick realiza uma longa análise dos escritos de Cavell, com foco em The World Viewed. Frente ao processo de digitalização do aparato de feitura cinematográfica e dos novos questionamentos em relação à era pós-celulóide, Rodowick evoca as ideias de Cavell (bem como as de André Bazin, Noël Carroll e Roland Barthes) primeiro para uma análise da ontologia da imagem fotográfica e cinematográfica analógica, e, posteriormente, para uma meditação acerca do que permaneceu (e o que se transformou) da relação entre filme e mundo na virada para o digital.
32 É o caso da reflexão do autor acerca de Family Portrait Sittings, longa-metragem da primeira geração de documentários autobiográficos de Cambridge, dirigido por Alfred Guzzetti e lançado em 1975 e que integra a obra “The I of the Camera” (ROTHMAN, 1988). Rothman também cita a produção autobiográfica de Cambridge na introdução de “Documentary Film Classics” (ROTHMAN, 1997). Posteriormente, Rothman organiza a publicação “Three Documentary Filmmakers: Errol Morris, Ross McElwee, Jean Rouch” (ROTHMAN, 2009), que reúne textos de autores como Charles Warren e Jim Lane sobre a obra dos três documentaristas. 33 Em troca de e-mails realizada para esta pesquisa, em janeiro de 2016.
161
2.6. Documentário moderno e antropologia em Harvard: de Robert Gardner ao
Sensory Ethnography Lab
Robert Gardner, cineasta e antropólogo, é uma das figuras principais ao redor da
qual aglutinou-se a produção fílmica de Harvard. Gardner funda em 1957 o Film Study
Center (FSC), primeira unidade de produção e de pesquisa cinematográficos da
universidade, vinculado ao museu de antropologia de Harvard, o Peabody Museum.
Gardner permanece à frente do FSC até 1997, tendo realizado diversos filmes de sua
carreira no período, dentre os quais Dead Birds (1965) e Forest of Bliss (1985). Já o
cineasta John Marshall realiza The Hunters ainda em 1957, um dos muitos filmes que fez
na Namíbia. The Hunters, assim como grande parte de seus filmes, foi filmado após
sucessivas viagens realizadas ao país, financiadas pelo Peabody Museum. O trabalho de
pós-produção de The Hunters foi realizado em conjunto com Robert Gardner. Assim
como Gardner, Marshall influiu na carreira dos jovens cineastas da região, como o próprio
Ross McElwee e Ed Pincus. Neste mesmo sentido, outro cineasta que merece destaque é
Timothy Asch, que trabalhou no Peabody Museum e auxiliou Marshall em muitos de seus
filmes (MACDONALD, 2013, p. 5). Posteriormente, Asch colaborou com o antropólogo
Napoleon Chagnon34. Juntos, a dupla realizou filmes como The Ax Fight (1975),
finalizada em Cambridge, em um momento em que Asch também já era professor em
Harvard. Neste sentido, portanto, é possível dizer que a produção audiovisual de
Cambridge, na forma de cineastas como Robert Gardner, John Marshall e Timothy Asch,
apresenta influência marcante no debate acerca do desenvolvimento da relação entre
antropologia e cinema documentário. Se as possibilidades narrativas do cinema
documentário autobiográfico continuam sendo um fenômeno destacável na produção
acadêmica de Cambridge, o mesmo é possível dizer em relação à ótica da antropologia.
Trataremos brevemente desta produção como maneira de mostrar outra faceta histórica
do cinema da região.
O Film Study Center fomenta, até a atualidade, produções de alunos e professores
de Harvard, com ênfase especial em produções que “explorem e expandam o potencial
expressivo da mídia audiovisual, especialmente através da não-ficção”, segundo consta
34 Chagnon, que desenvolveu trabalho de muitos anos com os índios Ianomâmi, foi questionado a respeito
de seus métodos de pesquisa e acusado de provocar uma epidemia de sarampo entre os índios. O cineasta
José Padilha explora essa polêmica em seu documentário Secrets of the Tribe (2010).
162
no site oficial do órgão35. Para além dos filmes citados e de outros filmes de Marshall e
Gardner, o FSC financiou a produção e/ou finalização de diversos filmes da carreira de
Ross McElwee, como Something to do With the Wall, Time Indefinite, Six O’Clock News
e Bright Leaves; The Same River Twice (2003), dirigido por Robb Moss, e também
Sweetgrass, de Ilisa Barbash e Lucien Castaing-Taylor, atual diretor do FSC. Em
entrevista de 2005, Gardner conta que o Film Study Center foi criado em 1957 como uma
unidade de pesquisa que usaria o cinema como maneira de questionar e explicar o mundo,
constatando que “a ideia era fazer filmes que fossem o mais significativos e penetrantes
o possível a respeito da condição humana. (...) Meu grande desejo era aplicar meios e
métodos visuais – uma linguagem visual – para a expressão de ideias que pudessem ser
adquiridas pela observação das pessoas” (HODDER, 2005).
Gardner acompanhou de perto a carreira de cineastas que faziam parte da pletora
de possibilidades abertas pelas transformações tecnológicas e epistemológicas do
documentário moderno estadunidense. De 1972 a 1981, Gardner protagonizou o
programa Screening Room, no Channel 5, emissora de TV aberta da região de Boston. A
cada episódio do programa de entrevistas, Gardner recebia como convidado um cineasta
independente – frequentemente da própria região de Cambridge ou
pesquisadores/cineastas de passagem pelo local. Screening Room buscava dar visibilidade
à produção do cineasta convidado, conversando sobre trabalhos em andamento e
veiculando trechos (ou filmes inteiros) de produções finalizadas. Mesmo transmitido no
horário da meia-noite, a audiência de Screening Room girava em torno de duzentos e
cinquenta mil espectadores, grande parcela dos quais composta por estudantes das
universidades da região de Boston (MACDONALD, 2013. P. 87). Em sua análise, Scott
MacDonald ressalta a veiculação em TV aberta (e para um público numerosamente
significativo) de filmes como Window Water Baby Moving ou Les Mâitres Fous, nos
programas em que Gardner recebeu Stan Brakhage e Jean Rouch, respectivamente.
Para além destes, o programa recebeu artistas e cineastas ligados ao campo do
cinema experimental avant-garde norte-americano (Bruce Ballie, James Broughton,
Hollis Frampton, Jonas Mekas, Yvonne Rainer e Michael Snow), do cinema
documentário (Richard Leacock, Ed Pincus, Les Blank, Emile de Antonio, Robert Fulton,
Peter Hutton) e do cinema de animação (Robert Breer, George Griffin, John & Faith
35 Em http://www.filmstudycenter.org/about.html, acessado em 18/04/17.
163
Hubley, Derek Lamb, Jan Lenica, John Whitney Sr). Em alguns dos programas, os
cineastas eram acompanhados por teóricos ou professores das universidades da região
para o debate, como é o caso de Stanley Cavell (com Standish Lawder) ou Rudolph
Arnheim (com Robert Fulton). As conversas de Gardner com seus convidados também
giravam em torno do estado da arte cinematográfica, novas perspectivas, horizontes e
dificuldades enxergues pelos cineastas naquele dado momento. Outro aspecto
particularmente interessante em Screening Room era o incentivo de que os cineastas
exibissem detalhes técnicos de suas produções. Como exemplo, no episódio de Richard
Leacock, em junho de 1973, o cineasta apresenta o equipamento de captação de imagem
e som direto sincrônico adaptado para câmeras de Super-8mm que estava sendo
desenvolvido pela equipe técnica do MIT Film Section e que fez parte de diversos
documentários autobiográficos produzidos pelos alunos do departamento.
Figura 18: Leacock e técnicos do MIT Film Section demonstram o Sistema sync-sound a Robert
Gardner no programa Screening Room
Scott MacDonald faz um apontamento interessante ao sugerir a relação entre
Screening Room e Forest of Bliss, primeiro filme terminado por Robert Gardner após a
experiência do programa (MACDONALD, 2013, p. 89). Os comentários de MacDonald
sugerem o contato de Gardner, a partir do programa, com cineastas de visões artísticas
bastante diferentes das suas, mas sempre com uma inclinação a um cinema de não-ficção
independente autoral. MacDonald aponta que a experiência de Gardner em Screening
164
Room teria servido como uma espécie de educação cinematográfica, em que o cineasta
aprendera com os convidados as “maneiras próprias de fazer as coisas e filmes que
queriam, sem que importasse o que outros pudessem achar destes filmes e como estas
novas formas cinemáticas poderiam conflitar-se com expectativas tradicionais”
(MACDONALD, 2013, p. 89. Tradução nossa.). Forest of Bliss é a narrativa poética de
Gardner que emula o curso de um dia em Varanasi, a cidade mais sagrada da Índia. Como
mencionado no primeiro capítulo deste estudo, o filme coloca em reavaliação cânones do
campo da etnologia fílmica, sendo também reconhecido como marco do cinema
documentário da década de 198036. A influência de Gardner é relatada por cineastas-
professores do departamento, muitos deles cujas obras não estão inseridas diretamente no
diálogo com a etnologia fílmica. Alguns dos filmes posteriores de Gardner inclusive
passam pelo emprego de uma noção de interação/autorreflexividade mais aguçada, como
é o caso de Ika Hands (1988), sobre a população indígena Ika (ou, Arhuaco) do norte da
Colômbia37.
Ainda que os filmes de Gardner, como frisado, tenham valores narrativos e
cinematográficos que fazem com que sua autoria como cineasta não se restrinja apenas
ao campo de estudo da etnologia fílmica, a maior parte de suas obras preocupa-se em
trabalhar narrativamente com povos autóctones de regiões distintas e de costumes
diversos do ambiente universitário de Cambridge, em países como a Namíbia, Colômbia,
Índia, Nova Guiné, Etiópia e outros. A tradição de Cambridge de pensar a antropologia
paralelamente aos novos desenvolvimentos e questionamentos da arte cinematográfica
em dado momento – melhor simbolizada pela figura de Gardner, mas também relativa a
nomes como John Marshall e Timothy Asch – encontra recorrência no trabalho atual que
acontece no departamento VES, como na atividade do Sensory Ethnography Lab (SEL).
O Sensory Ethnography Lab (SEL) teve início propriamente em 2006 e tem como
uma de suas principais figuras seu fundador, o antropólogo e cineasta Lucien Castaing-
36 Forest of Bliss integra, neste contexo, a análise de Bill Nichols em “The Ethnographer’s Tale”, capítulo que integra “Blurred Boundaries”, publicado em 1994 (NICHOLS, 1994, p. 63-91). 37 No filme, Gardner incorpora à narrativa um diálogo seu com o antropólogo Gerardo Reichel-Dolmatoff
sobre o significado da empreitada, tanto para a preservação da cultura em questão quanto para sua carreira enquanto cineasta.
165
Taylor38. Castaing-Taylor é docente do departamento VES desde 2002. Sua produção
acadêmica consiste na organização de livros sobre cineastas como David MacDougall
(MACDOUGALL, 1998) e o próprio Robert Gardner (BARBASH e TAYLOR, 2007).
Castaing-Taylor realizou trabalhos cinematográficos ainda no início da década de 1990
(In and Out of Africa, 1992), porém foram filmes como Sweetgrass (2009, co-dirigido
com Ilisa Barbash) e Leviathan (2012, co-dirigido com Verena Paravel) que mostraram
mais decididamente a proposta do SEL.
Sweetgrass tematiza o trabalho moderno do pastoreio de ovelhas, tendo sido
filmado no estado americano de Montana. Leviathan busca reproduzir a experiência da
indústria da pesca em alto-mar, e foi filmado em um golfo na costa do estado do Maine.
Ambos os filmes, entretanto, furtam-se de prover informações analíticas em relação aos
seus objetos temáticos. As localidades onde foram rodados os filmes, como da maneira
que relatamos aqui, são informações extrafílmicas. Tampouco sabemos detalhes, por
exemplo, a respeito da jornada de trabalho das pessoas filmadas ou a maneira como
organizam-se enquanto grupo – informações que seriam integradas a uma narrativa mais
tradicionalmente enquadrada nos moldes da antropologia fílmica. Diferentemente, a
produção do Sensory Ethnography Lab busca emular ao espectador uma experiência
análoga à vivenciada pelos personagens/objetos bem como pelos cineastas no momento
da empreitada. Mais uma vez, é interessante notar como os cineastas ligados à produção
de Cambridge parecem fazer da transposição de “experiência vivida” em filme um
aspecto artístico. Em depoimento sobre seu trabalho, Castaing-Taylor afirma: “nós não
estamos interessados em reduzir a magnitude da experiência vivida a trechos de fala ou a
discutir formulações ou proposições linguísticas que sumarizariam uma cultura, ou a
existência humana, de maneiras que podem ser diminuídas a significados traduzíveis em
linguagem ou em palavras escritas” (CHANG, 2013.Tradução nossa.).
Leviathan é um documentário que parece levar a cabo esta noção. Filmado pela
dupla de cineastas com câmeras GoPro, portáteis e à prova d’água, a narrativa do filme
oferece um efeito de proximidade física, tanto dos objetos quanto dos próprios cineastas,
que aguça uma espectatorialidade mais voltada à fruição sensorial do que a uma
racionalidade analítica. No filme, as pequenas câmeras são acopladas no corpo dos
próprios cineastas, no corpo dos pescadores do navio, colocadas no nível do chão e por
38 Em algumas publicações e filmes da década de 2000 e antes, Castaing-Taylor assinava seus trabalhos como “Lucien Taylor”.
166
dentre o cardume de peixes abatidos, elas são alçadas ao céu com um bastão ou
mergulhadas no oceano. O movimento e o campo de visão em grande angular das câmeras
acabam por gerar uma espécie de relação tátil com os objetos e com os corpos. Sobre isto,
a co-diretora Véréna Paravel relata: “A maneira que capturamos as coisas é com nossos
corpos. Não necessariamente olhamos pelo viewfinder da câmera, mas estamos lá,
tentando experienciar a fricção com o mundo real.” (CHANG, 2013). Em um trecho da
obra “The Corporeal Image: Film, Ethnography and the Senses” (MACDOUGALL,
2006), o autor, cineasta e antropólogo David MacDougall39 fala sobre a relação entre os
corpos dos cineastas e a materialidade do mundo à sua frente no momento da tomada de
maneira análoga à sensação descrita por Paravel. MacDougall resgata a noção cunhada
por Jean Rouch do cine-transe, ao mencionar que para Rouch “filmar (...) é escrever com
os olhos, com os ouvidos, com o corpo” (p. 27). No mesmo sentido, o autor relata o êxtase
do corpo-que-filma (filming body) na concepção de John Marshall “você tem essa
sensação: ‘eu estou conseguindo’, ‘estou captando’, ‘está acontecendo, está
acontecendo’”, e o relato de Robert Gardner desta mesma sensação como “o mais perto
que posso chegar de um orgasmo cinemático” (p. 27). Pode-se sustentar que a “fricção”,
segundo Paravel, do corpo dos cineastas com o mundo que filmam – e, subsequentemente,
do “retorno” desta relação à fruição espectatorial – vai ao encontro das ideias de
MacDougall:
O prazer de filmar erode as fronteiras entre cineasta e objeto, entre os
corpos dos cineastas e as imagens que eles fazem. O ato de filmar é
fundamentalmente ávido em “incorporar” os corpos dos outros. A
consciência do cineasta também deve se expandir para acomodar estes
outros corpos, mas ela não pode segurá-los todos; eles devem ser dados
aos outros – ou, ao menos, devolvidos ao mundo. Conseguindo isto, os
corpos do objeto, do cineasta e do espectador tornam-se interconectados
e, de algumas maneiras, indiferenciados. (MACDOUGALL, 2005. p.
27-28. Tradução nossa.)
39 A obra de MacDougall é influência notável no trabalho do SEL. Em 2010, David MacDougall foi professor visitante do departamento VES em Harvard. Antes disto, em 1998, Lucien Castaing-Taylor e Ilisa Barbash já haviam organizado um livro sobre o cineasta.
167
Figura 19: A fricção entre corpos, câmera e mundo em Leviathan (Lucien Castaing-Taylor e
Verena Paravel, 2012)
Para além de suas características imagéticas, a experiência sensória de Leviathan
é completada pela trilha sonora do filme, um sound design arrojado que mistura som
direto e elementos adicionados posteriormente para a criação da paisagem sonora40. Além
do trabalho de Castaing-Taylor, destacam-se também os filmes de cineastas do grupo
como J.P. Sniadecki. Um deles é People’s Park (2012), longa-metragem rodado em um
plano-sequência de setenta e oito minutos em um parque urbano em Chengdu, na China.
Também na China Sniadecki realiza The Iron Ministry (2014), uma jornada por diversos
trens das ferrovias do país, cuja narrativa busca evocar a experiência sensória das viagens,
com a proximidade e a interação do cineasta em trens repletos de passageiros, ambulantes
e os objetos e bagagens que carregam consigo. Como em People’s Park, experienciar a
temporalidade de determinada circunstância, em planos-sequencias, é a matéria-prima de
Manakamana (2013), dirigido por Stephanie Spray e Pacho Vélez41. O documentário é
composto de nove planos-sequências filmados dentro de um teleférico em uma montanha
nepalesa. Acompanhamos, em enquadramento frontal, a viagem integral de grupos
40 Tanto em Leviathan quanto no anterior Sweetgrass este trabalho sonoro é realizado pelo engenheiro de som Ernst Karel, que atualmente também gerencia o trabalho do Sensory Ethnography Lab e de seus alunos/cineastas. 41 Pacho Vélez também é creditado como assistente de produção de Bright Leaves, finalizado por Ross McElwee em 2004.
168
heterogêneos de pessoas (e, em um dos casos, apenas alguns bodes). Enquanto os
integrantes de alguns dos grupos interagem entre si, outros permanecem em silêncio,
alguns contemplam a vista das montanhas e outros olham fixamente para frente. Como
em outros filmes do SEL, a proximidade com os corpos e a relação destes com o mundo
ao redor em dada circunstância espaço-temporal é matéria-prima para sua construção
narrativa. Auditivamente, para além das falas (e silêncios) dos corpos, dos sons do
teleférico em movimento, pode-se escutar também o ruído da câmera em seu
funcionamento, enfatizando sua presença e sublinhando a unicidade da experiência
captada pelo aparato e transformada em narrativa. Manakamana foi filmado com a mesma
câmera 16mm que Robert Gardner levou para a Índia para a captação de Forest of Bliss
na década de 1980 – outro elemento que de alguma forma revela a ligação umbilical do
trabalho do SEL com o pensamento cinematográfico-antropológico de Harvard,
principalmente a partir da figura de Robert Gardner.
Figura 20: Manakamana (Pacho Vélez e Stephanie Spray, 2013)
169
2.7. A produção autobiográfica no contexto de Harvard
A partir do início da década de 1980, o desenvolvimento de documentários
autobiográficos no âmbito de Cambridge e de suas universidades passa a concentrar-se
nas atividades do departamento VES. Cineastas como Ross McElwee e Robb Moss
continuam a desenvolver filmes que se enquadram neste universo quando passam a
lecionar na universidade. Alguns dos principais cineastas e filmes desta produção serão
destacados.
a) Alfred Guzzetti
Para além de Moss e McElwee, um caso que deve ser mencionado é o de Alfred
Guzzetti. Em entrevista para esta pesquisa, McElwee menciona Guzzetti, também
professor do departamento VES, como pertencente à “primeira geração” dos cineastas-
autobiógrafos de Cambridge, juntamente a Ed Pincus. De fato, Guzzetti filma o longa-
metragem autobiográfico Family Portrait Sittings concomitantemente ao trabalho de
Pincus em Diaries, ainda entre 1972 e 1975 – ano do lançamento do filme. O foco
autobiográfico da carreira do diretor desdobra-se, ainda, em três outros documentários:
Scenes from Childhood (1979), Beginning Pieces (1984) e Time Exposure (2012). Em
quatro décadas de carreira, o cineasta trabalhou também em diversos outros campos do
cinema de não-ficção. Um de seus primeiros trabalhos, Air (1971), aproximava-se mais
da obra de realizadores pertencentes ao cinema experimental avant-garde estadunidense.
Em parceria com Richard P. Rogers e Susan Meiselas, Guzzetti produziu documentários
de temática histórico-política na Nicarágua, como Living at Risk: The Story of a
Nicaraguan Family (1985) e Pictures from a Revolution (1991). A exploração
experimental de vídeo e tecnologias portáteis ocupou parcela significativa do trabalho do
diretor a partir da década de 1990, em vídeos como Rosetta Stone (1993), What Actually
Happened (1996), The Tower of Industrial Life (2000), Still Point (2009) e outros.
Family Portrait Sittings apresenta-se como um contraponto interessante à
abordagem autobiográfica do trabalho de Ed Pincus em Diaries. Ambos os filmes,
entretanto, aproximavam-se em suas metodologias ao incorporar o uso do sync-sound
como elemento narrativo indispensável – ainda que de maneiras distintas em suas
170
ambições narrativas. Este é o principal elemento que aproxima o trabalho de Guzzetti em
Family Portrait Sittings do documentário autobiográfico que estava sendo desenvolvido
no MIT Film Section e de sua relação com os desdobramentos com o cinema direto. Ainda
que Guzzetti fosse afiliado a Harvard, lecionando na instituição desde 1968, o cineasta
aponta que se sentia muito distante do que o Carpenter Center desenvolvia
cinematograficamente naquele momento (MACDONALD, 2014, p. 111). À parte sua
admiração por Robert Gardner em filmes como Dead Birds (1964) e Rivers of Sand
(1974), Guzzetti via estas produções como “estranhas” (other), em uma “categoria
separada de filmes, sobre sociedades distantes da minha própria” (MACDONALD, 2014,
p.111). Afastando-se, portanto, da ambição antropológica de Harvard, o diretor sentia-se,
segundo o próprio, “mais confortável” (MACDONALD, 2014, p.111) com a produção
desenvolvida no MIT Film Section.
É possível dizer que o realizador e a visão artística de Family Portrait Sittings,
entretanto, apresentavam mais flexibilidade em relação ao rigor metodológico que regeu
a empreitada autobiográfica de Ed Pincus em Diaries. O cineasta aponta que Pincus
“estava comprometido com um tipo muito puro de Cinema-Vérité”, e enxergava Diaries
como uma exploração deste ponto de vista purista (MACDONALD, 2014, p. 116-117).
O filme de Guzzetti mostra-se mais disposto a trabalhar uma multiplicidade de elementos
narrativos se em comparação ao filme de Pincus que, no limite, buscava colocar à prova
as possibilidades de autobiografia em relação ao “novo” cenário do cinema direto sob a
ótica das inovações tecnológicas do período. Se Diaries concentrava-se em uma
experiência de narratividade temporal no sentido da representação da vida cotidiana do
diretor, a partir de uma exploração dos laços familiares e afetivos e os consequentes
desdobramentos durante cinco anos de filmagem, o filme de Guzzetti aborda a questão
autobiográfica a partir da memória familiar, estabelecendo uma relação com a vida
individual do diretor no momento da filmagem com a história de sua família, a partir de
depoimentos de pais, tios e tios-avós. Ao longo de Family Portrait Sittings, o cineasta
serve-se narrativamente da exploração de fotografias still da família, de imagens de
cobertura, som dessincronizado, trechos do arquivo de home-movies, imagens
panorâmicas, entre outras ferramentas.
O longa-metragem cobre diversos aspectos da história familiar do cineasta e
divide-se em três partes. Na primeira delas, o realizador dedica-se à tematização da
imigração da família materna e paterna da Itália para os Estados Unidos, até o ponto
171
cronológico do casamento de seus pais. A segunda parte concerne o período da infância
de Alfred Guzzetti e sua irmã, na perspectiva de seus pais, e a terceira parte conecta a
história familiar com aspectos sociais, históricos e políticos. Nos primeiros vinte minutos
de filme, escutamos as vozes em off de diversos parentes do diretor relatando a história
da família sobre imagens da cidade de onde vieram, Abruzzo, e algumas tomadas da
Philapelphia, onde se instalarão posteriormente. Apenas após este grande “prólogo” que
algumas das vozes tornam-se corporificadas. A maior parte do fio argumentativo de
Family Portrait Sittings concentra-se no depoimento de Felix e Susan Guzetti, pais do
cineasta, como também do tio-avô Domenick, alfaiate de profissão. Através destes
depoimentos, como sumariza William Rothman (1988, p. 307), entramos em contato com
a história familiar do cineasta em temas como a ida dos Verlengias (família materna) e
dos Guzzettis para os EUA; o casamento de seus avós; a morte de Dolores (irmã mais
nova de sua mãe); o casamento de seus pais; o próprio nascimento de Alfred Guzzetti e,
posteriormente, o nascimento de sua irmã, Paula; as nuances das carreiras de seu tio
Domenick (alfaiate), de sua mãe (professora escolar) e de seu pai (negócio carvoeiro,
assistente em um estúdio de fotografia de casamento, serviço na Segunda Guerra
Mundial, vendedor em uma loja de fotografia); a mudança de South Philadelphia para um
cenário suburbano; e o crescimento dos filhos – o cineasta e sua irmã.
O aspecto predominantemente verbal de Family Portrait Sittings serve à aspiração
artística de Guzzetti, ao desejar que o filme abordasse as maneiras através das quais
mitologizamos nossas vidas transformando-as em narrativas – “mesmo que não
escrevamos estas narrativas ou façamos filmes a respeito delas. Family Portrait Sittings
é um estudo sobre as maneiras pelas quais uma família mitologiza a si própria”, sustenta
o diretor (MACDONALD, 2014, p. 118). Para Guzzetti, portanto, o longa-metragem
poderia canalizar diversas das histórias que ouvia a respeito de sua própria família desde
a infância. A utilização de uma metodologia sync-sound acontece, como frisado, de
maneira diferente a um filme como Diaries. Porém, mesmo em uma configuração mais
padronizada de depoimento, o realizador explora longas durações de tomada nas
conversas com seus pais e seus tios, buscando preservar as nuances gestuais e de
construção de discurso que dá forma às anedotas e histórias sobre a família que são
construídas por seus protagonistas diante da câmera. Narrativamente falando, Family
Portrait Sittings não trabalha a temporalidade a partir de uma relação de causa-e-efeito
como faz a cronologia de filmes como Diaries, Sherman’s March, In Search of Our
172
Fathers, entre outros derivados metodologicamente da “escola” Ed Pincus – e que mais
normalmente são relacionados ao documentário autobiográfico de Cambridge. A
cronologia em Family Portrait Sittings acontece como um olhar narrativo para o pretérito
familiar, resgatado como maneira de compreender o presente, sem deixar de apontar para
o futuro do cineasta e de sua vida para “depois” do período da filmagem.
Figura 21: Felix e Susan Guzzetti falam para a câmera do filho, Alfred Guzzetti em Family Portrait
Sittings (1975)
Ao tecer o panorama histórico de uma família enquadrada na working class
imigrante da Philadelphia, Family Portrait Sittings apresenta algumas particularidades
em relação a outros documentários autobiográficos de Cambridge. Em especial, é
possível notar a herança marxista que perpassa o discurso argumentativo da família de
Guzzetti. Um exemplo é o momento em que o tio avô do cineasta fala sobre sua relação
com o ofício de alfaiate e a crítica que realiza à política capitalista de Nixon em
favorecimento do establishment do petróleo. No mesmo sentido, o depoimento do pai de
173
Guzzetti sugere que seu entendimento da relação trabalho/família parece, em alguns
momentos, desviar-se do discurso mais tradicional do american dream. Quando
questionado pelo cineasta em relação à possibilidade de ter aberto um negócio próprio –
o pai era empregado em um estabelecimento fotográfico de terceiros –, sua resposta
consiste na opinião de que o sacrifício do tempo livre e a abdicação de momentos com a
família não recompensaria o enriquecimento material: “nenhum negócio vale este tipo de
sacrifício”, sustenta. Fenômeno semelhante pode ser detectado quando o pai do diretor
declara que embora os filmes do filho “não tenham nenhum valor comercial”, continuava
sendo importante que Guzzetti desenvolvesse atividades que o fizessem feliz e que
dialogassem com sua vocação. Curiosamente, mesmo em uma condição financeira
sensivelmente menos privilegiada do que a família de outros cineastas, Guzzetti é
incentivado a seguir seu caminho no documentarismo independente. Isto será encarado
distintamente na obra de cineastas como Ross McElwee, Miriam Weinstein, Richard P.
Rogers e Nina Davenport. Nestes casos, há um embate entre a aspiração de carreira
artística dos filhos diante da aspiração materna/paterna por um caminho profissional mais
tradicional, em famílias já compostas por médicos, advogados e outros ofícios
consolidados diante da sociedade e diante da possibilidade de recompensa financeira.
A motivação autobiográfica no momento da filmagem de Family Portrait Sittings
consiste na consolidação da família do próprio cineasta, que havia se casado há pouco
tempo e tornado-se pai do primeiro filho, Ben. A continuação desta motivação é
trabalhada no próximo filme de Guzzetti, Scenes from Childhood, lançado em 1979. No
filme, o diretor busca tematizar o universo infantil a partir de uma metodologia desta vez
mais intimamente ligada com o cinema direto clássico, a partir de uma postura
predominantemente recuada em relação às pessoas filmadas. Durante o verão de 1978,
Guzzetti registra diversas situações que envolviam crianças de três a cinco anos e que
faziam parte de seu universo pessoal no momento. As crianças eram filhos de parentes e
amigos próximos e, também entre eles, seu filho, Ben. A proximidade do cineasta com as
crianças filmadas torna-se evidente na maneira em que elas parecem lidar naturalmente
com sua presença e da câmera. O laço afetivo previamente estabelecido diminui a
possibilidade de interferência de si próprio como “corpo estranho”. Desta maneira, o
filme tem sucesso em apresentar situações em que a interação entre as crianças é colocada
em evidência. O “mundo das crianças” transpõe-se à tela, transbordando nuances que
fazem parte deste “jogo”: tentativas de comunicação, persuasão, pequenas demonstrações
174
de poder, a organização de grupos e de lideranças, bem como demonstrações de afeto. O
caráter autobiográfico de Scenes from Childhood é sublinhado sutilmente nas situações
em que o filho do diretor, Ben, participa. A última sequência do filme sublinha o propósito
narrativo de Scenes from Childhood. Nela, Guzzetti conversa com o filho e explica que
está fazendo o filme para que quando o filho e os amigos ficarem mais velhos, possam
ver “como era ser criança”.
Figura 22: Scenes from Childhood, de Alfred Guzzetti (1979)
O projeto autobiográfico de Guzzetti é retomado no média-metragem Beginning
Pieces, lançado em 198642. Neste, o cineasta concentra-se novamente no universo
infantil, porém focando o crescimento de Sarah, sua filha, dos dois aos cinco anos de
idade. Metodologicamente mais variado do que Scenes from Childhood, Guzzetti
emprega outros elementos narrativos, para além a observação/interação com seus filhos
em um estilo vérité. Entre eles, o cineasta emprega excertos de narração em voz over em
primeira pessoa e sequências líricas que contam com o emprego de música não-diegética.
42 Beginning Pieces foi tirado de circulação/distribuição pelo cineasta por um período indefinido, a pedido da filha Sarah (MACDONALD, 2014, p. 123). Uma cópia do documentário, entretanto, pôde ser visionada durante o estágio de pesquisa no exterior.
175
Em sua formação, Guzzetti apresentou uma relação estrita com a música – antes de
enveredar para a produção audiovisual, o cineasta trabalhava com composição musical e
dedicou parte de seus estudos em Harvard para isso. Há diversas referências ao universo
da música erudita em seus filmes. O título “Scenes from Chilhdood” refere-se a
“Kinderszenen” (“cenas da infância”), conjunto de treze composições para piano solo
composto por Robert Schumann em 1838 (MACDONALD, 2014, p. 123). Em Family
Portrait Sittings, a mãe do cineasta relata que as aulas de piano faziam parte da rotina de
Guzzetti desde criança. No caso de Beginning Pieces, há um trabalho com a
temporalidade cronológica que é pouco detectável nos filmes anteriores. Um dos aspectos
que tornam este trabalho palpável é o fato de acompanharmos os progressos do filho Ben
com a flauta doce – à medida que o tempo (e que o filme) passa, Ben executa melhor os
estudos. É interessante notar que algo semelhante acontece em Diaries de Ed Pincus,
sendo que o mesmo aspecto de temporalidade palpável é detectado no desenvolvimento
das habilidades de Jane Pincus em relação à flauta transversal. Além de entrarmos em
contato com uma faceta do crescimento dos filhos de Guzzetti, Ben e Sarah, o cineasta
evidencia a maturação de si próprio como indivíduo, ao tematizar no filme o adoecimento
e a morte do pai.
Após Beginning Pieces, Guzzetti permaneceu décadas sem trabalhar
narrativamente aspectos autobiográficos em seus filmes. A pausa foi quebrada em 2012
com a realização de Time Exposure, curta metragem de pouco mais de dez minutos. O
filme pode ser lido como uma homenagem póstuma aos pais do diretor, como aponta
Scott MacDonald (2013, p. 162), tendo sido realizado um ano após a morte da mãe do
realizador, em 2011, e dedicado in memoriam ao seu pai. A construção narrativa
autobiográfica em Time Exposure passa por um terreno pouco experimentado pelo diretor
em filmes anteriores. Neste, o cineasta lança mão da narração over em primeira pessoa
como elemento argumentativo dominante em sua reflexão. Em entrevista, Guzzetti
menciona (MACDONALD, 2014, p. 141) o auxílio que obteve de Ross McElwee para o
desenvolvimento desta tarefa.
O ponto de partida da meditação do cineasta é uma fotografia tirada por seu pai
em 1938. Ela, segundo nos narra Guzzetti, foi a fotografia responsável pelo início da
carreira do pai como fotógrafo. O resultado da foto – uma cena noturna de uma rua deserta
na Philadelphia – impressionara a mãe do cineasta, que o incentivou a inscrever a
fotografia em um concurso que o pai se sagrou vencedor. Utilizando-se de imagens still
176
como esta e outras tiradas por seu pai, o realizador reflete acerca da passagem do tempo
e da influência da fotografia na vida do patriarca, que influenciou em sua própria
formação como artista. Quase setenta anos depois da circunstância, o diretor realiza uma
pequena investigação a fim de descobrir o sítio exato onde a fotografia foi tirada,
recorrendo a informações armazenadas nos “cantos” de sua memória, bem como com o
auxílio digital de ferramentas como o Google Mapas. Reencontrando o local onde a
fotografia foi tirada por seu pai, Guzzetti realiza uma nova imagem, porém agora
cinematográfica, digital e em cores.
Figura 23: A fotografia tirada por Felix Guzzetti, pai do cineasta, em 1938, em Time
Exposure (2012)
Apesar de algumas diferenças no cenário, a paisagem da imagem de 1938
permanece reconhecível nos tempos atuais. A distinção maior, entretanto, reside na
177
importância simbólica que o local tem para as pessoas que o veem diariamente se em
comparação com o próprio cineasta. Estando diante do local e realizando um novo
registro dele, Guzzetti, aos setenta anos de idade no ano de lançamento do filme,
questiona o que aconteceria se o pai não houvesse feito a imagem décadas atrás: "Eu teria
sido assistente de meu pai quando ele fotografou casamentos e banquetes? Teria
aprendido a mudar os suportes de filme e as lâmpadas, focar a câmera, fazer tiras de teste
e ampliações, colorir as mãos com os óleos semi-transparentes? Meu pai teria comprado
uma câmera de filme de 8mm e equipamentos de edição e feito todos os filmes de nossa
família que eu herdei? Eu teria começado a fazer minhas próprias fotografias e meus
próprios filmes?”.
A partir de uma obra de curta duração (Scott MacDonald refere-se ao filme como
um haikai do documentário pessoal [2013, p. 166]), em Time Exposure Guzzetti resgata
a história familiar ao tematizar o ofício do pai como fotógrafo/cineasta caseiro, artista e
trabalhador, e também a conjuntura do casamento de seus pais, seu nascimento e a
influência da arte em sua própria vida. O diretor, no filme, declara-se “inesgotavelmente
fascinado pela maneira através da qual o cinema coloca diante de nós o infinito fluxo do
tempo”. Estilisticamente livre e variada, a obra do diretor em sua ótica autobiográfica
coloca em primeiro plano, como sugerido pelo próprio, o questionamento acerca da
passagem do tempo e de seu registro, sua cristalização e memória. Os filmes de Alfred
Guzzetti apresentam-se como outra faceta do universo de reflexão que permeia a obra de
cineastas-autobiógrafos de Cambridge como Ed Pincus, Ross McElwee e Robb Moss.
b) Nina Davenport
Um dos principais casos do desdobramento do recorte autobiográfico de
Cambridge já no âmbito do departamento VES, após a chegada de Robb Moss e Ross
McElwee, é o de Nina Davenport. A cineasta faz parte de uma “terceira geração”, segundo
Ross McElwee em entrevista para esta pesquisa, de cineastas-autobiógrafos de
Cambridge, tendo desenvolvido sua própria carreira a partir do contato com a docência e
com os filmes de McElwee e Moss.
178
Davenport aponta que seu interesse pela realização de documentários em uma
esfera pessoal iniciou em uma aula de introdução à cinematografia lecionada por Moss,
na qual assistiu a filmes como Chronique d’un été, de Jean Rouch, Happy Mother’s Day
(Richard Leacock, 1963) e Diaries 1971 - 1976, de Ed Pincus. Sobre a ocasião, a
realizadora afirma: “nunca havia visto nada como estes filmes, e nem sabia que este tipo
de cinema existia. Mas com o passar do tempo, compreendi ser o meio que funcionava
melhor para aquilo que me interessa no mundo e como queria me expressar”
(MACDONALD, 2014, p. 171). Davenport atuou como assistente de edição em Six
O’Clock News (Ross McElwee, 1996), filme no qual também faz aparição, quando
podemos vê-la assistindo a uma aula lecionada por McElwee.
A metodologia fílmica na qual a cineasta se especializou, recorrente em seus
filmes, faz jus à “escola” do cinema autobiográfico de Cambridge na linha de Ed Pincus
e seus sucessores. Filmando a partir de uma equipe de uma pessoa só (one-person-crew),
editando e narrando os próprios filmes, a influência vérité é trazida para o primeiro plano
em filmes como Always a Bridesmaid (2000), Parallel Lines (2004), Operation:
Filmmaker (2007) e First Comes Love (2013). Nestes longas-metragens a presença de
Davenport na tomada é um aspecto dominante e torna-se elemento narrativo das
produções. Sua interação conversacional com as pessoas que estão diante da lente é uma
ferramenta enfatizada. A realizadora sublinha sua própria individualidade em todos os
filmes citados, porém é possível dizer que o aspecto autobiográfico se faz mais evidente
em Always a Bridesmaid e First Comes Love. Nestes, há uma ênfase temática de aspectos
que dizem respeito a episódios de sua vida privada, existindo também o emprego da
narração em voz over em primeira pessoa como amparo narrativo e como meio de veículo
de suas reflexões. Os filmes da cineasta lançam mão do aspecto de desenvolvimento
cronológico a partir da construção de movimentos narrativos de tensão e resolução.
Hello Photo (1994), o primeiro filme finalizado por Davenport, entretanto,
inspira-se em outra tradição. O filme foi realizado durante um período de quase dois anos
em que a cineasta viajou pela Índia. A realizadora registra suas experiências pelo local a
partir de uma perspectiva de exploração imagética mais ligada à fotografia do que à
inspiração vérité – o filme foi rodado com uma câmera Bolex e inspirado na obra de Peter
Hutton. Davenport afirma que Hello Photo era uma obra de alguma forma “feito por um
fotógrafo”, em uma narrativa na qual não existe um plot, diálogo ou uma história
(MACDONALD, 2014, p.). O filme conta apenas com a ilusão de som sincrônico que,
179
apesar de ter sido captado in loco, teve suas sequencias sonorizadas posteriormente. Os
sons escutados em sync não são relativos a diálogos, mas tratam-se de “sons do mundo”,
como passos ou manuseio de objetos. As interações conversacionais de Davenport com
as pessoas ao seu redor aparecem como um elemento extra da trilha sonora,
frequentemente faladas em hindi e pouco adicionando “coerência narrativa” ao filme. A
realizadora descreve que o encorajamento institucional de Hello Photo veio de Robert
Gardner, que olhava o material bruto do filme mandado aos EUA pela cineasta e provia
financiamento extra para o projeto. (MACDONALD, 2014, p. 173)
Já seu próximo filme, Always a Bridesmaid, lançado em 2000, dialoga com a
tradição autobiográfica do departamento VES. Davenport lança mão de procedimentos
metodológicos, temáticos e narrativos que remetem a filmes de cineastas com quem
esteve em contato acadêmico, sobretudo Ross McElwee. Em Always a Bridesmaid, a
realizadora tematiza aspectos de sua vida amorosa. O título do filme, que remete à
expressão “Always a bridesmaid, never a bride” (sempre uma dama-de-honra, nunca uma
noiva), relaciona-se a uma preocupação que ocupa de maneira significativa os
pensamentos de Nina Davenport na ocasião da filmagem. Chegando aos trinta anos de
idade, a cineasta encontra-se incomodada com o fato de ser uma das últimas mulheres de
seu círculo social a não ter casado. A realizadora sugere a intensificação de sua agonia
por participar inúmeras vezes como dama-de-honra em casamentos de suas amigas, como
também devido à atividade profissional que exerce, a de fotógrafa e videógrafa de
casamentos alheios.
O principal eixo de gravidade temático do filme é o relacionamento amoroso que
a diretora mantém ao longo de sua realização. Seu namorado é Nick, um recém-formado
cineasta cinco anos mais jovem do que Davenport. As situações filmadas pela realizadora
evidenciam sua disposição em consolidar casamento com Nick, apesar de que o namorado
parece resistir à ideia. Ao longo da narrativa, acompanhamos as investidas de Davenport
para que o casal dê um passo além, como dividir um apartamento. O namorado,
entretanto, está mais disposto a morar com amigos ou mesmo a voltar para a casa de seus
pais – episódio que toma forma em determinado momento do filme. A reflexão de
Davenport sobre seu relacionamento é realizada “sem muitas restrições” – entramos em
contato com conversas íntimas que a cineasta tem com Nick sobre o caso, com as análises
que a diretora realiza em voz over sobre a postura do namorado, ou com os diálogos da
cineasta com amigas próximas a respeito do assunto. Davenport amplia seu estudo sobre
180
o tema ao tornar uma senhora idosa, que decidiu não se casar, como uma das personagens
do filme, sendo alguém com quem a realizadora revela gostar de passar tempo e a quem
frequentemente pede conselhos sobre seu caso. Outras variações do tema são retratadas
pela realizadora, como uma aglomeração de mulheres em uma liquidação de vestidos de
noiva de uma loja de departamentos, ou o caso de um casal de idosos que se
“encontraram” apenas aos noventa anos de idade e decidem casar-se.
A reflexão de Davenport elabora-se a partir do entendimento de que continua a
existir pressão da sociedade para a consolidação do casamento, da qual a cineasta também
é alvo. A realizadora sugere, da mesma forma, o preconceito que existe em torno da
condição da solteirice – principalmente, neste caso, em relação ao universo feminino.
Como aponta Scott MacDonald (2013, p. 281), há diversos elementos em Always a
Bridesmaid que remetem à construção temática e metodológica de Ross McElwee em
Sherman’s March. Como McElwee, Davenport coloca-nos em contato com uma persona
elaborada a partir da ênfase em um aspecto autodepreciativo. No caso de McElwee, trata-
se do fracasso diante do estabelecimento de um relacionamento amoroso e, no caso de
Davenport, o fracasso existe em relação à expectativa frustrada de um casamento. De
maneira correlata a Sherman’s March, Always a Bridesmaid também suscita uma
exploração hiperbólica de intimidade com a qual nós, enquanto espectadores, não-raro
sentimos incômodo. Se em Sherman’s March é possível colocarmos as intenções de
McElwee em um campo de suspeição ética para com diversas de suas pretendentes (até
que ponto o diretor “tem direito” de fazer isto com as pessoas, em prol de seu filme?),
algo semelhante é evocado na abordagem de Davenport em relação ao namorado, Nick.
Finalmente, como no caso de Sherman’s March, o “fracasso” da cineasta em chegar à
concretização de um casamento resulta no sucesso de Always a Bridesmaid como
tematização da instituição do casamento em um período de reavaliação das organizações
tradicionais de relacionamentos amorosos. Este movimento será novamente conduzido
pela realizadora em First comes Love, no que concerne a possibilidade de tornar-se mãe
sem um cônjuge, a partir de fertilização in vitro. Always a Bridesmaid, também, revela o
domínio de Davenport da metodologia de equipe de uma pessoa só, no que concerne o
trabalho de câmera sob a ótica do cinema direto. Esta estará presente em seus filmes
subsequentes, bem como os processos de montagem e desenvolvimento de narração em
primeira pessoa.
181
Figura 24: A cineasta Nina Davenport e o namorado, Nick, em Always a Bridesmaid (2000)
Voltados para um objeto temático externo bem demarcado, os próximos filmes da
realizadora, Parallel Lines (2004) e Operação: cineasta (Operation Filmmaker, 2007)
também sublinham narrativamente sua própria figura. Em Parallel Lines43, a diretora
realiza uma meditação acerca de extratos da sociedade estadunidense logo após os
acontecimentos do 11 de Setembro. O filme revela que a cineasta, moradora da cidade de
Nova Iorque, realizava um trabalho na Califórnia no período do ataque. Permanecendo
no local ainda por dois meses, Davenport decide realizar o trajeto de volta dirigindo –
cruzando o país da costa oeste à costa leste – a fim de conversar com pessoas de diferentes
estados, classes sociais e visões políticas sobre o evento e suas consequências. Parallel
Lines evoca tanto o senso de fragmentação quanto de unidade da sociedade estadunidense
após os ataques, tematizando questões como o sentimento de luto, o patriotismo e sua
crítica.
Operação: cineasta obteve projeção maior que os filmes anteriores de Nina
Davenport, tendo sido inclusive exibido na 13ª. edição do Festival Internacional de
Documentários É Tudo Verdade, em 2008. A estória de Operação: cineasta inicia com
uma reportagem realizada feita pela MTV após a invasão estadunidense ao Iraque. Na
ocasião, a emissora fez uma matéria sobre estudantes de uma escola de cinema de Bagdá
43 Parallel Lines foi exibido na edição de 2005 do ForumDoc.bh, Festival do filme Documentário e Etnográfico sediado em Belo Horizonte.
182
destruída pela guerra e perdendo, assim, a possibilidade de dar continuidade aos estudos.
