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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES Gabriel Kitofi Tonelo O DOCUMENTÁRIO AUTOBIOGRÁFICO: O CINEMA DE CAMBRIDGE E A OBRA DE ROSS McELWEE Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

Gabriel Kitofi Tonelo

O DOCUMENTÁRIO AUTOBIOGRÁFICO: O CINEMA DE CAMBRIDG E E A

OBRA DE ROSS McELWEE

Campinas

2017

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Gabriel Kitofi Tonelo

O DOCUMENTÁRIO AUTOBIOGRÁFICO: O CINEMA DE CAMBRIDG E E A

OBRA DE ROSS McELWEE

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Multimeios

Orientador: Prof. Dr. Fernão Vitor Pessoa de Almeida Ramos. Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno Gabriel Kitofi Tonelo e orientado pelo Prof. Dr. Fernão Vitor Pessoa de Almeida Ramos.

Campinas

2017

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

GABRIEL KITOFI TONELO

ORIENTADOR - PROF. DR. FERNÃO VITOR PESSOA DE ALMEIDA RAMOS MEMBROS: 1. PROF. DR. FERNÃO VITOR PESSOA DE ALMEIDA RAMOS 2. PROF. DR. GILBERTO ALEXANDRE SOBRINHO 3. PROFA. DRA. MARIANA DUCCINI JUNQUEIRA DA SILVA 4. PROF. DR. HENRI PIERRE ARRAES DE ALENCAR GERVAISEAU 5. PROFA. DRA. ESTHER IMPÉRIO HAMBURGER Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca

examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno(a).

DATA: 14.08.2017

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Ao Antônio.

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Agradecimentos

À FAPESP – Processos 2013/08742-6 e 2015/02194-2 – pelo financiamento concedido para o desenvolvimento desta pesquisa.

Ao orientador, Prof. Fernão Pessoa Ramos, pela orientação generosa ao longo de todos esses anos. Meu interesse pelo estudo do cinema documentário e minha formação no assunto aconteceram a partir de seus escritos e aulas. Sendo assim, ressalto a honra de poder ter usufruído de tal interlocução durante esta trajetória, à qual espero fazer jus diante do possível caminho da docência e da pesquisa.

À Profª Ilana Feldman e ao Prof. Gilberto Alexandre Sobrinho, pelos valiosos comentários no exame de qualificação desta pesquisa.

Aos professores do Departamento de Cinema do IA/UNICAMP, Prof. Marcius Freire, Prof. Francisco Elinaldo Teixeira, Prof. Gilberto Alexandre Sobrinho, Prof. Alfredo Suppia, Prof. Pedro Maciel Guimarães e Prof. Nuno Cesar Abreu (in memoriam).

Aos amigos pesquisadores do PPG-Multimeios pela companhia de jornada, conversas e trocas, nestes quatro anos e meio. Especialmente, Jennifer Serra, Letizia Nicoli, Gustavo Soranz, Janaina Welle, Juliano Araujo, Regis Rasia e Rodrigo Gontijo.

Ao Renan Paiva Chaves, pelas leituras e comentários sobre o texto, em diferentes períodos. Da mesma forma, agradeço pela amizade e por compartilhar do entusiasmo pelos fenômenos, tomadas e suas materialidades.

Aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação – e do Instituto de Artes, como todo – pela solicitude e ajuda nos mais diversos trâmites ao longo da pesquisa. Em especial, à Letícia Machado e ao Rodolfo Marini Teixeira.

Ao Prof. Robb Moss, pela concessão da Fellowship que possibilitou minha estada por um semestre como pesquisador no departamento Visual and Environmental Studies (VES) da universidade Harvard.

Aos funcionários do departamento VES/Harvard Film Archive pelo auxílio em variados trâmites que envolveram a pesquisa no exterior: Katie DeMarsh, Jeremy Rossen, Liz Coffey, Laurel Gildersleeve.

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A Ross McElwee, pela generosidade na acolhida em Cambridge e pelas diversas possibilidades de encontros, conversas e entrevistas, que regeram minha estadia lá e que puderam ser incorporadas a este estudo.

Aos cineastas que cederam cópias de seus filmes para análise e estudo nesta pesquisa: Ross McElwee, Alfred Guzzetti, Miriam Weinstein, Maxi Cohen, Jim Lane, Dario Guerrero e Jane Pincus (pelos filmes de Ed Pincus).

Aos cineastas, pesquisadores e professores de alguma forma vinculados ao cinema de Cambridge com quem pude conversar durante a estadia em Harvard ou posteriormente: Ross McElwee, Robb Moss, Alfred Guzzetti, Richard Peña, Jim Lane, Dario Guerrero.

Aos meus amigos de Santo André, Barão Geraldo e São Paulo que fazem parte de cada pedacinho deste trabalho. Aos amigos que fiz durante a estadia em Cambridge. Sintam-se devidamente abraçados e agradecidos.

À família Olmos: Antonio, Nilci, Thais e Vinícius, Marilea, Patrocínio e Brigit, pela acolhida, pela generosidade e pelo afeto.

Aos meus pais, Tonelo e Telma; meu irmão, Marcos, minha cunhada, Vivian, minha avó Therezinha e à Ivi por todo o carinho e amor que não se podem medir, nestes últimos trinta anos, bem como pelo apoio inabalável.

À Aline, pela honra de poder caminhar junto, há muitos anos. Agradeço por ser, além de companheira, minha melhor amiga e uma fonte diária de motivação. Da mesma forma, agradeço pela revisão cuidadosa, e amorosa, da versão final deste trabalho. Obrigado por compartilhar dos meus sonhos e por me deixar fazer parte dos seus.

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Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo realizar um estudo acerca da noção de

“documentário autobiográfico”, tomando como principal objeto a obra do cineasta

estadunidense Ross McElwee. A obra do diretor será abordada dentro da perspectiva do

cinema autobiográfico desenvolvido no contexto universitário da cidade de Cambridge

(EUA). Nascido em 1947 em Charlotte, Carolina do Norte, McElwee iniciou sua carreira

cinematográfica na década de 1970, como aluno do departamento do cinema do MIT, o

MIT Film Section. Sua carreira inclui títulos importantes para a história do documentário

autobiográfico estadunidense, como Sherman’s March (1986), Time Indefinite (1993) e

Bright Leaves (2004). McElwee pode ser considerado um dos principais diretores do

documentário autobiográfico, e também da cinematografia praticada em Cambridge. O

trabalho apresentado divide-se em três partes. A primeira delas busca levantar e responder

questões mais gerais sobre o que denominamos "documentário autobiográfico”, a partir

de um corpus filmográfico amplo e variado. Na segunda parte, realiza-se um resgate

histórico e conceitual do documentário autobiográfico de Cambridge, frisando sua relação

com a tradição do cinema direto estadunidense e sua projeção na obra de Ross McElwee.

A terceira parte dedica um olhar à noção de autobiografia desenvolvida por McElwee em

sua carreira. A obra de Ross McElwee traz em si um movimento de construção

autobiográfico contínuo, desenvolvido ao longo de mais de três décadas e sete filmes.

Trabalharemos analiticamente este movimento diacrônico, que incide em modo narrativo

na obra de McElwee. A cada novo filme é particularizada sua proposta artística,

afirmando-se sempre dentro do horizonte de um documentarista-autobiógrafo.

Palavras-chave: McElwee, Ross, 1947-; Documentário (Cinema); Autobiografia,

Cambridge (Mass., Estados Unidos).

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Abstract

This research aims to study the notion of "autobiographical documentary”, taking

as its main object the work of American filmmaker Ross McElwee, seen within the

perspective of the autobiographical documentary which was developed in Cambridge

(MA) and its universities. Born in 1947 in Charlotte, North Carolina, McElwee began his

film career in the 1970s as a student at the MIT Film Section. His career includes

important titles for the history of the American autobiographical documentary, such as

Sherman's March (1986), Time Indefinite (1993) and Bright Leaves (2004). McElwee can

be considered one of the main representatives of the domain of autobiographical

documentaries, as well as of the kind of filmmaking which was practiced in Cambridge.

This study is presented in three parts. Part one seeks to raise and answer more general

questions about the domain of autobiographical documentary, based on a broad and

diverse filmographic corpus. In the second part, a historical and conceptual complexion

of Cambridge autobiographical documentary takes place, in which its relationship to the

tradition of American Cinema-Vérité is emphasized, as well as its projection into the work

of Ross McElwee. The third part looks at the notion of autobiography that was developed

by Ross McElwee in his career. Ross McElwee’s oeuvre brings in itself a movement of

continuous autobiographical construction, developed for more than three decades and in

seven films. This diachronic movement will be analytically looked at, which complicates

narratively McElwee's work with the release of each new film and particularizes his

artistic proposal as a documentarist-autobiographer.

Keywords: McElwee, Ross, 1947-; Documentary films; Autobiography; Cambridge

(Mass.)

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Lista de Ilustrações

Figura 1: Recorte de jornal que abre a narrativa de The Alcohol Years (Carol Morley, 2000) – p. 38

Figura 2: O diretor Marcin Koszałka sendo sabatinado por sua mãe, em Such a Nice Boy I gave Birth to (1999) – p. 40

Figura 3: O casal Tom Joslin e Mark Massi em Silverlake Life: The View from Here (1993) – p. 63

Figura 4: O corpo sem vida de Tom Joslin em Silverlake Life: The View from Here (1993) – p. 64

Figura 5: A organização da comunidade negra de Natchez em Black Natchez (Ed Pincus e David Neuman, 1967) – p. 104

Figura 6: A experiência hippie em One Step Away (Ed Pincus e David Neuman, 1968) – p. 107

Figura 7: O desespero de Panola em Panola (Ed Pincus e David Neuman, 1970). – p. 109

Figura 8: Ed e Jane Pincus no início da filmagem de Diaries (1971 - 1976) – p. 129

Figura 9: A família Pincus na casa de campo em Vermont, último plano de Diaries (1971-1976) – p. 136

Figura 10: Premature (1980), de David Parry – p. 143

Figura 11: Diálogo entre Steve Kreines e sua mãe em trecho disponível de The Plaint of Steve Kreines as Recorded by his younger brother, Jeff (Jeff Kreines, 1974) – p. 144

Figura 12: A mãe de Mark Rance dirige-se vigorosamente ao cineasta em plano-sequência de Mom (1978) – p. 146

Figura 13: O pai de Miriam Weinstein em My Father, the Doctor (1972). – p. 149

Figura 14: Depoimento de Weinstein para a câmera em Living with Peter (1973) e o casal Weinstein cortando o bolo de casamento em We get married Twice (1973) – p. 150

Figura 15: A cineasta Miriam Weinstein e o filho em Call me Mama (1976) – p. 152

Figura 16: O grupo de Robb Moss acampando à beira do rio em Riverdogs (1982) – p. 154

Figura 17: O personagem Jim Tichenor, na ocasião de Riverdogs (Robb Moss, 1982) e em The Same River Twice (Robb Moss, 2002) – p. 155

Figura 18: Leacock e técnicos do MIT Film Section demonstram o Sistema sync-sound a Robert Gardner no programa Screening Room – p. 163

Figura 19: A fricção entre corpos, câmera e mundo em Leviathan (Lucien Castaing-Taylor e Verena Paravel, 2012) – p. 167

Figura 20: Manakamana (Pacho Vélez e Stephanie Spray, 2013) – p. 168

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Figura 21: Felix e Susan Guzzetti falam para a câmera do filho, Alfred Guzzetti em Family Portrait Sittings (1975) – p. 172

Figura 22: Scenes from Childhood, de Alfred Guzzetti (1979) – p. 174

Figura 23: A fotografia tirada por Felix Guzzetti, pai do cineasta, em 1938, em Time Exposure (2012) – p. 176

Figura 24: A cineasta Nina Davenport e o namorado, Nick, em Always a Bridesmaid (2000) – p. 181

Figura 25: Nina Davenport e o nascimento do filho Jasper em First comes Love (2013) – p. 185

Figura 26: O diretor Marco Williams ao telefone em duas ocasiões de sua jornada em In Search of Our Fathers (1992), sua mãe e seu pai. – p. 188

Figura 27: O cineasta Jim Lane filma seu próprio reflexo em Long Time, no See (1982) – p. 189

Figura 28: A namorada da cineasta Mitch McCabe corta seu cabelo, em Playing the Part (1995) – p. 190

Figura 29: A história de Dario Guerrero em manchete de portal digital brasileiro, veiculada em 2014 – p. 191

Figura 30: Charleen Swansea ensina poesia para alunos do ensino médio em Charleen (1979) – p. 210

Figura 31: Charleen fala para a câmera de McElwee em Charleen (1979) – p. 212

Figura 32: McElwee posa ao lado de seu pai em fotografia apresentada no início de Backyard (1984) – p. 214

Figura 33: “Ficarei satisfeito quando esse olho grande desaparecer” diz o pai para o cineasta em Backyard (1984) – p. 216

Figura 34: Integrante do grupo sobrevivencialista e a designer de interiores Claudia, em Sherman’s March (1986) – p. 220

Figura 35: A irmã Dede dá conselhos amorosos ao cineasta, no início de Sherman’s March (1986) – p. 222

Figura 36: Charleen Swansea aplicando uma “lição” em McElwee em Sherman’s March (1986) – p. 224

Figura 37: Vestindo o uniforme do exército Confederado, McElwee elabora para a câmera os próximos passos de sua jornada, em Sherman’s March (1986) – p. 228

Figura 38: A reação da família McElwee ao anúncio do noivado em Time Indefinite (1993) – p. 233

Figura 39: Marilyn Levine e Ross McElwee na cerimônia de casamento, em Time Indefinite (1993) – p. 236

Figura 40: Charleen olha para a casa reconstruída após o incêndio, em Time Indefinite (1993) – p. 238

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Figura 41: Adrian McElwee com uma semana de idade, no plano final de Time Indefinite (1993) – p. 239

Figura 42: McElwee filma uma missa católica em Six O’Clock News (1996) – p. 252

Figura 43: Adrian McElwee aos quatro anos de idade, em Six O’Clock News (1996) – p. 256

Figura 44: Deus – ou uma câmera de filmar – na pintura de Adrian McElwee, em Six O’Clock News (1996) – p. 257

Figura 45: As folhas de tabaco no “sonho” de McElwee em Bright Leaves (2004) – p. 259

Figura 46: O casal Massies canta novamente “Noite Feliz”, em Bright Leaves (2004) – p. 265

Figura 47: Adrian McElwee aos treze anos de idade, em Bright Leaves (2004) – p. 267

Figura 48: Vlada Petric durante sua “aula” a McElwee em Bright Leaves (2004) – p. 269

Figura 49: McElwee senta-se no “McElwee Park” para pensar, em Bright Leaves (2004) – p. 271

Figura 50: Adrian McElwee aos 21 anos de idade, em Photographic Memory (2011) – p. 290

Figura 51: “Como eu pude ficar tão velho?”. Ross McElwee em Photographic Memory (2011) – p. 296

Figura 52: “Maud” em dos diários de McElwee da década de 1970, em Photographic Memory (2011) – p. 298

Figura 53: “Até mais”, diz McElwee para Adrian, no plano final de Photographic Memory (2011) – p. 301

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Sumário

Introdução ................................................................................................................................... 14

1. Sobre Documentários Autobiográficos ................................................................................... 20

1.1. Abordando o domínio dos documentários autobiográficos ............................................ 20

1.2. O documentarista-autobiógrafo – cineastas públicos, cineastas anônimos .................... 31

1.3. Estilo e intencionalidade em documentários autobiográficos ......................................... 36

1.4. Autobiografia e filmografias nacionais – um paralelo com o caso estadunidense .......... 46

1.5. Construção de identidade e narrativização de experiência ............................................. 55

1.6. Documentários autobiográficos, referencialidade e desconstrução ............................... 67

2. O Documentário de Cambridge e suas Universidades ............................................................ 92

2.1. Robert Drew em Harvard e Cinema Direto: preparação conceitual ................................ 92

2.2. A carreira e o pensamento de Ed Pincus ........................................................................ 100

2.3. A Experiência Autobiográfica de Diaries (1971 - 1976) .................................................. 125

2.4. A produção autobiográfica do MIT Film Section: filmes e cineastas. ............................ 137

2.5. Pós-MIT Film Section: Harvard e o departamento VES .................................................. 156

2.6. Documentário moderno e antropologia em Harvard: de Robert Gardner ao Sensory

Ethnography Lab ................................................................................................................... 161

2.7. A produção autobiográfica no contexto de Harvard...................................................... 169

3. A obra autobiográfica de Ross McElwee ............................................................................... 193

3.1. Introdução ...................................................................................................................... 193

3.2. Do Cinema Direto à Autobiografia: Space Coast (1979), Charleen (1979) e Backyard

(1984) .................................................................................................................................... 209

3.3. Sherman’s March (1986): a Guerra de Secessão dentro de si ....................................... 217

3.4. Time Indefinite (1993): A câmera e o calvário ............................................................... 229

3.5. Six O’Clock News (1996): Deus é uma câmera de filmar ............................................... 247

3.6. Bright Leaves (2004): Cinema e legado familiar ............................................................. 258

3.7. In Paraguay (2008): O defunto de um presente e a ética autobiográfica ...................... 272

3.8. Photographic Memory (2011): Um ciclo completo ........................................................ 288

4. Considerações Finais ............................................................................................................. 302

5. Referências Bibliográficas ..................................................................................................... 308

6. Anexo: Entrevista com Ross McElwee................................................................................... 318

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Introdução

O interesse pelo desenvolvimento desta pesquisa partiu do contato com a obra do

cineasta estadunidense Ross McElwee. McElwee nasceu em 1947 e iniciou sua carreira

cinematográfica na década de 1970. Seu longa-metragem Sherman’s March – A

Meditation on the Possibility of Romantic Love in the South during an Era of Nuclear

Weapons Prolifer, lançado em 1986, é o filme pelo qual o cineasta é mais reconhecido.

Lidando tematicamente com aspectos relativos à sua vida pessoal, os filmes do diretor

inserem-se no debate acerca dos documentários autobiográficos. A particularidade de sua

obra como documentarista, neste sentido, refere-se ao fato de que McElwee não trabalhou

a noção de autobiografia em apenas um filme, isoladamente, mas dedicou sua obra inteira

à exploração deste aspecto. Este foi o ponto principal sobre o qual recaiu a decisão de

desenvolver um estudo aprofundado acerca de seus filmes.

McElwee inicia a abordagem autobiográfica no média-metragem Backyard,

lançado em 1984, continuando-a em seis longas-metragens subsequentes, sendo

Photographic Memory (2011) o último realizado até o momento. A partir de seus filmes,

entramos em contato com alguns dos principais acontecimentos que regem sua vida

adulta, em um período de trinta anos. Em Backyard (1984) McElwee apresenta-se como

um jovem artista iniciando sua carreira cinematográfica sob o olhar auspicioso de um pai

conservador. Em Sherman’s March (1986) acompanhamos sua jornada pelo Sul dos

Estados Unidos na tentativa de realizar um documentário que retrata tanto determinado

episódio da Guerra Civil estadunidense, quanto aspectos da vida amorosa do diretor. Seu

casamento, a morte de seu pai e o nascimento de seu primeiro filho são tematizados em

Time Indefinite (1993). O crescimento de seu filho e a evolução da relação entre ele e o

diretor são abordados em filmes como Six O’Clock News (1996) e Bright Leaves (2004).

O processo de adoção de sua filha é o tema de In Paraguay (2008). Em Photographic

Memory (2011), fechando um ciclo geracional, McElwee enxerga seu filho como um

jovem adulto em uma posição semelhante à sua quando iniciou sua própria carreira

artística, no período abordado em Backyard. Devido a este movimento de construção

autobiográfica contínua, seus filmes trazem algumas questões particulares em relação à

autobiografia no universo do cinema documentário e que suscitaram um estudo

aprofundado.

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A bibliografia estrangeira que lida analiticamente com as possibilidades de

cruzamento entre autobiografia e documentário frequentemente aponta McElwee como

um dos principais representantes deste tipo de cinema. Desde a década de 1980, seus

filmes foram contemplados nos principais circuitos de festivais e, até o momento,

retrospectivas completas de sua obra foram exibidas na França, Bélgica, Portugal, Nova

Zelândia, Coréia do Sul, Equador e Suíça. Apesar disso, os filmes do diretor são pouco

conhecidos no Brasil. Seus documentários não foram incluídos em mostras

cinematográficas de destaque no país, e são praticamente inexistentes menções à sua obra

em bibliografia brasileira A partir da década de 2000 o documentário autobiográfico tem

sido um tópico forte nos estudos de cinema no Brasil. McElwee é um cineasta que tem

muito a contribuir para este debate. O esforço deste estudo concentra-se em trazer para

este domínio um pouco mais de conhecimento, a partir da análise de seus filmes.

A obra de McElwee insere-se em um contexto cinematográfico particular que

aponta para o universo dos documentários autobiográficos. O autor Jim Lane publica em

2002 o livro “The Autobiographical Documentary in America” (LANE, 2002), no qual

oferece análises da filmografia que compõe a noção de documentário autobiográfico nos

EUA. A partir do livro de Lane pôde-se enxergar os filmes de Ross McElwee sob uma

perspectiva histórica. A carreira de McElwee insere-se no contexto da produção

documentária de Cambridge (MA) e suas universidades. Trata-se de um movimento

iniciado no departamento de pesquisa, ensino e produção cinematográficos do MIT, o

MIT Film Section, no final da década de 1960. Seus fundadores foram os cineastas Ed

Pincus e Richard Leacock. Ao longo da década de 1970 o departamento recebeu e formou

diversos aspirantes a cineastas, sendo McElwee um deles. Especialmente a partir da

influência de Ed Pincus, o MIT Film Section concentrou uma variedade de diretores que

trabalharam com o desenvolvimento da noção de autobiografia aplicada à ótica do

documentário. Esta era uma produção ainda incipiente nos Estados Unidos. Os filmes

realizados no MIT Film Section propunham desdobramentos à noção de cinema direto

estadunidense, iniciada na década anterior. Cambridge desenvolveu uma tradição do

documentário autobiográfico que se perpetua até hoje. Após a experiência do MIT Film

Section, a noção de autobiografia perpassou as produções de alunos e professores do

departamento Visual and Environmental Studies (VES) da Universidade Harvard. Ross

McElwee é docente do departamento desde 1986 e a maior parte de seus filmes foi

realizada em intercâmbio com este ambiente universitário. Uma história detalhada deste

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movimento é abordada no livro “American Ethnographic Film and Personal

Documentary: The Cambridge Turn” (MACDONALD, 2013), publicado pelo

pesquisador estadunidense Scott MacDonald em 2013. Apesar da produção documentária

de Cambridge ter sido referenciada por outros autores desde seu aparecimento, o livro de

MacDonald compila significantemente esta produção. A publicação percorre

cronologicamente os filmes e os diretores que fizeram parte deste episódio ainda pouco

conhecido, sugerindo aspectos que aproximam conceitualmente os filmes enquanto

proposta artística.

A força propulsora deste trabalho consistiu em estudar a noção particular de

“autobiografia” na carreira de McElwee. A primeira tarefa partiu, portanto, de delinear o

entendimento da noção de “documentário autobiográfico” com a qual trabalhamos e que

deu origem ao capítulo 1 deste trabalho. Para isso, considerou-se o visionamento de um

corpus extenso e variado de documentários – de diferentes nacionalidades, períodos de

lançamento e estilísticas – pertencente a este domínio. Não existiu a intenção de oferecer

uma relação completa dos filmes que poderiam ser enquadrados neste domínio, mas, sim,

a de apontar alguns dos principais questionamentos que fazem destes filmes um tipo

particular de produção no universo do cinema documentário. O capítulo propõe, também,

a exposição de títulos e cineastas menos trabalhados em bibliografia brasileira, com o

propósito de ampliar o repertório acerca do tema.

Partindo do pressuposto de que “documentário autobiográfico” não é um gênero

preestabelecido ou unânime em seu entendimento, trabalha-se primeiramente com uma

proposta de definição – o que exatamente entendemos aqui como “documentário

autobiográfico”? Seguindo-se a ela, outras questões que buscaram ser respondidas no

capítulo foram: qual o principal perfil dos cineastas-autobiógrafos? São cineastas famosos

ou anônimos? Quais as características metodológicas mais recorrentes em documentários

autobiográficos? Há, em última análise, alguma característica que seja decisiva para a

existência deste tipo de filme? Esta produção relaciona-se mais de perto com a filmografia

de algum país específico? Onde este tipo de produção figurou mais consistentemente?

Existem temas que os cineastas-autobiógrafos abordam mais recorrentemente? A última

parte do capítulo propõe um debate acerca das principais tendências analíticas que

permearam a noção de “autobiografia” no campo do documentário. Em especial, foram

lançadas algumas reflexões acerca da dicotomia “referencialidade” e “desconstrução” que

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servem como subsídio para o aporte conceitual que permeia os filmes trabalhados em

seguida.

Consideramos que a obra de Ross McElwee se tornava um objeto de estudo mais

interessante a partir de sua constatação como parte de um episódio histórico maior.

Igualmente importante à tarefa de trazer luz à particularidade de McElwee enquanto

documentarista, portanto, era a escrita a respeito da história do documentário

autobiográfico de Cambridge. A possibilidade de produzir conhecimento (e partilhá-lo)

sobre um episódio pouco explorado da história do cinema documentário mundial era

preciosa o bastante para que deixasse de ser contemplada durante o tempo da pesquisa.

Justificamos esta decisão, também, ao sugerir que existe certa carência de estudos que

tragam mais “palpabilidade” à história do documentário autobiográfico, de uma maneira

geral. Tratou-se no capítulo 2 de expor a relação entre narrativas autobiográficas e o

ambiente universitário de Cambridge, onde ocorre um sistema de retroalimentação entre

cineastas/docentes e alunos que perdura há algumas décadas. As escolhas estéticas e

narrativas dos filmes de McElwee dialogam diretamente com o tipo de cinema

desenvolvido na região. Desta forma, o trabalho de explicar algumas das particularidades

deste episódio também se refere, invariavelmente, ao cinema de McElwee.

Este estudo contemplou uma pesquisa de campo, realizada durante seis meses no

departamento Visual and Environmental Studies (VES), da Universidade Harvard

(Cambridge-MA). Mais do que em relação ao capítulo 1, o contato estabelecido com

diversos tipos de fontes primárias de informação neste trabalho de campo foi decisivo

para o desenvolvimento dos capítulos 2 e 3. Para o estudo acerca do documentário

autobiográfico de Cambridge, privilegiou-se material de pesquisa que dissesse respeito à

gênese do pensamento deste fenômeno em publicações e entrevistas realizadas à época,

bem como em material filmográfico produzido no período. Da mesma maneira, a

possibilidade de entrevistar ou conversar com algumas pessoas que fizeram parte deste

episódio também se mostrou fundamental para a análise da produção em questão. Em

especial, destacamos o visionamento de filmes de acesso mais difícil de cineastas como

Ed Pincus, Robb Moss, Alfred Guzzetti, Miriam Weinstein, Ross McElwee, David Parry

e outros – alguns deles cedidos pelos próprios cineastas para o trabalho desta pesquisa.

Sublinhamos também as conversas e/ou entrevistas que foram realizadas durante o

período em Harvard com cineastas e pesquisadores como Richard Peña, Alfred Guzzetti

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e Robb Moss, para além do próprio Ross McElwee – cujas entrevistas foram compiladas

no anexo ao final da pesquisa.

O documentário autobiográfico de Cambridge, como mencionado, parte da

tradição do cinema direto estadunidense, propondo novos desdobramentos na década de

1970. Estes desdobramentos envolviam a possibilidade de uma construção narrativa que

contemplasse como matéria-prima temática o universo individual dos cineastas,

frequentemente em uma esfera doméstica ou familiar. Delineamos a primeira parte do

capítulo sugerindo que o início da longa relação entre cinema direto e Cambridge (ou

Boston, de maneira geral) pode ser detectada no estágio realizado por Robert Drew, em

1955, na universidade. Durante o ano que passou em Harvard, Drew dedicou-se ao

desenvolvimento da base conceitual para um novo tipo de telejornalismo, que culminou

alguns anos depois na produção do cinema direto. Em seguida, exploramos a ponte entre

o cinema direto e o desenvolvimento do documentário autobiográfico de Cambridge, sob

a perspectiva da carreira cinematográfica de Ed Pincus. As reflexões de Pincus

representam o principal aporte teórico do cinema desenvolvido no MIT Film Section.

Buscamos expor alguns dos pensamentos que nortearam o início da produção

autobiográfica de Cambridge e que evidenciam tanto a relação do grupo com a noção de

cinema direto quanto seu distanciamento de outras propostas de cinema que vigoravam

na época – como o Cinema-Vérité francês, na forma de Jean Rouch, ou o cinema

underground estadunidense, representado por Stan Brakhage, Jonas Mekas e outros.

Oferecemos um olhar mais prolongado acerca das escolhas metodológicas e narrativas de

Diaries (1971 - 1976), documentário autobiográfico realizado por Ed Pincus e que é uma

das principais influências da abordagem autobiográfica do cinema de Ross McElwee.

Em seguida, trabalhamos com a exposição de filmes e cineastas no contexto do

MIT Film Section e, posteriormente, do departamento VES da Universidade Harvard.

Tratam-se de comentários breves acerca de produções ainda pouco conhecidas, mas que

têm como objetivo tornar mais concreto o entendimento do cinema documentário

autobiográfico de Cambridge como um fenômeno com uma tradição narrativa própria,

desenvolvido a partir das universidades, e que se desdobra ao longo das décadas.

Historicamente, Harvard também abrigou outra contribuição para o documentário

moderno estadunidense, esta mais ligada ao filme etnográfico. Pôde-se expor um pouco

desta história, estabelecendo uma relação entre o cinema de Robert Gardner e a produção

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recente de cineastas como Lucien Castaing-Taylor e o trabalho do Sensory Ethnography

Lab (SEL).

As elaborações desenvolvidas no capítulo 1 e no capítulo 2 servem como alicerce

conceitual e histórico para o trabalho realizado no terceiro e último capítulo, que é

dedicado à análise do aspecto autobiográfico nos filmes de Ross McElwee. Entendendo

que a construção autobiográfica em seus filmes acontece a partir de um movimento

contínuo, privilegiamos um olhar acerca da maneira através da qual este procedimento

particulariza a questão de “autobiografia” em sua carreira. A cada filme lançado, a “teia”

de relações entre McElwee, sua vida privada e seu trabalho artístico torna-se um pouco

mais complexa. A partir do “risco” desta complexidade, a carreira de McElwee traz

alguns questionamentos pouco antevistos na obra de outros cineastas-autobiógrafos.

Enfatizamos a análise da temporalidade dos filmes de McElwee como o elemento mais

interessante de sua proposta autobiográfica. Esta proposta é complicada desde o emprego

de narrativas construídas a partir de dois pilares estilísticos díspares entre si – a

metodologia vérité “versus” a narração em over – como também do próprio aspecto

autobiográfico contínuo de sua carreira, que fazem com que os filmes estejam sujeitos à

força da passagem do tempo. A questão temporal contínua na carreira de McElwee suscita

movimentos de reavaliação e de ressignificação, que ocorrem tanto para o próprio

cineasta e para aqueles próximos de si, quanto para os espectadores de seus filmes.

Decidiu-se por estabelecer uma análise “filme-por-filme” da obra de McElwee devido ao

fato de que seus documentários, como frisado, são pouco conhecidos. A partir desta

metodologia, pôde-se estabelecer alguns comentários acerca de cada filme, lidando com

eles separadamente. Assim, abordarmos o contraponto entre a exploração de aspectos da

vida individual do diretor e aspectos relativos ao mundo exterior que tornam particular

cada uma de suas empreitadas, bem como trabalhamos singularidades narrativas ou

estilísticas que vêm à tona no visionamento de cada filme.

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1. Sobre Documentários Autobiográficos

1.1. Abordando o domínio dos documentários autobiográficos

A noção de autobiografia permeia o cinema documentário há mais ou menos meio

século. Não se trata de uma questão já esgotada temática ou estilisticamente. A cada ano

são lançados documentários que trazem a figura individual de seus criadores ao primeiro

plano de seus eixos temáticos. Narrar a respeito de si próprio, tornar aspectos da vida

individual do diretor como parte do conhecimento produzido pelos filmes é uma

estratégia que foi abordada de maneiras diversas. O que chamamos de documentário

autobiográfico é um fenômeno que permeou nosso entendimento do documentário

contemporâneo nas últimas décadas. Trata-se de uma noção que atravessou a filmografia

de países e continentes diversos: nos EUA, Europa, Brasil e América Latina, Oriente

Médio, extremo Oriente. Vários dos filmes que se relacionam com este universo

conceitual foram alvo de discussões no meio cinéfilo, crítico e acadêmico. Muitos deles

geraram frisson no circuito de mostras e festivais, muitos deles geraram comentários

acerca de um potencial “inovador” e muitos deles mostram-se, nos dias atuais,

suficientemente integrados à filmografia clássica de seus países de origem bem como à

história do cinema mundial.

Alguns exemplos notáveis deste tipo de filme podem ser mencionados para que

nos aproximemos das questões que envolvem o universo conceitual do qual fazem parte.

Em 1986, o diretor estadunidense Ross McElwee lança Sherman’s March – uma busca

de McElwee pelo amor romântico durante uma viagem pelo Sul dos Estados Unidos,

embrenhada por uma análise da sociedade sulista contemporânea em meio à herança da

Guerra Civil e ao temor de uma guerra nuclear. Sherman’s March obteve repercussão

maior do que a esperada, sendo distribuído amplamente nos Estados Unidos e chegando

à Europa. É possível sustentar que Sherman’s March foi um dos filmes que popularizou

o “gênero” do Documentário Autobiográfico, na década de 1980, entre um público não

tão restrito ao de cinéfilos, pesquisadores, docentes e estudantes de cinema. A autora

Catherine Russell entende Sherman’s March como um documentário autobiográfico

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mainstream1 (RUSSELL, 1999, p. 290), colocando-o ao lado de Roger e Eu, lançado por

Michael Moore em 1989. Mesmo a ideia de Roger e Eu, entretanto, teria sido idealizada

por Moore após o contato que teve com o longa-metragem de McElwee, segundo este

aponta em entrevista (MEEK, 2004). Após seu lançamento, Sherman’s March recebeu o

grande prêmio do Júri de Melhor Documentário na edição de 1987 do Festival de

Sundance. O filme fora, em determinado momento da metade da década de 1990, o

décimo documentário de longa-metragem mais vendido até então (HUNT, 1994). Em

2000, Sherman’s March foi integrado ao acervo filmográfico da Biblioteca do Congresso

estadunidense (O National Film Registry), sendo preservado a partir de seu

reconhecimento como uma obra artística “Historicamente, culturalmente ou

esteticamente significativa” para o país. Mais recentemente, em setembro de 2014, a

revista inglesa “Sight and Sound” dedicou um número exclusivo ao cinema

documentário. Nela, a publicação promoveu uma ampla votação que destacasse os

documentários “mais importantes” já lançados, segundo cineastas e críticos. Na edição,

Sherman’s March ocupou o posto de 19º documentário mais importante da história na

lista dos cineastas consultados, e o posto de 77º na lista dos críticos.

A estranha jornada de McElwee que narra a expectativa (frustrada) de engatar um

relacionamento amoroso, levantando minúcias da vida particular do general William

Tecumseh Sherman (conhecido por ser, ao mesmo tempo, herói e vilão do exército da

União), e trazendo uma análise do arquétipo macho do Sul dos EUA suscitou interesse

suficiente para que McElwee continuasse esta abordagem em sua carreira posterior.

Seguindo-se a Sherman’s March, o diretor construiu uma obra inteiramente alicerçada

em longas-metragens autobiográficos, tendo realizado e lançado outros seis até o

momento presente. Durante um período de mais de três décadas, portanto, McElwee

partilha com os espectadores aspectos de sua vida individual que são cristalizados em

narrativa fílmica e que dão conta de alguns dos principais eventos de sua vida adulta,

familiar e doméstica. Este movimento abarca eventos como a morte de entes queridos,

seu casamento, o crescimento de seus filhos e a progressão de seu envelhecimento.

Outros cineastas trabalharam continuadamente com aspectos autobiográficos em

seus filmes, estabelecendo uma relação sequencial entre eles. É o caso do cineasta

1 Expressão que indica uma tendência dominante, ou um fluxo principal. O termo é frequentemente usado em um contexto de classificação de produtos culturais e pode ser entendido como o oposto de underground.

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estadunidense Alan Berliner. Desde 1991, os filmes de Berliner trabalham narrativamente

com elementos relativos à sua vida individual e à história de sua família. Em Intimate

Stranger (1991) Berliner lança luz a aspectos da história privada de seu avô-materno que

permanecia envolta em mistério, até para si próprio, antes da feitura do filme. Em 1996,

o cineasta lança um de seus filmes mais conhecidos, Nobody’s Business. Este faz da

relação do diretor com seu pai seu principal tema, relacionando a história familiar dos

Berliner à História pública – a questão de sua herança judaica, tematizada neste filme,

será retomado em outros de seus filmes. Já em The Sweetest Sound (2001), Berliner

realiza uma reflexão acerca de nomes próprios, tomando o seu, “Alan Berliner”, como

um dos pontos de reflexão do filme. Em Wide Awake (2006), Berliner preocupa-se em

partilhar conosco a mazela da insônia, da qual sofre há muitas décadas. O problema toma

proporções grandes demais, influindo diretamente em seu trabalho e em sua vida privada,

que passa por complexificações com o nascimento de seu primeiro filho. Em seu último

filme, First Cousin Once Removed (2013), Berliner volta a sublinhar relações familiares.

O filme lida tematicamente com seu primo de segundo grau, Edwin Honig, um poeta e

tradutor de reconhecimento mundial que sofre do mal de Alzheimer.

Alan Berliner e Ross McElwee, dois dos principais cineastas que lidaram

continuamente com a noção de autobiografia em suas carreiras, apresentam

procedimentos estilísticos e narrativos totalmente diversos. A autoria de Berliner

enquanto documentarista recai ostensivamente em um trabalho de montagem vigoroso

realizado pelo próprio diretor. Berliner lança mão de cortes rápidos, de uma abundância

de efeitos sonoros e da utilização de vasto material de arquivo. A particularidade do estilo

de McElwee, por outro lado, parte de um refinamento da escola vérité aliado a um

meticuloso trabalho de narração em over. Tanto a obra de McElwee quanto a de Berliner,

entretanto, caracterizam-se por trazer à luz elementos da vida de seus criadores em uma

relação de causa e consequência que se envereda a cada filme lançado.

Autobiograficamente falando, a particularidade das carreiras de McElwee e Berliner

reside na possibilidade de atualizarmo-nos a respeito da vida dos diretores em cada novo

filme. Podemos nos surpreender com as “novidades” trazidas por eles e quiçá nos

sensibilizarmos quando descobrimos que o cineasta perdeu um ente querido tematizado

em um filme anterior, ou que este enfrentou algum tipo de situação traumática que é feita

visível na narrativa.

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Outros cineastas trabalharam continuadamente com a noção de autobiografia em

suas obras, porém não em todos os filmes como é, praticamente, o caso de Ross McElwee

ou Alan Berliner. Alguns exemplos são os de cineastas-auteurs que detém carreiras

consistentes e significativas e que transitaram por uma vasta gama de tipos de filmes e

proposições narrativas: filmes experimentais, documentários e ficções. A autobiografia

detém um papel significativo na carreira de Chantal Akerman, um destes casos, em filmes

como News From Home (1976), Chantal Akerman par Chantal Akerman (1997), La-Bàs

(2006) e No Home Movie (2015), permeando o curso de sua obra até seu ponto final, com

a morte da diretora em 2015. Passamos, enquanto espectadores, a conhecer os traços da

paisagem do universo individual de Akerman a partir das cartas trocadas pela diretora

com sua mãe em um dos períodos em que morou nos Estados Unidos, como nos é narrado

em News From Home. O aspecto autobiográfico é retomado vigorosamente na última

década de sua carreira, em La-Bàs e em seu último filme, No Home Movie. Estes filmes

relacionam-se entre si a partir do momento em que trazem à luz o conhecimento acerca

de uma delicada condição mental e emocional da diretora, cujas narrativas nos sugerem

que Akerman estaria “segurando-se na mais fina e desgastada das linhas de vida”, como

aponta a autora Alisa Lebow (2016, p. 1). Finalizado apenas poucos meses antes do

falecimento de Akerman, No Home Movie é um filme que “pode apenas ser visto através

da moldura de seu suicídio, como um consciente ou insconsciente adeus” (LEBOW,

2016, p.1). A cineasta japonesa Naomi Kawase é outro destes exemplos. Kawase realizou

diversas narrativas documentárias autobiográficas pelas quais tornou-se reconhecida –

especialmente no início de sua carreira. Nestes filmes, a diretora trabalha narrativamente

com aspectos de sua relação com familiares, como a figura do pai que a abandonou (em

Embracing, 1992) ou da avó que a criou (Katatsumori, 1994 e Tarachime, 2006). Por

entre ficções e documentários, a autobiografia também permeia a obra da cineasta

francesa Agnés Varda, em filmes como Os catadores e eu (Les Glaneurs e La Glaneuse,

2000) ou As praias de Agnès (Les plages d’Agnès, 2008). Nestes, entre outros aspectos

que apontam para a individualidade de Varda, entramos em contato com a relação da

diretora com o ofício de filmar, revisitando momentos de seu passado cinematográfico e

refletindo sobre ele.

Em todos os exemplos citados, estamos diante de narrativas que sugerem que

sejam assistidas como “autobiográficas” – o que não é pouca coisa. Levando em

consideração o número integral de documentários produzidos e lançados ao redor do

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mundo, e em todos os suportes disponíveis, é possível sustentar que dificilmente um

espectador médio, em uma experiência de consumo cotidiano de material audiovisual, irá

deparar-se com a oferta de um documentário autobiográfico para visionamento. Existem

poucos títulos disponíveis na database da plataforma Netflix e existe uma pequena

possibilidade de canais de televisão fechada como Canal Brasil, SundanceTV ou Curta!

incluírem em sua programação filmes que se enquadram neste debate. Em todas as

edições do Oscar, há poucos filmes – talvez apenas três – que trabalharam narrativamente

a transposição do universo individual de seus diretores como ponto do eixo temático dos

filmes. Um destes casos é Best Boy (1979), dirigido por Ira Wohl, cujo enredo narra a

história do primo do cineasta que sofre de deficiência mental, e que foi vencedor do Oscar

de melhor documentário em 1979. Em 1995, a exploração da cineasta Deborah Hoffmann

em relação à progressão do quadro de Alzheimer de sua mãe é o tema principal de

Complaints of a Dutiful Daughter (1994), foi indicada nesta categoria. Outro caso é o de

Troublesome Creek: A Midwestern (1995), dirigido por Steve Ascher e Jeanne Jordan,

que concorreu ao prêmio em 1996 e explora o momento instável da fazenda da família da

diretora Jeanne Jordan, colocando-o como microcosmo de um período de mudança na

economia americana do momento2.

Ainda que esta comparação dos documentários autobiográficos em relação ao

Oscar não revele objetivamente muitas coisas, ela pode ser um subsídio para o

entendimento de que, de maneira geral, a experiência de produção, visionamento e

recepção do cinema documentário enquanto fenômeno particular se relaciona de maneira

discreta com a possibilidade de autobiografia. Em outras palavras, pode-se sugerir que

fora de um grupo restrito de cinefilia e/ou de pesquisadores de cinema, a construção

narrativa autobiográfica documentária é ainda vista como ponto fora da curva diante do

senso comum da expectativa de produção de conhecimento dos documentários, como

uma novidade ou como fenômeno necessariamente atrelado à filmografia dos últimos

anos.

Neste sentido, sustentamos o interesse em refletir acerca das especificidades

epistemológicas de documentários que assumem narrativamente uma posição

2 Em alguns outros filmes indicados existe a transposição da figura do diretor como personagem ou

interlocução argumentativa nos filmes, de maneira ou outra, como Wim Wenders em O Sal da Terra (2014),

alguns filmes de Michael Moore (Tiros em Columbine [2002], Sicko [2007]), Werner Herzog em

Encounters at the End of the World (2007) ou Emad Burnat em 5 Broken Cameras (2012). Dificilmente

estes, entretanto, poderiam ser pensados sob a ótica da autobiografia da maneira que lidaremos daqui em

diante.