O protagonista da matéria, o estudante iraquiano Muthana Mohmed, captou a atenção do
ator/diretor estadunidense Liev Schreiber, que convida Muthana para participar como
estagiário de seu próximo filme, Uma vida iluminada (Everything is Illuminated, Liev
Schreiber, 2005), rodado na República Tcheca. Originalmente, o trabalho de Davenport
seria o de apenas realizar um filme a respeito da participação de Muthana na filmagem
do longa-metragem americano – não havendo, portanto, “nenhuma intenção” da cineasta
participar ativamente como personagem de seu filme (MACDONALD, 2014, p. 177). A
relação entre Davenport e Muthana começa a tomar contornos mais complexos,
entretanto, com o desvio das expectativas da empreitada inicial, de todas as partes
envolvidas. Tendo atraído atenção sobre si, Muthana apresenta resistência em realizar
trabalhos do baixo escalão do set de filmagem, gerando o desapontamento dos produtores
e do resto da equipe que acreditavam “dar uma chance” ao estagiário iraquiano. O “jogo
de lábia” de Muthana para conseguir as coisas que quer torna-se evidente e leva a seu
descrédito no círculo de trabalho.
Muthana permanece na Europa com a possibilidade de trabalhar em outro longa-
metragem (Doom, Andrzej Bartkowiak, 2005) por alguns meses. Davenport continua
filmando o desenrolar da história do aspirante a cineasta em um período de tempo que
soma quase dois anos. A cineasta o acompanha na empreitada de sobreviver sem dinheiro
e na tentativa de permanecer em solo europeu, evitando o retorno ao Iraque. Com o tempo,
porém, Muthana torna-se mais incisivo em relação ao envolvimento de Davenport em sua
vida e ao filme que a cineasta está realizando. Frequentemente pedindo (ou exigindo)
dinheiro da cineasta para suas despesas – pedidos aos quais Davenport cede por algumas
vezes – a relação entre “cineasta” e “objeto”, na complexidade desta situação particular,
torna-se o mote narrativo de Operação: cineasta. Neste sentido, como aponta o crítico
Fabio Andrade (2008), “Muthana é tão consciente da necessidade, para o filme, de sua
presença, que ela vira uma forma de poder”. A “disputa do controle do filme” por
Davenport e Muthana faz da narrativa “uma relação de co-dependência em constante
mutação. Muthana sabe que precisa do documentário tanto quanto a diretora precisa dele
para que exista um filme. Operação: Cineasta é o registro dessa tensão, desse cabo de
guerra pelo controle da imagem.” (ANDRADE, 2008).
183
Davenport retorna à exploração autobiográfica em seu próximo filme, First
Comes Love44, lançado em 2013 e o último realizado pela diretora até o presente
momento. No longa-metragem, a cineasta tematiza o processo da gravidez de seu
primeiro filho, realizado a partir do método de fertilização in vitro. A empreitada da
realizadora inicia-se narrativamente aos quarenta e um anos de idade. Acreditando estar
vivendo em um “período-limite” de seu relógio biológico em relação à maternidade, a
cineasta decide tentar saciar o desejo, já longínquo, pela gravidez. Desenvolvido a partir
de uma macroestrutura cronológica, First Comes Love começa por narrar os momentos
que antecedem sua decisão, ao conversar com amigos e familiares sobre a ideia de
engravidar e cuidar de um filho por conta própria. Munida da câmera, Davenport mostra
momentos como o pedido pela doação do esperma ao amigo gay, Eric, ou o processo de
equilíbrio hormonal necessário para o processo. Com o sucesso do tratamento, assistimos
à condução dos meses de gestação, nos quais a cineasta reavalia as diferentes facetas de
sua escolha. A câmera está presente na sala de parto, na qual assistimos, bastante
graficamente, ao nascimento de seu filho. A narrativa estende-se ainda pelo primeiro ano
da vida de Jasper, filho da cineasta, na qual esta expõe a concretude das consequências
de sua decisão.
First comes Love apresenta aspectos de “continuação autobiográfica” em relação
a Always a Bridesmaid, seu primeiro longa-metragem, lançado treze anos antes.
Analogamente ao filme anterior, o título First comes love também parte de uma cantiga
popular, utilizada no contexto de brincadeiras infantis: “primeiro vem o amor, depois vem
o casamento, depois vem o bebê em um carrinho” (first comes love, then comes marriage,
then comes baby in a baby carriage). Davenport, no filme, evidencia uma subversão da
ordem apontada pela canção e que traduz a visão mais tradicional em relação ao ato de
gestar e criar um filho. Existe certamente muito “amor” em sua decisão, porém a
realizadora deixa de lado a necessidade da relação afetiva para a consolidação de sua
gravidez. Mostrando-se na condição de solteira, treze anos após o lançamento de Always
a Bridesmaid, a cineasta revela que o projeto do casamento, tematizado no filme, de fato
não chegou a se concretizar. Diferentemente da empreitada anterior, entretanto, o
universo social ao redor da cineasta sugere que a nova tarefa pode ser realizada por uma
pessoa só. Diversas de suas amigas passaram pelo processo da “maternidade individual”:
44 First comes Love está disponível (em abril de 2017) para visionamento no banco de dados brasileiro da plataforma de streaming Netflix.
184
algumas já são mães, outras estão na fase de gravidez, outras estão tentando. O médico
que acompanha a ultrassonografia de uma destas amigas afirma tratar-se de algo cada vez
mais comum em uma cidade como a de Nova Iorque. Imersa em um círculo social
predominantemente progressista-liberal – inclusive, a campanha de Barack Obama é um
dos motes que pontua temporalmente o filme –, a empreitada da realizadora coloca-se
como exemplo de uma reorganização de valores tradicionais de maternidade e família.
Desde o amigo doador do esperma à figura da melhor amiga, Amy, que faz o papel de
uma companheira de gestação, Davenport está rodeada de pessoas dispostas a
acompanha-la em sua jornada, ajudando-a (e a nós, enquanto espectadores) a
compreender as nuances de sua escolha e o lugar que esta ocupa na sociedade e nos
tempos em que vivemos.
Se a decisão da realizadora parece ter um alto grau de aprovação dentro de seu
círculo de amizades, a resistência surge quando há um passo para além deste grupo. Neste
sentido, sua exploração toca outros pontos de questionamento. A principal interlocução
dá-se em relação a parte de sua família. Davenport faz da iminência da maternidade um
ponto de partida para a reflexão analítica acerca de sua própria criação e seu histórico
familiar. A realizadora vem de uma família que proporcionou a ela todos os privilégios
possíveis: de uma boa e confortável criação à educação universitária em Harvard. Um
primeiro choque atinge a cineasta a partir da conversa com a esposa de um de seus irmãos
– um deles é um banqueiro e, o outro, advogado corporativo. No diálogo, a cunhada
questiona se a criação de um filho não agravaria os problemas financeiros dos quais a
cineasta frequentemente se queixa. Daí, advém a constatação que o ofício escolhido por
Davenport – o de documentarista independente – certamente não proveria ao filho as
mesmas condições com as quais ela pôde contar ao longo de seu crescimento.
A resistência familiar encontra seu principal bastião na figura do pai da
realizadora. Advogado bem-sucedido, seu pai refuta todas as escolhas feitas pela filha.
Mesmo diante da câmera, não apresenta constrangimentos ao afirmar que o trabalho da
filha não passa de uma atividade amadora, de “puro prazer” – suspeição frequente na
carreira de outros cineastas-autobiógrafos, como Ross McElwee, Alan Berliner e Miriam
Weinstein. Diante da notícia de que a diretora está de fato esperando um bebê, o pai
sugere – jocosamente, mas não tanto – que ela procure um médico aborteiro. No âmbito
deste dilema, Davenport leva a narrativa de First comes love a uma reflexão mais densa
sobre relações familiares. A situação de fragilidade faz com que a cineasta se lembre de
185
sua mãe, morta um ano e meio antes do início da jornada e de quem porta vasto material
de registros caseiros.
A maturação do “estilo autobiográfico” de Davenport se faz notável na medida
em que a cineasta intercala os registros de sua produção “presente” com o passado
familiar. A partir de diversas fontes de registro audiovisual, a realizadora desenvolve uma
narração em over que amarra os saltos espaço-temporais em uma reflexão analítica. Há,
neste sentido, um movimento de desatamento de um “nó mental”, um engendramento
entre memória e presente, que remete ao trabalho metodológico de um filme como Time
Indefinite, de Ross McElwee. A partir deste trabalho Davenport reflete acerca da nova
experiência na qual está embarcando, porém em perspectiva com diversas facetas daquilo
que viveu anteriormente. A narrativa, portanto, serve como subsídio para o embate da
diretora com o luto em relação à sua mãe, bem como uma maneira de compreender melhor
a visão de mundo do pai. A aproximação de Davenport da figura paterna a partir do
momento em que ela própria apresenta-se na iminência de criar um filho remete
similarmente aos filmes de McElwee, no que diz respeito à reavaliação que o diretor faz
de maneira contínua sobre seu pai, de Time Indefinite a Photographic Memory.
Figura 25: Nina Davenport e o nascimento do filho Jasper em First comes Love (2013)
186
c) Outros cineastas: Marco Williams, Jim Lane, Mitch McCabe e Dario Guerrero
O documentarista Marco Williams (Two towns of Jasper [2002], Banished [2007])
também iniciou sua carreira durante a graduação no departamento VES. Williams fora
assistente (monitor, teaching assistant) de Ed Pincus nos cursos que o cineasta lecionou
em Harvard, nos primeiros anos da década de 1980. Também neste período, em 1982,
Williams inicia o projeto de In Search of Our Fathers, documentário autobiográfico
filmado durante uma década e finalizado em 1992. O filme documenta a busca do diretor
pelo pai, James Berry, que nunca conheceu e sobre o qual sabe muito pouco. A história
de sua gestação e nascimento é nebulosa e mesmo seus familiares, como o filme nos
mostra, têm poucas informações precisas acerca do fato. Williams conduz sua busca por
diversas cidades em que morava durante o período das filmagens, como Boston e Nova
Iorque, mas também na Philadelphia, onde cresceu e onde sua família instalou-se. Apesar
de ter o contato telefônico do pai, o realizador nunca obteve sucesso em conseguir um
encontro com ele – suas tentativas esporádicas, via telefone, são registradas por sua
câmera. O filme sugere que a mãe do diretor, radicada em Paris desde a metade da década
de 1970, é a única pessoa viva que poderia ajudar a esclarecer os fatos. Williams vai ao
seu encontro em algumas ocasiões ao longo da jornada, também quando a mãe passa a
morar novamente nos Estados Unidos.
Os encontros entre mãe e filho diante da câmera revelam a evasividade da
matriarca em relação ao assunto, ao invés da disposição em esclarecer as circunstâncias
do relacionamento afetivo que a levou à gravidez. Em uma destas situações, a mãe do
diretor revela que o pouco que lembra do pai de Williams é que ele “conseguia abrir uma
garrafa de cerveja com os dentes”. A postura da mãe, de certa forma, poderia ser traduzida
como uma tentativa de preservar o filho de um encontro potencialmente desapontador.
Ao final da narrativa, o diretor consegue agendar um encontro com o pai, na cidade em
que mora. O encontro é marcado pela ausência de curiosidade da parte do pai, bem como
por sua postura resistiva. Seu argumento é o de que não haveria base para a afirmação de
que o cineasta era, de fato, seu filho. Não sabendo (ou, fingindo não saber) nem ao mesmo
em que cidade havia conhecido a mãe do realizador, a única aproximação palpável entre
ambos é o comentário feito por um conhecido do pai, que aponta a semelhança física entre
eles. Os letreiros finais do filme revelam que este foi o único encontro entre o realizador
e James Berry, tendo este falecido em 1992.
187
In Search of our fathers constrói-se episodicamente, a partir da jornada de
Williams filmada em trechos separados por letreiros que indicam a localização geográfica
e o ano dos registros. Suas reflexões sobre os novos desdobramentos do caso são
trabalhadas a partir de uma narração em over e o aspecto vérité rege os encontros do
diretor com as pessoas que encontra. Por vezes, o realizador trabalha solo nos registros e,
em alguns momentos, relega o trabalho de câmera para outra pessoa. Sua jornada alcança
um aspecto público ao unir a particularidade de seu caso a uma realidade das famílias
afroamericanas. Como exposto no primeiro capítulo deste trabalho, Williams ressalta em
determinado momento da narrativa que a ausência da figura paterna no crescimento dos
filhos acontece em 47% das famílias negras nos Estados Unidos. O cineasta vê a
concretude do fato em sua própria família, apresentando esta ausência como um dado que
se repete há gerações, entre avós, tias e primas que, por diversos motivos, acabam por ter
de criar os filhos sozinhas. A narrativa de In Search of our fathers termina no casamento
de uma das primas do diretor. Na ocasião, Williams reflete em over sobre como ele
próprio se sairia no papel de pai – se isto um dia viesse a acontecer. O realizador conclui
que o trabalho de uma década significou um maior entendimento da noção de paternidade
e de família, seja ela “nuclear, estendida ou ambos”. In Search of our Fathers foi indicado
para o grande prêmio do júri na edição de 1992 do Festival de Sundance. A análise de
diferentes facetas da experiência negra nos EUA permeia outros filmes de Marco
Williams, embora não autobiográficos, como From Harlem to Harvard (1985), Two
towns of Jasper (2002) e Banished (2007). Williams é professor do departamento de
cinema da Tisch School of the Arts (NYU).
188
Figura 26: O diretor Marco Williams ao telefone em duas ocasiões de sua jornada em In Search of
Our Fathers (1992), sua mãe e seu pai.
Outros exemplos da relação entre os documentários autobiográficos e o
departamento VES podem ser extraídos de alguns trabalhos de conclusão de curso de
graduação (senior thesis) de alunos que passaram pelo local. Três deles, de épocas e com
motivações distintas, sublinham aspectos da vida dos alunos-cineastas em seus últimos
anos de faculdade. Um exemplo distante é Long Time, no See, média-metragem realizado
por Jim Lane e finalizado em 1982, mencionado no capítulo anterior deste estudo. Lane
revela-se no filme como um estudante prestes a se formar, um pouco confuso em suas
aspirações, em busca de aprovação de sua família e das pessoas ao seu redor. É possível
notar a influência das ideias de Ed Pincus no filme. O diretor fez parte da primeira turma
de alunos que assistiu a Diaries (1971 - 1976) em seu formato final e trabalhou na
distribuição do filme nos anos subsequentes. O realizador constrói seu filme a partir das
interações que tem com as pessoas diante da lente da câmera, economizando comentários
em over e ausentando-se de lançar mão de procedimentos que ajudem a “amarrar” o fio
narrativo do filme. O estudo acerca da possibilidade de realizar autobiografia
cinematográfica “no tempo presente”, que é parte do núcleo conceitual de Diaries, é
evidente no filme. Susanna Egan faz de Long Time, no See uma das referências de seu
artigo “Autobiography as Interaction” (1994), ao lado de filmes como Silverlake Life.
189
Lane produziu outros filmes de teor autobiográfico, como East meets West (1986) e I am
not an Anthropologist (1995), além de contar com uma obra acadêmica voltada para o
tema (LANE, 1997, 2002, 2009).
Figura 27: O cineasta Jim Lane filma seu próprio reflexo em Long Time, no See (1982)
O trabalho de conclusão de curso da cineasta Mitch McCabe é outro caso como
esse. O média-metragem Playing the part, orientado por Ross McElwee e lançado em
1995, tematiza o desejo da realizadora em revelar à sua família o fato de ser homossexual.
McCabe cresceu no interior dos Estados Unidos em uma família de condições financeiras
privilegiadas. Seu pai é um cirurgião plástico, também formado em Harvard. A cineasta
coloca em contraponto a formação conservadora e religiosa do interior do país com o
ambiente liberal da high-society da universidade. McCabe desenvolve o filme a partir de
interações com sua namorada, bem como com sua família, visitando-os na cidade natal e
recebendo-os em seu dormitório na universidade. Em todos os casos, entretanto, McCabe
não tem coragem de dizer aos pais sobre sua homossexualidade e seu envolvimento
afetivo com outra mulher. Mesmo a partir de uma situação delicada, existe um humor que
perpassa a abordagem da realizadora. Este é confirmado tanto pelo teor de sua narração
em primeira pessoa quanto pelo nos momentos em que se dirige à câmera –
procedimentos de monólogo que também remetem a Sherman’s March e outros filmes de
190
McElwee. O fim da narrativa de McCabe sugere que talvez o próprio filme seja o meio
encontrado pela cineasta para contar aos pais sobre sua sexualidade.
Figura 28: A namorada da cineasta Mitch McCabe corta seu cabelo, em Playing the Part (1995)
Um último caso que pode ser destacado é o de Dario Guerrero. Guerrero foi
estudante do departamento VES e formou-se em 2016. O aluno-cineasta realizou um
documentário autobiográfico como trabalho de conclusão de curso, também tendo sido
orientado por Ross McElwee. Nascido no México e crescido na Califórnia, Guerrero
descobriu apenas quando adolescente que sua entrada nos EUA aos dois anos de idade,
juntamente com sua família, fora feita de maneira ilegal. Ele e os familiares, dessa forma,
portavam status de imigrantes sem documento no território estadunidense. A história de
Guerrero veio a público em 2014, sendo veiculada pela imprensa de diversos países, como
a brasileira45. Na ocasião, a mãe de Guerrero sofria de um câncer terminal e não estava
respondendo bem aos tratamentos a que fora submetida nos EUA. O jovem levou-a para
o México em busca de tratamentos alternativos que pudessem auxiliá-la. Sua mãe,
entretanto, não resistiu à doença e morreu em solo mexicano. Guerrero foi barrado na
45 A notícia a respeito do episódio que envolveu Dario Guerrero, noticiada por um portal brasileiro, pode ser encontrada aqui: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/10/eua-barram-aluno-de-harvard-que-foi-ao-mexico-para-ajudar-mae-doente.html
191
ocasião de sua tentativa de reentrada nos Estados Unidos, tendo de permanecer meses no
México antes de conseguir reingressar no país em que viveu por toda a vida.
Figura 29: A história de Dario Guerrero em manchete de portal digital brasileiro,
veiculada em 2014
Seu trabalho de conclusão de curso, em processo de finalização e ao qual pôde-se
assistir, documenta a história da doença da mãe durante o período, desde quando a família
permanecia nos EUA até a ida para o México. O filme é baseado em um trabalho de
observação “paciente” do cotidiano que configurava a circunstância na qual o realizador
estava inserido. Há o trabalho de estruturação cronológica da situação, delicada, do seio
familiar, na qual entramos em contato com a evolução física do quadro de sua mãe e a
transformação de humores e consciências das pessoas de sua família.
192
Dario Guerrero e sua empreitada representam a maneira através da qual o interesse
pelo desenvolvimento de narrativas documentárias no contexto universitário de
Cambridge permanece no horizonte, em tempos atuais. Este foi um questionamento que
transcorreu em um diálogo via e-mail com o realizador, no ano de 2017. Diante da
indagação a respeito da maneira através da qual a noção de autobiografia perspassou o
tipo de ensino cinematográfico realizado no departamento, em sua formação, Guerrero
afirma que:
(A realização de) cinema autobiográfico de qualidade ainda é muito
importante no departamento VES, atualmente. Em todas as aulas de
cinema documentário que cursei, os estudantes faziam trabalhos sobre
si próprios em algum nível. O espírito da autobiografia permeia até as
aulas de cinema de ficção (...) A maioria dos estudantes atua nas
próprias produções, e nas aulas de documentário alguém
inevitavelmente acaba virando a câmera para si próprio. O trabalho
autobiográfico de Ross (McElwee), Robb (Moss) e Alfred (Guzzetti)
são partes importantes do currículo e são estudados pela maioria dos
outros alunos com quem tive contato.
193
3. A obra autobiográfica de Ross McElwee
3.1. Introdução
Ross McElwee, nascido em 1947 em Charlotte, capital do estado da Carolina do
Norte, iniciou seu trabalho como documentarista na década de 1970, estando em atividade
até o presente momento. Seu último longa-metragem, Photographic Memory, foi lançado
em 2011. Em 1986, McElwee iniciou a atividade de docência no departamento Visual
and Environmental Studies da universidade Harvard ocupando o posto de Professor de
Prática Cinematográfica – cargo que também continua a exercer.
McElwee entra no radar do público, crítica e academia norte-americanos no
mesmo ano de 1986, com o lançamento de Sherman’s March (A Meditation on the
Possibility of Romantic Love in the South during an Era of Nuclear Weapons
Proliferation). Como frisado na introdução deste trabalho, a quixotesca narrativa
cinematográfica de mais de duas horas e meia de duração protagonizada por McElwee
acabou por obter mais sucesso do que o esperado. A expectativa era a de que o filme
conseguisse transitar pelo circuito arthouse de museus e festivais de cinema, porém
Sherman’s March teve penetração entre um público menos restrito e consolidou-se como
um marco da filmografia documentária norte-americana. No filme, McElwee parte em
busca de um novo relacionamento amoroso em meio a meditações e reflexões acerca da
Guerra Civil norte-americana, estabelecendo uma relação alegórica entre sua própria
personalidade e a do general William Tecumseh Sherman. O general encabeçou o
episódio da “Marcha para o Mar”, liderando o Exército da União na devastação e
destruição do território de diversos Estados do Sul dos Estados Unidos, finalmente
forçando o Exército Confederado à rendição. Apesar do sucesso dos objetivos de sua
campanha, as atitudes de Sherman revelam uma personalidade complexa e dúbia. Sua
figura pública teria sido marcada na História não apenas pela repreensão que obteve da
população sulista, mas também pelo descrédito recebido pelas autoridades políticas da
União. Sherman foi acusado de oferecer termos de rendição demasiadamente generosos
ao exército confederado, sendo considerado complacente em relação aos inimigos.
O diretor tem uma ligação pessoal com o território devastado por Sherman. Tendo
nascido na Carolina do Norte, McElwee é um genuíno cidadão sulista, apesar de ter
194
mudado para a região da Nova Inglaterra, no nordeste dos EUA, ainda quando
universitário. Em Sherman’s March, sob o pretexto de realizar um documentário
elucidativo a respeito do episódio da “Marcha para o Mar” e das marcas deixadas por ele
na sociedade sulista contemporânea, o diretor parte para uma road trip munido de sua
câmera, passando por muitos dos lugares destruídos pelo general na campanha. A
motivação existencial da jornada de McElwee, entretanto, divide-se também em um
incidente de ordem emocional: o recente término de um relacionamento amoroso. Com a
separação, o diretor abre-se à busca de um envolvimento afetivo através do
reestabelecimento do contato com mulheres que passaram por sua vida anteriormente e
fazendo da câmera um instrumento de aproximação com novas pretendentes. A interação
de McElwee com as pessoas que encontra pelo caminho, entretanto, também produz e
entrega conhecimento acerca da herança deixada pela Guerra Civil e pela figura de
Sherman mais de cem anos após o episódio, como também revela a faceta emocional
fragilizada do diretor naquele momento de sua vida. A originalidade apresentada na
narrativa da suposta jornada fracassada de McElwee pelo Sul dos Estados Unidos fez com
que Sherman’s March conquistasse um lugar na história do documentário estadunidense.
O filme, pelo qual o diretor ainda é mais frequentemente lembrado, apresenta
características narrativas, estilísticas e temáticas que farão parte de sua autoria como
documentarista. Sherman’s March introduziu propriamente uma carreira que contou com
seis longas-metragens produzidos e lançados desde então, sendo que estes filmes se
remetem de maneiras vívidas aos principais propósitos artísticos de McElwee que
compõem a narrativa lançada em 1986.
A principal particularidade da obra de Ross McElwee, inaugurada em formato
longa-metragem por Sherman’s March, é maneira através da qual o diretor consolidou
uma carreira inteira calcada em narrativas documentárias que apresentam aspectos
autobiográficos e de escrita sobre si bem demarcados. Em uma das sessões de entrevistas
realizadas com McElwee para esta pesquisa, questionou-se se o diretor havia planejado
de alguma maneira consciente, no início de sua carreira, que seus filmes explorassem
tematicamente aspectos de sua vida individual por décadas a fio. McElwee responde
negativamente. Diz que à época da feitura de seu primeiro filme, não teria como saber
que este seria seu métier, mas que agora seria tarde demais para mudar, mesmo que ele
quisesse. A resposta de McElwee parte de um tom cômico, como se o fazer fílmico
autobiográfico no presente momento tenha se tornado mais forte do que sua própria
195
vontade. Mesmo que este não seja exatamente o caso, não é equivocado afirmar que existe
uma relação particular entre a carreira do diretor enquanto documentarista e sua vida
individual que faz com que este questionamento seja passível de reflexão. Se em 2016
McElwee dirigisse e lançasse um documentário que abrisse mão de aspectos de
autorrepresentação e da construção de uma narrativa de teor autobiográfico, é possível
vislumbrar que o ato causaria uma reação tanto de perplexidade quanto, possivelmente,
de desapontamento na comunidade de cinéfilos e pesquisadores que seguem seu trabalho
de perto. Mais do que outras características, o aspecto definidor de sua carreira reside na
maneira através da qual o diretor engajou-se em um trabalho contínuo de tematização
autobiográfica filme-após-filme, em um movimento que dura mais de três décadas. Desde
1984, McElwee nunca realizou um filme em que sua própria figura e/ou eventos de sua
vida individual (em uma esfera social, familiar, de trabalho, matrimonial ou parental) não
tivesse papel preponderante na narrativa. Além disto, o trabalho de construção
autobiográfica nos filmes não se encerra em cada um deles – apesar de assim também
funcionarem. A potencialidade da relação entre vida e filme, no caso de McElwee, reside
no fato de que sua carreira se constrói a partir de um processo autobiográfico contínuo,
que é ampliado a cada filme lançado pelo diretor.
Inicialmente tida como uma abordagem menos pretensiosa, como afirmado pelo
diretor, a atividade de filmar as pessoas próximas de si e eventos importantes no
desenvolvimento de sua vida ocupa parcela significativa de sua adultez. Tomando o
lançamento de Backyard (primeiro filme deste ciclo) como ponto de partida, em 1984
(apesar de filmado ainda em 1977), até o lançamento de seu último filme, Photographic
Memory, em 2011, consideramos que há pelo menos vinte e sete anos os filmes de
McElwee passam por um trabalho de construção autorrepresentativa que traz à arena
pública da tela de cinema aspectos de sua personalidade e eventos de sua vida privada,
bem como das pessoas mais próximas de si, de diferentes maneiras. A partir do material
que o diretor nos oferece em seus filmes, produz-se um tipo de conhecimento que gravita,
em grande parte, ao redor de sua vida como indivíduo que ocupa singularmente o mundo,
da mesma forma que nós também o habitamos. Em seus filmes, McElwee lida
tematicamente com aspectos que apontam para transformações que ocorrem em sua vida
fora das telas, sobrepondo, portanto, a narrativa de sua vida extrafílmica com a narrativa
criada por seus filmes e por sua carreira.
196
De Backyard a Photographic Memory, somos testemunha do início de sua
atividade como artista, um pouco desnorteada, sob os olhos de uma família conservador-
republicana de médicos da Carolina do Norte. Assistimos à sua consolidação como
documentarista, seu matrimônio e o início de sua família, com o nascimento do primeiro
filho. Tomamos ciência da morte repentina de sua mãe, ocorrida ainda antes do início do
interesse do diretor pelo cinema, seguida pela morte também repentina de seu pai, dez
anos depois. Entramos em contato com o afastamento gradual do cineasta de sua terra
natal (a Carolina do Norte e, de maneira mais ampla, do Sul dos Estados Unidos) a partir
do estabelecimento de sua família no “frio e populoso” Norte. Assistimos aos trâmites do
processo de adoção de sua segunda filha, em uma viagem realizada pela família McElwee
ao Paraguai. Testemunhamos o crescimento de seu filho e o consequente distanciamento
entre o diretor e ele, no momento em que este atinge a vida adulta. Finalmente, assistimos
ao momento em que McElwee reconhece seu envelhecimento e a chegada à maturidade.
Em uma sequência de Photographic Memory, filmando em close seu próprio rosto e
examinando-o, McElwee comenta: “Como pude ficar tão velho?”. Cada documentário
lançado pelo realizador, portanto, admite uma análise aprofundada enquanto narrativa
construída através de uma intenção e de uma ótica autobiográfica – em outras palavras,
cada filme apresenta uma narrativa fechada em si própria (com começo, meio e final),
que assim foi pensada pelo diretor. Entretanto, parece impossível não ceder à noção de
que um estudo sobre McElwee e sua carreira requer um olhar que enxergue os filmes
também considerando o forte senso de unidade autoral suscitado por eles. A ideia de um
processo autobiográfico contínuo, ampliado e complexificado em cada um dos filmes
deve ser sustentada. Da mesma forma, existe um jogo delicado com a temporalidade que
engaja o entendimento de seus filmes em uma imbricada teia de passado, presente e futuro
e que deve ser considerado de perto.
Em seus filmes e, consequentemente, ao longo destas três décadas, McElwee nos
reporta que o ato de filmar vai tomando gradualmente uma dimensão mais complexa em
sua vida, de maneira que esta atividade se incorpora à sua experiência de habitar o mundo
dia após dia. Seja a partir do registro de momentos cotidianos, repetíveis e banais, ou da
filmagem de eventos singulares, irrecuperáveis, intensos ou traumáticos, a câmera torna-
se um instrumento sobre qual existe a sensação de que o realizador nunca está totalmente
desvencilhado. Em relação a estes momentos, “trechos de vida”, cristalizados por
McElwee em imagem e som, há o vislumbramento de que eventualmente eles poderão
197
integrar alguma de suas narrativas fílmicas, seja em um futuro próximo ou depois de duas
décadas. O diretor nos mostra em seus filmes que durante estes anos a câmera tornou-se
para si um artefato precioso, podendo com ela lidar com o luto resultante do falecimento
de seu pai e outros entes queridos, em uma tentativa de tornar a morte “palpável” em
celuloide (Time Indefinite), ou mesmo um instrumento ao qual recorre para obter uma
experiência quase narcótica, análogo ao que faz um fumante em relação ao vício do tabaco
(Bright Leaves). Em sua análise sobre a obra de McElwee, o autor Josep María Català
reconhece uma “amargura” sempre presente em seus filmes, de maneira que o diretor se
sente obrigado a contemplar as pessoas e o mundo à sua volta, através da lente da câmera,
mesmo em seus momentos mais íntimos e privados (CATALÀ, 2008, p. 106). Català
sugere: “A câmera que McElwee constantemente carrega consigo parece ser, em algumas
ocasiões, uma penitência que algum deus sombrio impôs sobre ele e que ele se sente
obrigado a cumprir para alcançar algo que continuamente o escapa” (2008, p. 106-107).
Seja pelo prazer narcótico, pela arte ou pelo fardo da representação imposta por um deus
sombrio, portanto, talvez não esteja tão distante da verdade a constatação, realizada pelo
diretor, de que não poderia fazer outro tipo de filme atualmente, mesmo que quisesse.
A jornada autobiográfica de McElwee começa ainda na década de 1970, no
período em que o diretor foi aluno do MIT Film Section, de 1975 a 1977. O cinema não
foi, entretanto, sua primeira escolha de carreira artística. O realizador passou sua infância
e juventude em Charlotte, capital da Carolina do Norte, envolto por uma família de
praticantes da medicina. Tanto seu avô quanto seu pai tinham carreira médica, tradição
que também foi posteriormente seguida por seu irmão mais novo – Backyard, seu
primeiro filme autobiográfico, narra justamente os momentos que antecedem a saída do
irmão do lar da família, rumando à faculdade. McElwee, entretanto, desviou-se do
caminho predestinado e nutriu desde cedo interesse pelo trabalho criativo. Interessou-se
primeiramente pela escrita, tendo a ambição de tornar-se romancista. Este interesse
determinou a escolha de seu curso de ensino superior. Ainda na década de 1960, o
realizador deixa o Sul dos Estados Unidos e muda-se para a região da Nova Inglaterra.
Ingressa no curso de Escrita Criativa (Creative Writing) da universidade Brown
(Providence, RI), onde forma-se com um diploma de Bacharel em 1971.
Na universidade, McElwee desenvolve interesse pela escrita não-ficcional e
começa a manter um diário escrito, prática que o acompanhou mesmo após o término da
faculdade. Em seu documentário de 2011, Photographic Memory, o cineasta nos mostra
198
alguns dos diários de juventude, escritos durante a viagem à França que realizou em um
período sabático e que é o mote temático do filme. A atividade diarística dava vazão ao
impulso autobiográfico e revelou-se de maneira premente em sua obra cinematográfica.
Nesta, evidencia-se o trato de McElwee com a escrita literária, porém na forma de sua
narração em over. Em um dos textos que McElwee escreve a respeito de sua própria obra,
o diretor aponta: “O diário parecia me fornecer, de alguma forma obscura, uma
perspectiva a respeito de minha própria vida e também uma turva validação dos eventos
que a compunham.” (McELWEE, 2005, p. 2)46.
Desde o momento, portanto, para McElwee a validação da “experiência vivida”
estaria vinculada, de alguma forma, à sua transposição em linguagem. O interesse pela
cristalização de momentos vividos e sua transformação em narrativa encontrou terreno
fértil em ferramentas como a câmera e o gravador de som, no cinema documentário e na
forma metodológica do cinema direto. Seu primeiro contato com este tipo de produção
também ocorreu na universidade, em sessões de filmes como Titicut Follies (1968), de
Frederick Wiseman, e Primary (1960), de Robert Drew. McElwee relata a forte impressão
deixada pelos filmes, que trabalhavam com a narrativização da realidade de uma maneira
“simples e rústica” (2005, p.3). A estes filmes aliou-se a experiência que o realizador teve
ao assistir A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), de Orson Welles, na Cinemateca
Francesa. A partir da narrativa sombria e pessimista do filme, McElwee reconheceu o
cinema como forma capaz de transmitir uma voz autoral (neste caso, a de Welles),
conferindo a ele uma sensação totalmente distinta do tipo de cinema Hollywoodiano que
assistia enquanto jovem na Carolina do Norte. Decidido a estudar cinema, o diretor teve
conhecimento (MACDONALD, 2014, p. 149) do curso que estava sendo desenvolvido
no MIT Film Section a partir das entrevistas dadas por Richard Leacock e Ed Pincus na
publicação de G. Roy Levin (LEVIN, 1971), constatando que claramente havia um
experimento interessante acontecendo lá, do qual gostaria de fazer parte.
Como explicitado no capítulo anterior, o MIT Film Section reuniu um grupo de
cineastas e professores que pensavam o desenvolvimento do documentário moderno
46 Este texto partiu de uma publicação escrita por Ross McElwee para a revista Trafic em 1995, em que fala sobre sua formação e sobre seus filmes até o momento. Trata-se de um dos poucos textos, excetuando-se entrevistas, em que McElwee fala sobre sua própria carreira. Em 2005 o diretor escreveu um adendo a este texto original, em que disserta acerca de produções lançadas nos dez anos após a publicação na Trafic. Este novo texto (que contempla os dois momentos) está disponível no website do diretor.
199
estadunidense a partir de inovações metodológicas e tecnológicas, regidos por uma
ideologia pós-1968 que trouxe novas preocupações à produção midiática do período.
Havia por um lado a “ressaca” de um primeiro momento do cinema direto, cuja pretensão
de retratar o mundo narrativamente a partir de uma ótica de objetividade era
vigorosamente questionada. Estudavam-se processos de interação e de autorreflexividade
da figura do cineasta como pontos de apoio da construção narrativa. Ainda assim, o grupo
do MIT Film Section engajava-se diretamente com a tradição do cinema direto
estadunidense e a “Sensação de Estar Lá” apresentada nos filmes de Robert Drew,
Richard Leacock, Ed Pincus e Frederick Wiseman, fomentada a partir de um registro
paciente da realidade e um vínculo indissociável com a captação da tomada imagético-
sonora sincrônica.
As experiências fímicas de McElwee realizadas durante o período do MIT Film
Section remetem a este ínterim conceitual. O cineasta aponta que a produção do
departamento foi uma das principais responsáveis por uma espécie de “contra-
movimento” em relação ao início do cinema direto do qual o próprio Richard Leacock,
um dos tutores do departamento, também participava. McElwee sustenta (McELWEE,
2005, p. 4) que Leacock dava sinais de ter perdido o senso de “aventura” relativo ao
cinema direto. Após muito tempo dedicado a filmar personalidades e eventos importantes
para a História, como John Kennedy e Igor Stravinsky, Leacock estaria neste momento
voltando-se para uma possibilidade mais excêntrica deste tipo de cinema, com o registro
de atividades cotidianas e mais próximas de si próprio, a partir de uma ótica “caseira”.
Neste sentido, McElwee cita ter entrado em contato no período com o filme A Visit to
Monica47, dirigido e filmado por Leacock, uma pequena narrativa desenvolvida a partir
de uma visita que o cineasta fizera à filha de Robert Flaherty, Monica Flaherty, no interior
do estado de Vermont.
Para além de Leacock, a passagem de McElwee pelo MIT foi marcada pelo
contato com outros cineastas que influenciaram suas produções no departamento. O
realizador ressalta a visita de Jean Rouch ao MIT, para exibição de seus filmes (entre eles,
Chronique d’un été), que, ainda em 1960, dava indícios de subverter a ordem de um
cinema etnográfico “observativo”, como era praticado até então (McELWEE, 2005, p. 4).
Houve também o contato com a produção de Alfred Guzzetti, que já lecionava na
47 Aparentemente este filme não foi lançado, visto que não integra a filmografia oficial do diretor.
200
universidade Harvard e a quem McElwee posteriormente se juntaria no corpo docente do
departamento VES. McElwee recorda-se de ter assistido no período ao documentário
Scenes from Childhood48, dirigido por Guzzetti. Como já citado, o filme de Guzzetti é
filmado dominantemente a partir de um recuo observativo da câmera e demonstra rigor
no trato com a paciência para o registro do cotidiano das crianças em seus momentos mais
singulares. O realizador ressalta justamente este tipo de característica, ao sublinhar que o
filme apresentava “atenção e reverência ao detalhe mundano da vida cotidiana. Ele eleva
o mundano a uma condição quase mística” (McELWEE, 2005, p. 5). Jeff Kreines, técnico
do MIT Film Section no período, é outro cineasta cuja influência frequentemente é
ressaltada por McElwee. Kreines, também já citado, é diretor de The Plaint of Steve
Kreines as recorded by his younger brother Jeff (1974) e foi o responsável por
desenvolver a metodologia de captação autossuficiente de imagem e som sincrônicos (que
Ed Pincus aperfeiçoou, escreveu sobre, e denominou “equipe de uma pessoa só”).
Entretanto, o contato com Ed Pincus teria sido decisivo para que McElwee
considerasse trabalhar narrativamente com a ideia de autobiografia aplicada ao cinema
documentário. Ainda que Diaries (1971 – 1976) tenha sido finalizado apenas no início da
década de 1980, ou seja, após Ross McElwee formar-se no MIT, o diretor constata ter
assistido trechos da experiência nas aulas ministradas por Pincus (McELWEE, 2012). O
realizador enxerga em Diaries a ternura no que toca a exploração do cotidiano da família
Pincus como eixo temático em potencial e cuja transposição acontece em uma narrativa
autobiográfica. Muitas das principais preocupações de McElwee enquanto
documentarista estão presentes no diário filmado de Pincus: a revelação do cotidiano
familiar como uma experiência complexa e transcendente, um gosto pela análise de
relações geracionais, como da relação entre pais e filhos, o apreço pela tematização da
passagem do tempo como ponto temático forte, e, finalmente, a metodologia do cinema
direto de uma-pessoa-só para o registro imagético-sonoro sincrônico aplicado a uma ótica
de autobiografia fílmica.
48 Em seu relato, McElwee aponta que teria assistido ao filme de Guzzetti em seu primeiro ano de MIT, isto é, em 1975. Ao que consta, Scenes from Childhood não teria sido lançado por Guzzeti até 1979. 1975 é a data do lançamento de seu primeiro filme autobiográfico, Family Portrait Sittings. Este trecho do relato de McElwee foi escrito à ocasião de um pedido da revista francesa Trafic em 1995. Como trata-se de um escrito em retrospecto, de lembrança, resta a dúvida se o diretor teria porventura cometido um lapso ao asserir que assistiu ao filme de Guzzetti ainda em 1975.
201
Apesar de todas estas características, McElwee relata que assistir ao filme de
Pincus instigava o desejo de poder ter acesso aos sentimentos interiores de seu criador,
suas meditações e reflexões a respeito dos eventos pelos quais passava e que estava
filmando (McELWEE, 2005, p.5). O cinema direto, conforme mostra a experiência de
Pincus, seria uma ferramenta poderosa no que diz respeito à possibilidade de escrever
autobiografia “no momento presente”: ser/estar e, ao mesmo tempo, registrar
cinematograficamente o que os olhos veem e os ouvidos escutam. Pincus aposta na
interação de si próprio com seus pares, no momento da tomada, como uma via de acesso
à interioridade de sua consciência no momento presente da filmagem – mais como um
ser em sua atividade dialógica em uma situação mundana e menos como um ser em sua
atividade de expertise intelectual. Para McElwee, a peça faltante residia em uma maneira
de expressar narrativamente este aspecto “interior”, reflexivo e analítico, de modo tão
instigante quanto a metodologia do cinema direto possibilitou o registro exterior de sua
vida. Em Backyard, que pode ser considerado o primeiro filme de sua carreira
autobiográfica, o cineasta realizou a primeira experiência com a voz over como via de
acesso a este outro registro de performance autobiográfica. Nas palavras de McElwee:
Filmar a realidade tão cruamente, sem a mediação do acesso às
reflexões do cineasta a respeito daquilo que está sendo filmado, tinha o
resultado de objetificar uma experiência pessoal que naturalmente
aparentava almejar uma interpretação subjetiva. Para mim, teria de
haver uma maneira em que a presença objetificante da câmera poderia
ser fundida com a perspectiva subjetiva do cineasta que a segura. O
“auto” por detrás da autobiografia tinha de ser encarnado. Tinha de sair
de seu esconderijo. (McELWEE, 2005. Tradução Nossa.)
Com efeito, McElwee fez da voz over um pilar narrativo de sua carreira
autobiográfica, lançando mão deste elemento em todos os seus filmes a partir de
Backyard. Parte significativa do estilo pelo qual se tornou reconhecido reside no trabalho
com o “texto” que os filmes do diretor engajam. O cineasta narra seus filmes a partir de
uma fluida escrita em primeira pessoa, permeado por um tom meditativo, no qual lança
seus questionamentos em relação ao eixo temático particular de cada um dos filmes. Se a
metodologia de filmagem proposta por McElwee em seus filmes evoca uma sensação de
indeterminação e de abertura para o acaso, sua narração em over tem exatamente o efeito
inverso. Há um esforço meticuloso no qual trabalha palavras, tempos e frases em suas
narrações. Em diversas de suas entrevistas o diretor afirma que a escrita da narração em
202
over é o trabalho mais exaustivo de seu processo criativo, tendo de passar por inúmeras
provas e revisões antes de sua aprovação e finalização. A importância da narração em
over de seus filmes é grande, sendo difícil delimitar exatamente sua função em cada uma
das narrativas. É possível sugerir que os filmes do diretor se tornam seus a partir de um
vínculo indissociável, orgânico, desta característica em relação ao estilo que desenvolveu.
Um dos aspectos mais interessantes da voz de McElwee é o contorno
autoquestionador, interrogativo, no qual o diretor promove o benefício da dúvida acerca
tanto de aspectos de sua vida individual quanto da própria construção cinematográfica a
que estamos assistindo. Há um movimento entre o interior e o exterior, encadeado pelo
fluxo de pensamentos de McElwee e construído cinematograficamente, que alguns
autores reconhecem a partir de um movimento “ensaístico”. Um deles é o autor Alberto
Nahúm García, que sublinha:
Todas as divagações de McElwee são entrelaçadas com suas dúvidas,
suposições e repetições, de uma maneira em que somos apresentados a
uma argumentação que está sendo feita e corrigida diante da câmera ao
mesmo tempo em que o autor o apresenta. Trata-se da característica de
transparência de qualquer ensaio, onde o enunciador coexiste junto a
seu texto. (GARCÍA, 2008, p.76. Tradução Nossa.)
Em outras palavras, nos filmes de McElwee há um processo constante de
apresentação da trilha de seu pensamento em relação a algo que, no limite, ele mesmo
está tentando descobrir. Não é incomum nos filmes do diretor que o texto de sua voz over
apresente expressões vacilantes como “eu não sei exatamente, mas” ou “não tenho
certeza”. Efetivamente, é possível ver em seus filmes uma abertura, ou explicitação, do
próprio processo de aprendizado acerca de determinado assunto. Para o autor Phillip
Lopate, que também enxerga no diretor a “alma” dos ensaístas, este estilo literário rastreia
os pensamentos de uma pessoa à medida em que esta tenta desatar um “nó mental”, ou,
mais precisamente, um ensaio é “uma busca a fim de que se descubra o que uma pessoa
pensa sobre algo” (LOPATE, 1996, p.245). A sensação de fluidez evocada pela fala em
primeira pessoa do diretor engaja também um aspecto de “livre associação” na qual a
individualidade analítica, pensante, de McElwee é pivô. A autora Dominique Bluher
(2008, p. 142) assere que McElwee seria um dos partidários da “montagem horizontal”,
termo cunhado por Andre Bazin em relação à montagem de Chris Marker em Carta da
203
Sibéria (1958), que funcionaria “do ouvido para o olho”, da fala para a imagem. Com
efeito, McElwee expressa em inúmeras entrevistas a influência que o trabalho de Marker
– em especial, Sans Soleil – teve em seus filmes. Sua aproximação com o universo francês
do fazer cinematográfico traz algum balanço à tradição vérité estadunidense com a qual
McElwee igualmente se relaciona. Em uma entrevista, o realizador menciona Dominique
Cabrera, Agnès Varda, Alain Cavalier e Claire Simon como os cineastas franceses que
ele “particularmente gosta” (BUI, 2014). A autora Diane Stevenson assere que McElwee
“é, de fato, um escritor”, estendendo a noção de “escrita” em sua obra não apenas ao trato
com a palavra em si, mas a um sentido semelhante ao da “montagem horizontal” sugerido
por Dominique Bluher: “a escrita é precisa e também elegante – não apenas a escrita da
narração em over, mas o arranjo das coisas em sequência, que também é uma espécie de
escrita” (STEVENSON, 2009. p. 66).
É, de fato, interessante a relação que se faz entre o sistema simbólico das palavras,
no que diz respeito à importância deste raciocínio na construção narrativa de McElwee.
O esforço do diretor com este universo criativo, o da “escrita”, apresenta-se como parte
fundamental da “cola” que liga as imagens do cineasta ao entendimento de que estamos
diante sua individualidade ao assistir aos filmes. A cineasta francesa Claire Simon ressalta
este ponto de vista, asserindo que McElwee “é o único romancista no universo do cinema.
Ele vem filmando por tanto tempo que ele pode ir para o passado, pode ir para o presente
e talvez possa ir para o futuro. Ele tem todos os tempos (tenses) que um romancista tem
e que um cineasta não tem.” (DU GRAF, 2017). A relação de McElwee com o universo
da escrita mais frequentemente apontada é a comparação feita de si com Michel de
Montaigne, cujos Ensaios introduzem propriamente esta noção literária, ainda no século
XVI. Alberto Nahúm Garcia sustenta que “O espelho intelectual de McElwee poderia ser
um ensaio de Montaigne transformado em imagens” (2008, p. 72). Phillip Lopate sugere
que “McElwee chega à mesma consciência libertadora que também tinha o grande
Montaigne: a saber, tudo está conectado entre si, se de nenhuma outra maneira, então a
partir da mente do ensaísta” (LOPATE, 2003). Charles Warren coloca que “ao ler
Montaigne ou, para mim, ao assistir um filme de McElwee, entra-se não em um mundo
de fuga, mas abre-se para uma sequencia de surpresas puramente deliciosas” (WARREN,
2009, p. 92). Timothy Corrigan aponta que “para ensaístas como McElwee, o cinema é
parte das histórias públicas e dos lugares sociais, em que a questão final retorna como
uma questão a ser pensada” (CORRIGAN, 2015, p. 32-33) Corrigan compara uma cena
204
ao final de Bright Leaves, com uma passagem do escritor francês: “Como a libertação do
peixe pelo filho e o diálogo imaginário de Montaigne com Étienne de la Boétie, o eu
ensaístico invariavelmente é desfeito em um mundo em expansão de reflexão contínua e
mutante” (CORRIGAN, 2015, p. 33). Para Dominique Bluher, “como Montaigne,
McElwee é o material de seus filmes, tanto sujeito quanto objeto de conhecimento”
(BLUHER, 2008, p. 148). O extrato mais fundamental das comparações de McElwee com
Michel de Montaigne parece residir na maneira através da qual ambos transitam entre o
simples e o complexo, o privado e o público, o particular e o univesal, e o individual e o
coletivo a partir de uma perspectiva narrativa que reconhecemos como própria à expertise
intelectual dos escritores. É interessante o consenso dos críticos, ao enxergar que
McElwee nos apresenta o pêndulo entre interior e exterior de maneira fluida e satisfatória,
tal como faz Montaigne e tantos outros bons escritores de não-ficção – sejam eles
reconhecidos como ensaístas ou autobiógrafos – cujas obras contemplam ambos os
aspectos.
Há ainda outros elementos cujas recorrências sublinham a necessidade de
olharmos para a carreira de McElwee de maneira longitudinal. Um dos elementos
explorados pelo diretor e que é frequentemente remetido à sua obra artística é a relação
estabelecida com o Sul dos Estados Unidos, tanto de uma maneira temática quanto
narrativa. Mais do que apenas uma divisão geográfica, compreende-se que o “Sul” dos
Estados Unidos (“American South”, “The South”) é um território marcado pelos
costumes, cultura, culinária, relações sociais e uma história particulares dentro do
território estadunidense. Ou, ao menos, diferente o suficiente da “elite” cultural,
intelectual e política – o “berço” da democracia - relacionada à região da Nova Inglaterra
(Connecticut, Maine, Massachusetts, New Hampshire, Rhode Island e Vermont), no
Nordeste nos Estados Unidos, onde McElwee passa a residir permanentemente desde o
início de seus estudos universitários, no final da década de 1960.
Explorar o Sul e o imaginário relativo a ele é parte fundamental dos filmes do
cineasta, em diferentes níveis. Na introdução de Backyard, primeiro de seus filmes
realizados sob uma ótica propriamente autobiográfica, o diretor afirma na narração em
over: “Peguei emprestado uma câmera e voltei para casa, a fim de fazer um filme sobre o
Sul. O que, para mim, significava fazer um filme sobre minha família.”. Em 1977,
McElwee terminou o mestrado no MIT Film Section e entregou como dissertação um
relatório a respeito dos três documentários que filmou durante o curso – Charleen
205
(lançado em 1979), Space Coast (1980) e o citado Backyard. Os três filmes têm em
comum o fato de terem sido filmados no Sul, ao que constata McElwee: “Os três filmes
refletem meu desejo de retornar eventualmente para o Sul, onde eu continuarei a filmar.”
(McELWEE, 1977. p. 4).
McElwee efetivamente realizou aquilo que se propôs ainda no início de sua
carreira, visto que a maior parte de seus filmes tematizam a necessidade do diretor de
periodicamente estar presente, fisicamente, de volta ao Sul, seja no estado da Carolina do
Norte ou em outras localidades. A maior parte de suas narrativas orientam-se localmente
pela região, seja como ponto de origem, de chegada ou de passagem. O Sul é o local onde
passou sua infância, adolescência e início de sua vida adulta, bem como estabeleceu boa
parte de suas relações familiares e a partir de onde desenvolveu seu ponto de vista sobre
diversos assuntos. Backyard tematiza as relações cotidianas do lar dos McElwee, em
Charlotte, e aquilo que se passa ao redor da casa. Sherman’s March constitui-se como
uma jornada por localidades devastadas pela Guerra Civil em diversos estados do Sul,
realizando um panorama de diversos aspectos de sua sociedade contemporânea. Time
Indefinite propõe diversas voltas ao Sul em um período de sete anos da vida de McElwee,
marcado por episódios emocionalmente turbulentos. Bright Leaves inicia sua narrativa a
partir da necessidade do diretor de sua “transfusão periódica de ‘Sulice’”, desdobrando-
se em uma ida à Carolina do Norte e ao desenvolvimento de um paralelo entre a economia
do tabaco e a história de sua família.
Para além da possibilidade de retratar imageticamente espaços e paisagens do Sul,
bem como o comportamento de alguns de seus habitantes, através de imagens e sons, as
narrativas cinematográficas de McElwee buscam tocar em pontos temáticos
determinantes da História e cultura sulistas. O exemplo máximo destes pontos é a Guerra
Civil americana, cujos desdobramentos e heranças para o território e seus habitantes são
explorados em diversas de suas nuances na narrativa de Sherman’s March. A Guerra Civil
teve poder definidor no que diz respeito à identidade da população e de sua relação com
o território, sendo uma das temáticas mais recorrentes de sua literatura e dos autores do
Sul desde o século XIX até a contemporaneidade. Segundo o historiador e novelista
sulista Shelby Foote, “A Guerra Civil nos definiu como aquilo que somos (...) e nos abriu
para aquilo que nos tornamos – coisas boas e ruins... Foi a encruzilhada do nosso ser”
(apud RUST, 2002, p. 155).
206
Desde a questão da escravidão – como principal deflagradora do processo de
tentativa de separação dos estados Confederados e, subsequentemente, da Guerra Civil –
até a segregação racial observada nos estados e, posteriormente, o movimento pelos
Direitos Civis na segunda metade do século XX, as complexas relações em diferentes
épocas entre negros e brancos no Sul estadunidense também é um tópico dominante do
imaginário sulista e parte integrante de sua cultura, sobretudo na literatura, tanto no
domínio do romance quanto da não-ficção. Este é outro exemplo de tema relativo à
história do Sul que é trabalhado por McElwee em diversos de seus filmes. A reflexão está
imbuída na narrativa de Sherman’s March ou, em um nível mais próximo de sua própria
vida, na relação de trabalho estabelecida pelo casal Melvin e Lucille – empregados por
muitas décadas no lar dos McElwee, sobre quem o diretor reflete primeiramente em
Backyard mas que reaparecem em vários outros de seus filmes. A cultura de tabaco
própria da Carolina do Norte e de outros estados do Sul é tematizada como aspecto
econômico do território em Bright Leaves, de cuja história a própria família McElwee
teria feito parte, ainda no século XIX. Outro exemplo é uma certa tendência sulista ao
conservadorismo, retratada por McElwee nos filmes tanto em uma dimensão política
(como quando diante do republicanismo de seu pai, ou ao isolacionismo redneck dos
sobrevivencialistas em Sherman’s March), quanto em um elo forte entre o Sul e a
religiosidade católica ou protestante, também tematizada pelo diretor em diversos de seus
filmes.
A exploração temática do território vai desde o resgate de fatos históricos, de suas
práticas econômicas e de costumes, mas também no que concerne o imaginário dos
comportamentos (estereótipos) com os quais os habitantes do Sul são frequentemente
relacionados. Um destes exemplos é o certo estereótipo macho que entrecorta asua
jornada em Sherman’s March. Para além disto, entretanto, o desejo de McElwee de filmar
narrativas total ou parcialmente a respeito do Sul – e, também, a partir de sua própria
condição de “sulista” – diz respeito à sua identificação com uma abrangente tradição
literária de autores advindos do território, a “Southern Literature”. Especialmente no
século XX, do modernismo da Southern Renaissance ao presente, escritores com carreiras
relevantes e de forte veia autoral foram relacionados a este fenômeno, como William
Faulkner, Allen Tate, Thomas Wolfe, Flannery O’Connor, Tennessee Williams, Eudora
Welty e Walker Percy. Estes autores frequentemente utilizam-se do Sul em diferentes
nuances, como as que mencionamos acima, nas suas estórias, mas também foram
207
responsáveis por aglutinar elementos estilísticos e narrativos que um olhar externo (como
do “Norte”) reconhece como próprio da região – uma espécie de Southern Storytelling de
cuja fonte McElwee bebeu e a que seus filmes também são por vezes relacionados.
O imaginário acerca da literatura sulista é um ponto de referência nos filmes do
diretor. Neste sentido, um dos pontos mais evidentes entre a noção de Southern
Storytelling e a carreira de McElwee é a maneira através da qual o diretor trabalha a noção
de humor nas narrativas. Como aponta M. Thomas Inge, alguns dos aspectos principais
do humor na literatura moderna sulista envolvem a construção de narrativas anedóticas a
respeito da experiência sulista, não sem um tom de absurdo, transformando-as em fábulas
que refletem sobre os fracassos e desilusões da natureza humana em sua forma mais
adversa. Segundo o autor para estes novelistas a cultura sulista “serve em suas mãos como
um paradigma para a absurdez da vida em todos os cantos da nação – exceto pelo fato de
que em sua versão sulista, ela se depara com o riso ao invés de com o desespero. ” (INGE,
2002. p. 361).
Com efeito, há um elemento jocoso que perpassa a maioria dos filmes de
McElwee, principalmente no que concerne a construção de sua própria persona com um
aspecto evidente de quixotismo e de auto-depreciação. É o caso de sua apresentação como
um jovem artista que ainda não encontrou o sucesso, em Backyard, frente às investidas
contrárias de seu pai conservador. Ou a própria jornada absurda de McElwee pelo Sul em
Sherman’s March, que envolve uma alegoria delirante entre si próprio e o general
Sherman, bem como o encontro casual com um sósia de Burt Reynolds (e o próprio ator,
posteriormente), símbolo da masculinidade sulista, que é anteposta a seus fracassos
amorosos. Em outra faceta desta característa há a crença infundada de que seu bisavô teria
sido a inspiração para o papel de Gary Cooper em um filme hollywoodiano, como vemos
em Bright Leaves, que é o combustível existencial da jornada de McElwee na narrativa.
Finalmente, ainda, há os diversos momentos em que as coisas simplesmente “dão errado”
em seus filmes, tanto em um nível técnico quanto narrativo. De certa maneira, portanto,
o aspecto anedótico que é relacionado ao humor sulista parece transpor-se à maneira que
McElwee apresenta a si próprio ao longo dos filmes, também evidenciando uma
aproximação sua com a produção de seu território natal.
As características aqui destacadas revelam-se como algumas das possibilidades de
estudos aprofundados que poderiam ser conduzidos em relação aos filmes de McElwee.
O foco das análises desta pesquisa concentra-se na maneira através da qual o realizador
208
constrói a noção de autobiografia em seus filmes. Engajando aspectos estilísticos e
temáticos, o objetivo é o de expor como esta noção complica-se em sua carreira, a partir
de sua consideração contínua, engajada a cada filme lançado. A temporalidade desta
característica apresenta-se como um dos aspectos mais particulares da proposta
autobiográfica dos filmes do diretor. A apresentação dos filmes de maneira cronológica,
nas análises, revelou-se como a melhor possibilidade de contemplar a evolução da
construção autobiográfica de sua carreira. Buscamos evidenciar como este aspecto torna-
se mais complexo com o lançamento de cada um dos filmes, emulando também seus
desdobramentos nos filmes posteriores.
209
3.2. Do Cinema Direto à Autobiografia: Space Coast (1979), Charleen (1979) e
Backyard (1984)
A jornada autobiográfica de McElwee inicia em sua passagem pelo MIT Film
Section. Seus primeiros filmes foram realizados a partir da “cartilha” do departamento,
inserindo-se como estudos da metodologia do cinema direto. Durante o período no MIT,
McElwee pôde filmar material para três de seus primeiros documentários, Space Coast,
Charleen e Backyard. A condição de aluno regular do MIT permitia-o um acesso
facilitado ao equipamento de filmagem que julgava não poder custear após o término do
curso. Por este motivo, McElwee aponta sua “paranoia” (MACDONALD, 1988) em
filmar o máximo que podia durante o período, para diferentes projetos, com a esperança
de editá-los posteriormente.
Um destes projetos é Space Coast, finalizado após a formatura de McElwee no
departamento, realizado juntamente com o aluno/cineasta Michel Negroponte, que
colabora com realizador também em Charleen. Trata-se de um registro vérité de três
residentes do Cabo Canaveral, na Flórida, conhecido pelas bases espaciais que operavam
na localidade, dez anos após o lançamento do Apolo XI. No filme, McElwee trabalha
com personalidades excêntricas de um lugar cuja popularidade estava em declínio. É o
único dos três primeiros filmes em que não existem apontamentos que podem ser feitos
em relação ao emprego de processos autorreflexivos da parte do diretor.
Charleen é o primeiro documentário finalizado por McElwee. Foi entregue como
parte do trabalho de conclusão de curso do MIT e sobre cujas filmagens o diretor escreve
um detalhado memorial em sua dissertação. Charleen não se trata de um filme
autobiográfico per se, como reconhecido por ele próprio (McELWEE, 2005, p. 6), mas
traz aspectos que dialogam com seus filmes posteriores e que fazem com que possa ser
considerado neste sentido. O mais evidente deles gira em torno da temática escolhida por
McElwee para seu primeiro documentário. Charleen tem como principal personagem a
ex-professora e poeta Charleen Swansea, que lecionou poesia para o diretor durante o
período do colegial, na cidade de Charlotte, onde continuara a viver e trabalhar.
A partir deste filme, Charleen e McElwee realizaram uma duradoura parceria.
Ainda mais do que sua própria família, Charleen é a figura mais recorrente nos filmes do
diretor. A professora também figurará em Sherman’s March (1986), Time Indefinite
210
(1993), Six O’Clock News (1996) e Bright Leaves (2004). Charleen consiste em uma
espécie de musa, mentora ou psicóloga – dependendo da situação – para McElwee, a
quem o diretor recorre no desenvolvimento de cada nova empreitada e em quem deposita
grande parcela de confiança. O autor Josep María Català (2008, p. 104), sugere que o
realizador busca em Charleen uma substituição da figura materna. A mãe do diretor,
morta prematuramente, é um ponto de reflexão primeiramente abordado em Backyard e
que figura em vários de seus filmes. Já Charleen funciona como cupido e conselheira
amorosa do diretor em Sherman’s March, ambos dividem a experiência do luto em Time
Indefinite, partilham um sentimento de fragilidade em relação à imprevisibilidade do
mundo em Six O’Clock News e testemunham a relação complexa entre a cultura do tabaco
e a região da Carolina do Norte em Bright Leaves. Quatorze anos mais velha do que o
realizador, assistimos à maturação de ambos ao longo das décadas e através de seus
filmes. Nos documentários, Charleen e McElwee estabelecem uma relação dialógica,
regida pelo laço afetivo entre os dois e que se torna um ponto potencial de identificação
dos espectadores. Em um procedimento inaugurado por sua performance carismática em
relação ao diretor em Sherman’s March, Charleen apresenta-se como um veículo de
entrada em relação a traços da personalidade de McElwee expressados por alguém que
não seja ele próprio. São muitas as situações em que Charleen realiza comentários,
frequentemente críticos e/ou jocosos, que se revelam como juízos de valor da vida do
realizador e de suas escolhas pessoais.
Figura 30: Charleen Swansea ensina poesia para alunos do ensino médio em Charleen
(1979)
211
A relação entre o realizador e a professora, entretanto, não é o ponto de apoio
temático de Charleen, o filme. A única informação explícita em relação à proximidade
entre ambos acontece nos letreiros iniciais, em que um texto em primeira pessoa informa-
nos que o diretor teve aulas com a personagem durante o colegial e que são “bons
amigos”. O filme narra aspectos da vida cotidiana de Charleen no que concerne seu
trabalho como professora de literatura na cidade de Charlotte, mas também aborda
detalhes de sua vida privada e amorosa. Assistimos a sua performance como professora
de jovens de ensino médio, estimulando o acesso à fala em público e à criação poética.
Tanto nas interações de Charleen com os alunos em sala de aula, quanto nas situações em
que a acompanhamos em ambientes extraclasse, subjaz a Charleen uma tematização das
relações entre negros e brancos no Sul dos Estados Unidos. McElwee aponta que
Charleen, como catalizadora destas interações, confronta o senso de racismo dos brancos
sulistas, assim como o senso de separação vivido pelos negros, porém não politicamente
e, sim, “pelo bem da arte” (MACDONALD, 1988). McElwee explica que Charleen “faz
com que as pessoas se exteriorizem, confrontando-as com suas próprias inseguranças
raciais – e no Sul, essas inseguranças são desenfreadas tanto negros quanto para brancos.”
(MACDONALD, 1988). Inaugurado em Charleen, o tema das relações raciais no Sul dos
Estados Unidos é um ponto de constante recorrência nos filmes do realizador, sendo
evocado de diferentes maneiras.
Ainda que o documentário seja dominantemente filmado a partir de uma ótica
vérité de recuo da câmera, a proximidade entre McElwee e Charleen é explicitada a partir
da narrativização de aspectos íntimos da vida da personagem. É o caso de algumas
discussões entre Charleen e o namorado Jim – cujo suicídio será tematizado
posteriormente em Time Indefinite – e uma longa sequência final, em que Charleen realiza
um depoimento auto avaliativo em relação à sua vida pessoal e amorosa diante de uma
traição recém-descoberta. Mesmo que abrindo mão de uma interação explícita com a
personagem, a relação próxima preestabelecida entre o diretor e a professora foi
determinante para que sua câmera se apresentasse como um “canal para que o público
perscrutasse a alma de Charleen” (McELWEE, 2005, p. 6).
212
Figura 31: Charleen fala para a câmera de McElwee em Charleen (1979)
A exploração de uma ótica decididamente autobiográfica é iniciada no média-
metragem Backyard, filmado por McElwee durante a passagem pelo MIT Film Section
na década de 1970, mas finalizado apenas em 1984. Em Backyard, assim como em Space
Coast e Charleen, o diretor dá continuidade ao desejo de retornar periodicamente ao Sul
dos Estados Unidos e filmar na região. Nesta vez, entretanto, como McElwee aponta
durante a narrativa, “filmar o Sul” significaria fazer um filme sobre sua própria família.
Backyard foi pensado inicialmente como um documentário que lidaria com o elo entre o
pai e o irmão de McElwee, nos dias que antecediam sua saída do lar para a faculdade de
medicina. O filme acaba tendo uma exploração temática ampliada, ao deter-se na análise
da relação existente entre as pessoas que habitavam a casa naquele momento específico:
a família McElwee (ele próprio, pai, irmão, madrasta) e trabalhadores empregados no lar,
entre eles a cozinheira Lucille e o jardineiro Melvin.
A abordagem autobiográfica passa a ocupar um papel central na narrativa. No
filme, o realizador reflete acerca do estranhamento existente entre ele próprio e o resto de
sua família naquele momento, também marcado pela morte recente de sua mãe. Backyard
engaja, como em Charleen, a macrotemática das relações raciais entre negros e brancos
no Sul dos Estados Unidos, porém, neste caso, no que diz respeito à relação entre patrões
e empregados, utilizando-se de seu próprio universo doméstico para um olhar mais
demorado sobre o assunto. A importância de Backyard para o projeto autobiográfico de
McElwee como todo reside no fato de que o filme se consolida como “marco zero” deste
213
procedimento, ao redor do qual uma rede de relações começa a ser tecida em cada um de
seus próximos lançamentos. No filme, McElwee oferece alguns dos principais alicerces
de sua carreira autobiográfica, compostos de fragmentos da construção da persona
autorrepresentativa que continua a ser elaborada em outros filmes, quanto de episódios
marcantes de sua vida pessoal sobre os quais se voltará recorrentemente.
Abordagem que será popularizada em Sherman’s March, McElwee apresenta-se
em Backyard a partir de um humor de tons autodepreciativos, sublinhando aspectos da
“estética do fracasso”. A partir do questionamento de si próprio e de seus dotes artísticos
– em uma execução desafinada de Beethoven ao piano, em relação à câmera que quebra
recorrentemente frente à imponência de seu pai, ou no que diz respeito ao senso geral de
incomunicabilidade entre McElwee e as pessoas que fazem parte de seu cotidiano – o
diretor constrói os primeiros traços de certo quixotismo que permeará sua obra. McElwee
mostra a si próprio como uma espécie de herói desajeitado, perambulando pelo mundo
com uma inseparável câmera sem saber muito bem o que fazer com ela, a não ser filmar
a fracassada tentativa de habitar o mundo como uma pessoa “qualquer”. Esta comicidade
anedótica, com requintes de caricatura, exagero e absurdez, relaciona-se, como citado,
com o humor sulista ao qual McElwee começa a se referenciar.
Em Backyard, McElwee apresenta episódios de sua vida pessoal e familiar que
serão pedras fundantes em sua carreira. Por meio do filme, o realizador informa que aos
dezoito anos deixou sua casa na Carolina do Norte. Deste momento em diante, qualquer
tentativa de entendimento entre ele e o pai, nascido e criado no Sul, médico-cirurgião e
republicano conservador, resultou em fracasso. Diante de certa indecisão sobre o destino
profissional do filho, que diz interessar-se por Cinema – mas que pensa em alternativas
como as de trabalhar com o registro de eleitores negros no Sul (“Black Voter
Registration”), envolver-se com os movimentos de paz ou ingressar em um monastério
budista – o patriarca decide pela “resignação” de suas preocupações para com McElwee.
O desconforto em relação à identidade territorial será um mote recorrente na carreira do
diretor. McElwee tem forte ligação com os costumes, cultura e comportamento da
Carolina do Norte e do território do Sul, de maneira geral, porém decide-se ainda jovem
por deixar a região e habitar no “frio e populoso Norte”, configurando uma espécie de
identidade exílica, deslocada, que se configura como ponto de reflexão. No caso de
Backyard, isto contribui para o sentimento do diretor como uma espécie de “ovelha
negra” dentro da família. Sua opção em seguir uma carreira artística inserido no universo
214
acadêmico da elite intelectual dos EUA, na região da Nova Inglaterra e em suas
universidades, berço da democracia progressista-liberal, é vista como contraste, senão
afronta, à família republicana-conservadora dos McElwee simbolizada pelo seu pai,
cirurgião. A sensação de deslocamento parece se agravar com a ida de seu irmão para a
faculdade de medicina, optando por seguir os passos do pai e embarcando em uma jornada
que inspira mais segurança e menos excentricidade se comparada à de um documentarista
independente.
Figura 32: McElwee posa ao lado de seu pai em fotografia apresentada no início de
Backyard (1984)
A metodologia de filmagem de Backyard acompanha outras experiências de
documentário autobiográfico do MIT Film Section. Trata-se do primeiro filme em que
McElwee incorpora a si próprio em uma “equipe de uma pessoa só”, incumbido do
registro imagético-sonoro sincrônico que perpetuará em todos seus filmes. No filme, o
diretor sublinha a possibilidade do registro imagético/sonoro de cristalizar interações
dialógicas, gestos e reações que traduzissem a relação delicada entre si próprio, sua
família e os empregados de sua casa naquela circunstância específica. A relativa
instabilidade emocional e afetiva entre o diretor e sua família no momento, mais
especialmente com seu pai, transpira nas tomadas captadas por McElwee em seu ambiente
doméstico ou em situações ao redor. Uma destas situações, de ordem figurada, consiste
215
na maneira em que a câmera do realizador parece apresentar defeitos técnicos quando
tenta filmar seu pai. Isto acontece em alguns momentos de Backyard, como quando
McElwee registra o pai operando em um centro cirúrgico – a película “enrosca” no chassi
da câmera –, e torna-se uma metáfora da relação instável entre ambos naquele momento,
que o diretor rememora em diversos de seus filmes posteriores. Sua obra pressupõe a
utilização de sequências de filmes anteriores como via de lembrança e reavaliação de
algumas passagens de sua vida. Em Backyard instaura-se o “marco zero” temporal, o
ponto de partida, deste procedimento, sendo que o filme apresenta trechos que se tornam
recorrentes em sua carreira. Um dos mais importantes destes é a cena em que o pai volta-
se para McElwee depois de terminar uma conversa telefônica e diz que apenas ficará
satisfeito “quando esse olho grande (a lente da câmera) desaparecer” (“I’ll be glad when
the big eye is gone.”). A sequência, que demonstra o descrédito ou a desconfiança do pai
em relação à aspiração cinematográfica de McElwee naquele momento, será rememorada
em outros de seus filmes como Time Indefinite (1993) e Photographic Memory (2011),
sob contextos modificados pela passagem do tempo.
McElwee utiliza-se de Backyard como uma maneira de experimentar pela
primeira vez a narração em voz over em primeira pessoa, apresentando um contraponto
ao estilo vérité que emerge de seu tête-à-tête com as pessoas que fazem parte de seu
cotidiano doméstico. Através desse tipo de narração, o diretor almejava estabelecer um
canal de acesso às sensações ou pensamentos condizentes com seu estado de espírito no
momento da filmagem, bem como uma maneira de estabelecer comentários analíticos ou
(auto)questionadores, que julgava que o trabalho metodológico vérité não conseguia
cumprir. Em outras palavras, o realizador pressupunha com este procedimento uma
maneira de arrojar à narrativa autobiográfica reflexões de densidade intelectual que
dificilmente emergem à “superfície da consciência” em um momento de interação
cotidiana. Note-se, por exemplo, a conotação dada por McElwee em relação ao esforço
dispendido para a elaboração do texto em over, realizado “meticulosamente”
(“escrupulosamente”, painstakingly), “com muitas e muitas revisões” (MACDONALD,
1988). Logicamente, este procedimento, cuja ausência é detectada por McElwee em
filmes como os Diaries de Ed Pincus, contribui para o desenvolvimento dos traços de sua
persona autobiográfica de maneira mais adensada se em comparação a um modus
operandi puramente vérité. O procedimento, que também aproxima seu interesse pela
escrita literária não-ficcional, fez com que Backyard consistisse em um rascunho para
216
Sherman’s March, um “experimento sobre como poderia abordar o filme maior”, segundo
o próprio diretor (MACDONALD, 1988). O aspecto de “preparação” de um filme em
relação ao outro também reside no fato de que Backyard, embora filmado entre 1975 e
1977, foi finalizado apenas em 1984, já no período de montagem de Sherman’s March –
que levou cinco anos para ser editado e foi lançado em 1986 (McELWEE, 2005, p. 17).
Figura 33: “Ficarei satisfeito quando esse olho grande desaparecer” diz o pai para o
cineasta em Backyard (1984)
217
3.3. Sherman’s March (1986): a Guerra de Secessão dentro de si
Até hoje o mais conhecido de seus filmes, Sherman’s March consolidou
propriamente a estilística esboçada por McElwee em Backyard. Meticuloso na concepção
de sua estrutura narrativa, o filme oferece uma gama de interpretações em relação ao seu
estatuto autobiográfico. Construído a partir da ênfase da figura do cineasta McElwee
como protagonista, e através de diversos processos de autorreflexão, Sherman’s March
apresenta um movimento pendular entre aspectos narrativos que “transbordam” a vida de
McElwee enquanto indivíduo que ocupa o mundo “fora das telas”, e a potencialização de
certa persona autorrepresentativa construída dentro da empreitada que está sendo
proposta. Sherman’s March narra uma jornada de McElwee pelo Sul dos Estados Unidos,
na qual o realizador desenvolve reflexões sobre o legado da Guerra Civil estadunidense
nos territórios devastados pela guerra, provê uma tentativa de estabelecer um relato
biográfico do general ianque responsável pela destruição, William Tecumseh Sherman,
tematiza o temor por uma catástrofe nuclear iminente em plena corrida armamentista e
mostra a busca frustrada do protagonista pela possibilidade de estabelecer um novo
relacionamento amoroso, após uma separação dolorosa. A empreitada do personagem
McElwee, ao longo de semanas a fio, milhares de quilômetros rodados e mais de duas
horas e meia de filme, é tomada por uma comicidade com requintes de absurdez. Esta
comicidade suscita ponderações acerca dos artifícios de fabulação empregados para o
efeito jocoso que predomina na narrativa. Entretanto, a potencialização da citada “estética
do fracasso”, que permeava Backyard e que aqui se desenvolve plenamente, bem como a
autopersonificação de McElwee a partir de uma roupagem de “perdedor”, colocam-se em
paralelo com o transbordamento de afetos “reais” e da relação do cineasta com as pessoas
próximas de si.
Resumidamente, Sherman’s March narra a história do cineasta McElwee, que
passou pelo término de um relacionamento amoroso quando se preparava para rodar um
documentário a respeito do episódio da “Marcha para o Mar” – momento histórico
decisivo da Guerra Civil estadunidense, liderado pelo general Sherman e que levou à
destruição total, militar e civil, de diversas cidades do Sul dos Estados Unidos, forçando
a rendição do exército confederado. Com a desilusão amorosa, o realizador sai de Boston,
onde mora, e ruma ao Sul para tentar começar o filme, passando antes pela Carolina do
Norte a fim de permanecer um pouco com sua família. Encorajado por sua irmã, McElwee
218
enxerga na câmera de filmar uma maneira de conhecer e de dividir momentos com novas
pretendentes. Sempre assolado pela tarefa de continuar o filme a respeito da Guerra Civil,
o realizador viaja com sua câmera por diversas das principais cidades da Marcha para o
Mar, resgatando pormenores históricos do episódio, registrando sensações sobre o legado
da guerra para o território sulista e interagindo com novas conhecidas em cada um destes
lugares. Algumas delas são pessoas que fizeram parte do passado do cineasta, outras
tornam-se conhecidas em sua passagem pelas cidades. Fracassando na empreitada
amorosa e também na missão de realizar o filme, McElwee enxerga no general Sherman
uma figura exótica e controversa, cuja personalidade privada é pouco conhecida pelos
próprios sulistas. O diretor relaciona-se alegoricamente com a figura atormentada de
Sherman, com suas perturbações e ansiedades. Ele retorna ao Norte com a sensação de
“dever não-cumprido”, deixando de realizar o filme que gostaria e falhando em sua
abordagem romântica em relação às mulheres. Subjaz, logicamente, ao “fracasso” do
personagem McElwee, um filme que tem sucesso em entregar conhecimento em relação
à História oficial da Marcha para o Mar, em trazer à tona requintes da personalidade não-
pública (e pouco conhecida) do General Sherman, em realizar um estudo das diferentes
vertentes da sociedade sulista contemporânea – no que diz respeito tanto ao legado da
Guerra Civil quanto ao temor pela guerra nuclear –, em tematizar um estereótipo da
masculinidade sulista, representada pelo culto a personalidades como Burt Reynolds (que
o diretor chega a encontrar pelo caminho); e, finalmente, traz um tipo de conhecimento
“doméstico”, relacionado à vida do diretor para além da câmera. Tomamos conhecimento
da relação delicada que McElwee detém com seu pai, sabemos sobre a morte de sua mãe,
entendemos seu vínculo com o Sul e sua condição de “desgarrado”, e captamos traços de
sua personalidade a partir de sua interação com familiares e amigos.
Um dos pontos mais frequentemente analisados de Sherman’s March é o
questionamento acerca da possível dualidade entre cineasta e personagem na narrativa
criada por McElwee. Em seu texto ao redor da definição de filme-ensaio, Phillip Lopate
sugere a diferença entre o cineasta McElwee e a persona “Ross”, que toma a forma de
um solteirão exageradamente racional e absorto (LOPATE, 1996, p. 262). Scott
MacDonald dá o título à sua análise de dopplegänger (ou, o “duplo”) (2013, p. 108),
sugerindo a disparidade entre os “desejos” de McElwee enquanto cineasta em
contraponto ao de seu personagem. Efetivamente, o visionamento de Sherman’s March
suscita o questionamento: o quanto estamos diante de uma genuína jornada “ao acaso” do
219
cineasta McElwee? Seria realmente possível que estejamos assistindo à busca de um novo
relacionamento amoroso do diretor, que espontaneamente decide filmar a empreitada e
mostrar a nós, espectadores? Poderia McElwee realmente ter tentado realizar um
documentário “convencional” a respeito da Marcha para o Mar, enfim fracassado? Por
mais que o tom absurdo da jornada do protagonista possa sugerir um grande processo de
fabulação, há da mesma forma aspectos na narrativa que apontam para a sobreposição
entre as vidas do personagem e do cineasta McElwee. Resgatamos aqui novamente a
entrevista no qual o autor Scott MacDonald é categórico em relação à falsa motivação do
diretor no filme: “Sherman’s March finge ser a respeito de sua busca pelo amor, mas na
realidade você apenas está usando isto para fazer um longa-metragem”. McElwee
responde negativamente: “Não sei se concordo com a noção de que a busca pelo amor é
um simples MacGuffin em Sherman’s March. Parte de mim realmente estava esperando
que a mulher certa se materializasse pela miasmática névoa do Sul” (MACDONALD,
2014, p. 163-164).
É interessante mencionar que o conhecimento extrafílmico da carreira de
McElwee anterior a Sherman’s March fornece elementos que tanto possibilitam a
desconstrução do senso de “autenticidade” da narrativa quanto potencializam os aspectos
em que a vida do diretor enquanto indivíduo “ordinário” parece falar mais alto. Um
exemplo pode ser extraído da sequência que abre o filme. Ainda que se possa supor que
Ross McElwee eventualmente quisesse realizar um documentário com uma temática bem
estrita – como o episódio histórico da Marcha para o Mar –, considerar que ele o faria da
maneira que nos apresenta na abertura do filme é uma opinião dificilmente sustentável.
O realizador, como já mencionado, foi formado no MIT Film Section, berço do
documentário autobiográfico moderno estadunidense e com forte inflexão da
metodologia do cinema direto. Seria possível que o diretor iniciaria um documentário
com uma animação de um mapa dos Estados Unidos, que indica a movimentação das
tropas de Sherman pelo território, acompanhada auditivamente por uma narração em over
que narra factoides da campanha do general Ianque? Em outras palavras, é possível
acreditar que McElwee trabalharia com uma exposição assertiva e didática plenamente
inserida nos moldes do documentarismo clássico, a que o cinema direto julgou
ultrapassado e epistemologicamente suspeito, sem que esse recurso fosse proposital? A
brincadeira torna-se evidente quando tomamos conhecimento, nos créditos finais do
filme, que o dono da voz que narra a sequência inicial é Richard Leacock – um dos
220
principais porta-vozes do antagonismo em relação a este tipo de metodologia. Ou seja,
não é necessário muito esforço de abstração para captar as maneiras através das quais
McElwee está “piscando” para os espectadores, sugerindo certa complacência em relação
à reivindicação de “autenticidade” da jornada de seu protagonista. Em um sentido
parecido, Scott MacDonald sugere que McElwee utiliza-se de seu personagem para
simular que existe de fato um interesse “pessoal” de sua parte por aproximar-se de
determinadas pessoas e se envolver em alguns episódios da jornada (MACDONALD,
2013, p. 204). Para MacDonald, não existe um desejo real ou desenvolvimento emocional
que aproxime afetivamente o diretor das pessoas que encontra pelo caminho: trata-se,
sobretudo, de uma motivação “cinematográfica”, uma maneira de conduzir
narrativamente o filme ao redor de seu personagem. É o caso, por exemplo, da designer
de interiores Claudia, amiga de juventude do diretor e ex-cheerleader. Durante o tempo
que passam juntos, a personagem revela uma posição no eixo ideológico diametralmente
oposta à de McElwee, no que diz respeito a crenças religiosas e orientações políticas. O
temor em relação à possibilidade da guerra nuclear (partilhado por diversos dos outros
personagens de Sherman’s March) apresenta-se em Claudia como a convicção de que o
sentimento de proximidade da destruição do mundo é o estágio que antecede a segunda
vinda de Jesus Cristo. A personagem, inclusive, guia McElwee em um tour por uma
comunidade sobrevivencialista, armada e ultraconservadora, que prepara o
funcionamento de um território secreto autogestor em caso de uma guerra nuclear.
Figura 34: Integrante do grupo sobrevivencialista e a designer de interiores Claudia, em
Sherman’s March (1986)
221
É evidente, neste caso, que McElwee busca retratar uma vertente da sociedade
sulista que entendemos como portadora de valores sensivelmente distintos dos seus. O
cineasta aponta em entrevista que a distância entre ele próprio e o grupo dos
sobrevivencialistas evoca outro tipo de trato cinematográfico: “Eles não fazem parte do
meu mundo, então posso me recuar e filmá-los objetivamente” (MACDONALD, 1988).
Com efeito, o retrato do diretor a respeito de si próprio evidencia sua inserção em certa
elite cultural/intelectual bem como revela sua opção por valores políticos progressistas.
Sendo assim, a relação com a personagem Claudia dificilmente soa para os espectadores
como um esforço em encontrar o “amor verdadeiro”, ou estabelecer um relacionamento
duradouro, mais do que parece uma maneira de satisfazer a curiosidade cinematográfica
de seu diretor. Entretanto, fazer coro à noção de autores como Scott MacDonald, que
afirmam que toda a busca pelo amor em Sherman’s March não tem outra função que não
um amparo narrativo, é desconsiderar o potencial que circunda as tomadas de muitas das
interações de McElwee com as pretendentes, amigos próximos e sua família. Estas
interações transpõem relações interpessoais bastante particulares e que contribuem para
o estatuto autobiográfico do filme.
Em várias entrevistas o realizador é questionado sobre como teria surgido a ideia
da narrativa de Sherman’s March ou, ainda, se a estrutura do filme fora de alguma forma
preconcebida. McElwee constata que o início da jornada ocorreu de fato na mesma ordem
que a narrativa nos propõe: passando pelo término recente de seu relacionamento anterior,
a conversa travada com sua irmã o fez considerar a utilização da câmera como via de
aproximação às pessoas. McElwee descreve este momento:
A descoberta ocorreu com a minha irmã no dia seguinte, quando ela
disse – um pouco a sério, um pouco brincando – "Você devia usar a
câmera como uma forma de conhecer mulheres". Ela estava
sinceramente chateada com o fato de eu ter terminado meu
relacionamento com minha namorada e estava buscando maneiras de
me colocar “de pé” novamente. Acredito que ela achava que eu estava
sendo incapaz de voltar à vida – algo bem pior do que eu realmente
estava sentindo. Obviamente, eu tinha como colocar a câmera no ombro
e sair filmando alguma coisa. Mas no momento em que ela me deu
conselhos sobre como usar a câmera, eu experienciei uma pequena
epifania. Em seguida, houve o anúncio de que Mary estava no bairro.
Por que não a procurar com a câmera e ver o que acontecia? O mini-
retrato de Mary correu bem. Ela tinha de ir embora no dia seguinte, por
isso não havia potencial para filmá-la mais, mas era um começo. E era
222
um microcosmo de como o filme poderia funcionar. (MACDONALD,
1988. Tradução nossa.)
Figura 35: A irmã Dede dá conselhos amorosos ao cineasta, no início de Sherman’s March
(1986)
A interação de McElwee com a irmã Dede é um dos momentos de Sherman’s
March que revela o comprometimento do diretor com a construção de uma narrativa
autobiográfica que engaja a particularidade de relações familiares ou preestabelecidas
como parte de sua matéria-prima. A fala de Dede para a câmera a respeito do término do
relacionamento do irmão, sugerindo energicamente maneiras de se recompor, evoca um
senso de naturalidade em relação à mediação da câmera naquela circunstância. Tendo
realizado Backyard há poucos anos, McElwee já trabalhava com o registro das pessoas
de sua família, seja em eventos banais e repetíveis do cotidiano familiar, ou em ocasiões
especiais. Sendo assim, é possível imaginar que aquela situação não seria de todo estranha
tanto para Dede, de alguma forma acostumada à abordagem do irmão no que diz respeito
ao registro fílmico familiar, quanto para o próprio McElwee, ao procurar a irmã para
conversar sobre o ocorrido em sua vida com a câmera, mesmo sem saber exatamente se,
ou como, utilizaria o material para uma narrativa fílmica.
223
Estes momentos reforçam o pedido para que o espectador deposite uma parcela
mais sólida de sua confiança no que diz respeito à acepção de pontos de contato entre a
narrativa e a vida de seu criador. É o caso, por exemplo, da reação do pai do diretor à
empreitada fílmica que McElwee está desenvolvendo. Vestido com o uniforme do
exército confederado antes de rumar a um baile à fantasia, McElwee é confrontado por
seu pai, que questiona qual a validade, para este ou outro filme, do fato do filho ter
passado o dia “filmando a irmã lavando o seu cachorro”. Por mais que McElwee
potencialize o aspecto desajeitado e fracassado de sua persona em momentos que
dependem totalmente dele próprio, como em sua narração em over ou no monólogo em
que cita a desconfiança do pai em relação ao seu projeto fílmico, é sabido, desde tempos,
que o pai do diretor olha com certa desaprovação para suas ambições artísticas. Em
Backyard este embate é tematizado e continuará sendo, em outros filmes, um ponto
recorrente de rememoração e meditação.
O mesmo pode-se dizer da participação de Charleen na narrativa. Por mais
performática que sua encenação possa parecer diante da câmera de McElwee, existe uma
relação real de afeto entre ela e o diretor que faz com que as interações entre ambos façam
pulsar a intensidade da experiência. O fato é que Charleen, com efeito, preocupa-se com
os rumos da vida de McElwee como sua amiga, para além da realização de um filme. Em
Charleen indicava-se a relação de confiança e intimidade travada entre ambos, e, após
Sherman’s March, Charleen estará próxima de McElwee em eventos importantes de sua
vida individual, como em seu casamento e no processo de luto diante da morte de seu pai.
Com isso, os momentos em que ela necessita chamar a atenção do diretor, expondo suas
fraquezas ou dando-lhe “lições de moral” em relação à maneira que enxerga o mundo,
evocam uma particularidade da relação entre realizador e “objeto”. À maneira da
encenação explorada por cineastas do MIT Film Section e, especialmente, na influência
de Diaries de Ed Pincus, trata-se de um procedimento que “escreve autobiograficamente”
a partir da explicitação de relações afetivas particulares entre o diretor e as pessoas
próximas de si.
224
Figura 36: Charleen Swansea aplicando uma “lição” em McElwee em Sherman’s March
(1986)
O envolvimento afetivo de McElwee com as pessoas que fazem parte da narrativa
toma forma, também, nos indicativos de que o diretor chega a engajar um romance com
algumas de suas pretendentes ao longo da jornada. Para além dos casos em que não existe
a possibilidade do florescimento real do interesse amoroso de uma ou ambas as partes (o
caso da designer Claudia, citado, é um deles), em outros, a possibilidade chega a
concretizar-se ou torna-se um assunto explicitado na narrativa. O fato destes
envolvimentos resultarem, fundamentalmente, em fracasso, acaba por abastecer a
persona “loser” que McElwee constrói em relação a sua própria figura, porém agora com
um amparo no mundo “real”: não é apenas ele quem endossa sua inabilidade no trato
interpessoal e/ou afetivo, mas existem pessoas que sublinham, em frente à câmera, o
desinteresse em relação ao cineasta.
Um destes casos acontece com Wini, a linguista que vive na ilha de Ossabaw
(Geórgia), uma espécie de reserva científico-ambiental em um território praticamente
deserto, habitado apenas por alguns grupos de pesquisadores. Há um entendimento de
que McElwee e Wini chegaram a envolver-se durante o tempo em que o diretor
permaneceu na ilha. O romance acaba, entretanto, durante um retorno do diretor a Boston
para a realização de um trabalho freelancer, e Wini passa a relacionar-se com outro
225
cientista que mora no local. Voltando à ilha e pedindo para que a ex-pretendente explique
o porquê da troca, Wini ressalta a impaciência do diretor e seus frequentes pretextos para
deixar o local. Após o momento, McElwee reconhece um senso de “autossabotagem” que
endossa a dubiedade entre a busca pelo amor, sua personalidade insegura em relação a
seus próprios desejos e a construção de uma narrativa cinematográfica: “se eu realmente
quisesse que as coisas dessem certo, daria um jeito de voltar antes”, o diretor relata em
sua narração em over. A mesma sensação existe em relação a Karen, advogada e sua ex-
namorada de juventude, já ao final do filme. Este é um dos momentos em que
irremediavelmente questionam-se a ética e senso moral de McElwee em relação às
pessoas filmadas. O diretor confronta a ex-namorada em relação ao insucesso do caso
amoroso que mantiveram, insistindo ad nauseam que Karen exponha os motivos pelos
quais a situação não foi levada adiante. O momento chega ao ápice quando Karen pede
ao diretor que interrompa a filmagem, alegando crueldade de sua parte.
O diálogo suscita em McElwee o reconhecimento de que sua câmera, inicialmente
pensada como uma ferramenta com a qual poderia aproximar-se das pessoas, adquire
agora o potencial de um instrumento sádico. Ciente de que está em uma situação limite,
tanto em relação aos possíveis requintes de crueldade com a câmera quanto a uma
autodepreciação masoquista insustentável, McElwee volta à cidade natal de Charlotte
antes de rumar de volta para o Norte. Em uma narração em over, o diretor disserta a
respeito da extensão de seu fracasso:
ROSS (v.o.)