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autobiográfica em contraponto aos documentários que não o fazem. Parte-se neste

trabalho de uma intenção de analisar o que torna os “documentários autobiográficos” um

fenômeno particular de produção de conhecimento dentro do universo da narrativa não-

ficcional. Propomos um debruçamento de amplo escopo a partir de um olhar para os

filmes diante daquilo que os une como experiência particular dentro do universo

conceitual da não ficção, antes mesmo de sublinhar o que porventura os diferencia

narrativamente e estilisticamente entre si. Utilizaremos o termo “documentário

autobiográfico” em relação à vasta gama de filmes que podem ser englobados por esta

adjetivação. Dois autores, em especial, podem ser ressaltados no que concerne a produção

analítica a respeito da possibilidade de autobiografia no cinema de não-ficção. Um deles

é Michael Renov, que dedicou grande parte de sua obra à análise de filmes e vídeos que

exemplificaram, renovaram e ampliaram a noção que temos da escrita autobiográfica no

cinema documentário. O outro é Jim Lane, autor de “The Autobiographical Documentary

in America” (LANE, 2002) e de outros artigos a respeito de cineastas-autobiógrafos como

Ed Pincus e Ross McElwee. Os trabalhos de Renov e Lane destacam-se por prover

análises de documentários autobiográficos a partir da consideração de um corpus

filmográfico mais amplo. Mesmo residindo na teoria do cinema, as reflexões destes

autores também buscam inspiração conceitual nos estudos específicos do campo da

autobiografia – dialogando com autores mais ligados à teoria crítica da literatura. As

ideias de Renov e Lane são importantes pontos de contato para a argumentação que se

desenvolverá ao longo do trabalho.

A expertise de Michael Renov no trato com a noção de autobiografia aplicada ao

cinema documentário, em um movimento analítico de mais de vinte anos, pode ser

destacada quando entramos em contato com duas de suas proposições, em um texto

publicado primeiramente em 2009: “a autobiografia fílmica não é nenhuma novidade”

(2014, p. 36) e “a autobiografia fílmica existe de várias formas” (2014, p. 39).

Englobadoras, as proposições de Renov são valiosas por dois motivos distintos. O

primeiro deles diz respeito a um convite à consideração de que a tematização narrativa

cinematográfica de aspectos relativos à vida individual do cineasta não é uma

exclusividade do período em que estamos vivendo. É possível afirmar que há uma

expansão atual, em números absolutos, de documentários que lidam com a noção de

autobiografia. Talvez seja tentador inferir que a intenção da parte de um cineasta de

narrativizar cinematograficamente algum aspecto de sua vida individual seja um

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fenômeno ligado ao período em que vivemos, à popularização de ferramentas como os

blogs, vlogs e redes sociais de qualquer sorte; ou até mesmo da profusão de programas

televisivos como os talk shows ou os reality shows. Nota-se, entretanto, o início da

preocupação com o desenvolvimento de narrativas documentárias autobiográficas ainda

na década de 1960. Se no campo literário a escrita autobiográfica porta uma longa e

variada tradição, o início deste mesmo ímpeto no cinema está mais diretamente ligado ao

momento em que as técnicas e metodologias de filmagem tornaram-se acessíveis para

cineastas em modestas condições de produção. Aliado a isto, existia um momento

favorável à problematização, em arena pública, de questões tradicionalmente vinculadas

à esfera do privado. É o caso, por exemplo, da segunda onda do feminismo estadunidense,

que fomentou ideologicamente este tipo de produção no país – este será um ponto ao qual

nos debruçaremos mais longamente ao longo do trabalho.

Ainda que não haja nenhum tipo de consenso em relação ao que seja a “primeira”

obra autobiográfica no cinema documentário, existem alguns pontos de partida históricos

que podem ser mencionados. Renov sugere a década de 1950 como um período

importante para uma virada epistemológica no campo do cinema de não-ficção. Filmes

de auteurs franceses como Jean Rouch (Les Mâitres Fous [1955]; Moi, un Noir [1958] e,

posteriormente, Chronique d’un eté [1961]) e Chris Marker (Lettre de Sibérie [1958]; Si

J’Avais Quatre Dromedaires [1966] e Le Mystére Koumiko [1967]) exibiam

procedimentos narrativos que inovavam a relação entre cineasta e narrativa que até então

figurava no cinema documentário. Com o desenvolvimento de uma narração em voz over

autoral (RENOV, 2004: xxi), o conhecimento fornecido pelos filmes destes diretores era

implicado por noções “parciais” ou “situadas" – em contraponto a um conhecimento

onisciente-didático predominantemente relacionado ao documentário clássico e portador

de um discurso ideológico, organizacional ou estatal. Os filmes aos quais se refere Renov

desenvolveram procedimentos de narração em over que indicavam a aproximação do

texto à identificação do cineasta, personificado na narrativa. Embora as narrações não

apresentassem um texto estritamente autobiográfico per se, sugeriam discursos dotados

de carga subjetiva e distanciados de uma ética educativa, anunciando tempos de mudança

em questões relativas à transparência da figura do cineasta na narrativa documentária.

Michael Renov (2014, p.36-37) e Jim Lane (2002, p.12-13) sugerem o

desenvolvimento do cinema avant-garde estadunidense como um momento em que a

noção de autobiografia floresceu de maneira recorrente. No caso, cineastas como Stan

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Brakhage (Window Water Baby Moving [1959] e Thigh Line Lyre Triangular [1961]),

Jonas Mekas (Walden: Diaries, Notes and Sketches [1969]), Jerome Hill (Film Portrait

[1973]), Hollis Frampton (nostalgia [1971]) e James Broughton (Testament [1974])

desenvolveram películas que, de maneiras distintas, trabalhavam narrativamente

passagens de suas vidas individuais. Neste mesmo período, o grupo de cineastas baseado

em Cambridge e Boston realizou narrativas documentárias autobiográficas sob uma ótica

metodológica ligada à tradição do cinema direto estadunidense. Este momento, também

relativo a um primeiro desenvolvimento da noção de documentário autobiográfico, é

representado por cineastas como Ed Pincus (Diaries [1971 - 1976]), 1980), Miriam

Weinstein (My Father, the Doctor [1972], Living With Peter [1973], We Get Married

Twice [1973] e Call Me Mama [1976]), Jeff Kreines (The plaint of Steve Kreines as

recorded by his younger brother, Jeff [1974]) e Mark Rance (Mom, [1978]).

Apesar das diferenças metodológicas e estilísticas que separam um filme como

Lost, Lost, Lost de Jonas Mekas, de Diaries (1971 - 1976), de Ed Pincus, é possível dizer

que eles se aproximam em um ponto: o conhecimento produzido por suas narrativas

depende, em parte, da transposição da figura individual de seus diretores como parcela

integrante do eixo temático dos filmes. Não é preciso mais do que poucos minutos diante

dos dois filmes para entendermos, enquanto espectadores, que estamos em contato com

obras tanto distintas quanto parecidas. Se a construção autobiográfica de Mekas propõe

uma montagem fragmentada, trabalho de câmera instável, cortes mais rápidos e uma

narração em primeira pessoa um tanto hipnótica, no caso de Pincus assistimos à

apresentação de sua família em um estilo vérité, com som sincrônico, tomadas mais

duradouras e com a interação do cineasta com outras pessoas, por detrás da câmera. Em

ambos os filmes, entretanto, nosso visionamento abre-se para um registro semelhante.

Existe uma ciência de que estamos sendo colocados pelos cineastas em uma posição

privilegiada de suas individualidades, da vida que vivem para além da tela, no mesmo

mundo que nós habitamos.

Os exemplos acima, ligados ainda à própria origem da noção de autobiografia no

cinema documentário, apontam para a outra proposição de Renov, a de que “autobiografia

fílmica acontece de diferentes maneiras”. A importância de se entrar em contato com o

maior número possível de documentários, de diferentes décadas e países, em que exista

uma intenção autobiográfica da parte do cineasta – e que esta intenção seja clara para o

espectador – parece fundamental para o entendimento desta noção ampla de

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“documentário autobiográfico”. É só a partir da consideração de um número grande de

filmes que podemos afirmar que se construiu uma “linguagem” espessa deste fenômeno,

repleta de nuances e variáveis, a partir das quais os filmes preservam de maneiras distintas

seus estatutos autobiográficos. Nesta espessura de linguagem estão contidas diferentes

opções metodológicas e estilísticas; recursos de dramatização, reconstrução e fabulação;

amplitude de escolha no que concerne ao processo de montagem; diversas opções de

temporalidade narrativa; variações nos processos de autoinscrição do cineasta, no que diz

respeito à sua corporeidade, entre outros aspectos. Esta mesma acepção de uma visão

expandida do fenômeno fez com que a autobiografia literária se tornasse um campo de

estudo que tem como objeto uma produção que se desdobra por séculos, mas que se

preserva dentro do mesmo universo teórico e conceitual devido a questionamentos-chave

ao redor dos quais as obras voltam a gravitar. Célebres trabalhos dentro do campo teórico

da autobiografia são reconhecidos também em outros gêneros classificatórios, como

solilóquios, confissões, na própria poesia lírica, ou em ensaios. O teórico Georg Misch

sustenta que muitos autobiógrafos, se fossem pessoas de originalidade, teriam modificado

os tipos existentes de composição literária ou mesmo inventado o seu próprio gênero

(MISCH, 1950, p.4). Segundo Avram Fleishman: “Não pode haver iconoclastia onde não

há ícones sagrados, e a história da Autobiografia assemelha-se mais a uma coletânea de

trabalhos dos homens, do que a um código de classificação bibliotecária.” (FLEISHMAN,

1983, p. 1). Jean Starobinski coloca “Autobiografia não é um gênero com regras

rigorosas. Ela apenas requer que certas condições sejam cumpridas(...): que a experiência

pessoal seja importante, que ela ofereça uma oportunidade para uma relação sincera com

outra pessoa” (STAROBINSKI, 1980, p. 77). A produção de documentários

autobiográficos é consistente e antiga o suficiente para que este mesmo olhar inclusivo

seja utilizado em relação à ideia de autobiografia no cinema documentário. Além disto,

entendemos que esta experiência se constrói e renova-se com os diversos lançamentos

que, ano após ano, dispõem de narrativas autobiográficas construídas de maneiras ainda

inventivas.

O que, entretanto, seria comum ao domínio do documentário autobiográfico? Se

pode haver tanta divergência estilística e narrativa entre filmes de diferentes décadas e

países, o que faz com que eles estejam de alguma forma unidos em suas preocupações?

Considerando a análise de diversos documentários autobiográficos, quais características

seriam as mais partilhadas por eles? Em primeiro lugar, é possível dizer que há, em todos

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estes filmes, um movimento comum de autorrepresentação que, aqui, chamamos de

“autobiográfico”. De maneira ou outra, estes filmes são construídos a partir da

transposição da figura do diretor (do realizador) para a narrativa fílmica. Nestes filmes, o

diretor assume-se como uma força argumentativa, pessoalizada, que pode configurar-se

como personagem e que cuja densidade dentro da narrativa fílmica é, ora mais, ora menos,

acentuada. A ideia de autobiografia pode perpassar um desdobramento temático

desenvolvido pelo cineasta no que toca aspectos de sua vida como “indivíduo”: aspectos

de sua vida doméstica, privada. Em outras palavras, é comum que em documentários que

enxergamos como autobiográficos, passemos a conhecer a relação do diretor com algum

aspecto de sua vida individual, para além de entrarmos em contato com sua sensibilidade

“artística” cristalizada na narrativa cinematográfica.

O visionamento de um grande número de narrativas documentárias

autobiográficas revelou ampla variedade no que diz respeito à maneira através da qual o

cineasta utiliza-se do plano temático de seu filme para partilhar (e expressar) algum

pormenor de sua relação com a própria vida e com o mundo à sua volta. Através destes

documentários tomamos conhecimento, por exemplo, da relação entre o diretor e seu

próprio ofício, enquanto cineasta; da tematização ou visibilidade de seu cotidiano

enquanto indivíduo (a casa onde mora, os lugares que frequenta); seus laços familiares,

tanto no que diz respeito à sua família imediata (esposa, esposo, filhos) ou em relação à

memória familiar (pais, avôs, avós); questões da relação entre o cineasta e sua própria

etnia; da relação entre o diretor e sua própria sexualidade; questões relativas à posição do

cineasta (ou daqueles que são próximos a ele) enquanto migrante ou exilado; sua relação

com um lugar: onde nasceu, cresceu, ou onde vive atualmente; e, ainda, uma forte posição

personificada e subjetiva no que toca o desenvolvimento intelectual e analítico deste

cineasta em relação a algum assunto do mundo “social” – posição esta que pode,

eventualmente, adquirir um caráter mais aprofundado de autorrepresentação.

Para além dos autores do campo do cinema documentário que escreveram sobre

os filmes autobiográficos, outro importante subsídio para a reflexão encontra-se na teoria

crítica da autobiografia literária. Este campo configurou-se enquanto tal principalmente a

partir da segunda metade do século XX. O trabalho foi preconizado pela obra

enciclopédica de Georg Misch, que organizou a história da autobiografia em quatro tomos

– desde a antiguidade à contemporaneidade – em um trabalho que pôde ser concluído

apenas postumamente, finalizado por seus discípulos em 1969. Criticamente, entretanto,

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um importante trabalho para o desenvolvimento do campo teórico da autobiografia foi o

texto “Conditions and limits of autobiography”, publicado em 1955 por Georges Gusdorf

(GUSDORF, 1980), no qual “todas as preocupações e questionamentos - filosóficos,

psicológicos, literários e, mais geralmente, humanistas - foram pela primeira vez expostos

claramente (...) e compreensivamente” (OLNEY, 1980a, p. 9). O texto de Gusdorf integra

a compilação “Autobiography - Essays Theoretical and Critical”, editorada por James

Olney em 1980 e que, por si própria, também se tornou uma organização clássica do

debate crítico que permeou o campo da autobiografia a partir de então. A compilação é

formada por textos que buscavam resgatar os questionamentos que faziam da

autobiografia um produto cultural autônomo e de longa e variada tradição, como em uma

espécie de busca por sua ontologia (em OLNEY [1980a], [1980b], GUSDORF [1980],

MANDEL [1980], STAROBINSKI [1980], SAYRE [1980]); bem como contemplou o

início de uma reação crítica marcada por um teor desconstrutivista, colocando sob

suspeita a possibilidade referencial da linguagem e, assim, da própria noção de

autobiografia (SPRINKLER [1980], RENZA [1980]).

A teoria da autobiografia é um universo conceitual que se desenvolve de maneira

autônoma a partir deste momento e que chega até os dias atuais. Evidentemente, a

profusão de possibilidades de escrita do eu na contemporaneidade e na era digital evoca

mais e distintas questões que o campo vem sistematicamente respondendo ao longo dos

anos. Mesmo que estes desdobramentos não sejam o foco deste trabalho, o contato com

alguns textos que originaram a teoria crítica da autobiografia literária revelou-se um bom

subisídio para a análise dos documentários autobiográficos. Em outras palavras, há algo

de semelhante entre narrativas literárias autobiográficas e documentários autobiográficos

que pode tentar ser resgatado. Tanto os textos quanto os documentários autobiográficos

baseiam-se na transposição da figura individual do escritor ou do cineasta para a narrativa

que está sendo criada. Esta transposição, em ambos os casos, particulariza o tipo de

conhecimento que é entregue pelas narrativas e propõe uma maneira de identificação

distinta – dos leitores ou espectadores – aos textos ou filmes. A literatura autobiográfica

relaciona-se com o documentário autobiográfico em um nível epistemológico. Neste

sentido, podemos nos valer de algumas reflexões dos autores que escreveram criticamente

sobre a autobiografia literária, porém buscando manter no horizonte as particularidades

ontológicas do cinema documentário para realizar as comparações. Finalmente, sugere-

se neste trabalho um olhar que contemple uma análise sobre as diferentes maneiras pelas

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quais o cinema documentário de fato ofereceu, nos últimos cinquenta anos, um número

significativo de narrativas que se assume ou pretende-se autobiográfica, antes de buscar

analisar se as teorias importadas da autobiografia literária aplicam-se ou não no caso do

cinema. Entrar em contato com o fenômeno dos documentários autobiográficos no

máximo possível de sua extensão, para apenas depois buscar um possível amparo teórico-

analítico, mostrou-se um caminho impreterível para o tipo de trabalho aqui realizado.

1.2. O documentarista-autobiógrafo – cineastas públicos, cineastas anônimos

Uma primeira reflexão que pode ser feita sobre a particularidade do domínio dos

documentários autobiográficos perpassa a consideração dos cineastas-autobiógrafos em

relação à maior ou menor projeção pública de suas carreiras. A distinção entre o ato

autobiográfico praticado por indivíduos “anônimos” e por “personalidades” é um ponto

frequentemente revisitado neste campo teórico. No caso da literatura, é possível dizer que

existe uma popular noção de “autobiografia” como gênero literário comercial, sobre o

qual existe intenso trabalho de publicidade e propaganda e que figura frequentemente em

estantes de lançamentos em livrarias. Tratam-se, neste caso, dos relatos autobiográficos

desempenhados por indivíduos que detém notoriedade nos seus campos de atuação e que

são conhecidos publicamente por um grande número de pessoas. Notadamente, artistas

pop, políticos, líderes militares, esportistas, empresários de sucesso – estes são indivíduos

que reconhecem sua influência diante do público e buscam narrativizar a própria história

de vida a partir da transposição em linguagem. São obras que, embora distintas em forma,

originalidade ou “valor literário”, aproximam-se no que concerne à projeção pública que

seus autores detêm.

Neste sentido, há algo em comum em autobiografias de estrelas do rock

internacional como Eric Clapton ou Keith Richards, a autobiografia de Benjamin Franklin

ou a de Malcolm X, as memórias do político José Serra relativo ao período do exílio

durante a ditadura, ou mesmo a autobiografia da atriz brasileira Vera Fischer. Em todos

estes casos (e em muitos outros, pois a oferta deste tipo de título é bastante recorrente), o

relato autobiográfico faz serviço a uma persona pública que já é consolidada previamente

à escrita e ao lançamento dos livros. Ou seja, tratam-se de narrativas autobiográficas cujos

autores são conhecidos pelo leitor antes mesmo do ato da leitura. Na maioria desses casos,

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o interesse do leitor por este tipo de relato autobiográfico existe devido à fama

preestabelecida de seu autor. Da mesma maneira, a intenção autobiográfica também é

atravessada pela ciência da projeção pública de seu escritor. Segundo Georges Gusdorf,

narrativas autobiográficas de pessoas públicas compõem uma espécie de propaganda

póstuma para a posterioridade que, caso não existissem, colocariam em questão o risco

do esquecimento ou da estima a estas personalidades (GUSDORF, 1980, p. 36). Gusdorf

argumenta que a autobiografia realizada por estes autores adquire aspecto de um ponto

de vista “extra”, porém pessoalizado por eles próprios, que ajuda a compor uma

“paisagem” de suas personalidades, alimentando o desenvolvimento de uma persona que

já é pública. Há, desta forma, uma relação que aproxima este tipo de autobiografia à

construção de uma História “oficial”. Mesmo que existam tematizações de motivos

privados da vida destes indivíduos, ou seja, daquilo com que não temos contato diante de

seus feitos públicos (vitórias militares, discos gravados, eleições ganhas, atuações em

filmes), a narrativa sempre apontará para a projeção pública preestabelecida pelos

autores. Uma artista como Rita Lee, por exemplo, só decide colocar a pena no papel e

escrever sua história pois sabe que é Rita Lee, sendo esta uma ciência que nunca se

esvanece durante a escrita e no vislumbramento da projeção da obra autobiográfica para

o grande público.

Existe outra faceta da autobiografia, entretanto, que traz particularidade a esta

modalidade de escrita como linguagem autônoma. Historicamente, a autobiografia

tornou-se um veículo potencial para a transposição em linguagem da vida de indivíduos

anônimos, sem projeção pública anterior ao momento da escrita. Neste caso, trata-se da

possibilidade de narrar sobre si mesmo – e a partir de si mesmo – encarando a vida

própria, embora “anônima”, como objeto sobre o qual pode-se construir conhecimento.

A possibilidade de tornar-se célebre, portanto, concretiza-se com o reconhecimento de

uma narrativa sobre a vida própria que acontece após a escrita autobiográfica. Não existe,

nestes casos, o apontamento, direto ou indireto, a algum tipo de persona pública

justamente devido à sua prévia ausência, bem como inexiste a intenção de glorificação

ou alimentação deste mesmo tipo de personalidade. A ausência da necessidade de

referenciar feitos de uma persona pública caracteriza, dominantemente, uma produção de

conhecimento autobiográfico distinto. Este conhecimento tende a apontar para os

meandros de existência privada, pelo fato de que qualquer feito público – no sentido da

“fama” – não ultrapassa um nível de normalidade. É o caso de autores que, segundo

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Gusdorf, “não estão contentes em oferecer ao leitor uma espécie de curriculum vitae,

retraçando passos de uma carreira oficial que, em relação à sua importância, não é mais

do que medíocre” (p. 37). Trata-se, segundo o autor, de uma outra natureza, sendo que o

ato da memória é levado por si próprio e que rememorar o passado satisfaz a inquietude

de uma mente que é ansiosa por recuperar o tempo perdido, fixando-o em um texto (a

autobiografia), escrito para a eternidade. A Autobiografia do homem “privado”, por assim

dizer, sustenta outro tipo de preocupação. Nas palavras do autor:

A aparição da autobiografia implica uma nova revolução espiritual: o

artista e o modelo coincidem, o historiador pega a si próprio como

objeto. Isso quer dizer que ele se considera um grande indivíduo, digno

da lembrança dos homens mesmo que, na realidade, ele seja um

intelectual mais ou menos obscuro. Aqui, entra em jogo uma nova área

social que inverte as classes e reajusta valores. Montaigne tinha certa

proeminência, mas era descendente de uma família de mercadores;

Rousseau, ninguém mais do que um cidadão comum de Genebra, era

uma espécie de aventureiro literário. Mesmo assim, ambos, apesar de

suas baixas escalas no “palco” do mundo, consideravam que seus

destinos eram dignos de serem transmitidos como exemplo. Nosso

interesse volta-se da história pública para a história privada: juntos aos

grandes homens que conduzem a história oficial da humanidade,

existem homens obscuros que conduzem a campanha de suas vidas

espirituais com o peito, travando batalhas silenciosas cujos meios e fins,

cujos triunfos e reveses, também merecem ser preservados na memória

universal. (GUSDORF, 1980: 31-32. Tradução Nossa.)

Existem, naturalmente, algumas distinções desta ideia se aplicada em relação aos

documentários. Se todos que podem segurar uma caneta e escrever uma frase podem

realizar autobiografia, como sugere James Olney (1980, p. 3), o mesmo fenômeno não

encontra correspondente no universo dos documentários autobiográficos. As grandes

personalidades do mundo público (políticos, artistas de destaque, líderes militares, líderes

religiosos ou figuras empresariais notáveis) não se utilizam do meio cinematográfico para

estabelecer relatos autobiográficos de suas carreiras e de suas vidas. Muitas destas figuras,

sim, têm suas vidas referenciadas e narrativizadas de maneira cinematográfica, porém não

sob a ótica da autobiografia. O trabalho biográfico em relação a estas figuras fica

geralmente incumbido à produção de terceiros e acontece tanto a partir de narrativas

documentárias (Senna [Asif Kapadia, 2010), George Harrison: Living in the Material

World [Martin Scorsese, 2011], Marley [Kevin MacDonald, 2012], e mais um sem-

número de exemplos) ou de relatos ficcionalizados, os docudramas (JFK [Oliver Stone,

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1991], Gandhi [Richard Attenborough, 1982], Lula, o Filho do Brasil [Fabio Barreto e

Marcelo Santiago, 2009] e tantos outros).

É possível, entretanto, vislumbrar uma situação análoga a esta, que seriam as

narrativas autobiográficas realizadas por indivíduos que, de alguma forma, são

personalidades dentro do universo cinematográfico. Tratam-se de diretores que detém

certo reconhecimento por suas carreiras, sendo que este reconhecimento nunca passa

incólume pela construção narrativa autobiográfica. Não são, evidentemente, figuras

anônimas. Tome-se como exemplo um filme como JLG por JLG - Auto-retrato de

Dezembro (JLG/JLG - autoportrait de décembre, Jean-Luc Godard, 1994), cuja narrativa

provê conhecimento acerca do ponto de vista de Godard dentro da história do cinema, ou

em relação ao próprio ato criativo. Parte significativa do objetivo do filme como todo

reside no fato de entrarmos em contato com a visão de Godard a respeito de algum aspecto

de sua própria vida. Nosso visionamento é guiado pela acepção de Godard como um dos

principais cineastas da segunda metade do século XX, sendo que a construção de

conhecimento do filme cairia por terra caso esta informação fosse negligenciada. Como

sustentamos em relação a Rita Lee, o próprio Godard intenciona realizar uma narrativa

autobiográfica sabendo que ele é Godard – conhecendo e analisando seu lugar no palco

do mundo e vislumbrando que o filme será recebido como tal. Algo semelhante pode ser

esperado dos filmes autobiográficos de Agnès Varda, como Os catadores e eu (2000) ou

As Praias de Agnes (2008). Ambos os filmes oferecem reflexões acerca do ofício da

cinematografia e partem da acepção de Varda como uma cineasta que, como Godard,

detém uma longa e prestigiosa carreira. Neste mesmo sentido pode-se pensar a relação

entre Klaus Kinski e Werner Herzog exposta em Meu Melhor Inimigo - Klaus Kinski

(Werner Herzog, 1999) ou a viagem de Wim Wenders ao Japão em Tokyo-Ga (Wim

Wenders, 1985). Seja para o cineasta anônimo ou para grandes auteurs, entretanto, a

autobiografia tem exercido um similar papel sedutor:

Mas [a autobiografia] é também (ou, pode ser e frequentemente tem

sido) a mais rarificada e autoconsciente das performances literárias (...)

Duvido que muitas pessoas afirmariam que autobiógrafos mais antigos

como Santo Agostinho, Montaigne ou Rousseau faltavam com

consciência literária e valor literário, mesmo que o atormentado e

hipermoderno self talvez não tenha existido na época deles. (...) a

autobiografia exerce algo como uma atração fatal para quase todos os

homens e mulheres que se chamam de “escritores”. O desafiador risco

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de escrever sobre suas próprias vidas direta ou indiretamente parece ter

um apelo irresistível para todos. (OLNEY, 1980, p. 4. Tradução nossa.)

A maior parte dos documentários autobiográficos encontra-se no universo do

cinema “muito independente” (LANE, 2002, p.8) e de diretores que podem ser

considerados antes “anônimos” do que personalidades públicas. O anonimato, neste caso,

refere-se mais a indivíduos instrumentalizados na técnica e na produção cinematográfica,

mas que cujas carreiras têm pouca projeção pública. Tratam-se de cineastas cuja

publicidade não vai muito além do círculo de relações onde estão inseridos

profissionalmente. Neste sentido, o documentário autobiográfico é um palco

frequentemente habitado por cineastas em início de carreira ou, ainda, profissionais de

longa data que não têm vasta produção de títulos ligados à sua autoria direta. Há também

uma série de documentários autobiográficos que foram realizados por pesquisadores e

professores de cinema (como Marco Williams, Tom Joslin, Robb Moss, Ross McElwee,

Alfred Guzzetti, Consuelo Lins, David Perlov, Ed Pincus3). Em geral, tratam-se de

cineastas cujas histórias e de cujas vidas sabemos muito pouco antes de assistirmos a seus

filmes – salvo, é claro, nas situações em que o espectador tem alguma relação com o

círculo profissional no qual o diretor está inserido. O autor Jim Lane aborda estas questões

e vê o cineasta-autobiógrafo como um indivíduo que não é uma figura pública e que,

através do relato de algum aspecto relativo à sua vida privada, produz História não-oficial:

Eles não são artistas com um corpo extenso de trabalho estabelecido

que pode engendrar grande reconhecimento ou um público numeroso.

O documentarista autobiógrafo é, mais frequentemente, um cineasta

trabalhando em anonimato, de maneira muito local e sob restrições de

baixo-orçamento. “Entramos” no filme com pouca preconcepção da

história do autor, uma situação correlata às autobiografias literárias não-

tradicionais, como as slave narratives, narrativas de captura, diários e

memórias. (LANE, 2002, p. 4. Tradução Nossa)

A reflexão de Lane em relação ao anonimato do cineasta e ao baixo-orçamento

empregado raramente foge à regra. É este tipo de relação, por exemplo, que aproxima

3 Marco Williams, professor de cinema na Tisch School of the Arts (NYU); Tom Joslin lecionou na University of Southern California; Robb Moss, Ross McElwee e Alfred Guzzetti lecionam no departamento VES da Universidade de Harvard; Consuelo Lins é docente da Escola de Comunicação da UFRJ; David Perlov foi professor universitário da Universidade de Tel-Aviv à época da feitura de seu diário fílmico; Ed Pincus foi professor do MIT Film Section e da Universidade de Harvard.

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filmes distintos metodologicamente e estilisticamente como o Diário (Yoman) de David

Perlov, realizado entre 1973 e 1983 a um filme como Silverlake Life (1993, Tom Joslin e

Peter Friedman) ou Tongues Untied (Marlon Riggs, 1989). Há em todos estes cineastas

uma noção de anonimato diante do grande “palco do mundo”, como observou Gusdorf.

Todos eles, longe de serem personalidades “públicas”, criaram narrativas documentárias

autobiográficas nas quais pode-se detectar a intenção de compartilhar aspectos de suas

vidas individuais, privadas. Ainda nesta mesma linha de pensamento, diversos cineastas

tornaram-se reconhecidos justamente a partir da realização de narrativas documentárias

autobiográficas. Ross McElwee, o objeto central desta pesquisa, é certamente um dos

exemplos mais representativos. O cineasta obbteve reconhecimento com Sherman’s

March e dedicou sua carreira posterior aos desdobramentos desta noção de autobiografia.

O mesmo se a aplica a Ed Pincus que, apesar de já ter realizado diversos filmes, é o diário

filmado Diaries (1971 - 1976) que promove certa projeção de sua carreira na história do

cinema documentário e que influencia uma série de jovens cineastas da região de

Cambridge. Alan Berliner e Jonathan Caouette são, também, outros cineastas que se

tornaram reconhecidos pela tematização recorrente de aspectos de suas individualidades.

Neste mesmo sentido, pode-se dizer que a busca de Kiko Goifman por sua mãe biológica

em 33 (2002) projeta mais consistentemente sua carreira como documentarista, recebendo

também atenção da grande mídia em relação ao caso. Os Dias com Ele (2013),

documentário autobiográfico dirigido por Maria Clara Escobar, até então desconhecida,

foi o primeiro longa-metragem realizado pela cineasta e fora recebido calorosamente pela

crítica e pelo circuito de festivais.

1.3. Estilo e intencionalidade em documentários autobiográficos

Diferentes recursos estilísticos podem ser empregados para a construção de

narrativas documentárias que lemos como autobiográficas. E, ao mesmo tempo, este

“conhecimento autobiográfico” que é produzido não depende, necessariamente, de

nenhuma ferramenta narrativa específica. Evidentemente, há alguns recursos narrativos

que foram de maneira dominante relacionados à ideia de autobiografia no cinema

documentário. Em especial, a narração em voz over a partir de um texto em primeira

pessoa, narrada pela voz do próprio cineasta, é um dos elementos mais recorrentes em

narrativas documentárias autobiográficas – talvez esta seja a principal ferramenta

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narrativa responsável pela popularização do termo “Filmes em primeira pessoa”,

frequentemente usado para a designação destas obras. A narração em over está presente

em documentários autobiográficos de cineastas como Agnès Varda, Alan Berliner, Nina

Davenport, Petra Costa, Kiko Goifman, Tony Buba e tantos outros. O recurso da voz over

em narrativas autobiográficas, por sua vez, pode ser construído de diferentes maneiras.

Jonas Mekas o faz a partir de um texto incantatório em um filme como Lost, Lost, Lost.

A voz over de Ross McElwee é um dos elementos pelos quais sua autoria é

frequentemente reconhecida, apresentada em textos rigorosamente construídos que

aparecem em todos os seus filmes a partir de Backyard (1984). Ao longo dos seis

capítulos do Diário, David Perlov utiliza-se da narração em primeira pessoa, entre outras

funções, como uma espécie de discurso indireto, por meio do qual reconstrói os diálogos

que ocorreram nas situações filmadas, como substituto à utilização do som direto

sincrônico. Nestes e em muitos outros casos, entretanto, a voz over pode ser relacionada

ao conhecimento produzido a partir da expertise do cineasta enquanto indivíduo – um

desenvolvimento intelectual analítico que se debruça sobre as imagens e que não traz em

si a possibilidade de identificação da circunstância espaço-temporal na qual foi escrita ou

gravada. A interação de um cineasta por detrás da câmera com as pessoas diante da lente

também é um elemento de autorreflexão frequentemente empregado em narrativas

documentárias autobiográficas. Filmes dos cineastas advindos da tradição de Cambridge

são exemplos desta abordagem, como é o caso de Ross McElwee, Nina Davenport (estes,

novamente), Ed Pincus, Marco Williams. Ou, ainda, colocar-se na frente da lente ou

filmar-se diante de um espelho é outro tipo de ferramenta estilística utilizada por

cineastas-autobiógrafos como via de processo autorreflexivo.

Como frisado, o conhecimento produzido por documentários que lemos ou

recebemos como autobiográfico independe – necessariamente – destas ou de outras

ferramentas narrativas: não é preciso que escutemos a voz de um cineasta, seja por detrás

da câmera ou através de uma narração em over, ou mesmo que ele nos torne visível seu

corpo ou rosto. Um exemplo interessante neste sentido é o documentário The Alcohol

Years (Carol Morley, 2000). No filme, a cineasta Carol Morley toma depoimentos de

diversas pessoas que faziam parte de sua vida pessoal na cidade de Manchester durante a

maior parte da década de 1980. Tendo deixado a cidade e retornando depois de muitos

anos, Morley tem o interesse de rememorar (ou descobrir) um período de sua vida

marcado pelo consumo excessivo de álcool e por sua frequência no circuito de casas

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noturnas underground de Manchester. Através destes depoimentos, entramos em contato

com detalhes do comportamento social da cineasta durante o período. Passamos a saber

os pormenores de situações causadas pelo abuso do álcool ou, ainda, conhecemos detalhes

da vida sexual de Morley naquela circunstância. Dado o tom dos depoimentos das pessoas

que compartilharam aquele momento com a cineasta, torna-se claro que a presença de

Morley nas situações em questão poderia não ser algo tão prazeiroso. Se o período

marcado por este comportamento poderia ser encarado como vexatório para muitas

pessoas, ou como algo que preferivelmente pudesse ser “deixado no passado”, o caso de

The Alcohol Years acaba por fazer o contrário, resgatando uma história de juventude já

esquecida. Enquanto “descobre a respeito de si”, Morley pouco “advoga” pela própria

história: os depoimentos são tomados com uma câmera fixa (não há, nestes momentos,

uma relação corporal da diretora com a câmera que é evidenciada), não escutamos sua

voz em nenhum momento, tampouco a vemos diante da lente como parte do

conhecimento autobiográfico produzido pelo filme. É apenas a partir do depoimento de

seus amigos, construídos sobretudo em um discurso em segunda pessoa (dirigido

diretamente à cineasta, que imaginamos estar atrás da câmera), que se traça um panorama

da personalidade de Morley durante o período.

Figura 1: Recorte de jornal que abre a narrativa de The Alcohol Years (Carol Morley, 2000)

É evidente que um filme como The Alcohol Years depende de uma postura ativa

da parte da cineasta-autobiógrafa de, fundamentalmente, “querer” – de intencionar que a

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narrativa cinematográfica que está dirigindo produza conhecimento a respeito de sua

própria vida. Em outras palavras, mesmo que Carol Morley abstenha-se de lançar mão de

elementos narrativos que façam o aspecto autobiográfico tomar forma a partir de uma

expertise analítica ativada por um discurso direto (como no caso de uma voz over) ou da

transposição “palpável” de sua consciência no momento da tomada (como se Morley

respondesse com sua voz, ou realizasse movimentos de câmera vigorosos diante do

depoimento de seus amigos), existe o desejo fundamental de criar uma narrativa fílmica

a partir de um universo temático que aponte para si própria. No caso de The Alcohol

Years, é evidente que existe uma intenção autobiográfica que é “pessoalizada” pela

cineasta desde o desejo de filmar pessoas que falem de seu passado, pela construção do

argumento via montagem, pelos trechos de imagens de cobertura que dramatizam os

episódios narrados pelos depoimentos, entre outros elementos. Em outras palavras, aquilo

que chamamos de “filme” só existe a partir do trabalho de indivíduos pensantes – neste

caso, fundamentalmente, a própria cineasta – em uma articulação cinematográfica. O

filme de Morley, entretanto, evidencia a existência de alternativas estilísticas para a

construção de um discurso autobiográfico a partir de ferramentas menos comuns neste

domínio de filmes.

Outro caso interessante na mesma linha de raciocínio é o documentário

autobiográfico polonês Such a good by I gave birth to (Takiego pieknego syna urodzilam),

dirigido por Marcin Koszałka4 e lançado em 2000. O curta-metragem de vinte e cinco

minutos foi o debut de Koszałka como diretor, quando ainda era estudante de cinema na

cidade de Katowice. No filme, Koszałka nos coloca na “privilegiada” posição, enquanto

espectadores, de experienciar um pouco de seu cotidiano na casa em que mora com seus

pais. Durante quase meia-hora, testemunhamos a situação caótica que o cineasta parecia

vivenciar diariamente. Assistimos quase que ininterruptamente a uma avalanche de

xingamentos, gritaria, discussões e criticismo que a família do diretor tem para consigo.

Diante da câmera de Koszałka, seus pais criticam os aspectos da vida do filho, questionam

seu comprometimento como estudante, a serventia da carreira que escolheu para si

próprio, a qualidade daquilo que é ensinado na faculdade onde estuda (afinal, qual seria

4 Such a good by I gave birth to obteve reconhecimento significativo na Polônia, tendo ganhado também

alguns prêmios em festivais europeus. Koszałka realizou dois outros filmes que se apresentam como

“continuações” de seu documentário autobiográfico, em que assistimos ao desenvolvimento da vida

individual do diretor e a relação com sua família. São eles It will be alright (Jakos to bedzie, 2004) e All

day together (Caly dziem razem, 2006).

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a serventia de fazer um filme dentro da própria casa, senão a de desperdiçar tempo e

dinheiro?), bem como maldizem as saídas noturnas do diretor, sua vida social e sua falta

de recursos materiais. A narrativa de Koszałka nos apresenta seu ambiente doméstico

como um cenário praticamente “mais estranho que a ficção”, onde parece existir uma

histeria coletiva de tons hiperbólicos e absurdos. O aspecto mais interessante de Such a

good by I gave birth to para esta discussão reside no fato de que há a impressão de que

Koszałka “não precisa fazer nada” para expor a bizarra situação em que vive: não há

necessidade de nenhum tipo de manifestação sua, de provocação com a câmera, de algum

tipo de construção argumentativa em voz over, de algum diálogo. Como efetivamente

acontece em diversas das sequencias do filme, apenas ligar a câmera e sentar-se no sofá

parece suficiente para que a transposição da experiência cotidiana de Koszałka para o

filme aconteça. Em determinadas situações, portanto, como o filme de Koszałka mostra,

sua intenção autobiográfica é cumprida a partir da crença na possibilidade da câmera em

frisar determinadas circunstâncias espaço-temporais – uma maneira do registro

referenciar-se ao mundo material e à vida do diretor que é suficiente para saciar sua visão

artística-narrativa autobiográfica.

Figura 2: O diretor Marcin Koszałka sendo sabatinado por sua mãe, em Such a Nice Boy I gave

Birth to (1999)

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A partir destes exemplos citados, podemos resgatar novamente a noção de “baixo-

orçamento” sobre a qual escreveu Jim Lane. A sugestão do autor, mais do que se referir

à noção tradicional de orçamento de produções cinematográficas, aponta para uma

proximidade do cineasta com os meios de feitura de seu próprio filme. A maioria dos

documentários autobiográficos contam com equipes pequenas (muitos cineastas, como o

próprio Koszałka ou Ross McElwee, trabalham majoritariamente solo em suas

produções) e com uma participação efetiva do diretor em uma ou muitas das funções

dentro do processo de realização dos filmes: fotografia, operação de câmera, captação de

som direto, narração (tanto a concepção do texto quanto a performance de sua gravação),

montagem e produção. Há uma noção de simplicidade e de “faça você mesmo” que

circunda as narrativas documentárias autobiográficas, de maneiras mais ou menos

acentuadas.

Tome-se como exemplo um filme como o brasileiro Os Dias com Ele (Maria Clara

Escobar, 2013), construído a partir de certa opacidade dos meios de produção e por

condições de filmagem modestas. O filme retrata o período de convívio entre a cineasta

e seu pai, Carlos Henrique Escobar, filósofo, professor e militante do partido comunista

brasileiro, exercendo intensa atividade durante a ditadura militar. O pai da cineasta

mudou-se para Portugal após sua aposentadoria e passou a viver isoladamente em

anonimato, ainda durante a pré-adolescência da diretora. O filme sugere a relação ausente

do pai para com a filha/cineasta, apontando, por exemplo, que a comunicação entre ambos

acontecia de maneira epistolar. A narrativa toca aspectos de um conhecimento “público”,

quando o pai de Maria Clara Escobar narra trechos de sua história como militante,

incluindo em seu depoimento os episódios de prisão e tortura pelos quais passou. Por

outro lado, o eixo temático de Os Dias com Ele também traz conhecimento acerca da

relação delicada entre pai e filha, mediada pela câmera e pela intenção da cineasta de

realizar o filme. Parte significativa da construção narrativa do filme alicerça-se na

utilização dos momentos normalmente encarados como o “resto” do material bruto,

trechos de material primeiramente separados para que seja descartado na montagem, “as

bordas”. Neste material incluem-se diversos intercâmbios entre a cineasta e seu pai, como

longas discussões sobre o projeto do filme que Maria Clara Escobar estaria efetivamente

querendo construir. A potencialidade autobiográfica de Os Dias com Ele reside no tête-

à-tête entre a filha e o pai, que transpira nuances de uma relação pautada na ausência e na

falta de convívio de ambos.

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O visionamento de Os Dias com Ele sugere, na própria narrativa, que o trabalho

de captação de imagem é realizado pela própria cineasta. Há no filme o diálogo de Maria

Clara Escobar, sozinha, frente-a-frente com o pai, como matéria-prima narrativa, bem

como existe a incorporação da dúvida e de aspectos do processo de feitura do filme como

elementos estilísticos. Como em tantos outros documentários autobiográficos, Os Dias

com Ele pode suscitar uma sensação – provavelmente mais ilusória do que efetivamente

concreta – de que qualquer indivíduo com um aparato de filmagem poderia eventualmente

aventurar-se no desenvolvimento de uma narrativa autobiográfica a respeito de

determinado aspecto de sua vida individual que julga ser pertinente ou interessante

cristalizar em linguagem cinematográfica. “Simplicidade” ou “baixo-orçamento”,

entretanto, também não é uma regra fixa dos documentários autobiográficos e é neste

sentido que podemos pensar em Elena (2012), também brasileiro, dirigido por Petra

Costa, como um contraponto a esta ideia. As condições de produção de um filme como

Elena acarretam algumas reflexões acerca do conhecimento autobiográfico produzido por

sua narrativa.

Elena nos conta a história da irmã de Petra Costa, a atriz Elena Andrade, que se

suicidou em Nova Iorque no ano de 1990, quando a diretora tinha apenas sete anos. Com

evidentes inclinações artísticas, Elena decidiu estudar dança e teatro ainda adolescente.

Morou em São Paulo, onde integrou o grupo de teatro Boi Voador na década de 1980, e

rumou a Nova Iorque para iniciar os estudos universitários. Segundo o filme nos conta,

os planos artísticos e profissionais de Elena nos Estados Unidos não teriam dado tão certo,

sendo que a atriz teria em seguida voltado ao Brasil com sinais de depressão. Certo tempo

depois, Elena retorna aos EUA, desta vez acompanhada de sua mãe e de sua irmã, Petra,

cuja formação escolar deu-se também em solo americano. É neste momento da vida que

a atriz ingere um coquetel fatal de aspirinas, álcool e medicamentos psicotrópicos,

deixando uma carta de suicídio. Petra, depois de crescida, decide rumar os mesmos passos

da irmã em uma carreira de atriz. O filme constitui-se narrativamente como uma “carta”

endereçada à irmã, na qual a diretora medita acerca de momentos em que viveram juntas

e sobre o período pós-morte, analisando a constante presença de Elena em sua carreira,

em sua memória e na dor que carrega consigo.