A Confederação morreu oficialmente aqui, na minha cidade natal de
Charlotte, Carolina do Norte. Jefferson Davis, presidente da
Confederação, teve sua última reunião de gabinete não muito longe
desta marcação e bateu em retirada rumo ao México, deixando por
detrás de si um Sul arruinado. Eu chego ao fim de minha jornada sem
carro, sem dinheiro e com apenas um rolo de película. O que é pior é
que parece que não tenho mais uma vida real. Minha vida real ficou na
fenda entre mim mesmo e meu filme. (Tradução Nossa)
Em um dos vários acasos que regem a narrativa de Sherman’s March, McElwee
constata que o derradeiro fim do exército confederado sulista aconteceu na cidade natal
de Charlotte, enfatizando sua possível relação com um fracasso endêmico. O realizador
divaga acerca do final de sua jornada sem o carro (que quebra recorrentemente durante a
226
empreitada), sem dinheiro e romantizando (senão, fabulando) acerca do último rolo de
película, que é tudo que lhe restou: mesmo sua “vida real” não existe mais, perdeu-se em
meio à possibilidade de filmar. O diretor pondera que sua “vida real” agora existe apenas
na fenda entre ele próprio e o filme. McElwee ressalta, portanto, a relação de
codependência entre “câmera” e “vida” que regeu a jornada: a câmera seria a motivação
sine qua non pode existir sentido em interagir com as pessoas ao seu redor e, ao mesmo
tempo, sua vida “real” seria o material que impulsionaria o fazer cinematográfico. Diante
do fracasso da empreitada, portanto, como McElwee poderia voltar a relacionar-se com
o mundo e com as pessoas que o habitam? Neste sentido, o diretor confessa, algumas
sequencias antes de sua chegada em Charlotte: “Parece que estou filmando minha vida
com o intuito de ter uma vida para filmar, como um organismo primitivo que se alimenta
através de seu próprio devoramento, crescendo à medida que diminui”. Julgando não ter
realizado da maneira que gostaria o filme sobre a Marcha para o Mar, bem como não
tendo sucesso em engatar um novo relacionamento amoroso, McElwee expõe o fracasso
de sua persona. Na perda do diretor em relação a si mesmo, entretanto, reside o sucesso
da narrativa de Sherman’s March.
Nos filmes seguintes, a performance de McElwee do momento “atual” de sua vida
em Sherman’s March é vista a partir da ótica de sua então solteirice, quando podia gozar
da “liberdade” de filmar inadvertidamente os eventos que se desenrolavam ao seu redor
– havendo, por exemplo, a possibilidade de colocar-se em situações inesperadas como
uma jornada pelo Sul dos Estados Unidos em busca do amor romântico. Estas
possibilidades, McElwee dirá no futuro, teriam se tornado mais tímidas diante da
configuração de um relacionamento duradouro, da configuração de responsabilidades
relativas ao mundo do trabalho (como as da universidade na qual inicia o trabalho de
docência) e, principalmente, da formação de sua própria família, com o matrimônio e a
chegada dos filhos. Certo ímpeto aventureiro permanece em suas jornadas, porém voltada
para uma exploração continuada sobre os mistérios, dores e benefícios da vida adulta. Isto
ocorre especialmente no que concerne o matrimônio e a família, ao realizar meditações
acerca das relações geracionais entre pais e filhos.
Como frisado, a projeção de Sherman’s March foi maior que a esperada. O filme
influenciou muitos cineastas – sobretudo estadunidenses, porém não apenas – que
posteriormente experimentaram com a construção de documentários que sublinhavam
aspectos de narratividade autobiográfica, das maneiras mais diversas. Ainda que a
227
particularidade da carreira de McElwee pós-Sherman’s March tenha sua visibilidade
assegurada por um público especializado (cinéfilos, pesquisadores, docentes, estudantes),
nenhum de seus filmes teve a mesma amplitude de recepção como o lançado em 1986. É
possível sugerir que, de certa maneira, a figura de Ross McElwee ficou atrelada à
supercaracterização de si próprio em Sherman’s March, colocada em paralelo à
comicidade autorreferente de outros cineastas como Buster Keaton ou mesmo Woody
Allen.
Entretanto, se o filme faz do humor um de seus pilares narrativos e uma condição
irremediável em sua recepção, passando pelo uso de estereótipos e pela depreciação
hiperbólica do protagonista/cineasta, seus documentários subsequentes não são tão
diretos no que diz respeito à finalidade (e capacidade) de entreter, ou divertir, o
espectador. A partir de Time Indefinite, McElwee fez um cinema autobiográfico de
propósitos bastante distintos dos de Sherman’s March. Se a dubiedade entre “cineasta” e
“personagem” continua a levantar questionamentos (como característica intrínseca de
qualquer representação ou, neste caso, autorrepresentação), seus filmes passam a apostar
significantemente menos neste aspecto. De alguma forma, o personagem “Ross” se
apequena diante dos compromissos do mundo “real” com os quais seu criador passa se
deparar. Como se de um momento para o outro, McElwee percebe-se diante do fardo da
existência e sua câmera passa a se tornar cada vez mais pesada. Da mesma maneira, o ato
de registrar o mundo cinematograficamente é visto com mais seriedade. O sentimento de
“não ter nada a perder” evocado pela narrativa de Sherman’s March é questionado
diretamente em Time Indefinite, que lida justamente com a possibilidade, aleatória, da
perda. O filme é recebido a partir da acepção de um trabalho mais sério se comparado
com Sherman’s March. Esta constatação é frequente em sua recepção crítica: “Enquanto
o filme anterior era basicamente uma comédia, Time Indefinite é uma obra que crava seus
dentes em assuntos mais substanciais” (PETRAKIS, 1993) ou “ ...(McElwee) o estabelece
como um trabalho mais sério e pensativo, em oposição ao aspecto improvisado e
impulsivo do filme anterior” (FILMPHEST, 1999). Mesmo que Sherman’s March seja o
filme, isoladamente, pelo qual o diretor é mais conhecido, é possível dizer que Time
Indefinite inaugura sua proximidade com uma ideia de narratividade autobiográfica mais
definitiva. Este movimento engaja seus filmes posteriores e sugere uma promessa de
continuidade que será levada a cabo nas décadas seguintes, marcando o ponto alto de seus
propósitos enquanto documentarista.
228
Figura 37: Vestindo o uniforme do exército Confederado, McElwee elabora para a câmera
os próximos passos de sua jornada, em Sherman’s March (1986)
229
3.4. Time Indefinite (1993): A câmera e o calvário
Como vários dos filmes de McElwee, Time Indefinite levou um extenso período
de tempo de sua filmagem à finalização: o início da narrativa situa-se, ao que consta, em
1986, porém o filme foi lançado apenas sete anos depois, em 1993. Em 1991, entretanto,
McElwee lança o longa-metragem Something to do with the Wall dirigido conjuntamente
com a esposa Marilyn Levine, sobre o qual podemos tecer alguns comentários. Something
to do with the Wall é pouco explorado em análises sobre a obra do diretor. Ainda que
existam alguns pontos de contato com a estilística e a temática relativas à autoria de
McElwee, é evidente que se trata de um filme feito à ocasião de um evento histórico.
Realizado apenas pelo casal (dividindo as funções de direção, edição, narração e captação
de som e imagem), Something to do With the Wall foi filmado em duas viagens distintas
para a então Berlim Ocidental: uma em 1986 e outra em 1989, quatro dias após a queda
do Muro. A preocupação dos diretores era, sobretudo, a de conhecer e passar algum tempo
com habitantes de Berlim que moravam em locais próximos à barreira, a fim de
compreender suas implicações em suas vidas e famílias. McElwee e Levine vivem a
tensão que circunda o aniversário de vinte e cinco anos do Muro, em que diversos tipos
de protestos são protagonizados, principalmente dirigidos às forças militares que zelam
pela preservação da ordem diante da barreira. O casal retorna à cidade três anos depois,
com a queda repentina do Muro. Na ocasião, em que o filho recém-nascido, Adrian,
também é levado, McElwee e Levine procuram as pessoas que conheceram na viagem
original, dialogando agora sobre suas perspectivas diante da reunificação da cidade.
Something to do with the Wall é o único filme dirigido em conjunto por McElwee
e por Marilyn Levine, implicando uma coautoria que se faz presente de maneira mais
evidente no aspecto de uma dupla narração em over, ora narrada por McElwee e ora por
Levine. O filme reivindica uma motivação “autobiográfica” que não se sustenta tão
densamente se em comparação à exploração da temática histórica que o domina. No início
do documentário, sobre uma imagem do filho recém-nascido, Adrian, os diretores
ressaltam em over que o filme seria uma maneira de exteriorizar um “sentimento do
mundo” diante da Guerra Fria: como explicar ao filho, quando crescido, a sensação de
viver sob o temor da possibilidade de uma guerra nuclear? Como fazê-lo entender a
separação do mundo em duas polaridades distintas e a corrida armamentista? Este tipo de
reivindicação, entretanto, permanece tímido no filme. Fica relegado à superfície qualquer
230
tipo de consideração em relação à recém consolidação do casal McElwee-Levine e a vida
conjugal de ambos. Da mesma maneira, inexiste uma abordagem narrativa de alguma
questão moral que porventura toca a coautoria do filme, ou mesmo os meandros
psicológicos que dizem respeito aos sentimentos de ambos diante do evento histórico que
estão presenciando. Metodologicamente, Something to do with the wall preserva o
aspecto vérité de outros filmes de McElwee. Há uma ênfase em sublinhar a experiência
do casal durante as duas viagens que fizeram à Alemanha, mostrando o encontro com as
pessoas que conhecem pelo caminho, e a criação de laços de proximidade com elas. As
narrações em over, entretanto, são retraídas no que diz respeito ao espaço de meditação e
autorreflexão frequentemente vistos em outros documentários do diretor. Apesar de haver
uma ou outra estratégia argumentativa neste sentido, não há insistência em desenvolver
aspectos que enfatizem o “interior” dos cineastas de maneira mais aguçada.
Além disso, Something to do with the wall apresenta-se como uma espécie de
parênteses dentro da carreira autobiográfica de McElwee. A partir da ciência das
motivações de sua obra, é estranho imaginar que o diretor se apresentaria no filme como
um homem casado e já pai de um filho, Adrian, sem enfatizar narrativamente qualquer
um destes eventos. Como isto teria evoluído em sua vida desde a jornada de solteiro tão
evidente em Sherman’s March? Todos estes aspectos são, na realidade, abordados pelo
diretor em Time Indefinite, lançado em 1993, que estava em processo de feitura desde o
lançamento de Sherman’s March. A sensação de Something to do with the wall constituir
um pequeno “desvio” em sua carreira é inclusive citado em Time Indefinite, quando
McElwee refere-se a ele como um filme mais fácil de ser realizado, pelo fato de “não
lidar diretamente com sua própria vida”.
O comentário de McElwee em relação a Something to do with the wall é um
contraponto interessante, visto que Time Indefinite tem a vida individual do diretor como
matéria-prima dominante de seu eixo temático. Time Indefinite, diferentemente de filmes
como Sherman’s March, Something to do with the wall ou Bright Leaves, não aponta para
uma exploração temática de aspectos históricos, sociais, políticos ou culturais mais
demarcados, como a Guerra Civil estadunidense, o Muro de Berlim ou a cultura de tabaco
no Sul dos Estados Unidos. Tematicamente esguio, requer-se mais tempo durante o
visionamento de Time Indefinite para que se compreenda o tipo de questão sobre a qual o
diretor pretende jogar luz. McElwee nos toma pela mão em um fluxo semelhante ao visto
em Diaries (1971 - 1976) de Ed Pincus, em uma narrativa na qual protagonizam os
231
principais acontecimentos de sua vida individual, sem sabermos muito bem até onde o
diretor nos levará. O realizador enxerga nos eventos mais simbólicos que transcorrem em
sua vida privada durante quase sete anos uma maneira de abordar temas universais.
Durante duas horas de filme, acompanhamos o curso de pensamentos do diretor no que
concernem temas como o amor, o matrimônio, o casamento, a família, a paternidade, a
morte, a imprevisibilidade da vida e a possibilidade de perda. Time Indefinite engaja tanto
uma celebração pela vida quanto uma maneira de McElwee lidar com o luto diante da
perda de entes queridos. A “interioridade” do discurso do realizador em Time Indefinite
revela-se também no caráter amplamente verbal do filme, que conta com uma narração
em primeira pessoa praticamente incessante. Se, como propôs o diretor em contraponto a
Diaries de Ed Pincus, existe uma relação da voz como canal a um sentimento interior do
autobiógrafo que o registro do mundo exterior se faz insuficiente, Time Indefinite aposta
na potencialização deste auto racional e analítico por meio da voz over. Intercala-se um
processo de situação espaço-temporal das imagens que estamos vendo e uma meditação
ativa acerca das imagens filmadas (e das memórias de eventos já transcorridos na vida do
diretor), que faz com que exista uma sensação intermitente de contato com sua
racionalidade analítica.
Como já citado, McElwee sugeriu em entrevista para esta pesquisa que a partir de
Time Indefinite tornou-se clara em sua carreira a possibilidade de oferecer um aspecto
autobiográfico contínuo. Até mais que isto, o tipo de reivindicação autobiográfica que o
diretor desenvolve no filme acaba por adquirir um caráter irrevogável, tanto pelo tipo de
“projeção” para o futuro que a narrativa propõe, como também pelas cicatrizes que seu
ato autobiográfico deixará em si próprio e nas pessoas ao seu redor. A questão da
temporalidade em Time Indefinite, que pressupõe um movimento de olhar para o passado
e para o futuro do diretor, tanto em sua vida privada quanto em sua vida
“cinematográfica”, sugere estarmos diante da construção de um alicerce. É a metáfora
usada por Jim Lane em sua análise sobre o filme, que sugere que a “Autobiografia parece
ser o discurso completamente apropriado para a construção do novo edifício de
McElwee” (LANE, 2009, p. 90). Time Indefinite sugere desde o título que a noção de
tempo, ou temporalidade, será um fator de questionamento na narrativa. Este é o filme
que expõe mais consistente e pela primeira vez o interesse de McElwee pela abordagem
deste assunto nos filmes. Seus documentários tipicamente sugerem ao espectador um
visionamento engajado na reflexão acerca de como as múltiplas camadas de suas
232
enunciações cinematográficas relacionam-se com a noção de tempo – pretérito, presente
e futuro. Da mesma forma, McElwee explicita questionamentos acerca da representação
fílmica como aporte de construção autobiográfica, bem como o efeito da cristalização da
vida em registros de imagem/som.
Logo na primeira sequência de Time Indefinite, McElwee lança mão de
procedimentos que sugerem a inserção do filme neste campo de reflexão. Munido de sua
câmera, o diretor está na tradicional reunião familiar dos McElwee com uma missão:
anunciar para parentes o noivado com a companheira/parceira de trabalho Marilyn
Levine. Igualmente importante para McElwee é registrar o momento em que o anúncio é
realizado, colocando-nos, enquanto espectadores, na posição de experienciar o momento
da reação de sua família à notícia, ao mesmo tempo em que ele o faz. Seja por
coincidência ou por certo azar endêmico que parece assolar sua vida, as baterias da
câmera apresentam um mau-funcionamento que estraga seus planos e suas tomadas.
McElwee aponta a presença de seu pai como responsável pelo agouro, a quem o
diretor atribui uma espécie de “campo de força surreal Freudiano” que faz com que seu
equipamento enguice. O acontecimento o lança em uma epifania de reavaliação do
passado: não é a primeira vez que o “peso” da presença do pai influi no seu trabalho
artístico. O diretor já nos mostrou isto, em Backyard, e nos mostra novamente. Ele lembra
que, no meio da década de 1970, filmou seu pai por dias a fio, acompanhando-o no
cotidiano de seu trabalho de cirurgião. Algumas imagens-chave resultaram deste
momento de sua vida, que recorrentemente voltam à mente (e às narrativas) do diretor.
Entre elas, uma imagem de Lucille, uma das empregadas de sua casa, empacotando os
sapatos de sua mãe logo após sua morte. McElwee aponta que é o mais próximo que pôde
chegar de um registro fotográfico dela. Em outra destas imagens-chave, citada
anteriormente, seu pai fita a câmera do filho-diretor e sublinha que apenas ficará satisfeito
quando o “olho grande”, a lente, tiver desaparecido: “I’ll be glad when the big eye is
gone”. Esta cena, que figura pela primeira vez em Backyard, pela segunda vez em Time
Indefinite e voltará a aparecer em Photographic Memory, é o emblema da disparidade
entre McElwee e seu pai naquele momento, no que diz respeito à sua desconfiança sobre
a opção do diretor em seguir uma carreira artística. No momento “presente” da filmagem
de Time Indefinite, entretanto, a relação entre o diretor e seu pai parece estar apaziguada,
devido à certa estabilidade que o patriarca enxerga na decisão do filho em casar-se, bem
como pela vida profissional do cineasta, que já rende frutos. O acúmulo de
233
responsabilidades, pondera McElwee, coloca-o em uma situação diferente da que se via
em anos anteriores. Isto lança-o a uma segunda epifania. Sobre imagens de Sherman’s
March, período que McElwee nomeia como “determinado verão”, o diretor pensa em seu
passado sob a ótica de sua condição de solteiro, como frisado, quando havia um senso de
liberdade que promovia a possibilidade de filmar tudo o que ocorria ao seu redor. A
atividade de registrar livremente o que transcorre diante de si, entretanto, parece tornar-
se cada vez mais difícil.
Figura 38: A reação da família McElwee ao anúncio do noivado em Time Indefinite (1993)
Para situar-nos no “presente” de sua vida individual no momento das tomadas da
ocasião do anúncio de seu noivado, portanto, McElwee recapitula eventos significativos
de seu passado. Não se tratam, porém, de lampejos randômicos de memória aos quais o
diretor poderia dirigir-se simbolicamente (como descrevendo-os através apenas de sua
narração em over, em palavras), mas eventos cristalizados em imagem e som. Mais que
isso, os eventos que McElwee nos mostra como parte integrante de seu passado não são
tomadas típicas de um acervo familiar particular, guardadas por décadas e agora tornadas
públicas por meio do filme. O diretor utiliza-se de trechos de seus filmes anteriores,
evidenciando que os momentos de seu passado que merecem menção são aqueles de uma
memória “cinematográfica”: eventos de sua vida individual passada, porém já trabalhados
por meio da linguagem e transformados em narrativa. Analisando um fenômeno que vai
234
em direção ao recurso utilizado por McElwee, o teórico da autobiografia Avram
Fleishman sustenta que o livro publicado transforma o autobiógrafo em um novo ser. O
escritor não seria mais a pessoa que viveu os eventos, mas, sim, aquela que os escreveu.
Os eventos, por sua vez, também são inevitavelmente modificados: um evento
transcorrido no plano real (aquilo que efetivamente aconteceu) cristaliza-se naquilo que
foi expresso em palavras pelo autobiógrafo. (FLEISHMAN, 1983, p. 6). A partir de
procedimentos como estes, McElwee entra em um processo que circunda sua carreira dali
em diante, engajando maiores questionamentos acerca da relação entre ato autobiográfico
e vida individual. Time Indefinite é o filme que efetivamente dá forma a uma espécie de
“bola de neve” autobiográfica relativa à carreira de Ross McElwee, que por vezes parece
crescer desordenadamente, suscitando algumas questões éticas mais delicadas. A
narrativa de Time Indefinite evoca algumas destas questões, tanto se considerada
isoladamente, quanto se avaliada em relação à sua força potencial na obra de McElwee
como um todo. A temporalidade trabalhada pelo diretor no filme diz respeito a estas duas
alternativas.
Uma delas concerne a relação temporal entre a narração em voz over de McElwee
e as tomadas fílmicas por ele realizadas. Em um procedimento que transcorre por toda a
narrativa de Time Indefinite, McElwee busca construir uma narração em primeira pessoa
a partir da utilização do tempo presente. Trata-se de uma característica que não é
incomum em outros filmes do diretor, porém neste, em especial, a escolha evoca alguns
questionamentos. Utilizando ainda como exemplo a primeira sequência de Time
Indefinite, durante a reunião da família McElwee, o diretor constata em over: “Minha
mãe, que morreu há 12 anos, gostava de dizer que tudo começa e termina com a família.
Mas agora eu tenho 39 anos de idade, ainda solteiro, e penso que minha família
praticamente perdeu as esperanças de que eu construa a minha própria”. O diretor,
entretanto, não tem trinta e nove anos, seja no momento da gravação da voz em over (cuja
data é impossível precisar), quanto no ano de lançamento de Time Indefinite, em 1993.
Nascido em 1947, McElwee teria trinta e nove anos em 1986, o que indica que este seria,
provavelmente, o ano da reunião familiar a que o diretor está se referindo.
Subjaz a esta escolha narrativa uma maneira de aproximar o espaço temporal da
narração em over ao das imagens realizadas pelo diretor. Como referido, a metodologia
do cinema direto aplicado à ótica de uma exploração autobiográfica suscita a sensação de
“tempo presente”, na qual podemos experienciar, enquanto espectadores, uma espécie de
235
sobreposição de nosso corpo ao do cineasta, estando junto a ele e assistindo às reações
das pessoas ao seu redor diante dos eventos que estão sendo tematizados. Neste caso, a
metodologia do cinema direto diz respeito, dominantemente, à projeção da exterioridade
(os corpos e diversos elementos do mundo material) à lente da câmera, em uma
circunstância espaço-temporal determinada. Já com a voz over, McElwee busca emular
um estado de espírito interior de si próprio, bem como das pessoas ao redor (“minha
família praticamente perdeu as esperanças”), que regia a mesma circunstância. O fato de
se tratar de um texto escrito no tempo presente acentua movimentos de tensão e resolução,
motor propulsor de qualquer narrativa tradicional. Isto aconteceria de uma maneira
distinta se as reflexões travadas por McElwee em over fossem construídas através do
tempo verbal pretérito. Através de uma narração cunhada no passado, o ato autobiográfico
adquiriria um aspecto de resgate da memória, impossibilitando a sensação de que estamos
vivendo “junto” do diretor os momentos pelos quais passou e registrou. O efeito
dramático é potencializado se nos sentimos próximos de um narrador que assere seu
desconhecimento acerca do que o futuro lhe reserva – mesmo se o desconhecimento seja,
de fato, ilusório. McElwee disserta sobre esta “volta temporal” ao momento da tomada,
como um aspecto de estranha dualidade:
Filmar a própria vida configura uma dualidade estranha, sincopada,
entre o presente de uma pessoa e seu passado. De certo modo, faz com
que seja muito difícil viver no presente. Uma espécie de esquizofrenia
se instala quando você está montando – ou, talvez, “retrofrenia” seja
uma palavra melhor –, uma estranha sensação de, estando no presente,
olhar para trás, em um outro presente que também parece muito vívido:
o mundo, como foi registrado pelo cineasta alguns anos antes.
Sherman’s March tomou-me quatro anos para montar. Quando eu me
aproximava da finalização do filme, ficava pensando: “Não pode ser eu,
aí, perseguindo estas mulheres tão desafortunadamente.”. Era como se
eu estivesse assistindo às escapadelas de alguém que talvez fosse como
eu, mas que não era eu. (...)
Constantemente tenho de lidar com o paradoxo de que o material
filmado não contém efetivamente “eu”, seja lá o que isto for. Mas,
ainda, sou eu, ou alguma versão de mim. Eu não consegui começar a
montar Time Indefinite, com o material que lida com a morte de meu
pai, até muitos anos depois de sua morte. E neste momento eu mesmo
já era pai. A vida continuou e eu continuei com ela, mas para a edição
precisava reocupar este tempo passado pessoal, de maneira que pudesse
recriar um presente para o filme. Então, no mínimo, este tipo de cinema
fornece um senso estranhamente desarticulado para a passagem do
tempo em sua vida. Nos piores momentos, pode te fazer ter a certeza de
que está enlouquecendo e que você não tem fixação na realidade.
(McELWEE, 2005. p. 17. Tradução Nossa.)
236
Estas questões apresentam mais densidade no segundo ato de Time Indefinite.
Ainda no primeiro, após o anúncio de noivado do diretor com Marilyn Levine, seguem
narrados diversos eventos que antecedem a cerimônia de matrimônio. Entre eles, exames
de saúde requeridos pelo governo estadunidense para o casamento e comemorações do
noivado com amigos: um jantar com Ricky Leacock e a despedida de solteiro do diretor
em um bar com outros cineastas, como Robb Moss e Steve Ascher. Durante os eventos,
McElwee reflete em over sobre o período vindouro, sobre o significado da união com
outra pessoa a partir do casamento. Não se separando da câmera no dia da cerimônia, o
cineasta filma até o último momento possível os bastidores da celebração: preparativos
de decoração e buffet, bem como a noiva vestindo-se. Sendo filmado por um de seus
amigos, a desajeitada persona de McElwee emerge novamente ao dar a mão errada para
receber a aliança, tudo isto sob o olhar auspicioso do pai. Em Time Indefinite, McElwee
narra os eventos como um período de bonança e felicidade que parecia eterno. O
casamento dá lugar ao anúncio da gravidez de Marilyn. Com o bebê vindouro, assistimos
ao casal McElwee saindo em busca de mobília e enxoval em uma loja da cidade, bem
como a mudança para uma casa que possa alocar a família e seu novo membro. McElwee
nos confessa sentir o peso da mudança, os lampejos de insegurança em relação à
paternidade e as dificuldades financeiras que podem advir da nova situação. As novas
responsabilidades parecem influir no peso que a câmera passa a ter em seus ombros: o
ato de filmar o mundo da maneira que fazia antes tende a conflitar com a dedicação à
família que terá a partir do momento.
Figura 39: Marilyn Levine e Ross McElwee na cerimônia de casamento, em Time
Indefinite (1993)
237
Três mortes sequenciais interrompem o ciclo de felicidade ao redor da vida de
McElwee e transformam o eixo narrativo de Time Indefinite em uma meditação acerca da
perda e do luto. A morte da avó do diretor – a única de alguma forma antevista por ele –
antecede o aborto espontâneo do bebê do casal, e, cinco dias depois, a morte repentina do
pai do cineasta. Durante o processo de luto, McElwee passa por um hiato de meses sem
filmar, seguido por viagens à Carolina do Norte e encontros com familiares e amigos. Se
a importância ou a viabilidade da câmera e do ato de registrar haviam sido postos em
questionamento pelo diretor em um período de felizes transformações, McElwee agora
traça o caminho inverso, fazendo da câmera um necessário instrumento de catarse. Por
entre diversos tipos de registros audiovisuais, McElwee traça uma busca incessante de
concretude à noção de perda, ou, como o próprio diretor confessa ao final do filme: “Eu
queria encurralar a morte com uma câmera e de alguma forma preveni-la de se tornar
abstrata”.
Na casa onde cresceu com sua família, no Sul, o diretor faz tomadas das roupas
de seu pai, ainda penduradas nos cabides e organizadas dentro das gavetas. Através de
uma conversa com Lucille, que trabalha no lar da família há décadas e que já foi procurada
pela câmera do diretor em outras ocasiões, McElwee ouve sobre algumas das últimas
conversas que ela teve com seu pai e procura algum amparo em sua religiosidade latente.
Em um movimento análogo ao visto em Backyard em relação à morte da mãe, o realizador
conversa com o irmão cirurgião, que também não consegue precisar o motivo da morte
do pai, tendo em vista a ausência de qualquer problema de saúde preexistente. Viajando
à Flórida, o realizador vai ao encontro da irmã Dede, mas obtém apenas memórias
evasivas a respeito das lembranças da irmã sobre ele. Há, entre os irmãos, uma dificuldade
em falar a respeito da morte. O diretor atribui isto, em algumas entrevistas, como parte
do estereótipo que gira em torno da “Etiqueta sulista”, que sugere que se evite abordar
temas de dificuldades pessoais. McElwee procura mais uma vez a amiga Charleen, que
também tem uma morte recente com a qual tem de lidar. Trata-se do ex-marido Jim, que
“conhecemos” em Charleen, e que suicidou-se ateando fogo à casa em que moravam.
Charleen, como o cineasta, luta com a dificuldade em deixar que a morte se torne abstrata.
Ao invés de realizar imagens cinematográficas, a professora opta por continuar guardando
as cinzas do ex-marido. Em uma ida do realizador e de sua amiga a um riacho que corre
para o mar, Charleen alega ainda não se sentir preparada para descartar as cinzas e desiste
da ideia.
238
Figura 40: Charleen olha para a casa reconstruída após o incêndio, em Time Indefinite
(1993)
No porão da casa dos McElwee em Charlotte, o diretor encontra um rolo de filme
super-8 guardado por quarenta anos, sobre o qual aposta que os pais nunca tiveram a
oportunidade de olhar. Assistindo às imagens, e fazendo-nos também as assistir, o
cineasta diz que gostaria de achar que seu pai e sua mãe estão agora no paraíso, sendo a
vez do pai tornar-se o “olho grande”, a lente, que olha por ele. O trabalho cotidiano,
realizado ano após ano, seguido pelo ato de criar os filhos, fazer festas de aniversário,
acompanha-los em eventos infantis e jogos de basquete transformaram o tempo em um
“borrão de quarenta anos de imagens e eventos”, segundo o diretor, que fez com que não
houvesse a oportunidade de assistir ao filme do casamento, relegando-o à posterioridade.
McElwee, diferentemente de sua família, transforma as imagens em narrativa, como um
meio de “desacelerar o tempo”, como o diretor constatará posteriormente em Bright
Leaves. Trata-se de sua maneira de fazer algo em relação a esta angústia – alguma
cristalização, alguma salvaguarda. Como astutamente apontado pelo autor Gary Hawkins,
McElwee parece sofrer de um caso grave de mono-no-aware (HAWKINS, 2008, p. 230),
um conceito estético japonês cuja tradução aproximar-se-ia de uma “sensibilidade para
com as coisas efêmeras”. Suas reflexões diante de um rolo de película guardado há
quarenta anos que o diretor “massageia de volta à vida” (expressão também do próprio
239
McElwee), na forma de uma narrativa, é o extrato de um sentimento que permeia todos
os filmes do diretor, principalmente depois de Time Indefinite. Trata-se da mesma
“amargura” que Josep Maria Català detecta nos filmes de McElwee, ou uma melancolia
diante da efemeridade dos eventos do mundo e das pessoas que o habitam. O realizador
busca conformar-se com a realidade da vida através de sua pesada câmera, com a qual
filma crescimentos e envelhecimentos, nascimentos e mortes, ano após ano e geração
após geração, de si próprio e das pessoas com quem se importa. Transformando imagens
em narrativas, a angústia de McElwee torna-se uma fonte pulsante de vida a cada vez que
seus filmes são revisitados pelos espectadores.
O nascimento de Adrian, primeiro filho do diretor, marca o final da narrativa de
Time Indefinite. Nas últimas frases de sua narração em over, o diretor sugere que
eventualmente fará um filme sobre Adrian “crescendo no mundo”. A sugestão de
McElwee, na realidade, é a afirmação de que a exploração da relação parental entre ele e
seu pai, que protagonizou o eixo narrativo autobiográfico de seus filmes até aquele
momento, dará lugar à meditação acerca de sua própria condição de “pai”. A relação entre
si próprio e Adrian, em várias de suas nuances, apresenta-se como o foco da força
narrativa de McElwee em seus filmes subsequentes. O teste da perpetuação desta relação
diante da força que o tempo tem de amortecer e transformar laços afetivos é um dos
principais alicerces da reflexão do cineasta em seu projeto autobiográfico.
Figura 41: Adrian McElwee com uma semana de idade, no plano final de Time Indefinite
(1993)
240
Em entrevista recente McElwee utiliza a expressão “continuidade geracional”
(MACDONALD, 2014, p. 160) para referir-se à relação entre pais, filhos, avós, netos;
dentro do universo de questionamentos que envolve este fenômeno: matrimônio,
divórcio, nascimento, morte, adoção, senilidade, juventude. Nos filmes, o realizador
aposta na análise deste tipo de relação interpessoal familiar e na ciência de que o passar
do tempo faz com que estes laços se modifiquem de alguma forma. A “continuidade
geracional”, neste caso, diz respeito ao fato de que os filhos tornar-se-ão pais, as pessoas
unem-se em matrimônios, os pais tornar-se-ão avós, as pessoas envelhecem e morrem, os
jovens adquirem maturidade, etc. McElwee parte de um olhar para sua própria vida como
exemplo deste tipo de evolução e transformação da relação entre pais e filhos. Primeiro,
no que diz respeito ao apaziguamento de tensões entre ele próprio e seu pai (de Backyard
a Time Indefinite) e, depois, no distanciamento entre o si próprio e seu filho, ao atingir a
adolescência e a fase de jovem adulto, em um movimento que se inicia em Time Indefinite
e vai até Photographic Memory. Segundo McElwee, “usando este emaranhado de
relações geracionais como minha rede de segurança, estava feliz em me equilibrar no
trapézio e buscar repostas a estas questões – na realidade, irrespondíveis – de criação e
propósito [da vida]” (MACDONALD, 2014, p. 159). A “rede de segurança”, para o
diretor, neste caso, significaria que a união da família seria, por si só, um subsídio com o
qual poderia trabalhar por tempo indeterminado: as relações familiares continuariam a se
desenvolver à medida que o diretor envelhecesse.
Entretanto, em material bibliográfico e em entrevistas dos últimos anos –
principalmente, nos dois últimos livros publicados pelo autor Scott MacDonald
(MACDONALD, 2013 e 2014) – revela-se que o último filme de McElwee, Photographic
Memory (2011), fora produzido em um período em que seu casamento estava
desmoronando. É possível notar que o filme pouco mostra o convívio do diretor com o
resto da família, para além de Adrian, evocando um aspecto de cisão familiar menos
detectável nos trabalhos anteriores. O casamento do diretor com Marilyn terminou ainda
em 2011, tendo durado vinte e três anos (e quatro longas-metragens). McElwee indica
que este acontecimento, no momento atual, coloca-o em uma situação de reavaliação de
sua carreira e de suas possíveis criações futuras. Em outras palavras, o “presente” que o
diretor constrói na narrativa de cada um de seus filmes (o caso do seu casamento em Time
Indefinite é o mais pungente), e que é reconstruído toda vez que um espectador assiste a
eles, talvez comportar-se-ia como o “defunto” de um momento presente. Ou seja, a
241
previamente citada “rede de segurança” do casamento e da união em família, neste
momento atual da carreira do diretor, seria colocada em cheque. Se a obra de McElwee
garante sua força autobiográfica justamente na maneira em que se apresenta como um
complexo emaranhado entre família e cinema, parece natural que um golpe profundo em
uma destas estruturas causaria desestabilidade na outra. Nesta mesma entrevista, por
exemplo, o diretor menciona que está separado de sua filha, Mariah, cujo processo de
adoção é o leitmotiv de In Paraguay (2008), e que agora ela vive com a mãe.
Parcela significativa da obra do diretor depende de sua inclinação vertiginosa
acerca de aspectos de sua vida individual e, em especial, das relações familiares que
advém da paternidade e do matrimônio. Neste caso, portanto, o “desmoronamento” de
um casamento parece ser especialmente problemático. Se McElwee transitava livremente
na reutilização de trechos de seus filmes anteriores, como ativação de uma “memória
cinematográfica”, é provável que a modificação de sua estrutura familiar venha a afetar
este processo. Haveria a possibilidade, agora, de utilizar sequencias de um filme como
Time Indefinite – um filme que, entre outras coisas, celebra o amor entre ele e sua ex-
esposa? De alguma forma, portanto, os acontecimentos “atuais” da vida de McElwee
acabaram por alterar a percepção que o próprio tem em relação à autenticidade dos
sentimentos que expressa nos filmes que fez no passado. Em entrevista a Scott
MacDonald, o diretor faz uma avaliação deste momento de sua carreira:
Quando eu dou um passo atrás em relação ao trauma emocional do que
aconteceu, coloco em questão todo o empreendimento da não-ficção
autobiográfica através de uma perspectiva quase filosófica e
fenomenológica. O que significa produzir estes filmes sob a ótica do
fato de que os contextos e as circunstâncias pessoais invariavelmente
alteram seus significados? (...) Eu sempre senti que meus filmes
dependiam da disposição do espectador em aceitar a profundidade da
continuidade geracional – aquilo que devemos a nossos pais e avós e,
para aqueles de nós fortunados o suficiente para ter filhos, o que
devemos à nossa prole. Como um documentarista-autobiógrafo, estou
lutando para aceitar que esta continuidade – que sempre foi tão
importante para mim – foi, ao menos parcialmente, decepada. Em meus
piores momentos, as cenas de família em meus filmes agora me
parecem ficções, uma espécie de mentira. Talvez nunca tenha havido
nenhuma verdade real por trás das cenas, nos sentimentos dos meus
filmes. Talvez eu devesse adicionar uma mensagem no final dos
créditos “Qualquer semelhança entre os personagens retratados no
filme e as pessoas do mundo real é meramente coincidência.”
(MACDONALD, 2014. Tradução nossa.)
242
A declaração de McElwee serve como força propulsora para a reflexão acerca de
seu trabalho e de outros documentaristas-autobiógrafos. O diretor questiona até que ponto
seus filmes soariam “reais” para si próprio, atualmente, frente aos acontecimentos
recentes do rompimento do matrimônio e da separação de sua família. Isto diz respeito
não apenas a seus filmes, mas a qualquer empreitada fílmica autobiográfica, que sempre
admitirá que a vida de seu autor poderá sofrer mudanças após o término da narrativa. A
esta reflexão é inerente o devaneio acerca de até que ponto o hábito de filmar do cineasta
acarretou impactos em sua vida pessoal – impactos no sentido de transformação, ou de
desvio. Dentro de seus filmes, McElwee dá indícios de que o registro constante de si
próprio e das pessoas ao seu redor (e, principalmente, a utilização destes momentos em
um contexto cinematográfico) frequentemente cria conflito com outras atividades pelas
quais se julga responsável: a própria família e o professorado. A partir de Time Indefinite,
a esposa do diretor, Marilyn, praticamente não aparece mais em seus filmes. Este pedido
por não ser retratada imageticamente teria partido dela mesma, segundo constata
McElwee em diversas entrevistas. Torna-se evidente que registrar e tematizar a passagem
do tempo, o envelhecimento e o desenvolvimento do ciclo da vida (e da morte) pode
resultar como uma tarefa que não passa ilesa de causar algum impacto nas pessoas ao
redor. Mesmo que por vezes possa parecer o contrário, o cineasta constata que existe uma
dificuldade latente em registrar (e narrativizar) cinematograficamente as pessoas
próximas de si, especialmente sua família, mesmo que estas concordem em ser filmadas:
“Encontro-me muitas vezes sem forças para carregar a câmera e apertar o botão. Prefiro
segurar o meu filho do que a câmera, e, na realidade, filmei muito pouco dos seus quatro
primeiros anos de vida, apesar dele não se importar com meu hábito de filmar. O problema
é meu. ” (McELWEE, 2005. p. 17. Tradução Nossa.).
Evidentemente, a constatação de McElwee de que Adrian não se importa com o
hábito de filmar do pai não evita que a atividade tenha consequências na vida imediata
tanto de um quanto do outro. Existe menos clareza em relação ao contrato firmado entre
cineasta e “personagens”, no caso de documentários autobiográficos como os de
McElwee. Trata-se de uma relação sobretudo (e anteriormente) regida pelo laço familiar
existente entre as partes e guiada pelas nuances de afeto e autoridade que advém deste
tipo de relação. Como pode ser indagado em relação a diversos outros casos de
documentários autobiográficos, que consciência poderia ter um filho pequeno acerca dos
acarretamentos futuros em sua vida de um registro (e de uma subsequente narrativização
243
destes eventos) diante de um pai-diretor e de suas, muito frequentemente boas, intenções
cinematográficas? Neste caso, portanto, não apenas o momento do registro (“carregar a
câmera e apertar o botão”) pode ser um fator gerador de impacto tanto para o cineasta
quanto para aqueles que estão envolvidos diretamente com sua empreitada, mas também
a transformação destes eventos em narrativa, por vezes compostos de passagens delicadas
(imbuídas de fatores conflitosos ou traumáticos) de suas vidas privadas e que cujos efeitos
de exposição em relação ao tempo (o “tempo indefinido”) não podem ser precisados. A
carreira de McElwee é repleta deste tipo de passagem. Por vezes, estes momentos
comprometem-se mais com a evocação de um teor jocoso (como o comportamento
desajeitado do diretor em relação às suas pretendentes em Sherman’s March), mas
também podem reivindicar reflexões mais sérias (a morte do pai do cineasta em Time
Indefinite ou o conflito entre pai e filho em Photographic Memory).
A delicada passagem do aborto espontâneo de Marilyn, que figura na narrativa de
Time Indefinite, suscita reflexões neste sentido. No filme, McElwee narra diversas
situações que antecedem a interrupção da gravidez da esposa, que se apresenta como parte
do ponto de virada narrativo do filme – da alegria para o luto. Pode-se levar em
consideração a circunstância da tomada cinematográfica de cada um destes eventos, como
quando o casal anuncia aos pais de Marilyn que ela está grávida, ou quando McElwee e
a esposa estão em uma loja comprando móveis e enxoval para o bebê vindouro. Nestas
ocasiões, a intenção do registro de McElwee girava em torno da urgência em registrar os
momentos, únicos e insubstituíveis, que compunham o cenário do mais importante
acontecimento de sua vida e de Marilyn – o nascimento do filho –, cujo desfecho triste
seria impossível de antever. Entretanto, a utilização destes eventos como aporte narrativo
após o acontecimento dos fatos gera questionamentos difíceis de serem evitados. Ainda
no início do filme, McElwee narra a viagem que realizou com a esposa para o México.
Diante do fato de ter filmado muitos rolos de película em um cemitério infantil, o cineasta
indaga-se a respeito de estar pensando constantemente na morte de um possível filho:
“Sei que é absurdo preocupar-se sobre algo acontecer com uma criança que nem foi
concebida, mas às vezes acho que isto pode ser parte do problema”. Quando narrou esta
frase ou utilizou-a em um contexto narrativo, McElwee já sabia, evidentemente, o que ia
acontecer: o filho já havia sido concebido e, posteriormente, abortado. Por tratarem-se de
espaços fenomenológicos distintos, o diretor trata de emular estados de espírito e
consciência que estejam vis-à-vis com o “presente” das imagens filmadas. Como frisado
244
anteriormente, o cineasta assegura seu próprio estranhamento diante deste tipo de
procedimento como uma “retrofrenia” que, no limite, suscita em si a sensação de “não ter
fixação na realidade”.
Ainda que McElwee assuma que existe um estranho paradoxo temporal evocado
por sua metodologia fílmica, é possível também questionar sob uma perspectiva ética suas
escolhas estéticas/narrativas que compõem estas passagens de Time Indefinite. O cineasta
nos narra todos os episódios que antecedem a notícia do aborto de Marilyn a partir de um
narrador/personagem que se mostra falsamente ingênuo em relação ao desfecho do caso.
Em outras palavras, é possível delegar à visão artística de McElwee, enquanto cineasta,
um aspecto de certo “sangue-frio” ou, ainda, de certa morbidez. Não é incomum que
casais que passam por episódios de abortos espontâneos apaguem quaisquer memórias
materiais e imateriais que dizem respeito aos filhos que não vieram a ser. Móveis, roupas,
decoração, e, muito frequentemente, fotografias e filmagens do período da gestação
tendem a ser escondidos ou eliminados. O caso do filme de McElwee parece tender ao
oposto desta postura. As circunstâncias vividas pelo diretor e sua família são
transformadas em imagens em movimento cuja metodologia tende a evocar uma
experiência análoga à vivenciada por McElwee nas situações “originais” – sublinhada
pelo narrador que emula sua não-ciência do desfecho desta sequência de eventos. Neste
caso, este período, que muitos poderiam considerar como traumático, é vivido novamente
toda vez que o filme é projetado e assistido por um espectador.
Sob esta perspectiva, as escolhas estético-narrativas do cineasta em um filme
como Time Indefinite podem ser vistas, como frisamos anteriormente, como um fator
gerador de desconforto, ou impacto, para si próprio e para sua família, em relação à
exposição de um momento delicado. Por outro lado, entretanto, se é justamente na
tematização sensível dos âmbitos mais significativos da vida individual e familiar que os
documentários de Ross McElwee transpiram sua particularidade, como poderia ele ter
deixado estes momentos de lado? É neste sentido que pode-se enfatizar que existe uma
difícil relação que vai se construindo entre o “Viver” e o “Filmar” em sua obra, sendo que
os questionamentos resultantes desta relação são o núcleo da particularidade da
empreitada autobiográfica do diretor. Quando frisamos que há um mergulho vertiginoso
do diretor em meio às questões que imbricam vida, filme e autobiografia, o fazemos no
sentido de afirmar que dificilmente outro cineasta tenha lidado com esses aspectos como
fez McElwee até o momento. De maneira análoga à meditação que o diretor faz a respeito
245
da relação entre o cinema e sua própria vida em Sherman’s March – “Parece que estou
filmando minha vida com o intuito de ter uma vida para filmar, como um organismo
primitivo que se alimenta através de seu próprio devoramento, crescendo à medida que
diminui. (...) O que é pior é que parece que não tenho mais uma vida real. Minha vida real
ficou na fenda entre mim mesmo e meu filme.” –, resgatamos aqui a ideia do teórico da
autobiografia Georges Gusdorf, quando afirma que “a verdade da vida não é diferente,
em sua constituição, da verdade da obra: o grande artista, o grande escritor vive, de certa
maneira, para sua autobiografia” (GUSDORF, 1980, p. 47). O comprometimento
explícito de McElwee no engajamento de um projeto autobiográfico que se desdobra por
muito tempo parece tomar forma em Time Indefinite, como uma “promessa” que é
efetivamente cumprida.
Também neste filme o diretor introduz elementos que servirão como metáfora da
relação parental, principalmente do laço que estabelecerá com seu filho, Adrian. Um
destes elementos é a tematização da costa da Carolina do Norte, estado natal do diretor,
banhada pelo oceano atlântico, o mesmo que banha também a Nova Inglaterra e o estado
do Massachusetts, onde McElwee habita e constitui sua família. Time Indefinite inicia
com uma imagem do píer onde o diretor passou muitos momentos de sua infância. Lá, a
pescaria (o ato de pescar) é um elemento a que McElwee recorre quando reflete acerca
do universo de questionamentos suscitado pela “continuidade geracional”. Em
determinado momento ainda no início do filme, McElwee diz em over: “Estou
momentaneamente paralisado por me dar conta que, algum dia, terei um filho ou uma
filha que, entre outras coisas, terá de ser ensinado a pescar”. Não é hiperbólico asserir
que, neste momento, o diretor está sugerindo que seu filho crescerá, será ensinado a pescar
e, muito provavelmente, este evento será registrado e tematizado por ele em algum filme
posterior. O final de Photographic Memory, lançado dezoito anos depois de Time
Indefinite, vem a confirmar a expectativa. Neste, Adrian, já um jovem adulto, junta-se ao
pai em uma pescaria em alto mar um tanto quanto frustrada. O fracasso da pescaria
simboliza, naquele momento, o desgaste da relação entre pai e filho que fora alicerçando-
se ao longo dos anos (e dos filmes).
O leitmotiv do filme In Paraguay, lançado em 2008, tematiza a adoção de Mariah,
filha mais nova do diretor, e se relaciona com uma das últimas sequencias de Time
Indefinite. Nesta, o diálogo entre McElwee, sua esposa, Marilyn, e a amiga Charleen, gira
em torno da possibilidade da adoção de uma criança órfã do “Terceiro Mundo”. Neste
246
sentido, o cineasta por vezes expressa deliberadamente a intenção de seus filmes
“jogarem” com aquilo que a vida reserva para o futuro. Time Indefinite é o filme que
efetivamente abre a porta deste processo autobiográfico desencadeado ao longo das
décadas, cujo desfecho ainda não é possível precisar.
247
3.5. Six O’Clock News (1996): Deus é uma câmera de filmar
Diante da imagem do recém-nascido Adrian com uma semana de idade, Ross
McElwee retoma sua jornada autobiográfica no primeiro plano de Six O’Clock News. O
filme foi finalizado e lançado em 1996, quando o diretor tinha 49 anos de idade. Neste
momento, suas reflexões são colocadas em movimento a partir da experiência recente da
paternidade. Vivenciando uma responsabilidade outrora não reconhecida e enxergando
no filho um pequeno e vulnerável ser humano, o “peso” da existência concretiza-se em
uma nova faceta de sua vida. A matéria-prima temática de Six O’Clock News não se
desvencilha totalmente da trabalhada por McElwee em Time Indefinite. Originalmente,
os dois filmes foram pensados como sendo um projeto único. Neste caso, a trajetória do
diretor e sua família, no que concerne o período desde o casamento até o nascimento de
Adrian, seria uma espécie de introdução à reflexão desenvolvida em Six O’Clock News.
Diante da dificuldade comercial que envolveria um projeto de quatro horas de duração,
McElwee aponta que decidiu por realizar dois filmes independentes (HUNT, 1994).
Existem, entretanto, pontos de contato entre os documentários que reivindicam um olhar
de unidade entre eles.
Em Six O’Clock News, o “mundo lá fora” parece ter se tornado para o diretor um
lugar mais perigoso do que aparentava anteriormente. A indeterminação que tende a reger
a vida – um aspecto já trabalhado tematicamente em Time Indefinite – refere-se, neste
caso, às possíveis ameaças da experiência de habitar o mundo em seu cotidiano. Em Time
Indefinite, a imprevisibilidade do mundo diante da perda relaciona-se mais a fenômenos
que tendiam à naturalidade, como os acontecimentos súbitos da morte de seu pai (uma
espécie de infarto) ou o aborto espontâneo na primeira gravidez de Marilyn. Em Six
O’Clock News, entretanto, McElwee encontra-se aturdido pela imprevisibilidade de
fenômenos violentos causados por forças externas: outros seres humanos ou o poder
catastrófico da natureza. Sua exposição a este tipo de ameaça do mundo externo é
canalizada pela televisão, diante das transmissões dos noticiários diários. Havendo de
passar mais tempo dentro de casa devido à nova situação familiar, McElwee revela estar
mais exposto ao que os programas de notícia das seis horas da noite (os Six O’Clock
News) trazem de melhor – ou pior. Os Six O’Clock News são os telejornais estadunidenses
que têm como matéria-prima diversos tipos de tragédias e revezes, passando por aspectos
de sensacionalismo, não diferentes de programas brasileiros popularescos como “Cidade
248
Alerta” ou “Brasil Urgente”. Assassinatos, roubos, agressões e todo tipo de catástrofes
ambientais, como tempestades, furacões e terremotos, são objeto de pauta destes
programas. O mundo externo em sua imprevisibilidade – o habitat natural de McElwee e
sua câmera de documentarista – é agora enxergado como ameaça constante que coloca
em alerta seu senso paterno de proteção recém-desenvolvido. Desatar este “nó mental”
impõe-se como o objetivo que McElwee pretende desbravar com a câmera nos ombros.
Ao entrar em contato com a maneira através da qual a televisão conta a história
de pessoas anônimas a partir dos episódios violentos ou catastróficos, McElwee coloca
em perspectiva seu próprio trabalho. Afinal, os programas televisivos, entre eles os “Six
O’Clock News”, trabalham com a construção de narrativas partindo da exploração de sua
ancoragem na realidade: os “fatos”, da maneira que aconteceram no mundo concreto,
habitado pelas pessoas. Seriam estes procedimentos substancialmente distintos das
narrativas documentárias cinematográficas que o diretor realizou nos anos anteriores?
Certa suspeição de que o modus operandi das emissoras de televisão passa pela
necessidade de fabulação como ferramenta para a potencialização de efeitos dramáticos
faz McElwee refletir acerca do processo de representação da realidade, como todo. Além
disto, o diretor narra ser vítima recorrente de comentários das pessoas ao seu redor que
dizem que ele deveria aproveitar seu sucesso como documentarista e “tentar a sorte” na
indústria de Hollywood. Aparentemente, pondera McElwee, as pessoas tendem a pensar
no cinema de ficção como filmes “de verdade”, apesar da relação endêmica que
supostamente o cinema documentário teria com a realidade.
Em um dos estudos da representação do real que entra em jogo no filme, McElwee
instiga-se pela possibilidade de entrar em contato mais profundamente com os
protagonistas do tipo de telejornal em questão. O diretor incomoda-se com o fato de que
os episódios (frequentemente violentos, possíveis geradores de trauma) são apenas
retratados de maneira sensacionalista, como requisito sine qua non deste tipo de cobertura
jornalística. Neste sentido, as pessoas que perderam seus entes queridos de maneira
violenta ou abrupta, ou que sobreviveram algum tipo de catástrofe natural, são menos
exploradas na condição de indivíduos repletos de nuances psicológicas e mais como
possíveis geradores de identificação emocional instantânea ou de frases de efeito.
McElwee propõe-se, portanto, a passar um período com algumas destas pessoas que se
tornaram “estrelas” graças aos telejornais popularescos a fim de testar algum outro tipo
de narrativização cinematográfica de suas vidas após os ocorridos. Como acontece na
249
maioria de seus filmes, o cineasta ativa suas meditações quando se coloca em movimento.
Mais uma vez, há a necessidade de deixar momentaneamente o “enclausuramento” do
gelado Nordeste dos EUA, bem como o universo acadêmico do professorado, para lançar-
se à indeterminação do mundo exterior. Como de costume, as andanças de McElwee
passam pelo retorno ao Sul dos Estados Unidos, mas também por uma “epifania” pela
Costa Oeste, onde o cineasta se depara com a influência da indústria da ficção
representada pela Califórnia.
Novamente, o impulso autobiográfico é o fator que tira McElwee da inércia.
Assistindo na televisão às imagens da devastação causada por um furacão49, McElwee
reconhece o local onde reside a amiga Charleen Swansea, na Ilha de Palms, estado da
Carolina do Sul. Em um procedimento análogo ao filme-irmão Time Indefinite, sua
narrativa vagueia pela memória cinematográfica de Charleen em seus filmes anteriores.
Nesta rememoração, McElwee sublinha a coincidência negativa de já ter tematizado uma
tragédia recente vivenciada por Charleen: o suicídio do ex-marido Jim, e a consequente
destruição de sua casa no incêndio provocado por ele. Na nova ocasião, entretanto, a casa
da ex-professora não fora totalmente destruída pelo furacão, mas bastante danificada.
Diante de mais um revés, Charleen confirma o combustível das reflexões de McElwee:
parcela significativa daquilo que compõe a vida de uma pessoa passa por um aspecto de
sorte, azar ou circunstancialidade. A ex-professora sustenta que a sensação de temor
diante da imprevisibilidade do mundo é algo que advém do envelhecimento, sugerindo
que não teria tido filhos se sentisse este medo em sua juventude – uma opinião que vai de
encontro às inseguranças de McElwee em seu recém-adquirido papel paterno.
Como viver dia após dia, portanto, sabendo que vidas e projetos podem
desmoronar de um instante para o outro, sem causa anunciada? Quais as chances de
passar, ao exemplo de Charleen, pela tragédia da destruição de sua casa duas vezes em
um curto espaço de tempo? Pode-se pensar na existência de algo como o destino, ou a
predestinação? Existiria algo, ou alguém, em controle de tudo o que acontece? Diante
destas ponderações, McElwee lembra-se que ele e sua família já passaram por um
episódio próprio de notícia de “telejornal das seis horas da tarde”. Seu irmão mais novo
foi atropelado por uma lancha quando criança, durante um passeio de sua família à praia.
49 Infere-se que as imagens da destruição se refiram ao Furacão Hugo, que assolou esta parte da costa dos Estados Unidos bem como países como Porto Rico e as Ilhas Virgens estadunidenses. Tomando isto como pressuposto, é possível situar temporalmente o início da narrativa de Six O’Clock News em meados de 1989, também o ano do nascimento de Adrian, filho do diretor.
250
“Como isto pode ter acontecido?”, reflete McElwee, diante da possibilidade
“infinitésima” da lancha ter acertado seu irmão, na imensidão do mar e naquele momento
preciso. Mesmo com o fato – já explorado em Time Indefinite e que volta às reflexões do
diretor – seus pais, segundo constata o diretor, conseguiram fazer com que ele e seus
irmãos pequenos sentissem-se seguros no mundo após o acontecimento.
O imigrante sul-coreano Steve Im é uma das pessoas a quem o diretor vai de
encontro em sua jornada. A esposa de Im fora barbaramente assassinada durante o roubo
de uma loja da qual o casal era proprietário. O empresário rumara aos Estados Unidos em
busca de prosperidade financeira e das promessas do “sonho americano”, chegando ao
país com apenas cinquenta dólares no bolso e construindo, após décadas, um patrimônio
milionário. Im, entretanto, é relutante quanto à cultura capitalista americana, após o
incidente com a esposa. Segundo ele, sua relação com os EUA varia entre o amor e o
ódio. Em sua reflexão em over, McElwee constata que o capitalismo parece ser a “religião
nacional” dos Estados Unidos. Provavelmente, segundo o diretor, o empresário amparou-
se em uma espécie de “salvação monetária” a fim de lidar com o luto. Haveria, desta
forma, uma relação descompensada entre a idealização do “sonho americano” e o fato de
sua esposa ter sido assassinada em um assalto que rendeu cinquenta dólares aos
assaltantes. Tal banalidade provoca em Im a dificuldade de acreditar que Deus está em
cargo de alguma coisa, após a tragédia – o temor diante da imprevisibilidade do mundo
cresce com a sensação de que Deus haveria perdido o controle das coisas.
Há, portanto, uma relação entre “Deus”, “mundo” e “câmera” que começa a se
configurar na narrativa de Six O’Clock News e que permeia o pano de fundo temático do
filme. Em contraponto à história de Steve Im há a de Salvador Peña, buscado pelo diretor
já durante sua passagem pela California. Sua história tornou-se famosa devido ao acidente
que sofreu durante um terremoto. Peña, imigrante salvadorenho, trabalhava como
faxineiro em um estacionamento quando uma viga se rompeu em decorrência do tremor,
mantendo-o soterrado por blocos de concreto. Em decorrência de diversas lesões nos
braços e pernas, seus movimentos foram parcialmente comprometidos. Entretanto, sua
sobrevivência ao acidente foi tratada como “milagre” pelos médicos e pela mídia – se sua
posição no estacionamento tivesse sido alguns centímetros diferente, o acidente seria
fatal.
O diretor passa dias acompanhando Salvador Peña e sua família em um barrio de
Los Angeles, descrito pelo diretor como perigoso. Como o imigrante sul-coreano Steve
251
Im, Peña também veio aos Estados Unidos em busca de melhores condições de vida,
porém não conseguiu alcançar o mesmo sucesso financeiro. Suas jornadas de oitenta
horas de trabalho semanais, McElwee nos conta, serve apenas para sustentar a si próprio
e a uma família de seis pessoas que permanecem em El Salvador. Em um dos trechos de
sua narração em over, McElwee responsabiliza o governo dos Estados Unidos pela
interferência nos assuntos internos de países latino-americanos, culminando na
manutenção de processos ditatoriais, e, por conseguinte, em uma desestabilização social
que causou a emigração de diversos de seus habitantes50.
Neste ponto, a reflexão do diretor toca o questionamento acerca do tipo de “sorte”
que poderia ser relacionada ao fato de Salvador Peña ter saído vivo de seu acidente. Ao
invés disso, McElwee pondera, como não enxergar tudo o que passou consigo a partir da
perspectiva de um azar profundo? Sua saída de El Salvador com o intuito de viver melhor
custou-lhe um acidente de consequências graves para sua saúde. Como não olhar para o
ocorrido a partir da perspectiva de um revés que poderia ter sido evitado, ou que poderia
ter acontecido com qualquer outra pessoa, que não ele? Em contraponto a certo ceticismo
que permeia as reflexões de McElwee durante o filme, Salvador Peña assere que, à
maneira de Abraão, o acidente teria sido designado por Deus, a fim de “testar” como ele
reagiria à experiência. Peña diz crer ainda mais em Deus após o acontecido, e acredita
que a incorporação da experiência o transformou em um ser mais belo.
Ainda que não da maneira mais ortodoxa como os processos pelos quais passaram
indivíduos como Steve Im ou Salvador Peña, McElwee também testa suas próprias
crenças em Six O’Clock News. Acompanhando o salvadorenho em uma missa católica
em Los Angeles, McElwee reflete: “É estranho, volta e meia encontro-me dentro de uma
igreja com uma câmera”. O diretor lembra-se, por exemplo, que aos doze anos de idade
fora contratado para gravar o áudio dos sermões do pastor da Igreja local, ou que seu
primeiro trabalho como cameraman foi o de registrar missas presbiterianas de domingo.
É interessante que o realizador exponha efetivamente este sentimento, colocando em
palavras algo que já acontecia em seus filmes anteriores. McElwee depara-se com
manifestações de religiosidade com sua câmera desde o início de sua carreira
autobiográfica e este permanece sendo um aspecto que permeia todos os seus filmes até
50 A mesma crítica pode ser observada, anos depois, na análise histórica realizada por McElwee em relação ao Paraguai, em In Paraguay (2008).
252
Photographic Memory. Em todos eles, em dado momento, McElwee está presente dentro
de uma igreja com a câmera nos ombros.
Figura 42: McElwee filma uma missa católica em Six O’Clock News (1996)
O realizador traça um paralelo próximo entre religiosidade e o ato de filmar pois,
como aponta Scott MacDonald, o fazer cinematográfico é a crença mais profunda de
McElwee, a maneira através da qual ele lida com o aspecto “surreal” do mundo
(MACDONALD, 2013, p. 223). Sua “religiosidade” para com a câmera e para com a
possibilidade de narrativizar sua própria vida em construções cinematográficas acontece
de diferentes maneiras. Pode-se lembrar da colocação de Josep María Català, já explorada
aqui, que enxerga a relação primária entre McElwee e a documentação contínua dos
eventos ao redor de si como uma “penitência imposta por um Deus sombrio”. Ou, uma
espécie de fardo que McElwee carrega consigo, projetando esta atividade a um “futuro
indefinido”, cuja conclusão ou linha de chegada permanece em um lugar nebuloso.
Semelhantemente, existe um paralelo incontornável em relação à maneira através da qual
o realizador enxerga a câmera de filmar como única ferramenta capaz de ajudá-lo com o
processo de luto da morte do seu pai – enquanto que no caso de outras pessoas, a
aproximação com a religião também é, muito frequentemente, um meio utilizado para o
mesmo fim.
253
Neste sentido, outro ramo do eixo temático de Six O’Clock News dedica-se ao
“teste da fé” de McElwee em relação à maior de suas crenças, o fazer cinematográfico.
Mais precisamente, trata-se de sua “fé” no cinema documentário como possibilidade de
reflexão sobre o mundo material e sobre as pessoas que o habitam. Como frisado, o modus
operandi dos programas de televisão em relação à narrativização da realidade é olhado
com suspeição pelo diretor, sendo uma abordagem cancerosa da mesma matéria-prima
que ele utiliza para a construção de seus filmes. O primeiro de seus “testes de fé” acontece
quando o cineasta recebe uma equipe de telejornalismo em seu apartamento, sendo
entrevistado como “o cineasta que filma constantemente todos ao seu redor”. McElwee
surpreende a equipe ao recebe-los já com a câmera em punho, fazendo com que os
repórteres queiram “reencenar” a entrada no apartamento, filmando o momento da
surpresa. Sobre as imagens de sua entrevista, o diretor divaga: “Então, trata-se de algo
menos real o fato de que estão entrando no meu apartamento pela terceira vez? Que
diferença faz isso, em última instância? Eu editarei esta cena para meus propósitos da
mesma maneira que eles o farão para os propósitos deles. Mas uma versão é mais real que
a outra?”.
Em outro momento de sua jornada, McElwee encontra-se em uma cidade no
deserto do Arizona devastada por uma tempestade. O local aos poucos é tomado (ou
“invadido”, segundo a ótica do diretor) por diversas equipes de telejornalismo. O cineasta
filma o depoimento de um casal que teve seu trailer poupado pela tempestade, e logo sua
câmera chama a atenção das equipes de televisão que acabam por colher o mesmo
depoimento. Mais tarde, McElwee registra o casal assistindo, ansiosamente, a própria
estória figurar uma reportagem de noticiário. Em sua meditação em over, McElwee
aponta as “três” versões da representação do mesmo fato: a que realizou horas antes, a
matéria feita pela equipe de televisão e o registro do casal assistindo à veiculação da
matéria. Trata-se de um questionamento das diferentes possibilidades de construção de
sentido do cinema documentário semelhante à realizada por Chris Marker na famosa
sequência de Lettre de Siberie (1958), em que o diretor narra de três maneiras diferentes
o mesmo conjunto de planos. Mesmo com uma exposição de apenas nove segundos no
telejornal, de acordo com as contas de McElwee, o casal apresenta um entusiasmo
inegável de estar “aparecendo na televisão” – provavelmente, um entusiasmo maior
daquele apresentado diante da promessa de figurar em seu documentário. Ao final da
narrativa, McElwee constata mais uma situação de “vitória” da televisão em relação ao
254
seu trabalho: Salvador Peña teve a história de seu acidente comprada pelo programa
Rescue 911, que trabalha com redramatizações de situações de resgate acontecidas na
vida real, em um estilo de docudrama televisivo fortemente difundido.
O cineasta utiliza-se destes momentos em Six O’Clock News para evidenciar que
a construção de narrativas audiovisuais em veículos como a televisão parecem apresentar
um poder de sedução por entre o público geral mais pronunciado do que o cinema
documentário – e, especialmente falando, do que documentários independentes e de
aporte pessoal, subjetivo ou autobiográfico. A vulnerabilidade de McElwee para com sua
“fé” passa também por constantes comentários, à sua volta, em relação à produção
cinematográfica ficcional como o ponto de chegada do profissionalismo de seu metiér.
Diante do novo cenário familiar, tendo um filho pequeno para sustentar e frente à
crescente dificuldade de obter financiamento para seus filmes, McElwee questiona: não
seria o momento dele próprio considerar mais de perto a opção de trabalhar na grande
indústria cinematográfica estadunidense? Ademais, se aparentemente todo discurso passa
por certo grau de fabulação ou dramatização, por que não “dar meia volta” em sua
atividade cinematográfica?
A opção torna-se palpável diante de um convite de produtores de Los Angeles,
que sinalizam que existe o interesse real de um estúdio Hollywoodiano, a Miramax, na
produção de um filme de ficção baseado em um documentário autobiográfico, sendo que
McElwee fora o nome cotado para a direção do filme. A oferta, que já apresenta certa
concretude orçamentária, soa tentadora. Apesar de lisonjeado, McElwee pondera
posteriormente em sua voz over que existe algo estranho em relação a isto tudo. Como
parte de sua “epifania da costa oeste”, o cineasta presencia uma filmagem que acontece
no píer da praia, posteriormente descobrindo tratar-se de uma cena do seriado Baywatch
– visto, segundo McElwee, por mais de 1,4 bilhões de pessoas. Assistindo à cena de cima
do píer, McElwee diz que tudo parece tratar-se de um jogo de xadrez: “Você pode ver o
diretor decidindo para onde mover as peças. E normalmente trata-se do conjunto usual de
peças: “caras”, armas e, é claro, garotas de biquíni. Mas mesmo assim, o diretor tem
controle completo. Seis centímetros para a esquerda, ou um passo para a direita – ele pode
fazer as coisas acontecerem da maneira que quiser, desvencilhado das intrusões fatídicas
da vida real".
As “intrusões fatídicas da vida real”, reflete McElwee, que se cristalizam no
momento seguinte diante de sua câmera. Um homem, aparentemente alcoolizado,
255
“estraga” a tomada que o realizador estava fazendo, apontando sua semelhança com o
astro hollywoodiano Paul Newman. De certa maneira, trata-se de um acontecimento
análogo ao momento em que o cineasta cruza caminhos com o sósia de Burt Reynolds na
jornada de Sherman’s March. É inevitável: McElwee parece fadado a lidar, como
matéria-prima cinematográfica, com os momentos mais mágicos da sorte, do acaso e da
imprevisibilidade que a vida mundana vem a oferecer. Seus filmes dependem, por um
lado, de um trabalho analítico minucioso, através do processo de montagem ou de
escrita/narração em voz over, que evocam sua expertise intelectual e artística. Por outro
lado, entretanto, este aspecto tende a ser complementado pela “mágica” da
imprevisibilidade do mundo e da “coincidência” – termo utilizado pela autora Diane
Stevenson (2009) na análise de sua obra. É evidente que para McElwee há algo ao mesmo
tempo assombroso e sedutor no trato com o mundo exterior em seu descontrole. A
sensação de surpresa evocada pelas tragédias dos telejornais noturnos (“Como isto pode
ter acontecido”?) não é tão distinta, em sua essência, da sensação de antecipação da
realidade que um cineasta experiencia na metodologia do cinema direto, em seus
melhores momentos.
A redenção do cineasta para com sua fé acontece ao final de sua epifania pela
costa oeste, quando visita uma Câmara Escura em atividade, abrigada dentro de uma casa
de repouso para idosos e que, aparentemente, não recebe muitos visitantes. Colocando o
aparato em funcionamento, McElwee observa a projeção um pouco distorcida do “mundo
lá fora” em sua naturalidade: pessoas, palmeiras, ruas, carros e o mesmo píer onde
assistira à filmagem do programa de televisão. “Tudo parece tão frágil”, aponta McElwee,
provavelmente, agora, a partir de um olhar mais de ternura do que de pavor diante da
aleatoriedade do mundo. Parece também inevitável que é o “milagre da realidade”,
projetado em uma tela, que faz o coração do cineasta bater mais forte e o coloca em
movimento artístico. É neste momento que McElwee expressa sentir o “desejo
irresistível” de estar junto de sua família, Marilyn e Adrian, novamente – a mesma frase
usada para voltar à sua casa em Boston depois de seu processo de luto em Time Indefinite.
Deus parece estar, para McElwee, nos detalhes da vida cotidiana. O cineasta enche-se de
amor no momento em que está no centro de uma Câmara Escura, da mesma maneira que
sente a “estranha calma” na casa de Salvador Peña, tentando capturar a presença de Deus
em celuloide, como se ele estivesse escondido entre a luz e a sombra.
256
Figura 43: Adrian McElwee aos quatro anos de idade, em Six O’Clock News (1996)
O projeto hollywoodiano para o qual McElwee fora convidado não seguiu, enfim,
adiante, como vimos a saber em sequência, quando o cineasta já está de volta ao seu lar
em Boston. Há uma elipse narrativa de três anos e o cineasta nos coloca diante do
aniversário de quatro anos de Adrian, agora uma criança que anda, brinca, pinta e,
principalmente, fala. Adrian aparece como um interlocutor ativo do cineasta, dando sinais
naturais de eloquência e criatividade. Em seu quarto, o filho mostra ao pai um quadro que
pintou, repleto de cores distintas e formas abstratas. A imagem, segundo Adrian,
representa aquilo que imagina ser Deus. Coincidentemente – ou não, neste contexto – a
figura que Adrian diz remetê-lo a Deus assemelha-se bastante com uma câmera de filmar,
McElwee sustenta.
O primeiro plano de Six O’Clock News é o da imagem de Adrian com uma semana
de idade, conforme prometido no final de Time Indefinite. No filme anterior, McElwee
diz que eventualmente utilizaria a imagem para realizar um filme que lidaria com “Adrian
crescendo no mundo” o que, de alguma forma, vem a concretizar-se durante a narrativa.
O final de Six O’Clock News apresenta outro “marco” para o projeto de McElwee. A partir
dali o cineasta faz da figura de seu filho o principal ponto de contato no que concerne a
motivação autobiográfica dos filmes. As meditações do diretor em relação à paternidade
e ao ciclo da vida encontram, agora, a própria voz e consciência de Adrian como
interlocutor. Seu próximo lançamento, Bright Leaves, mostra o filho como pré-
257
adolescente e como um indivíduo de personalidade formada, no qual tematiza-se certo
distanciamento entre pai e filho que encontra seu clímax em Photographic Memory.
Ainda em Six O’Clock News, há dois momentos em que Adrian parece reagir à câmera
de McElwee e ao ato de filmar. Nas primeiras tomadas do filme, o recém-nascido chora
diante da lente, nos braços de sua mãe, que sugere: “Adrian, você quer que ele pare (de
filmar)?”. Ao final da narrativa, o filho convida o pai para acampar em uma barraca,
dentro do próprio quarto. Tendo em vista que McElwee continua a filmar a cena, Adrian
pergunta: “mas como você vai acampar com a câmera?”. O ato de viver e o ato de filmar,
desta forma, permanecem constituindo uma via de mão dupla, com causas e
consequências interdependentes, que permeia com mais força a obra autobiográfica de
McElwee à medida em que cada um de seus filmes adiciona uma nova camada à “teia de
relações”. Esta mostra-se intensificada pela mudança das relações afetivas entre o
cineasta e as pessoas ao seu redor, diante da força da passagem do tempo.
Figura 44: Deus – ou uma câmera de filmar – na pintura de Adrian McElwee, em Six O’Clock News
(1996)
258
3.6. Bright Leaves (2004): Cinema e legado familiar
Bright Leaves é lançado em 2004 após um hiato de oito anos desde a finalização
de Six O’Clock News. Em seu livro “O filme-ensaio”, o autor Timothy Corrigan dedica
uma análise extensa ao filme, considerando-o uma obra que eloquentemente trabalha com
o jogo entre voz e imagem como a expressão de uma experiência tanto pessoal (privada)
quanto pública (CORRIGAN, 2015, p. 28). O ponto da análise de Corrigan sustenta-se
na maneira através da qual Bright Leaves contempla a confluência entre a expressão de
um universo pessoal, familiar e interior de Ross McElwee e sua relação com o mundo
histórico e social, neste caso, ligado especialmente ao estado natal da Carolina do Norte.
Este aspecto pode ser detectado em seus filmes anteriores, como no estabelecimento de
uma relação entre a busca pelo amor romântico e a Guerra Civil em Sherman’s March. É
possível dizer, entretanto, que Bright Leaves apresenta uma maturação do estilo de
McElwee especialmente no aspecto levantado por Corrigan – a potencialização do
entrelaçamento entre o pessoal e o público através da força analítica individual do diretor.
Também neste sentido, o cineasta assere que encontrar o balanço certo entre todos os
“temas” abordados pela narrativa de Bright Leaves provou ser o maior desafio do filme,
mais do que as filmagens em si (PBS, 2005). O senso de “maturidade” mencionado em
relação a Bright Leaves encontra-se também no fato de que estamos em contato com um
McElwee mais velho e experiente. Trata-se de um estado de consciência atualizado no
que diz respeito, por exemplo, à experiência da paternidade – novamente uma das
principais forças propulsoras de suas indagações em relação ao mundo. No filme, diante
do rol de nuances advindas da relação com um filho pré-adolescente, McElwee começa,
pela primeira vez, a sentir-se mais como o seu próprio pai. A presença da figura paterna
austera revisita-se como a expressão de amorosidade e preocupação, neste novo
momento. De alguma forma, o cineasta passa a aproximar-se, ele próprio, daquilo que
seu pai representava para ele nos primeiros anos de sua carreira cinematográfica.
O título Bright Leaves, “folhas brilhantes”, relaciona-se ao tipo de planta de tabaco
Brightleaf, espécie que se difundiu amplamente pelo solo arenoso da Carolina do Norte,
que, nas palavras de McElwee, “suplicava por tabaco”. Este tipo de tabaco tornou-se uma
das espécies mais comercializadas do produto, tanto para consumo no país quanto para
exportação global. O nome Bright Leaves também se relaciona ao filme Bright Leaf,
melodrama hollywoodiano dirigido por Michael Curtiz (diretor de Casablanca [1942],
259
entre outros clássicos), lançado em 1950 e estrelado por Gary Cooper, Patricia Neal e
Lauren Bacall. O filme foi baseado no romance homônimo lançado no ano anterior pelo
autor sulista Foster Fitz-Simmons e que lida com o início da produção de tabaco no estado
da Carolina do Norte, a partir da estória da rivalidade entre dois empreendedores que
buscavam implantar e desenvolver o negócio. Diante da imagem das folhas de tabaco em
uma extensa plantação McElwee começa sua narrativa de Bright Leaves. O cineasta nos
conta que a figura das imensas e estranhas plantas surgiram para ele em um sonho, que,
ao ser interpretado por sua esposa, representariam plantas de tabaco. A lavoura de tabaco,
símbolo cultural e econômico da Carolina do Norte, apontaria analogamente para sua
identidade sulista que, no momento, apresentava-se dormente. Com o estabelecimento da
família McElwee no Norte durante o período de crescimento de Adrian, as idas do
cineasta para o Sul dos EUA tornaram-se cada vez menos frequentes. O ímpeto
cinematográfico é colocado em movimento a partir da constatação da esposa de que o Sul
sempre estaria em seu sangue, independente do fato da família ter se estabelecido na Nova
Inglaterra. Uma “transfusão periódica de ‘sulice’” seria necessária. Estabelecido o parti
pris de McElwee em relação à nova jornada, o cineasta ruma para o Sul para iniciar seu
filme.
Figura 45: As folhas de tabaco no “sonho” de McElwee em Bright Leaves (2004)
A hipótese de que o clássico Bright Leaf diria respeito à história da família
McElwee instiga o cineasta em sua meditação por meio de lavouras de tabaco, em uma
260
jornada que passa pelas nuances da história da produção cinematográfica hollywoodiana
e pela sua história familiar – tanto uma história de um tempo passado, remoto, quanto a
história que se constrói em um espaço temporal paralelo ao momento das filmagens. Na
casa do primo de segundo grau John McElwee, um dos integrantes do “clã” da família
que se firmou na Carolina do Norte ainda no século XVIII, o cineasta entra em contato
com o filme Bright Leaf. Ávido colecionador de todo tipo de memorabilia do cinema
clássico hollywoodiano – uma vasta filmoteca de películas, trailers, fotos still – o primo
traz a hipótese de que o personagem vivido por Gary Cooper no filme seria, no limite,
uma representação da história do bisavô dos primos, John Harvey McElwee, e sua relação
com o desenvolvimento da produção do tabaco na Carolina do Norte.
A história do bisavô é conhecida por toda a família. Iniciando como pequeno
produtor de tabaco, John Harvey McElwee viu o negócio dar sinais de prosperidade a
partir da popularização de sua marca “Bull Durham”. O bisavô viu-se no meio de uma
disputa judicial com o rival produtor, James B. Duke, que reivindicava a autoria da marca.
Após um estendido período de batalhas nas cortes, envolvendo um gasto de ambas as
partes equivalente a milhões de dólares em valores atuais, a família Duke venceu os
McElwee judicialmente e obteve os direitos de uso do nome Bull Durham para o produto.
Em grande parte, a vitória deveu-se fato do patrimônio dos Duke ser maior e possibilitar
uma “resistência” aos custos judiciais por mais tempo. Deste momento em diante, para
os Duke reservou-se um lugar na história da Carolina do Norte e dos Estados Unidos.
Monopolizando a produção de cigarros industrializados, os Duke tornaram-se uma das
famílias mais ricas do país – uma espécie de versão sulista dos Rockefellers, como aponta
Ross McElwee durante o filme. Entre casas ostensivas e ações de filantropia, a família
conquistou um lugar permanente no imaginário da população da Carolina do Norte.
Criaram o fundo da família Duke (Duke Endowment), que hoje totaliza mais de três
bilhões de dólares e é dedicado ao financiamento e suporte de instituições de saúde e
ensino superior na Carolina do Norte e do Sul, como é o caso da Duke University, a
principal universidade da região, bem como o de diversos hospitais nos dois estados.
O fato de McElwee ter entrado em contato com a trama hollywoodiana de Bright
Leaf, na qual o personagem de Gary Cooper vai da fortuna promissora à falência total,
resgatando analogamente a narrativa de seu bisavô, acaba por levantar velhas feridas da
família. O cineasta lança, em determinado momento de Bright Leaves, um pensamento
que deve ter passado por todos os membros do clã McElwee ao longo de suas vidas: “Se
261
as coisas tivessem sido ligeiramente diferentes, tudo isto (o patrimônio dos Duke) teria
sido meu”. Para o cineasta, entretanto, não se trata apenas de uma questão do patrimônio
financeiro que a família Duke pôde obter com o sucesso na batalha judicial contra seu
bisavô. Mais do que isto, McElwee parece sentir-se injustiçado em relação ao fato da
história de sua família na cultura de tabaco da Carolina do Norte ter sido relegado à
“lixeira da História”. Haveria, portanto, a necessidade de reivindicar mais urgentemente
uma espécie de patrimônio imaterial que o cineasta reconhece como merecido pelos
McElwee. Algum reconhecimento, que o cineasta também julga ter sido “roubado” pelos
Duke em um episódio que remonta a táticas agressivas de persuasão e suborno judicial,
às quais seu bisavô não pôde fazer frente. Se os Duke, como frisado, detém um lugar
irrevogável no imaginário da Carolina do Norte, nomeando hospitais e universidades, a
preservação da História dos McElwee neste mesmo episódio se dá por meio do “Parque
McElwee”: um pequeno canteiro com dois bancos de madeira, sustentado por um bem-
intencionado preservacionista da história do estado que o cineasta vem a conhecer durante
a feitura do filme. Bright Leaf, o melodrama vivido por Gary Cooper, portanto, parece
ser uma alternativa obscura – o filme não é um marco em popularidade, sendo
desconhecido pelo próprio cineasta – à “História oficial” de seu estado natal. Resta a
dúvida, entretanto, se a estória do plot de Bright Leaf, tanto em relação ao romance de
Foster Fitz-Simmons ou ao filme subsequente, de fato foi baseada na história de John
Harvey McElwee. “Seria possível?”. Um dos arroubos da curiosidade do cineasta em
Bright Leaves relaciona-se diretamente a esta pergunta, a qual tenta responder em suas
andanças pelo estado, munido da câmera no ombro.
Um outro lado da questão, entretanto, vem à tona em suas indagações. Seria o
desvencilhamento do nome da família McElwee à cultura do tabaco na Carolina do Norte
um infortúnio ou, em última análise, a maior tacada da sorte de seus parentes? A cultura
do tabaco no estado natal de McElwee apresenta uma influência dominante não apenas
em um passado remoto, mas ainda na contemporaneidade, desdobrando-se como uma das
principais atividades econômicas do estado, figurando como pano de fundo em diversas
manifestações culturais e fazendo parte da história do desenvolvimento de inúmeras
famílias da região. Apesar disto, ao adentrar-se na década de 2000, período da feitura do
filme, é possível dizer que o tabagismo se encontra em um período de impopularidade. O
tabaco é, já durante a filmagem de Bright Leaves, uma das principais questões de saúde
pública nos EUA e no mundo, especialmente no que toca às propriedades de dependência
262
narcótica trazidas pelo hábito de fumar. McElwee concentra seus esforços na reflexão
acerca da influência que a misteriosa planta detém sobre a população de seu estado natal.
Olhando ao redor de si, o cineasta reconhece personagens – muitos com quem
mantém algum tipo de laço social prévio à filmagem – que trazem estórias particulares
de suas relações com o tabaco. Desde o estranho balanceamento entre o glamour e a
sensualidade que envolve o hábito de fumar versus suas propriedades mortíferas a partir
de um vício de difícil abandono, passando pela história de famílias que sobrevivem
economicamente da produção e venda do tabaco, McElwee constrói uma espécie de
“mosaico” de pessoas e depoimentos que serve como um panorama do estado atual da
Carolina do Norte e de seu imaginário quanto à planta.
A amiga/mentora Charleen Swansea é novamente procurada por McElwee.
Charleen conta a história de sua irmã, portadora de um pesado vício em cigarros e que se
encontra em estado de saúde terminal devido a um câncer causado pelo tabagismo51.
Posteriormente no filme, McElwee acompanha Charleen ao túmulo de sua irmã que,
infere-se, morreu poucas semanas depois do primeiro contato entre ambos. Outra parte
deste “mosaico” refere-se a um casal de amigos que pede que o diretor os filme
periodicamente na tentativa de parar de fumar. Comicamente, em cada encontro com o
casal, existe um novo motivo pelo qual relatam a impossibilidade de parar totalmente com
o hábito, propondo uma nova data-limite. Há o caso do homem que teve um acesso de
abstinência de nicotina ao sentir o cheiro do tabaco queimado vindo do cachimbo de um
capitão de navio, durante uma travessia a nado pelo Canal da Mancha. Há o amigo do pai
de McElwee, um senhor fazendeiro cuja família trabalha com a plantação de tabaco há
gerações e que é devoto cristão praticante. Diante da pergunta do cineasta a respeito da
opinião do pastor sobre o tabaco e seus malefícios, o fazendeiro relata que existem
“sentimentos divididos” (mixed feelings) em relação ao seu hábito e ao seu cultivo. O
mesmo sentimento dividido, uma espécie de “c’est la vie”, parece rodear os habitantes da
Carolina do Norte, especialmente aqueles que lidam de maneira direta com o tabaco como
meio econômico de subsistência. É o caso de outra fazendeira com quem McElwee cruza
51 É interessante mencionar que em Bright Leaves Charleen aponta que ela própria quase “cometeu suicídio com cigarros”, da mesma forma que a irmã. No primeiro documentário finalizado por McElwee, Charleen, em 1979, vemos a protagonista portando uma relação bastante intensa com o hábito de fumar, segurando um cigarro aceso em diversas das sequências do filme. Apesar de não haver referência explícita ao filme de 1979, é possível ressaltar o aspecto autorreferente do comentário de Charleen em relação à própria carreira anterior de McElwee, também contribuindo para o senso de autobiografia “continuada” sobre o qual nos detemos no trabalho.
263
caminhos que perdera a mãe recentemente, devido a um câncer de pulmão causado por
fumo compulsivo. Apesar de continuar trabalhando com a lavoura do tabaco, ela assere
chorosamente que nem ela e nem seu trabalho foram responsáveis pela morte de sua mãe,
nem de nenhuma pessoa que morre em decorrência do vício.
McElwee não aderiu ao tabaco, segundo ele nos conta. Como exposto no filme, o
bisavô John Harvey McElwee teve uma relação estreita com o hábito de fumar. Seu filho,
avô do cineasta, também manteve o vício, ocasionando posteriormente uma complicação
de câncer de pulmão, que o levou a óbito. O pai do diretor não fumava, constatando a ele
que a coisa mais difícil que teve de fazer durante a vida foi observar de maneira impotente
o pai morrendo vagarosamente de câncer. Diante de lembranças como estas, McElwee
queixa-se que a figura do pai parece continuamente esvanecer de sua memória à medida
que o tempo passa. Mesmo as imagens cinematográficas que o diretor acumula ano após
ano parecem “não ajudar muito”, segundo o próprio. Em Time Indefinite, dez anos antes
do lançamento de Bright Leaves, McElwee utiliza-se de imagens feitas na década de 1970
de seu pai lendo o jornal em uma situação familiar matinal, asserindo sobre a maneira
através da qual “edita e reedita” seus registros filmados, como sendo uma tentativa, quiçá
infrutífera, de “reanimá-las de volta à vida” de tempos em tempos. McElwee enxerga no
registro de seu pai lendo o jornal um ato simbólico de uma atividade banal que se torna
única a partir de sua cristalização em imagem em movimento. O cineasta resgata este
momento no fundo de sua memória cinematográfica quando a suspeição acerca da
utilidade de seu trabalho como “guardião” da memória familiar parece assolá-lo mais uma
vez. Em Bright Leaves, vendo novamente seu pai lendo o jornal na cozinha do lar dos
McElwee na distante Carolina do Norte dos anos 1970, McElwee assere: “Mesmo nestas
imagens, com o passar do tempo, meu pai está começando a parecer cada vez menos real
para mim – como um personagem ficcional. Gostaria muito de reverter este fluxo, a
maneira que a realidade dele está se esvanecendo. ”.
“O que exatamente está sendo preservado aqui? O que está sendo passado
adiante?”, McElwee questiona-se em relação ao trabalho do amigo historiador
preservacionista, através de quem entra em contato com a existência do “Parque
McElwee”, em memória da contribuição de seu avô para a história do legado do tabaco
na Carolina do Norte. A mesma inquietação subjaz aos questionamentos do cineasta em
relação ao “peso” das imagens acumuladas de seu pai que, nos momentos mais críticos,
pouco parece contribuir com sua memória, ou com a tentativa de “trazê-lo de volta à
264
vida”, para perto de si, anos depois do registro. McElwee cede ao fato de que estar
novamente em sua terra natal, depois de um processo gradual de afastamento e de
“nortificação”, é o que parece reavivar a memória e o legado de seu pai. É o caso, por
exemplo, quando visita Tom, o irmão cirurgião que continuou a tradição dos McElwee
na medicina e passou a cuidar de diversos pacientes que eram de seu pai – alguns deles
com problemas relativos ao uso continuado do cigarro. Buscando entrar em contato com
pacientes que foram tratados por seu pai, McElwee adensa a sensação de vivificar sua
memória. Um deles foi operado pelo pai do diretor um dia antes deste ter tido o ataque
cardíaco repentino que o vitimou. Outro deles teve um câncer bucal curado pelas mãos
do pai de McElwee e assere à lente da câmera: “Enquanto você viver ele continuará
vivendo, pois sua voz é exatamente igual à dele”. Esta frase revela-se à câmera do cineasta
trazendo à tona novamente a principal questão que circunda seu projeto autobiográfico:
o tempo e, especialmente, sua passagem, são implacáveis. Poderia McElwee, neste novo
momento, apresentar-se para as pessoas à imagem e semelhança de seu pai? E, ainda,
duas décadas depois do jovem McElwee construir cinematograficamente a figura paterna
como um homem austero e distante, poderia agora sua visão de mundo estar se
aproximando da de seu pai, que uma vez fora reconhecida apenas em sua disparidade?
Conversando com a filha de um dos pacientes do pai, o cineasta escuta uma
história nunca a ele revelada: a de que o pai de McElwee e o paciente, que passaria por
uma cirurgia, ajoelharam-se juntos para rezar nas vésperas do procedimento. Esta
sequência pode ser encarada como outro “marco” do processo de maturação
cinematográfica e individual de McElwee. A história que o cineasta passa a conhecer
explica uma das sequências mais marcantes de Backyard, seu primeiro filme
autobiográfico. Na sequência de Backyard, o pai do cineasta escuta a canção “Noite Feliz”
sendo cantada pelo telefone por um de seus pacientes e sua esposa – estes, pais da mulher
que conta a história sobre a cirurgia vinte anos depois. Em seguida, assistimos ao casal
realizando mais uma vez a performance da canção, porém agora diretamente diante da
lente do próprio McElwee, já em Bright Leaves, como aponta Scott MacDonald (2013, p.
225), e corta-se para a sequência original de Backyard, como se o pai pudesse ouvir
novamente a canção, de algum lugar do infinito, através do filme que o filho agora realiza.
Sobre a sequência, McElwee aponta apenas, em over, que outro dos mistérios
relativos àquele peculiar momento filmado ficou sem resposta: o fato de que o pai, apesar
de presbiteriano convicto, estava trajando um yarmulke judeu na noite de Natal. A
265
pergunta sobre esta particularidade, sempre postergada pelo diretor, acabou nunca sendo
feita. Entretanto, há uma forte simbologia na sequência que diz respeito às preocupações
de McElwee em seu projeto continuado. Com estes momentos, o realizador passa a entrar
em contato com uma faceta diferente de seu pai, que não havia sido detectada
anteriormente ou, mais provavelmente, que se fazia oculta diante do leque de perguntas
e inquietações que compunham sua consciência, como jovem cineasta. Dez anos depois
tornar-se pai, ele próprio, o diretor passa a enxergar ternura e sensibilidade na figura
paterna que anos antes era enquadrada na “mira” de sua câmera apenas a partir de uma
situação de alteridade: como o pai médico-cirurgião republicano diante de um filho
democrata, com aspirações profissionais artísticas e que se mudou permanentemente para
o Norte a fim de entrar em contato com o metiér da alta cultura estadunidense. Já
adentrando certa maturidade etária – Bright Leaves foi lançado em 2004, quando
McElwee tinha cinquenta e sete anos –, o cineasta enxerga o pai pela primeira vez
(cinematograficamente) a partir da figura humana de um médico que se ajoelha junto de
um paciente para rezar, às vésperas de sua cirurgia. Algo aparentemente inimaginável
tanto para ele próprio quanto para a sociedade na qual estava inserido: a família dos
Massies, que finalmente vemos diante da câmera, vinte anos depois de Backyard, é
afrodescendente. O fato de um médico-cirurgião branco ajoelhar-se com um paciente
negro para rezar, no Sul estadunidense da década de 1970 ou antes, é realmente mais
significativo do que uma simples anedota. Seria, talvez, algo que “faria muitos ianques
caírem da cadeira”, como aponta Scott MacDonald (1988), quando comenta sobre a
relação de afeto dos McElwee com a cozinheira Lucille, em Backyard.