Elena obteve significativo frisson da parte do público e da crítica, apresentando-

se como um filme detalhadamente construído, em que há pouco espaço para improvisos

de qualquer sorte. O documentário conta com uma numerosa equipe, muito maior do que

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costumeiramente vê-se em outros documentários autobiográficos. São mais de trinta

pessoas que trabalharam ativamente no filme, em funções como as de roteiro, direção de

fotografia, direção de arte, preparação de elenco, som direto, edição e mixagem de som

(sound design), pesquisa de material de arquivo e composição de trilha sonora original.

Todo este trabalho transparece no filme. É evidente o rigoroso planejamento de cada um

destes elementos que compõe sua narrativa, resultando em uma qualidade técnica

impecável pela qual o filme foi elogiado. Aliado a este coordenado trabalho de produção

– que por si só requer muito tempo e dinheiro – o filme contou com um planejamento de

divulgação significativo (de vídeos virais no YouTube a propagandas em salas de cinema)

que também contribuiu para sua popularização.

A utilização de recursos estilísticos diversos e bem trabalhados no filme não fere,

por si só, o estatuto autobiográfico que reside em Elena. Pode-se entender sua narrativa

como a “busca” da diretora em tentar expressar a nós, espectadores, o que permanece da

irmã em sua memória e como as duas ainda estão ligadas intimamente, mesmo com o fato

de que Petra era ainda uma criança quando Elena se suicidou. Entramos em contato com

a estrutura familiar da diretora, sabemos as cidades onde morou, a profissão de seus pais,

sua classe social, as consequências do suicídio da irmã em sua vida e na de sua mãe, entre

outros elementos que apontam diretamente para a vida individual de Petra Costa. Para

além disso, o filme une o particular ao universal ao tematizar o aspecto da escolha do

“caminho das artes”, neste caso principalmente ligado ao universo das artes cênicas e do

espetáculo, como também naquilo que tange ao universo do feminino dentro deste

ambiente.

Por outro lado, a utilização de uma grande equipe responsável pelos mínimos

detalhes do filme é, de fato, um aspecto incomum se considerarmos pragmaticamente um

corpus mais extenso de documentários autobiográficos. Como frisado, a maioria deles é

realizada a partir de equipes bastante enxutas e uma parte significativa deles conta com

apenas o próprio cineasta como responsável pelo núcleo duro da produção da narrativa.

É possível sugerir que esta característica esteja ligada ao fato de que o contato com

narrativas autobiográficas, de diferentes suportes, pressupõe um constante exercício de

conexão entre seu autor e o lugar da produção do discurso. Em outras palavras, um filme

como Elena, cuja construção narrativa e roteirização é tão diluída em outras forças

pensantes (outros indivíduos), pode de alguma forma nos afastar do estabelecimento de

um elo com a diretora, distanciando-nos de sua subjetividade individual e do contrato de

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intimidade entre cineasta e espectador que é determinante em vários outros

documentários autobiográficos. Por este motivo, as divagações e fabulações narradas por

Petra Costa a respeito de sua infância, em alguns momentos, podem gerar relativa

desconfiança da parte do espectador, que coloca o discurso autobiográfico da diretora sob

suspeita. Seriam estes sentimentos e lembranças a respeito de sua vida algo que a diretora

decidiu, em sua solidão, “de peito aberto”, compartilhar com nós, os espectadores? Até

onde teriam sido adaptados para servir à proposta estética e narrativa de Elena? Não se

trata, evidentemente, de abstrair o fato de que existe construção em qualquer obra

autobiográfica – da mais naturalista à mais fabulativa –, porém, muitos dos filmes

parecem apostar em um elo mais firme entre espectador e cineasta do que faz Elena.

Ao optar por uma equipe mais numerosa e por um esquema de produção mais

ambicioso em prol de um acabamento estético acentuado em diversas áreas do filme,

pode-se pensar que Petra Costa sacrifica, assim, parte de sua aproximação ao espectador.

O filme impressiona por sua beleza formal e pela construção narrativa cuidadosamente

pensada, mas a tradicional “autoridade” da linguagem cinematográfica, asséptica e

dificilmente reproduzível, está presente. Em outras palavras, parece mais difícil um

espectador considerar que poderia realizar um filme como Elena com poucos recursos ou

sem um esquema de produção cinematográfico tradicional amparando-o. Muitos

documentários autobiográficos, entretanto, fazem da possível subversão desta ordem um

aspecto que traz particularidade ao fenômeno.

Jim Lane sugere a proximidade que costuma existir entre o espectador e o diretor

de documentários autobiográficos no processo de feitura do filme. O documentário

autobiográfico pode inspirar uma noção de simplificação e clareamento do aparato da

produção cinematográfica que suscita ao espectador a ideia de que ele próprio poderia

cristalizar sua vida em filme:

Fazer filmes e vídeos torna-se uma parte de um mundo imaginável

para o espectador. Da mesma maneira que os leitores leem uma

autobiografia escrita com a sensação de que eles poderiam escrever

suas próprias histórias de vida, os espectadores de um documentário

autobiográfico assistem ao filme ou vídeo com uma sensação de que

poderiam filmar a própria vida. (...) Ao complicar uma reivindicação

referencial, a reflexividade no documentário autobiográfico serve

tanto para revelar o “fazer cinema” como um processo menos

intimidante para o espectador, quanto para mostrar que o cinema é

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parte do mundo real do sujeito autobiográfico. (LANE, 2002, p. 18.

Tradução Nossa).

De fato, esta proposição de Lane parece efetivamente verídica no caso da obra de

cineastas-autobiógrafos como Ross McElwee, Tom Joslin, Marcin Koszałka, Alfred

Guzzetti, Nina Davenport, Maria Clara Escobar, Jonas Mekas, entre tantos outros

exemplos. Diversos dos filmes destes cineastas inspiram, de maneira ou outra, que a

possibilidade autobiográfica não se apresenta tão distante, técnica e metodologicamente,

de “pegar a câmera e filmar”. De maneira análoga à sugestão de James Olney – “aqueles

que podem escrever uma frase podem fazer autobiografia” –, é possível fazer coro à de

Lane, quando aponta que diversos documentários autobiográficos podem sugerir o “fazer

cinema” como um processo menos intimidante ou inatingível para o espectador comum.

Ainda neste mesmo raciocínio, sugere-se também que o elo entre cineasta e espectador

parece fortalecer-se nas narrativas em que a figura do cineasta transparece como sendo

responsável por parte significativa da produção do discurso – produção, filmagem,

finalização, narração.

Porém, cabe o questionamento: um filme como o de Marcin Koszałka – um dos

casos em que a situação no qual o cineasta está inserido parece “falar por si só” dentro da

narrativa – seria, de alguma forma, mais autobiográfico que a construção narrativa de

Petra Costa e sua extensa equipe para a feitura de Elena? Isto parece, no limite,

indecidível. Como frisado por diversas vezes ao longo do texto, autobiografia nos

documentários existe de diversas formas, incluindo-se aí o trabalho narrativo de um filme

como Elena, pulverizado em um sistema de produção e de equipe menos modesto. É

possível vislumbrar que Petra Costa decidiu narrar a história de sua irmã (e de si própria)

a partir de uma construção narrativa que dependia, enfim, de um rigor de produção mais

enfatizado. Em outras palavras, a visão artística da diretora para com a narrativa de Elena

talvez dependesse de situações mais controladas, com menos abertura para a

indeterminação e com um trabalho de equipe profissional que, caso ausente, poderia não

atingir o resultado estético e plástico do filme. Por conseguinte, a ausência deste rigor

poderia deixar de oferecer o apelo emocional da narrativa, ou não entregar suas metáforas

de maneira satisfatória. Alguns paralelos com a literatura: a autobiografia de Malcolm X

(1965) não deixa de estar integrada à bibliografia autobiográfica fundamental americana,

mesmo tendo sido realizada em colaboração com Alex Haley; em outro espectro, são

inúmeros os casos de publicações autobiográficas – comumente no caso de celebridades

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– que contam com a colaboração, em maior ou menor escala, de ghost writers. O caso de

Elena, sendo assim, contribui para meditação acerca destas questões e do fenômeno dos

documentários autobiográficos como todo, quando coloca sob questionamento as

potencialidades e os limites da possibilidade de transposição da experiência individual do

cineasta-autobiógrafo para a narrativa. De qualquer maneira, o próprio fato destas

questões virem à tona no caso da estrutura narrativa de um filme como Elena sugere que

os procedimentos metodológicos empregados por um diretor parecem interferir

dominantemente no adensamento ou relaxamento do laço entre cineasta e espectador que

rege a experiência de visionamento dos documentários autobiográficos.

1.4. Autobiografia e filmografias nacionais – um paralelo com o caso estadunidense

É possível mencionar, como fizemos até aqui, o caso de documentários

autobiográficos que receberam notoriedade pelo público cinéfilo e pelo circuito de

festivais e mostras. Muitos destes filmes se tornaram alvo de análises acadêmicas e foram

referenciados por autores dedicados ao tema. Da mesma forma, pudemos ressaltar o nome

de determinados cineastas como alguns dos principais representantes que trabalharam

com esta caraterística – Ross McElwee, Alan Berliner, Chantal Akerman ou Agnès Varda.

Apesar disto, deve-se apontar que a quantidade de documentários autobiográficos

lançados nos últimos cinquenta anos é grande o suficiente para que uma apresentação em

totalidade destes filmes não seja um trabalho simples. A exposição destes títulos pode ser

possível a partir do recorte de filmografias nacionais. Como exemplo, o autor Efrén

Cuevas o fez em relação ao documentário autobiográfico espanhol, em artigo de 2012

(CUEVAS, 2012), assim como o autor Pablo Piedras também buscou fazer em relação à

filmografia documentária autobiográfica argentina (PIEDRAS, 2014). No que concerne

ambas as filmografias, entretanto, a profusão de filmes que podem ser inseridos no

domínio do documentário autobiográfico é um fenômeno não tão antigo, tendo ocorrido

mais propriamente a partir da virada do milênio. É o caso também de outros países da

América Latina, incluindo-se aí o Brasil, que apenas após a década de 2000 vivenciaram

a popularização deste tipo de filme.

Na filmografia brasileira há algumas incidências particulares anteriores que

podem ser citadas. Pode-se mencionar o caso de David Perlov, que entre 1973 e 1983

realiza seu diário filmado, Yoman, dividido em seis capítulos e realizado para a televisão

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britânica. É difícil, entretanto, sugerir que Yoman seja um projeto totalmente ou apenas

integrado à filmografia brasileira. Embora nascido no Brasil, Perlov muda-se para Israel

ainda jovem e naturaliza-se no país, onde desenvolve praticamente toda sua carreira

cinematográfica. Outra experiência predecessora da noção de autobiografia no

documentário brasileiro é realizada na década de 1980, com o filme Sagrada Família

(Everaldo Vasconcelos, 1981), resultante do intercâmbio entre o Atelier Varan de Paris,

idealizado por Jean Rouch, e a Universidade Federal da Paraíba, em 1981. No filme,

realizado em super-8 e em com influência do estilo direto, Everaldo Vasconcelos tematiza

sua própria intimidade do cotidiano da casa onde mora, proporcionando uma “imersão

dolorosa no seu universo familiar” (LIRA, 2016). Outro destes casos é o de Seams,

dirigido por Karim Aïnouz quando o diretor ainda era radicado nos EUA, e lançado em

1993. Narrado em inglês, Aïnouz narra aspectos de sua juventude, através de entrevistas

com sua avó e suas tias-avós, expondo a amargura de um machismo endêmico vivenciado

na região.

É apenas na década seguinte que alguns lançamentos colocaram efetivamente em

vigor o debate, fomentado tanto pela crítica quanto pela academia, acerca dos

documentários autobiográficos no Brasil. Podem-se destacar os filmes Um Passaporte

Húngaro (Sandra Kogut, 2001) e 33 (Kiko Goifman, 2002), como os dois principais

responsáveis pelo início da popularização da tematização autobiográfica como

possibilidade narrativa na filmografia brasileira. Em Um Passaporte Húngaro, Kogut,

neta de imigrantes europeus, filma sua trajetória em busca da possibilidade de obter um

passaporte de cidadania húngara. Sua jornada traz à luz os meandros burocráticos que

envolvem este tipo de empreitada, tanto no Brasil quanto na Europa, bem como dialoga

com uma História pública ao tematizar nuances da imigração europeia para o solo

brasileiro, nas primeiras décadas do século XX. Já em 33, Kiko Goifman engaja uma

busca pelo paradeiro de sua mãe biológica à ocasião do seu aniversário de trinta e três

anos. Sua empreitada, que deveria ser completada (ou abandonada) em trinta e três dias,

envolveu conversas com detetives, diálogos com sua família e outras pessoas que

poderiam ter alguma relação com o episódio de sua adoção. Com aspectos de thriller noir,

a narrativa de Goifman é realizada a partir de uma fotografia em preto-e-branco, trilha

sonora não-diegética e uma narração em voz over bem pontuada textualmente, escrita na

primeira pessoa.

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O autor Jean-Claude Bernardet realiza uma análise a partir destes dois filmes na

ocasião da IV Conferência do Festival É Tudo Verdade, em abril de 2004, denominando-

os como “Documentários de Busca” (BERNARDET, 2005) – um texto que retomaremos

adiante neste estudo –, ressaltando características dos filmes que efetivamente soavam

como novidades na filmografia brasileira de então. É possível sugerir que o adensamento

do debate acadêmico ou especializado em relação às possibilidades de autobiografia no

cinema documentário brasileiro fomentou também um interesse maior pela realização de

filmes que se enquadravam nesta categoria. Da mesma maneira, pode-se enfatizar a

importância de Santiago (João Moreira Salles, 2007), lançado alguns anos depois, para a

profusão deste mesmo interesse. A meditação de Salles, que parte de sua relação com o

mordomo Santiago e amplifica-se em outros temas, realiza-se a partir da incorporação de

um material estilístico diverso – entre eles, trechos de material bruto, material de arquivo

e um texto em voz over narrado em primeira pessoa. Santiago adquiriu um papel de “novo

clássico” da filmografia brasileira pela influência que exerceu no desenvolvimento de

outras experiências afins. Para além destes, a produção documentária autobiográfica

brasileira consiste em filmes – alguns já citados – dos quais podemos destacar: O Chapéu

do meu Avô (Julia Zakia, 2004), Ariel (Mauro Baptista Vedia e Claudia Jaguaribe, 2006),

Person (Marina Person, 2006), Querida Mãe (Patricia Cornils, 2009), Canoa Quebrada

(Guile Martins, 2009), Babás (Consuelo Lins, 2010), Diário de Uma Busca (Flavia

Castro, 2010), Vó Maria (Tomás Van der Osten, 2011), Oma (Michael Wahrmann, 2011),

O Espelho de Ana (Jessica Candal, 2011), Elena (Petra Costa, 2012), Otto (Cao

Guimarães, 2012), Os Dias com Ele (Maria Clara Escobar, 2013), Vida (Tatiana Villela,

2013), Mataram meu Irmão (Cristiano Burlan, 2013), Retrato de Dora (Bruna Callegari,

2014) e O Futebol (Sergio Oksman, 2015).

Se a produção de documentários autobiográficos se intensificou no Brasil a partir

da segunda metade da década de 2000, outros países contaram com o ápice desta

característica algum tempo antes. O caso mais notável, certamente, é o dos Estados

Unidos, cuja filmografia detém uma relação muito próxima com o desenvolvimento da

própria noção de documentário autobiográfico. Apresentaremos algumas particularidades

do caso estadunidense como via de amplição da reflexão sobre o tema. Na década de 1990

as narrativas documentárias autobiográficas já haviam se tornado uma possibilidade

vigorosa e dominavam o universo do documentarismo independente e da televisão dos

EUA. Na edição de 1997 do festival de Sundance – palco tradicional de filmes

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documentários em caráter de inovação criativa –, a categoria de documentários pessoais

ou autobiográficos compôs a maior parte dos filmes inscritos para avaliação e curadoria

(AUFDERHEIDE, 1997). Fenômeno semelhante ocorreu no programa de televisão

P.O.V. (Point of View), veiculado na emissora pública PBS, que se dedica desde 1988 à

exibição de documentários realizados independentemente. Desde sua criação, o P.O.V.

foi responsável por levar à sala de estar da “família americana” diversos títulos

contundentes da filmografia documentária autobiográfica do país. É o caso dos filmes de

Ross McElwee (Time Indefinite foi veiculado em 1994, Bright Leaves em 2004), Alan

Berliner (Intimate Stranger em 1992, Nobody’s Business em 1997, The Sweetest Sound

em 2001), Marlon Riggs (Tongues Untied em 1991) ou a experiência-limite de Silverlake

Life: The View From Here, de Tom Joslin e Peter Friedman (veiclulado em 1993). A

autora Patricia Aufderheide também menciona (1997) o caso do serviço audiovisual

baseado em São Francisco, o ITVS (Independent Television Service). Na década de 1990,

o serviço contou com um aumento significativo do número de propostas de produção de

documentários autobiográficos por cineastas independentes. No ano de 1993 o “gênero”

correspondia à maior categoria destas propostas, totalizando um sexto dos projetos. Outro

exemplo da proliferação quantitativa dos documentários autobiográficos pode ser

extraído do corpus filmográfico da autora Alisa Lebow (LEBOW, 2008, p. 195-197), na

publicação “First Person Jewish”, lançada em 2008. Lebow realizou um levantamento de

cento e dezoito documentários autobiográficos dirigidos por cineastas judeus apenas –

sendo que a grande maioria (por volta de 70%) foi produzida nos EUA, seguidos de longe

pelo Canadá e pelo Reino Unido, e isto há quase dez anos.

Na introdução da publicação “The Autobiographical Documentary in America”,

o autor Jim Lane (LANE, 2002, p. 10) narra a anedota de que em 1982 mostrou um de

seus documentários autobiográficos ao cineasta francês Jean Rouch. O primeiro

comentário do cineasta em relação ao filme de Lane foi o de que “este filme só poderia

ter sido feito por um americano”. De fato, o comentário de Rouch, que impulsionou o

questionamento de Lane em sua pesquisa posterior, levanta algumas reflexões que

concernem a relação entre os Estados Unidos enquanto país, a sociedade americana e a

noção de autobiografia. De maneira geral, a construção narrativa “a respeito de si” sempre

esteve evidenciada na produção cultural e artística do país. É possível lançar algumas

hipóteses acerca do fato de que a produção de documentários autobiográficos dos EUA,

como exposto anteriormente, parece ter tomado proporções maiores do que em outros

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países. Como apontou Lane, os documentários autobiográficos permearam a filmografia

estadunidense no mundo do cinema “muito independente”. Este fenômeno foi iniciado já

iniciado já no final da década de 1960 e na década de 1970. Posteriormente, o advento da

popularização do vídeo potencializou a possibilidade de construção narrativa

autobiográfica, culminando em um sem-número de títulos que inundou mostras e festivais

– como exemplificado pelos casos das televisões independentes americanas ou festivais

como os de Sundance.

A construção narrativa autobiográfica neste universo do cinema “muito

independente” está ligada à exploração do doméstico, do corriqueiro, do “banal”, de uma

maneira que aponta para outros aspectos culturais dos Estados Unidos da segunda metade

do século XX. Talvez o comentário de Rouch para Jim Lane – a respeito de tratar-se de

um documentário que poderia ser feito “apenas por um americano” – tenha relação com

a exposição de privacidade e intimidade que o filme de Lane aborda. De fato, em Long

Time no See, o filme sobre o qual Rouch comenta, Lane constrói um relato acerca de

eventos do último ano de sua graduação na Universidade de Harvard. Em especial, Lane

enfatiza o aspecto de desorientação, ou fracasso, que assola sua vida enquanto estudante

universitário prestes a se formar. Em um dos eventos, Lane filma a interação com um

professor, na qual conversam sobre os motivos pelos quais o aluno-cineasta foi reprovado

em uma disciplina. Em outros momentos, assistimos ao diretor em seu alojamento da

universidade, conversando via telefone com uma ex-namorada que parece não

corresponder ao seu afeto – algo que também se replica em um date com outra garota,

filmado pelo diretor e exibido final da narrativa.

A autobiografia como possibilidade de produção de conhecimento através da

linguagem – seja ela literária ou cinematográfica – parece ter uma relação particular com

os Estados Unidos enquanto país, desde antes de sua fundação. Como aborda o autor

Robert F. Sayre em relação à literatura (SAYRE, 1980, p. 147), é possível dizer que são

poucos os textos de escritores estadunidenses reconhecidos como divisores de água na

teoria crítica da autobiografia. Santo Agostinho, Santa Teresa D’Avila, Montaigne, Jean-

Jacques Rousseau, John Stuart Mill, Goethe, John Henry Newman, ou mesmo Michel

Leiris ou Jean-Paul Sartre – se chegarmos ao século XX – são exemplos de escritores

não-americanos reconhecidos pelo trabalho inovador na linha histórica da escrita

autobiográfica. Em outras palavras, é possível dizer que o imaginário que permeia a haute

literature da teoria crítica da autobiografia não passa, pelo menos em primeiro momento,

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pela obra de escritores estadunidenses. Por outro lado, talvez mais do que qualquer outra

nação, a cultura estadunidense foi permeada por narrativas autobiográficas, em um

movimento que vai desde a independência e persiste até os dias atuais, nas mais diferentes

maneiras e suportes. Sayre sintetiza esta ideia:

A autobiografia nos Estados Unidos é, de alguma forma, tanto parte do

nosso vocabulário diário quanto de nossas heranças mais longínquas,

datando dos diários Puritanos e das narrativas de viagem dos séculos

XVII e XVIII; as narrativas indígenas de captura e as “biografias” e

“autobiografias” de chefes indígenas notáveis, as incontáveis estórias

de homens de negócio e celebridades, as estórias de protesto de ex-

escravos e vítimas, os contos de pioneirismo e “americanização” de

imigrantes, as desculpas enganosas de malandros e trapaceiros

(scoundrels and rogues), as totalmente artificiais “confissões

verdadeiras” em revistas de romance e pornografia, os yearbooks do

ensino-médio, álbuns de fotografia, currículos vitae e Who’s Who.

Autobiografia nos Estados Unidos não é apenas um gênero com origens

significativas e distintas obras clássicas; é também uma indústria, uma

mercadoria às vezes feita artesanalmente e às vezes por produção em

massa; como ternos de três peças, velhas mansões familiares e

caminhonetes pick-up. E como as roupas, os carros e as casas, ela (a

autobiografia) também é uma necessidade, ou quase uma necessidade,

que temos de ter - tanto por trabalho quanto por diversão - para que

digamos quem somos e por onde estivemos. (SAYRE, 1980, p. 147-

148. Tradução nossa).

Ilustrando as proposições de Sayre, é possível começar mencionando que a

experiência da escrita da própria declaração da independência dos Estados Unidos

aparece como passagem da narrativa autobiográfica de Thomas Jefferson. Diversos

outros textos autobiográficos fazem parte do corpus bibliográfico clássico estadunidense

– incoporado, por exemplo, à formação escolar. É o caso da autobiografia de outro dos

Founding Fathers, Benjamin Franklin, publicada ainda em 1791. Ou, também, o caso do

relato autobiográfico de Henry David Thoreau “Walden, ou a vida nos bosques”

(publicado em 1854) e a narrativa de Henry Adams em “A educação de Henry Adams”,

publicado em 1919 – ambos frequentemente apontados como os principais livros de não-

ficção da história dos Estados Unidos. Sublinhar este aspecto parece um importante

subsídio para sustentar a hipótese de que a própria noção de autobiografia está atrelada a

uma particularidade da produção de cultura estadunidense – ainda antes de outras

implicações tecnológicas que levaram a esta abordagem no cinema. Ao realizar uma

autoanálise e estabelecer uma comparação, é possível lançar a ideia de que o contato com

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narrativas autobiográficas não atravessa a formação escolar no Brasil desta mesma

maneira. Este contato talvez seja mais claro a partir da poesia sob uma ótica

autobiográfica – como por exemplo, a obra de Manuel Bandeira, também incorporada ao

curriculum escolar e peça obrigatória em exames de vestibular. Vale frisar que,

evidentemente, existe autobiografia no Brasil. Esta produção é bem exemplificada pela

obra de escritores com propósitos distintos, como Pedro Nava, provavelmente o maior

memorialista da literatura brasileira (“Baú de Ossos” foi lançado em 1972, seguido de

outros seis títulos), ou Carolina Maria de Jesus, com “Quarto de Despejo” (1960); ou, em

outro escopo, pode-se mencionar um sem-número de autobiografias de celebridades que

inundam estantes de livrarias em tempos atuais. Porém pode-se questionar se uma obra

como a “Minha Formação” (1900) de Joaquim Nabuco é absorvida pela nossa cultura e

pela nossa formação da mesma forma que a “Educação de Henry Adams” o é, neste

mesmo sentido, nos EUA. A resposta parece ser negativa. Da mesma maneira, não

entramos em contato com a história de personalidades da história brasileira, como Getúlio

Vargas ou Carlos Marighella, a partir de relatos de próprio punho (mas, sim, em biografias

como as escritas por Lira Neto e Mário Magalhães, respectivamente), se em relação com

autobiógrafos estadunidenses como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, Frederick

Douglass, William T. Sherman, entre outros.

É possível seguir adiante com esta ideia. A autobiografia teve um papel

predominante em episódios históricos dos Estados Unidos, como é o caso das Slave

Narratives, cujos exemplos notáveis são a de Frederick Douglass “Narrative of the Life

of Frederick Douglass, an American Slave” (1849) ou “Twelve Years a Slave”, de

Solomon Northup (1853). Estas são narrativas autobiográficas de ex-escravos que

descreviam pormenores da vida de trabalho forçado, como a chegada (ou nascimento) ao

cativeiro, a relação com os senhores brancos, os castigos sob os quais eram submetidos,

os planejamentos e tentativas de fuga e, eventualmente, a conquista da liberdade. As slave

narratives inspiraram e trouxeram fôlego ao movimento abolicionista em diversos

estados estadunidenses. Outros clássicos da literatura autobiográfica do país oferecem

visões sobre a experiência afro-americana no século XX, transformando em linguagem

histórias individuais de crescimento em meio ao racismo e à segregação racial –

especialmente no Sul dos Estados Unidos. É o caso de obras como Black Boy (1945), de

Richard Wright, ou os livros autobiográficos da ativista Maya Angelou, cujo título I Know

Why The Caged Bird Sings (1969) é o primeiro, e mais conhecido, da série. Outras

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autobiografias de forte inflexão política e de levante do movimento negro são escritas nos

EUA na década de 1960, como é o caso da autobiografia de Malcolm X, The

Autobiography of Malcolm X (1965), uma das principais narrativas da Black

Autobiography em meio ao movimento pelos Direitos Civis.

Além disto, como frisa Robert F. Sayre no trecho citado, há as diversas narrativas

autobiográficas de líderes militares, homens de negócio e outras histórias de sucesso que

contribuem para o imaginário do self-made man que parece estar tão integrada à

experiência estadunidense – I did it my way, como lembra Frank Sinatra. E, aproximando-

se da atualidade, é possível mencionar os Estados Unidos como berço da noção atual de

Reality Show (An American Family foi veiculado ainda em 1971) que, embora não se trate

de autobiografia per se, relaciona-se com certo momento de espetacularização do “Eu”

que é integrada à nossa experiência cotidiana. Chegando ao ano 2000, da mesma forma,

os polos tecnológicos americanos foram a casa das principais empresas que fomentaram

o desenvolvimento da Internet, blogs, vlogs, YouTube, Facebook e daí em diante.

Se a cultura que permeia a própria noção de “Estados Unidos” enquanto nação

passa pela consideração da narrativa autobiográfica como um ponto de apoio, há ainda

outros aspectos que fomentaram a produção de documentários autobiográficos

consistentemente no país, desde a década de 1960. A possibilidade de exploração do

doméstico, familiar, corriqueiro – cinematograficamente falando – também parece ter

encontrado um terreno mais profícuo no país antes, por exemplo, que no Brasil, sendo

que as razões para isso podem ser investigadas. Um destes motivos é relativo à

disponibilidade de recursos e o custo deste tipo de empreitada cinematográfica. Filmar

sempre foi uma atividade custosa, em qualquer lugar do mundo, principalmente quando

existe o propósito de uma construção narrativa – um filme como produto final. Muitos

dos filmes inseridos no universo do documentário autobiográfico nos EUA pressupunham

um tête-à-tête do cineasta com o mundo por um período de tempo prolongado – seja em

Walden: Diaries, Notes and Sketches de Jonas Mekas ou em Diaries (1971 - 1976) de Ed

Pincus. Esta relação fica mais visível diante do universo conceitual do cinema direto, do

qual a experiência autobiográfica do MIT Film Section apresenta-se como um

desdobramento. Estes filmes dependiam de momentos de intensidade dramática em

situações domésticas menos controladas, que necessitavam de um trabalho de filmagem

por períodos indefinidos, frequentemente longos, a fim de registrar a interação das

pessoas entre si ou com o cineasta por detrás da câmera. Adicionando-se o elemento do

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som sincrônico à imagem como parte fundamental da proposta artística destes filmes, o

resultado é um tipo de cinema invariavelmente caro – levando-se em consideração a

condição “independente” dos filmes e a absorção/projeção pouco comercial dos filmes.

Em outras palavras, a produção de documentários autobiográficos em tempos “remotos”

como a década de 1960 parecia mais possível em um país como os EUA, onde a oferta

“material” de condições para filmagem para cineastas seria sensivelmente mais viável, se

em comparação com o Brasil da mesma época.

Mesmo que o acesso tecnológico fosse de fato um facilitador, é possível dizer que

existiram motivações ideológicas que possibilitaram a proliferação deste tipo de cinema

no país ainda neste momento. Como será tratado mais de perto no capítulo dois deste

estudo, o movimento pelos Direitos Civis na segunda metade da década de 1960, seguido

pelas demonstrações contra a Guerra do Vietnã e, após isso, a intensificação da segunda

onda do movimento feminista estadunidense na década de 1970, foram elementos que

contribuíram para uma agenda progressista em relação à tematização das liberdades

individuais. O olhar para o universo doméstico e familiar tornou-se político e proliferou-

se em diversas manifestações culturais. Ainda que seja possível detectar a politização da

abordagem do universo doméstico, individual, familiar e privado, também se pode dizer

que este tipo de tematização encontrou menos força no cinema da América Latina do

mesmo período. Neste momento, talvez o olhar para o “doméstico”, em países como o

Brasil, seria menos urgente do que o olhar para o que era propriamente “público”,

pensando no movimento de resgate de identidades nacionais que foi proporcionado pelos

cinemas-novos neste e em outros países da América Latina. Análoga a esta ideia, a

tematização do “individual”, como feito nos EUA, poderia também estar enfraquecida

diante de conjuntura das ditaduras militares que inspirava, antes, uma postura de união e

coletividade da parte dos artistas. Considerando a tematização autobiográfica como

menos imprescindível no momento, portanto, é possível sugerir que esta tenha

permanecido latente até um período de democracia e maior estabilidade onde pudesse

aflorar de maneira mais significativa.

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1.5. Construção de identidade e narrativização de experiência

Outro forte veio do domínio do documentário autobiográfico reside na maneira

através da qual cineastas-autobiógrafos enxergam aspectos de suas experiências

individuais como parte de um fenômeno social maior, ao qual contribuem com uma

perspectiva própria. Neste sentido, a autobiografia é utilizada como via de entrada para o

debate acerca da construção de identidades, ao prover conhecimento sobre determinada

experiência por um diretor que está dentro da própria experiência. Ainda que não

exclusivamente, esta construção frequentemente refere-se à identificação de um cineasta

dentro de “grupos historicamente excluídos” (Historically excluded groups, ou HEGs).

Neste caso, referimo-nos a documentários autobiográficos de cineastas gays que lidam

tematicamente com a experiência homossexual; cineastas negros que lidam com questões

raciais; diretoras mulheres que partem de aspectos de uma experiência própria para uma

construção temática feminista; filmes realizados por migrantes, exilados, indígenas, entre

outros.

A autobiografia consolida-se como via de construção de linguagem desta

perspectiva não apenas em narrativas cinematográficas, mas também na literatura. São

vastos os textos críticos que apontam para este tipo de movimento, em que o autor

reconhece sua própria experiência como “parte de um todo”, tratando-o como um aspecto

intimamente ligado às narrativas autobiográficas. Dissertando sobre a importância da

autobiografia realizada por escritores negros estadunidenses no país, o autor James Olney

sugere que as narrativas autobiográficas conseguem representar aquilo que poderia ser

entendido como a experiência negra nos EUA, mais do que outros gêneros literários.

Seria através da autobiografia que estes autores teriam entrado no “templo” da literatura

e contribuído de maneira significativa para a preservação da História dos negros

americanos (1980a, p. 15). A possibilidade de transformar a experiência de um grupo

específico, frequentemente em situação de marginalidade social, em linguagem, é

também abordada por Robert F. Sayre. A autobiografia, neste ponto de vista, funciona

como instrumento de empoderamento, no qual os autores reconhecem suas experiências

individuais como exemplo de um grupo social maior. Nas palavras de Robert F. Sayre:

[A] autobiografia tem sido o maior tipo de literatura para os negros e

outros americanos oprimidos. A pessoa que pode escrever sua própria

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história pode elevar-se de um status de desconhecido e inarticulado e

consegue, assim, relacionar esta história para os outros e à história dos

outros. A eficiência e autenticidade assumidas pela autobiografia – sua

historicidade – dá a ela maior autoridade que a ficção dos romances ou

do teatro, especialmente pelo fato de que estes romances têm chance

maior de terem sido escritos por brancos ou outras pessoas que não

viveram, eles próprios, este mesmo tipo de experiência. (SAYRE, 1980,

p. 167. Grifos do autor. Tradução nossa.)

Este fenômeno encontra reflexo na filmografia documentária autobiográfica,

sendo que alguns exemplos podem ser citados. A “experiência negra” nos EUA, segundo

a terminologia de James Olney, permeia filmes de cineastas afro-americanos como Marco

Williams, em In Search of Our Fathers (1992), ou Finding Christa (1991), dirigido por

Camille Billops. No caso de In Search of Our Fathers, documentário realizado ao longo

de um período de dez anos, o diretor Marco Williams retrata a busca pelo pai que nunca

conheceu. A busca pessoal de Williams toca um fenômeno público ao apontar para uma

realidade do grupo étnico no qual estava inserido. Como nos revela o filme, parcela

significativa dos jovens afro-americanos (47%) crescem sem a figura paterna nos lares.

O título do documentário é sintomático na medida em que o diretor sugere que a busca

por seu pai representaria a busca de muitos garotos negros pelo pai ausente: a busca de

Williams é, de fato, a “busca pelos nossos pais”. Já em Finding Christa (1991) a cineasta

Camille Billops tematiza o reencontro com a filha Christa, trinta anos após deixa-la para

adoção aos quatro anos de idade. Finding Christa, segundo o autor Jim Lane, “oferece

outra visão da família afro-americana, vista a partir da lente de uma mãe criticada por

‘abandonar’ sua filha e por buscar uma carreira na arte e uma vida com seu marido, que

não é o pai de Christa” (LANE, 1996).

Neste mesmo sentido, um paralelo com a produção autobiográfica literária

brasileira poderia ser feito a partir da narrativa de Carolina Maria de Jesus, em “Quarto

de Despejo” (1960). Carolina, negra e pobre, era moradora da favela do Canindé, às

margens do rio Tietê. Seu livro é escrito em formato de diário, no qual a autora relata seu

cotidiano como moradora da favela e como catadora de papel e sucata. Os primeiros

escritos de Carolina de Jesus foram apresentados a um jornalista, Audálio Dantas, durante

uma reportagem sobre a favela do Canindé, que possibilitou a publicação do diário da

autora. Neste caso, mais do que uma questão racial, a intenção de Carolina de Jesus,

sublinhada por diversas vezes em seu diário, é a de estabelecer um relato acerca da vida

de um indivíduo morador de uma favela, o favelado, a partir de sua experiência pessoal.

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A narrativa da autora traz palpabilidade ao cotidiano de habitar em um barraco furado, de

frequentemente não ter o que dar de comer aos filhos, de catar papel para garantir o

mínimo necessário para a sobrevivência, de viver em meio ao abjeto, ao lixo e aos ratos,

de ser suscetível a violências de todas as sortes e de, finalmente, sentir-se abandonado

pela política e pela sociedade. Neste caso, o livro de Carolina de Jesus trata de trazer luz

ao cotidiano de um grupo social marginalizado, cuja experiência pouco era retratada nos

jornais da época.

Se a periferia, em especial, a favela, é o cenário a partir do qual Carolina Maria

de Jesus constrói um relato de experiência pessoal, outro paralelo pode ser feito, porém

agora com o documentário de Cristiano Burlan, Mataram meu Irmão (2013). O filme

contundente de Burlan obteve reconhecimento significativo em seu lançamento, tendo

também vencido a edição de 2013 do festival É Tudo Verdade. Em sua narrativa, o diretor

tematiza a circunstância da morte de seu irmão mais novo, Rafael, assassinado doze anos

antes da feitura do filme, no bairro do Capão Redondo – onde o diretor também cresceu.

A partir de depoimentos de familiares e amigos próximos do cineasta e de seu irmão,

Burlan traça o panorama de uma circunstância que, embora particular, toca uma

experiência coletiva em relação às nuances do crescimento em uma área pobre e

periférica. Diante de traços de desestrutura familiar e da proximidade à violência e às

drogas, um desvio de conduta do irmão do diretor custou-lhe a vida. A narrativa de

Mataram meu irmão apresenta crueza referencial que torna palpável a experiência do

microcosmo da periferia, a partir da experiência individual de Burlan como indivíduo que

viveu este cenário e que pode olhá-lo, também, com o distanciamento de quem conseguiu

deixa-lo.

Ainda em outra faceta desta particularidade do domínio da autobiografia, o

cineasta Marlon Riggs oferece a visão de sua experiência enquanto negro e homossexual

vivendo nos EUA, em Tongues Untied (1989). Entre a pluralidade de questões abarcadas

pelo filme de Riggs, encontra-se o fato de que o diretor nos oferece um olhar para a

situação de duplo-preconceito vivenciado pelos negros homossexuais estadunidenses,

grupo do qual faz parte e sobre o qual oferece uma visão nuançada. A construção de

identidade homossexual também permeia Tarnation (2004), a partir da experiência do

cineasta Johnathan Caouette e das vicissitudes do cenário instável de seu crescimento em

meio a uma delicada história familiar. Já o universo do feminino, sob diversas óticas, é

trazido para o protagonismo dos filmes de cineastas-autobiógrafas ainda no início desta

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característica, na década de 1970. A cineasta Miriam Weinstein representa esta

abordagem em quatro filmes que tematizam o universo doméstico, familiar e matrimonial

no qual estava inserida (My Father, the Doctor [1972], Living With Peter [1973], We Get

Married Twice [1973] e Call Me Mama [1976]). É o caso, também, da análise geracional

realizada por Amalie Rothschild nas questões que concernem sua vida privada, a de sua

mãe e de sua avó em Nana, Mom and Me (1974). Em Joe and Maxi (1977), a cineasta

Maxi Cohen expõe a relação delicada entre si própria e seu pai. Outro exemplo é a

meditação realizada por Joyce Chopra sobre a possibilidade de trabalho durante a

gravidez, em Joyce at 34 (1974).

Em Journal Inachevé (1982), a cineasta Marilú Mallet toca a questão do exílio

territorial a partir de sua própria experiência. Em sua narrativa, Mallet tematiza a sensação

de deslocamento social e cultural resultante de um êxodo forçado pela ditadura militar de

seu país de origem. Mallet é uma cineasta de origem chilena que é forçada a deixar o país

após o golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende. Instalando-se no

Canadá, a diretora realiza trabalhos audiovisuais para uma emissora de televisão local,

estando em contato com outros imigrantes e exilados no no território canadense. Em sua

narrativa, Mallet tematiza a situação de exílio a partir do registro de encontros com outros

expatriados – um destes, com Isabel Allende – como também através de uma narração

em over na qual entramos em contato com algumas de suas reflexões ao longo do período.

Como o filme nos narra, a sensação latente de não-pertencimento territorial e cultural

reflete-se também em sua relação matrimonial. Casada com o cineasta australiano

Michael Rubbo (Waiting for Fidel [1974], Daisy: The Story of a Facelift [1982]), na

época integrante do National Film Board canadense, a realizadora expõe o atrito com o

marido, que parece pouco compreender a complexidade de uma situação de exílio. Em

uma discussão acalorada do casal, Rubbo argumenta sentir-se desconfortável diante do

encontro de Mallet com outros expatriados chilenos e coloca sob suspeita a validade da

empreitada fílmica da cineasta. Ao nos colocar diante desta e outras situações, a cineasta

tematiza a maneira através da qual a situação de exílio desdobra-se em diversas facetas

que compõem seu cotidiano privado.

Journal Inachevé é alvo de uma das análises de Bill Nichols em “Blurred

Boundaries” (1994, p. 86). Nichols aponta que através das estratégias de autoinscrição e

autoexaminação propostas pela cineasta no filme, Mallet configura um exercício de

preservação do “Eu”, frente a uma atípica situação, promovida pelo exílio, de

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deslocamento forçado e de estranhamento cultural, territorial e relacional. O autor

trabalha com um universo conceitual que visa enxergar este tipo de produção como uma

alternativa ao olhar “tradicional” da antropologia fílmica daquele momento. Nos anos

1980 e 1990, a incorporação da autoexaminação como metodologia e estilística (como da

maneira vista no documentário de Marilú Mallet), apareciam consideravelmente na

produção de então. O processo de autoinscrição incorporado por Mallet em Journal

Inachevé sugereriria um desvio do paradigma clássico do documentário “Nós falamos

sobre Eles para Nós”. Nichols (1994, p. 86) aponta uma série de alternativas que se

aproximariam mais das estratégias adotadas pela cineasta no filme, como “Eu falo sobre

mim para mim mesmo e para outros como eu” ou ainda “Eu falo sobre nós para nós”; “Eu

falo sobre nós próprios para eles” e, finalmente, “Nós falamos sobre o que eles falam de

nós”. Estas proposições de Nichols, como viemos frisando até aqui, tende a relacionar-se

com as principais preocupações dos cineastas-autobiógrafos, a de transpor uma

experiência individual em linguagem de maneira a tocar uma experiência pública.

O ato de retratar o exílio enquanto experiência como faz Journal Inachevé

encontra um paralelo no documentário brasileiro Diário de Uma Busca, dirigido por

Flavia Castro e lançado em 2013. O filme de Castro une a exploração narrativa de uma

história pessoal com um plano social e histórico amplo, desde o momento do golpe de

1964 até o período da abertura. A realizadora inicia o filme com a intenção de investigar

a morte de seu pai, Celso, ocorrida em Porto Alegre no ano de 1984, em uma circunstância

que permanece nebulosa até a feitura do filme. O ato de explorar a circunstância da morte

do pai, entretanto, abre a possibilidade de analisar sua trajetória de vida. O pai de Castro

levou uma vida de devoção à militância esquerdista, sendo membro do Partido Operário

Comunista, assim como a mãe da diretora. Com o golpe, a família teve de partir para o

exílio, deixando o país ainda no início da década de 1970. Conforme o filme nos narra, a

diretora viveu boa parte de sua infância e juventude no Chile e na França antes de voltar

ao Brasil no período da abertura. Toda esta história é contada através de viagens da

diretora aos locais onde passou este período de sua vida (casas onde morou, escolas onde

estudou), através de entrevistas recorrentes com seus familiares (principalmente com sua

mãe e seu irmão) e de encontros com militantes que fizeram parte da vida de seu pai em

diferentes épocas.