Figura 46: O casal Massies canta novamente “Noite Feliz”, em Bright Leaves (2004)
266
Como frisado, o desenvolvimento da experiência paterna do cineasta é um dos
aspectos que transpira em seu estado de consciência “atualizado” em relação aos filmes
anteriores. Para além da investigação temática acerca da relação entre John Harvey
McElwee e o filme Bright Leaf, a meditação autobiográfica de Bright Leaves parte da
observação de que Adrian, o filho do diretor, parece estar crescendo “muito rápido”. Este
é um fluxo que, McElwee aponta, também parece não ser desacelerado ou revertido
através de seu registro ou documentação cinematográfica. Adrian, que “vimos” pela
última vez como criança de quatro anos de idade em Six O’Clock News, dissertando para
a câmera de McElwee sobre um desenho que havia feito, em Bright Leaves já é um pré-
adolescente com opiniões e gostos bem próprios – que apresentam certo conflito com as
expectativas de seu pai. Segundo nos mostra o diretor, o filho parece, no momento, mais
interessado em passar tempo com seus amigos e pesquisar manobras de skateboard do
que em saber detalhes da história do bisavô lavrador de tabaco. McElwee aponta que
conectar o filho à herança sulista da família parece ser uma tarefa difícil, tendo ele nascido
e sido criado no Norte, plenamente adaptado aos costumes de uma região metropolitana.
O cineasta leva o filho junto de si para o trabalho, como meio de tentar uma
reaproximação entre ambos. Adrian é o responsável pela captação de som das tomadas
de McElwee em um quarto de hospital, onde a dupla filma o diálogo de uma amiga médica
do diretor com uma paciente que desenvolveu câncer devido ao hábito do tabaco. A
circunstância, o cineasta admite, parece não ser tão sedutora para um pré-adolescente,
porém poderia ser interessante para colocá-lo em contato tanto com o metiér do pai quanto
com as consequências do vício. A vontade de “fazer algo pelo filho” no que concerne o
desenvolvimento de uma aptidão profissional é um tema que recorrentemente aparece em
suas narrativas. Apresentar a Adrian uma situação de filmagem profissional parece ser
um privilégio a que poucos aspirantes a cineasta têm acesso, e que McElwee sente-se apto
a oferecer para o filho. De alguma forma, esta intenção do cineasta estabelece-se como
reflexo de sua sensação de deslocamento em relação à prática da medicina, uma tradição
de sua família que ele não pôde levar adiante.
267
Figura 47: Adrian McElwee aos treze anos de idade, em Bright Leaves (2004)
Como já frisado, Backyard, seu primeiro filme autobiográfico, é repleto de
imagens fundantes, que volta e meia são usadas como meio de reflexão do cineasta à
medida que envelhece. Neste sentido, é canônica a imagem do pai de McElwee ensinando
o irmão Tom a realizar o nó das suturas, praticando dentro de casa, “Uma volta no dedo
indicador, uma volta no dedão” (“Go around the index finger, and around the thumb.”),
que volta a aparecer em Bright Leaves e, posteriormente, em Photographic Memory. A
noção de que o trabalho de McElwee poderia influenciar positivamente o interesse de
Adrian pela área das artes e da produção audiovisual desenvolve-se mais concretamente
no filme de 2011. Neste, o filho, já em idade universitária, de fato parece demonstrar
bastante entusiasmo com o trabalho midiático, porém está imerso em um universo
hipertecnológico com o qual o pai tem dificuldades para dialogar. Se o início da
configuração de um distanciamento entre o cineasta e o filho é uma hipótese levantada
em Bright Leaves, esta será confirmada em Photographic Memory, no qual tematiza-se
que a relação entre ambos acabou tomando de fato contornos mais delicados. Da mesma
forma, o processo de aproximação de McElwee em relação à figura paterna outrora díspar,
que se aborda pela primeira vez em Bright Leaves, também é aprofundado no filme de
2011, no qual efetivamente McElwee sente-se “nos sapatos que o pai calçava” no
momento da filmagem de Backyard, ainda na década de 1970.
268
Em Bright Leaves, subjaz às reflexões de McElwee o entendimento de que a
passagem do tempo tem a força necessária para o entendimento de significados “ocultos”
dos fenômenos, nuances com as quais não conseguimos entrar em contato em um
momento “presente”. Foram necessárias décadas para que o cineasta pudesse entender
uma faceta de sensibilidade de seu pai, como a que representada pelo momento em que
escuta “Noite Feliz” ao telefone, filmado pelo filho, porém que cujo real significado só
pôde ser descoberto muitos anos após sua morte. Diante da surpresa do cineasta pelo fato
de não saber os detalhes deste episódio da vida do pai, a filha de seu paciente argumenta:
“Às vezes os papais não falam sobre este tipo de coisa”. No caso de McElwee, é através
da feitura de Bright Leaves que o cineasta imagina que deixará um legado para o filho,
um universo de questionamentos provavelmente muito apressados para que sejam
revelados a um pré-adolescente. O cineasta apresenta o filme como um tesouro a partir
do qual o qual o filho poderá conectar-se com seu pai, no futuro, a partir de abordagens
que vão desde o resgate da história familiar às indagações acerca do ciclo da vida e de
sua preservação em imagens em movimento. Neste sentido, McElwee pondera em over:
“Quando estou na estrada filmando, às vezes imagino meu filho, daqui a anos, quando eu
não estiver mais vivo, olhando para aquilo que filmei. Quase consigo senti-lo olhando
para trás, e para mim, de algum ponto distante no futuro. Através destas imagens e
reflexões. Através do filme que deixarei para trás.”. Em mais uma faceta da inclinação
pelo rol de questões que envolvem o universo do cinema direto e de seus desdobramentos,
McElwee parece sublinhar o fato de que a câmera, através da tomada fílmica, tem a
capacidade de transbordar estados de consciência que são particularizados por uma
circunstância espaço-temporal determinada. O diretor consegue detectar sua própria
ingenuidade, ou não-conhecimento, em relação à personalidade de seu pai no momento
delimitado pelas filmagens de Backyard, ainda nos anos 1970, que só pode ser reavaliada
a partir de um estado de consciência atualizado, décadas mais tarde. É a mesma sensação
que tem em relação a Adrian, sugerindo (esperando) que um dia o filho finalmente
entenderá os anseios do pai que são transformados em narrativa fílmica, e que no
momento da finalização de Bright Leaves lhe parecem alheios.
“Autenticidade Ontológica” é o nome dado a essa característica pelo teórico Vlada
Petric, professor e ex-diretor do Harvard Film Archive, com quem McElwee engaja uma
conversa em uma curiosa sequência de Bright Leaves. Sendo carregado por Petric em
uma cadeira de rodas, McElwee filma sua interação com o professor a partir de um
269
travelling reverso, em um procedimento de exploração de cinestesia incomum ao corpus
estilístico de McElwee e que parece fundamental ao professor. Petric, por sua vez,
aparenta ser alheio ao interesse do cineasta pelo melodrama hollywoodiano Bright Leaf,
julgando os dotes estéticos do filme e de seu diretor, Michael Curtiz, limitados a um
pastiche sem muita relevância. O que interessa a McElwee, entretanto, e pelo que Petric
não demonstra tanto entusiasmo, é a possibilidade de Bright Leaf “conter um filme
caseiro dentro de uma produção ficcional”, nas palavras do próprio diretor. Para além da
hipótese do personagem de Gary Cooper referir-se à vida de seu bisavô, McElwee
aprofunda a reflexão acerca da “Autenticidade Ontológica” da tomada cinematográfica,
tomando como “objeto” uma cena de amor entre Cooper e a atriz Patricia Neal. Na cena,
um beijo entre os dois atores, McElwee detecta um gesto da atriz/personagem, que hesita
ao movimentar o braço ao buscar tocar o corpo do par romântico. A particularidade da
situação reside no fato de que Gary Cooper e Patricia Neal engajavam, de fato, um
romance na “vida real”, no backstage de Hollywood, vivendo um amor que se manteve
proibido pelo fato de Cooper ser casado. Tendo Patricia Neal posteriormente mencionado
Gary Cooper como “o amor de sua vida”, McElwee entusiasma-se com a possibilidade
desta cena conter um pequeno traço de vida pessoal, “documentário”, transbordando na
encenação dramática em um contexto ficcional – novamente frisando a capacidade da
câmera em revelar “verdades secretas” sobre as pessoas, através de seus corpos e
consciências.
Figura 48: Vlada Petric durante sua “aula” a McElwee em Bright Leaves (2004)
270
O fato é que aparentemente poucas pessoas que cruzam o caminho de McElwee,
entretanto, apresentam a mesma motivação meditativa em relação a estas características
das imagens-câmera. Para além do professor Petric, a própria atriz de Bright Leaf, Patricia
Neal, não consegue entrar na mesma “frequência” das indagações do cineasta. Em mais
um dos acasos promovidos por suas narrativas fílmicas, McElwee entrevista a atriz
durante uma breve passagem sua pela Carolina do Norte. Vendo McElwee colocar-se no
curioso papel de um entrevistador “ordinário” diante de uma estrela de cinema, assistimos
a uma entrevista apressada e hesitante, com poucos resultados estimulantes para seus
questionamentos. O cineasta explica sobre a possível relação entre seu bisavô e o filme
Bright Leaf, mas Patricia Neal não se entusiasma com a possibilidade de ser a “bisavó do
diretor, de um ponto de vista ficcional”, caso seu personagem e o de Gary Cooper
tivessem tido um filho, nem mesmo reconhece qualquer tipo de particularidade nas
entrelinhas de sua encenação no filme de 1950 que pudesse evocar alguma “verdade”
sobre sua vida pessoal naquele momento da carreira. Há de se convencionar: McElwee
realmente acharia que uma atriz veterana, acostumada a dar centenas de entrevistas, se
disporia a meditar sobre a “autenticidade ontológica” das imagens cinematográficas
evocada por um filme de cinquenta anos atrás e de sucesso questionável, como Bright
Leaf, em uma conversa de poucos minutos? Certa absurdez gira em torno deste encontro
entre o diretor e a atriz hollywoodiana que o transforma em um momento tipicamente
McElweeliano, dotado “quase sem querer” da comicidade autodepreciativa que segue a
rondar sua persona nos filmes.
Como também em outros de seus filmes, McElwee acumula em Bright Leaves
fracassos ao fim de sua empreitada. Para além da rejeição simbólica de Patricia Neal em
relação às suas indagações ontológicas, o cineasta depara-se com o fato de que o filme
Bright Leaf não teria sido inspirado na história de seu bisavô. A partir de uma conversa
com a viúva do autor Foster Fitz-Simmons, revela-se que o marido não se baseou em
nenhuma personalidade real para o desenvolvimento do romance que deu origem ao
filme. Resta ao diretor o sucesso em ter realizado um estudo da complexidade da cultura
de tabaco que permanece viva na contemporaneidade de seu território natal, a Carolina
do Norte, e que resgata intersecções da história dos McElwee em solo americano. A
jornada do cineasta, por entre lavouras da erva misteriosa e através do contato com alguns
de seus adeptos, traz à superfície considerações acerca de seu maior vício. A câmera, a
partir do ato de registrar e documentar eventos de sua própria vida e das pessoas ao seu
271
redor, estabelece-se como a mais narcótica das experiências para o diretor. Em entrevista
de 2005, após o lançamento de Bright Leaves, McElwee afirma: “O mundo é
frequentemente visto por mim, mesmo se eu não o estou filmando, em uma espécie de
maneira cinemática, não-ficcional. Como isto teria acontecido se eu tivesse filmado? É
um pouco doentio e neurótico, mas é verdade.” (POPPY, 2005). A câmera permeia
dominantemente os pensamentos de McElwee, de maneira análoga a dependentes de
quaisquer substâncias viciáveis. Não diferentemente da experiência de fumar um cigarro,
como aponta McElwee em Bright Leaves, filmar o mundo, vendo-o acontecer pelo
viewfinder, suscita um lampejo de suspensão da vida, como se o tempo parasse por alguns
momentos. No caso do tabaco, seu paradoxo reside no fato de que a sensação de extensão
do tempo confronta-se, na realidade, com seu próprio encurtamento: morre-se mais
rapidamente a cada tragada. Através de seus filmes, McElwee prova a si próprio que o
registro contínuo do mundo ao seu redor não fez com que, no limite, a passagem do tempo
cessasse ou desacelerasse; nem impediu que a morte chegasse até algumas das pessoas
mais próximas de si. Ainda assim, entretanto, a reavaliação da personalidade de seu pai
amparada pelo registro de imagens-câmera, tanto do passado quanto do presente, mantém
acesa a chama da fé naquilo que escolheu como ocupação vitalícia. Novamente, McElwee
parece crer na particularidade da imagem cinematográfica como parte de seu legado
cinemático. Da mesma forma, o cineasta acredita na estranha relação das imagens com o
o tempo, sendo este o agente que potencializa, flexiona e catalisa quaisquer de suas forças
que aguardam o momento certo para germinar.
Figura 49: McElwee senta-se no “McElwee Park” para pensar, em Bright Leaves (2004)
272
3.7. In Paraguay (2008): O defunto de um presente e a ética autobiográfica
In Paraguay, exibido em 2008, é o filme menos conhecido da carreira de Ross
McElwee. O longa-metragem obteve apenas uma exibição pública no circuito de
festivais, quando estreou na edição daquele ano do Festival de Veneza. Outras exibições
de In Paraguay foram suspensas indefinidamente, inexistindo também qualquer tipo de
distribuição comercial. O documentário lida tematicamente com o processo de adoção de
Mariah, segunda filha do diretor, que aconteceu no Paraguai em meados em 1995. A
suspensão de sua exibição estaria ligada a um acordo realizado entre McElwee e a esposa
de que o filme só seria veiculado novamente após Mariah completar dezoito anos de
idade. Mesmo após o cumprimento deste prazo, In Paraguay permanece sem exibição
pública e veiculação comercial. Scott MacDonald infere que o documentário fora
realizado no “período extendido” do processo de separação do casal (MACDONALD,
2013, p. 231), que se completou oficialmente em agosto de 2011. Em comparação com
outros filmes de McElwee, In Paraguay é anacrônico em relação à abordagem de sua
temporalidade narrativa. Por este aspecto o documentário pode ser considerado uma
espécie de paradoxo temporal do projeto autobiográfico contínuo de McElwee, que evoca
alguns questionamentos. Estas características fazem do filme um subsídio para a reflexão
acerca de nuances da construção autobiográfica no cinema documentário, principalmente
em relação a algumas de suas particularidades éticas.
A estrutura narrativa de In Paraguay é decididamente mais enxuta, no que diz
respeito a flexões tanto em seu eixo temático quanto estilístico. O documentário é
construido a partir de um ponto temático delimitado – o processo de adoção de Mariah –
, praticamente inexistindo o movimento de livre associação que junta temas diversos em
um mesmo filme, como é o caso de Time Indefinite, Six O’Clock News ou Bright Leaves.
Resumir os plots destas obras em uma ou poucas frases é uma tarefa mais dificultosa do
que realizar esta atividade em relação a In Paraguay. Ainda que no filme McElwee reflita
acerca de diversas facetas que dizem respeito ao tema da adoção de Mariah, é possível
sustentar que há uma coesão narrativa que toma este como seu único tema. Esta sensação
é também endossada por seu tempo narrativo, que é soberanamente cronológico. Não
existe um processo de engendramento com o passado cinematográfico (ou familiar) de
McElwee, nem projeções temporais para o futuro da maneira que existe, por exemplo, em
Bright Leaves. O tempo narrativo de In Paraguay restringe-se ao período de
273
aproximadamente sete semanas que a família McElwee passou em Assunção durante o
processo judicial para a liberação de Mariah. Há uma curta introdução da família nos
EUA antes de embarcarem para a jornada, bem como uma conclusão que mostra os
primeiros momentos da filha adotiva e o desfecho judicial no novo país.
Situando-se temporalmente no aniversário de cinco anos de Adrian, em meados
de 1994, a força propulsora do início da narrativa de In Paraguay consiste na constatação
de que é hora da família McElwee tornar-se maior, a partir da adoção de uma filha. Após
breve preparação, a família ruma ao Paraguai, onde acontece a maior parte do filme.
Instalados em um hotel no centro da cidade, McElwee ocupa-se de filmar o dia-a-dia de
da família. Para além de narrativizar o cotidiano com Marilyn e Adrian no hotel e em seus
arredores, In Paraguay entrega também aspectos da vida de Assunção e sua relação
enquanto microcosmo de uma experiência nacional paraguaia. O filme é desenvolvido a
partir das complicações que surgem durante processo de adoção de Mariah. Devido à
demora do trâmite, acarretada por uma série de fatores, McElwee e a família permanecem
no Paraguai pelo triplo de tempo que imaginavam originalmente. Por fim, à família
McElwee é concedida a autorização para a saída legal do país com o bebê. Voltando aos
Estados Unidos, uma elipse temporal de oito meses revela uma já crescida Mariah
novamente em uma corte judicial, desta vez com a finalidade de terminar o processo da
obtenção de sua cidadania estadunidense.
O tempo da família McElwee no Paraguai é pontuado por idas sucessivas ao
Palácio de Justiça de Assunção para audição em relação ao processo, que acaba sempre
sendo postergada, indefinidamente. Munido da câmera, McElwee decide utilizar o tempo
para conhecer o território que diz respeito à história da recém-chegada filha. Explorando
as ruas de Assunção, o diretor depara-se com diversos tipos de problema social: trabalho
mirim ambulante, subnutrição, péssimas condições de habitação – a pobreza, em suas
variações, que faz parte do cenário de algumas metrópoles latino-americanas. No nível
mais evidente, In Paraguay é o primeiro filme em que McElwee desloca-se de sua zona
de conforto social e territorial na qual está inserido nos documentários anteriores. Embora
a questão do êxodo vivido pelo diretor do Sul para o Norte dos Estados Unidos – e o
consequente deslocamento social e cultural – tenham sido um mote em grande parte de
seus filmes, aqui esta relação torna-se mais complexa.
Desde o início do filme há um posicionamento claro, da parte do diretor, que
enxerga o Paraguai como um país marcado pela pobreza e por certo grau de
274
subdesenvolvimento que ele não reconhece nos Estados Unidos. Ainda no início do filme,
vemos Adrian em sua sala de aula, travando uma conversa com sua professora e com os
colegas sobre o conceito de adoção, bem como a respeito da localização do Paraguai,
utilizando-se de um globo para demonstração. Em sua narração em over, McElwee
comenta que o país “provavelmente não seria um destino onde alguém passaria suas
férias”. É interessante notar, todavia, que antes mesmo de realizar seus próprios filmes,
em sua juventude, McElwee viajou por diversos países com culturas e estruturas sociais
diferentes das do de seu país natal. Pode-se destacar uma viagem pela Índia e pelo Sri
Lanka na década de 1970, ocasião na qual estava interessado no budismo Theravada, ou
mesmo sua participação como operador de câmera em um dos filmes rodados por John
Marshall na Namíbia, N!ai, the Story of a !Kung Woman, lançado em 1980. A viagem ao
Paraguai, entretanto, é permeada por mal-estar distinto, sendo desenvolvido como mote
narrativo do filme. O contraponto entre sua experiência individual enquanto
estadunidense e a relação travada com o Paraguai, principalmente em um processo de
adoção de uma criança, é sua principal elaboração analítica. Ficamos diante de uma
narrativa que acaba por não fugir das questões que envolvem qualquer tipo de experiência
fílmica inserida mais diretamente no campo da antropologia, em que o cineasta se coloca
diante de uma experiência outra, frequentemente sobre a qual julga-se em uma posição
privilegiada de análise. Mesmo que McElwee desenvolva um olhar autorreflexivo de sua
própria posição no mundo em relação à experiência, como veremos, In Paraguay não
deixa de causar um estranhamento de antemão, justamente pelo fato de engajar questões
que parecem não ser exatamente o terreno de reflexão no qual o diretor é mais fluente.
O cineasta ampara-se no registro histórico, portanto, para compreender (e
informar o espectador) a origem dos problemas sociais do país. Através das leituras que
faz, o diretor provê informação sobre a história do Paraguai desde a colonização ao século
XX. Ao longo do filme, McElwee disserta sobre episódios-chave da história paraguaia,
como a independência do país, já marcada pelo início do processo ditatorial de José
Gaspar de Francia, seguido pela presidência de Solano López. Um longo comentário é
feito a respeito da Guerra do Paraguai e a consequente aniquilação de boa parte da
população do país (a participação do Brasil no episódio é lembrada especialmente pelo
diretor). Seguem-se, então, comentários sobre a Guerra do Chaco e o período da ditadura
de Stroessner. O cineasta faz visitas com sua câmera a alguns dos sítios históricos que
conhece pelos livros, encontrando paisagens mudadas pelo tempo e mais exemplos do
275
extrato social marcado por uma pobreza que o choca. De maneira geral, o diretor enxerga
os problemas sociais paraguaios como fruto de uma evolução histórica nacional marcada
por processos despóticos, ditatoriais e corruptos, um após o outro, cujas cicatrizes são
evidentes.
A enunciação de McElwee em In Paraguay passa pelo desenvolvimento de um
mea culpa no qual o diretor reconhece-se parcialmente culpado por aquilo que vê no país.
O cineasta evoca, em determinado momento de sua narração em over, o desconforto que
sente por ser estadunidense em um país cujos assuntos internos (personal affairs) teriam
sofrido interferência dos Estados Unidos – referindo-se ao apoio norte-americano à
ditadura de Alfredo Stroessner, de 1954 a 198952. A ciência de McElwee da posição
privilegiada de si próprio e de sua família em contraponto a grande parte da população
paraguaia é tematizada ao longo do filme de diferentes maneiras. Em um destes
momentos, a família McElwee leva a Mariah a um médico particular paraguaio para que
seja examinada e vacinada. No encontro, o médico diz que boa parte dos recém-nascidos
não tem acesso à vacinação, pois as famílias não têm como pagar pelo serviço. Em outra
passagem, o cineasta filma garotos realizando trabalho infantil, vendedores ambulantes
dos semáforos de Assunção, e relata o comentário ingênuo feito pelo filho Adrian, negado
pelo diretor, de que seria “bacana” fazer uma atividade como essa. Enquanto cidadãos
estadunidenses, a família acaba tendo acesso ainda a outros tipos de privilégios que serão
determinantes para o desenrolar da jornada. Um deles diz respeito a um conhecido(a) da
alta classe paraguaia, que convida-os para uma festa de grandes proporções no Clube de
Campo da cidade. Na ocasião, o que chama a atenção do diretor é a fartura de comes e
bebes para os convidados, bem como o desperdício dos restos. Em uma área periférica à
festa, crianças paraguaias que não fazem parte da celebração comem e bebem o que foi
deixado de lado, evento este que é filmado de perto por McElwee. O comentário que o
diretor faz em voz over durante a sequência representa este eixo de sua enunciação, um
dos principais pontos analíticos do filme:
Ok, eu já estive em eventos como estes nos Estados Unidos:
casamentos, bar mitzvahs. Lugares onde há bolo demais, champanhe
demais, "tudo” demais. Então, por que este parece diferente? (...) Talvez
52 Algo que também aparece em Six O’Clock News, como já citado, quando reflete sobre a vinda de salvadorenhos para a Califórnia evocando a interferência dos Estados Unidos nos assuntos internos de El Salvador.
276
eu esteja sensível em relação a isto porque estar aqui coloca o paradoxo
do background de Mariah em foco. (...) O porquê específico pode ser
difícil de traçar, mas é certamente verdade que a incrível prosperidade
dos Estados Unidos da América – a mesma prosperidade que nos
permite vir até aqui adotar Mariah – também é, de alguma maneira
complicada, ao menos parcialmente responsável pela pobreza de onde
ela vem. Isto, além do fato de que a América não está fazendo o
suficiente para a aliviar (esta pobreza).
A influência e privilégio dos McElwee, por serem estadunidenses, é também
utilizado a favor da família para o desenrolar dos trâmites burocráticos em relação à
adoção. Após diversas tentativas infrutíferas de que o caso de Mariah fosse atendido pela
corte de justiça paraguaia, o diretor e a esposa decidem convidar o juiz encarregado do
caso da adoção para um jantar. Em sua narração em over, McElwee comenta o caso a
partir da sensação de desespero que ele e a esposa vivenciavam no Paraguai. Diante de
um processo confuso, promessas judiciais não cumpridas e a sensação de nenhum tipo de
evolução, a família permanecia no país por muitas semanas além do esperado, sem
perspectiva de quando a legalização do processo de adoção de Mariah poderia acontecer.
O desejo de retornar imediatamente aos EUA é aprofundado por um acidente ocorrido
com Adrian, que sofre queimaduras de segundo grau devido ao contato com a água
fervente de uma chaleira que era utilizada pela família para cozinhar improvisadamente
no quarto de hotel. Apenas após este episódio e mais algumas idas ao palácio de justiça,
os McElwee conseguem embarcar de volta para o país de origem.
Como frisado, In Paraguay não escapa de evocar sensações análogas às de filmes
mais marcadamente antropológicos, em que o cineasta – frequentemente enxergando-se
em um patamar de alteridade cultural ou estrutural – retrata um território ou uma
sociedade bastante distinta da sua. A particularidade deste caso, entretanto, é que o
conhecimento entregue pelo filme é relacionado à própria motivação epistemofílica do
diretor em relação ao assunto tratado. Em outras palavras, trata-se de um conhecimento
corporificado, ou encarnado, a partir do desejo de McElwee de realizar um documentário
a respeito do país de origem da filha que está adotando. Como em outros de seus filmes,
neste caso também existe uma intenção de unir um conhecimento que “toca” o mundo
histórico e social com um episódio particular de sua vida: a explicação que provê sobre
os diferentes processos históricos pelos quais passou o Paraguai relaciona-se com seu
desejo em conhecer mais sobre a cultura do país da filha.
277
Em todo caso, é justamente a posição enunciativa corporificada do diretor que
sugere, da mesma forma, que McElwee coloque em perspectiva o seu próprio conjunto
de valores éticos e morais em relação à empreitada que vivenciou e que está
narrativizando. Reconhecendo-se em uma posição privilegiada e sentindo-se “parte do
problema” em relação à condição econômica e social das pessoas que encontra pelo
caminho, McElwee lança mão do discurso de mea culpa que permeia o filme. Este, como
destacamos, vai desde o desejo em prover conhecimento sobre a história pública do
Paraguai, destacar a interferência dos Estados Unidos em diversos processos ditatoriais
na América Latina, colocar si próprio em uma delicada questão ética ao revelar o convite
de jantar feito ao juiz responsável pela adoção de Mariah, ou mesmo nos informar que
teve a oportunidade de conhecer e conversar com a mãe biológica de Mariah, que os
assegurara que não teria condição alguma de cuidar da criança. Por outro lado, a própria
ideia de adotar uma criança do “terceiro mundo” (a expressão aparece em Time Indefinite)
que não pudesse ser criada pela mãe é vista pelo diretor e sua esposa como um ato de
generosidade, ou, “algo correto a se fazer”. Este é um debate entre McElwee, a esposa e
Charleen Swansea que acontece no final de Time Indefinite, à ocasião do nascimento de
Adrian.
Por mais, entretanto, que McElwee “cumpra a cartilha” de tentar oferecer um
panorama de todas as questões éticas que permeiam, ou permeavam, seus pensamentos
em relação à adoção de Mariah, In Paraguay continua evocando a sensação de um
estranho desvio na filmografia do diretor e nas expectativas de seu público. Como frisado
anteriormente, o filme teve exibição pública apenas na edição de 2008 do Festival de
Veneza e, por isto, não foi alvo de muitas análises. Photographic Memory, filme seguinte
do diretor, também fez parte da seleção oficial do Festival de Veneza e, às vésperas da
ocasião, o site português Público lançou uma nota em que cita o filme anterior. Segundo
o site, em In Paraguay, McElwee “Talvez por ter saído do seu mundo, apareceu a olhar
para o mundo com a ingenuidade de um american abroad. Estamos, por isso, a fazer figas
por Photographic Memory, que parece um regresso.” (PUBLICO, 2011). É difícil julgar
o quanto a empreitada de McElwee em In Paraguay poderia ser ingênua ou não, porém é
possível afirmar que o desvio do diretor de sua cultura e do universo temático com o qual
havia trabalhado até então soa, ao menos, dissonante. Pode-se notar, por exemplo, uma
das últimas sequencias do filme em que o diretor filma um pedinte aleijado que se arrasta
até a escadaria de uma igreja de Assunção. McElwee, em sua narração em over, diz:
278
“Claramente, sua vida não é fácil. Claramente, sua vida não é fácil, mas ele sorri. ”. Logo
em seguida, em um dos últimos momentos do filme, o diretor realiza uma montagem de
diversos close ups de pessoas com quem cruzou durante o tempo no Paraguai, sob uma
trilha musical não-diegética da peça El Sueño de la Muñequita, escrita pelo violonista
paraguaio Agustín Barrios (que é tocada em outros momentos do filme). Seja ingenuidade
ou homenagem, estes procedimentos acabam por dar ao filme certo tom de “compaixão
ao Paraguai”, em uma posição distinta da avaliação crítica e irônica que McElwee
performa tanto em relação à sua própria vida quanto em relação às diversas facetas da
sociedade norte-americana em seus filmes anteriores.
Para além destes aspectos ressaltados, que lidam mais com uma posição
enunciativa inédita da parte de McElwee e uma exploração temática distinta daquela vista
em sua obra até então, há algumas considerações a serem feitas em relação à maneira
através da qual In Paraguay encaixa-se na carreira autobiográfica do diretor. De alguma
forma, o filme apresenta um paradoxo temporal, ou, nas palavras de Scott MacDonald,
um “buraco negro narrativo” (MACDONALD, 2013. p. 231) para um espectador
conhecedor de sua obra. O filme foi finalizado em 2009, seis anos após o lançamento de
Bright Leaves. No filme de 2004, Adrian já aparece como um pré-adolescente,
distanciando-se da figura pueril que é meticulosamente representada em In Paraguay.
Como frisado, a narrativa inicia em 1994, no aniversário de cinco anos de Adrian, e
estende-se no máximo até 1995, com a volta dos McElwee para os EUA e a concretização
do processo de cidadania estadunidense de Mariah. O filme “volta” no tempo cronológico
da vida privada de McElwee, porém não há referência explícita na narrativa em relação
ao momento da edição e finalização do documentário – mais de dez anos após os eventos
representados. O paradoxo narrativo existe, por exemplo, quando McElwee, no filme,
imagina como Mariah se sentirá em relação à sua origem paraguaia quando tiver crescido
– o que já é uma realidade no momento da finalização do filme, visto que Mariah teria
por volta de 13 anos.
Há uma relação narrativa entre In Paraguay e filmes anteriores de McElwee, em
especial Time Indefinite, que não toma contornos textuais no filme. O final de Time
Indefinite sugere que McElwee e a esposa pensam na ideia de adotar uma criança do
“terceiro mundo” que não pudesse ser criada pelos pais biológicos. É interessante notar
que não existe menção a esta passagem na narrativa de In Paraguay, e também não a
outra sequência do filme de 1993, onde McElwee e a esposa conversam sobre uma bomba
279
elétrica de sucção de leite materno, quando Marilyn fica grávida pela primeira vez
(gravidez esta que terminará em um aborto espontâneo). Em In Paraguay, a família
McElwee volta à loja e Adrian, bastante espontaneamente, pede explicação para o pai
sobre o que seria a mesma bomba de sucção. Frente a esta coincidência – substrato da
força do cinema direto e seus momentos mais “mágicos” – um procedimento tipicamente
McElweeniano trataria de realizar um resgate espaço-temporal desta outra ocasião,
utilizada em um filme anterior, e contrapô-lo com a nova situação. Porém, por algum
motivo, como frisado, In Paraguay mantém-se restrito a uma narrativa bem delimitada
temporalmente e não arrisca este tipo de ida e vinda tão característico da reavaliação
meditativa que McElwee faz em relação a si próprio com o passar do tempo e dos filmes.
Scott MacDonald infere (2013, p. 231) que pelo fato de In Paraguay ter sido
editado e finalizado no momento em que McElwee e sua esposa estavam passando pelo
processo de divórcio, talvez o filme fosse uma maneira de realizar uma homenagem a um
momento em que a família vivia o ápice de uma união – que, já por volta de 2008, não
existia mais. Da mesma forma, é possível sugerir que este também seja o motivo pelo
qual o diretor furtou-se de dar visibilidade na narrativa àquilo que acontecia em sua vida
privada neste momento. Tematizar o desmoronamento da família feliz que vemos nas
imagens da viagem ao Paraguai talvez desviasse por demais o foco daquilo que McElwee
buscava, sobretudo, retratar no filme: o processo de adoção de sua filha Mariah.
De fato, as imagens do diretor em In Paraguay revelam substancialmente uma
faceta de sua vida privada que ainda não havia sido retratada em filmes anteriores. Tanto
o início quanto o final do filme, passados nos EUA (e filmados no padrão do diretor, em
16mm), quanto as imagens (filmadas em vídeo hi-8) do miolo da narrativa, no Paraguai,
mostram o cineasta totalmente imerso em uma vida familiar. Apesar de Marilyn ser
retratada consideravelmente em Time Indefinite e, em menor escala, em Six O’ Clock
News, a interação entre o diretor, sua esposa e Adrian em uma empreitada conjunta ocupa
o espaço dominante na consciência de McElwee enquanto cineasta naquele determinado
período. Para além dos momentos em que o diretor ruma sozinho pelas ruas de Assunção
ou provê os detalhes históricos do Paraguai como nação, a intenção de McElwee no filme
é claramente a de trabalhar com a encenação típica de um cotidiano familiar. Os passeios
realizados, as refeições preparadas, os jogos e brincadeiras ao redor do hotel em
Assunção: todos estes momentos denotam como a relação interpessoal familiar ocupava
parcela significativa da vida de McElwee (e de Marilyn) no momento da filmagem. Da
280
mesma forma, é possível inferir certa cumplicidade da esposa na empreitada, que não dá
sinais de resistência ou reprovação à câmera de McElwee (excetuando-se um momento
de desgaste emocional de ambos, em que ela pede para o realizador parar de filmar,
durante uma refeição). Os diversos momentos em que o diretor interage com Adrian, da
mesma forma, sugere uma relação harmoniosa entre pai e filho que, como sabemos,
começará a se deteriorar a partir de Bright Leaves, o filme anterior.
É neste sentido que o paradoxo temporal, ou o “buraco negro narrativo”, como
sugere MacDonald, serve um propósito específico no projeto autobiográfico de McElwee.
Em entrevista dada a Scott MacDonald (2014, p. 158), o diretor frisa que a partir de
determinado momento, Marilyn começou a se sentir desconfortável com o fato de ser
filmada, e pediu ao diretor que não aparecesse mais em seus filmes. Posteriormente,
Marilyn haveria dito ao cineasta que não respeitava mais sua forma de fazer cinema. Já
em Bright Leaves, a esposa aparece por não mais de dez segundos em todo o longa-
metragem e em nenhum momento de Photographic Memory, quando o casamento estava
à beira do colapso. Desta forma, tratar a experiência da família McElwee no Paraguai
como uma memória isolada (ainda que seja narrado no tempo presente e
cronologicamente, como todos seus filmes), desconectando-a do que acontecerá
subsequentemente em sua vida (tanto o seu distanciamento em relação a Adrian quanto
sua separação de Marilyn), seria a única saída de preservar narrativamente aquela
determinada conjuntura espaço-temporal, principalmente em relação ao sentimento de
união familiar imperante no momento. Ao montar e finalizar o filme mais de dez anos
depois, McElwee está lidando com o “defunto de um presente” (expressão cunhada pelo
próprio diretor e que já utilizamos anteriormente) – replicando e revivendo sensações e
situações de um relacionamento familiar cujos afetos já não existem mais da mesma
forma.
De qualquer maneira, apesar destas considerações, ainda não existe consentimento
para que o filme seja lançado comercialmente. A história da feitura e da (não) veiculação
de In Paraguay é um ótimo subsídio para a reflexão acerca do escopo ético dos
documentários autobiográficos, que em muitos casos acaba por tomar contornos
complexos. A avaliação no que concerne os desdobramentos da vida privada de McElwee
(como o término de seu casamento ou a não-autorização da veiculação de um filme como
In Paraguay) poderia parecer à primeira vista como mera “fofoca” ou comentário de
coluna social, porém é justamente neste tipo de consideração que o documentário
281
autobiográfico mostra a força potencial que circunda as produções e que pode
“transbordar” à vida individual daqueles que estão envolvidos. Este é o caso da carreira
de Ross McElwee, notadamente devido ao período de tempo prolongado, por décadas,
que a empreitada do diretor vem se construindo. Para além disto, sugere-se que
documentários autobiográficos que trabalham no universo metodológico do cinema direto
trazem, ainda, outros tipos de consideração para a questão. Se olharmos isoladamente
para In Paraguay, haveriam elementos dentro da diegese do filme que justificassem à
primeira vista, para um espectador não familiar com a obra anterior do diretor, a proibição
do filme? É possível dizer que Marilyn é retratada no filme como uma mulher forte e
determinada; Ross, como um pai atencioso e carinhoso em suas interações com Adrian.
Este, por sua vez, uma criança que mostra sinais de criatividade, gentileza e educação.
Em relação à temática, para além do eixo narrativo que lida com a vida privada do diretor,
não existe desrespeito com o território paraguaio ou seus habitantes e, sim, uma
culpabilidade recorrente de McElwee em relação à sua própria posição privilegiada.
O problema parece estar diretamente conectado à maneira que o cinema
documentário e, em especial, a ótica metodológica do cinema direto, é usada em favor de
uma construção narrativa autobiográfica. In Paraguay sublinha o fato de que a encenação
do filme é capaz de trazer à tona estados de consciência e relações afetivas entre
indivíduos particularizados por circunstância espaço-temporais determinadas e
“cristalizadas” em celuloide por meio da tomada fílmica. Assistindo às tomadas
realizadas durante o processo de adoção de Mariah é difícil negar que estamos
testemunhando o cotidiano de uma família feliz. No caso de In Paraguay, a
particularidade da questão gira em torno do fato de que McElwee furta-se de esclarecer
que, na realidade, estamos diante de uma família que foi feliz, considerando-se o período
de montagem e finalização do filme. O filme resgata um universo de estados de
consciência e relações afetivas que não encontram correspondente similar em um tempo
futuro – ressuscitando, portanto, o “defunto de um presente”, sem necessariamente
aponta-lo como morto. Neste sentido, o filme poderia tornar-se um causador de
sofrimento àqueles nele envolvidos, podemos supor, menos pelo seu conteúdo
estritamente narrativo, e mais pelo paradoxo temporal que evoca. A maneira através da
qual um filme como In Paraguay cria uma situação delicada ao ressuscitar “afetos
mortos” toda vez que é visto aponta para a força da encenação do cinema direto neste
cenário de construção narrativa autobiográfica. É possível divagar se a situação seria tão
282
problemática se McElwee tivesse escrito um livro a partir de suas memórias daquilo que
ele e sua família viveram no momento da adoção de Mariah. Mesmo que tempos depois
seu casamento terminasse, como veio a ser, pode-se questionar se esta narrativa literária
também teria sido proibida de circular, ou ainda se Mariah seria permitida a ler o livro
apenas quando completasse dezoito anos, como foi acordado pelo casal em relação ao
filme.
Aparentemente, a energia potencial que existe na narrativização deste tipo de
situação pode tornar-se “violenta” com o passar dos anos – lembrando-nos aqui, o termo
utilizado por William Rothman (1996, p. 83) justamente em relação a este assunto. In
Paraguay exemplifica um tipo de violência que não está presente em uma leitura direta
das imagens, dos sons ou do discurso textual, diegético, do filme. Sua violência – e a
consequente proibição – concretiza-se a partir do momento em que a narrativa nos remete
temporalmente à circunstância das tomadas, ressuscitando o estado de consciência, as
relações interpessoais e os afetos, do cineasta e das pessoas ao seu redor que não
encontram correspondentes em um tempo futuro. A reflexão acerca deste tipo de questão
engendrada pelos documentários autobiográficos permeia algumas declarações de
McElwee. Tome-se como exemplo os apontamentos em relação às suas reações a um
filme como Time Indefinite, caso fosse visto por ele próprio nos dias atuais:
Eu não consegui assistir a este filme desde que me divorciei, mas o que
significaria para mim assisti-lo agora? Para um espectador que não
sabia que nossos votos de casamento, proferidos com tanta convicção
no filme, foram anulados, o filme seria exatamente o que sempre foi:
engraçado em alguns momentos, ocasionalmente entediante em outros
(quando o cineasta não consegue deixar a câmera de lado), e, nos
melhores momentos, tocante e pertinente.
Mas se eu fosse assisti-lo hoje, seria um filme totalmente diferente –
como se ele tivesse sido re-filmado, reeditado e tivesse ganho uma
narração diferente. Time Indefinite foi feito por outro Ross, vivendo
uma vida diferente. Como um filme antropológico feito a respeito de
uma tribo que não existe mais, Time Indefinite, pelo menos no que toca
o meu casamento, é uma etnografia sobre emoções extintas.
(MACDONALD, 2014. p. 159-160. Tradução nossa.)
O universo dos documentários autobiográficos de Cambridge traz outros
exemplos neste sentido. Beginning Pieces (1984), dirigido por Alfred Guzzetti, e que lida
com o crescimento da filha Sarah, dos dois aos cinco anos de idade, também foi tirado de
283
circulação após esta tornar-se adulta, ao seu pedido. O caso do diário filmado de Ed
Pincus, Diaries (1971 - 1976), passa por questões semelhantes. Diferentemente de um
filme como In Paraguay, a narrativa de Pincus lida, já internamente, com temáticas mais
polêmicas em relação à exposição da vida privada de si próprio e daqueles ao seu redor.
Em outras palavras, há uma probabilidade maior de um espectador sentir-se
desconfortável ao assistir à jornada de Ed, Jane e os filhos, em meio à experimentação,
em geral pouco harmoniosa, do casamento aberto e da poligamia, ou do uso de
alucinógenos, ou frente à nudez do cineasta, de sua família e amigos, ou mesmo quando
Pincus tematiza a violência e a perseguição do esquizofrênico Dennis Sweeney, que
culmina no êxodo da família de Cambridge para uma vida no campo em Vermont. Mesmo
assim, é possível inferir que Pincus faz um trabalho consistente diante de sua intenção de
narrar cinco intensos anos de sua vida matrimonial, de seu trabalho como cineasta e do
crescimento de seus filhos. Ainda que visto sob a ótica da possível “beleza” de um registro
e de uma cristalização da história familiar, entretanto, o filme não deixa de ser violento
para aqueles envolvidos. Em entrevista a Scott MacDonald, Pincus constata que o filme
“tomou muito de si”, ou, muita energia de si próprio, apesar de ter cumprido todas suas
propostas em relação ao tipo de experimento que queria fazer (MACDONALD, 2014, p.
95). Segundo o diretor, sua filha Sami tem problemas (“a hard time”) ao assistir ao filme,
mesmo quarenta anos depois de sua feitura (MACDONALD, 2014, p. 92), relatando
também que sua nora, esposa do filho Ben, chorou e desistiu de assisti-lo após quarenta
e cinco minutos de visionamento. Pincus fala um pouco mais sobre o impacto do filme,
mesmo com o passar do tempo:
Devido ao fato de que estas pessoas eram meus amigos e família,
Diaries revelou muito sobre todos nós. Acredite ou não, sou uma pessoa
muito reservada. Para fazer o filme, tive de me contar uma mentirinha:
a de que após dez anos, eu não ligaria mais para aquilo que seria
revelado nas imagens. Eu esperava ser açoitado por ter feito o filme,
mas, na realidade, a reação da imprensa foi incrivelmente favorável. Eu
fiquei totalmente surpreso e contente, por um lado, mas foi também
muito difícil para mim – e ainda é – estar tão visível. (MACDONALD,
2014, p. 95. Tradução Nossa)
Os casos de In Paraguay, Diaries e Beginning Pieces evocam alguns comentários.
Aqui, podemos lembrar do questionamento de Ross McElwee em relação ao
documentário autobiográfico sob uma perspectiva, segundo o próprio, filosófica e
284
fenomenológica: “O que significa produzir estes filmes pelo fato de que seus contextos e
circunstâncias invariavelmente alteram seus significados?” (MACDONALD, 2014. p.
159). O ponto é o de que a recorrência deste tipo de situação – a alteração de seus
significados a partir da mudança de contextos – sugere que existe uma dupla
indeterminação com a qual lida o documentarista-autobiógrafo que trabalha sob a ótica
metodológica do cinema direto. Uma destas indeterminações é relativa àquela própria da
circunstância da tomada, em que o cineasta trabalha com o desenrolar dos eventos do
mundo ao seu redor, a partir de um determinado tempo e espaço. No caso deste tipo de
cinema com o qual estamos trabalhando, é enfatizado o interesse em lidar com pessoas e
localidades com as quais o cineasta tem um vínculo individual e afetivo prévio: pessoas
de sua família, amigos próximos, a casa onde mora, seu local de trabalho; e a subsequente
interação do cineasta neste meio. Já a segunda indeterminação relaciona-se com a reação
destes protagonistas (incluindo-se aí o próprio cineasta) a partir da narrativa construída
(do filme finalizado) em relação à passagem do tempo e a subsequente mudança de
circunstâncias e contextos em suas vidas, utilizando os termos de Ross McElwee.
Naturalmente, a possibilidade de mudança de opinião do cineasta e das pessoas
filmadas em relação ao projeto de que participaram, conforme o tempo passa, não é uma
exclusividade de documentários que trabalham sob a ótica da autobiografia. Há,
entretanto, algumas considerações que devem ser feitas aos documentários
autobiográficos em relação a questões éticas particulares. Esta é a preocupação central de
um texto lançado ainda em 1988 por John Stuart Katz e Judith Milstein Katz, “Ethics and
the Perception of Ethics in Autobiographical Film” (KATZ e KATZ, 1988), que reflete
acerca de algumas destas questões considerando filmes de cineastas como Amalie
Rothschild, Maxi Cohen e Ross McElwee. Os autores apontam que as narrativas dos
documentários autobiográficos já iniciam com níveis de confiança e intimidade entre
cineasta e “objetos” nunca alcançados (ou mesmo nem buscados) em outros tipos de
documentário – justamente por lidarem com a relação entre o cineasta e as pessoas mais
próximas de si. Os autores questionam se este relacionamento especial entre cineasta e as
pessoas filmadas suscitariam algum tipo de distinção ética e, da mesma forma, como este
relacionamento afetaria a percepção do público em relação a estas questões.
Katz e Katz apontam que nesses casos nós, como espectadores, temos padrões
éticos distintos ao julgarmos o registro, a interação e a incorporação à narrativa, que
dependem dos “objetos” explorados pelo cineasta (KATZ e KATZ, 1988. p. 123). Há
285
uma distinção da maneira através da qual julgamos a tematização, da parte de um cineasta,
em relação a políticos ou celebridades (e outros tipos de pessoas públicas), se em
comparação a pessoas “comuns” nas ruas (ou pessoas sobre as quais não temos nenhum
tipo de conhecimento prévio), ou pessoas com pouco acesso à educação ou em situação
de marginalidade social. Qual seria o grau de expectativa, portanto, que teríamos em
relação a um(a) cineasta que filma seu marido/esposa, seus pais, irmãos ou filhos? Os
autores colocam que o fato das pessoas retratadas no filme serem da família do próprio
cineasta sugere um grau de responsabilidade maior da parte deste. Culturalmente,
segundo Katz e Katz, supõe-se que as pessoas devam tratar seus familiares com mais
consideração do que tratam estranhos. Existe a presunção – que, embora empírica, acaba
por pautar nossa percepção de um comportamento apropriado – de que as famílias são
grupos que nos nutrem e nos protegem do “mundo malvado lá fora”, e isto é levado em
consideração pelo público (espectadores que também, forma ou outra, têm as suas
próprias famílias). Segundo os autores: “Em nossa cultura, sentíramo-nos mais ofendidos
em saber que um cineasta enganou sua família do que se tivesse enganado um estranho.
Como ele pôde fazer isto? Os padrões que aplicamos são mais altos. ” (p. 123).
Katz e Katz prosseguem a discussão refletindo sobre o tipo de consentimento que
envolve as pessoas da família que são retratadas pelo cineasta-autobiógrafo. Os autores
questionam: será que estas pessoas aceitariam ser filmadas (neste mesmo tipo de registro
caseiro/familiar) por outro cineasta – um estranho? Sugere-se que ainda que as
características variem de indivíduo para indivíduo e de família para família, poderíamos
hipotetizar que, no caso das famílias, “o amor, a culpa, o medo da perda do amor, um
senso de dívida de favores, o desejo de ajudar e o desejo de ser útil” (p.124), em relação
aos documentários autobiográficos, são elementos que contribuem mais para a
“confusão” existente em relação aos motivos pelos quais as pessoas consentem suas
participações em filmes.
Neste sentido, é possível sustentar que nos documentários autobiográficos,
frequentemente, diversas das pessoas retratadas pelo cineasta deixam-no fazer com a
sensação de que estão fazendo um favor para ele. Nossas suposições em relação ao
consentimento de determinado indivíduo podem, inclusive, fazer parte do próprio eixo
temático do documentário. É o caso dos primeiros filmes da carreira autobiográfica de
Ross McElwee, por exemplo, de Backyard a Time Indefinite, no que diz respeito a seu
pai. O cineasta tematiza a maneira através da qual o pai não estaria absolutamente
286
confortável, ou satisfeito, em um primeiro momento, com a empreitada do filho em
acompanha-lo em seu trabalho de cirurgião ou em diversos momentos cotidianos. Este
tipo de desconfiança em relação à carreira incipiente do filho parte tanto de comentários
textuais quanto da própria linguagem corporal deste em relação à câmera. Ainda em
Backyard¸ o primeiro filme, o pai diz a frase “Ficarei satisfeito quando o olho grande for
embora” (I’ll be glad when the big eye is gone), já mencionada, que é reutilizada em
diversos de seus filmes subsequentes quando o diretor busca lembrar da relação que tinha
com o pai. Em outros de seus filmes, esta mesma desconfiança é tematizada a partir de
olhares de “reprovação” lançados para a câmera do filho. Em Diaries (1971 - 1976), de
Ed Pincus, a evolução da boa vontade, ou complacência, de Jane em relação à empreitada
do marido, torna-se um mote importante da narrativa. É possível dizer, entretanto, que
nestes casos (como em outros documentários autobiográficos), estes personagens
provavelmente não gostariam, por vontade própria, de ter suas intimidades e seus
cotidianos revelados e narrativizados na forma fílmica, ao menos não desta forma, para
um cineasta que não fosse de sua família. Neste sentido, um caso mais delicado seria o
de cineastas que filmam os filhos durante a infância, quando ainda não há discernimento
em relação à sua própria participação dentro de uma narrativa cinematográfica. A usual
complacência que vemos da participação dos filhos pequenos neste tipo de filme parece
estar sob a égide tanto do amor quanto da autoridade paterna ou materna. Esta
complacência pode endurecer com o passar do tempo: novamente a obra de McElwee
serve como exemplo, se compararmos a encenação de Adrian para a câmera do pai em
filmes como Six O’Clock News ou In Paraguay, quando ainda é uma criança, com o
jovem adulto totalmente autoconsciente de Photographic Memory. Ou mesmo como o
caso supracitado de Beginning Pieces, de Alfred Guzzetti, em que sua filha, depois de
crescida, deixou de concordar com a distribuição do filme.
O que Katz e Katz sugerem é que a relação prévia entre pai e filho, ou entre esposo
e esposa, carrega em si valores que frisamos anteriormente (amor, compaixão, vontade
de ajudar e de estar presente, etc.), que, além de tornar-se parte inexorável de toda
encenação, pautam previamente o contrato de acordo entre cineasta e personagem. Neste
sentido, portanto, o fato dos documentários autobiográficos “invariavelmente alterarem
seus significados”, segundo a ótica de Ross McElwee, frente à passagem do tempo e à
consequente mudança de contextos e circunstâncias, diz respeito justamente à
possibilidade de variação das relações afetivas entre o cineasta e as pessoas que filma – o
287
crescimento e amadurecimento dos filhos, por exemplo, ou um processo de divórcio
poderiam deflagrar este tipo de variação. O questionamento que atravessa McElwee na
maturidade de sua carreira parece tomar proporções maiores à medida em que o tempo
passa e a cada filme finalizado pelo diretor. O trato com a exploração de um universo
individual e a rede de sentimentos e afetos pertencentes a ele parece resultar em uma via
de mão dupla, quando aliado à metodologia do cinema direto e suas heranças. McElwee
aposta na passagem do tempo como fator potencializador de diversos momentos de seus
filmes, porém a força narrativa advinda desta aposta resulta tanto nas maiores virtudes de
sua carreira quanto em momentos eticamente delicados. As questões que rodeiam a (não)
distribuição de um filme como In Paraguay sublinham a importância da hipótese de
William Rothman a respeito do aspecto irredutível de violência no papel do cineasta do
cinema direto, mesmo diante das melhores de suas intenções, e que se revela vulnerável
à imprevisibilidade diante da força transformadora do tempo e sua passagem.
288
3.8. Photographic Memory (2011): Um ciclo completo
A possibilidade de Photographic Memory, lançado em 2011, constituir o
fechamento de um ciclo autobiográfico da carreira de Ross McElwee foi um dos pontos
discutidos em entrevista realizada com o diretor para esta pesquisa. De fato, o olhar
reflexivo de McElwee para o início de sua carreira, ainda na década de 1970, é um dos
amparos narrativos deste que é o último longa-metragem lançado pelo diretor até o
presente momento. No filme, McElwee enxerga o começo de sua abordagem
autobiográfica, que desemboca no média-metragem Backyard, lançado vinte e sete anos
antes, um fenômeno que deve emergir como rememoração, com a finalidade de ajudar a
solucionar alguns dos dilemas que assolam sua vida individual no momento.
A necessidade do resgate de determinado período da juventude de McElwee não
acontece, evidentemente, por força do acaso. O diretor reconhece conflitos similares neste
período de sua maturidade em relação aos que perpassavam sua vida na década de 1970
e que serviram como motivação para a exploração autobiográfica de Backyard. Naquele
momento, o cineasta apresentava-se como um jovem artista, que tateava o início da trilha
pelo caminho das artes e da exploração criativa da linguagem cinematográfica. Suas
aspirações artísticas dividiam espaço com outras possibilidades que refletiam um estado
de espírito disposto a desafiar padrões mais convencionais de vida e trabalho, como o
envolvimento com o budismo Theravada, com movimentos pacifistas, ou ajudando no
registro de eleitores negros no Sul dos Estados Unidos. Como contraponto ao ímpeto
aventureiro e artístico de McElwee havia a tradição familiar e sua expectativa –
representada sobretudo pela figura de seu pai. Médico, como outros membros da família
McElwee, republicano e conservador, o pai do diretor nunca escondeu a pouca predileção
pelo caminho trilhado pelo filho – ou ao menos por um deles, dado o fato de que o irmão
mais novo de McElwee seguiu a tradição familiar, tornando-se posteriormente cirurgião
e inclusive tomando conta de alguns pacientes do pai após sua morte.
De qualquer maneira, em Backyard assistimos à exploração deste conflito familiar
a partir de um jovem McElwee que enxergava uma vida inteira de desenvolvimento
pessoal e profissional pela frente. Como espectadores, pudemos acompanha-lo em parte
desta jornada de acordo com aquilo que o diretor escolheu compartilhar conosco em suas
narrativas documentárias autobiográficas, em um movimento de três décadas
subsequentes ao lançamento de Backyard. Para além dos percalços não incomuns que
289
acompanham o desenvolvimento de carreiras menos ortodoxas como a de documentarista
independente – pelo menos se em relação à prática da medicina – é possível dizer que o
cineasta foi bem-sucedido no caminho que se propôs a trilhar. Contribuiu para o
desenvolvimento da história do documentarismo estadunidense ao adicionar pelo menos
um filme suficientemente integrado aos novos-clássicos desta filmografia (Sherman’s
March), pôde ater-se à sua proposta artística nos longas-metragens que realizou em três
décadas de trabalho e também fez parte do corpo docente de uma universidade que
valoriza sua carreira, lecionando prática cinematográfica.
É evidente, portanto, que em Photographic Memory estamos diante de um
McElwee ciente de que o caminho detrás de si é maior do que aquele que tem à sua frente.
Aos sessenta e quatro anos, o cineasta engaja um olhar de ternura à juventude, que agora
parece decididamente distante. Esta constatação advém também a partir do olhar para sua
estrutura familiar. Para além do desenvolvimento de sua carreira profissional, seus filmes
nos ofereceram o conhecimento acerca dos eventos mais significativos de sua vida
privada. Neste sentido, o crescimento de seus dois filhos, Mariah e, mais especialmente,
Adrian, pontuaram a passagem do tempo no decorrer dos anos de sua vida adulta. A
constatação de que um ciclo geracional inteiro se passou desde a abordagem
autobiográfica de Backyard acontece com o fato de que em Photographic Memory Adrian
é apresentado como um jovem adulto, com idade não tão menor que a de seu pai no início
de sua carreira.
É justamente no reconhecimento de Adrian como um adulto prestes a iniciar sua
vida profissional que o filme traz seus principais conflitos narrativos em uma esfera
autobiográfica. Além de um evidente embate de gerações travado entre McElwee e
Adrian, há um desarranjo entre as expectativas do pai/diretor e os caminhos que o filho
almeja seguir: um choque de valores similar àqueles experienciados pelo diretor em
relação a seu pai, tematizados em Backyard. Apesar da disposição em trabalhar com
mídias, o audiovisual em especial, Adrian parece menos inclinado à exploração da
linguagem sob a ótica das belas-artes se em comparação às motivações do pai no início
de sua carreira, bem como não demonstra desejo algum de ingressar nos estudos
universitários. Diante da constatação do filho de que, se pudesse, teria um helicóptero e
gostaria de morar na cobertura de um arranha-céu “vivendo ridiculamente”, McElwee o
questiona: “De onde diabos você tirou estes valores, Adrian?”. O cenário traçado pelo
início de Photographic Memory revela o cineasta como um pai pouco sintonizado ao
290
ímpeto capitalista do filho, inclinado ao acúmulo financeiro e à ostentação de roupas,
carros e de todos os gadgets tecnológicos de última geração que o dinheiro pode comprar.
Ainda confuso em relação às suas aspirações profissionais, Adrian apresenta também
predisposição a comportamentos extremos, como a prática de esportes radicais sob o
efeito de álcool e/ou drogas leves.
Figura 50: Adrian McElwee aos 21 anos de idade, em Photographic Memory (2011)
Completando um processo iniciado em filmes anteriores, portanto, no longa-
metragem McElwee apresenta-se “calçando os sapatos” que seu pai calçou, mais de trinta
anos antes, quando revela uma preocupação genuína com o futuro e a felicidade de
Adrian. O distanciamento entre o diretor e seu filho é tematizado progressivamente, em
um movimento que é iniciado em Bright Leaves, na pré-adolescência do filho, e que
culmina no cenário afetivo instável entre ambos de Photographic Memory.
Concomitantemente a este movimento, há nos filmes uma reaproximação entre McElwee
e a memória do pai, após sua morte. O cineasta passa a enxergar a faceta de humanidade
do pai que lhe era invisível em sua juventude – principalmente a partir dos desafios da
paternidade com os quais o diretor se depara ao longo do crescimento do filho. Assistir
aos caprichos pós-adolescentes de Adrian, em diversas de suas facetas, é um fenômeno
que causa certa surpresa para os espectadores que acompanham a obra de McElwee de
perto. Um olhar atento aos filmes pode sugerir que o realizador parece ter de alguma
291
forma evitado tematizar narrativamente os conflitos que advém do crescimento de Adrian
e as disputas entre pai e filho que, naturalmente, tendem a se agravar com a adolescência.
O início deste tipo de conflito é tematizado em Bright Leaves, porém mesmo neste filme
McElwee explora mais substancialmente o material de Adrian ainda em sua infância,
caracterizando-o em sua sensibilidade, criatividade, doçura e puerilidade dos tempos de
criança; movimento este que se repete também na narrativa de In Paraguay.
Esta “lacuna” nos filmes do realizador em relação ao crescimento de Adrian pode
suscitar o questionamento nos espectadores sobre “onde teria ido parar” a polidez
inocente do filho que víamos em seus filmes anteriores. Manter o filho próximo de si,
amparando-o em seus desejos e aspirações, parece não ter evitado que um distanciamento
entre ambos se agravasse. Posteriormente no filme, McElwee assume uma parcela de
culpa neste processo, admitindo a tendência a ter superprotegido Adrian em diversos
momentos de sua vida. Se em Backyard o cineasta relata que a decisão tomada por seu
pai diante do impasse de uma “incompatibilidade de gênios” entre ambos foi o da
resignação (“Eu decidi não me preocupar mais com você. Eu me resigno do seu destino”),
o diretor dispõe-se a trilhar um caminho diferente. A solução buscada pelo cineasta, e que
se apresenta como o principal veio narrativo de Photographic Memory, é o de tentar
entender o momento que o filho está passando através da reconstrução de episódios de
sua vida no período em que tinha a idade de Adrian.
Desta forma, McElwee vê a viagem que realizou para a França após sua graduação
como o ápice simbólico de sua juventude. Antes de ingressar no MIT Film Section, o
diretor passou um ano viajando pelo país, tendo vivido parte especial deste período na
pequena cidade portuária de St. Quay-Portrieux, localizada na região da Bretanha. Os
principais registros desta viagem são diários e anotações que McElwee guarda até
atualmente, revelando-os a Adrian e a nós, espectadores. Na viagem, o cineasta
permanecia imerso no universo da literatura, tendo pouco tempo antes realizado os
estudos de graduação em Escrita Criativa pela Universidade de Brown. Os outros
registros da viagem são as fotografias still que tirou e que cujos negativos permanecem
armazenados em sua casa. Segundo McElwee nos narra ao longo do filme, a viagem para
a Bretanha foi definidora no sentido de estimular seu impulso pelo trabalho com o registro
fotográfico do mundo, neste caso ainda na linguagem da fotografia estática, mas que
revelava já seu apreço por determinadas questões ontológicas que perpassam sua obra
fílmica. No caso, foi em St. Quay-Portrieux que o realizador pôde trabalhar pela primeira
292
vez em sua área, como assistente de um fotógrafo chamado Maurice, cujo ofício era o da
fotografia de eventos como batizados e casamentos. Maurice, o cineasta nos conta, fez o
papel de mentor do diretor, estimulando seu interesse por atravessamentos conceituais no
campo da fotografia e da cultura. Morando em um porão da casa de Maurice e sua família,
onde também revelava negativos, McElwee viveu um período de intensa imersão no
mundo da fotografia sob um viés prático. Aliado ao estímulo profissional proporcionado
por Maurice, o cineasta lembra-se também de Maud, jovem com quem manteve um
relacionamento amoroso e com quem perdeu o contato após seguir viagem e deixar a
Bretanha, mas que marcou este período de sua juventude.
McElwee, devido ao descuido (ou à licença poética), narra não ter sequer o
sobrenome destas pessoas, apenas algumas fotografias e os relatos de suas experiências
diárias, a partir de entradas de diário. Decidido a “viver” novamente a paisagem da
pequena cidade da Bretanha, “dar um tempo” de sua relação com Adrian e talvez obter
mais informações sobre as pessoas que fizeram parte de seu passado, o cineasta lança-se
em direção a St. Quay Portrieux munido de sua câmera que, pela primeira vez, depende
e confia apenas na mídia digital (cartões de memória) como suporte de gravação. A maior
parte da narrativa de Photographic Memory, portanto, concentra-se no período em que o
diretor passa em St. Quay em sua empreitada. Intercalado à sua experiência em St. Quay
existem as interações que o realizador teve com Adrian no período, algumas por meio de
videoaplicativo e afins, mas principalmente utilizando-se de momentos em que conversou
com Adrian em um “passado recente”, que ajudam a estabelecer o panorama subjetivo da
relação que envolve pai e filho no momento das filmagens.
Pouco parece ter mudado na essência da cidade de St. Quay, mais de trinta anos
depois. McElwee é capaz de reconhecer diversos dos lugares por onde esteve e que foram
o palco de episódios que circundaram sua experiência naquele período. Um deles, o
momento em que o fotógrafo Maurice o abordou oferecendo um emprego, ou a
circunstância em que viu a jovem Maud pela primeira vez. Apesar de transformações em
fachadas e modernizações de diversos tipos, muitos dos lugares permanecem
reconhecíveis a partir da comparação com as fotos tiradas por McElwee na ocasião
original. O uso da fotografia still, preenchendo todo o quadro, é um recurso explorado
pelo cineasta em Photographic Memory e que praticamente inexiste em seus filmes
anteriores. Através de suas fotos, “pequenas amostras de vida”, segundo McElwee,
entramos em contato com o início do processo de aprendizado do diretor no trato com a
293
imagem fotográfica. As fotos mostradas pelo cineasta revelam-se estudos de elementos
como luz, composição e perspectiva, transparecendo também alguns equívocos que
acompanham o processo, como falhas no manejo dos químicos para a revelação e
ampliação das fotos.
McElwee, como o próprio sugere, estava “definitivamente ainda aprendendo”, e
o contato com Maurice parece ter sido um divisor de águas em sua carreira artística.
Segundo o realizador nos narra, o diretor encontrou no fotógrafo uma possibilidade para
o florescimento de uma linguagem artística que dava sinais de germinar. A maneira
através da qual Maurice enxergava a fotografia como arte parece em consonância com o
caminho trilhado pelo cineasta após o retorno desta viagem e o ingresso nos estudos de
cinema do MIT, sob a tutela de Richard Leacock e Ed Pincus. Maurice trabalhava também
com fotografias para os cartões postais de St. Quay. Este, um ofício que pode ser encarado
como ordinário, era visto pelo fotógrafo como uma “janela para o mundo”: ao receber o
cartão postal, o destinatário era capaz de imaginar o remetente vivenciando a experiência
da paisagem retratada no cartão, naquela circunstância em específico. Maurice parece ter
despertado em McElwee a predisposição conceitual para o trabalho posterior com o
cinema direto. Desde a predileção pela fenomenologia de Merleau-Ponty até o fato de
acreditar que “existem segredos a serem descobertos na mais mundanas das fotografias”,
os ensinamentos do fotógrafo caberiam também, certamente, na linha de pensamento de
professores como Ed Pincus.
As reflexões do cineasta sugerem que ainda naquele período havia algo de sagrado
e ritualístico em relação ao ato de fotografar – e, certamente, filmar. Existia uma
fisicalidade intrínseca ao processo, apresentada desde a impressão da luz no material
fotossensível, o filme, mas também no que diz respeito a atividades que dependiam do
manuseio físico dos elementos para que tudo corresse bem: segurar as tiras de filme,
misturar os químicos, molhar o papel fotográfico. Um contraponto a certa sacralização
que circundava a produção de imagens no início da carreira de McElwee é sentido neste
novo momento. “Onde estão as imagens?”, questiona o cineasta à fotógrafa Cecile
LeBrun, que no momento do filme produzia as fotos dos cartões-postais de St. Quay, em
relação à relativa ausência de materialidade que gira em torno da produção fotográfica e
audiovisual na era digital. Se por muitas décadas a metodologia de produção
cinematográfica de McElwee pôde ser considerada como estando na ponta da vanguarda
tecnológica, nos dias de hoje esta atividade é significantemente mais banal. Guardadas
294
algumas proporções, a pesada câmera de 16mm equilibrada em um ombro e o gravador
de fita magnética pendurado no corpo, bem como um complicado workflow de cabos,
alimentação de energia e moviolas parece ter dado lugar a pequenas câmeras digitais de
cinema e smartphones que, na essência, alcança resultados finais semelhantes.
Não se sentindo plenamente integrado a ela, McElwee busca refletir sobre o
panorama da era digital que tende a reger atividades não apenas restritas à produção
artística, mas às relações humanas como todo. Diversos dos elementos do mundo no qual
Adrian inicia sua vida adulta parecem menos “talhados em pedra”, definitivos, se em
comparação àquele em que McElwee viveu sua juventude. Tecnologicamente dizendo, a
soberania da câmera de 16mm dá lugar a gadgets que se sobrepõem rapidamente em curto
espaço de tempo e tornam obsoletos seus antecessores. Imagens em movimento, outrora
escassas, são produzidas a todo momento, transmitidas online e frequentemente perdidas,
deletadas ou relegadas a depositórios de memória digital esquecidos pelo tempo. Para
além disto, através de diversos tipos de terminais eletrônicos, Adrian tem a possibilidade
de alcançar qualquer pessoa de seu círculo social – desde amigos próximos, família ou
relacionamentos amorosos a pessoas com quem tem pouco contato. Em pouco tempo e à
palma da mão, Adrian coloca-se em um fluxo constante de comunicação que ocupa
integralmente seu cotidiano, paralelo a qualquer outra atividade que esteja
desempenhando no momento.
Neste sentido, portanto, McElwee ressalta que o filho dificilmente passaria pela
experiência de perder totalmente o contato com alguma pessoa – especialmente alguém
importante em sua vida. Sendo procurado pela ex-esposa do fotógrafo Maurice, Helene,
com quem o cineasta dividia habitação no período em que morou em St. Quay, o diretor
é informado da morte do fotógrafo, aparentemente durante um período de sua vida
marcado por abandono de si próprio, doença e solidão. A convivência com Helene faz
com que o realizador entre em contato com uma faceta de Maurice deixada de lado por
sua “memória fotográfica”. McElwee tendia a lembrar do fotógrafo como um mentor
indefectível. Além disso, de certa forma, Maurice fez um papel que o pai do diretor
realizou apenas em relação a seu irmão, no que diz respeito à transmissão de
conhecimento da prática da medicina. Helene aponta, porém, o fato do cineasta trabalhar
muito mais arduamente do que o próprio Maurice no laboratório de imagens e ressalta o
trabalho “secreto” do ex-esposo, que realizava ensaios eróticos com mulheres da região
e sugeria a possibilidade de Maurice estar vivendo uma “vida paralela” ao casamento. A
295
demissão súbita de McElwee do posto de assistente, inclusive, partiu de uma acusação
injusta feita pelo fotógrafo, apontando que o diretor se apropriou de fotogramas destes
ensaios, e expulsando-o de sua casa.
Em um procedimento diferente da maioria dos filmes do cineasta, Photographic
Memory foi realizado em um período de tempo substancialmente mais curto: em torno de
apenas um ano, entre o início das filmagens e sua finalização. Há um ritmo narrativo
sensivelmente “devagar” que circunda seu desenvolvimento, sobretudo durante o tempo
em que McElwee permanece em St. Quay, no qual pouco parece acontecer. Talvez por
isto, também, Photographic Memory conta com menos sequencias em que a intensidade
vérité vem à tona, visto que este tipo raro de circunstância frequentemente requer mais
tempo dispendido no tete-a-tete do cineasta com o mundo e as pessoas ao redor de si –
McElwee aponta, por exemplo, que as tomadas realizadas em St. Quay foram feitas
durante um único mês (MACDONALD, 2014, p. 163). A intensidade vérité existe,
entretanto, em algumas das sequencias de intercâmbio entre McElwee e Adrian, em que
o cenário afetivo delicado entre pai e filho é capaz de emergir, porém ocorre sobretudo
na última das conversas realizadas com Helene. Diante da câmera do cineasta, a ex-esposa
de Maurice reconhece Maud em uma das fotos trazidas por ele, e revela que a fotografia
teria sido tirada por Maurice. A possibilidade de reencontrar Maud torna-se real quando
Helene revela ter conhecimento do paradeiro da ex-namorada de McElwee.
“Ainda não” (“pas encore”), responde o cineasta quando questionado acerca de
seu desejo de descobrir o endereço atual de Maud. Anteriormente julgando esta ser uma
parte praticamente perdida do filme, como McElwee aponta em entrevista para esta
pesquisa, o diretor é confrontado pelo fato de ter de decidir, enfim, se quer ou não ver a
ex-namorada novamente. Tendo Helene obtido o endereço de Maud, McElwee lança-se
em uma epifania sobre o significado de reencontrar um ex-relacionamento romântico
depois de décadas. A fotografia identificada por Helene traz concretude ao fato de que
Maud existe como pessoa no mundo real, não apenas como fragmento de memória do
diretor que não encontraria correspondente no tempo atual e na materialidade da vida.
McElwee reflete: “Por décadas, guardei minhas memórias romantizadas de meu tempo
com Maud. E quando não pude encontra-la, simplesmente assumi que deixaria estas
memórias existirem. Mas a foto, que Helene identificou, ela muda tudo. É a única verdade
inegável em tudo isto. Ela existe, e agora me força a ter a ciência de que Maud existe: no
presente, e não apenas no passado. Prova fotográfica.”. Esta reflexão motiva uma das
296
sequencias emblemáticas do propósito narrativo de Photographic Memory, em que
McElwee coloca-se diante de sua própria câmera a fim de examinar como se pareceria
para alguém que não o vê por muito tempo. Enquadrando seu rosto em um close-up e
examinando-o com as mãos, McElwee narra em voz over:
Então, supondo que eu estivesse sentado diante de Maud, em um café
ou em algum outro lugar, como eu me pareceria para ela? Ela estaria
pensando: “Deus, ele ficou tão velho. Ele costumava ser bonitinho, um
pouco magro. E ele era um trabalhador tão ávido, tão energético. Mas
agora ele se parece velho e esgotado. Digo, ele está tão magro agora,
mais magro do que eu me lembrava. Magro demais.”. Sério, como eu
pude ficar tão velho?
Figura 51: “Como eu pude ficar tão velho?”. Ross McElwee em Photographic Memory
(2011)
Desde Time Indefinite, dezoito anos antes, McElwee não expunha visualmente o
efeito do tempo em seu corpo e seu rosto de maneira tão contundente. Em seus filmes, o
cineasta predominantemente apresenta-se diante das pessoas com quem interage em uma
distância próxima daquela que mantemos nas conversas que travamos uns com os outros,
em situações cotidianas e desvencilhadas da câmera. A proximidade, evidentemente,
coloca as pessoas diante de sua lente em uma exposição íntima – rostos que
frequentemente ocupam toda a tela em uma situação de close-up, suscetíveis, desta forma,
297
à análise imediata de suas feições e aparências. Neste sentido, é possível lembrar que a
tematização da passagem do tempo é um dos principais aspectos que confere força à obra
do diretor: força que não passa incólume de carregar consigo traços de melancolia e
sofrimento. Em outras palavras, da mesma maneira que a maturidade pode ser encarada
como um ponto de evolução da sabedoria e do savoir-vivre, o envelhecer do corpo,
captado pela lente, traz em si a possibilidade de juízos estéticos de valor e, em última
análise, uma inevitável aproximação à noção de definhamento e morte. A autoanálise de
McElwee em relação a seu rosto, em Photographic Memory, apresenta-se como metáfora
da aproximação do final de um ciclo de sua carreira, não sem estar imbuído da
“sensibilidade para com as coisas efêmeras” – o sentimento de mono-no-aware, como
sugerido pelo autor Gary Hawkins –, ou uma melancolia diante da transitoriedade da vida.
Sentimento este, em especial, que é potencializado pelo fato de McElwee encontrar-se no
momento em cheque diante de alguns valores sobre o qual construiu sua obra fílmica, ao
menos em parte, ao longo das décadas. A separação matrimonial e a cisão de sua família
pressupõem, neste caso, uma reestruturação do viver e do filmar, elementos cuja ligação
íntima alicerçam sua autoria enquanto documentarista, com a qual o cineasta tem de lidar.
Ao realizar esta avaliação acerca da passagem do tempo nos traços de seu corpo,
McElwee pode abster-se fazer o mesmo em relação a Maud. Visitando-a em sua casa, a
câmera do cineasta narra imageticamente o que não precisa ser posto em palavras:
evidentemente, o tempo fez seu papel em relação a ela o tanto quanto fez em si próprio.
O encontro entre McElwee e Maud sugere que eles detêm uma visão diferente sobre o
relacionamento que mantiveram na década de 1970. Aparentemente, o envolvimento de
ambos, assim como seu término, teve um impacto maior na vida do cineasta do que na da
ex-pretendente, pois Maud parece lembra-lo a partir de uma perspectiva mais leve e
pueril, sem ressentimento ou incompletude. Ao ser registrada pela câmera mais de trinta
anos depois, a noção de “Maud” como fenômeno integrante do rol de experiências de
McElwee enquanto indivíduo adquire novos contornos. Para o cineasta, existiriam agora
duas Mauds: “A jovem na minha memória e a mais velha que, de alguma forma, é a
mesma”.
298
Figura 52: “Maud” em dos diários de McElwee da década de 1970, em Photographic
Memory (2011)
A meditação do diretor gira em torno, portanto, do embate da transformação de
experiência em linguagem – ou, o caso, em diferentes linguagens. A transcriação de sua
relação com Maud na década de 1970 em linguagem de escrita criativa, guardada em seus
diários, perpetuou uma interpretação dos fenômenos distinta do que aconteceria se o
envolvimento de ambos tivesse sido registrado através, por exemplo, de tomadas
cinematográficas. No início de sua idade adulta, Adrian começa agora a navegar pelo
labirinto da exploração da linguagem e da criação artística, em uma idade similar à de seu
pai no início da carreira. Conversando via videoaplicativo com o filho, ainda em St. Quay,
McElwee detecta uma melancolia que lhe parece familiar. Em um procedimento inédito
em seus filmes, o cineasta utiliza-se em over do discurso direto, em segunda pessoa, para
deixar um recado ao filho. O diretor constata algo para Adrian que talvez tenha levado
décadas para aprender: não existe um caminho prescritível para o trabalho com a
linguagem. Por muito tempo o cineasta ponderou acerca da possibilidade que o pai teve
de ajudar seu irmão com a prática da medicina, não encontrando correspondente dentro
de casa para que alguém fizesse o mesmo em relação às suas aspirações profissionais.
Modelos de inspiração cruzaram seu caminho, como o fotógrafo Maurice ou a amiga
Charleen Swansea, porém, em última análise, o trabalho artístico parece fadado à
confrontação de si com si próprio. Na conversa, Adrian relata estar vivendo seus dias à
299
deriva pois não consegue concretizar seus trabalhos. Sua melancolia diante do pai é um
prenúncio de que, pelo menos em parte, a manipulação da linguagem criativa requer certo
grau de isolamento e imbui-se de momentos de ansiedade, autodepreciação e dúvidas
sobre a própria capacidade: “Não é como treinar para tornar-se médico”, McElwee
aponta. Disposto a incentivar o filho em relação ao trabalho criativo e acompanhando-o
em seus passos, o cineasta assume que o desejo de estar próximo de Adrian e protege-lo
acabou por aumentar a pressão que o filho sente diante dos caminhos a trilhar. Se no início
de sua carreira autobiográfica, em Backyard, McElwee aponta a “resignação” do pai em
relação a seu futuro como algo dotado de valor negativo, a partir de Photographic
Memory pode-se inferir que talvez esta resignação fosse a maneira encontrada pelo pai
para que o cineasta desenvolvesse o próprio caminho, em um terreno no qual sua
interferência poderia ser mais problemática do que benéfica.
Se existe um aspecto catártico na posição de Adrian em relação à vida que tem
pela frente, algo semelhante pode ser dito em relação a McElwee, abrindo-se aqui breve
parênteses. A narrativa de Photographic Memory evoca questionamentos sobre o futuro
do trabalho de McElwee que parecem continuar permeando as reflexões do diretor, alguns
anos após o lançamento do filme. Um dos pontos das entrevistas realizadas com o diretor
para este trabalho residiu no questionamento sobre seu entendimento acerca das
possibilidades dos limites, do fechamento, de sua carreira autobiográfica. O diretor
vislumbraria alguma possibilidade de colocar um ponto final à empreitada iniciada há
décadas? Em sua resposta, McElwee comenta sobre como neste momento “o mundo
parece estar recuando” para ele e sua câmera. Em um aspecto imediato, o cineasta refere-
se ao fato de, após o divórcio, não ter mais um casamento e um ambiente familiar para
filmar – ou, ao menos, não mais da maneira que imaginava fazer ao longo de sua carreira.
Mais especialmente, entretanto, McElwee comenta a respeito de como a “paisagem
psicológica” do mundo e das pessoas que o habitam parece ter transformado-se com o
tempo. O realizador acertadamente sugere que o ato de sair de casa com uma câmera e
filmar não é mais o que costumava ser. De fato, as pessoas desenvolveram relações
diferentes com as câmeras e com o ato de filmar se em comparação com quando ele
iniciou sua carreira. Existe mais ciência, entre as pessoas, das implicações de um registro
audiovisual – principalmente se realizado por um estranho, em uma situação de filmagem
vérité. No mínimo, McElwee sugere, as pessoas vão querer saber qual é o destino das
imagens que estão sendo feitas – e, evidentemente, este é um direito que elas têm. Neste
300
mesmo sentido, o cineasta comenta que dificilmente alguém com uma câmera conseguiria
passar da porta da frente de um estabelecimento sem ser barrado. Em outras palavras, é
possível sugerir que a noção mais clássica de Cinema-Vérité, de alguma forma, encontra
um outro tipo de “matéria-prima” ao seu redor – uma que talvez encontre mais resistência
do que em tempos de outrora.
Há outro aspecto levantado pelo cineasta, entretanto, que parece mais urgente. É
interessante a menção de McElwee de que a “paisagem” digital faz com que exista um
movimento de reavaliação em relação às suas escolhas estéticas, narrativas, e mesmo em
relação à própria empreitada autobiográfica. Atualmente todos estão de alguma forma
colocando online aspectos de suas próprias vidas em redes sociais como o Facebook e o
YouTube. A possibilidade de exposição de intimidade, McElwee aponta, não é mais
como era quando ele e outros cineastas da região de Cambridge estavam começando a
filmar. Pelo menos em parte, a possibilidade de explorar narrativamente aspectos de um
ambiente doméstico, familiar, era a novidade temática proposta pelo documentário
autobiográfico na década de 1970 – um senso de aventura que atualmente, talvez, também
não seja da mesma maneira que um dia foi. Em sua reflexão, o diretor ressalta estar
“reavaliando como continuar a fazer este tipo de filme”; “se ainda eles são relevantes, se
eu deveria estar fazendo-os”. McElwee sugere, como frisado, que Photographic Memory
de fato marca o final de uma “volta” de um ciclo uma vez iniciado em Backyard – porém
seria este final de ciclo também uma linha de chegada em sua obra?
Diante de uma questão ainda irrespondível fecham-se aqui os parênteses para a
conclusão de uma reflexão sobre Photographic Memory. Por entre meditações acerca da
memória, do processo de envelhecimento, e do trabalho criativo com a linguagem,
McElwee encontra-se novamente dentro de uma igreja, despedindo-se de St. Quay e
constatando como “os últimos trinta e oito anos simplesmente desapareceram”. O cineasta
volta aos Estados Unidos e à costa da Carolina do Norte, “palco” de algumas de suas
principais reflexões ao longo de sua carreira. O mar, os peixes e o ato de pescar são as
metáforas novamente buscadas por McElwee para a reflexão acerca do relacionamento
entre pais e filhos. Com o intuito de reaproximar-se de Adrian, o diretor propõe uma
pescaria em alto mar que tem resultados pouco expressivos. É na costa da Carolina do
Norte que Photographic Memory e o projeto autobiográfico de McElwee terminam, até o
presente momento. Citando uma “súbita mudança”, McElwee aponta que o filho decidira
ingressar na faculdade de cinema, e Adrian propõe que pai e filho façam um filme, ali
301
mesmo. No último plano de Photographic Memory, vemos Adrian saindo para uma
corrida à beira-mar, distanciando-se de seu pai e de sua câmera, cuja silhueta pode ser
vista na areia, no campo inferior do quadro. Completando um ciclo geracional, McElwee
vê o filho adulto afastar-se de si e rumar ao horizonte. O cineasta aponta, neste momento,
ser apenas o cameraman, o “olho-grande”, da vida do filho. Para Ross McElwee isto
tende a significar mais do que apenas observá-lo à distância. Seu futuro e o das pessoas
próximas de si residem em algum lugar do “Tempo Indefinido”, aguardando para
tornarem-se presente e oferecerem-se para a lente de sua câmera.
***
Figura 53: “Até mais”, diz McElwee para Adrian, no plano final de Photographic Memory
(2011)
302
4. Considerações Finais
O propósito motriz que rege o caminho de reflexão trilhado neste trabalho foi o
de contribuir para o entendimento acerca da noção de autobiografia aplicada ao cinema
documentário. Algumas das facetas deste entendimento projetam-se na própria estrutura
capitular escolhida para o desenvolvimento do estudo: um capítulo dedicado a levantar
questões – e elucidar algumas delas – em relação à ideia de “documentário
autobiográfico”; um segundo capítulo que visa contribuir para o firmamento de uma parte
da História deste mesmo fenômeno e, finalmente, um último capítulo que toma como
objeto de análise a obra de um dos principais cineastas relativos a este universo de
questionamento. É igualmente correto sugerir a existência de um “caminho inverso” sobre
a ordem dos elementos que instigou esta investigação: o contato com a obra de Ross
McElwee, semelhantemente, foi o impulsionador de um estudo aprofundado sobre a
filmografia com a qual ela se relaciona. O mergulho vertiginoso de McElwee na
empreitada autobiográfica, representado por um conjunto de filmes realizados ao longo
de três décadas, suscitou o adensamento de algumas questões que pareciam circundar este
tipo de produção.
Em outras palavras, o visionamento da obra de Ross McElwee em sua totalidade
trouxe contornos a reflexões acerca da ideia de documentário autobiográfico em sua
essência. Seus filmes evocam um despendimento significativo de tempo, energia e
dedicação da parte do cineasta em relação à possibilidade de “filmar-se sendo” e de
transpor a experiência individual em narrativas fílmicas documentárias. Esta mesma
preocupação regeu o trabalho de um número significativo de diretores a partir da década
de 1960, popularizando-se nas décadas seguintes e sendo reconhecida como uma das
facetas particulares do documentarismo contemporâneo. Entretanto, do que se trata,
especificamente, o fenômeno que entendemos aqui como “documentário autobiográfico”,
no que diz respeito às possibilidades e de narrativização fílmica de aspectos da vida
individual de um cineasta? De que maneira a autobiografia encontrou no meio fílmico –
e, especialmente, no documentário – terreno fértil para o florescimento de construções
narrativas que fomentaram o interesse de jovens e criativos cineastas? Se a autobiografia
como “escrita a respeito de si próprio” remonta a uma tradição milenar, por que esta
produção se adensou no cinema de não-ficção apenas nos últimos cinquenta anos? Em
que locais esta filmografia desenvolveu-se mais consistentemente? Quais as estilísticas e
303
metodologias que integram dominantemente a noção de autobiografia aplicada ao cinema
documentário?
Diante da compreensão de que a própria obra de McElwee, historicamente
dizendo, foi responsável pelo fomento da noção de autobiografia fílmica – dada a
influência que seus filmes exerceram sobre diversos documentaristas-autobiógrafos –,
parecia importante que um estudo acerca de sua carreira não se restringisse apenas à
exploração de características específicas de seus filmes, mas à consideração do campo de
interesse que ela ajudou a construir. O trabalho de reflexão acerca das questões
supracitadas envolveu, da mesma maneira, a consideração da obra de McElwee em uma
perspectiva histórica. O ato de traçar o nascimento da carreira cinematográfica do diretor,
bem como o de investigar as raízes de seu ímpeto autobiográfico, desembocou no contato
com uma produção mais ampla e que dizia respeito à própria gênese da noção de cinema
documentário autobiográfico, em uma de suas facetas. Ao situar a obra de Ross McElwee
dentro da tradição cinematográfica de Cambridge e de suas universidades, abriu-se
também a possibilidade de contribuir com o preenchimento de uma lacuna referente à
investigação das origens e do alicerçamento deste tipo de cinema. É importante frisar que
o desenvolvimento cinematográfico que tomou forma no MIT Film Section a partir do
final da década de 1960 não foi, naturalmente, a única manifestação de uma produção
fílmica de natureza autobiográfica no período. Entretanto, o esforço em “destrinchar”
conceitualmente os propósitos artísticos de um cineasta como Ed Pincus, estabelecendo
uma relação entre cinema direto e autobiografia, contribuiu para o entendimento acerca
de uma das metodologias fílmicas que perpassou a noção de documentário autobiográfico
deste momento em diante. Metodologia esta que sublinha as potencialidades
fenomenológicas da tomada e que se revela não apenas no trabalho de Ross McElwee,
mas estabelece-se como um dos largos caminhos tomados por cineastas-autobiógrafos,
até a contemporaneidade, para suas construções narrativas.
Além disso, é possível sustentar que a escolha da obra de Ross McElwee como
objeto de análise e, de certa forma, como subsídio para a reflexão acerca da ideia de
documentário autobiográfico, em suas características essenciais, diz respeito ao
comprometimento particular do diretor que pode ser reconhecido em relação a este tipo
de cinema. Em outras palavras, trata-se de considerar que existe um risco sob o qual
McElwee colocou-se constantemente diante de seu engajamento com uma empreitada
autobiográfica que se torna potencialmente mais complexa com a reafirmação, filme após
304
filme, desta escolha artística. Existe algo de comovente em relação a este tipo de risco,
detectado também em empreitadas autobiográficas como as de Ed Pincus ou Tom Joslin
que, talvez por isso, tenham sido utilizadas mais de uma vez como ponto de análise ao
longo deste trabalho. A carreira de Ross McElwee faz com que seja exista a possibilidade
de ceder, ao menos em parte, a um tipo de reflexão questionadora em relação à sua
empreitada, em um nível mais fundamental. A exposição e a tematização narrativa
recorrente de si próprio e das pessoas próximas de si, especialmente sua família, faz com
que sua obra se torne um alvo vulnerável a reivindicações de uma espécie de
responsabilidade ética da parte do diretor – reivindicações que são caras e frequentes no
campo de debate crítico do cinema documentário e que no caso da autobiografia
apresentam-se em outra faceta. Resgatando as ideias, já citadas, dos autores John e Judith
Katz (1988) em relação à percepção ética em documentários autobiográficos, o fato de
existir um forte laço afetivo entre o cineasta e aqueles que são seus “objetos” – no caso
de McElwee, por exemplo, a sua família – pode fazer com que nosso crivo como
espectadores, diante de tais narrativas, equilibre-se em uma linha tênue entre identificação
e receio.
Por um lado, a tematização sensível que realiza o diretor a respeito de diversos
tipos de conflito que atravessaram sua vida individual nestes últimos trinta anos –
conflitos muitas vezes ligados aos extratos de sua intimidade pessoal e de sua família –
faz com que os comparemos com as situações análogas que vivenciamos em nossas
próprias vidas. Nossas vidas privadas, como a de McElwee, são imbuídas das dores e
delícias relativas à convivência com as pessoas com quem mantemos laços – sanguíneos,
comunais, afetivos, familiares. Temos, como o diretor, nossas próprias relações com
instituições como família e trabalho. São considerações como essas que justificam uma
posição espectatorial, que frequentemente assumimos quando assistimos aos filmes, de
colocarmos nossa própria experiência individual em vibração com os cenários expostos
pelo diretor. Como exemplo, a densa relação entre McElwee e seu pai, tematizada em
diversos dos filmes, pode evocar a sensação de tons de familiaridade – ou diversidade –
aos espectadores (“minha relação com meu pai era parecida” ou “minha relação com meu
pai foi bastante diferente”). O mesmo pode ser dito sobre tantas outras situações que
McElwee expõe no curso de sua obra, como a maneira que reage em situações de luto; ou
o modo que desempenha sua paternidade – nas diversas interações com Adrian que
registra ao longo da vida de ambos.
305
Desta forma, se tal conexão entre espectador e diretor, diante da exposição
narrativa de cenários que colocam a experiência individual de ambos em vibração, pode
ser considerada um trunfo da obra de Ross McElwee – uma qualidade rara de
identificação que traz particularidade à sua empreitada artística – é ela, também, a força
motriz de certa suspeição ética endereçada a seus filmes. Como aponta a argumentação
conduzida pelo texto de Katz e Katz, esta suspeição parte, justamente, do ato de realocar
certos elementos vinculados à esfera do privado a uma projeção pública em forma de
narrativa cinematográfica. Sim, nossa vida privada, como a de McElwee, é permeada por
conflitos e dissabores – e por que eles deveriam vir à tona, em última análise? O viés
crítico que se vincula a este tipo de entendimento questiona o quão benéfico poderiam ser
desenvolvimentos narrativos como os de McElwee – em relação à sua própria vida, mas,
principalmente, àqueles ao redor de si que o diretor toma como “personagens”. Por haver
um laço afetivo entre o diretor e seus “objetos” há uma carga de questionamento crítico
que não-raro vem à tona. Se existe um sistema de valores instaurado que compreende que
o papel dos indivíduos é o de proteger as pessoas por quem eles têm apreço – família,
amigos –, o fato de oferece-las “à avaliação pública” em um documentário (ou em uma
série de documentários, ano após ano) é, por vezes, encarado como um contrassenso a
esta expectativa de proteção.