A distinção mais evidente entre um filme como Journal Inachevé e Diário de Uma

Busca reside no emprego de temporalidades distintas. A narrativa de Castro aborda o

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tema do exílio como rememoração, onde a feitura do filme encontra-se em uma

cirunstância temporal muito posterior ao período retratado. Neste caso, construir uma

narrativa cinematográfica autobiográfica a respeito do assunto toma forma a partir de

ferramentas como o resgate da memória familiar (e de amigos próximos) a partir de

depoimentos; o “retraçar” dos passos e a reocupação dos lugares onde habitou durante a

circunstância, bem como a recuperação de correspondências trocadas entre os envolvidos,

que têm a função de reanimar uma conjuntura espaço-temporal que encontra sua

materialidade no pretérito. Em Journal Inachevé, entretanto, a preocupação de Marilu

Mallet consiste mais em dar visibilidade àquilo que vive cotidianamente, trazendo à luz

situações que sejam significativas como representação da experiência de exílio que está

atravessando e que deseja compartilhar. Esta variedade de construção narrativa observada

nos filmes exemplifica dois largos caminhos distintos que podem ser trilhados por

cineastas-autobiógrafos. Um deles é voltado ao passado, à memória e à história familiar:

trazer conhecimento em relação a algo que já aconteceu ou que teve a origem em tempos

de outrora. Outro deles se preocupa em, de alguma forma, dar visibilidade ao presente da

vida individual do cineasta no período relativo ao registro fílmico.

Diário de Uma Busca também pode ser destacado como um filme que

particulariza a experiência dos documentários autobiográficos da América Latina. Um

número significativo de documentários autobiográficos latino-americanos oferece

narrativas que engendram um olhar para experiências individuais em relação à história

pública, principalmente no que concerne os processos ditatoriais pelos quais os países

passaram. No caso brasileiro, o documentário já citado Os Dias com Ele (Maria Clara

Escobar, 2012) faz coro a esta ideia, na medida em que se alicerça narrativamente no

intercâmbio entre a diretora Maria Clara Escobar e seu pai, preso e torturado durante a

ditadura militar. Na filmografia uruguaia, pode-se destacar Diga a Mário que não volte

(Decile a Mario que no vuelva, Mario Handler, 2007) e Segredos de Luta (Segredos de

Lucha, Maiana Bidegain, 2007). Na argentina, M (Nicolás Prividera, 2007); Os Loiros

(Los Rubios, Albertina Carri, 2003) e Papai Ivan (Papá Ivan, Maria Inés Roqué, 2004).

Na paraguaia, Espeto de Pau (Cuchillo de Palo, Renate Costa, 2010); e na chilena, O Eco

das Canções (El Eco de Las Canciones, Antonia Rossi, 2010); O Prédio dos Chilenos (El

Edificio de Los Chilenos, Macarena Aguiló, 2010); Rua Santa Fé (Calle Santa Fe,

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Carmen Castillo, 2007)5. Todos estes filmes oferecem visões particulares de cineastas que

tiveram vidas individuais afetadas pelos processos ditatoriais latino-americanos, seja

diretamente em relação ao próprio realizador ou à história familiar.

Se um dos aspectos fortes da autobiografia é apresentar-se como porta de entrada

para a transformação de experiência em linguagem, de indivíduos que se reconhecem

como parte de um grupo maior de pessoas em situação de vulnerabilidade ou de injustiça

social e que demanda atenção – os casos previamente mencionados, como a autobiografia

negra, feminista, queer, entre outros –, o exato oposto também chega a acontecer. Um

caso interessante é o de Born Rich (2003), dirigido por Jamie Johsnon, um dos herdeiros

da companhia de farmacêuticos Johnson & Johnson. O diretor Johnson tematiza as

questões que permeiam seu cotidiano enquanto herdeiro de uma fortuna multibilionária –

como a reflexão sobre o que fazer de sua carreira e de seu tempo livres quando existe

prestígio e recursos materiais infinitos, mesmo antes de qualquer trabalho. O relato

autobiográfico de Johnson, ainda que talvez de maneira um pouco bizarra, provê uma

narrativa construída a partir do desejo de narrativizar cinematograficamente a posição

privilegiada de alguém que vive o dia-a-dia do jetset da juventude bilionária dos EUA,

abrindo-nos a possibilidade de entrar em contato com o questionamento de um universo

que, no limite, também somos alheios.

Ainda em outra faceta deste mesmo debate, podem-se mencionar experiências

fílmicas autobiográficas na qual o diretor busca retratar o embate próprio com uma

enfermidade. A cineasta Barbara Bader tematiza a experiência de viver com uma doença

crônica no filme Beautiful Piggies (1995), no qual fala a respeito do transtorno alimentar

que a acompanhava. Outra importante recorrência neste sentido é a experiência do HIV,

que foi abordada em alguns documentários autobiográficos. É o caso de Tom Joslin e

Peter Friedman (Silverlake Life: The View From Here, 1993), do português Joaquim Pinto

(E Agora? Lembra-Me, 2013) e do cineasta francês Hervé Guilbert (La Pudeur ou

l’impudeur, 1992), que lançam mão do discurso autobiográfico a fim de prover um olhar

sobre a doença a partir de quem a vive cotidianamente. Os filmes constroem esta

5 Tal apresentação de documentários autobiográficos latino-americanos foi possível a partir do trabalho realizado por Pablo Piedras e Natalia Barrenha, que culminou na mostra “Silêncios Históricos e Pessoais: Memória e Subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo”, ocorrida em São Paulo no ano de 2014. O catálogo da mostra (BARRENHA, Natalia e PIEDRAS, Pablo [orgs.], 2014) reúne descrições destes e outros filmes, bem como textos de autores como Maria Luisa Ortega e Michael Renov, este último traduzido pelo autor do presente estudo (RENOV, 2014).

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transposição de experiência a partir de ferramentas narrativas e estilísticas distintas. E

Agora? Lembra-me tematiza o período no qual o diretor Joaquim Pinto estava sendo

submetido a um tratamento experimental para a Hepatite C. Pinto, homossexual e

portador do vírus HIV, realiza um filme que mescla diferentes metodologias de

autoinscrição. Há no documentário um movimento de memória em que o cineasta retoma

diversos aspectos de sua trajetória como realizador; há associações analíticas feitas pelo

diretor em over em relação a temas como religião, política e arte; existe um interessante

veio de captação e visibilidade de seu cotidiano em estilo direto; empregam-se trechos de

animação em stop motion, bem como de utilização de música não-diegética, entre outros

elementos. O sofrimento de Pinto, junto de seu companheiro, Nuno, em relação tanto em

relação à doença quanto ao tratamento agressivo a que é submetido é registrado e montado

através de uma macroestrutura cronológica.

Em alguns aspectos, E Agora? Lembra-me relaciona-se com Silverlake Life: The

View from Here, lançado vinte anos antes nos EUA. Silverlake Life é um filme

significativo no que concerne a intenção de transpor a experiência de cotidiano de um

casal gay estadunidense, mas, mais precisamente, no que diz respeito diretamente à

pandemia da AIDS ainda em um momento inicial, no começo da década de 1990. Pode-

se dizer que Silverlake Life é um filme que obteve perenidade, sendo frequentemente

revisitado até hoje em análises sobre o domínio dos documentários autobiográficos.

Tratando-se de uma experiência-limite no caso da autobiografia aplicada ao cinema

documentário, o filme evoca questões sobre as quais nos deteremos mais detalhadamente

ao longo do estudo.

Além dos diretores que assinam o filme, Tom Joslin e Peter Friedman, há um

terceiro elemento, Mark Massi, que contribui sensivelmente para o processo de filmagem.

Tom Joslin e Mark Massi nutriam um relacionamento de mais de vinte anos no início das

filmagens. Quando ambos foram diagnosticados com AIDS, Joslin, cineasta e professor

de cinema na University of Southern California, decidiu realizar um vídeo-diário que

tematizasse a vida conjugal do casal em meio ao desdobramento da doença em suas vidas

e corpos. O filme contou com o auxílio do ex-aluno de Joslin na faculdade, Peter

Friedman, cuja incumbência seria editar e finalizar o filme “no caso do desastre da morte”

– esta expressão é sugerida no script deixado por Joslin e que é mostrado no início do

filme. Silverlake Life inicia com um depoimento de Mark Massi a respeito da morte do

companheiro. Em seguida, o montador/diretor Peter Friedman apresenta-se através de

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uma narração em over, dizendo que teve a tarefa de finalizar o filme que Joslin deixara

para trás. Caixas repletas das fitas de vídeo que Joslin e Massi filmaram durante os anos

– a matéria-prima bruta da narrativa de Silverlake Life – são reveladas na tela, marcando

o final do “prólogo” e o início da narrativa em si.

Figura 3: O casal Tom Joslin e Mark Massi em Silverlake Life: The View from Here (1993)

O que se segue por volta de noventa minutos de documentário é uma narrativa que

segue uma macroestrutra cronológica de eventos. Através dos momentos registrados por

ambos e justapostos em narrativa, faz-se possível um olhar para o íntimo do cotidiano do

casal, predominantemente no que concerne as transformações do ambiente doméstico de

Massi e Joslin mediante o desenvolvimento da doença. Para além de momentos de tarefas

domésticas cotidianas, assistimos a recorrentes visitas de ambos a consultas médicas,

laboratórios para a realização de exames, como também a busca por tratamentos

alternativos que pudessem surtir efeito. Em diversos momentos do filme, Joslin e Massi

utilizam-se da câmera como meio de pontuar temporalmente o desenvolvimento da

doença em seus corpos, falando sobre novos sintomas e discutindo tentativas de

amenização desses. Acompanhamos a atividade do casal em viagens que realizam no

período e nas conversas que travam com familiares ou amigos próximos.

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O encadeamento de eventos através de uma montagem cronológica oferece

visibilidade do progresso da deterioração da saúde do casal. Esta visibilidade torna-se

mais palpável no caso de Tom Joslin, cujo quadro apresenta-se mais grave do que o do

companheiro. Entendemos através das imagens e dos diálogos registrados por Joslin que

a doença se manifestou mais agressivamente e rapidamente em seu corpo. Ouvimos suas

queixas a respeito do avanço da enfermidade e como ela impossibilita a realização de

tarefas cotidianas. Em determinado momento da narrativa, os esforços do casal voltam-

se para amenizar a dor de Joslin e trazê-lo conforto, sugerindo que sua morte não tardará.

A sequência da morte de Joslin é um trecho pelo qual Silverlake Life é frequentemente

lembrado. Os últimos dias do diretor são registrados por seu companheiro, que o filma no

leito de morte, magro e débil, podendo pronunciar apenas poucas palavras e dizendo que

não se sente bem. Em um corte seco revela-se o cadáver de Joslin, ainda com os olhos

abertos, registrado pela câmera nas mãos do parceiro. Em voz off, com as mãos e a voz

trêmulas, o parceiro diz que o ama, canta uma canção e diz que irá terminar o filme para

ele.

Figura 4: O corpo sem vida de Tom Joslin em Silverlake Life: The View from Here (1993)

Por este momento crítico, é difícil pensar em outro documentário autobiográfico

que tenha levado a cabo o processo de “filmar a própria morte” de maneira que faz o filme

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de Joslin. Mais de vinte anos após o lançamento de Silverlake Life e de sua veiculação na

televisão pública, são frequentes os comentários de espectadores que relatam a

capacidade do filme em fazer-nos ver as consequências da AIDS através de um relato

tocante que, por momentos, parece “real demais”. A experiência autobiográfica aqui

oferece-nos um lugar espectatorial privilegiado a respeito da vida de um casal que nutre

amor incondicional um pelo outro e que deseja eternizar uma passagem – provavelmente

a mais difícil vivenciada por eles até então. Este período de suas vidas, é importante notar,

está sendo registrado cinematograficamente nunca apenas como uma maneira pela qual o

casal poderia rememora-lo depois – como se fosse apenas um home movie familiar – mas,

sim, para que os espectadores pudessem entrar em contato com esta experiência. Em sua

análise sobre o filme, Susanna Egan aponta que Silverlake Life

Oferece acesso privilegiado e de fato muito doloroso, a um território

tão privado, a ponto de tornar-se tabu, permitindo que os

telespectadores reconheçam de forma pungente os momentos da solidão

mais terrível dos autobiógrafos ainda respondendo às forças criativas

do relacionamento. O envolvimento [do casal] com o público era um

movimento deliberado, político, de sua parte. Sua determinação

obstinada em filmar cada fase da doença, morte, luto e a continuidade

da doença coloca em primeiro plano as fontes mais íntimas do impulso

autobiográfico e sua dependência de um público cauteloso e atento.

(EGAN, 1994, p. 609-610)

O período registrado por Joslin (com Mark Massi, e finalizado por Peter

Friedman) refere-se, sobretudo, a um momento inicial do aparecimento e da pandemia da

AIDS, em que existia pouco conhecimento a respeito da doença – desde sua

multiplicidade de facetas à sua reação a tratamentos clínicos. Joslin identifica e decide

cristalizar, a partir de sua própria experiência, um momento particular em que se mostra

evidente a “impotência” diante da falta de conhecimento sobre a doença. Note-se, por

exemplo, os vários tratamentos alternativos, às vezes um tanto peculiares, que são

buscados pelo casal ao longo do filme. Em outras palavras, a partir do corte circunstancial,

espaço-temporal, da narrativa, os estados de consciência de Tom Joslin e de seu

companheiro que transbordam nos registros fílmicos – seus diálogos, suas discussões,

suas escolhas – apresentam-se como representantes de uma geração de indivíduos que

viveram o momento.

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Um dos comentários a respeito do DVD de Silverlake Life no site de compras

online Amazon.com diz “Sou grato por Tom Joslin ter tido a coragem de nos deixar ver

sua vida e sua morte”6. Isto diz respeito, primeiramente, à ideia da partilha do processo

autobiográfico que envolve Silverlake Life. Terceirizar parte do registro e da finalização

do relato fílmico é a única possibilidade de um cineasta tematizar o acontecimento de sua

própria morte. Mas, para além disso, o comentário aponta para a possibilidade do

autobiógrafo em reconhecer sua vida como um fenômeno que é digno de transformação

em linguagem, de cristalização de uma experiência que é individual – mesmo que, sob os

olhos da história pública, não seja uma vida mais do que “ordinária”. Trata-se, aqui, de

estabelecer um jogo entre o presente e a posterioridade que, como ilustra o caso de

Silverlake Life, vislumbra a morte do autobiógrafo como fenômeno inevitável. A

empreitada autobiográfica de Tom Joslin vai ao encontro de algumas proposições de

Georges Gusdorf, em seu texto fundante publicado em 1955. No sentido análogo à

proposta de um filme como Silverlake Life, Gusdorf disserta sobre a cristalização da

história pessoal em linguagem, para a posterioridade, como interente à intenção

autobiográfica:

Cada um de nós tende a pensar em si próprio como o centro de um

espaço vivo: eu conto, minha existência é significativa para o mundo e

minha morte deixará o mundo incompleto. Ao narrar minha vida, dou

testemunho acerca do meu próprio “Eu”, mesmo após a minha morte,

e, assim, posso preservar este precioso capital, que não deve

desaparecer. O autor de uma autobiografia dá uma espécie de alívio à

sua própria imagem através da referência ao ambiente (environment)

com a sua existência independente; ele olha para si próprio “sendo” e

deleita-se quando outros olham para ele – ele nomeia-se testemunha de

si próprio; e, aos outros, ele nomeia como testemunha daquilo que sua

presença torna insubstituível. (...)

O homem que se dá o trabalho de contar a respeito de si próprio sabe

que o presente se distingue do passado e que ele não será repetido no

futuro; ele tornou-se mais ciente das diferenças do que das

similaridades. Dada a mudança constante, dada a incerteza dos eventos

e dos homens, ele acredita que fixar sua própria imagem é algo útil e

valioso, de modo que ele possa ter certeza de que ela não irá desaparecer

como todas as coisas no mundo. (GUSDORF, 1980. p. 29-30. Tradução

nossa)

6 “I'm thankful that Tom Joslin had the courage to allow us to see his life and death”, disponível em

<http://www.amazon.com/Silverlake-Life-The-View-Here/product-

reviews/B00009ME9G/ref=cm_cr_dp_synop?ie=UTF8&showViewpoints=0&sortBy=bySubmissionDate

Descending#RYRLV87ZUWA2>

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1.6. Documentários autobiográficos, referencialidade e desconstrução

Jim Lane e Michael Renov são autores que escreveram consistentemente sobre

documentários autobiográficos, contemplando diversas de suas particularidades. Mesmo

direcionando suas análises para o cinema, ambos buscaram estabelecer diálogo com

alguns dos principais teóricos relacionados aos estudos da autobiografia – sobretudo

literária. Este diálogo foi subsídio para a reflexão sobre o período em que uma parte da

filmografia recente evocou a transformação da noção de autobiografia que era praticada

até então. Em especial, trata-se de um movimento intensificado na década de 1980, em

que o sistema de crença que alicerçou o cinema direto foi posto sob questionamento por

uma leva de filmes. O momento, denominado por Renov como “pós-vérité”, colocou em

cheque estruturas narrativas dos documentários que buscavam prover um senso de

referência concreta ao mundo material e à vida de seus diretores. Esta corrente de

pensamento, aliada a certo élan desconstrutivista, inspira-se em diversos campos da

produção intelectual e artística. Em diálogo, os escritos de Renov e Lane contemplam

visões que evocam a importância do debate para a noção de documentário autobiográfico

que, cabe notar, não se restringe apenas a este período. Os desdobramentos de tais

questões circundam tanto a filmografia quanto as análises acadêmicas contemporâneas a

respeito do cinema autobiográfico. A exposição do debate também é benéfica para o

entendimento do universo de questionamento no qual se inserem nossos principais

objetos de estudo – Ross McElwee e o cinema autobiográfico de Cambridge. Buscaremos

resgatar alguns pontos ao longo deste subcapítulo.

A principal obra de Jim Lane é “The Autobiographical Documentary in America”,

publicado em 2002. Um dos pontos fortes da publicação consiste em apresentar o debate

de natureza dialética que permeou a teoria crítica da autobiografia literária e que se

desdobrou também na produção cinematográfica. Trata-se do diálogo existente entre

teóricos de uma autobiografia dita “clássica” e um movimento de autores, sobretudo a

partir da década de 1970, que ofereciam uma visão questionadora em relação à

possibilidade da autobiografia de construir conhecimento referencial que apontasse para

o mundo real, para os seres que o habitam e para a vida do autobiógrafo a partir de uma

noção unitária. Classicamente, enxergava-se a autobiografia como um tipo de narrativa

através da qual indivíduos poderiam estabelecer relatos que, no limite, buscavam apontar

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para aspectos de uma vida vivida pelo autor, fora do domínio do texto. Em determinado

momento, entretanto, esta posição foi desafiada por teóricos que colocaram sob

questionamento a possibilidade de a linguagem estabelecer laços referenciais com o

mundo concreto e com pessoas reais. Sem que haja uma conexão concreta, indexal, entre

a linguagem escrita e a experiência real (o presente fenomenal, o que Paul John Eakin

chama de “a coisa em si”, the thing itself), qualquer tipo de relato autobiográfico estaria

diante de constante suspeição. A autobiografia, portanto, estaria inexoravelmente ligada

ao mundo da fabulação e da criação – ela não escaparia, desta forma, de um domínio de

construção narrativa ficcional.

Pode-se explorar um pouco mais este argumento a fim de entendermos

posteriormente sua projeção nos documentários autobiográficos e em sua crítica. John

Paul Eakin percebe, no movimento supracitado, uma mudança de perspectiva do “fato

para a ficção”, acompanhada por autores críticos ao conceito do “self” e das funções

referenciais da linguagem (EAKIN, 1992. p. 29). É o caso de teóricos como Paul De Man

(1979), John Sturrock (1977) e Michael Sprinkler (1980). O artigo publicado por De Man

em 1979, “Autobiography as De-Facement”, é um dos principais textos desta corrente de

pensamento do final da década de 1970. De Man (1979, p. 921) critica a visão de que a

existência de um texto autobiográfico dependeria de fatos e de eventos verificáveis de

uma maneira menos ambivalente do que faz o texto ficcional. O autor questiona até que

ponto a autobiografia dependeria de um referente (neste caso, o autor e sua vida “real”,

para além do texto), se é a partir do próprio ato autobiográfico que o modelo (o

autobiógrafo) cria a si próprio. Nas palavras de De Man:

Mas teríamos tanta certeza que a autobiografia depende da referência,

da mesma maneira que uma fotografia depende de seu tema ou que uma

figura (realista) depende de seu modelo? Assumimos que a vida produz

a autobiografia assim como um ato produz suas consequências, mas não

poderíamos sugerir, com igual justiça, que o projeto autobiográfico

pode por si próprio produzir e determinar a vida, e que qualquer coisa

que o escritor faça é, na realidade, governado pelas demandas técnicas

do autorretrato e, assim, é determinado, em todos seus aspectos, pelos

recursos de seu meio? (DE MAN, 1979, p. 920. Os grifos são do autor.

Tradução nossa).

De Man continua este argumento referindo-se às ideias de Phillipe Lejeune,

apontando que a identidade da autobiografia não aconteceria em um nível estrutural,

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representacional e cognitivo, mas, sobretudo, em um nível contratual entre leitor e texto

(o “pacto autobiográfico”). O leitor, neste caso, se tornaria o elemento responsável pela

verificação da autenticidade do texto, analisando a “assinatura” do autobiógrafo e a

consistência de seu comportamento ao longo da narrativa, “na medida em que ele tem

sucesso ou falha em honrar o acordo contratual que assinou” (1979, p. 923).

Não havendo, portanto, elementos textuais que garantam ao texto autobiográfico

este status, De Man aponta que a autobiografia não seria um modo ou um gênero, mas

“uma figura de leitura ou entendimento que ocorre, de certo modo, em todos os textos”

(1979, p. 921). Elementos como a assinatura do nome próprio do autor na página principal

do texto autobiográfico ou a suposição de que seu conteúdo se refere à vida do escritor

não conferiria mais autenticidade ao texto do que uma obra de ficção: “Parece, portanto,

que a distinção entre ficção e autobiografia não é uma polaridade ‘ou um, ou outro’, mas

que ela é indecidível” (1979, p. 921). Logo, De Man aponta para a impossibilidade da

autobiografia em fornecer conhecimento verificável sobre seu próprio autor, da mesma

forma que sugere a impossibilidade de existência da linguagem que substitua ou aponte

de maneira verificável para elementos além do texto:

O interesse pela autobiografia, portanto, não é o de que ela revela

autoconhecimento fidedigno – ela não faz isto – mas que ela demonstra

de uma maneira chocante a impossibilidade de fechamento e de

totalização (isto é, a impossibilidade de tornar-se a ser) de todos os

sistemas textuais baseados em substituições tropológicas. (DE MAN,

1979, p. 922. Tradução nossa.)

Visões similares são replicadas por Louis A. Renza (1980), em “The Veto of

Imagination – A Theory of Autobiography” e Michael Sprinkler (1980), em “Fictions of

the Self – The End of Autobiography”. A partir destes textos pode-se sugerir que existia

um movimento crítico que buscava por à prova consensos clássicos sobre a autobiografia,

estudando os limites entre “fato” e “ficção” dentro do campo. Este movimento crítico é

amparado, também, por obras literárias reconhecidas como “anti-autobiográficas”. É o

caso de “Roland Barthes por Roland Barthes”, publicado por Roland Barthes em 1974, e

a obra “Fils”, publicada em 1977 por Serge Doubrovsky, que batizou o termo

“autoficção”. Segundo aponta Paul John Eakin (1992, p. 25), a ideia de Doubrovsky

contrapunha o conceito de “pacto autobiográfico” de Lejeune, criando em Fils uma

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narrativa ficcional em que o protagonista, o autor e o narrador compartilhariam do mesmo

nome. Não apenas isto, mas diversas das estruturas de referencialidade expostas na obra

seriam verificáveis: lugares, nomes e datas fariam alusão à sua vida real, mas a maneira

através da qual a narrativa seria articulada e desenvolvida seria a partir de uma ótica de

construção ficcional, fabulativa.

O autor James Olney explica que, para os autores deste momento de criticismo, o

texto apresenta uma vida própria, sendo que o “eu” não está presente em nenhuma parte:

trata-se apenas de “texto”, que não apresenta nenhuma relação endêmica com o escritor

que o autoriza (OLNEY, 1980a, p. 22). Questionando se de fato neste momento o texto

autobiográfico não existiria para além de uma condição de “ficção do eu” (“fictions of the

self”), Olney expõe a questão:

O self, portanto, é uma ficção e também é a vida. E por detrás do texto

de uma autobiografia existe o texto de uma “autobiografia”: tudo que

resta são caracteres em uma página e estes também podem ser

“desconstruídos” para demonstrar a própria escassez de sua existência.

Tendo dissolvido o self em texto e depois o texto em ar rarefeito,

diversos críticos (com a húbris peculiar ao criticismo moderno?)

anunciaram o fim da autobiografia. (OLNEY, 1980a, p. 22. Os grifos

são do autor. Tradução nossa.)

Tal panorama conceitual não se restringiu à produção literária, refletindo-se

também no cinema documentário autobiográfico. Neste “novo” momento, a narrativa

como meio de apontar e descrever o mundo histórico, de maneira a sublinhar a

“ancoragem” da relação entre filme e mundo fenomenal, foi posta sob suspeita, de

diferentes maneiras. Michael Renov é um dos autores que escreveu mais

consistentemente sobre o período. Renov sugeriu tendências da nova filmografia que

dialogavam com uma inspiração crítica desconstrutivista. Diversos capítulos da coletânea

“The Subject of Documentary”, que reúne textos seus ao longo de duas décadas de

trabalho, apontam conceitualmente para este panorama teórico. Renov refere-se a uma

produção filmográfica contemporânea como representante da “nova autobiografia” do

cinema e vídeo (RENOV, 2004, p. 104-119). A produção pertenceria a um momento de

virada epistemológica na história do cinema documentário que faz parte da era “pós-

vérité” (RENOV, 2004, p. 171-181), termo cunhado pelo próprio autor.

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Frente à produção influenciada por novas possibilidades tecnológicas – em

especial, o vídeo como suporte fílmico – Renov sugere uma “nova subjetividade” que

teria emergido no cinema. Os filmes realizados no contexto da “nova subjetividade”

apresentavam modelos de construção de conhecimento e de referência ao mundo material

que se distinguiam do pensamento dominante no cinema documentário até então –

nominalmente, apresentava-se um desvio do conjunto metodológico-estilístico proposto

pelo cinema direto. A autobiografia desenvolvida neste cenário proposto por Renov

evocava antes um aspecto de fratura narrativa do que coerência. Segundo o autor, o

autobiógrafo, neste novo momento, apresenta-se como um sujeito fragmentado e em um

sítio de instabilidade, construindo a si próprio a partir de um fluxo autoquestionador: “Se

o que estou chamando de ‘a nova autobiografia’ tem qualquer pretensão de precisão

teórica, é devido a este trabalho de construção da subjetividade como um lugar de

instabilidade – fluxo, tração, reavaliação perpétua – ao invés de coerência.” (RENOV,

2004. p. 110). Em um movimento semelhante aos críticos previamente mencionados,

Renov sugere a insuficiência de determinados termos classificatórios frente à nova

produção, apontando que: “os limites taxionômicos de termos como diário, autobiografia

e ensaio precisam ser superados. ” (RENOV, 2004. p. 106).

No texto “New Subjectivities: Documentary and Self-Representation in the Post-

Vérité Age”, publicado pela primeira vez em 1995, Renov sublinha o entendimento da

“nova subjetividade” mencionando filmes e vídeos da década de 1980 e 1990 como

suporte à sua hipótese. Utilizando-se amplamente de noções de objetividade e

subjetividade, o autor sugere o novo momento (a era pós-vérité) como uma reação ao

cinema direto da década de 1960 e à experiência televisiva de An American Family. O

momento seria influenciado pelo movimento feminista e envolveria tanto cineastas

quanto videomakers que trabalharam com questões de autorrepresentação nos filmes –

novamente, enfatizando a construção autobiográfica de identidades “fluidas, múltiplas, e

até mesmo contraditórias” (2004. p. 178). Renov cita especialmente o caso de filmes que

exploram a identidade exílica, como o caso de Jonas Mekas em Lost, Lost, Lost, Chantal

Akerman em News from Home (1975), o filme Journal Inachevé de Marilu Mallet (1982)

ou a relação entre história pública e família no filme History and Memory, de Rea Tajiri

(1991). Da mesma forma, o autor aponta que o período foi marcado por filmes de

cineastas que trabalham narrativamente construções identitárias ligadas à sexualidade,

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como é o caso de Tongues Untied, de Marlon Riggs (1989), e Sink or Swim, de Su

Friedrich (1990).

Este corpus fílmico trabalhado por Renov também foi utilizado por outros teóricos

cujas análises são frequentemente citadas em estudos sobre documentários

autobiográficos. Entre estas, pode-se destacar o termo “documentário performático”,

cunhado por Bill Nichols na década de 1990 e exposto pela primeira vez na publicação

“Blurred Boundaries: Questions of meaning in contemporary culture” (NICHOLS, 1994).

A concepção de Nichols de documentário “performático” é por vezes tomada,

equivocadamente, como sinônimo de “autobiográfico”. Podem ser abertos parênteses

aqui a fim de explicar esta distinção, também como via de reforçar o entendimento tanto

das proposições de Nichols quanto das de Renov. Com a noção de “documentário

performático”, Bill Nichols, como Renov, problematizava as mudanças epistemológicas

com as quais os filmes pareciam trabalhar, principalmente no que concerne à maneira

atenuada que as narrativas, neste novo momento, aspiravam referenciar-se a questões do

“mundo histórico”. Para Nichols, o documentário performático seria um modo de

documentário que “não chama nossa atenção tão diretamente para as qualidades formais

ou para o contexto político do filme, mais do que desvia nossa atenção da qualidade

referencial do documentário, de maneira geral” (NICHOLS, 1994, p. 93. Tradução

nossa.).

Questionando, portanto, a “qualidade referencial do documentário”, Nichols

aproxima-se conceitualmente da noção pós-vérité sugerida por Renov. Também diante de

filmes como Tongues Untied (Marlon Riggs, 1989), History and Memory (Rea Tajiri,

1991) e Journal Inachevé (Marilu Mallet, 1983), Nichols sugere que, nos documentários

performáticos as técnicas observacionais não dão mais a impressão de “capturar” o reino

referencial por si próprio – o mundo histórico enquanto tal – o tanto quanto “colocam

tensão nas qualidades de duração, textura, e experiência, frequentemente advindas da

associação íntima com atores sociais que performam virtualmente de acordo com os

códigos expressivos que nos são familiares pela ficção” (NICHOLS, 1994, p. 95). As

técnicas interativas, “que tradicionalmente incorporam o cineasta dentro do mundo

histórico que ele ou ela filma, agora dão mais ênfase às dimensões afetivas da experiência

do cineasta, de sua posição subjetiva e disposição emocional” (p. 96). Já as técnicas

reflexivas, “se empregadas, não nos afastam tanto dos processos do próprio filme, em

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relação ao tanto que chamam nossa atenção para as intensidades e subjetividades que

rondam e banham a cena como representada” (p. 96).

O conceito ao redor da noção de “documentário performático”, desta forma,

procurava respaldar analiticamente a maneira através da qual um filme como Tongues

Untied, por exemplo, apontava para a figura do diretor Marlon Riggs. Como colocado

por Nichols, o filme é explorado narrativamente de com o propósito de dar vazão a uma

certa dimensão subjetiva e emocional de seu diretor a partir de uma relação mais “frouxa”

em seu comprometimento com a tematização do mundo histórico e da materialidade –

como o cinema direto/vérité e seus desdobramentos vinham fazendo até então. A

conceituação de “documentário performático”, entretanto, não aponta necessariamente

para os casos de filmes em que a figura individual do cineasta é, de alguma forma,

transposta para a narrativa – aquilo que, aqui, entendemos como “autobiográfico”. Um

filme como Forest of Bliss (Robert Gardner, 1985) é sugerido por Nichols no corpus dos

“documentários performáticos” por apresentar-se como “uma deflexão do documentário

daquilo que tem sido seu maior senso comum: o desenvolvimento de estratégias para a

argumentação persuasiva sobre o mundo histórico” (NICHOLS, 1994, p. 94). De fato,

Forest of Bliss foi um filme que apresentou alternativas à representação do “mundo

histórico”, principalmente no contexto do filme etnográfico e em perspectiva com a

carreira anterior de Robert Gardner, sendo construído narrativamente a partir de um

comprometimento analítico menor do que o visto anteriormente em filmes deste universo

conceitual. Porém, ainda que Forest of Bliss dialogue “autoralmente” com a carreira

anterior de Robert Gardner, não existe nenhum elemento que potencialize no filme uma

ideia de escrita sobre si próprio – certamente não é um documentário cujo visionamento

traz à tona algum aspecto da individualidade de Gardner que possa ser lido como

“autobiográfico”. Em outras palavras, a noção de “documentário performático”, embora

contemple largamente um conjunto de filmes que pode ser visto sob a ótica da

autobiografia, não se dedica exclusivamente a elucidar este tipo de questão. É possível

dizer que o conceito de Nichols dedica-se a refletir acerca de certo tipo de procedimento

narrativo que pode ser lido como autobiográfico. Trata-se de um corpus temporalmente

delimitado, que emergiu em uma produção filmográfica contemporânea à época da

análise – década de 1980 e começo da década de 1990 – e que destoava do universo

conceitual que regeu o documentário até então.

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Com base nas reflexões de Nichols, voltemos à análise de Renov. O autor é

pertinente na asserção de que os filmes citados apresentam o “Eu” de seus diretores,

servindo a uma possível ótica autobiográfica, sendo construído narrativamente de

maneira pouco antevista – principalmente se a comparação recai sobre o conjunto de

valores ético-narrativos do cinema direto, como é o caso de sua análise. Tomando-se

como exemplo um filme como News from Home, é possível dizer que o “Eu” da diretora

Chantal Akerman, em termos biográficos, apresenta-se sensivelmente mais dissolvido,

atenuado, se este procedimento fosse colocado em comparação com a maneira através da

qual um filme do primeiro momento do cinema direto constrói seus personagens. A

relação entre Chantal Akerman – um indivíduo de carne e osso que tem uma vida

particular e insubstituível, para além da tela e de seu relato cinematográfico – e a narrativa

de News from Home constrói-se mais a partir do oferecimento de dúvidas do que de

asserções. Supomos, enquanto espectadores, que as cartas lidas pela voz over ao longo da

narrativa apontam para o intercâmbio de mensagens entre a diretora e sua mãe, porém o

esforço de Akerman concentra-se menos em fazer da leitura das cartas um ponto de

inflexão onde existe um fio narrativo calcado pela relação de causa-e-consequência, ou

de conflito-e-resolução. Sua voz mistura-se com os sons da cidade em locais que supomos

fazer parte de sua rotina como moradora da cidade de Nova Iorque, frequentemente

tornando-se pouco inteligível junto aos outros elementos da trilha sonora. A construção

narrativa de News From Home transpira a experiência de Akerman naquela circunstância

espaço-temporal através de entrelinhas que resistem à checagem factual/referencial (o

cross-checking), ou seja, da maneira através da qual os eventos de fato apontam para a

vida que existe para além da narrativa. É neste sentido que Renov aponta a construção de

subjetividade nos filmes a partir de “um lugar de instabilidade”, de fluxo e constante

reavaliação, menos preocupado com a “coerência” suscitada pela construção do “Eu” na

autobiografia clássica.

News from Home e os outros filmes citados por Renov, portanto, utilizam-se de

estratégias narrativas, estilísticas e metodológicas que fogem da lógica referencial para

uma construção autobiográfica. É possível dizer que as análises de Renov evocam tanto

o pensamento teórico quanto a produção artística de uma época que se mostrava ainda

preocupada em oferecer alternativas à noção de autobiografia que permeava parte do

imaginário da época. A ideia de que os relatos autobiográficos devessem necessariamente

dar vazão narrativa a um longo período da vida do autobiógrafo; serem construídos a

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partir de uma estrutura dominantemente cronológica ou mesmo constituírem-se de

eventos públicos notáveis da vida do autor eram estruturas às quais o “novo momento”

da autobiografia resistia. O momento aprofundava o privilégio do auto em relação ao bios

– utilizando-se aqui da terminologia de James Olney (1980a, p.19-20) – como exploração

das potencialidades da autobiografia como linguagem autônoma. Desta forma, produções

deste período suscitavam o teste de estratégias narrativas que colocassem à prova a

maneira através da qual a “subjetividade” do cineasta e sua experiência enquanto

indivíduo poderia entrar em contato e em vibração com o espectador e sua própria

individualidade.

Há algumas ponderações que podem ser feitas em relação às proposições de

Renov. É interessante notar que o corpus fílmico trabalhado por Renov ao longo das

décadas não inclui nenhum filme da produção autobiográfica de Cambridge, ou mesmo

filmes de alguma forma vinculados à estilística do cinema direto. O nome de Ross

McElwee é mencionado en passant, porém a partir da ênfase não da herança de sua obra

em relação à metodologia de Cambridge, mas sim a partir da maneira que a voz over de

McElwee é atravessada mais por um aspecto de autoquestionamento e perplexidade, em

lugar de uma voz que emana certeza sobre o que diz (RENOV, 2004, p. xxi).

Evidentemente, como sugere Renov, o tratamento criativo da voz over de McElwee de

fato engaja um movimento de jogo com a meditação de seu criador a respeito de aspectos

de sua própria vida. A estilística de McElwee, entretanto, depende igualmente do pilar

vérité que ancora estas reflexões ao aspecto palpável da evolução de sua vida como

indivíduo que acompanhamos, enquanto espectadores, pelo curso de mais de três décadas.

Lost, Lost, Lost (1975), de Jonas Mekas, é um dos filmes aos quais Renov frequentemente

volta-se em suas elaborações teóricas. O filme de Mekas, canônico e muito revisitado em

outras análises sobre a relação entre cinema documentário e autobiografia, é também

marcado por uma construção narrativa que evoca, nas palavras do próprio Renov, mais

“fragmentação” do que “coerência”. É possível questionar, entretanto, o porquê de Renov

não ter se focado em uma obra como Diaries (1971 - 1976) de Ed Pincus, realizada no

mesmo período e tão vertiginosa quanto a obra de Mekas em relação às suas aspirações

artísticas no que concerne a potencialidade autobiográfica no cinema documentário. Ou,

ainda, o porquê de inexistir menção a outros filmes de um primeiro momento do

documentário autobiográfico nos EUA, como Nana, Mom and Me (Amalie Rothschilid,

1974), Joe and Maxi (Maxi Cohen, 1978) ou o quarteto de filmes da cineasta Miriam

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Weinstein, My Father, the Doctor [1972], Living With Peter [1973], We Get Married

Twice [1973] e Call Me Mama [1976]. Pode-se sugerir que a atenção de Renov esteve

voltada tanto para uma produção cinematográfica quanto para concepções teóricas

vinculadas a outra corrente de pensamento vigente. Suas elaborações conceituais nutrem

um posicionamento disposto a construir, ou debater, a noção de um novo cinema

autobiográfico. Se há força analítica para apontar aquilo que seria a nova subjetividade

autobiográfica no cinema e no vídeo, pode-se questionar a que exatamente Renov se

refere como sendo o documentário autobiográfico velho, ou clássico.

Renov contempla analiticamente, ao longo de sua carreira, diferentes estratégias

fílmicas metodológicas sob a ótica da autobiografia, como a possibilidade de uma

construção narrativa em que o eu do cineasta transpira como parte importante da força

argumentativa dos filmes. O autor parece associar a possibilidade criativa de

autobiografia em um “novo” momento a partir de uma relação do discurso com a

revelação de “verdades interiores”, bem como com processos de provocação de dúvida e

evasividade. Vide texto posteriormente publicado pelo autor, já em 2009:

Que esperança temos em produzir relatos factuais ou verificáveis se os

filmes construídos sobre assuntos dos quais o cineasta possui um

conhecimento especial ou mesmo exclusivo – isto é, o “eu” – são

codificados pela evasão e pela dubiedade?

Colocando de outra forma, as “verdades” que a autobiografia oferece

são frequentemente aquelas relativas ao interior muito mais do que ao

exterior. Estou tentado em chamá-las de verdades psicológicas, mas

isso apenas revela uma preferência por um tipo de psicologia (o modelo

psicanalítico) em despeito de outro (o modelo behaviorista, em

ascensão nos anos 1950, no qual o Cinema Direto baseia sua busca pela

verdade.) (RENOV, 2014, p. 34)

É interessante que Renov assira que a “busca pela verdade” do cinema direto está

baseado em um modelo behaviorista. Pode-se de fato afirmar que parte significativa da

produção de conhecimento que alicerça a tradição do cinema direto – seja no início dos

anos 1960, em seu desenvolvimento na década de 1970 ou em sua herança para o cinema

contemporâneo – baseia-se em uma noção, de alguma forma, de análise comportamental.

A interação dos seres humanos com outros seres humanos e com o mundo material à sua

volta, por meio de diálogos, olhares e gestos, que podem denotar as relações de afeto ou

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laços emocionais entre eles e que exteriorizam estados de consciência particularizados

por determinada circunstância espaço-temporal – tudo isto, efetivamente, faz parte do

universo conceitual no qual o cinema direto insere-se como possibilidade de construção

narrativa documentária. O aspecto de análise de comportamento que perpassa o

conhecimento produzido pelos filmes do cinema direto, entretanto, aponta não somente

para os filmes que se constroem a partir da subtração de elementos de reflexividade e/ou

interação – como é o caso, por exemplo, do comportamento travado entre John Kennedy

e sua cúpula em uma reunião, que testemunhamos em uma sequência de Crisis (Robert

Drew, 1963). A análise do comportamento entre o(s) corpo(s) em cena e a câmera – e em

especial, o indivíduo que segura ou autoriza esta câmera (o cineasta) – a partir de laços

sanguíneos, afetivos ou emotivos entre as partes, é um dos elementos que faz com que

determinados filmes produzam conhecimento que lemos e recebemos como

“autobiográfico”, cujos muitos casos são exemplificados ao longo deste trabalho. Renov

aponta que as verdades que a autobiografia oferece “são frequentemente aquelas relativas

ao interior muito mais que ao exterior”, porém deve-se frisar que não necessariamente ou

exclusivamente há de ser desta forma. É em outro trecho deste texto que Renov aponta

que “a autobiografia fílmica existe de várias formas” (2014, p. 39). Seguindo este

raciocínio, pode-se sustentar que a aproximação da possibilidade autobiográfica com o

modelo de produção de conhecimento do cinema direto é uma delas e que, frisamos, não

deve ser encarada como antiga ou obsoleta. Cineastas-autobiógrafos utilizam-se destas

metodologias em seus filmes – seja de maneira parcial ou dominante – de acordo com

uma intenção e visão artísticas, para a obtenção de determinados efeitos narrativos que,

provavelmente, não seriam obtidos através do emprego de outro tipo de metodologia.

A visão da construção de “novas subjetividades” em um momento pós-vérité

parte, como frisamos, da consideração de Renov acerca dos primeiros cânones do cinema

direto e da experiência de An American Family, veiculado no início da década de 1970

em uma emissora pública de televisão norte-americana. Renov aponta o fato de que o

início da produção do cinema direto era marcado por uma aura de pretensão de

objetividade em relação à possibilidade do registro imagético-sonoro de eventos do

mundo e uma subsequente narrativização destes eventos em forma de filme.

Efetivamente, como sublinhado pelo texto clássico de Brian Winston (1993), também

evocado por Renov, é possível dizer que no início dos anos 1960, existia a crença de uma

aproximação mimética do filme em relação à realidade. Através do recuo observativo da

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câmera no ato de filmar, do emprego de uma narrativa cronológica nos moldes de causa-

e-consequência, da supressão de elementos que evidenciassem imageticamente a

presença da equipe de filmagem na tomada, da rarefação da voz over, entre outros

elementos, cineastas encabeçados por Robert Drew, como os irmãos Maysles e Richard

Leacock, acreditavam estarem inseridos em um terreno fílmico da objetividade e

imparcialidade. Além disto, Renov replica uma crítica frequente a An American Family,

a de que a versão veiculada do protótipo de Reality Show também propôs em sua

montagem final o mesmo jogo com a pretensão de objetividade em um ambiente

doméstico, diante das transformações em humores e afetos da família Loud ao longo dos

meses de filmagem. A falha de An American Family consistiria no fato de que a presença

da equipe de câmera e a intenção de narrativizar a vida dos Loud em forma fílmica influiu

consideravelmente no comportamento dos membros da família para consigo próprios e

diante da câmera – fenômeno cujos traços teriam sido apagados em sua totalidade da

narrativa de An American Family. A consequente separação do casal Loud, ao longo do

registro do programa, seria fruto da complexa relação entre a produção de An American

Family e a família, sobre a qual existe, por exemplo, a estória do envolvimento afetivo

do produtor Craig Gilbert com a matriarca Patricia Loud. A supressão destas informações

nos episódios da série consistiria, para diversos de seus críticos, em uma deslealdade

moral e ética.