Parece pouco producente, entretanto, a tentativa de avaliar de qualquer maneira
absoluta a obra de McElwee – em relação aos seus lados “positivos” ou “negativos” –
diante deste tipo de questionamento. A “paleta narrativa” com a qual o cineasta trabalha
é composta por circunstâncias, afetos e sentimentos nuançados o bastante para que a
reflexão acerca de seus propósitos artísticos e da razão de existência dos filmes também
seja matizada por uma ampla gama de ponderações. Parece importante enfatizar que a
matéria-prima narrativa com a qual trabalha McElwee diz respeito, antes mesmo de
qualquer contato que nós tenhamos com ela nos filmes, a conflitos relativos à própria vida
do diretor – e, sobretudo, a ela. O ponto que se sustenta é o de que o diretor é ciente,
talvez mais do que qualquer outra pessoa, das implicações de seus filmes e do tipo de
crítica ética ao qual eles tornam-se vulneráveis. É neste sentido que o risco da partilha
daquilo que é íntimo, sensível – seja diante da tragédia pessoal, da adversidade ou da
alegria –, continua podendo ser identificado como elemento que traz particularidade à
306
existência das empreitadas autobiográficas mais contundentes, grupo ao qual a obra de
McElwee deve pertencer.
Diante desta perspectiva, portanto, podemos retomar a reflexão conduzida no final
da análise de Photographic Memory neste trabalho e que antevê uma das preocupações
que permeia a entrevista realizada com Ross McElwee, transcrita a seguir. Como sugerem
as respostas de McElwee, com efeito, a exposição de aspectos relativos à “própria vida”
tomou contrastes diferenciados com a consolidação de espaços sociais digitais,
especialmente na última década. Além disso, cabe notar, há uma relação de proximidade
entre a imagem filmada e este tipo de exposição: os vídeos têm um papel fundamental
neste fenômeno, realizados sobretudo em aparelhos portáteis como smartphones, e
compartilhados em tempo real. Frente a isso, parece razoável ceder à meditação de
McElwee quando o cineasta aponta que se trata de um momento de reavaliação em
relação à ideia de autobiografia fílmica. Pelo menos de certa forma, como exposto, a ideia
de “filmar-se sendo” transformou-se – desde sua origem e estabelecimento há por volta
de meio século – de um fenômeno raro, incomum e estimulante, a uma atividade
corriqueira e desempenhada certamente além dos laboratórios acadêmicos de
investigação cinematográfica, como foi o caso do MIT Film Section.
Tomando para nós as indagações do cineasta e tentando prover alguns
encaminhamentos para elas, é possível sustentar que embora a própria possibilidade de
registrar e compartilhar cinematograficamente aspectos relativos à individualidade tenha
sido um elemento propulsor do início da atividade de McElwee e outros jovens diretores,
a questão nunca se resumiu apenas a isto. A experiência cinematográfica que Ed Pincus
tentava pôr à prova em Diaries (1971 – 1976) não se tratava apenas da possibilidade de
tornar pública determinada circunstância que permeava a vida do diretor e sua família,
mas fazê-lo de uma maneira bastante específica. Nossa compreensão de “Diaries” deve
perpassar o entendimento de que se trata de uma experiência que, entre outros fatores,
apenas pôde vir à existência a partir de um debruçamento de dez anos da vida de seu
criador em relação à obra. O ato autobiográfico que está em jogo, aqui, depende da
disposição de uma espécie de “capital artístico” que, embora de difícil mensuração,
parece não se manifestar nas expressões rotineiras de exposição do eu a que se refere
McElwee. Trata-se, em outras palavras, de sugerir que a particularidade da autobiografia
como linguagem autônoma depende do desenvolvimento crítico de uma de suas partes, o
“graphos”, que, no caso da autobiografia fílmica, aponta para a multiplicidade de
307
maneiras através das quais podem-se construir as narrativas cinematográficas – aquilo
que, em última análise, chamamos de “filme”.
É a partir deste ponto de vista que refletir acerca da existência da noção de
autobiografia fílmica torna-se instigante diante de seus cineastas mais contundentes e de
suas obras. Como no caso de Chantal Akerman, Ed Pincus, David Perlov, Agnès Varda,
Marlon Riggs, Jonas Mekas, Tom Joslin, a relação entre “eu”, “mundo” e “filme” é
inovada e tem seus limites testados apenas diante do esforço e engajamento dos diretores
em cada nova criação. O produto deste engajamento concretiza-se na forma de narrativas
fílmicas que são perenes. O lugar correto de reflexão e de identificação com estas obras
é análogo àquele que faz com que os elementos de uma narrativa autobiográfica como
Walden – elementos de estilo, de construção narrativa ou da relação entre o autor e o meio
em que vivia, em determinada circunstância particular – sejam ainda revisitados e
analisados, cento e sessenta anos após sua escrita e publicação.
Algo semelhante pode ser entendido acerca do engajamento entre espectador e
filme que deve acontecer em casos como Sherman’s March, Time Indefinite e Bright
Leaves. Talvez, inclusive, seja esta aposta na realização de narrativas perenes – a partir
da transposição criativa da experiência individual em relação à linguagem – que garante
a possibilidade da existência autônoma da autobiografia fílmica, mesmo diante das
transformações das “paisagens” sociais, psicológicas e tecnológicas, como aponta
McElwee, que possam acontecer. Sugerindo e enfatizando o elemento de perenidade que
atravessa a obra de Ross McElwee, esperamos que este trabalho auxilie o contato de
outras pessoas com seus filmes. Da mesma maneira, almeja-se que a pesquisa possa servir
como porta de entrada para que sua obra seja analisada, ainda, sob perspectivas que não
tenham sido contempladas nesta empreitada.
308
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318
6. Anexo: Entrevista com Ross McElwee
As entrevistas com Ross McElwee foram realizadas em algumas sessões, durante a
pesquisa de campo no departamento Visual and Environmental Studies (VES) da
universidade Harvard, ao longo do fall term de 2015-2016.
Optei por deixar a compilação praticamente em sua integridade, preservando alguns
momentos de descontração e de equívocos de comunicação que trazem um pouco mais
de palpabilidade à experiência das entrevistas.
***
GT - Você poderia explicar um pouco sobre seu envolvimento com o departamento VES?
Há quanto tempo e como exatamente começou a lecionar aqui?
RM - Acho que estou por aqui – odeio admitir – há mais de trinta anos. Mas não
lecionando ininterruptamente, houve momentos em que tirei um tempo para trabalhar em
meus filmes e voltei. Por um período, fui afiliado ao Film Study Center como uma
maneira de permanecer aqui, manter uma sala e ter acesso ao equipamento, mas não
exatamente lecionando. Então, em um período de trinta anos, lecionei por volta de vinte
anos.
Fui convidado porque Ed Pincus estava dando um curso e eu era seu assistente, por um
ano – ou dois anos, não me lembro muito bem. Mas então Ed saiu daqui para fazer outras
coisas, e fui perguntado se gostaria de ficar e continuar lecionando – e disse sim.
GT - E como “Professor de Prática Cinematográfica” você ajuda os estudantes a fazer
seus próprios filmes?
319
RM - Sim, eu apenas leciono cursos de realização. Não leciono história ou teoria de
cinema – apesar de que todas estas coisas vêm à tona nas aulas, é claro. Não sou um
acadêmico, sou um realizador. E acredito que a posição “Professor de Prática” é feita para
trazer (à academia) pessoas que tiveram experiência no “mundo externo” para trabalhar
com os estudantes. E também se espera que estes professores continuem a realizar seus
próprios trabalhos. Todos os departamentos em Harvard têm Professores de Prática –
medicina, engenharia, quase todos têm esta posição. É uma maneira de conectar-se ao
chamado “Mundo real” – mas então às vezes me pergunto o quanto existe de uma conexão
real entre os filmes que eu faço e a assim-chamada “Indústria do Cinema”. Mas tem sido
uma ótima situação para se estar. Eu sou inspirado e apoiado por meus colegas aqui –
Robb Moss, Alfred Guzzetti, Lucien Castaing-Taylor, Peter Galison, outras pessoas que
lecionam aqui, os professores visitantes que vêm e vão... Tem sido um lugar vibrante para
dar aulas, e me sinto incrivelmente sortudo de ter tido este trabalho. Eu leciono meio-
período, o que significa que eu dou um curso por semestre – então, dois cursos por ano.
GT - Sabemos da importância do cinema que foi produzido aqui em Cambridge, no que
diz respeito ao desenvolvimento do documentário autobiográfico estadunidense,
especialmente nas universidades – começando no MIT Film Section, ainda no final dos
anos 1960. E até hoje, vários cineastas são relacionados a este fenômeno, como você,
Robb Moss e Alfred Guzzetti, professores aqui no VES, mas também Ed Pincus, Jeff
Kreines, Joel DeMott, Marco Williams, Nina Davenport, Steve Ascher...
RM - Nina Davenport foi depois. Ela foi minha aluna. Se você pensar em Richard
Leacock e Ed Pincus, esta é a primeira geração. Alfred (Guzzetti) também é de certa
forma da primeira geração. Robb (Moss) e eu estamos meio que na segunda onda. Nossos
alunos, como Nina, são terceira onda e agora há até uma quarta onda.
GT - É claro que cada cineasta (ou até mesmo cada produção) tem seu próprio estilo e
sua própria visão artística, mas para mim os cineastas de Cambridge também
compartilham algumas preocupações no que diz respeito mais genericamente às
possibilidades em torno da narratividade autobiográfica no documentário. Autores como
320
Scott MacDonald apontam pontos de conexão entre os documentários autobiográficos
que foram feitos por esses cineastas que foram educados, ou que lecionam (ou ambos),
no MIT ou em Harvard. Você pode falar um pouco sobre isso?
RM - Bem, Scott MacDonald falou sobre isso por trezentas ou quatrocentas páginas
(risos). E ele fez um trabalho tão bom de analisar e contextualizar o tipo de cinema que
vem sido feito em Cambridge há décadas... não tenho certeza se eu teria algo novo para
acrescentar ao que ele disse. Tem sido muito entusiasmante estar no centro do vórtice
disto tudo. Quero dizer, é um pequeno vórtice quando se você compara com filmes de
ficção, costa oeste, filmes de Hollywood. É mais como um “vento”, não um tornado ou
um vórtice enorme. Mas tem sido entusiasmante vê-lo abrir, bem como descobrir todas
as diferentes direções para as quais ele vai. E eu acho que esta produção tem tido uma
influência no cinema documentário, tanto no país quanto no mundo. Mas, Scott acabou
de falar bastante sobre isso, ele escreveu, analizou e competentemente construiu uma
visão geral do que você está me perguntando, que eu não acho que eu teria nada de novo
para adicionar.
GT - Esta pergunta é mais sobre a sua carreira como um todo. Uma coisa que torna seu
trabalho como cineasta bastante particular, pelo menos para mim, é a maneira pela qual
você foi capaz de produzir não apenas narrativas autobiográficas que se concluem em si
mesmas – que são independentes, narrativas autobiográficas que têm um começo, um
desenvolvimento e um final. Mas também como elas se complementam nestas mais de
três décadas que você está fazendo filmes, tornando-se um processo autobiográfico
contínuo. A imagem que vem em minha cabeça é como uma bola de neve que vai ficando
maior e mais complexa ...
RM - Até ela te esmagar.
GT - (Risos) E eu queria saber o quão consciente este processo era para você,
especialmente quando estava começando sua carreira. Se você pensava que iria se
comprometer, se dedicar, a esse tipo de filmagem por anos e anos vindouros. Ou, quando
321
ficou claro para você que você iria seguir esse caminho autobiográfico – diante do fato
de que a partir de Backyard você nunca fez um filme que não estivesse relacionado à sua
vida pessoal.
Muitas vezes as pessoas olham para os seus filmes na forma como eles envolvem o seu
"passado cinematográfico". Você usa seqüências de seus filmes anteriores para repensar
e reavaliar as coisas que você viveu e registrou em seus filmes, mas agora com uma nova
consciência, de "tempo presente" – como o tempo de fato modificou seus pensamentos
sobre os eventos passados de sua vida. Mas para mim há também um “jogo” que você
realiza com o "futuro" em seus filmes. Por exemplo, em Tempo Indefinido quando você
faz o monólogo sobre seu pai, sua família, sobre a morte, você diz: "Primeiro você é
afetado por suas vidas e, em seguida, você é afetado por suas mortes. E então você cresce
e faz o mesmo com seus próprios filhos”. E, claro, a relação entre você e Adrian vai ser
um mote forte em sua obra, especialmente em Bright Leaves e Photographic Memory. A
maneira através da qual ela se torna mais complexa, como costuam acontecer nas relações
entre pai e filho. Voltando à pergunta: de alguma forma você pensava, já naquela época,
que dali a vinte anos você iria realizar um filme quando seu filho já fosse um homem
crescido? É por isso que eu uso palavras como "comprometer" ou "devotar”, significando
que ao longo de sua carreira você parece ter tido alguma relação com a idéia de que no
futuro aquilo iria fazer sentido e trazer força ao seu trabalho como um artista-
autobiógrafo.
RM - Bem, eu detesto decepcioná-lo (risos), mas eu não sabia, no início, que eu
continuaria a fazer esse tipo de filme. Acho que depois de Time Indefinite percebi que
deveria seguir em frente nessa direção, porque as pessoas – pelo menos um pequeno
número de pessoas–- parecem realmente entender os filmes, apoiá-los e estar interessados
em ver o próximo que aparece. Mas quando eu estava apenas começando, eu não tinha
idéia. Eu fiz Sherman’s March pensando que ele poderia talvez ser exibido em algumas
escolas de cinema, talvez em alguns museus do Sul, e ele se tornou muito mais do que
isso, ele foi amplamente distribuído – não apenas nos EUA, mas também na Europa.
322
E eu acho que isso me encorajou a continuar, mas antes disso eu não achava que
continuaria fazendo esse tipo de filme. Na verdade, eu continuei mexendo com tipos mais
convencionais de documentário, fazendo freelance para ajudar a me sustentar quando eu
não estava lecionando. Eu pensei que, bem, eu gostava de trabalhar com outras pessoas,
eu gostava de fazer filmes sobre as complexidades do mundo, questões sociais, eventos
políticos. E quase me sinto culpado por fazer um filme que tem eu mesmo no seu centro.
Mas acho que a maneira pela qual eu dissuado a minha culpa é tentando, tanto quanto
possível, fazer os filmes abrirem-se também para o mundo e para questões que são
importantes para mim, como o personagem principal. Então, de certa forma, tenho a
vantagem de fazer ambos os tipos de filme ao mesmo tempo. Eu não sabia quando eu
estava começando que este seria o meu métier, mas agora eu acho que é tarde demais, eu
não poderia mudar mesmo que eu quisesse. Mas eu não quero, eu acho que quero
continuar fazendo esse tipo de filmes. Isto se torna mais e mais difícil, por diversas razões.
GT - Algumas vezes você se manifestou sobre querer fazer outros tipos de filmes que
fossem diferentes, de alguma maneira, da metodologia à qual você se tornou relacionado.
Me vem à mente Six O'Clock News, quando você fica animado, em um primeiro
momento, com a ideia de colaborar em um roteiro de um filme de Hollywood; ou em
relação à versão alternativa de Bright Leaves, que não foi adiante, na qual você propõe
um futuro imaginado/ficcionalizado, vislumbrando Adrian em um futuro próximo
descobrindo suas filmagens e te conhecendo a partir do filme que você deixou para trás.
Mas, enfim, estas possibilidades narrativas diferentes nunca funcionaram como
planejado.
RM - Bem, como alguém do campo das artes eu sempre penso "Não se repita, faça algo
diferente". Não apenas em termos de conteúdo - o conteúdo vai ser diferente. Ele tem de
ser, se é autobiografia e você está se movendo através do tempo. Sua vida muda, as coisas
ao seu redor mudam. Isso é um dado. Mas acho que em relação a fazê-lo sempre no
mesmo estilo, eu às vezes acho que encontrei uma rotina, estilisticamente, e eu estou indo
de volta para ela de novo e de novo. E uma parte de mim acha que talvez esta não seja a
melhor coisa a se fazer, que talvez eu devesse tentar pensar em uma abordagem diferente
para explorar minha própria vida. Mas estou trabalhando em algo agora e estou pensando
323
em diferentes maneiras de explorar e usar o material bruto que tenho, estilisticamente.
Mas acho que fundamentalmente a voz é muito importante, e, por mal ou bem, minha
narração em voz over tem de ser um componente em qualquer trabalho que eu faça. E isto
isto basicamente conduz a forma do filme. Eu brinco com ideias como se determinada
coisa deve ser serializada; se deve tornar-se uma espécie de série documental de TV a
cabo; ou se deve ser disponibilizado na Internet – mas estas são apenas as formas de
acesso. Acho que essencialmente a construção do filme (filmmaking) em si é feita mais
ou menos da mesma forma. E penso em alguém como Chris Marker, que experimentou
com todas essas maneiras radicais de fazer filmes, de fato até o fim de sua vida. Depois
de realizar Sans Soleil ele não fez outro Sans Soleil, ele fez algo bem diferente. E ele
continuou tentando fazer tipos diferentes de filmes. Este tipo de energia e inventividade
é algo que eu realmente admiro, mas eu simplesmente decidi que não acho que sou tão
inventivo assim. Encontrei algo em que gosto de trabalhar, uma fórmula que me agrada e
provavelmente continuarei a fazer isto até o dia em que morrer.
GT - Ainda em relação a estas questões, quando terminei de assistir Photographic
Memory - isto foi em 2012 - fiquei pensando se poderia ter sido o último filme desta
grande carreira autobiográfica, porque de alguma forma ele completa um ciclo em relação
às questões que você levantou em Backyard. Se naquele momento você iniciava sua
carreira como cineasta e também passava por uma espécie de “suspeição” de seu pai em
relação a seus objetivos profissionais, como ocorre com diversos jovens artistas, em
Photographic Memory muitos destes mesmos questionamentos acontecem em relação a
Adrian, que está começando sua carreira como produtor de mídia. Mas agora fiquei
sabendo que você está trabalhando em um novo filme que lida com o remake de
Sherman’s March. Fico curioso em saber se você pensa sobre como você trará este
processo a um fim, de alguma forma. Acho que a maneira com que você conduz este
processo autobiográfico, dividindo-o em por volta de dez filmes no curso de mais de trinta
e cinco anos, é realmente algo sem precedentes na história do cinema documentário. E de
fato traz diversas questões complexas em relação à permanência, ao envelhecimento e à
preservação no que concerne a relação que pode ser travada entre documentário e
autobiografia. Autobiógrafos frequentemente têm de decidir onde colocar o “ponto final”
em suas obras. Se você fosse parar de fazer filmes e fosse realizar outras atividades, como
criar gado ou lavrar batatas...
324
RM - Cultivar flores.
GT - …cultivar flores. Você acha que ficaria feliz com o trabalho que realizou até agora?
RM - Bem, acho que não me sentiria deprimido ou miserável se eu de repente parasse
de fazer estes filmes. E de fato acho que existe um ciclo de filmes que se sustentam por
conta própria. Você tem razão que Photographic Memory marca uma espécie de uma
geração desta revolução. Então, se acabasse aí, se eu tivesse um infarto e nunca mais
fizesse outro filme... eu ficaria meio chateado (risos), mas acho que o trabalho se
sustentaria em si próprio. Como você disse, de fato é incomum, porque este processo está
acontecendo já há tanto tempo. Ele é um empreendimento bastante ambicioso e acho que
completou um de seus ciclos. Então... há outro meio-ciclo ou mesmo outro ciclo inteiro?
Talvez. Eu estou me comportando como se existisse uma razão para continuar a fazer
filmes. Mas acho que não é tão intenso quanto costumava ser, e também sei que, por
alguma razão, não estou disposto a me sentir deprimido ou desesperado se por algum
motivo não puder fazer outro filme. Acho que poderia cultivar flores ou fazer outra coisa,
ficaria perfeitamente feliz.
E entendi por quê Ed Pincus repentinamente sentiu que ele apenas queria ser um
fazendeiro por um tempo. Ele me disse que não tinha certeza que tinha algo mais a
aprender sendo um documentarista ou, ao menos, um documentarista-autobiógrafo. E ele
tinha confiança o bastante em si próprio, ao decidir que queria outro tipo de desafio. Digo,
ele realizou um grande salto ao passar de um filósofo a um fotógrafo, ele estava
determinado em obter o doutorado em filosofia, acredito, estando enveredado pelo
caminho acadêmico. Ele se apaixonou por fotografia e viu-se envolto pelo movimento
pelos Direitos Civis e realizou Black Natchez, que é um memorável documento do início
da luta afro-americana por algum tipo de equidade neste país – em 1964, há muito tempo.
Ele foi um dos primeiros cineastas a descer ao Mississippi, Alabama, e fazer um filme
sobre tudo isto. Então ele deixou de lado este tipo de cinema, tornou-se um
documentarista-autobiógrafo e fez isto por alguns anos, culminando em Diaries. Parou
325
de fazer isto, começou a cultivar flores – acho que houve vários fatores complicantes,
como o episódio de Dennis Sweeney, que foi algo que o fez deixar a área urbana e
procurar um lugar mais seguro para estar com sua família e sustentar-se de alguma forma.
Mas acho que não foi a única razão.
De qualquer maneira, olho para uma carreira como esta e fico impressionado com ela. E
sinto que, de um modo, tenho muita sorte de ter meios para continuar – este escritório,
este equipamento – para permanecer trabalhando se eu quiser: e eu quero, por enquanto.
Mas também é parte de minha natureza saber que se eu fosse forçado a parar e ter de fazer
outra coisa, como apenas lecionar, também ficaria bastante satisfeito com minha vida.
Talvez isto seja um déficit, ou uma fraqueza de minha parte. Talvez eu não seja
determinado o suficiente. Mas acho que isto é inerente a esta abordagem de fazer cinema,
no qual você realmente não está no controle. Você está sujeito aos caprichos daquilo que
acontece na frente de sua câmera – é o ethos do Cinema-Vérité. E mesmo que meus filmes
não sejam puramente Cinema-Vérité, este espírito os imbui. Mas junto com isto existiu
um precoce aprendizado de abdicar-se de qualquer desejo de estar no controle de seu
ambiente estético enquanto estou filmando. E acho que esta tem sido uma lição valiosa
para mim, porque em ultima análise você não pode controlar tudo. A não ser que você
siga o caminho da ficção até o final.
GT - Você deve uma condição de saúde complicada em 2010. Me parece que você não
teve o desejo de mostrar isto em algum filme seu. Este também foi um período no qual
você passou por uma desilusão em sua vida amorosa.
RM - Bem, eu filmei um pouco naquele período, mas senti que a não ser que pudesse
conectar este material com algo maior, isto não seria tão interessante, honestamente. Foi
traumático ter um tumor cerebral e ter de passar por uma cirurgia delicada para o remover,
mas, por outro lado, dezenas de milhares de pessoas passam por esta cirurgia todos os
anos. E a maioria delas sai da cirurgia bem - não todas, mas a maioria. Então este fato,
em si, não era um assunto. Eu filmei um pouco - obviamente estava muito debilitado para
filmar qualquer coisa, você sabe. Então esta parte da equação tomou conta de si própria,
326
nem foi uma opção. Mas eu filmei um pouco da minha recuperação, a reabilitação pela
qual tive que passar. Em determinado momento, Adrian entrou clandestinamente com
uma pequena câmera digital em meu quarto de hospital – porque você não pode filmar
dentro do hospital. E eu tenho algumas tomadas deste momento, eu poderia mostra-las
para você em algum ponto, talvez não hoje. Mas são apenas pequenos fragmentos. Mas o
que era incrível naquela pequena câmera... bem, em primeiro lugar, eu estava feliz de ter
sobrevivido – mas, em segundo lugar, eu mal conseguia andar, eu tinha de reaprender
todas as coisas que você aprende quando é uma criança – como abotoar uma camisa,
como escovar os dentes, como amarrar os sapatos – tudo isto eu tive de reaprender. E
tudo voltou, sabe, bem rapidamente. Mas mesmo assim esta experiência me fez lembrar
– não que eu lembre, de fato – me fez viver a experiência de ser uma criança de quatro
anos e, ao mesmo tempo, de ser um senhor de oitenta e quatro anos, porque eu estava
fisicamente inválido. Quatro anos de idade em termos de aprender como amarrar os
sapatos e oitenta e quatro em termos de ter de usar um andador e me locomover a alguns
passos por vez, sentindo-me exausto o tempo todo, tendo de dormir. Então tudo isto foi
muito interessante; nós falávamos a respeito de ciclos e de ir da juventude à senilidade,
então acho que poderia haver algo no meio de tudo isto que viraria um capítulo de um
filme, não um filme em si próprio. Então eu filmei apenas o suficiente para que tivesse
material daquilo e que pudesse se tornar útil em algum filme futuro.
Mas, novamente, eu penso que o que mudou em relação às possibilidades de minhas
filmagens têm a ver com a maneira através da qual o mundo está recuando para mim e
minha câmera. Existem coisas que estão além do meu alcance, que não estavam quando
eu comecei minha carreira. Algumas delas em relação à minha família, algumas delas são
previsíveis e outras são inesperadas. Obviamente, à medida que as crianças crescem elas
tornam-se repentinamente muito autoconscientes, elas não querem mais ser filmadas
tanto assim – isto era totalmente esperado e previsível. Quase todo cineasta que conhecço
e que filmou sua própria família passou por este tipo de experiência. Então eu sabia que
isto ia acontecer. Eu não sabia que estaria divorciado. E de repente isto é algo que eu não
posso filmar – não tenho mais um casamento para filmar. Mas no nível do controle social,
o que também aconteceu é que a internet mudou uma paisagem inteira do cinema de não-
ficção. De repente todos estão colocando algum aspecto de suas vidas no YouTube ou no
Facebook e este tipo de intimidade que era de alguma forma único, quando eu e outros
327
cineastas – muitos deles aqui mesmo em Cambridge – começamos a fazer estes filmes,
trinta ou trinta e cinco anos atrás, não é mais tão único assim. Então isto também é algo
que me fez de alguma forma repensar aonde meus filmes estão indo, e quais suas formas
e estilos têm de ser. Eu poderia dizer mais, mas isto já é bastante... então o ponto é que,
tanto por razões pessoais, que tem a ver com minha vida, minha própria família, e também
por estas preocupações globais – mudanças de mídia que ocorreram nos últimos vinte
anos – isto significa que estou reavaliando como continuar a fazer este tipo de filme. Se
ainda eles são relevantes, se eu deveria estar os fazendo.
GT - Eu estou pensando sobre o que você disse, sobre como a Internet (Youtube /
Facebook) fez você de alguma forma reavaliar ou repensar como o documentário
autobiográfico poderia se encaixar neste novo ambiente. Pois parece que não existe tanto
sigilo (secrecy), se em comparação a quando você começou a filmar, em relação à
narrativização em filme e vídeo de relacionamentos familiares e daquilo que acontece
dentro do ambiente doméstico. Da mesma forma, a Reality Television também tornou esta
relação um pouco mais confusa para o público em geral. Mas, ainda assim, continua a
existir o problema da construção de uma narrativa autobiográfica – as muitas maneiras
através das quais você pode construir um filme em torno de uma questão pessoal e que
você deseja compartilhar com o público.
Além disso, esta facilidade com que você pode filmar, com todos os tipos de pequenos
dispositivos e telefones celulares, e compartilhar o material de imediato; isto tem feito
pessoas – pessoas que não estão de forma alguma envolvidos com a produção
cinematográfica ou de mídia – um pouco mais conscientes do poder da câmera. E isso
parece ser um problema especialmente para os cineastas que trabalham com a ética do
Cinema Vérité, porque ao menos parte desta prática exige uma captura do mundo em um
estado desprevenido (unawares). O mundo em seu desdobramento natural, retratando
pessoas em situações comuns ou situações espontâneas, quando nem todas as suas defesas
psicológicas estão levantadas.
328
Agora, todos os seus filmes (alguns deles mais e alguns deles menos) têm a preocupação
de se abrir para o mundo de uma forma que herda muitos dos pensamentos em torno do
Cinema-Vérité. Eu queria saber se para você, nestes últimos anos de realização, existe
uma diferença na forma como as pessoas reagem à sua câmera quando você está filmando
se em relação há, digamos, quinze anos? Ou mesmo antes? Você se lembra de ter tido
problemas dessa ordem nestes últimos anos? E qual a importância de usar este tipo de
metodologia Vérité em uma narrativa autobiográfica?
RM - (brinca) Sabe, o que eu gosto de suas perguntas é que elas são tão volumosas, e
eloquentes, e bem-articuladas.
GT - (risos) Eu treinei bastante em casa.
RM - Coloca muita pressão em mim para que seja tão coerente como você. E também a
maneira que você sumarizou o que eu disse – espero que tenha dito assim tão bem.
GT - Ah, até melhor.
RM - Eu duvido disso. Enfim, há duas palavras-chave que você usou em sua
"dissertação", que talvez eu pudesse corrigir levemente. Uma é, você disse: "Para capturar
o mundo em um estado desprevenido". E eu realmente acho que as pessoas estão
obviamente conscientes de que eu estou filmando, porque lá estou, você sabe, com uma
câmera no meu ombro. Portanto, não é "desprevenido" – isto seria vigilância. E parte da
capacidade de fazer isso é baseada em ter investido tempo suficiente com as pessoas para
que elas relaxem com sua presença lá. Elas confiam em você – mesmo que não devessem
inteiramente – para que simplesmente continue fazendo o que está fazendo, enquanto elas
continuam o que estão fazendo. E isto é realmente um eixo crítico do Cinema-Vérité
clássico.
329
E a outra palavra que você usou e que achei que não era muito boa – embora eu tenha
certeza de que as pessoas a utilizam também neste sentido – é que não era tanto que as
coisas fossem "sigilosas" (secretive) antes, e que isto foi agora violado. Eu acho que
"privacidade" é a palavra-chave aqui, não "sigilo". Existem alguns filmes que envolvem
segredos de família. Eu acho que Intimate Stranger (1991) de Alan Berliner é
definitivamente um filme que cultivou esta área, histórias de família até então secretas. E
eu acho que outro exemplo ainda mais conhecido é Na captura dos Friedmans (Capturing
the Friedmans, Andrew Jarecki, 2003). Aquele era obviamente um segredo de família –
e mantido em segredo por uma boa razão, porque, você sabe, no centro dele havia uma
acusação de abuso sexual infantil. Então, isto é realmente ir atrás de segredos na vida
pessoal. E eu diria mais que a "privacidade" não é exatamente mais o que costumava ser.
Tendo isto posto, você me perguntou se o Cinema-Vérité seria essencial para a feitura de
filmes autobiográficos... eu não acho que seja para todos. Mas para mim sempre foi
importante ter trechos dos meus filmes filmados em um estilo Vérité, porque o que sempre
amei no Cinema-Vérité, apesar de todos os seus problemas – seus problemas éticos,
problemas estilísticos, a miríade de coisas que você pode dizer que não são
necessariamente certas desta prática – o que eu amo sobre ele é uma espécie de fascínio
com a revelação momento-após-momento da vida real. Desta forma, para mim, os trechos
de Cinema-Vérité, aumentando minhas próprias reflexões pessoais sobre o mundo em que
estou filmando, são extremamente importantes.
Procuro esse equilíbrio. Tenho certeza de que há cineastas que repudiam o Cinema-Vérité.
Quero dizer, ele sempre pode ser questionado de um ponto de vista ético – você realmente
tem o direito de filmar pessoas comuns, examinar suas vidas e depois tornar pública esta
investigação, mesmo que você tenha consentimento por escrito? É uma boa pergunta.
Mas para mim é importante fazê-lo – gentilmente, se possível – e ter essa maneira de
olhar para o mundo em paralelo com o olhar para a minha própria vida, para o meu próprio
mundo. De alguma forma esse equilíbrio é fundamental para mim. E eu acho, como você
sugeriu, que sair no mundo e filmar no estilo Cinema-Vérité não é mais o que costumava
ser.
330
Ontem em minha aula eu passei Belfast, Maine (1999) de Fred Wiseman. É um filme de
quatro horas e as tomadas são muito, muito longas – totalmente fora de padrão para o que
um jovem de vinte anos está acostumado. Por isso, certifiquei-me de que tivéssemos uma
projeção confortável – fui ao salão de luxo do Carpenter Center e fizemos a projeção lá,
de uma ótima cópia em 16mm. Então eu dei ao filme sua melhor chance. Mas eu acho
que eles (os alunos) estavam absortos. Devido ao fato do filme ter quatro horas de
duração, que é todo o comprimento da aula, não fomos capazes de discuti-lo como
estamos acostumados. Eu lhes disse que eles tinham que tomar notas e escolher uma cena
para falar sobre. Mas para mim, vê-lo novamente é sempre reafirmador – eu acho que eu
já o vi três vezes agora, a primeira noite foi quando Fred (Wiseman) exibiu o filme na
estréia no Carpenter Center, depois o passamos em uma aula, há vários anos, e ontem eu
o vi de novo. Vejo coisas diferentes no filme toda vez que assisto a ele. E acho que parte
disso é porque há existe algo sobre a observação paciente da câmera que, se feita da
maneira certa, realmente apresenta uma complexidade em relação à vida cotidiana que é
bastante extraordinária. Especialmente quando se reflete sobre como o material
acrescenta, como ele agrega-se. Como uma cena se refere a outra cena quando não há
conexão entre elas. E acho que esse tipo de magia, essa elasticidade entre esses diferentes
momentos, é algo que eu realmente valorizo, mesmo em um filme como Sherman’s
March.
Sabe, eu não tinha a intenção de fazer um filme que tivesse “X” número de cenas ou que
tivesse cães nele. Mas na verdade há três ou quatro cenas em que os cães têm esses
pequenos papéis, e eu não tinha ideia que eles se tornariam uma espécie de leitmotif. Mas
eles se tornaram! Foi um assunto pequeno (no filme), mas você simplesmente não sabe
disso quando começa a filmar. E, também, porque eu aprecio qualquer coisa que me force
a sair para o mundo e me faça ir a algum lugar que talvez eu não teria ido de outra forma.
Isso, levar a câmera e filmar a vida como ela aconteceria mesmo se eu não estivesse lá,
mesmo que, você sabe, a câmera sempre tem um efeito. Foi tudo muito entusiasmente,
pessoalmente, fez com que meus fluidos criativos continuassem circulando. Ao passo que
se eu estivesse sempre filmando eu mesmo, meus próprios pensamentos e preocupações,
minhas próprias análises... eu fico entediado muito rapidamente comigo mesmo. Preciso
de outros tipos de materiais para “fermentar o pão”.
331
GT - Acho que Sherman’s March fica mais impressionante com o passar do tempo.
Grande parte disso é porque o filme é composto de diversos destes momentos vérité
impressionantes, um após o outro, e há muita energia colocada no filme. Parece que
realizar um filme como Sherman’s March atualmente continuaria a ser um desafio.
Sabendo que você o fez há trinta anos, com uma grande câmera de cinema, um gravador
de som a tiracolo, um carro esporte que estava constantemente quebrando... é quase
onírico ver aquela energia na viagem de um jovem cineasta. Você poderia imaginar-se
fazendo algo assim hoje?
RM - Eu não poderia fazer o filme atualmente, e eu não tenho certeza que alguém poderia.
Um questionamento verdadeiramente legítimo é o de que a paisagem – e não a paisagem
física, geológica, mas a paisagem psicológica – de nossa cultura mudou tanto que talvez
as pessoas não permitissem que você filmasse os tipos de coisas que eu pude filmar
quando fiz Sherman’s March. Era um tempo pré-Internet, pré-Facebook, pré-Reality
Television. Acho que todos esses fatores realmente mudaram a forma como as pessoas
pensam sobre a natureza da mídia e câmeras. E eu penso nisso muito em termos dos meus
alunos, porque, como eu disse, eles têm vinte anos de idade, estão saindo deste mundo
frescos e animados e querendo filmar e acho que o que eles encontram às vezes é uma
grande resistência ou, pelo menos, pessoas que querem saber onde o material (que eles
filmam) vai ser utilizado. E essa é uma pergunta que tem de ser feita. Acho que as pessoas
sempre devem ser perguntadas se podem ser filmadas, de alguma maneira. Eles são
estudantes muito jovens, então acho que muitas pessoas ficam felizes em acomodá-los.
Mas existe uma resistência inicial. E acho que quando eu estava filmando Sherman’s
March esta resistência não estava ali. As pessoas sorriam e olhavam intrigadas quando eu
entrava em uma loja com a câmera, mas, sabe, ninguém dizia “não filme”. Agora você
não pode entrar em uma loja, ou nem mesmo passar pela porta da frente sem que um
guarda te pare. Eles não vão permitir. E olhando em retrospecto para meu material
filmado ao longo dos aos –e, como você sabe, eu tenho arquivado cada ano dos últimos
trinta anos – eu não havia pensado a respeito disso até este momento, mas acho que
progressivamente há cada vez menos este sair pelo mundo e filmar livremente, ano após
ano. Se você colocasse em um gráfico, o número de ambientes completamente
exteriorizados ou não-familiares, mesmo que eu esteja filmando meus filhos, parece ter
declinado, perceptivelmente, se nos aproximamos da data presente.
332
Quando fiz Sherman’s March foi uma aventura, e, também, eu tinha muito mais energia,
eu era forte e podia carregar uma câmera por dias. E agora, fisicamente, não tenho certeza
se poderia fazer esse tipo de filme. Eu certamente não poderia fazer algumas das cenas
que fiz em Six O'Clock News. Eu lembro daquela cena em que sigo o guarda florestal na
encosta da montanha... digo, aquela era uma caminhada íngreme, e eu estava carregando
dois chassis de filme carregado, mais a câmera, além do gravador de fita. Mas era uma
cena, e foi uma aventura. Eu estava em uma aventura com ele, nós estávamos indo até o
topo e assistindo os bombeiros lutar contra o fogo. E eu queria aquela cena, então eu a
consegui, mas eu olho para trás e digo: "Como eu fiz isso?".
GT - Parece que em Photographic Memory as pessoas lidaram com a sua câmera
razoavelmente bem... talvez porque as pessoas que você filma em Saint-Quay, como o
arquiteto Le Calvez, Helène ou mesmo Maud, de alguma forma, são pessoas mais velhas
e vivem em uma cidade menor... talvez não tão afetadas por esta “paranoia digital”?
RM - Eu não havia pensado sobre isto, mas acho que você tem razão. Talvez porque eles
sejam de determinada geração; a investigação que eu havia começado naquele momento
tinha a ver comigo quando eu era muito mais jovem, o que significava que qualquer
pessoa daquele período com quem eu estivesse falando também seria mais velha. Mas eu
também acabei filmando pessoas mais jovens. Novamente, acho que o componente crítico
foi o de eu ter passado algum tempo com eles antes de começarmos a filmar, para que
eles pudessem confiar em mim. Ou o fato de eu ter sido apresentado a eles por alguém
que eu tivesse conhecido antes. Isto abriu as portas. Por exemplo, há um moço no mercado
de peixe – ele aparece apenas por alguns segundos – mas ele preparando um maravilhoso
prato de peixe para um evento. Sabe, basicamente ele era jovem e estava totalmente
disposto a ser filmado, ele não se importou. Existem pessoas assim. E a fotógrafa, que eu
acabei filmando bastante. Ela era mais jovem e fazia fotos para cartões-postais,
basicamente fotografia turística. Ela ficou um pouco confusa sobre o porquê eu queria
filmá-la, mas estava totalmente aberta para aquilo. Então acho que depende mais de cada
pessoa. E também, naquela área da França, a Bretanha, acho que as pessoas em geral são
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muito mais tranquilas. Se eu eu tentasse fazer isto no verão parisiense, por ser uma cidade
maior, haveria mais resistência.
GT - Há ótimos momentos vérité em Photographic Memory. Alguns deles com Adrian,
por exemplo quando ele está falando sobre morar em uma cobertura e você pergunta a ele
sobre seus valores. Esta sequencia define o tom do filme em relação a algumas das
questões que você está tentando levantar, e isto é feito a partir de uma bela sequência de
dois minutos, sem cortes. Quando a vemos, de alguma forma podemos nos colocar em
sua posição, ou na posição de Adrian, no momento em que a cena estava sendo filmada.
Também penso na cena com Helène, que também é uma figura central do filme. Naquela
cena, você passa a conhecer o que aconteceu com Maurice ao mesmo tempo em que provê
a nós, espectadores, esta informação – como você, naquele momento também queremos
saber como a estória vai se desdobrar. Algo similar acontece quando vocês dois
descobrem que Maud é uma amiga em comum; que Maurice tirou aquela foto e que
Helène poderia descobrir o paradeiro de Maud naquele momento - tudo isto acontece na
frente da lente.
RM - Isto é porque aquilo acontecia pela primeira vez no momento em que eu filmava. E
eu realmente, realmente acho que é algo necessário a se fazer. Porque se você já sabe – e
isto ocorre em 99% dos documentários – o cineasta já saberia exatamente onde estavam
as fotos, e elas seriam puxadas na ordem certa. É mais arriscado, porque se você erra em
algum aspecto técnico, ou se a tomada está fora de foco, você estragou tudo. E daí você
tem de considerar se vale a pena pedir a ela que faça novamente, e se ela fizer novamente
a tomada nunca é tão fresca, e nem a minha reação. E acho que nossa conversa, pelo fato
de não ter ocorrido antes, sobre o mesmo assunto, tem uma espécie de veracidade que não
teria acontecido de outra forma. É muito astuto o fato de você insistir neste assunto,
porque não sei se todos se dão conta disso. Sabe, as pessoas estão tão acostumadas em
assistir às cenas que foram pre-ensaiadas, das quais uma pré-pesquisa foi realizada, e elas
sabem exatamente que as fotos estavam na caixa, e organizam elas para que saiam da
maneira certa... ela (Helène) saberia o que falar e quando falar, etc. Enfim, é uma maneira
totalmente diferente de filmar - e quem sabe se é possível distinguir a diferença? Eu acho
que de alguma forma é possível sentir isso.
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Quando ela (Helène) me perguntou sobre encontrar Maud, ela disse algo como “você quer
vê-la?”, e eu disse “pas encore”. E acho que foi uma resposta genuína, porque fui pego
realmente de surpresa. Também devido ao fato de existir aí um componente emocional.
Sabe, eu não esperava tê-la encontrado. Eu achei que seria uma parte perdida do filme, e
fiquei muito surpreso. Quando a oportunidade se apresentou de talvez ir procura-la, agora
que tínhamos seu endereço, senti que precisava pensar sobre isso por vinte e quatro horas
– um momento realmente não-Cinema-vérité. Então, o que saiu daquele momento foi
exatamente minha própria decisão, como registrado em minha resposta.
GT - Para mim, este tipo de momento vérité traz muita vida aos seus filmes. Como
espectadores, podemos colocar nossa própria experiência em vibração com a sua – temos
a oportunidade de o entendermos como um ser humano que vive aquele momento em
particular, alguém que é confrontado com a possibilidade de encontrar uma velha amiga
e que é pego de supresa. Análoga a esta reflexão, há uma cena em Sherman’s March sobre
a qual você fala frequentemente, aquela na qual você leva seu carro para o conserto e
interage com Phillip, o mecânico.
RM - Esta é outra cena bastante complicada. Eu pensei que filmaria um momento breve
de meu carro sendo consertado para que pudesse continuar minha jornada. Na realidade,
acabamos conversando sobre dois eventos trágicos, mutuamente, em nossas vidas e eu
não antevia esta possibilidade. Mas o que aconteceu, novamente, como você
judiciosamente ressalta, foi em apenas uma tomada – sem edição. Ele está falando sobre
a morte de minha mãe e eu estou falando sobre a morte de sua filha. Digo, a cena
simplesmente desabrocha como uma flor. Eu acho esta cena muito comovente. Já falei
sobre isto em outras entrevistas, há um olhar em seu olho quando ele diz: “eu sinto falta
daquela garota”. E é um pequeno momento, no qual você pode ver toda sua dor naquele
momento em particular: a morte de sua filha. Tudo está lá naquele momento. E eu tentei
olhar exatamente em qual fotograma aquilo acontece, analisando na moviola, indo para
frente e para trás. Não está em lugar nenhum, não é em um fotograma, mas como se fosse
por entre os fotogramas. E é realmente, realmente extraordinário – este é um exemplo do
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tipo de coisa que você pode começar a filmar pensando “é apenas para uma determinada
finalidade” e que acaba tendo muito mais importância do que você imaginava.
GT - Uma cena que gosto de Time Indefinite é quando Charleen está olhando para a casa
que foi dela, falando sobre a tragédia (do incêndio) e podemos ver o reflexo da casa na
lente de seus óculos... também uma espécie de momento mágico.
RM - Bem, isto... foi pura sorte. Eu não falei para ela ficar para ali para que pudesse pegar
o reflexo em seus óculos. Quando você começa a falar com as pessoas daquele jeito faz
com que elas fiquem tensas. Elas sentem que tem de estar em determinada situação e não
se mexerem, sabe, e isto afeta o quão fluentes, ou fluidos, eles podem ser no que concerne
suas respostas emocionais em relação ao momento. E também eu estava muito
preocupado com, você sabe, “será que isto está indo longe demais?”, “será que Charleen
está pronta para fazer isso?”, visto que fazia apenas alguns meses que isto havia
acontecido na sua vida. Daí eu tinha de continuar falando para mim mesmo que ela havia
me chamado para ir até lá, que ela havia me dito que gostaria que eu filmasse, que ela
havia dito que queria registrar um pouco daquilo. Então, ela ficou em frente à casa e eu
assumi que o que teria de fazer seria apontar a câmera para a casa e depois para ela,
algumas vezes. Daí percebi que devido ao ângulo preciso de seus óculos e do lugar onde
ela estava, no jardim em frente à casa, ali estava o reflexo da casa. Foi muito fortuito.
Sabe, o que acho que fiz certo enquanto estava filmando foi que realizei um zoom in para
que ficasse totalmente claro que a casa estava ali. Mas é também uma metáfora
maravilhosa porque, você sabe, não era a casa que estava ali, era uma replica da casa (que
fora destruída) e o que agora estávamos vendo era uma réplica da réplica. E tudo isto
contido em ainda uma outra réplica, que é o filme que estava fazendo.
GT - Acho que é isto por hoje.
RM - Isto é como ter uma consulta com um psicanalista toda sexta-feira.
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GM - Para mim ou para você?
RM - Para mim.