Com efeito, pode-se sustentar que o desenvolvimento da metodologia do cinema

direto em seu início era envolto por certa ingenuidade no que concerne à possibilidade de

um discurso fílmico “objetivo” diante do registro e narrativização dos eventos e das

pessoas que habitam o mundo em que vivemos. Entretanto, não se pode restringir o

pensamento metodológico do cinema direto apenas a esta tentativa do alcance de uma

postura “objetiva”, neutra ou imparcial, do registro fílmico em relação ao mundo. Há de

se levar em consideração o desenvolvimento pelo qual passou a noção de cinema direto

a partir, principalmente, da segunda metade da década de 1960, e nos filmes de seus

cineastas mais criativos. Os próprios cineastas estadunidenses envolvidos com a

concepção do cinema direto (ou boa parte deles) reavaliaram criticamente o

posicionamento teórico-metodológico inicial do grupo. A filmografia de cineastas como

Ed Pincus, Albert e David Maysles e Richard Leacock mostra que o cinema direto é

alicerçado em um forte terreno conceitual, que dialoga com sua própria tradição e que

cujo florescimento em novas frentes é detectável ao longo dos anos. Se Jane (1962),

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produzido por Robert Drew e dirigido pelos irmãos Maysles, pode ser citado como um

exemplo deste primeiro momento do cinema direto sobre o qual recai a crítica de Renov,

poder-se-ia também enxergar a evolução deste procedimento – no que concerne à

interação e à reflexividade da relação entre equipe de filmagem/personagem – em um

filme como Gray Gardens (1977). A sugestão é a de que existe mais complexidade na

noção de “cinema direto” enquanto fenômeno e como possibilidade de construção/entrega

de conhecimento via narrativa fílmica do que normalmente tenta enquadrar seu

criticismo.

Talvez o problema maior consista na carga valorativa que um termo como “era

pós-vérité” carrega consigo. De alguma forma, o termo promove a ideia de que o cinema

direto como alicerce conceitual teve um prazo de validade demarcado, tornando-se

obsoleto como possibilidade de registro e narrativização do mundo em que vivemos a

partir de determinado período. Renov, por exemplo, aponta que a era pós-vérité toma

forma mais propriamente da metade da década de 1970 em diante. A filmografia

escolhida por Renov para análise, de fato, compromete-se pouco com a noção de cinema

direto ou sua tradição – filmes como Lost, Lost, Lost ou History and Memory engajavam-

se em outros questionamentos emergentes para suas propostas artísticas de representação

do mundo e da representação do “Eu”. No período, entretanto, houveram outras

experiências fílmicas em florescimento que não compartilhavam necessariamente uma

visão fragmentada de sujeito, nem mesmo encaravam o uso dos alicerces metodológicos

do cinema direto como uma possibilidade nostálgica. Ainda na década de 1970 e na

década de 1980, o debate acerca do desenvolvimento do cinema direto estava em

ascensão. Cineastas como Ed Pincus e seus pupilos estudavam possibilidades criativas de

lidar com a cotidianidade (everydayness) e com a representação do “Eu” do cineasta e de

seu universo doméstico em um movimento que apenas começou na metade da década de

1970 e consolidou-se na década de 1980. Existia uma ebulição teórica acontecendo em

centros universitários como o MIT Film Section que apontava para novos caminhos do

cinema direto. Um dos princípios destes caminhos consistia na consideração de aspectos

de autorreflexão do cineasta, de seu universo doméstico e de seus laços familiares – uma

narrativa decididamente autobiográfica – que partia de desenvolvimentos tecnológicos e

metodológicos que ainda estavam sendo estudados.

Diversos filmes citados por Renov no período pós-vérité, de 1970 a 1995, segundo

o autor, baseiam-se na tematização de construção identitária para suas empreitadas

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autobiográficas. É interessante mencionar, entretanto, que alguns cineastas, realizaram

filmes sob esta mesma motivação ideológica, porém com meios e fins narrativos distintos

dos filmes analisados pelo autor. Há exemplos que podem ser destacados nos filmes já

citados até aqui: a motivação feminista é latente nos filmes das cineastas Miriam

Weinstein, Amalie Rothschild, Maxi Cohen e Joyce Chopra. A construção de identidade

homossexual figura em Silverlake Life: The View From Here (1993). O olhar para

questões de identidade racial é proposto na busca de Marco Williams em In Search of

Our Fathers (1992). Estes filmes constroem-se a partir de metodologias que flertam com

o cinema direto e dependem de estruturas referenciais para seus efeitos narrativos.

Em outras palavras, talvez a função normativa de expressões como “Era Pós-

Vérité” e “Nova subjetividade” parecem conflitar com a concomitância, à época, da

produção de filmes que também ampliavam, atualizavam e evoluíam a noção de

“documentário autobiográfico” a partir de outras metodologias – sensivelmente mais

referenciais ou vérité – e que nem por isto careciam de valor inovador. É neste sentido

que o autor Jim Lane apresenta uma análise reativa às ponderações de Renov. No primeiro

capítulo de “The Autobiographical Documentary in America”, Lane aponta que, segundo

a lógica de Renov, se o documentário autobiográfico constrói um sujeito que se apresenta

em uma posição totalizante (ao invés de fragmentada), nos moldes da autobiografia

“clássica”, o documentário seria epistemologicamente suspeito (LANE, 2002, p. 26) neste

novo cenário. O ponto de Lane é o de que a tentativa de pensar uma “nova” autobiografia

cinematográfica parece ser um movimento apressado, principalmente diante do fato que

não houve detenção acadêmica anterior em relação a um consenso daquilo que seria a

“velha” autobiografia. Nas palavras de Lane:

Devido ao fato de a academia ainda ter de conceituar o que seria a

“velha” autobiografia no Cinema e no Vídeo Documentário, não

devíamos ter cautela em definir a “nova” ou “anti-autobiografia”, às

custas da velha? O fato do sujeito ser totalizante ou não, centrado ou

descentrado, parece ser uma questão além do ponto em termos daquilo

que a nova autobiografia deveria ser. O Documentário Autobiográfico

oferece uma plenitude de possibilidades para a autoinscrição cinemática

– seja ela certa ou incerta. (LANE, 2002, p. 28. Tradução nossa.)

Se Renov propõe que a “nova” autobiografia é marcada por uma construção

subjetiva atravessada pela “instabilidade”, pela fragmentação e por um movimento

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autoquestionador, Lane sugere que, mesmo neste novo momento, a aposta em estruturas

narrativas referenciais para a construção autobiográfica não deixa de ser uma opção

artisticamente válida. É possível sugerir que a resposta de Lane a Renov reivindica o

entendimento de que o élan desconstrutivista que permeou a autobiografia em

determinado momento da história não apresenta um fim em si mesmo.

Renov, em sua definição acerca da “nova autobiografia”, baseia-se amplamente

na noção de autobiografia proposta pela experiência da leitura de Roland Barthes par

Roland Barthes. Publicado em 1975, trata-se de um texto frequentemente revisitado por

autores adeptos a este momento de criticismo de uma autobiografia dita “clássica”, no

que diz respeito à adesão de uma narratividade biográfica, cronológica ou historicista

como aporte narrativo. De fato, neste período, Barthes apresentava uma postura

abertamente desconstrucionista em relação ao sujeito-autor. Como exemplo, pode-se

resgatar uma de suas passagens mais conhecidas: “Não digo: 'Vou-descrever-me', mas:

'Escrevo um texto e o chamo de R.B.'. Dispenso a imitação (a descrição) e me confio à

nominação. Então eu não sei que no campo do sujeito não há referente? ” (BARTHES,

2003, p. 69). Há de se considerar, também, que a evolução da obra de Barthes mostra que

tal postura foi sensivelmente abrandada pelo autor, com o passar do tempo. É interessante

notar como “A Câmera Clara”, sua obra derradeira, apresenta-se como uma contrarreação

à postura arrojada de Barthes no livro anterior. Paul John Eakin assere (1992, p. 18) que

no final da década de 1970, Barthes manifestou uma melancolia profunda a partir da

percepção de seu envelhecimento. Eakin menciona que Barthes experienciava “um

remorso em relação à sua carreira, percebendo uma ruptura completa entre sua vida

mental e sua vida emocional” (1992, p. 18), confessando o desejo de “escapar da prisão

da metalinguagem crítica, e através de uma linguagem mais simples e com mais

compaixão, fechar a lacuna entre a experiência privada e o discurso público”.

“A Câmera Clara”, publicado no ano da morte de Barthes, em 1980, apresenta

preocupações autobiográficas bastante distintas daquelas que podem ser detectadas em

sua obra de cinco anos antes. O luto pela morte recente da mãe e a sensibilidade diante

da efemeridade da vida transpiram e apresentam-se em um texto matizado por tons

emotivos consideravelmente menos detectáveis na obra anterior. Em pouco tempo, a

noção de repúdio sobre a comunicação genuína entre autor e leitor dá lugar a seu oposto,

ao que Eakin aponta como o desejo de fechar a lacuna entre uma experiência privada e o

discurso público. Outra pista interessante deixada por Barthes, e que se apresenta como

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um ponto interessante para este estudo, é o protagonismo que a foto de sua mãe tem em

sua análise, como um lembrete da transitoriedade do tempo e a força de sua

transformação. Para Barthes, como aponta Eakin, a fotografia é a mais referencial de

todas as artes, “autoralmente testificando a presença daquilo que retrata. Na visão da

lente, poderíamos dizer, sempre existe um referente. E Barthes encontra nas fotografias a

verdade de que estes referentes realmente existiram: ‘Toda fotografia é um certificado de

presença’” (EAKIN, 1992. p. 19).

É possível lançar a hipótese de que a transposição de conceitos da literatura e das

narrativas autobiográficas literárias para o cinema documentário às vezes ocorra de

maneira um pouco apressada, no que diz respeito a observância das particularidades

ontológicas que distinguem ambos os sistemas. As proposições de Paul de Man em um

texto como “Autobiography as De-Facement”, por exemplo, dialogavam necessariamente

com uma longa tradição literária e transpiravam um momento intelectual que colocava

em cheque possibilidades de representação a partir da linguagem escrita e do sistema

simbólico das palavras. No caso do cinema, entretanto, a relação umbilical entre

imagem/som e o mundo (o presente fenomenal, “a coisa em si”) é bastante distinta da

construção literária autobiográfica, sendo que a transposição conceitual entre os sistemas

oferece resistência. Talvez seja interessante concentrar-se na consideração do fato de que,

antes de sua morte, Roland Barthes, outrora o “eu sem referente”, postula que a fotografia

era a mais referencial de todas as artes. Admitindo a relação conceitual entre cinema e

fotografia, portanto, o documentário poderia servir a si próprio de sua referencialidade

para o oferecimento de uma perspectiva ontologicamente única como alternativa de

construção narrativa autobiográfica.

Em outras palavras, a reação de Jim Lane em relação a Renov leva-nos a inferir

que talvez os estudos de autobiografia no cinema documentário tenham se alinhado muito

rapidamente ao discurso de viés desconstrutivista, antes que houvesse suficiente detenção

sobre o que as narrativas cinematográficas poderiam contribuir para a noção de

autobiografia, em um nível mais fundamental. Pode-se questionar o porquê de determo-

nos tão longamente, aqui, em proposições de textos como os citados de Michael Renov –

que, no limite, também não se tratam de propostas necessariamente novas, datando de

duas a três décadas atrás. Sugerimos, aqui, que a herança do élan pós-estruturalista é até

hoje reproduzida com força na teoria crítica e nas análises que se fazem dos

documentários autobiográficos. Em linhas gerais, parece continuar a existir bastante

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preocupação com a identificação de metodologias e aspectos narrativos que sublinhem

que o ato de narrar a respeito de aspectos da própria vida, no cinema documentário, deve

permanecer sob constante suspeição diante das vicissitudes do trabalho com a linguagem.

Um exemplo que pode ser extraído do contexto nacional é a discussão a respeito

de alguns dos primeiros filmes relativos à produção autobiográfica no Brasil. Em um

debate consistente sobre o assunto, o autor Jean-Claude Bernardet discorreu sobre os

procedimentos metodológicos de 33, de Kiko Goifman (2002) e Um Passaporte

Húngaro, de Sandra Kogut (2001), filmes que denomeia “Documentários de Busca”.

Bernardet serve-se de diálogos que travou com Kogut e Goifman sobre o

desenvolvimento narrativo dos documentários e sobre a relação de cada um deles com

suas empreitadas, questionando o limite dos papéis de diretor e personagem que são

trazidos para o primeiro plano na discussão sobre estas e outras narrativas autobiográficas.

Sandra Kogut ressalta o fato de que em determinados momentos atuou como

“personagem” no momento da tomada, fingindo desconhecimento acerca de determinado

fato que ainda não havia sido revelado diante da câmera e que julgava importante para a

construção narrativa. Goifman, por sua vez, revela que a sequência em que visita uma

cartomante para questioná-la sobre o paradeiro da mãe biológica, em 33, ocorreu no início

de sua jornada e não como aparece na narrativa, em seu final – intervenção esta

deliberadamente omitida por sua persona durante o filme. Diante destas e outras

revelações “invisíveis” ao espectador de filmes como 33 e Um passaporte Húngaro,

Bernardet comenta:

Seria oportuno agora remeter a uma questão já discutida durante esta

conferência, que nos leva a perguntar se esses dois filmes são

documentários ou filmes de ficção. Eu tenderia a dizer inicialmente que

são filmes de ficção elaborados com materiais extraídos de situações

reais. Quer dizer, no fundo se trata de uma espetacularização da vida

pessoal, com, certamente, duas facetas: como toda arte autobiográfica,

é uma arte que expõe a pessoa, mas que, na mesma medida em que

expõe a pessoa, a mascara. Nada como a arte biográfica para a pessoa

não se revelar, enquanto os leitores (ou os espectadores) acreditam que

ela se revela.

Essas pessoas-personagens obedecem a uma construção dramática. Os

personagens têm objetivos, os personagens enfrentam obstáculos (que

eles superam ou não superam), alcançam seus objetivos ou não,

exatamente como nos filmes de ficção, e tudo isso organizado numa

narrativa. Então, creio que podemos falar de uma vida pessoal que se

molda conforme as regras da ficção. Ou de uma ficção que se alimenta

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diretamente da vida pessoal; eu diria uma ficção que coopta a vida

pessoal. (BERNARDET, 2005, p. 148-149)

O argumento de Bernardet remete, de várias maneiras, ao filão crítico que tende a

pensar o manejo da linguagem como agente de uma guinada para a “ficção” do discurso

autobiográfico. O apontamento de que há uma “espetacularização da vida pessoal”, um

discurso que “expõe ao mesmo tempo que mascara” ou mesmo o fato de colocar sob

suspeita que possa existir comunicação entre autor e leitor/espectador sob a ótica da

autobiografia (“Nada como a arte biográfica para a pessoa não se revelar, enquanto os

leitores [ou os espectadores] acreditam que ela se revela”) alinham-se a certo ceticismo

em relação às possibilidades referenciais do documentário autobiográfico. Ainda neste

sentido, diante dos artifícios de construção narrativa indicados pelos diretores, Bernardet

opta por utilizar o termo “ficção” em contraponto à utilização de “documentário”.

De maneira análoga à realizada em relação às proposições de Michael Renov, é

possível realizar alguns comentários sobre o posicionamento de Bernardet. Pode-se

sugerir que as metodologias narrativas empregadas tanto por Sandra Kogut quanto por

Kiko Goifman não ferem, por si só, nem o estatuto destes filmes enquanto

“documentários” e nem, em nosso ponto de vista, enquanto narrativas autobiográficas. O

fato de Goifman ter optado por manusear a ordem de um dos eventos narrativizados em

33 ou o fato de Sandra Kogut ter comportado-se na tomada fílmica de maneira, de certa

forma, “desleal”, em prol do sucesso narrativo em Um Passaporte Húngaro, não são

estratégias que, em essência, colocam em cheque a proposição autobiográfica dos filmes.

Existe a impressão de que títulos classificatórios como “documentário” ou

“autobiografia” poderiam ser empregados apenas a obras atravessadas por uma espécie

de pureza narrativa ou que empregassem o “grau zero” da linguagem cinematográfica.

Segundo o argumento de Bernardet, questionar a ordem cronológica em apenas um evento

de uma narrativa autobiográfica seria suficiente para colocar em suspeição a própria

possibilidade de existência da autobiografia enquanto linguagem autônoma do domínio

da não-ficção.

De encontro a este argumento, entretanto, é possível sustentar que a possibilidade

de “construção” existe na mais ortodoxa das narrativas autobiográficas e constitui-se

como parte inerente do próprio trabalho com a linguagem. Existem, evidentemente,

narrativas autobiográficas cujo “jogo” reside justamente em lidar de maneira ambígua

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com a possibilidade de referência ao mundo “real” e a possibilidade de fabulação e

invenção do “eu” – uma potencialização do artifício que, certamente, não se aplica à

intenção de todos os cineastas-autobiógrafos e seus documentários. Novamente, frisa-se

que “autobiografia” e “documentário” parecem ter passado por processos de suspeição

semelhantes, justamente pela relação com o real que ambos os conceitos apresentam –

“como a autobiografia, também o documentário resiste aos simples prazeres daquilo que

é imaginário, e deriva seu prestígio a partir da ilusão referencial que produz”, aponta a

autora Susanna Egan (EGAN, 1994, p. 600). Frisar a possibilidade de manipulação da

matéria-prima cinematográfica em narrativa não faz com que inexista a possibilidade de

encarar a autobiografia, ou documentário, como sistemas particulares de produção e

recepção de conhecimento.

Além disso, pode-se sugerir que existe um exercício de “identificação” do

espectador que distingue seu visionamento de filmes ficcionais, se em relação aos

documentários – incluindo-se, aí, os documentários autobiográficos. Em texto baseado

nas teorias de Jean-Pierre Meunier, a autora Vivian Sobchack dedica-se a expor o que

nomeia de “consciência documentária” (documentary consciousness), o conjunto de

condições que distinguem a maneira através da qual nos identificamos com filmes

documentários. Sobchack aponta que a estrutura das distinções percebidas que

experienciamos com a imagem cinematográfica foram subsumidas e elididas pela teoria

de identificação cinematográfica baseada na psicanálise lacaniana (SOBCHACK, 1999,

p. 241). Nas palavras de Sobchack:

Assumindo o "desconhecimento" regressivo do espectador da imagem

para o referente, e combinando o "irreal" e o "ausente" na ordem

privilegiada do Imaginário, esse modelo teórico dominante é altamente

problemático para investigar a estrutura da identificação documental. O

motivo é que este modelo trata o senso fenomenológico do espectador

do "real", na maneira que ele se relaciona com a representação

cinematográfica de qualquer espécie, como se fosse essencialmente

fantasmático em sua natureza, e parece não permitir as diferenças

estruturais que distinguem o nosso envolvimento com imagens

cinematográficas que consideramos como representações

documentárias do "real" daquelas que consideramos como

representações reais de uma "ficção". (SOBCHACK, 1999, p. 241.

Tradução nossa.)

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Sugere-se, aqui, que existe uma tendência analítica que busca identificar as

maneiras através da qual determinados discursos autobiográficos acabam por revelar a

máscara do autobiógrafo, ou que busca jogar luz nos sulcos da linguagem que evidenciam

a fratura de uma expectativa quiçá naturalista – uma expectativa que, no limite, talvez

não devesse existir. Da mesma forma que existe o questionamento acerca da possibilidade

de “invenção” referente a qualquer documentário autobiográfico, parcela significante do

sucesso destes filmes recai na maneira em que podemos crer que muitos de seus aspectos

narrativos, de fato, apontam para a vida de seu criador, que transcorre para além da tela.

Tome-se como exemplo a recepção de um filme como Sherman’s March, de Ross

McElwee. O filme que levou o diretor ao reconhecimento apresenta uma potencialidade

do uso de artifícios narrativos que levanta curiosidade acerca de até que ponto estamos

diante de uma faceta de McElwee enquanto personagem e enquanto um corpo que aponta

para sua individualidade no mundo “real” – um dopplegänger, segundo o autor Scott

MacDonald. Parte de nosso envolvimento com McElwee em Sherman’s March depende

da acepção de que diversos elementos da quixotesca jornada do personagem/diretor

apontam para uma vida vivida para além da tela. Esta é uma expectativa não apenas do

público, mas de seu diretor. Entretanto, quando Scott MacDonald entrevista Ross

McElwee a respeito do filme, o autor assere que sua motivação na jornada em busca do

amor romântico pelo Sul dos Estados Unidos só poderia ser uma “muleta” narrativa sobre

a qual o cineasta se debruça para fins cinematográficos: “Sherman’s March finge ser a

respeito de sua busca pelo amor, mas na realidade você apenas está usando isto para fazer

um longa-metragem”. McElwee, entretanto, responde negativamente: “Não sei se

concordo com a noção de que a busca pelo amor é um simples MacGuffin em Sherman’s

March. Parte de mim realmente estava esperando que a mulher certa se materializasse

pela miasmática névoa do Sul” (MACDONALD, 2014, p. 163-164). Se parte da mágica

de Sherman’s March deliberadamente depende da construção hiperbólica da persona

desajeitada de McElwee, levando as coisas às últimas consequências em uma jornada com

destino incerto pelo Sul dos Estados Unidos, outra parcela de sua mágica reside nas

diferentes maneiras através das quais o filme “toca o mundo” – tanto o “mundo” de seu

criador quanto o mundo que compartilhamos em sociedade. McElwee leva a cabo a

potencialização de uma caricatura de si próprio como parte do efeito dramático de

Sherman’s March, porém, em contraponto, elementos como a relação de cumplicidade e

afeto entre a irmã Dede e si próprio; ou a suspeição de seu pai e de sua família em relação

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ao seu ofício enquanto documentarista; a preocupação de Charleen Swansea com o

diretor; a tematização da enfermidade e morte da mãe de McElwee – estes e outros

aspectos adquirem força narrativa justamente por apontarem para a vida que o cineasta

vive cotidianamente.

Tomemos novamente uma sugestão de Bernardet para análise, a de que “Nada

como a arte biográfica para a pessoa não se revelar, enquanto os leitores (ou os

espectadores) acreditam que ela se revela”. Questiona-se, entretanto, o quanto este

aspecto seria dominante na “arte biográfica”, no caso dos documentários autobiográficos.

O argumento aqui é o de que mesmo que exista a possibilidade do cineasta-autobiógrafo

“esconder-se” ao longo do relato, são muitos os casos em que se busca o oposto. Diversos

cineastas apostaram no cinema documentário como maneira de revelação, cristalização

de uma vida ou compartilhamento de determinado aspecto individual justamente pelo

aspecto referencial possibilitado por ele. Da mesma forma, parte importante da força

narrativa destes filmes reside no estabelecimento de um pacto em relação ao desejo

sincero de revelação, da parte do cineasta, e da crença nesta sinceridade, da parte do

espectador.

Em outras palavras, encarar um filme como Silverlake Life: The View from Here

a partir de uma perspectiva “ficcional” seria negligenciar a contundência referencial

evocada por sua narrativa. Como já descrito, assistimos ao cotidiano do casal Tom Joslin

e Mark Massi durante um período prolongado de tempo, construído dominantemente a

partir de uma macroestrutura cronológica e que apresenta uma construção dramática de

desenvolvimento narrativo progressivo, causa e consequência. Joslin faz do registro

fílmico – no vislumbramento de uma narrativa futura – uma maneira de cristalizar o

processo pelo qual estava passando e que o levou à morte. A câmera está presente até nos

últimos de seus dias. Na impossibilidade física de realizar o trabalho de filmagem, seu

parceiro leva adiante a empreitada, dividindo sua própria tristeza diante da morte iminente

do diretor com a tarefa inadiável do registro fílmico em um momento crítico. Estamos

juntos do parceiro Mark Massi e do corpo inerte de Tom Joslin na última homenagem do

parceiro, uma canção e uma declaração de amor regida pelo enquadramento de câmera e

mãos trêmulas. O autor Bill Nichols comenta sobre a cena:

Mark Massi segura a câmera que treme, apontada para o corpo morto

de seu amante na cama que eles têm compartilhado por anos. O

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conhecimento, na sua associação tradicional com a coerência e o

controle, exige que se expanda para abranger a experiência trêmula e

imediata em si própria, pois tais momentos devem ser nomeados como

uma forma de “conhecer”. Não apenas a forma (filme caseiro

diarístico), mas o estilo (a visão trêmula da câmera, o embargamento na

voz de Massi, a sensação palpável de espaço entre os “rápidos e os

mortos”7 quando a câmera de Massi procura manter tenazmente a visão

do corpo nu e inerte de Joslin) atestam um conhecimento embutido no

coração e repleto de sabedoria (conhecimento desse sistema maior do

qual fazemos parte). (NICHOLS, 1994, p. 10-11. Tradução nossa.)

Utilizamo-nos da interpretação de Bill Nichols acerca da cena da morte de Tom

Joslin como subsídio para o entendimento acerca de como filmes que bebem da herança

do cinema direto produzem conhecimento autobiográfico. O rol de elementos que

compõem a tomada do corpo morto de Joslin, conforme filmado por seu parceiro, aponta

para a particularidade insubstituível da circunstância espaço-temporal que a engloba. Este

conhecimento de “particularidade insubstituível” evoca a máxima de Heráclito, quando

diz que não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. O presente fenomenal sugerido por

Heráclito na imagem do fluxo de um rio é representado pela tomada de Mark Massi e

aponta tanto para a realidade externa, material, quanto para a realidade interna, aquela

que diz respeito à tomada de consciência dos corpos em cena. Materialmente, não existiria

outra circunstância espaço-temporal que pudesse substituir a tomada realizada por Massi,

momentos após a passagem do parceiro, com os olhos ainda entreabertos e com feição

fixa. Como apontado por Bill Nichols, a tomada evoca também um estado de espírito

particular – uma tomada de consciência que seria irrecuperável em outra circunstância. O

chacoalhar da câmera, a voz embargada de Mark Massi, o canto da canção de despedida,

a visão de um companheiro de décadas morto no leito do lar do casal – todos estes

elementos traduzem-se naquele momento preciso na relação entre o que é feito visível

pela tomada e o corpo de quem segura a câmera.

Por esta tomada e pela construção narrativa como todo, existe um aspecto quase

“messiânico” que rege a empreitada de Tom Joslin para com Silverlake Life: Joslin morre

diante da câmera como teste da potencialidade referencial do cinema documentário

aplicado a uma ótica autobiográfica. Há um aspecto de coragem na conduta de Joslin,

7 O autor faz referência à expressão “the quick and the dead”, utilizada em contextos de duelos de armas de fogo em narrativas de faroeste. Pode-se interpretar que Nichols refere-se ao “espaço palpável” entre a morte e a vida justapondo a câmera vacilante de Mark Massi – a vida em sua emoção – diante do corpo morto do parceiro Tom Joslin.

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que, como frisado, adiciona o elemento “câmera” a um caminho que reconhecia como

cheio de desventura e frustração, tendo como finalidade assumir-se como representante

de uma situação delicada, porém que julgava importante que fosse registrado, cristalizado

e compartilhado enquanto narrativa. Existe, na atitude de Joslin e do parceiro em

Silverlake Life, um “impacto emocional da ‘realidade’”, conforme coloca Susanna Egan

em relação ao filme, que “impede qualquer simples evasão pós-estruturalista” (EGAN,

1994, p. 609).

De alguma maneira, pode-se sugerir que houve um questionamento crítico

vigoroso acerca da possibilidade de relação com o mundo que postulam filmes inseridos

no universo conceitual do cinema direto e que parece ter-se perpetuado. Há um

sentimento de inclinação em encontrar a “arte autobiográfica”, no seu estado mais puro,

em movimentos que possivelmente escapem à lógica referencial. “Invenção”, neste caso,

não estaria ligada à maneira através da qual um filme lança mão de diversos recursos

estilísticos para potencializar a “âncora” da relação entre narrativa e a vida de seu criador,

mas, sim, a criatividade residiria justamente nos aspectos pós-vérité. Se a noção de uma

suposta “objetividade” foi designada a filmes que se derivam do cinema direto, a

“subjetividade” autobiográfica residiria em seu contraponto, na utilização de elementos

estruturais que se afastam desta noção.

O esforço aqui, finalmente, reside em trazer luz à maneira através da qual

cineastas-autobiógrafos e teóricos refletiram sobre a relação particular que poderia ser

estabelecida entre cinema documentário e autobiografia, sobretudo a partir da lógica das

potencialidades referenciais deste tipo de cinema. Postulamos que a adesão a certa ótica

vérité aplicada aos documentários autobiográficos não apresenta relação intrínseca com

o valor criativo das obras. A “subjetividade” autobiográfica, portanto, não se evidencia

distinta em sua qualidade se comparamos um caso como Lost, Lost, Lost, de Jonas Mekas

com Diaries (1971 - 1976), de Ed Pincus. Ambos os filmes preservam seus estatutos

autobiográficos de maneiras diferentes, utilizando ferramentas distintas para

determinados efeitos narrativos e sendo intencionados e concebidos pelos seus diretores

justamente enquanto tais. É importante evidenciar, entretanto, que o filme de Jonas Mekas

e o de Ed Pincus – por meio de seus materiais imagéticos e sonoros, estruturas narrativas

e metodologias empregadas – relacionam-se com a vida de seus criadores e com a

realidade que os cerca de maneiras diferentes. Esta é uma discussão válida que contribui,

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como todo, para o entendimento da amplitude do fenômeno dos documentários

autobiográficos.

Diversos autores trabalharam mais de perto com documentários autobiográficos

que sublinham esta possibilidade referencial como matéria-prima narrativa. Autores

como Susanna Egan (1994), Jim Lane (2002), Scott MacDonald (2013), William

Rothman (1996) são alguns dos quais que apresentam reflexões acerca da produção

autobiográfica sob uma ótica que se inclina a olhar a maneira através da qual a relação

entre cineasta, mundo e narrativa apresenta-se particularmente no caso do cinema

documentário. No campo da prática, é possível dizer que o trabalho conceitual/artístico

que aconteceu a partir da década de 1970 em Cambridge, sobretudo na experiência do

MIT Film Section, foi um centro aglutinador pioneiro deste tipo de reflexão. A produção

de Ed Pincus (e, posteriormente, de seus alunos e outros cineastas influenciados por seu

trabalho) evidencia o interesse na exploração de uma possibilidade de cinema

autobiográfico balizado pela tradição do cinema direto.

É possível dizer que Diaries (1971 - 1976) continua sendo um dos documentários

que mais firmemente pôs à prova a possibilidade de narratividade autobiográfica a partir

da herança conceitual do cinema direto. Realizado em um período total de dez anos (cinco

de filmagem e mais cinco de espera, antes de sua finalização), o diário filmado de Ed

Pincus talvez não tenha recebido tanta atenção crítica – isto se pensarmos na ambição do

projeto como todo. Como frisado, o filme de Pincus é pouco exposto na obra crítica de

autores a quem comumente recorre-se nos estudos dos documentários. Pode-se lançar a

ideia de que o filme de Pincus tenha caído em uma espécie de “buraco negro” teórico-

crítico, devido à época de seu lançamento em relação ao ínterim conceitual no qual estava

inserido. Pincus realizou o filme entre 1971 e 1976, porém lançou-o apenas no início da

década de 1980. O autor Jim Lane8 aponta que as primeiras exibições “públicas” de

Diaries aconteceram ao longo de um semestre, em uma disciplina de cinema

documentário lecionada por William Rothman em 1981, na Universidade Harvard. É

possível vislumbrar que, neste novo momento, a narratividade autobiográfica do filme –

ainda que trouxesse novidades – talvez estivesse muito atrelada ao desenvolvimento

conceitual do cinema direto para que fosse visto sob a perspectiva de “novidade” nos

estudos críticos. Conforme exemplificado pelos textos de Michael Renov aqui citados e

8 Em troca de e-mails realizada para esta pesquisa, em janeiro de 2016.

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debatidos, talvez neste novo momento existisse euforia crítica maior para a análise de

filmes e vídeos que rompessem mais deliberadamente com qualquer herança do cinema

direto – já, neste momento, epistemologicamente suspeito. Hipotetiza-se, portanto, que a

força do momentum pós-vérité, como sugerido por Renov, tenha colocado o

reconhecimento da inventividade de uma obra como Diaries sob a égide de uma “velha

novidade”. Ou seja, a observância de uma unidade identitária, a utilização da construção

narrativa cronológica, o rigor com uma montagem sensivelmente menos “fragmentada”

– todos estes elementos poderiam soar narrativamente conservadores em um momento de

ruptura, sobretudo, de diversas destas estruturas referenciais.

É possível dizer que Pincus inaugura uma série de questões em relação à

possibilidade da construção autobiográfica sob a ótica do cinema direto, de sua

metodologia e estilística particular. Sua influência desemboca na experiência

autobiográfica de Cambridge, em suas universidades, que é responsável pela formação

autoral de Ross McElwee. A estilística do cinema direto aplicado à ótica autobiográfica

não é restrita a determinado período. Tal aporte metodológico desdobra-se como uma das

muitas possibilidades de construção narrativa e da possibilidade de o cineasta-

autobiógrafo referenciar-se a uma experiência individual, que figurando como matéria-

prima narrativa de diversos documentários autobiográficos contemporâneos. O

desenvolvimento histórico deste fenômeno e algumas das suas principais questões serão

expostas no capítulo seguinte.

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2. O Documentário de Cambridge e suas Universidades

2.1. Robert Drew em Harvard e Cinema Direto: preparação conceitual

O documentário autobiográfico de Cambridge concentra-se em dois focos, sendo

eles a experiência do MIT Film Section e a produção da Universidade Harvard, a partir

da atividade do departamento Visual and Environmental Studies (VES), havendo

intercâmbio desta produção entre as duas universidades. Desde a década de 1950 o debate

fomentado em centros universitários de Cambridge privilegiou uma noção do fazer

documentário a partir de um viés autoral em diferentes facetas – entre elas, a do

documentário autobiográfico. O desenvolvimento do documentário autobiográfico

relacionado à região parte da tradição do cinema direto e relaciona-se com suas as

questões metodológicas, estilísticas e narrativas. Tal produção foi tematizada

academicamente ao longo das décadas por autores como Jay Ruby (1977 e 1978), William

Rothman (1996) e Jim Lane (1997 e 2002), havendo também análises que tratam

especificamente de cineastas que podem ser relacionados a esta produção, como Ross

McElwee. Em 2013, a principal publicação a respeito do tema é lançada, “American

Ethnographic Film and Personal Documentary: The Cambridge Turn”, de Scott

MacDonald9 (2013). A publicação de MacDonald expõe em extensão a produção

documentária de Cambridge sob a ótica do filme etnográfico (na produção de cineastas

como John Marshall, Robert Gardner e Timothy Asch) e a do documentário

autobiográfico, tomando como objeto de estudo a obra de cineastas como Ed Pincus,

Alfred Guzzetti, Robb Moss de Ross McElwee. No texto, MacDonald aglutina a produção

de Cambridge e seus cineastas em torno de posicionamentos éticos e metodológicos

comuns.

De maneira distinta se em comparação a metrópoles como Nova Iorque ou Los

Angeles, a região de Boston, onde a cidade de Cambridge está inserida, é reconhecida por

9 Scott MacDonald já lidara anteriormente com a obra de diversos cineastas pertencentes à história do cinema de Cambridge, como Ross McElwee e Robb Moss, na série de publicações “A Critical Cinema”. Atualmente em seu quinto volume, trata-se de uma série de livros publicada desde 1988 no qual o autor realiza uma compilação de entrevistas com cineastas independentes norte-americanos. Parte do trabalho de entrevistas realizado para “American Ethnographic Film and Personal Documentary: The Cambridge Turn” foi publicado em um livro seguinte, “Avant-Doc” (MACDONALD, 2014), que conta com depoimentos de cineastas pertencentes ao grupo de Cambridge, como o próprio Ross McElwee, Alfred Guzzetti, Ed/ Jane Pincus e Nina Davenport.

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concentrar em uma área pequena um número elevado de instituições de ensino superior e

centros de pesquisa de excelência. Os casos mais notáveis são a Universidade Harvard e

o MIT, cujos prédios principais estão separados por uma distância de menos de dois

quilômetros na cidade de Cambridge, além de universidades como a Boston University,

o Emerson College e a Berklee College of Music – maior faculdade independente de

música do mundo. Separadamente ou integrados às universidades, a região abriga número

significativo de museus, arquivos e bibliotecas de todas as áreas do conhecimento, sendo

destino frequente de pesquisadores de várias partes do mundo.

A inclinação à produção de conhecimento e a epistemofilia são, portanto, parte

integrante da atmosfera de Cambridge e Boston. É possível sugerir que este foi um dos

motivos pelos quais o cinema documentário, em sua modernidade, encontrou na região

um espírito profícuo para o desenvolvimento, tanto a partir do interesse da população

intelectual (professores, pesquisadores) quanto em relação à grande disponibilidade de

estrutura material e recursos financeiros. Da mesma forma que os grandes estúdios,

produções ficcionais de sucesso comercial e Hollywood são relacionados à região de Los

Angeles, ou se a produção do cinema avant-garde e underground encontram berço em

Nova Iorque, Boston abrigou uma porção de episódios caros ao documentário moderno

estadunidense e abrigou diversos dos cineastas relacionados a ele. Principalmente ao

redor de suas universidades, a produção realizada em Boston foi responsável pelo

avançamento de questões conceituais e metodológicas especificamente no campo do

cinema documentário. Os cineastas ligados a esta história fazem parte de um sistema de

retroalimentação teórico e prático que fomenta o senso de um pensamento firme e autoral

em relação ao documentário da região. Existiu, e até hoje existe, um processo de

colaboração entre os cineastas, não necessariamente em relação à feitura prática dos

filmes, mas em relação a um debate crítico que fomenta a produção regional. Diversos

dos filmes são realizados total ou parcialmente com vínculos institucionais-acadêmicos,

utilizam os centros de produção das universidades e tem o auxílio de prêmios e verbas

delas destinados para este fim. Há um fenômeno consolidado na região de docentes que

também são cineastas, bem como a existência de alunos-cineastas que posteriormente

tornam-se professores. Autores estritamente teóricos da região costumam dar visibilidade

em seus escritos à produção local, assim como é o caso dos cineastas frequentemente

citarem ideias destes como influência para os seus filmes.

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Pode-se afirmar que este debate entre alunos, professores e cineastas, bem como

o incentivo à produção fomentado pelo ambiente universitário, foram elementos

importantes para a edificação de metodologias e posturas éticas frente a um novo cenário

do documentário, possibilitado por diversos tipos de inovação tecnológica. A introdução

de uma maior mobilidade no aparato cinematográfico, principalmente a partir da redução

de peso das câmeras de 16mm, bem como a possibilidade da captação portátil de som

direto e sincrônico, foram elementos que impulsionaram a reavaliação da relação entre o

cineasta e o registro do mundo ao redor. Houve uma simplificação do processo de feitura

e finalização cinematográficos que sugeria uma aproximação maior do indivíduo-cineasta

(ou de uma equipe modesta) com o processo de captação imagético e sonoro. Surfando

na onda conceitual de inspiração realista, fomentou-se um senso de liberdade

cinematográfica proporcionado por uma virada tecnológica e epistemológica que era

vivido no campo do documentário. Esta “porta para o mundo” foi apresentada mais

consistentemente a partir das proposições de Robert Drew e as primeiras produções de

seu grupo. As narrativas de filmes como Primary (1960), Crisis (1963) ou The Chair

(1963), introduziram uma nova possibilidade de construção de conhecimento que se

pautava menos em uma lógica narrativa analítica e didática. Diferentemente, Drew e seu

grupo buscavam realizar narrativas documentárias que privilegiassem uma estrutura

dramática, pautada na interação dos indivíduos com as pessoas ao redor de si, bem como

com os elementos do mundo material que os rodeavam. A noção de cinema direto deriva

desta virada epistemológica e constitui uma tradição própria, apresentando variações

metodológicas e desdobramentos ao longo das décadas. O cinema autobiográfico

realizado em Cambridge é um destes desdobramentos, que aponta para uma série de

valores alicerçados pela noção de cinema direto. Diversos cineastas importantes para a

história do cinema direto tiveram alguma relação com Cambridge ou com a região de

Boston, como é o caso de Robet Drew, Richard Leacock, dos irmãos Maysles, Frederick

Wiseman e Ed Pincus.

Um ponto de partida interessante para o pensamento acerca da relação entre a

noção de cinema direto e o documentário autobiográfico realizado em Cambridge

consiste no fato de que a preparação conceitual desta metodologia foi desenvolvida por

Robert Drew na universidade Harvard, durante um ano sabático em 1955. Bem

documentada (O’CONELL, 1992; DREW, 1955; 2001; 1988), a passagem de Drew pela

universidade Harvard consistiu no estudo acerca de novas possibilidades de produção e

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veiculação de narrativas documentárias para a televisão, em um momento que

prenunciava transformações tecnológicas e epistemológicas na produção audiovisual.

Drew passou o ano como Fellow da Fundação Nieman, que faz parte da universidade.

Desde 1938, a Fundação Nieman dedica-se a abrigar, anualmente, jornalistas de diversos

países, incentivando a reflexão acerca do “estado da arte jornalística”, bem como

financiando pesquisas que promovam seu desenvolvimento. Segundo Drew (2001), o

ponto de partida de seu estudo consistia em analisar o porquê os documentários

veiculados nas emissoras de TV eram monótonos, refletindo acerca do que poderia ser

feito para que este material audiovisual se tornasse envolvente e entusiasmante. Drew

refere-se à necessidade de uma abordagem editorial que “valorizasse a realidade

capturada com a intimidade de uma câmera still” (DREW, 2001), e que levasse em

consideração a inovação tecnológica que possibilitaria isto nos filmes. A “televisão

documentária” (documentary television), nos moldes de Drew, dependeria do domínio

desta tecnologia e de sua transposição em narrativa de uma maneira satisfatória.

Drew relata que seus mentores em Harvard sugeriram uma incursão pelo estudo

de formas narrativas como contos curtos, romances e textos dramáticos, para a reflexão

acerca da adaptação destas formas para conteúdo televisivo. Drew concluiu que os

documentários exibidos na televisão, naquele momento, realizavam um mau uso do meio,

consistindo em “palestras sonoras ilustradas com imagens” (DREW, 1988, p. 391).

Segundo Drew, estes filmes, “baseados verbalmente”, tinham um limite preestabelecido

em relação à quantidade de poder que poderiam gerar no público (O’CONNOR, 1992, p.

33). Diferentemente, o interesse e o entusiasmo de um espectador em relação ao conteúdo

televisivo, sugeria Drew, residiria em uma lógica dramática. Os espectadores

envolveriam-se com os personagens, assistindo a como eles reagem em relação aos

eventos do mundo, e responderiam intelectualmente e emocionalmente a partir do

desenvolvimento narrativo dramático:

A lógica dramática funciona porque o espectador está vendo por si

próprio e existe suspense. O espectador pode se interessar pelos

personagens. Os personagens se desenvolvem. Coisas acontecem. Seja

este drama um filme, ou um jogo de futebol, ou uma peça bem-montada,

o espectador fica apto a utilizar seus sentidos da mesma forma que seus

pensamentos; suas emoções da mesma forma que sua mente. A lógica

dramática ganha força em uma curva que pode atingir níveis elevados.

Quando funciona, isto coloca os espectadores mais em contato com o

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mundo, em contato consigo próprios e com revelações sobre eventos,

pessoas e ideias. (DREW, 1988, p. 391. Tradução nossa.)

Por conseguinte, a construção narrativa dramática aplicada ao documentário

televisivo deveria proporcionar uma sensação ao espectador de “estar lá”, privilegiando

a vivência de uma experiência antes de buscar esgotar intelectualmente ou didaticamente

um assunto:

O que isto adiciona para o espectro jornalístico é a habilidade de deixar

os espectadores experienciarem a sensação de estar em outro lugar,

atraindo-os para desenvolvimentos dramáticos da vida de pessoas

inseridas em histórias de importância. (...) Ao longo do meu ano como

(fellow na) Nieman, minha missão estava se tornando clara: transmitir

experiência. Deixar para os outros o resto – a exposição, a análise e a

elucidação – para os meios de comunicação mais adequados a essas

tarefas. (...) O tipo certo de programação documentária deveria criar

mais interesse do que ele possa satisfazer, mais questionamentos do que

ele possa tentar responder. (DREW, 2001. Tradução nossa.)

Ainda durante a estadia em Harvard, Drew assistiu ao documentário televisivo

Toby and the Tall Corn, dirigido e fotografado por Richard Leacock, que proporcionava

“sentimento e experiência que eram fortes o suficiente para superar uma narração inane”

(DREW, 2001). Iniciando a longa parceria entre ambos, Leacock foi procurado por Drew

para uma reunião, relatando que o produtor buscava uma maneira de tornar o jornalismo

televisivo menos verbal e mais baseado na observação da realidade, com o intuito de

prover ao público “uma sensação daquilo que estava acontecendo” (LEACOCK, 2012. p.

208). É possível dizer que a defesa deste tipo de sensação narrativa foi o mote norteador

da carreira de Leacock e dos projetos em que participou, inclusive sendo incorporado ao

título de sua autobiografia, denominada “a sensação de estar lá” (“the feeling of being

there”). O resultado do encontro entre Leacock e Drew sugeriu que eram necessários

ainda mais desenvolvimentos técnicos e metodológicos para a implementação narrativa

que tinham em mente. Como final de sua estadia em Harvard, Drew escreve um artigo

que sumariza seus estudos em relação ao futuro do documentário jornalístico. No artigo,

intitulado “See it then” e publicado nos Nieman Reports de 1955, o produtor enfatiza o

mesmo entusiasmo discutido com Leacock em relação à narrativização da realidade a

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partir de uma perspectiva mais observativa e menos didática. Drew refere-se ao método

utilizado por Edward Murrow no programa jornalístico See it Now:

Ele entra nos mundos particulares das pessoas privadas e reporta a

realidade de uma maneira que nunca foi feita. (...) Seu método é

“mostrar” ao espectador ao invés de “contar” a ele. O resultado disto é

compreender as notícias dando ao espectador a informação e o estímulo

para que ele produza o sentido por ele próprio. Em sua essência, a nova

forma de Murrow dá ao espectador uma sensação de ter experienciado

as notícias. (DREW, 1955. p., 34. O grifo é do autor. Tradução nossa.).

Segundo Drew (2001) o período entre 1955 e 1960 foi destinado à concepção e

desenvolvimento das técnicas de montagem, formação da equipe, aperfeiçoamento do

equipamento e a busca da estória ideal para o debut de suas produções televisivas. O

resultado viria com Primary, realizado por Robert Drew e Richard Leacock, que narra o

envolvimento de John F. Kennedy nas eleições primárias de 1960. Primary é o marco do

início daquilo que será chamado de cinema direto norte-americano. Durante a década de

1960, as ideias de Drew, cristalizadas nas produções de seu grupo, Drew Associates, serão

objeto de constante revisão e crítica. Cineastas e teóricos ligados à região de Cambridge,

Boston e suas universidades terão parte no desenvolvimento deste debate. É importante

destacar que o protopensamento do cinema direto elaborado por Robert Drew em Harvard

em 1955 é imbuído da noção de que o Documentário em sua modernidade urgia por

prover um senso de “experiência” vivida ao espectador, de uma maneira que ainda não

aparecia no horizonte do documentarismo de então. Em sua fala, Drew refere-se a uma

narratividade documentária calcada em “exposição, análise e elucidação” como

inadequada à virada tecnológica da década de 1950 e ao desenvolvimento de uma

programação televisiva envolvente. O que estava em jogo, portanto, era uma reação

epistemológica em relação à ética educativa que permeava dominantemente o Cinema

Documentário nas primeiras décadas de sua história. A construção de conhecimento em

narrativas documentárias, neste novo momento, substituiria o didatismo elucidativo pelo

desenvolvimento dramático. Buscava-se poder construir uma narrativa que privilegiasse

em imagens e sons a interação das pessoas com seus pares e o intercâmbio destas com o

mundo das superfícies ao redor. Neste mesmo sentido, tratava-se de representar o mundo

a partir da transposição da experiência de habitá-lo e de conviver com outros indivíduos.

O conhecimento proveniente deste tipo de narrativo dependeria da identificação, ou da

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vibração, da experiência do espectador com as experiências dos indivíduos filmados e das

circunstâncias em que estão inseridos. Uma liberdade de fruição espectatorial que Drew

sugere, como citado, “criar mais interesse do que ele possa satisfazer e mais

questionamentos do que ele possa tentar responder”.

A produção dos Drew Associates, desta forma, abriu caminho para uma estética

narrativa do documentário que valorizava o “estar no mundo” da câmera e do cineasta em

circunstâncias espaço-temporais determinadas. O sucesso de um filme como Crisis, neste

novo momento, dependia que os cineastas partilhassem durante dois dias o mesmo local

e o mesmo espaço do presidente John F. Kennedy ou do governador do Alabama George

Wallace na disputa em relação ao sucesso ou não da matrícula dos dois primeiros

estudantes negros da Universidade do Alabama. Capturar a “História sendo feita” sugeria

que existiria apenas uma chance para que determinado registro fosse feito: perde-lo uma

vez significava perde-lo para sempre. Da mesma forma, era imperioso que a narrativa

montada sublinhasse a ciência dos personagens em relação aos desdobramentos do caso

à medida em que acontecessem. Tratava-se de proporcionar uma experiência ao

espectador de, de alguma forma, viver (ou reviver) a mesma circunstância dos

personagens nos filmes, partilhar das mesmas surpresas e ter a possibilidade de reagir de

maneira análoga a eles durante a experiência original que viveram. A relação entre

cineasta e personagem/mundo sob a ótica da valorização da tomada e de sua

circunstância, conforme os filmes produzidos por Robert Drew, funda o alicerce

conceitual do cinema direto e inicia um pensamento cinematográfico que será reavaliado

e desdobrado nos EUA pelas décadas seguintes, como na experiência autobiográfica de

Cambridge. Indo um pouco além, a produção documentária autoral de Cambridge, em

diferentes épocas e a partir de nuances distintas, relaciona-se de diversas formas com a

noção de “experiência” ressaltada por Drew em suas pesquisas. Pode-se resgatar aqui a

hipótese de Scott MacDonald, de que a produção de Cambridge giraria em torno da escola

filosófica originada na região, o Pragmatismo, criado por William James e Charles S.

Peirce. MacDonald sustenta que a produção cinematográfica de Cambridge, em sua

heterogeneidade, gravita ao redor desta noção:

Os tipos de documentário que são mais relacionados a Cambridge não

reportam, fundamentalmente, descobertas ou oferecem polêmicas. Em

vez disso, eles buscam observar cinematograficamente e reconstituir

experiência real, para que os cineastas e seus públicos possam entender

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o processo da vida humana mais completamente. (MACDONALD,

2013, p. 8. Tradução nossa.)

É possível sugerir, portanto, que o vínculo do documentário autobiográfico de

Cambridge com a noção do cinema direto inicia com o fato de que o desenvolvimento da

metodologia aconteceu em uma de suas universidades. Richard Leacock, para além de

seu contato com Drew neste momento, terá influência direta neste episódio, como

fundador e professor do MIT Film Section, trabalhando com produção, inovação e

docência no departamento por vinte anos, de 1968 a 1988. Além da dupla, é interessante

mencionar que outros cineastas ligados à noção de cinema direto também tiveram relação

com a região de Boston. Albert e David Maysles nasceram na cidade e ambos estudaram

Psicologia na Universidade de Boston. Os Maysles participaram das primeiras produções

dos Drew Associates e em 1962 fundaram a própria companhia, a Maysles Films, pela

qual realizaram filmes como Showman (1963), Salesman (1968, sendo que parte do filme

também se passa na Nova Inglaterra) e Grey Gardens (1976). Os filmes dos irmãos

Maysles contribuíram tanto para o cinema direto do início da década de 1960 quanto para

seus desdobramentos na década de 1970. Ed Pincus e Ross McElwee são cineastas ligados

à história de Cambridge que relatam que o interesse pela produção cinematográfica partiu

com o visionamento de alguns dos filmes dos Maysles. Frederick Wiseman também

nasceu em Boston e graduou-se em direito pela Boston University. Titicut Follies,

lançado em 1967 e o primeiro de seus documentários que obteve uma resposta maior da

comunidade cinematográfica, foi filmado em uma instituição de saúde mental em

Bridgewater, estado de Massachussets. O filme foi realizado juntamente com John

Marshall, cineasta ligado à universidade Harvard e que contribuiu, de maneiras diversas,

para a produção de cineastas como Ed Pincus e Ross McElwee10.

10 Marshall forneceu o equipamento e o primeiro tipo de instrução cinematográfica para que Ed Pincus e David Neuman filmassem o longa-metragem de estreia da dupla, Black Natchez (MACDONALD, 2014, p. 82). Outro exemplo é a colaboração de Ross McElwee como cinegrafista de N!Ai, The Story of a !Kung Woman, um dos filmes que John Marshall realizou na Namíbia com a tribo dos !Kung.

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2.2. A carreira e o pensamento de Ed Pincus

Ed Pincus é um dos principais nomes relacionados ao documentário

autobiográfico de Cambridge. Um dos fundadores do MIT Film Section, Pincus

influenciou uma série de jovens cineastas que passaram pelo departamento. Ross

McElwee o menciona em praticamente todas as entrevistas quando indagado acerca das

principais referências para sua obra. Miriam Weinstein afirma “Ed era o representante-

ancião da cena de Cambridge” (MACDONALD, 2013, p. 131). Em depoimento a Scott

MacDonald, Robb Moss sugere que embora jovens espectadores achem que a obra de

Ross McElwee marcou o início dos documentários autobiográficos, “havia muitas

pessoas realizando explorações sync-sound antes de Ross e, como realizador e docente,

Ed (Pincus) esteve no início deste impulso particular em direção à autobiografia”

(MACDONALD, 2006, p. 185). Lucia Small afirma ter sido indiretamente influenciada

pelo trabalho de Pincus, dado que suas principais referências foram o trabalho de

cineastas como Ross McElwee e Robb Moss (WHITE, 2013). Nina Davenport, aluna de

Ross McElwee e Robb Moss, enquadra-se neste mesmo caso.

Ed Pincus é menos popular que outros cineastas relacionados ao cinema direto

estadunidense, como os irmãos Maysles, D.A. Pennebaker ou o próprio Richard Leacock.

A influência de sua figura e de sua produção para o cinema documentário desenvolvido

em Cambridge é grande o bastante, entretanto, sendo que sua obra deve ser colocada em

evidência. Os filmes produzidos e lançados por Pincus entre 1965 e 1970 apresentam

elementos temáticos e estilísticos que auxiliam a compreensão das motivações

existenciais de Diaries (1971 - 1976). A parca distribuição de sua obra tem relação com

o isolamento social do diretor e de sua família vivido após a finalização do filme.

Terminado no início da década de 1980, Diaries foi o último projeto cinematográfico de

Ed Pincus antes de um hiato de mais de vinte anos, período no qual abdicou totalmente

da produção e do ensino cinematográficos. Este hiato foi quebrado na metade da década

de 2000, quando a diretora Lucia Small11 se juntou a Pincus para um novo projeto,

11 Antes do contato com Pincus, Lucia Small realizara o documentário autobiográfico My Father, the Genius (2002), que tematiza a figura de seu pai, o excêntrico arquiteto Glen Howard. Na metade da década de 2000, Small e Pincus conhecem-se no júri de um festival de documentários e estabelecem uma parceria que resultou em The Axe in the Attic. No documentário, Pincus e Small viajam para as regiões afetadas pelo furacão Katrina a fim de oferecer um ponto-de-vista mais aproximado a respeito da tragédia, estabelecendo contato com indivíduos que sofriam os prejuízos causados por ela. O filme conta com uma postura reflexiva da dupla bem demarcada, sendo que as discussões referentes ao processo em

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finalizado em 2007, The Axe in the Attic. Small e Pincus também realizaram

conjuntamente seu último filme, One Cut, One Life (2015), que tem parte de sua narrativa

dedicada à tematização dos períodos finais da vida do cineasta, após o diagnóstico de uma

uma doença fatal. Pincus faleceu em novembro de 2013.

Parte das razões pelas quais Pincus afastou-se da produção cinematográfica e de

seu envolvimento com as universidades da região de Cambridge estão expostos na

narrativa de Diaries. O cineasta e sua família estavam sofrendo ameaças de morte da parte

de Dennis Sweeney, ativista e colaborador de Pincus no projeto de Black Natchez, seu

primeiro filme. Posteriormente diagnosticado como esquizofrênico, Sweeney acreditava

que o realizador fazia parte de uma conspiração maligna secreta, ao lado do deputado

Allard Lowenstein, assassinado por Sweeney anos depois. O problema culminou na

mudança definitiva da família Pincus para uma fazenda no estado de Vermont, por onde

o cineasta permaneceu em um estilo de vida low profile pelas décadas seguintes. Aliado

a isto, são frequentes os comentários a respeito de que a experiência de Diaries fora

vertiginosa o bastante para que Pincus se abstivesse de enveredar por outra empreitada

cinematográfica por anos. Em entrevista a Scott MacDonald, o realizador afirma que o

filme, além de ter cumprido tudo aquilo que desejava realizar cinematograficamente no

período, teria exigido muito dele próprio (MACDONALD, 2014, p. 95). Ross McElwee,

em entrevista para esta pesquisa, afirma que Pincus haveria dito a ele que “não tinha

certeza que haveria algo a mais para aprender como documentarista – ao menos, não como

um documentarista-autobiógrafo”. Diaries, como outros documentários autobiográficos

aqui trabalhados, pressupôs um envolvimento emocional acentuado das partes

envolvidas, desencadeando efeitos de tensão emotiva por um período indefinido na vida

da família. A narrativa de One Cut, One Life, realizado por Pincus e Lucia Small quarenta

anos após a feitura de Diaries, revela o impacto provocado pelo filme, no momento em

que entra em pauta a possibilidade de uma nova empreitada autobiográfica, desta vez

relativa à tematização da morte eminente do realizador.

andamento são parte importante da narrativa. Pincus e Small desfizeram a parceria após o término do filme, restabelecendo-a no início da década de 2010. Recebendo a notícia da doença fatal de Pincus, a dupla decide tematizar o último ano de sua vida, em um momento em que Small também passava pelo luto da perda de duas amigas próximas. O trunfo de One Cut, One Life (deixando de lado algumas delicadas questões éticas trazidas pelo filme) é resgatar a figura de Pincus, sua obra e sua família quarenta anos após a experiência de Diaries. Para um espectador familiar da vertiginosa experiência de Diaries é comovente poder rever Jane Pincus e sua força, em sua maturidade, lidando com situações complexas, bem como ver os filhos do casal, Ben e Sami, como adultos e, no novo momento, pais de suas próprias crianças.

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Pincus despertou seu interesse por fotografia e, em seguida, por cinema, quando

ainda era estudante de filosofia. Tanto no campo das artes quanto no campo das ciências

humanas, o foco de suas atenções constituiu-se em trabalhar materialmente com a

realidade e compreender o mundo a partir de seu funcionamento fenomenológico.

Segundo Jim Lane, Pincus era “profundamente influenciado por discussões filosóficas a

respeito da consciência, fenomenologia Kantiana, as ideias de Stanley Cavell que levaram

à publicação de The World Viewed e as teorias de Walter Benjamin sobre o impacto

político e social da reprodutibilidade técnica” (LANE, 1997, p. 4). O interesse pela

materialidade evoluirá para o fascínio pela possibilidade de captura e representação da

experiência vivida e, de maneira geral, do ciclo da vida12.

Nascido no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, em 1938, Pincus graduou-se em

filosofia pela Universidade de Brown, em 1960, tendo em seguida feito a pós-graduação

em Harvard de 1961 a 1964, obtendo o título de mestre. Neste período, começou a

interessar-se por fotografia still, tendo assistido a uma aula sobre o tema no recém-criado

Carpenter Center for the Visual Arts13. O interesse pelo cinema aconteceu a partir do

visionamento de Showman na própria universidade, filme que tematiza o empresário de

cinema Joe Levine em seu cotidiano, dirigido pelos irmãos Maysles e lançado em 1962.

Mais do que o eixo temático do filme, entretanto, o que chamou a atenção de Pincus fora

um “sentimento místico da realidade, como (poder) tocar sua textura” (LEVIN, 1971. p.

331). Lembrando-se do momento quarenta anos depois, em entrevista a Scott MacDonald,

Pincus lembra trechos em que os irmãos Maysles, ao filmarem pela luz da janela ou de

maneira semelhante, “produziam reflexos (flares) na lente, tornando os grãos visíveis.”.

12 O interesse pela meditação acerca do ciclo da existência persistirá em outras atividades que Pincus

realizou em sua pausa cinematográfica, durante a vida de fazendeiro em Vermont. À época de seu obituário, Pincus foi lembrado não apenas pela sua produção cinematográfica (por ela, também), mas por seu sucesso em atividades pouco relacionadas diretamente ao cinema. Entre estas, pode-se destacar o próspero trabalho na fazenda de cultivo de flores da família Pincus (Third Branch Flower Inc.), como também o comando de um centro de ensino e prática da arte marcial japonesa Aikido, da qual Pincus era sensei. A expressão Aikido, compêndio entre luta, filosofia e crenças religiosas, traduz-se em “caminho da unificação com a energia da vida”. O dojo da família, “Aikido of Champlain Valley”, é hoje liderado pelo filho do diretor, Ben Pincus.

13 O Carpenter Center for the Visual Arts é o edifício onde funcionam até hoje as atividades do departamento Visual and Environmental Studies, no qual Pincus lecionou na década de 1980 e hoje lecionam Ross McElwee, Robb Moss e Alfred Guzzetti. O prédio – o único edifício projetado por Le Corbusier nos EUA, e sua última obra – também abriga instituições como o Harvard Film Archive.

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O diretor complementa: “Fiquei impressionado com a qualidade tátil destas tomadas e

comecei a pensar mais seriamente sobre cinema. ” (MACDONALD, 2014, p. 80)

A primeira oportunidade verdadeira de realizar um filme surgiu em 1965. O debut

de Pincus no cinema documentário foi impulsionado pela motivação ideológica, algo que

será repetido em outros de seus filmes, como One Step Away e o próprio Diaries. Como

outros jovens da época, o diretor estava engajado politicamente no movimento pelos

Direitos Civis e tinha o desejo de fazer algo para contribuir com ele. No momento,

diversos estudantes e ativistas rumaram para o Sul dos Estados Unidos, principalmente

para o Mississipi, sugerindo que no local havia uma “união de consciência” em relação

ao movimento. Diante dos relatos sobre a existência de organização da comunidade negra

a fim de resistir e protestar por condições sociais mais igualitárias, Pincus e David

Neuman (que será seu parceiro em diversos outros filmes), rumaram no verão de 1965 à

cidade de Natchez, onde havia efervescência política. Natchez era, também, o centro de

atividades da Ku Klux Klan na região. Pincus acreditava que seria necessário registrar e

trazer à tona esta circunstância particular empregando algo similar à técnica dos irmãos

Maysles (LEVIN, 1971, p. 331) – referindo-se à narrativização os acontecimentos a partir

do recuo observativo da câmera, o som sincrônico como elemento imperioso à tomada e

a montagem cronológica.

Pincus e Neuman permaneceram por mais de três meses em Natchez (LEVIN,

1971. p. 332). Residindo em uma casa no subúrbio da parte negra da cidade, voltaram

com quarenta horas de material cujo resultado final tornou-se o filme de pouco mais de

sessenta minutos. A temática de Black Natchez gira em torno da organização da

comunidade negra da cidade que se dividia em dois polos. Segundo o filme nos conta, no

verão de 1965, seguindo a onda dos protestos pelos Direitos Civis, duas organizações

começaram os trabalhos na cidade a fim de conscientizar e organizar a população negra.

As demandas passariam pela possibilidade de voto, pela instituição de direitos iguais

perante à lei e ao sistema judiciário, condições igualitárias de emprego, remuneração e

educação. Apesar de reivindicações comuns, os dois grupos promoviam maneiras

distintas de protestar por direitos. Um deles era o NAACP (National Association for the

Advancement of Colored People), organização fundada ainda no início do século XX e

que encontrava o seu poder basicamente na classe-média e na burguesia negra,

empresários e pastores. Em geral, o NAACP demandava a luta e a conscientização através

de uma via democrática, buscando assegurar o registro e a possibilidade de voto dos afro-

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americanos. Por outro lado, havia o FDP (Mississipi Freedom Democratic Party), uma

organização política que falava pelos negros pobres, maior parte da população, com um

viés mais assertivo, radical e revolucionário14

Figura 5: A organização da comunidade negra de Natchez em Black Natchez (Ed Pincus e David

Neuman, 1967)

No filme, a reivindicação pela definição do órgão que representaria a comunidade

intensifica-se após um atentado ao carro do chefe do NAACP. Pincus e Neuman filmam

debates ocorridos em praça pública, bem como nos escritórios das organizações, igrejas

e escolas. A falta de unanimidade dos grupos em relação à atitude a ser tomada é

14 Em vias de comparação, Pincus aponta (MACDONALD, 2014, p. 84), que a tradição não-violenta de Martin Luther King tinha como contraponto um poder efervescente representado pela figura de Malcolm X, nova no cenário político, e o seu discurso que sugeria a revolução “por qualquer meio necessário” (“by any means necessary”). O filme também apresenta uma outra pequena organização, o “Deacons for Defense”, que propunha o armamento da população e a tática de guerrilha para defenderem-se frente à violência praticada pela Ku Klux Klan. O tipo de acesso que Pincus e Neuman tiveram dentro da comunidade leva a crer que o longo período que ficaram no local foi importante para este tipo de abordagem. Havia a necessidade de, enquanto cineastas brancos, conquistar a confiança de que estavam trabalhando a favor de uma causa comum.

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enfatizada. Segundo a linha de ação de cada organização, o NAACP promovia a

pacificação e pedia paciência à população antes de qualquer tipo de ação, enquanto

representantes do FDP (e da maior parte da população), sustentava a necessidade de

ocupar as ruas e marchar até a parte branca da cidade, sugerindo um embate mais direto.

O impasse entre os dois pontos-de-vista não é desfeito até o término do filme, e Black

Natchez faz de sua principal matéria-prima narrativa a visibilidade das diferentes

possibilidades de organização e ação que ocorriam na comunidade negra da cidade do

Mississipi naquele momento específico. Estilisticamente e metodologicamente falando,

Black Natchez inclui-se em um primeiro momento do cinema direto, no sentido de que se

furta de incorporar à dominantemente à narrativa a participação ou endereçamento dos

personagens aos cineastas. Black Natchez evita estruturar a narrativa em torno de um

personagem central, da mesma forma que não tenta oferecer um clímax à situação de crise

que está instaurada. A maneira através da qual a montagem é trabalhada em Black

Natchez, como um “mal-necessário”, e a expectativa de que o espectador assuma um

posicionamento ou um julgamento diante do filme é comentada por Pincus, cinco anos

depois:

Naquele momento, em 1965, eu tinha uma noção de Cinéma-Vérité

como uma espécie de fluxo. O que o cineasta do Cinéma-Vérité queria

fazer era capturar este fluxo e a montagem era uma infeliz necessidade.

Mas idealmente, o tempo real e o filme seriam exatamente a mesma

coisa – uma ideia meio Andy Warhol – e, de alguma forma, isto

demandaria ao público uma verdadeira sintonização aos detalhes mais

minuciosos, para que eles se tornassem realmente participantes ativos

como espectadores. (LEVIN, 1971, p. 332. Tradução nossa.)

Em 1967, na época da finalização e lançamento de Black Natchez, Pincus e

Neuman já haviam filmado o próximo filme da dupla, One Step Away, finalizado no ano

seguinte. Originalmente financiado para exibição televisiva, One Step Away nunca fora

ao ar, tendo apenas parca distribuição em salas do circuito alternativo de cinema. O

conteúdo do filme foi considerado agressivo para a “sala de estar” da família

estadunidense pelos executivos da emissora de televisão financiadora (LEVIN, 1971, p.

341) e, após a exigência de diversos tipos de adequação do documentário, a veiculação

foi deixada de lado. One Step Away revela um desenvolvimento temático que se aproxima

da temática abordada por Pincus posteriormente em Diaries (1971-1976). Se em Black

Natchez, o desejo de filmar partiu do interesse em participar e trazer conhecimento acerca

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dos protestos pela igualdade de Direitos Civis, a demanda por um engajamento em

questões políticas continua a existir em One Step Away, porém de maneira diferenciada.

Pincus e Neuman almejavam retratar a experiência da sociedade americana

contemporânea a partir da privacidade dos lares e da exploração temática de núcleos

familiares em sua intimidade. O projeto inicial proposto para a PBL (Public Broadcasting

Laboratory, uma nova emissora que havia surgido) consistia em que os cineastas

pudessem fazer filmes sobre diferentes famílias estadunidenses: “Uma família do

Appalachia, uma família de um gueto negro, uma família de imigrantes indianos”

(LEVIN, 1971, p. 339), exemplifica Pincus.

No caso de One Step Away, decidiu-se por trabalhar com aspectos da cultura

hippie, fenômeno amplamente difundido no momento. Inicialmente, o filme tematizaria

o funcionamento de uma comunidade rural de subsistência no norte da Califórnia. Como

nos mostra sua primeira sequência, porém, o rápido desmantelamento da comunidade faz

com que seus integrantes rumem a San Francisco, um dos principais polos do movimento,

e o eixo temático do filme concentra-se em acompanhar a tentativa de viver tal estilo de

vida na cidade grande. Desdobrando-se em relação a Black Natchez, a experiência hippie

em One Step Away é retratada a partir de uma narrativa que se articula em relação à

individualidade dos personagens. Sabemos seus nomes, entendemos os laços afetivos

que portam uns com os outros e traços de suas personalidades são explorados.

Majoritariamente, estas informações são narrativizadas a partir da interação dramática

entre os personagens e dos diálogos que travam nas situações cotidianas em que estão

inseridos. Em outras palavras, o cerne metodológico da captação da tomada concentra-se

ainda no recuo observativo da câmera e o som sincrônico como elemento imperativo das

cenas. Em comparação a Black Natchez, One Step Away também é mais permissivo em

relação à montagem. Se no filme anterior existia uma postura purista no que concerne a

preservação do “fluxo da realidade” de maneira mais vigorosa, One Step Away admite,

em alguns momentos, montagens “clipadas”, a utilização de elementos como jump-cuts

e de trilha sonora não-diegética, bem como de momentos de montagem paralela que

quebram a linearidade espaço-temporal narrativa. Em sua maioria, são elementos que

buscam dialogar com a vibe despojada e “cool” da experiência hippie retratada pelos

cineastas.

Pincus e Neuman acompanham o cotidiano do casal Harry e Rickie, que tem o

principal destaque no filme, em suas interações com outros membros da comunidade de

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San Francisco. Rickie é mãe de uma criança pequena que acompanha o casal nas situações

filmadas. One Step Away concentra-se em narrar os questionamentos que permeavam o

imaginário do grupo naquele momento presente. Entre as várias situações registradas por

Pincus e Neuman, a maioria delas ocorridas dentro dos apartamentos onde os personagens

viviam em comunidade, debate-se sobre a própria experiência hippie e as principais

motivações de tal estilo de vida. Questiona-se a necessidade de qualquer autoridade e de

valores tradicionais (trabalho, escola, família) e sublinha-se o interesse pela vida

comunal, pelo consumo restrito apenas a fins de subsistência e pelo amor livre. Debate-

se a respeito das drogas como veículos de acesso à interioridade do “Eu” e à essência da

existência humana. Existe entusiasmo especialmente em relação ao ácido lisérgico (LSD),

que a maioria dos personagens declarara fazer uso. O consumo de maconha é uma

constante no filme, sendo particularmente impactante seu oferecimento aos filhos dos

personagens, bebês ou crianças pequenas – trecho que se tornou um dos empecilhos

relativos à liberação do filme na emissora pública de televisão. Em um destes momentos,

a personagem Rickie sopra a fumaça do cigarro de maconha no rosto do seu filho,

argumentando que ele demonstra gostar e aborrecendo-se por ter de dar satisfações em

relação a como cuida do bebê.

Figura 6: A experiência hippie em One Step Away (Ed Pincus e David Neuman, 1968)

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A experiência também é tematizada a partir de seus lados “negativos”. Em um

deles, Rickie perde provisoriamente a guarda de seu filho, sob a alegação de que as

condições mínimas de higiene e instalação não estariam sendo oferecidas à criança. A

posição frágil no que diz respeito à independência moral e estrutural do grupo vêm à tona

quando o pai da personagem tem de ser chamado ao local e convive com o grupo por

algum tempo. O pai questiona quão justo seria submeter o bebê às condições impostas

pelo estilo de vida da filha e dos companheiros, ressaltando que se tratava de um

posicionamento ideológico complexo, do qual o bebê não poderia compartilhar. Algo

semelhante acontece em uma visita de Harry a seu pai. A conversa travada entre os dois

deixa implícito que o personagem depende, ao menos parcialmente, do dinheiro do pai

para se sustentar, tendo largado a universidade e não estando trabalhando. O tête-à-tête

entre duas gerações revela um ponto interessante: o pai, de orientação marxista,

compartilha o desejo em colaborar para a melhora da vida em sociedade e da experiência

humana, porém não consegue compreender como o estilo de vida hippie – identificando-

o sob sob uma ótica niilista – contribuiria para a causa. Ainda nesta mesma linha, One

Step Away aponta o “lado ruim” da experiência do amor livre praticado por Harry e

Rickie, ao registrar situações em que as relações extraconjugais são a causa de fricção

entre o casal, que protagoniza cenas de ciúme não desviadas das lógicas mais tradicionais

de relação monogâmica.

O eixo temático de One Step Away apresenta, portanto, diversos elementos que

sugerem uma aproximação aos questionamentos de ordem temática que serão

desenvolvidos em Diaries em relação à esfera da vida individual de Ed Pincus. A

experimentação fará parte da vida do casal Pincus durante os cinco anos da filmagem, de

1971 a 1976, de maneiras que lembram a experiência vivida pelo casal hippie Harry e

Ricky. Como em One Step Away, o realizador e a esposa Jane também buscam uma

alternativa à união monogâmica (este, que é um dos principais plots de Diaries), bem

como existe a tematização do uso de alucinógenos, a reavaliação da divisão laboral entre

o casal, tanto dentro quanto fora de casa. Os hippies, como sugere Pincus, entretanto,

acreditavam que viviam em uma sociedade pós-industrial e que não existia a necessidade

de trabalhar – algo que o casal Pincus encara de maneira diferente em Diaries

(MACDONALD, 2014, p. 86). De qualquer maneira, One Step Away revela o olhar de

Pincus em relação às estruturas familiares, o cotidiano e as liberdades individuais como

matéria-prima temática potencial que será desdobrada em seu diário fílmico.

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Do material filmado para Black Natchez origina-se o curta-metragem Panola, de

vinte minutos, finalizado em 1970, cinco anos após o registro das imagens. Apesar das

tomadas de Panola terem sido realizadas na mesma circunstância das de Black Natchez,

é possível dizer que as tomadas do curta-metragem dificilmente poderiam fazer parte da

proposta artística do filme de 1965. No artigo sobre a obra de Pincus de 1997, Jim Lane

aponta que Panola faz parte da mudança epistemológica observada na carreira do cineasta

desde o início de Black Natchez até a filmagem de Diaries (LANE, 1997, p.5). O curta-

metragem gira em torno da figura de Panola, um alcóolatra que vive em uma região pobre

da parte negra da cidade de Natchez. De maneira bastante distinta à “captura do fluxo da

realidade” proposta em Black Natchez, o personagem Panola dirige-se diretamente para

a câmera de Pincus e Neuman, fazendo-se sublinhar a presença da equipe de filmagem

naquele momento preciso. Entre a sobriedade e a embriaguez, Panola transita por Natchez

como uma figura conhecida por incorporar uma eterna performance, sendo que seu

discurso apresenta uma relação indiscernível entre seriedade e devaneio. A presença da

câmera adiciona um elemento extra à figura enérgica de Panola. O ápice da relação entre

cineasta e objeto, em sua particularidade, toma forma na última sequência do filme.

Panola convida os realizadores para que entrem em sua casa, ordena que filmem suas

parcas condições de habitação e, em uma espécie de transe, conduz uma performance

vigorosa entre choro, gritos e pedidos para que seja morto.

Figura 7: O desespero de Panola em Panola (Ed Pincus e David Neuman, 1970).

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Neste sentido, Jim Lane aponta que Pincus, autoralmente falando, só estaria apto

a aceitar a posição autoconsciente de Panola no começo dos anos 1970, quando começa

a reconsiderar os postulados do cinema direto e embarca no projeto autobiográfico de

Diaries. (LANE, 1993, p.5). Evidentemente, o documentário autobiográfico marca a

ruptura de Pincus com uma postura deliberadamente recuada e observativa de cinema

direto observada no início de sua carreira cinematográfica em Black Natchez e que foi se

abrandando nos filmes seguintes. A experiência de Diaries parte da ênfase do universo

individual e doméstico como o ponto central do eixo narrativo do documentário.

Filmando totalmente solo pela primeira vez, sua interação na tomada com as pessoas ao

redor é o alicerce metodológico sobre o qual a narrativa se constrói.

O depoimento de Pincus na entrevista dada ao autor G. Roy Levin em 1970 revela

o ponto de maturidade temático e estilístico de sua obra, imediatamente antes do início

das filmagens de Diaries. Ao final da entrevista, Pincus ressalta o interesse em continuar

trabalhando com temas que dizem respeito à motivação política do momento, porém de

uma maneira diferente se comparada à política revolucionária, como teria sido o caso de

Black Natchez. Naquela circunstância, Pincus almejava olhar para a política envolvida

nas instituições que regiam o cotidiano dos indivíduos e a maneira através da qual temas

“privados” adquirem aspectos que dizem respeito à coletividade. Em suas palavras:

Eu mudei. Tive muitos altos e baixos nos últimos anos, mas agora

tenho uma atitude muito cínica em relação às possibilidades de

revolução política. O que quero fazer são filmes que digam o que

quero dizer e que de alguma forma relacionem-se a instituições

políticas. Não apenas instituições políticas em si, mas instituições que

determinem a política dos indivíduos e a qualidade de suas vidas –

como a família, o ato de ser um homem, ser uma mulher, a qualidade

do trabalho que as pessoas fazem, a maneira pela qual as pessoas

compram produtos – de modo que isto aumente a consciência das

pessoas, mostrem-nas possibilidades onde elas talvez não tenham

pensado antes como possibilidades. (LEVIN, 1971, p. 371. Tradução

nossa.)

Black Natchez, portanto, surge dominantemente a partir da intenção de contribuir

para o movimento dos Direitos Civis no Sul dos Estados Unidos. A cultura hippie,

retratada em One Step Away, foi um fenômeno social efervescente que teve parte no

movimento pelos Direitos Civis, e dizia respeito diretamente à postura antibelicista em

relação à Guerra do Vietnã, partilhada por Pincus e por outros jovens. Já a fala do cineasta,

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transcrita acima, vai ao encontro das propostas de debate mobilizadas pela segunda onda

do feminismo nos Estados Unidos, um dos principais movimentos de organização social

do final da década de 1960 em diante. Se a primeira onda do feminismo se concentrou na

luta pela asseguração dos direitos constitucionais das mulheres – como o sufrágio – a

segunda onda do movimento focalizava em questões que, de maneira geral, diziam

respeito à experiência feminina da ordem da vida cotidiana em um âmbito público e

privado. Buscava-se debater questões como as da equidade de gênero no trato laboral–

tanto em relação ao trabalho remunerado quanto ao trabalho doméstico – questões de

sexualidade e direitos reprodutivos ou questões relativas à organização familiar e ao

casamento.

Na circunstância do início da filmagem de Diaries, a esposa de Ed Pincus, Jane

Kates Pincus, já portava um significativo histórico como militante. Enquanto na

faculdade, participou ativamente de movimentos anti-racismo fomentados pelo CORE

(Congress for Racial Equality) e o NAACP, bem como pelo trabalho em passeatas

antiguerra (LUCY, 2008, p. 2). No final dos anos 1960, Jane envolveu-se com um coletivo

de mulheres da cidade de Cambridge, Bread and Roses, que reunia-se no MIT. Após uma

conferência a respeito da saúde e do corpo feminino, Jane Pincus e outras ativistas

desenvolveram o projeto de Women and their Bodies, publicado em 1970. Lançado

inicialmente na forma de zine, a publicação partiu da troca das experiências pessoais das

autoras, que organizaram o conhecimento ao longo de doze tópicos, como “Gravidez”

(escrito por Jane Pincus e Ruth Bell), “Controle de Natalidade”, “Aborto”, “Doenças

Venéreas” e outros. O livro, escrito por mulheres e para mulheres, obteve largo

reconhecimento ao tratar de tabus e tornou-se revolucionário por lidar abertamente com

questões como a do aborto, ainda ilegal na época. Em 1973, o livro foi publicado pela

editora mainstream Simon and Schuster já como “Our Bodies, Ourselves”, nome que

permanece até os dias atuais. “Our Bodies, Ourselves” é considerado o primeiro guia

coletivo estadunidense de saúde da mulher e é reeditado, ampliado e reavaliado

constantemente desde a década de 1970, tendo sido reproduzido em mais de trinta línguas.

Jane Pincus continuou a contribuir com as reedições do livro até o ano de 2005. Em 1970-

1971 Jane realizou o documentário Abortion, conjuntamente com outras três militantes,

que contou com equipamentos, processamento e salas de montagem do MIT para sua

produção. Apesar da pouca projeção pública, Jane Pincus afirma que o filme foi o

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primeiro sobre a temática do aborto a ser de fato finalizado nos Estados Unidos

(MACDONALD, 2014, p. 99).15

De maneira mais direta, Diaries (1971 - 1976) traz algumas referências aos

questionamentos levantados pelo movimento feminista. Entre elas, são pontos fortes da

narrativa o aborto realizado por Jane em 1971, as implicações da abertura do casamento

de Ed e Jane para relações extraconjugais ou a discussão em relação à divisão do trabalho

entre o casal, em meio ao crescimento dos filhos pequenos. Evidentemente, o fato destas

questões narrativas estarem incorporadas a um filme cujo controle de produção, em última

análise, concentra-se na mão de Ed Pincus, suscita o debate acerca da maneira através da

qual Jane torna-se objetificada pelo diretor e por sua empreitada. Estas nuances são

incorporadas à própria narrativa de Diaries como um teste acerca das possibilidades da

construção de um documentário autobiográfico pautado por uma nova abordagem

metodológica e por um terreno ideológico efervescente. De qualquer maneira, em

entrevista a Scott MacDonald, Ed Pincus coloca que a decisão por fazer de seu universo

individual e doméstico a matéria-prima de Diaries relacionava-se com os

questionamentos lançados pelo movimento feminista, partilhando a ideia de que “o

pessoal é político”, e com a noção de que o momento demandava que, ao invés do

“Outro”, devia-se examinar a própria vida: “Nós devíamos olhar para dentro”, Pincus

constata (MACDONALD, 2014, p. 92). O cineasta resgata o slogan do grupo militante

de extrema-esquerda Weather Underground (ou, “The Weathermen”, uma facção radical

do movimento estudantil ativista SDS – “Students for a Democratic Society”), que dizia

“O porco está em nós” (The Pig is in us). A mesma posição aparece na entrevista dada a

G. Roy Levin imediatamente antes do início da filmagem de Diaries, em que Pincus

sugere: “Algumas pessoas dizem que existe um porco em todos nós. E nós temos de

descobrir o que é este porco” (LEVIN, 1971, p. 369). Em 1977, na pausa de cinco anos

entre o registro e a montagem de Diaries, Pincus ressalta que o fato de se colocar como

“objeto”, como personagem de seu filme aos olhos de si próprio e dos espectadores,

consistiria em uma reação necessária ao cinema direto produzido até então. O cineasta

aponta que existia uma tendência em tratar os personagens como “Outro”, observando-os

distante e comicamente como “macacos em um zoológico”. “Nós”, sugere Pincus,

15 Segundo relatos, a narrativa de Abortion tem várias partes e é construída a partir de diferentes estratégias metodológicas, até mesmo com o uso do sync-sound em algumas passagens. Jane Pincus fala sobre o filme em algumas ocasiões, como nas entrevistas dadas a Katelyn Lucy (2008) e Scott MacDonald (2014, p. 100).

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enquanto cineastas do cinema direto, “colocávamo-nos acima deles, ríamos de suas

inconsistências, gaucheries, e suas tentativas de manipular os outros” (PINCUS, 1977, p.

172). Segundo o realizador, a demanda era a de que o cineasta do cinema direto, em sua

violência metodológica no trato com o outro, virasse a câmera para si próprio:

Cineastas que filmaram por mais de uma década desta forma nunca

foram filmados e nunca se viram neste tipo de espaço cinemático.

Existe uma estranha experiência existencial a respeito de ver-se a si

próprio no filme, ver-se da maneira que as pessoas te veem... Que

experiência humilhante e degradante aparecer da mesma forma que os

outros. Qual é a natureza de todas nossas vidas e nossas relações com

os outros, nossas pequenas mentiras e fingimentos? A presunção da

superioridade moral do cineasta e de sua cultura são desafiados. Um

novo tipo de cineasta emergiu, que lida com essas questões. Ele acha

seu material diretamente ao seu redor. Ele relaciona-se com as antigas

tradições do Cinema-Vérité americano na medida em que tem um

respeito profundo pelo mundo da maneira que este existe

independentemente da presença da câmera. E, apesar de

frequentemente participar de diferentes maneiras no filme, ele, em

geral, não manipula ações para a câmera. (PINCUS, 1977, p. 172-173.

Tradução nossa.).

E, ainda:

Alguns cineastas dessa nova geração, direta ou indiretamente

influenciados pelo movimento feminista, começaram a achar

significância no que era chamado de “pessoal”; eles começaram a evitar

personalidades famosas, eventos notórios e assuntos obviamente

grandiosos (...) Pela primeira vez, o cotidiano tornou-se um objeto

possível. Pessoas normais em situações corriqueiras, não mais definidas

por um papel social que costumavam ser a porta de entrada para

tornarem-se o assunto de um filme – piloto de carros de corrida, atriz,

prisioneiro, pessoa pobre, político. A justificativa para que se tornassem

personagens era, frequentemente, apenas a de que tinham uma relação

com o cineasta ou que eram de alguma forma acessíveis a ele.

(PINCUS, 1977, p. 172. Tradução nossa.).

O tipo de documentário autobiográfico relacionado a Cambridge, portanto, situa-

se temporalmente em um momento de reação à primeira produção do cinema direto.

Como característica deste novo momento, passa a existir o ímpeto de representação de

um universo temático mais diretamente ligado à figura individual dos próprios cineastas.

Neste caso, não havia mais o interesse em filmar e construir conhecimento a partir da

história de indivíduos públicos ou personagens de destaque. A noção de observação

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“mosca-na-parede” e a subtração narrativa de elementos que revelassem a presença dos

cineastas na tomada dão lugar à participação e à ênfase da interação do realizador com as

pessoas filmadas no momento da tomada. Buscava-se tematizar a experiência

estadunidense naquele momento específico a partir da vida individual do cineasta, de seu

cotidiano e daquilo que sua interação com as pessoas mais próximas de si poderia

oferecer, frequentemente em uma esfera familiar. Esta postura foi incentivada tanto por

elementos de ordem ideológica, como frisado, quanto por uma virada tecnológica. O

desenvolvimento de câmeras e gravadores menores e menos custosos possibilitou o

registro imagético-sincrônico a partir de uma equipe de uma pessoa só, o próprio cineasta,

que foi determinante para o sucesso dos filmes realizados no período.

Pincus foi um dos principais articuladores do debate que permeou o MIT Film

Section durante a década de 1970 no que diz respeito às possibilidades da narratividade

autobiográfica calcada na tradição do cinema direto estadunidense e nas inovações

tecnológicas desenvolvidas no departamento. A proposta de autobiografia que se

desenvolveu no MIT Film Section apresentava pontos de disparidade em relação a outras

experiências que estvam sendo conduzidas no universo do cinema documentário, como a

praticada por Jean Rouch ao redor da noção de “Cinema Verdade”. É interessante

ressaltarmos esta distinção a fim de esclarecer a proposta de autobiografia conduzida por

Pincus e pelo projeto do MIT Film Section. Um debate entre Jean Rouch e Ed Pincus

tomou forma em uma compilação de entrevistas publicada em 1971 e representa, grosso

modo, as posturas antagônicas entre o documentário moderno em sua forma norte-

americana e francesa. Em “Documentary Explorations: 15 Interviews with Film-Makers”

(LEVIN, 1971) o autor estadunidense G. Roy Levin realiza entrevistas com quinze

documentaristas que, naquele momento, estariam ligados ao desenvolvimento de novas

propostas fílmicas. O autor conversa com cineastas como Lindsay Anderson, Jean Rouch,

Richard Leacock, D.A. Pennebaker, Albert e David Maysles, e Frederick Wiseman, para

além de Ed Pincus.

O diálogo entre Pincus e Rouch partiu de comentários sobre o filme que iniciou a

obra de Frederick Wiseman. À primeira vista, a obra de Wiseman pode ser encarada como

um contraponto ao documentário autobiográfico de Cambridge, que se engaja em

questões de participação e reflexividade da figura do cineasta na narrativa fílmica,

culminando em uma temática autobiográfica. Wiseman abstém-se de seguir o suposto

“passo adiante” do cinema direto, optando pela narratividade pautada em um criterioso

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recuo observativo da câmera, sendo esta uma metodologia que pouco mudará durante os

cinquenta anos de carreira do diretor. A obra de Wiseman, entretanto, aproxima-se

epistemologicamente mais ao cinema de Cambridge do que à obra de Jean Rouch. A

interpretação do debate entre Rouch e Pincus pode trazer esclarecimento à questão. Na

entrevista com Jean Rouch, o autor G. Roy Levin pergunta ao diretor sua opinião acerca

de Titicut Follies (1967), longa-metragem de estreia de Wiseman. Rouch, apesar de

evidenciar o apreço que tinha por John Marshall (que foi co-diretor e fotógrafo do filme),

reagiu ao filme com “horror”:

Jean Rouch: Não há esperança. Não há absolutamente nada positivo

naquilo. Nada. É um relato negativamente certo de si próprio sobre uma

situação.

Levin: Mas você o vê como “verdadeiro”?

Jean Rouch: Então você tem de expressar isso. Eu gostaria que ele

tivesse falado algo, expressado qual é sua tese. Aquilo (o filme)

significa que temos de suprimir este sistema policial? Ou que se deve

permanecer em um hospital psiquiátrico? Significa que aquele hospital,

em particular, é uma desgraça? Não é óbvio. Talvez seja óbvio para os

americanos, mas não para estrangeiros. (...) É como se você fosse a um

hospital para crianças retardadas e não mostrasse nada além disso. Há

uma fascinação com o horror aqui (nos EUA). Por exemplo, um filme

sombrio como Noite e Neblina é um filme profundamente humano

precisamente porque existe a narração, porque há uma mão que guia.

Em Titicut Follies não existe nenhuma (guia), é um relato certificado,

que poderia talvez ser interpretado como um relato cínico e

sadomasoquista. Eu perguntei a John Marshall... qual o nome do jovem

garoto com quem ele fez o filme?

Levin: Wiseman.

Jean Rouch: Wiseman. Qual foi a reação de Wiseman diante de tudo

aquilo? Ele teve prazer naquilo? Ele ficou feliz? E John Marshall disse

que existia uma fascinação com o lugar, e que esta fascinação era uma

fascinação com o horror – que é uma fascinação estranha e que devia

ter sido expressada (no filme). (LEVIN, 1971. p. 141-142. Tradução

nossa.)

A crítica de Rouch a Wiseman e Marshall em Titicut Follies é endereçada a Pincus

na entrevista feita por G. Roy Levin para o mesmo livro. Pincus rebate vigorosamente os

apontamentos de Jean Rouch:

ED PINCUS: Em primeiro lugar, acho que Jean Rouch tem mais

expectativas em relação aos cineastas do que eu tenho. Olhe, Wiseman

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estava preocupado o suficiente em ir lá e passar alguns meses em

Bridgewater16. Não sei quanto a você, mas eu não conseguiria passar

três meses lá. David17 foi captar som direto lá um dia e me contou como

era. Wiseman mostrou preocupação suficiente em fazer isto – ninguém

mais fez. Em segundo lugar, apenas estar lá filmando, silenciosamente,

foi muito mais forte do que seria o terror de “baixo nível” que um

cineasta medíocre poderia conseguir realizar estando lá. De alguma

maneira, aquele tipo de dureza e inexorabilidade era muito, muito mais

forte. Em terceiro lugar, eu não estou interessado na solução de

Frederick Wiseman para o problema, porque acho que ele não é capaz

de dá-la. Não acho que seja problema dele. No nível mais primário,

temos primeiro de ver as coisas – este é um exemplo de como fazer

calúnia (em relação ao filme), quando ninguém nem ao menos tinha

visto aquilo antes.

A outra coisa é que eu acho que Rouch... eu vi apenas um de seus filmes,

Chronique d’un été, e achei simplesmente horroroso. Eu achei o nível

de envolvimento dele pretensioso e risível. Eu achei aquele andar pelo

corredor, conversando com seu assistente18 e discutindo um sistema de

arte, realidade e atuação, obnóxio. Toda a sua noção de cinema é uma

realidade totalmente criada para a câmera, criada pelo cineasta. A

realidade tem o menor dos papéis em seu filme. (LEVIN, 1971. p. 367.

Tradução nossa.).

Interpretando primeiramente a reação de Jean Rouch a Titicut Follies, é possível

dizer que Rouch não enxerga no filme de Wiseman um propósito além do de expor o

cotidiano assombroso de uma instituição como Bridgewater. Para Rouch, o filme parece

não ser mais do que uma exposição dos espectadores a uma espécie de Freak-Show que

busca satisfazer uma curiosidade quiçá sádica das pessoas que o assistem (e dos cineastas)

em relação ao horror e ao abjeto. A comparação que Rouch faz a um filme como Noite e

Neblina é contundente. Para Rouch, se um cineasta se dispõe a trabalhar narrativamente

uma temática delicada ou polêmica, é imperativo que exista algum tipo de elaboração

crítco-analítica de sua parte e que esta torne-se parcela integrante da narrativa que está

sendo criada. Caso esta posição analítica esteja ausente, o filme cairia em um voyeurismo

desnecessário. Rouch parece apontar certa predileção do público estadunidense por este

tipo de conteúdo que, em sua visão, carece de desenvolvimento intelectual mais aguçado.

Neste sentido, é interessante mencionar ainda que esta entrevista foi concedida em 1970,

16 A instituição retratada em Titicut Follies. 17 David Neuman, parceiro de Pincus em praticamente todos seus filmes pré-Diaries. 18 Edgar Morin.

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antes da produção e veiculação de An American Family, que levará a exposição de

intimidade familiar e a noção de voyeurismo a um patamar distinto19.

Ed Pincus, por sua vez, rebate aos apontamentos de Rouch manifestando que o

sucesso de Wiseman residiria, antes de tudo, no fato de ter passado meses acompanhando

e filmando a instituição. Pincus ressalta que poucos cineastas teriam força de vontade o

suficiente para vivenciar durante um longo período de tempo o pesado dia-a-dia de

Bridgewater. Para cineastas como Pincus seria imprescindível que Wiseman dedicasse

tempo de trabalho considerável (e muitos rolos de película) registrando o funcionamento

da instituição que era objeto de seu filme. Sendo assim, somente a partir do engajamento

do diretor com uma porção significativa de cotidiano e do funcionamento natural de

coisas e pessoas que se cria a possibilidade de trabalhar narrativamente a realidade a partir

da captação e da utilização dos raros momentos de força dramática que podem vir a

acontecer diante da câmera. A paciência no trato com a realidade e seu registro é peça

fundamental para uma tentativa de fornecer ao espectador a possibilidade de experienciar

determinada situação – a “sensação de estar lá” – lembrando aqui a expressão utilizada

por Richard Leacock e as reflexões de Robert Drew originárias do cinema direto. Tendo

sucesso nesta empreitada, o cineasta dará condições ao espectador de tirar suas próprias

conclusões a respeito do tema, abstendo-se ele próprio de promover um comentário

analítico mais demarcado a respeito do assunto a que se propõe abordar, como

reivindicado por Rouch. Sobre este aspecto Wiseman afirma, no mesmo conjunto de

entrevistas realizados por G. Roy Levin: “(Meus filmes) têm um ponto de vista que te

permitem – ou, esperançosamente, te pedem – para pensar, para que descubra o que você

acha a respeito daquilo que está acontecendo” (LEVIN, 1971, p. 322. Tradução nossa.).

Levin realiza as entrevistas no início da década de 1970. A partir do livro, é

possível notar que ainda neste momento havia um debate intenso acerca das

possibilidades de construção narrativa no documentário frente à virada tecnológica e

epistemológica acarretada no início dos anos 1960. Os excertos das opiniões de Jean

Rouch, Ed Pincus e Frederick Wiseman revelam que dez anos após do lançamento de

filmes como Primary ou Chronique d’un été o conjunto de questões que envolvia as

noções de cinema direto e cinema-vérité não trazia respostas unânimes entre os cineastas

19 A partir do final dos anos 1970, Rouch teve um engajamento maior com a produção e a academia estadunidenses. Em 1977, o diretor leciona uma série de cursos de verão nos EUA, juntamente com John Marshall, Richard Leacock, e outros cineastas. Além disto, Rouch leciona na Universidade de Harvard durante quatro verões consecutivos, entre 1980 e 1983.

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envolvidos. A publicação do livro de entrevistas de Levin ocorre oito anos após o

congresso convocado em 1963 pela agência nacional de radiodifusão e televisão francesa,

a ORTF (Office de Radiodiffusion-Télévision Française), em Lyon, e que contou com os

principais representantes do novo documentário francês e estadunidense. No artigo “The

Documentary Film as Scientfic Inscription”, Brian Winston (1993) ocupa-se de expor o

pensamento antagônico dos dois grupos em relação aos caminhos do documentário

naquele momento. De maneira geral, a posição estadunidense (na forma de diretores

como Robert Drew, os irmãos Maysles e Richard Leacock) era marcada pela crença da

possibilidade de uma objetividade mimética em relação ao mundo, proporcionada por

uma estilística do recuo observativo da câmera e da supressão de elementos de

transparência ou reflexividade do processo fílmico durante a montagem. A perspectiva

de uma posição narrativa objetiva em relação à representação da realidade era refutada de

antemão por cineastas do grupo francês (como Jean Rouch ou Jean-Luc Godard), que

enxergavam em processos de reflexividade da equipe e do cineasta a maneira de endereçar

a “realidade” da filmagem de modo mais justo, ou mesmo “verdadeiro”, vide Chronique

d’un été.

É possível dizer que em 1970, no período das entrevistas realizadas por Levin, a

crença purista e cientificista da objetividade a partir de uma metodologia de recuo

observativo da câmera e de uma montagem transparente dava sinais de desgaste, mesmo

entre diversos cineastas do grupo americano. Ainda que de maneira geral muitos destes

recursos continuassem a ser empregados em filmes destes realizadores, pode-se afirmar

que não existia o mesmo ímpeto aventureiro que motivou as experiências de Robert Drew

na busca de uma possível “verdade” em relação ao registro do mundo em narrativas

documentárias. Este é o caso do próprio Frederick Wiseman. Embora seus filmes

partilhassem (e continuem partilhando) diversas das características que fizeram com que

o cinema direto fosse vinculado a certa noção de “pretensão de objetividade”, Wiseman

sempre admitiu um forte ponto-de-vista subjetivo em relação a seu processo criativo20,

diferentemente da postura assumida por Drew, Leacock ou pelos irmãos Maysles no

início de suas carreiras.

Neste momento, Ed Pincus também fez parte de uma leva de cineastas que se

opunha criticamente às soluções narrativas e aos efeitos de dramaticidade dos filmes do

20 Este ponto é trabalhado marcadamente na entrevista de Wiseman a G. Roy Levin (LEVIN, 1971, p. 313-328).

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grupo Drew, que eram vistas como mascaradas por uma aura de pretensão de

objetividade. Entretanto, cabe questionar: se Pincus revela interesse pelos

desdobramentos do cinema direto em direção à desconstrução do mito da objetividade, à

participação do cineasta na narrativa documentária e à possível exploração da figura

individual do diretor como matéria-prima temática para os filmes, por que teria realizado

uma crítica tão vigorosa de Chronique d’un été? Por que, para Pincus, o envolvimento de

Rouch no filme seria “pretensioso e risível” e a realidade teria "o menor dos papéis” na

narrativa?

É interessante pensar que a crítica de Pincus revela a posição do diretor dentro da

tradição do cinema direto estadunidense, refletindo alguns valores não-negociáveis (ou

pouco negociáveis) para esta escola de cineastas. Mesmo que neste momento Pincus e

outros diretores já tivessem uma reação crítica, como frisado, à postura do “primeiro”

cinema direto que se supõe o “portador do archote” da representação da realidade, existe

ainda o apreço por filmar e representar o mundo a partir de uma observação paciente, bem

como há um desgosto por situações deliberadamente provocadas para a encenação. Pincus

entende que existe um mundo em complexo funcionamento independente da presença da

câmera e há o desafio de qualquer cineasta em ao menos tentar representa-lo, respeitando

o ballet da interação natural entre seres e as superfícies materiais que os circundam. Para

o diretor, a construção narrativa de Frederick Wiseman em relação a Bridgewater em

Titicut Follies não é um fato dado. Como Pincus frisa em sua resposta a Rouch para o

entrevistador G. Roy Levin, ela é fruto do trabalho do cineasta de entender, capturar e

reconstruir uma espécie de fluxo da realidade ao qual esteve exposto cotidianamente,

durante meses. Este seria o caminho pelo qual o realizador poderia oferecer um relato

narrativo que fizesse jus à experiência que vivenciou, a “sensação de estar lá”,

oferecendo-a em forma de filme para a liberdade interpretativa dos espectadores.

Neste sentido, Pincus entende que Rouch apresenta uma postura arrogante ao

reconhecer o filme de Wiseman como “mero fato”. Segundo o realizador, nunca teria

havido um movimento, entre os documentaristas franceses, de tentar representar o mundo

em seu funcionamento independentemente da presença da câmera. A interação entre

cineasta e personagens, bem como os procedimentos de entrevista que vemos em

Chronique d’un été, seria, portanto, uma crítica pretensiosa de Rouch a um terreno ético

com o qual ele não teria experiência para colocar-se como figura de autoridade. Já em

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1977, Pincus publica o artigo “New Possibilities in Film and The University”, em que sua

posição em relação a este tema é bem exposta:

Os franceses nunca experimentaram de verdade com a possibilidade de

filmar o mundo independentemente da presença da câmera. Desde o

início, o cinema deles reconhecia a câmera como uma ruptura do fluxo

da realidade. Assim, nos primeiros filmes do Cinema-Vérité francês o

cineasta está frequentemente presente como um guia e um manipulador

dos eventos para a câmera (também em alguns filmes ficcionalizados

do Cinema-Vérité estadunidense, como David Holzman’s Diary). Nós

raramente vemos interações espontâneas e eventos nestes filmes, mas

em vez disso, o assunto dominante parece ser as pessoas falando sobre

seus sentimentos. Os americanos eram céticos em relação à entrevista.

As pessoas são cautelosas durante entrevistas, e apresentam uma

espécie de imagem que pode ser interessante se também temos seus

momentos menos cautelosos, para que suas entrevistas sejam colocadas

em perspectiva. Isto faltava nos filmes franceses. Por outro lado, há uma

qualidade distinta em uma pessoa americana ou francesa sendo

entrevistada. Ao menos externamente, os franceses parecem mais sérios

e comprometidos, e falarão sobre questões grandiosas mais facilmente.

Eu sempre achei que isto não fosse verdade, apesar de que os cineastas

franceses parecem achar. Quando Godard queria referir-se à

autenticidade do documentário em seus filmes, ele parece ter ido a uma

abordagem Jean Rouchiana do mundo, entrevistando seus personagens,

e os resultados sempre foram a parte mais fraca de seus filmes,

arrogantes, pretensiosos e falsos. Pode-se indagar o que teria acontecido

se sua busca pela autenticidade no documentário fosse inspirada pelo

Cinema-Vérité estadunidense, com sua tradição de espontaneidade e do

mundo independente à câmera. Quando mais tarde os cineastas

estadunidenses tentaram examinar a influência da câmera no mundo,

eles portavam uma tradição que tinha, em certa medida, testado as

possibilidades da câmera tentando não provocar uma ruptura nele (no

mundo). (PINCUS, 1977, p. 177-178)

No momento, Pincus acabara de filmar Diaries (1971 - 1976) e encontrava-se no

período de pausa de cinco anos entre o término da filmagem e o processo de montagem.

Seu escrito refere-se justamente ao tipo de questão que buscava endereçar no filme.

Diaries apresenta uma qualidade distinta da relação autorreflexiva entre cineasta e câmera

que, neste caso, culmina em uma abordagem autobiográfica. Diferentemente do que

aponta em relação ao documentário francês nos moldes de Chronique d’un été, Pincus

entende que a presença, ou a ênfase, da câmera e do cineasta na narrativa fílmica não se

traduz em uma ruptura total do fluxo da realidade. Em Diaries, Pincus buscará explorar

a adição do elemento “câmera” à sua atmosfera doméstica, familiar e social. O desafio

consistiria em engajar sua declarada intenção em realizar um filme às nuances e

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delicadezas de sua vida individual por um período de cinco anos. Existe, portanto, um

“caldeirão” pré-fílmico que compõe a circunstância sobre a qual Pincus debruçar-se-á.

Em sua análise sobre os documentários autobiográficos, Susanna Egan toca neste

mesmo ponto, ao sugerir documentários autobiográficos como Silverlake Life, que

“posicionam a vida pré-textual como controladora da narrativa e usam o meio fílmico

bastante explicitamente como maneira de registrar as surpresas da contingência” (EGAN,

1994, p. 611. Tradução nossa). Em Diaries, Ed e Jane Pincus vivem um momento pós-

1968, em que têm um casal de filhos pequenos para criar, em meio à efervescência das

questões evocadas pelas liberdades individuais – experimentações no campo do trabalho,

da família e do amor. A este cenário, instável por si só, é adicionado o fator “Ed Pincus e

sua câmera”, que entra em vibração com os elementos que compõem a vida da família.

Ao longo dos cinco anos de sua empreitada, o realizador evidencia que a maneira que a

presença da câmera e da “intenção fílmica” se relaciona com o curso de sua vida

individual. Para Pincus, portanto, seria importante frisar que a câmera não é responsável

pela criação de uma situação totalmente nova e, sim, por um flexionamento entre as partes

que pode adquirir contornos complexos. A relação cineasta-câmera-mundo testada por

Diaries seguiria o mesmo “respeito” da tradição do Cinema Direto estadunidense em

relação à intenção de retratar o mundo em seu funcionamento, entretanto flexionado pela

presença da câmera e pela intenção autobiográfica. Em linhas gerais, esta será a cartilha

seguida pelo cinema autobiográfico de Cambridge, que desenvolve este debate e tem sua

gênese propriamente na experiência do MIT Film Section.

É interessante mencionar que a ideia de autobiografia naquele momento já

perpassara produções cinematográficas de outros núcleos de produção nos EUA, porém

de maneira distinta às propostas pelos cineastas de Cambridge. Em especial, ressalta-se a

produção do cinema underground estadunidense. Cineastas como Stan Brakhage, Jonas

Mekas, Jerome Hill, Hollis Frampton e James Broughton desenvolveram películas que,

de maneiras bastante distintas entre si, exibem relatos e construções acerca de alguma

passagem ou período da vida do próprio artista. Tomando Brakhage como exemplo,

Window Water Baby Moving (1959) e Thigh Line Lyre Triangular (1961) são alguns de

seus filmes que portam aspectos autobiográficos na medida em que Brakhage realiza o

registro do parto de seu primeiro e terceiro filho, respectivamente. São filmes silenciosos,

exibem uma montagem bastante fragmentada, ao estilo próprio do diretor, e utilizam-se

de diversos recursos que alteram as propriedades imagéticas do que foi filmado (no caso

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do segundo filme, inclusive, uma recorrência bem maior da escrita direta sobre a película

fílmica). Vemos nestes trabalhos um questionamento recorrente das possibilidades e

propriedades do filme como meio e como expressão artística.

A possibilidade da gravação de som sincrônico à tomada e a utilização desta

matéria-prima como elemento para a construção da narrativa é um aspecto que diferencia

substancialmente os dois tipos de produção. O autor Scott MacDonald utiliza-se da

expressão “Documentário Pessoal” (Personal Documentary) alternadamente à de

“Documentário Autobiográfico” para designar a produção de Cambridge. Segundo ele, o

documentário pessoal consiste em “explorações e representações das vidas pessoais dos

cineastas, durante as quais os membros da família, amigos e outros são registrados com

som sincrônico, ou com a ilusão de som sincrônico, interagindo conversacionalmente

com os cineastas” (MACDONALD, 2013, p. 4). No mesmo sentido, Jim Lane, para quem

o som sincrônico também é uma questão fundamental da autobiografia fílmica de

Cambridge, sustenta que:

Para os novos documentaristas, a câmera e o gravador de fita magnética

eram ferramentas que serviam para explorar e apresentar seus mundos,

apoiando-se no estatuto semiótico dos meios fílmicos e sonoros. (...)

Assim, o documentário autobiográfico era fundamentalmente diferente

do avant-garde autobiográfico em um nível formal. A estética

cinematográfica era colocada mais a serviço da exploração do mundo

social em vez de desafiar a tradição da arte representacional. (LANE,

2002, p. 14. Tradução Nossa.)

Ed Pincus sugere que os cineastas do documentário autobiográfico da década de

1970 utilizavam o som sincrônico de maneira que seus filmes seriam localizados em um

“reino totalmente diferente” do cinema, se em relação ao New American Filmmaking

(PINCUS, 1977, p. 171). Em entrevista a Scott MacDonald já em 2014, Pincus enfatiza

que a possibilidade de “capturar a vida” tinha a ver com o som, e muitos dos cineastas do

outro grupo faziam filmes silenciosos – ou, ao menos, não captavam som no momento do

registro imagético. Pincus recorda sua participação da conferência sobre cinema

autobiográfico da cidade de Buffallo em 1973, onde estavam presentes diversos

representantes do cinema underground estadunidense e na qual sentiu-se totalmente fora

de lugar. O cineasta conta a respeito de uma longa discussão travada com Stan Brakhage,

que asserira que “Tudo o que está sendo visto na tela é exatamente o que aconteceu” –

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sendo que para Pincus, diferentemente, o entendimento do mundo tinha a ver também não

apenas com a imagem, mas também com o som (MACDONALD, 2014, p. 96).

Ainda com a intenção de traçar a paisagem ideológica-midiática do período,

podemos retomar os comentários acerca da produção e a veiculação de An American

Family, que trouxe um olhar para “dentro” da instituição familiar estadunidense e é

considerado uma experiência primitiva da nossa noção atual de Reality Show. O material

da série foi captado durante o ano de 1971 e exibido na emissora pública de televisão PBS

(Public Broadcasting Service) no ano de 1973. Idealizado pelo produtor Craig Gilbert e

realizado pela dupla de cineastas Alan e Susan Raymond, An American Family consistiu

no registro do cotidiano de uma família californiana de classe-média, os Loud, durante

seis meses. Esta atividade resultou na captação de trezentas horas de material bruto e foi

condensada em doze episódios, veiculados semanalmente durante quase três meses no

horário nobre (prime time) da emissora. An American Family e seu sucesso foram

responsáveis por tornar os Loud ícones de escala nacional. Como exemplo, a matriarca

da família, Pat Loud, foi vista como modelo de mulher poderosa e independente. Outro

caso é o de Lance Loud, um dos filhos do casal, que se tornou um ícone LGBT pelo fato

de sua homossexualidade ter sido tematizada abertamente ao longo dos doze capítulos.

Ao realizar o trabalho, a equipe de An American Family deveria manter-se recuada

e não interferir de nenhuma maneira nas atividades dos membros da família, o que se

provou praticamente impossível. Após a veiculação da série, diversas fontes

documentaram os bastidores da produção e a consequente influência que a equipe de

câmera (bem como a promessa de uma veiculação nacional) teve em relação à flexão dos

comportamentos dos membros da família para uns com os outros. O ápice deste aspecto

teria sido a consequente separação do casal Loud durante a filmagem e que se tornou um

dos clímaces narrativos da série. Uma das histórias que circundam o processo21 é o de

que o produtor da série, Craig Gilbert, teria se aproximado afetivamente da matriarca da

família, sendo um dos pontos que levaram o casal ao divórcio.

Entretanto, a ocultação da relação complexa entre equipe, família

Loud/personagens e o sucesso da série foi criticada pela geração de cineastas do Cinema-

21 Uma interessante exposição dos bastidores da produção de An American Family encontra-se no filme Cinema Vérité (Shari Springer Berman e Robert Pulcini, 2011), realizado como telefilme para a emissora HBO. No formato de docudrama, Cinema Vérité narra o processo de pré-produção e filmagem de An American Family, enfatizando a relação existente entre a equipe e a família Loud e trazendo à tona as consequências deste envolvimento para a série.

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Vérité dos anos 1970, envoltos por um novo conjunto de valores éticos se em comparação

à década anterior. Abster-se da inclusão de detalhes do processo e da relação entre a

equipe e os personagens seria o procedimento natural na produção do cinema direto do

início da década de 1960 (Drew, Leacock ou os primeiros filmes dos irmãos Maysles),

porém para este “novo” grupo de cineastas, em relação a An American Family, esta opção

seria tanto um desperdício da parcela mais interessante do tema tratado, como também

uma espécie de imoralidade, ou mentira ética. No texto de 1977, Pincus ressalta o fato de

que não existiu menção de que o produtor da série teria se apaixonado por Pat Loud, e

constata que “tornar a câmera visível de maneira automática (“simplista”, by rote) é

realizar uma função sem utilidade, mas esconder os seus efeitos quando eles são

consequenciais é mentir” (PINCUS, 1977, p. 170). Em um texto escrito na década de

1990 em que disserta a respeito do início de sua carreira como cineasta, no período de sua

passagem pelo MIT Film Section, Ross McElwee revela inquietação similar à de Ed

Pincus ao falar sobre suas sensações diante de uma das sequencias mais significativas de

An American Family:

Em uma memorável cena de An American Family, Bill Loud, cujo

casamento com Pat está desintegrando, deixa a mulher e os filhos e

muda-se para um apartamento. A equipe de filmagem o acompanha à

medida em que ele desencaixota alguns pratos na cozinha, tentando

decidir onde coloca-los. Ele está totalmente sozinho naquela cozinha –

só que na verdade, ele não está. A equipe de filmagem está enfiada lá

dentro, não mais longe do que a um metro dele. A equipe não diz nada.

Nenhum questionamento, nenhuma palavra de conforto. Nada. Eles

fingem ser invisíveis. É um momento excruciantemente esquisito, tanto

para Bill Loud quanto para o espectador. (McELWEE, 2005, p. 3.

Tradução nossa.)

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2.3. A Experiência Autobiográfica de Diaries (1971 - 1976)

Em 1971, Ed Pincus dá início à filmagem de Diaries com a proposta de filmar

eventos de sua vida cotidiana, em diversas frentes, pelo período de cinco anos. A

experiência contaria ainda com a espera de mais cinco anos após o término das filmagens

antes da montagem do material – Diaries foi finalizado apenas em 1981. A versão final

consiste em um filme de três horas e vinte minutos de duração. Apesar de ter sido

terminado apenas no início da década de 1980, Pincus exibia trechos (rushes) do material

bruto do filme para os alunos do MIT Film Section na década de 1970 como material

didático (McELWEE, 2012). Diretamente, Diaries pôs à prova escolhas metodológicas e

estruturas narrativas que são a marca registrada do documentário autobiográfico de

Cambridge. As mais importantes destas estruturas seriam a acepção da equipe de uma

pessoa só (one person crew) como condição irrevogável para o sucesso da empreitada

autobiográfica; o registro imperioso (bem como sua utilização na narrativa) de imagem

com o respectivo som sincrônico (sync-sound) que a acompanha no momento da tomada;

a construção da narrativa autobiográfica a partir de uma macroestrutura cronológica; e o

realce da figura do cineasta no momento da tomada fílmica a partir de seu

endereçamento/interação com os corpos em cena, enfatizando a lógica dramática calcada

no diálogo.

Inserido no contexto de inovação tecnológica do MIT Film Section, o início da

experiência de Diaries também dependeu do desenvolvimento de um modus operandi

particular para a filmagem. Pincus afirma que assim que surgiram as possibilidades de

“filmar intimamente com uma boa imagem e um bom som” (MACDONALD, 2014, p.

96) também se criou a opção da feitura de Diaries. Neste caso, o diretor ressalta o

desenvolvimento de uma câmera Éclair relativamente menor que as outras (pesando

apenas cinco quilos) e o gravador de fita magnética Nagra SN: uma peça de equipamento

pequena o suficiente para que fosse carregada no bolso do cineasta ou em uma pequena

bolsa a tiracolo22. Mais particularmente, Diaries contou com um projeto desenvolvido

por Ed Pincus e Stuart Cody, técnico do MIT Film Section, de ligação por sinal de rádio

wireless entre a câmera e o gravador de fita magnética. Em termos práticos, no momento

22 Ross McElwee também enfatiza o uso do Nagra SN para a feitura de Sherman’s March, como desenvolvimento significativo em relação ao Nagra IV – uma maleta de por volta de seis quilos que deveria ficar pendurada no corpo do cineasta - e que foi usado no anterior Backyard.

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em que Pincus acionasse o funcionamento da câmera, o sistema emitiria um sinal de rádio

para o gravador de fita magnética que também iniciaria a gravação. Desta forma, câmera

e gravador poderiam estar desvinculados fisicamente e o acionamento de ambos

dependeria apenas de uma pessoa (no caso, o próprio cineasta). Acoplado ao gravador

estaria um microfone de lapela (lavalier), que possibilitaria que as pessoas filmadas por

Pincus portassem o conjunto próximas de si. Em grande parte de Diaries este set-up foi

usado, o que deixava livre uma das mãos do cineasta para a utilização de uma lente zoom

que, por sua vez, permitia o distanciamento entre Pincus e as pessoas filmadas com

liberdade de enquadramentos dinâmicos. Em suma, tratava-se de alcançar o conjunto de

possibilidades fílmicas do cinema direto a partir de uma equipe composta pelo cineasta,

autossuficiente.

Em 1972, um ano após o início da filmagem de Diaries, Pincus publica um artigo

na revista Filmmakers Newsletter, “One Person Sync-Sound: A New Approach to

Cinema Vérité” (PINCUS, 1972), em que detalha sua metodologia para o registro do

filme. Para além de uma explicação técnica, Pincus enfatiza que o conjunto técnico-

metodológico de Diaries possibilitava a aproximação entre cineasta e personagens de

uma maneira ainda não experienciada pelos cineastas do cinema direto. Pincus escreve

que “As recorrentes questões sobre explorar as pessoas e tirar vantagem delas no Cinema-

Vérité tradicional tornam-se minimizadas quando o cineasta entra no espaço do filme de

igual para igual” (PINCUS, 1972). A motivação de Pincus, como frisado, residia na

crença de que a interação do cineasta com seus pares em um nível particular e sua posição

como parte integrante da narrativa faria com que sua própria figura fosse “objetificada”

de maneira similar às dos personagens retratados. Desta forma, a relação de poder entre

“cineasta” e “personagem” poderia – supostamente – tornar-se mais justa.

William Rothman é um dos autores que tocaram nos pontos nevrálgicos desta

questão, ao enfatizar o caráter violento da metodologia do cinema direto – mesmo que o

cineasta desenvolva estratégias em busca do apaziguamento desta relação desigual entre

ele e as pessoas filmadas. A aproximação de Rothman com as questões éticas do cinema

direto acontecem em vários de seus textos ao longo de sua carreira. Referindo-se ainda

mais precisamente ao primeiro momento do cinema direto, o autor propõe (ROTHMAN,

1988, p. 105) que existe uma fantasia de “virgindade e impotência” relativa ao cineasta

que está por detrás da câmera e em uma posição recuada diante da “observação” do

mundo. O segredo deste cineasta, entretanto, residiria em uma certa posição divina, que

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na realidade comanda que o mundo se revele em frente à lente, para sua subsequente

reautorização em forma de narrativa. Este cineasta demanda, entretanto, a isenção de sua

responsabilidade calcando-se na ilusão de uma não-interferência direta em relação às

pessoas e aos eventos no momento da tomada.

Já em um texto de 1996, “Eternal Vérités”, Rothman toma os documentários

autobiográficos dos cineastas de Cambridge como ponto análise subsequente deste tema.

O autor sugere que o trabalho desempenhado pelos cineastas do MIT Film Section, sob a

liderança de Ed Pincus e Richard Leacock, tinha como ponto de partida a intenção de

reumanizar, de alguma forma, a figura do cineasta em relação ao mundo no qual estava

inserido. A aspiração destes cineastas seria “reconciliar as demandas conflitantes de

filmar e viver, ao aprender a filmar o mundo sem revogar-se dele” (ROTHMAN, 1996.

p. 82). Rothman reconhece em Diaries (1971-1976), de Ed Pincus, e Sherman’s March,

de Ross McElwee os dois grandes épicos que resultam da experiência conceitual do MIT

Film Section, ambos estando calcados em uma “busca romântica” da parte do cineasta.

No caso de Pincus e em relação à empreitada de realizar um filme sobre sua experiência

matrimonial, o ato de filmar ameaça uma consolidação de seu isolamento – e não sua

libertação para que viva integradamente dentro de uma comunidade. Sendo assim, o

conflito entre o romântico e o ordinário, entre o filmar e o viver, surge como “o obstáculo

primário para o objetivo do cineasta, o de tornar-se totalmente humano”. (ROTHMAN,

1996. p. 82). O veredito de Rothman é o de que mesmo que os cineastas invistam em

procedimentos que façam com que suas próprias figuras também estejam complicadas

narrativamente, documentários como Diaries

...certamente demonstram que há um aspecto irredutível de revogação

e isolamento, bem como de violência, no papel do cineasta do Cinema

Direto, mesmo se as pessoas se endereçam diretamente ao realizador

por detrás da câmera; mesmo se as outras pessoas têm a permissão de

virar a câmera para o cineasta, tornando ele ou ela visível; e mesmo se

ele rompe seu silêncio e entra em conversações com os outros

personagens do filme. (ROTHMAN, 1996. p. 83)

Jim Lane sugere que questões éticas acarretadas pelo filme de Pincus, como as

apontadas por Rothman, também figuram como debate dentro de seu eixo narrativo. Lane

refere-se especialmente às reivindicações que tomam parte em situações de Diaries

quando personagens femininas da narrativa (como a própria esposa Jane e também Ann

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e Christina, com quem o diretor mantém relações amorosas ao longo do filme), endereçam

ao cineasta as possíveis violações éticas de sua postura. Segundo Lane, estas personagens

“habilmente apontam as relações de poder existentes entre cineasta e pessoas filmadas,

que Pincus frequentemente tenta negar” (1997, p.10). O visionamento de Diaries sugere

que apesar das alternativas metodológicas propostas por Pincus, outras (e novas) questões

éticas são evocadas em relação ao adentramento do universo familiar a partir da

metodologia do Cinema Direto na sua forma participativa/reflexiva.

Há, como já frisado, um cenário pré-fílmico particular sobre o qual a experiência

de Pincus se alicerça. O cineasta e sua esposa estavam casados há onze anos. Ambos

ideologicamente atentos aos movimentos sociais que circundavam o momento, Ed já era

professor do MIT Film Section e Jane estava engajada na militância feminista do grupo

responsável pela publicação de Our Bodies, Ourselves. O casal tinha dois filhos

pequenos, Ben e Sami. Em meio à efervescência ideológica e social nos Estados Unidos

pós-1965 (movimento pelos Direitos Civis, demonstrações antiguerra, feminismo), o

casal decide vivenciar a experiência do casamento aberto: ambos poderiam viver casos

extramaritais. Pincus propõe um período de cinco anos de filmagem durante os quais

acreditava que a família passaria por diversos tipos de transformações. Através desta

estratégia, a matéria-prima de Diaries seria a maneira através da qual as pessoas

apresentam mudanças de comportamento, opiniões, humores, estados de consciência,

bem como transformações físicas, por um período de tempo prolongado. À fricção em

potencial que seria causada tanto pelo casamento aberto quanto pelo crescimento dos

filhos em meio a uma época de experimentação e reavaliação de valores seria adicionada

a intenção em realizar um filme sobre o período.

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Figura 8: Ed e Jane Pincus no início da filmagem de Diaries (1971 - 1976)

Os motes mais significativos de Diaries são expostos pouco tempo após o início

da narrativa. Em algumas das primeiras sequencias do filme, Jane, ao ser questionada

pelo marido, revela seu desconforto com a empreitada fílmica que está sendo conduzida.

Em suas respostas, a esposa do cineasta revela que a presença da câmera cria uma camada

de autoconsciência que dificilmente poderia ser superada. Em uma de suas falas, Jane

aponta: “Eu sinto que tenho de atuar, sendo que em minha vida toda tentei não fazer isto”.

Como uma reação ao cinema direto clássico, Diaries tematiza de antemão o

flexionamento dos comportamentos dos personagens diante da câmera na circunstância

da tomada como condição sine qua non para o discurso fílmico, neste caso,

autobiográfico. Entretanto, outro ponto forte da experiência de Diaries consistia em

filmar por um período de tempo prolongado – cinco anos – a fim de testar de que maneira

a relação das pessoas com determinado assunto se transformaria com o tempo. Pincus

aponta que diferentemente de outros filmes do Cinema Vérité, que procuram definir uma

pessoa através do registro de um curto período de tempo, ele pode “olhar para as pessoas

mais como estados de transformação. As pessoas podem ser tratadas mais como ‘vir-a-

ser’” (PINCUS, 1972, p. 25). As sequencias de Diaries revelam que, ao longo dos anos,

a câmera de Pincus e sua “intenção fílmica” acabam por tornar-se mais próximas da

experiência cotidiana de sua família e das pessoas envolvidas na empreitada. Com o

tempo, a presença da câmera deixa de ser uma grande novidade para as crianças, da

mesma forma que a performance de amigos e colegas de trabalho do diretor revela-se

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aparentemente mais incorporada à sensação de conforto e naturalidade. Dessas, a

mudança de atitude de Jane em relação ao projeto é a mais palpável, sendo colocada em

evidência na narrativa. Em entrevista a Scott MacDonald, Jane ressalta que o ódio que

tinha em relação ao projeto no início das filmagens deu lugar a um desejo genuíno de ser

filmada, ao reconhecer-se como uma mulher “realmente interessante” (MACDONALD,

2014, p. 100).

Outra instância da transformação de pessoas e consciências, opiniões, desejos,

humores e afetos consolida-se na abordagem temática do relacionamento amoroso entre

o casal Pincus, que leva à consideração endossada pelo próprio diretor de que Diaries

seria, em última instância, “uma história de amor” (MACDONALD, 2014, p. 91). A

experimentação do casamento aberto é tematizada nos primeiros minutos do filme,

quando a narrativa apresenta Ann, uma de suas amantes durante o período filmado. Ao

longo das três horas de Diaries, são diversas as situações em que a interação entre os

personagens, majoritariamente, entre Ed e Jane, revela a constante reavaliação da situação

amorosa do casal, em meio à tematização de novas pessoas na vida de cada um deles.

Decididamente mais instável do que harmoniosa, a experimentação do casal Pincus de

uma alternativa à monogamia é abordada em diversas de suas discussões. Em cada uma

delas, um novo cenário é disposto, em que uma das partes mostra-se menos satisfeita do

que a outra em relação à situação “atual” da experiência. Não são incomuns

demonstrações de ciúmes ou de indicações que sugiram o desejo de uma separação total

do casal. Aproximando-se de seu final, entretanto, Diaries sugere o apaziguamento das

tensões existentes entre o cineasta e sua esposa, bem como a decisão por estabelecer uma

vida familiar nuclear – que culmina na mudança dos Pincus para o campo, em Vermont,

onde a família permanecerá pelas próximas quatro décadas.

A busca por formas de relacionamento alternativas é uma das muitas

características que faz Diaries apresentar-se como o retrato de uma época, consolidado a

partir do visionamento da experiência particular da família Pincus. Ainda neste aspecto,

Diaries tematiza uma postura pró-aborto (ainda proibido e ligado à causa feminista da

década de 1970) ao mostrar o procedimento realizado por Jane em 1971. O naturismo é

um ponto presente no filme, sendo recorrentes as sequencias em que vemos os corpos nus

de praticamente todos os personagens envolvidos: Ed, Jane, seus filhos pequenos, seus

amigos e amantes, em diversas situações nas quais parece haver pouco ou nenhum

constrangimento em relação à câmera. A experimentação de drogas também é tematizada:

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ainda no início do filme, Pincus filma a si próprio durante uma “viagem” de mescalina

durante uma visita à California, no chalé de Jim McBride (diretor do “falso”

autobiográfico David Holzman’s Diary [1968]). Em uma sequência perto da metade do

filme que aborda uma das discussões do casal, Jane reivindica uma reavaliação da divisão

de trabalho dentro e fora de casa: a esposa questiona o fato de ter de cuidar da maior parte

dos afazeres domésticos e do trato com as crianças enquanto Ed trabalha como professor,

sugerindo pensarem em uma alternativa mais justa. Scott Macdonald frisa que o fato de

Pincus tematizar estas questões consolidava-se como uma confrontação à ideia de que o

que se passava dentro da vida familiar, “desde quanto dinheiro eles ganham até a natureza

de suas atividades sexuais” (MACDONALD, 2013, p. 143), deveria manter-se em um

âmbito privado. Através de seu filme, o realizador torna públicas estas e outras questões

que constituíam um relacionamento matrimonial, bem como cristaliza episódios que

dizem respeito a um cenário individual, mas que também se referia à realidade de outros

jovens casais no início da década de 1970. MacDonald sustenta que Pincus foi um dos

poucos cineastas que retratou as experiências desta geração, a partir de um ponto de vista

de dentro da experiência, e as maneiras nas quais isto afetou a vida cotidiana dos casais

e de suas famílias (MACDONALD, 2013, p. 150).

São diversas as características metodológicas e estilísticas de Diaries, assim como

sua estrutura narrativa, que endossam as opiniões de Pincus expressas em seus escritos e

entrevistas da época. Evidentemente, o conjunto de inovações tecnológicas que

antecederam o início de Diaries serviam não apenas a uma questão de minimização de

gastos ou de praticidade, mas referiam-se sobretudo à visão artística de Pincus em relação

a um tipo de narratividade autobiográfica possibilitada por uma nova conjuntura. Nunca

negando sua ligação com a tradição do cinema direto estadunidense, com Diaries Pincus

almejava trabalhar a “sensação de estar lá”, porém voltada para o universo das interações

domésticas e cotidianas, e fazendo-se de si próprio um personagem ativo do filme. A

matéria prima imagética-sonora de Diaries é composta através de tomadas realizadas em

situações não deslocadas, ou pouco deslocadas, do cotidiano “normal” do cineasta e de

seus personagens. Como expressado anteriormente por Pincus, as sequencias de Diaries

evocam dominantemente a combinação de um cenário pré-filmico (“o mundo

independentemente da presença da câmera”) com o elemento extra, composto por sua

câmera e sua intenção fílmica. A câmera faria o papel de flexionar a consciência e o

comportamento dos corpos em cena em relação uns aos outros e ao mundo material ao

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redor, porém sem desestruturá-lo totalmente. A experiência de Pincus, segundo sugere

Jim Lane, enfatiza a importância de tornar o cotidiano visível como uma maneira de

explorar a “natureza da subjetividade e das interações humanas, que a câmera tem a

capacidade única de retratar” (LANE, 2002, p. 53). Sendo assim, ao empunhar a câmera

(e o gravador de som) em situações integradas a seu cotidiano, Pincus via neste tipo de

registro uma maneira particular de escrita autobiográfica, que sobrepunha

substancialmente a tomada fílmica ao “ato de viver”. A consubstancialidade do registro

de imagem e som a uma circunstância de situação dramática que reconhecemos como

pertencente à vida pessoal do cineasta confere uma noção à tomada de escrita

autobiográfica no “tempo presente” e que parte de uma motivação existencial distinta da

dos textos escritos. O processo de construção do texto autobiográfico literário, em

qualquer uma de suas alternativas (memórias, diários, ensaios) sugere, dominantemente,

que seu autor esteja de alguma forma diante do passado para a subsequente transcriação

escrita.

De modo geral, à maneira através da qual a narratividade de Diaries é conduzida

subjaz um comprometimento de Ed Pincus com a noção de uma escrita autobiográfica

calcada na potencialização da referencialidade de seu discurso. O diretor enfatiza

procedimentos narrativos que construam uma experiência “palpável” dos eventos

profílmicos: o mundo material, da maneira que é apresentado à câmera na circunstância

da tomada fílmica. Nesta circunstância, não apenas as palavras pronunciadas, mas os

gestos feitos, os silêncios, o mundo concreto dos objetos, tudo isto adquire relevância e

significado em uma narrativa autobiográfica investida em explorar momentos cotidianos

da relação entre o cineasta e as pessoas ao seu redor. Um artigo da revista Film Comment

publicado em 1981, logo após o lançamento de Diaries, ressalta aspectos análogos a estes

como uma das particularidades da empreitada fílmica de Pincus. O autor Stephen Schiff

sublinha a relação entre os estados de consciência de Ed Pincus particularizados pelo

momento da tomada e sua expressão fílmica-corpórea que vemos na tela:

O falecido fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty acreditava que um

homem expressa o “todo” de seu ser não apenas no que ele diz e faz,

mas nas minúcias de seus movimentos, o jeito que ele gesticula, a

maneira que ele anda pelo espaço de uma sala, ou mesmo que ele lança

um olhar sobre um objeto distante. Os movimentos da câmera de Pincus

transmitem quem ele é da mesma maneira que qualquer ação

intencional, e, assistindo a eles, nós descobrimos (Pincus) como um

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auteur de uma maneira que nunca poderíamos descobrir Hitchcock,

Welles ou Ophuls. Este é um processo misterioso, mas não precisa

parecer tão obscuro. A perícia de Pincus na composição dos quadros,

por exemplo, varia ao longo do filme, dependendo não apenas de seu

objeto (...), mas também de seu estado de consciência. O quão mais

calmo e mais confiante está Pincus, mais bonitas são suas tomadas.

(…). Com a maturação de si próprio e de Jane, com a brandura de seus

problemas, o estilo cinemático torna-se mais preciso e mais pitoresco.

(SCHIFF, 1981. Tradução nossa.)

Algo semelhante ao apontamento de Schiff é encontrado no texto de Susanna Egan

que lida com documentários como Silverlake Life, que herdam muito das características

conceituais originadas em Diaries. Egan ressalta a maneira através da qual estes

autobiográficos remetem-se à “experiência original” do cineasta, ao tornar visíveis os

elementos materiais e interações interpessoais que, no limite, dizem respeito diretamente

à sua vida cotidiana. Ressaltando a ideia de consubstancialidade entre a expressão fílmica

e a realidade fenomenal, Egan sugere a expressão “irromper” (ou “transbordar”, burst

out) da experiência em relação ao quadro. Egan sustenta: “...os cineastas utilizam a

câmera, ademais, como que para dramatizar especificamente o espectro mais amplo do

material original e a natureza aleatória do especular; em ambos, a mobília, os aposentos,

o cenário e as pessoas irrompem do quadro como um lembrete constante daquela

experiência original a que a experiência filmada se refere”. (EGAN, 1994, p. 607).

É possível dizer que Pincus constrói a narrativa de Diaries como o teste de uma

hipótese, sendo que o diretor se abstém de investir em elementos estilísticos ou

metodológicos que fujam desta lógica referencial. Na medida em que a interação entre os

corpos em cena (e também do cineasta) com o mundo das superfícies é a principal

matéria-prima de Diaries, o realizador abre mão quase totalmente de utilizar recursos

estilísticos que não frisam narrativamente sua particularidade espaço-temporal. É o caso

da utilização econômica de ferramentas de discurso indireto como os letreiros e a narração

e voz over, que no filme portam funções bastante restritas. A função principal dos

letreiros em Diaries é sublinhar a narratividade cronológica, de modo a tornar

quantificada a passagem do tempo da experiência filmada, durante as três horas de filme.

Neste sentido, Pincus delimita o tempo a partir das estações do ano, em letreiros como

“Verão de 1972”, “Primavera de 1973” ou “Inverno de 1975”. O apontamento das

estações do ano tem um papel importante em Diaries na medida em que torna mais

palpável a visualização da transformação física dos personagens (principalmente os filhos

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do casal Pincus) durante os cinco anos de filmagem, mas também cria outro vínculo

referencial visto que o clima delimitado das estações do ano no nordeste dos EUA –

verões quentes e invernos muito rigorosos – flexiona a maneira através da qual seus

habitantes desempenham atividades cotidianas, bem como altera significantemente a

paisagem exterior. No caso da voz over, Pincus emprega o recurso como amparo narrativo

nos momentos em que a interação entre os personagens deixa insuficientemente claro

algum aspecto temático que o diretor deseja ressaltar. É o caso, por exemplo, da

ocorrência de alguma quebra espacial narrativa que tem de ser justificada (como “Jane e

Eu deixamos as crianças com meus pais e fomos à Califórnia para férias de duas

semanas”), ou o caso do fornecimento de informação suplementar em relação a algum

ponto temático. Um destes casos é quando Ed acompanha Jane à consulta médica na qual

é discutida a possibilidade de realizar um procedimento de ligação de trompas uterinas.

Mesmo tendo dito ao médico que desejaria ir adiante com o procedimento, Pincus ratifica

em over ao final da sequência: “Jane decidiu postergar a ligação de trompas”. Neste caso,

este amparo estilístico serve à narrativa no sentido de que a gravidez indesejada de Jane

e a realização de seu aborto serão tópicos abordados posteriormente pelo filme.

A recusa de Pincus em investir potencialmente no procedimento de narração em

voz over reside no fato de que esta articulação narrativa é desprovida de um estado de

consciência ligado a uma circunstância espaço-temporal que é feita visível na narrativa.

Evidentemente, a narração em over em sua utilização comum não traz consigo

ontologicamente a clareza em relação ao momento em que foi escrita ou gravada. Além

disso, dominantemente, narrações em over são fruto de um debruçamento prolongado de

esforço racional, resultando em discursos coerentes e frequentemente dotados de

densidade analítica e juízos de valor. Uma rápida autoanálise revela que nós, enquanto

seres no mundo, dificilmente apresentamos um rigor analítico ou conceitual irretocável

nas interações cotidianas que travamos com nossos pares. Com Diaries, Pincus buscava

retratar a si próprio e as pessoas ao seu redor não na performance de suas expertises

intelectuais, mas na performance daquilo que é ordinário: menos em suas condições de

mitos e mais como seres passíveis de incongruências, hesitações, contradições e sensíveis

a alterações de temperamento. Em entrevista a Scott MacDonald, Pincus constatou que

“a maioria das coisas que as pessoas dizem são estúpidas. Durante a edição de Diaries,

pensava ‘Meu Deus, eu realmente disse isso? Ela realmente disse isso?’. Mas, estúpido

ou não, aquilo que dizemos é parte essencial daquilo que somos” (MACDONALD, 2014,

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p. 96). Em texto de 1977, Pincus justifica esta metodologia ao enfatizar a unicidade

espaço-temporal das tomadas como matéria-prima narrativa, asserindo que “Tudo pode

ser dito em entrevistas ou na narração em over, mas nem tudo pode ser mostrado. Talvez

a principal preocupação do cinema agora seja aquilo que não pode ser dito, mas deve ser

mostrado” (PINCUS, 1977, p. 175).

Outro comprometimento conceitual de Ed Pincus em relação a Diaries é a

disposição de uma macroestrutura narrativa cronológica. Segundo aponta Jim Lane,

originalmente Pincus estaria convencido de que o projeto completo de Diaries seria a

exibição das 27 horas de seu material bruto em ordem cronológica (LANE, 1997, p. 10),

ideia esta que foi deixada de lado alguns anos após o término da filmagem. Entretanto, a

narrativa, embora longa, é conduzida a partir de uma estrutura de causa-e-efeito,

responsável pela manutenção do interesse dramático em relação a alguns pontos

temáticos principais do filme – em especial, a discussão acerca da vida conjugal de Ed e

Jane, que entrecorta toda a narrativa. De maneira geral, a espectatorialidade de Diaries

consiste em uma espécie de fluxo no qual imerge-se aos poucos até que se torne pleno o

entendimento de sua proposta narrativa. No início do filme, Pincus não enfatiza

procedimentos narrativos que nos apontem o que devemos buscar na experiência

audiovisual à qual estamos expostos. Da mesma forma, existe pouco didatismo quando

novos personagens são apresentados à narrativa - pouco sabemos, em um primeiro

momento, da relação entre o personagem e o cineasta que justifique sua inclusão no filme.

É neste aspecto que a reexposição dos personagens a partir de uma narrativa cronológica

faz com que ao longo do filme emerjam traços de seus comportamentos físicos,

personalidades, mudanças de temperamento e do tipo de laço que mantém com o cineasta,

sempre a partir de interações dramáticas com outros personagens ou com o próprio

Pincus. Também neste sentido o autor Stephen Schiff disserta a respeito de como o

sentido da narrativa de Diaries é construída em seu visionamento:

Ao esticar tão pouco material sobre uma extensão (de tempo) tão ampla,

Pincus fez com que a pele de seu filme pareça esticada e resiliente.

Saltando de um incidente parcialmente esboçado para outro, o

espectador começa a preencher as lacunas e a sensação que (este

procedimento) transmite é bastante como um suspense. É como se

Diaries desencadeasse algum impulso narrativo inconsciente – um

poder de conexão enevoante, conectivo, não diferente da persistência

da visão que transforma as fotos em filme quando elas são piscadas

vinte e quatro vezes por segundo. Aliviadamente, Diaries não insiste

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em sua narrativa. A estória simplesmente forma-se, coalesce, tão

misteriosamente como a geada em uma janela. O que é surpreendente é

que há uma história, que quando olhada em pedaços como este, (mostra

que) a vida produz narrativa, repleta de seus próprios motes, viradas e

trechos de suspense. Você consegue ver isso acontecer. (SCHIFF, 1981.

Os grifos são do autor. Tradução nossa.)

Figura 9: A família Pincus na casa de campo em Vermont, último plano de Diaries (1971-1976)

Neste sentido, a pouca concessão de Pincus a elementos estilísticos que se

desviassem da proposta de narratividade autobiográfica que buscava testar em Diaries

revela sua posição vigorosa em relação ao novo cenário. Diaries é um dos principais

alicerces do Documentário Autobiográfico de Cambridge e influenciou diretamente a

obra de cineastas como Ross McElwee. Diversos de seus elementos estilísticos ou

metodológicos (cronologia, equipe de uma pessoa só, narratividade a partir da interação

dramática, ênfase no cotidiano e no sync-sound) serão recorrentes na obra destes

cineastas.

À ocasião de uma retrospectiva dos filmes de Ed Pincus realizada em 2012 no

Harvard Film Archive, McElwee escreveu sobre o apreço por Diaries e sua influência

para uma geração de cineastas:

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(O filme) é luminoso em sua caracterização da intrincada trama do

cotidiano. Almoços são preparados, uma criança é levada ao médico,

um filhote de cachorro é comprado, o pai de Jane faz uma visita, Ed vai

a um casamento, o filhote torna-se um cachorro adulto. O mundano

torna-se transcendente. Esse fluxo sem fim de atividades com amigos e

família é o pano de fundo evanescente para o desejo de Ed e Jane de

redefinir o que significa alguém estar casado, criar uma família e,

também, o que significa expor esse experimento caótico e amável para

a câmera. (...) Ed descreveu seu trabalho como uma tentativa de

reconciliar o trivial com o profundo e provar a fragilidade e o heroísmo

da vida cotidiana. Diaries continua a inspirar diversos documentaristas,

incluindo eu mesmo, a perseguir essas mesmas reconciliações e

revelações. Mas, mais importante, com pathos e humor abundantes,

Diaries revela a qualquer espectador as fascinantes ressonâncias e

ritmos dos incontáveis momentos mundanos que fazem a vida de uma

pessoa – e isso constitui o viver. (McELWEE, 2012. Tradução nossa.)

2.4. A produção autobiográfica do MIT Film Section: filmes e cineastas.

Um dos principais polos de produção cinematográfica de Cambridge neste

momento consistiu na experiência do MIT Film Section. O MIT Film Section foi o

departamento de pesquisa, ensino, produção e inovação cinematográfica do

Massachusetts Institute of Technology (MIT). O departamento foi fundado em 1967 com

a contratação de Ed Pincus, a quem Richard Leacock juntou-se no ano seguinte. A dupla

trabalhou em conjunto até o início dos anos 1980, quando Pincus passou também a

lecionar na universidade Harvard (até 1983) e em seguida muda-se definitivamente para

o estado de Vermont, afastando-se tanto da docência quanto da produção

cinematográfica. Leacock permanece lecionando no MIT até 1988, quando se aposenta

da instituição e muda-se para Paris com a companheira Valerie Lalonde, onde realiza seus

últimos filmes e reside até o fim da vida.

De 1967 a 1974 o MIT Film Section recebeu alunos de graduação de outras áreas

da universidade que desejavam realizar incursões pela atividade cinematográfica. Porém,

a “época de ouro” do departamento, no que concernem desenvolvimentos da arte

cinematográfica aplicada ao documentário e à formação de cineastas-chave desta história,

deu-se com a instauração de um programa de mestrado, em 1974. Tratava-se de um

programa de dois anos em que os alunos aprendiam cinema de um ponto de vista também

teórico, porém predominantemente prático. Era enfática a noção de que o cineasta deveria

dominar o núcleo duro de funções da produção documentária (imagem/som e montagem)

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a fim de poder desempenhar qualquer um ou todos os papeis. Durante o curso, os alunos

realizavam um ou mais de seus próprios filmes, que deveriam ser finalizados e entregues

como trabalhos de conclusão23, juntamente com um “memorial” descritivo-analítico em

que justificavam suas escolhas estéticas e narrativas.

No período de 1974 a 1980, o MIT Film Section formou cineastas importantes

para o desenvolvimento do documentário de Cambridge. Principalmente a partir do

contato com Ed Pincus, muitos destes realizadores enveredaram na noção de

autobiografia fílmica. É o caso do próprio Ross McElwee (formado na primeira turma de

pós-graduandos do departamento, em 1977), Robb Moss (Absence [1981], Riverdogs

[1982], The Tourist [1991], The Same River Twice [2002]), Mark Rance (Mom [1978] e

Death and the Singing Telegram [1983]), Jeff Kreines (técnico do departamento e diretor

do pioneiro The Plaint of Steve Kreines as Recorded by his brother Jeff [1974]), Joel

DeMott (Demon Lover Diary [1980]) e Ann Schaetzel (Breaking and Entering [1980]).

Para além destes cineastas, o MIT Film Section também contou com alunos como o Prof.

Richard Peña, formado em 1978, ex-curador do Festival de Cinema de Nova Iorque e

atualmente docente da Columbia University. Já a partir da década de 1980, o enfoque do

MIT Film Section tornou-se mais abrangente no que diz respeito à acepção de outros tipos

de expressões audiovisuais que não apenas aquelas restritas à sala de cinema e à arte do

cinema documentário. Um engajamento maior com a ideia de ampliar a abrangência das

mídias eletrônicas e, posteriormente, digitais, com outros setores artísticos (museus,

instalações, hipermídia) é o que circunda o trabalho do sucessor do Film Section, o MIT

Media Lab, que abriu suas portas em 1985 e funciona até os dias atuais.

Porém, é possível dizer que a experiência de 1967 a 1980 do MIT Film Section

concentrou-se predominantemente no debate e no desenvolvimento de questões ligadas

ao cinema documentário, a partir do legado do cinema direto norte-americano. O

departamento oferecia um enfoque significantemente mais prático e livre se comparado

ao trabalho que estava sendo desenvolvido no Film Study Center de Harvard na década

de 1960 e 1970. O fomento à produção e ao desenvolvimento de técnicas e metodologias

que simplificassem (e barateassem) cada vez mais o registro de imagem e som sincrônico

impulsionou o interesse de muitos de seus alunos. Também neste momento, pensava-se

23 Richard Leacock constata que foram realizados mais de quarenta filmes de conclusão de curso no MIT, alguns de “reconhecimento considerável”, segundo ele, como Charleen de Ross McElwee, Premature, de David Parry, e Space Coast, de Ross McElwee e Nicholas Negroponte. (LEACOCK, 2002, p. 283)

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na inovação tecnológica (característica bastante relacionada à filosofia operante do MIT,

de maneira geral) relacionada ao cinema documentário como possibilitadora de uma

inovação epistemológica – da natureza do conhecimento que era produzido por filmes

documentários. Em parte, tratava-se de pensar o sync-sound como característica

irrevogável do processo cinematográfico e da representação fílmica do mundo. Alfred

Guzzetti, que já trabalhava em Havard neste período, relata que “eles (no MIT) achavam

que uma vez que conseguissem fazer funcionar esta máquina do sync-sound, ela poderia

dizer-nos verdades sobre a sociedade que nunca tínhamos conhecido” (MACDONALD,

2014, p. 111).

Segundo Ed Pincus, sua contratação no MIT e, consequentemente, a fundação do

MIT Film Section, deu-se a partir da visualização de Black Natchez por alguns

professores de humanidades do MIT (MACDONALD, 2014, p.67). O filme suscitou

nestes docentes (lefties, ou, “de esquerda”, segundo Pincus) a importância de que o MIT

dialogasse com as novas possibilidades de representação cinematográfica da época. É

Richard Leacock, entretanto, que acaba tornando-se uma espécie de “porta-voz” do

departamento, a partir de sua chegada em 1968. Leacock era reconhecidamente um

entusiasta da ciência e do trabalho dos cientistas, e já havia trabalhado com professores

do MIT em documentários educacionais sobre física. Além de mostrar conforto maior

que Pincus em relação ao trato acadêmico e interdepartamental com outros professores

do MIT, Leacock dá sinais de pensar no cinema para além de uma esfera artística, como

ferramenta para outros tipos de trabalho, por exemplo relacionados à ciência e à

divulgação científica. Em sua autobiografia, Leacock incorpora um “manifesto” do

trabalho do departamento, escrito por ele à época, que sumariza as intenções do MIT Film

Section:

O que pretendemos fazer aqui no MIT é oferecer uma sofisticada

instalação para a feitura cinematográfica que pode produzir filmes

sonoros em 16mm. Com esta instalação, poderemos tanto treinar

estudantes que queiram tornar-se cineastas profissionais quanto assistir

aqueles que têm outros interesses específicos, mas que querem usar o

cinema como uma ferramenta em seus trabalhos, ou como uma maneira

de comunicação daquilo que estão fazendo. Também podemos

deliberadamente realizar projetos que buscam usar o cinema de maneira

que, na nossa avaliação, não foram explorados no passado.

Pretendemos projetar e construir novos equipamentos com ênfase

especial em 8mm e gravação em videotape a fim de reduzir o custo e a

dificuldade da feitura de cinema para fins não-profissionais.

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Finalmente, eu e aqueles que trabalham comigo devemos continuar a

trabalhar como cineastas ativos, envolvidos com os estudantes mais

como colegas de trabalho do que como professores. (LEACOCK, 2012,

p. 277. Tradução nossa.)

Este trecho do “manifesto” do MIT Film Section revela uma de suas missões,

particularmente no que diz respeito à motivação de Richard Leacock dentro do

departamento. Existia o interesse no fomento da inovação do aparato tecnológico em

busca da simplificação, clareamento e barateamento da produção fílmica. Em suma, havia

um esforço conjunto pela facilidade de acesso à feitura cinematográfica como via

alternativa de produção de conhecimento. Indo ao encontro do relato de Alfred Guzzetti,

já citado, acreditava-se que o acesso à produção cinematográfica nas mãos de indivíduos

menos vinculados ao cinema em sua profissionalização poderia revelar “verdades

desconhecidas” à sociedade. No relato de Guzzetti ou no “manifesto” cunhado por

Richard Leacock frisa-se o som sincrônico como parte inerente ao registro

cinematográfico e à construção narrativa. No artigo de 1977 em que Pincus discorre a

respeito da experiência em andamento de Diaries, o cineasta faz coro a esta ideia:

(...) Pode-se plausivelmente sustentar que a unidade fílmica básica é a

tomada juntamente com o som que a acompanha (...) Daqui em diante

gostaria de usar a expressão “tomada fílmica” (no sentido do take) como

incluindo ao menos a possibilidade do som sincrônico que acompanha

a imagem cinematográfica. Devemos notar que a gravação sonora de

algo implica que este algo existe. (PINCUS, 1977, p. 160. Tradução

nossa.).

Durante os anos do MIT Film Section, Leacock, Pincus e uma trupe de técnicos

desenvolveram aperfeiçoamentos para o sync-sound tanto na bitola de 16mm quanto na

de super-8mm, sendo que o uso de ambos os sistemas foi encorajado aos estudantes para

suas produções. Em entrevista para esta pesquisa, o professor e ex-aluno do MIT Film

Section Richard Peña24 assere que, em última análise, o sonho de Leacock em relação ao

24 Richard Peña também foi assistente de edição do diário filmado de Ed Pincus, Diaries (1971 - 1976). O Prof. Peña pôde ser entrevistado para esta pesquisa durante a estadia na Universidade Harvard, entre 2015 e 2016, onde Peña também se encontrava como professor visitante do departamento Visual and Environmental Studies. A história de Peña e sua relação com o MIT Film Section apresenta uma interessante conexão com o Cinema Brasileiro e latino-americano. Em entrevista, Peña relata que a decisão de estudar no MIT Film Section partiu de sua experiência no Brasil entre 1974 e 1975. Neste momento, travou contato com Paulo Emilio Salles Gomes (a cujas aulas assistiu durante seis semanas),

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sync-sound seria cristalizado posteriormente, com o desenvolvimento das câmeras de

vídeo mais portáteis e de melhor qualidade25. Um dos maiores legados deixados pelo MIT

Film Section, portanto, foi o de estabelecer-se como um polo de pesquisa dedicado ao

avanço epistemológico no campo do Cinema Documentário a partir da inovação

tecnológica. Demandava-se o esforço pela implementação de metodologias que

facilitassem o acesso, de diferentes maneiras, ao registro imagético-sonoro sincrônico.

O contato com a produção de Ed Pincus foi fundamental para o desenvolvimento

de documentários autobiográficos por diversos dos cineastas-alunos do MIT Film

Section, como Ross McElwee, Robb Moss, Ann Schaetzel, Mark Rance e outros. Em sua

autobiografia, Richard Leacock frisa o distanciamento que tinha de Ed Pincus em relação

a esta questão, afirmando que “Pincus estava interessado em filmes ‘diarísticos’; eu sentia

que isto era impossível. Alguns estudantes foram pelo meu caminho, outros seguiram

pelo caminho dele. Ainda penso sobre isto e continuarei a fazê-lo.” (LEACOCK, 2012,

p. 308). Os trabalhos finais redigidos pelos alunos do MIT Film Section (como

MCELWEE, 1977; RANCE; 1977 ou MOSS, 1979) evidenciam como o

desenvolvimento das possibilidades metodológicas do cinema direto – e o florescimento

para uma inclinação ao documentário autobiográfico – estavam no cerne das questões

discutidas do departamento. Estas discussões iam acerca da variação entre observação e

interação/participação do realizador com o mundo ao redor; a proximidade ou o

distanciamento com o “objeto” fílmico ou a maneira através da qual as configurações de

equipe e de equipamento (tecnologia) adequavam-se a determinado projeto.

O trabalho final de Ricahrd Peña (1978) busca problematizar o Documentário

moderno estadunidense, na forma do cinema direto, passando pelo grupo Drew e pelo

Carlos Augusto Calil e outros pesquisadores. Peña estava interessado na ideia do “acesso” à produção cinematográfica em países latino-americanos. Apesar do apreço pelo cinema de Leacock, Pennebaker e outros cineastas do grupo do Cinema Direto estadunidense, sua ida ao MIT Film Section determinou-se pela ciência de que o departamento experimentava com bitolas menores, como o Super-8, e outros tipos de inovações do aparato cinematográfico. Na mesma linha de pensamento do manifesto do MIT Film Section escrito por Leacock, Peña interessava-se pela simplificação e barateamento da produção fílmica em prol de sua desvinculação de uma ótica profissionalizante e elitista. 25 De fato, o último período da produção de Richard Leacock (realizada na França, após 1988, com a companheira Valerie Lalonde), consiste totalmente na utilização de câmeras de videotape Hi-8. Em filmes como Les Oeufs a la Coque de Richard Leacock (1991), o diretor passa a registrar e narrativizar eventos mais próximos de seu cotidiano. Não se trata necessariamente de uma abordagem autobiográfica de sua maneira mais densa, mas existe um ponto-de-vista autorreflexivo em que Leacock sublinha sua posição como profissional recém-aposentado e explorador de um novo país, uma leveza em relação ao último

período de sua vida que permanece em toda sua última produção.

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cinema de Jean Rouch, chegando em Ed Pincus e em uma avaliação crítica do trabalho

feito pelos estudantes do MIT Film Section. Peña, como outros teóricos/cineastas que

viveram este momento cinematográfico “de dentro” da experiência, exnergava a

produção contemporânea como uma reação ao cinema direto clássico, apontando para os

novos questionamentos temáticos, metodológicos e éticos suscitados pelos filmes:

Pode-se ver como a obra de Pincus oferece um exemplo da evolução do

cinema-vérité americano para longe do modelo Drew em certa direção

(...) O indivíduo extraordinário é substituído (…) pelo cineasta ele

próprio, de certa maneira. Repentinamente, os “objetos” do cinema-

vérité Americano viram-se e encaram a câmera. ” (PEÑA, 1978. p.26).

Peña ainda constata que, naquele momento, o Cinema-Vérité e, especialmente, o

trabalho vindo do MIT, constituía a única vanguarda significativa do cinema

estadunidense (PEÑA, 1978, p. 5). Segundo o autor, “certamente o trabalho dos docentes

e dos funcionários, assim como parcela significativa do trabalho dos alunos, está

vislumbrando novos caminhos no cinema, cujos efeitos ainda serão sentidos” (PEÑA,

1978, p. 5). Comentaremos algumas das experiências autobiográficas extraídas do

contexto do MIT Film Section.

a) David Parry, Jeff Kreines, Mark Rance

Em seu trabalho de conclusão de curso, o aluno David Parry aponta que se o

cinema direto dos anos 1960 poderia ser entendido através da metáfora da “mosca na

parede”, a produção da década de 1970 seria metaforizada pela “mosca no espelho”

(PARRY, 1979, p. 6). Para Parry, no momento em que viviam, “a verdade subjetiva

tornou-se o espécime mais nobre para análise, e a autobiografia torna-se quase que um

‘cartão de visitas’” (PARRY, 1979, p. 6). Em sua dissertação, Parry reflete sobre a

experiência da realização de Premature, filme rodado durante sua passagem pelo curso,

entre 1977 e 1979, e finalizado totalmente no ano seguinte. A circunstância de Premature

inicia-se com o nascimento prematuro de sua primeira filha, aos seis meses de idade.

Parry tematiza o desenvolvimento da filha durante o período de incubação, no qual o

diretor e sua esposa não sabiam se o bebê sobreviveria e se desenvolveria sem sequelas.

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Um ano e meio após este momento, a esposa do cineasta engravida novamente e a

possibilidade de um aborto é colocada em questão. O filme desenvolve-se, portanto,

durante um período de crise familiar. Diversas sequencias de interação entre o cineasta e

sua esposa denotam o momento de instabilidade pelo qual passavam, no qual também a

empreitada fílmica – o ato de registrar a crise – coloca-se como um elemento de tensão e

conflito.

Figura 10: Premature (1980), de David Parry

Uma figura de destaque no desenvolvimento da metodologia do documentário

autobiográfico do MIT Film Section é Jeff Kreines. Na década de 1970, Kreines era

empregado da área técnica do departamento, tendo colaborado para a produção dos alunos

do MIT Film Section. Kreines é apontado como responsável pelo desenvolvimento da

metodologia do one-person-crew aliada à exploração doméstica ou familiar, que fora

aprimorada por Ed Pincus para a feitura de Diaries. Kreines empregou a metodologia no

filme The Plaint of Steve Kreines as Recorded By His Younger Brother, Jeff, lançado

ainda em 1974. O filme de Kreines lida com a circunstância doméstica que englobava o

momento da saída de seu irmão mais velho do lar, a fim de viver sozinho pela primeira

vez em um apartamento. O documentário é frequentemente apontado como uma

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experiência pioneira do cruzamento entre cinema direto e autobiografia. Em diversas

entrevistas, e em diferentes momentos de sua carreira, Ross McElwee refere-se ao filme

de Kreines como influência preponderante para seu desejo de filmar sob uma ótica da

exploração do cotidiano familiar, considerando-o capaz de transformar “os detalhes

mundanos da própria vida do cineasta em algo digno de cinema” (MCELWEE, 2005,

p.5). Ed Pincus também menciona o filme em artigo publicado em 1977 (PINCUS, 1977,

p. 170), no qual avalia a produção do MIT Film Section naquele momento.

Figura 11: Diálogo entre Steve Kreines e sua mãe em trecho disponível de The Plaint of Steve

Kreines as Recorded by his younger brother, Jeff (Jeff Kreines, 1974)

Kreines estabeleceu um relacionamento próximo com outros dois alunos/cineastas

do MIT Film Section, Mark Rance e Joel DeMott, que também realizaram documentários

autobiográficos no período. Em seu trabalho final, Mark Rance (1977) escreve sobre a

experiência da feitura de Mom (1978), um dos filmes entregues na conclusão de curso do

MIT. Alguns anos depois, em 1986, Rance publica o artigo “Home Movies and Cinema-

Vérité” (RANCE, 1986), no qual sublinha a importância do MIT Film Section no

desenvolvimento do cinema autobiográfico estadunidense. Rance expõe a relação do

departamento com a tradição do cinema direto e o ímpeto em fazer do cotidiano e das

relações familiares a matéria prima das narrativas documentárias:

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Um ótimo cinema pode ser criado a partir de uma temática simples, de

filmes caseiros?

Talvez seja para colocar esta questão que estou buscando mostrar aqui

as conexões elementares entre o tipo de cinema vérité/direto que eu

pratico e filmes caseiros. O cinema direto, o cinema independente

americano e os filmes caseiros partilham uma fascinação e uma

obsessão com a vida cotidiana. A história do MIT Film/Video Section

é a história de cineastas-caseiros profissionais tentando trazer a vida

cotidiana para o cinema documentário. (RANCE, 1986. p. 98. Tradução

nossa.)

Em Mom, documentário de trinta e sete minutos, Rance tematiza a relação distante

entre si próprio e sua mãe no período em que a acompanha a uma viagem de estudos e

trabalho para Nova Iorque. O realizador registra momentos juntos da mãe nos dias que

antecedem sua participação como assistente em um desfile de moda, área com a qual

desejava começar a trabalhar. Em sua dissertação, Rance aponta que não havia retornado

à casa de sua família pelos quatro anos anteriores à filmagem. Sua volta coincidira com

o momento em que a mãe deixava o lar, no qual vivia com o marido, em busca de

emancipação, decidindo viver em outro local (RANCE, 1977, p.2). Na maior parte do

filme, Rance acompanha o dia-a-dia de sua mãe no trato com outras pessoas envolvidas

na produção do desfile de modas, bem como seu engajamento nas tarefas relativas ao

evento, em um registro dominantemente recuado e observativo. A complacência da mãe

do cineasta com a empreitada cinematográfica do filho consistia na crença de que o

propósito do filme seria o de apoiar a busca da mãe por um novo cenário e trazer

visibilidade ao seu trabalho na carreira que almejava iniciar. O conflito entre os propósitos

do cineasta e da mãe/personagem vêm à tona na última parte do filme, em uma discussão

iniciada quando Rance é cobrado por não ter filmado nenhuma parte “importante” do

desfile de modas que a mãe participara. Em um plano sequência de quase dez minutos, o

distanciamento entre mãe e filho vem à tona e a relação particular travada entre ambos

naquele momento específico transborda quando a mãe aponta vigorosamente seu

sentimento de subserviência em relação à família e aos filhos durante décadas26.

26 O diretor continua o trabalho autobiográfico iniciado por Mom no longa-metragem Death and the

Singing Telegram, lançado em 1983, que também lida com conflitos dentro de sua família. O autor Jim Lane oferece (2002) uma das poucas análises sobre o filme, de difícil acesso.

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Figura 12: A mãe de Mark Rance dirige-se vigorosamente ao cineasta em plano-sequência de Mom (1978)

b) Joel DeMott, Ann Schaetzel, Miriam Weinsein

Mark Rance e Jeff Kreines foram protagonistas de outro documentário

autobiográfico que merece menção, Demon Lover Diary, lançado em 1980 por Joel

DeMott, aluna do MIT Film Section. Também a partir de uma metodologia one-person-

crew a cineasta narra os bastidores da filmagem do filme de horror “B” Demon Lover, no

qual Jeff Kreines – seu companheiro – participa como diretor de fotografia e Rance como

técnico de som direto. O filme torna-se o testemunho de uma produção caótica,

atravessada por desorganização generalizada, falta de recursos e relações interpessoais

tempestivas. Se claramente estamos acompanhando a produção de um filme ficcional que

tem grandes chances de ser um fracasso total, a narrativa conduzida por Joel DeMott

torna-se bastante envolvente, à medida que a situação de tons absurdos na qual a cineasta

e seus amigos estão envolvidos torna-se repleta de tensão e ameaças reais. A narrativa de

Demon Lover Diary culmina com a fuga do trio de cineastas do set de produção sob a

ameaça de serem alvejados por tiros de espingarda. Tanto Mom quanto Demon Lover

Diary partem de uma estrutura narrativa cronológica e calcada na proximidade do

cineasta com seus pares a partir de uma metodologia de sync-sound. O filme de DeMott,

entretanto, conta com uma narração em voz over em primeira pessoa pela qual entramos

em contato com as meditações de DeMott sobre o que estavam vivendo na circunstância.

Este elemento narrativo é particularmente importante no sentido da construção da

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cineasta como uma mulher que experienciava o ambiente predominantemente masculino

e, não-raro, machista, dos bastidores da produção cinematográfica27.

Breaking and Entering, dirigido pela aluna/cineasta Ann Schaetzel, foi realizado

no MIT Film Section e lançado em 1980. Segundo os relatos sobre o filme realizados por

Scott MacDonald (2013) e Jim Lane (2002), Schaetzel é responsável pelo registro em

sync-sound e da montagem do filme, porém é a narração em over em primeira pessoa

realizada pela diretora que ocupa função especial na narrativa. Breaking and Entering

tematiza o retorno de Schaetzel à casa de seus pais em Washington, cidade onde passou

sua juventude. Lane aponta que a cineasta desempenha o papel de “observadora

autobiógrafa” (2002, p. 159) no ambiente familiar, registrando sobretudo “momentos

domésticos discretos”. Segundo os relatos acerca do filme, Schaetzel apresenta uma

postura passiva no momento da tomada, pouco ocupando o papel de interlocutora ativa

nos momentos cotidianos que registra. A esta postura contrapõe-se a função que

desempenha em voz over, marcadamente assertiva e agressiva.

A narrativa de Breaking and Entering constrói-se como uma declaração vingança

da cineasta em relação à sensação de dano que seus pais a causaram na juventude.

Segundo a análise de Jim Lane, a cineasta assere em voz over, no início do filme, o

principal propósito da narrativa: “Eu voltei para casa em um estado de raiva. Voltei para

machucar meus pais. Voltei para machucá-los porque eles me machucaram. É simples

assim.” (LANE, 2002, p. 158). Através da narração em over Schaetzel explica, ao longo

do filme, que anos atrás seus pais teriam sido responsáveis por a ter separado de um

homem por quem teria se apaixonado aos dezesseis anos e com quem teria feito amor

pela primeira vez. Julgando sórdido o relacionamento da filha, os pais da cineasta

proibiram seu contato com o rapaz, mandaram-na para fora do país e ameaçaram-no de

morte. A violência do acontecimento, expõe a cineasta, acarretaram graves consequências

psicológicas em sua vida, como o fato de sentir-se apavorada pela ideia de sexo, daquele

momento em diante. Scott MacDonald sugere que a vingança de Schaetzel em Breaking

and Entering parece suscitar o que a teórica Laura Mulvey assere como cinema de

“política de terra queimada” (scorched Earth filmmaking), um cinema feminista que

27 A autora Patricia Zimmerman expõe esta questão em extensão, na análise que realiza de Demon Lover Diary. Ver ZIMMERMAN, 1990.

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“conscientemente nega ao espectador os prazeres usuais do cinema” (MACDONALD,

2013, p. 191).

Joel DeMott e Ann Schaetzel, por meio de Demon Lover Diary e Breaking and

Entering, podem ser pensados como parte de um grupo de cineastas mulheres que na

década de 1970 realizaram documentários que expuseram diferentes facetas da

experiência feminina a partir de relatos autobiográficos. A maioria deles eram realizados

a partir de procedimentos de visibilidade do cotidiano doméstico ou da exposição de

relações familiares, e também frequentemente a partir de uma metodologia próxima das

preocupações do cinema direto da década de 1970. Neste sentido, o caso de Miriam

Weinstein também pode ser mencionado. Weinstein não foi propriamente aluna do MIT

Film Section – a cineasta obteve o diploma de mestrado (MFA) em cinema pela Boston

University –, porém mantinha contato com representantes da produção de Cambridge,

reunindo-se com Ed Pincus e outros cineastas. Weinstein sustenta que “em 1968, uma

época de tremenda convulsão social, os jovens que trabalhavam com mídia se reuniam na

casa/escritório de Ed. Havia muita discussão sobre como cobriríamos os eventos que

estavam acontecendo, como disseminaríamos informação, etc.” (MACDONALD, 2013,

p. 131).

Entre 1972 e 1976, Weinstein lançou quatro documentários autobiográficos de

curta-metragem, nos quais abordava tematicamente algumas questões que norteavam sua

vida individual, familiar e doméstica naquele momento. Seus filmes vão ao encontro da

noção do endereçamento de questões privadas como um tema público e político, na verve

da segunda onda do feminismo estadunidense. Lembrando a publicação do guia coletivo

de saúde da mulher Our Bodies, Ourselves ainda em 1971, os filmes de Weinstein tornam-

se um exemplo cinematográfico da problemática do universo doméstico feminino, em

meio a reavaliação de temas como trabalho, família e casamento, no qual a cineasta toma

a si própria e as pessoas próximas de si como modelo.

O primeiro de seus filmes, My Father, the Doctor (1972), consiste em uma série

de entrevistas realizadas pela cineasta com seu pai. Estas entrevistas revelam o tipo de

expectativa que o pai, médico, teria para com a filha, no que concerne, sobretudo, sua

carreira profissional. Dois pontos principais emergem da conversa de Weinstein com seu

pai. Um deles é relativo a certo descontentamento, ou desconfiança, que o pai tem com o

ofício da filha enquanto documentarista. Em uma abordagem que será replicada em tantos

outros documentários autobiográficos – como no caso de Ross McElwee (Backyard,

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Sherman’s March, Time Indefinite), Alan Berliner (Nobody’s Business), Richard P.

Rogers (Elephants) e Nina Davenport (Always a Bridesmaid e First Comes Love) – torna-

se evidente o argumento de que a produção cinematográfica não seria, necessariamente,

um projeto de carreira “sério” e, sim, um desperdício de talento e de inteligência dos

filhos. Outro ponto que é ressaltado no argumento do pai da cineasta diz respeito à

separação laboral entre homens e mulheres, neste caso, entre “filhos homens” e “filhas

mulheres”. Em um destes momentos, Weinstein pergunta por que não teria sido

incentivada em seguir uma carreira na área da saúde, como o pai, recebendo a resposta de

que a medicina não seria uma carreira adequada para as mulheres. Seu pai argumenta que

muitas poucas mulheres poderiam ser boas médicas, e que teria incentivado apenas um

filho homem a seguir a carreira.

Figura 13: O pai de Miriam Weinstein em My Father, the Doctor (1972).

Em Living With Peter (1973), a reflexão de Weinstein gira em torno da questão

da necessidade ou não do casamento. Morando junto com o companheiro Peter Feinstein,

sem terem se casado, o esforço da cineasta consiste em levantar opiniões acerca do

significado do matrimônio, bem como estabelecer um panorama da expectativa de família

e amigos perante a questão. Os amigos da cineasta apresentam posições em geral

progressistas em relação ao assunto – casar-se deveria corresponder a um desejo genuíno

e não a uma necessidade. A mãe da cineasta, entretanto, ainda que concorde com o direito

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de escolha da filha, sugere que tanto o ato de casar-se quanto a maternidade seriam

elementos “naturais” à condição feminina. Weinstein e o companheiro por fim decidem

casar-se, assunto que é tematizado em seu filme seguinte, We Get Married Twice (1973).

Neste, a realizadora aborda o fato de ter realizado duas cerimônias de casamento. A

primeira delas, da maneira que a cineasta o companheiro “queriam”, fora dedicada a

amigos próximos e sem tons religiosos. Entretanto, a pressão moral e familiar culminou

na realização de outra cerimônia, com ambas as famílias presentes, e celebrada a partir

da tradição judaica – uma cerimônia realizada em hebraico (não filmada, mas cujo áudio

é incorporado ao filme), bem como a festa posterior. O contraponto entre as duas

celebrações é sentida pelo casal. Em depoimento para a câmera, Weinstein comenta o

senso de seriedade proveniente do matrimônio religioso, tendo se sentido quase culpada

durante a cerimônia e experienciando a “responsabilidade por ser judia”.

Figura 14: Depoimento de Weinstein para a câmera em Living with Peter (1973, à esquerda) e o

casal Weinstein cortando o bolo de casamento em We get married Twice (1973, à direita)

O último dos filmes de Weinstein, Call Me Mama (1976), é realizado e lançado

anos após o casamento, quando o casal já tinha um filho pequeno. Neste caso, a cineasta

tematiza sua vida após o nascimento do filho, evidenciando que dedica seu tempo quase

integralmente à criança. Weinstein explica em sua voz over que o próprio o fato do

documentário ser filmado por outra pessoa relaciona-se com a impossibilidade de abster-

se da atenção ao filho, a fim de que pudesse segurar a câmera e realizar um filme.

Assistimos à cineasta em situações cotidianas com a criança, levando-a para passeios e

visitando uma amiga, também mãe de uma criança pequena. A diretora sublinha o ponto

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de que o marido não é o tipo de “pessoa que consegue cuidar do bebê”. Frisando ter

afastado-se do trabalho e de outras atividades, Weinstein ressalta o propósito do filme ao

constatar que almejava mostrar “como é ter um filho, de verdade”. A relação entre

maternidade e trabalho encontra paralelo em um documentário autobiográfico lançado

em 1972, Joyce at 34, no qual a cineasta Joyce Chopra tematiza o reflexo da maternidade

em sua carreira cinematográfica durante o período de gravidez.

Figura 15: A cineasta Miriam Weinstein e o filho em Call me Mama (1976)

c) Robb Moss

Atualmente professor do departamento VES em Harvard, Robb Moss também

produziu seus primeiros documentários autobiográficos durante a passagem pelo MIT

Film Section, onde formou-se em 1979. No tempo em que estudou no departamento,

Moss realizou os documentários Absence e Riverdogs, ambos dialogando com as

discussões que permeavam o departamento no momento. A dissertação entregue por

Moss ao final do curso reúne um relato mais alongado a respeito de particularidades da

filmagem de Riverdogs, mas também contém elucidações teóricas aguçadas em relação à

ideia de autobiografia e ao tipo de cinema direto que estava sendo debatido no

departamento. O texto de Moss torna-se, portanto, um rico documento que transpira o

pensamento cinematográfico de Cambridge, ainda na década de 1970.

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Absence, de maneira semelhante a filmes como Mom, Breaking and Entering ou

mesmo a Backyard (Ross McElwee) tem como ponto de partida o retorno de Moss para

a casa de sua família, depois de um longo tempo afastado. Segundo o relato de Scott

MacDonald sobre o filme (2013, p.243), o filme constitui-se em uma série de situações

cotidianas em que o cineasta interage por detrás da câmera com família e amigos. Sua

“ausência” da circunstância familiar no tempo anterior à filmagem dá lugar a uma espécie

de estranhamento interpessoal que transborda nas interações filmadas por ele. Em sua

dissertação, Richard Peña traça alguns comentários sobre o filme de Moss, sustentando

que “de certa forma, o assunto do filme, ou seu foco, não é o fato de que Moss está de

volta, mas o de que ele esteve ausente. A distância – física e cronológica – traduz-se em

uma distância pessoal” (PEÑA, 1979, p. 31). Moss parece interessado em tentar entender

a maneira através da qual a figura do cineasta transforma o eixo temático dos

documentários autobiográficos de “ordinário” para “particular”. A ideia, segundo Moss,

é a de que a relação do cineasta com seu “objeto” é a condição sine qua non para a

existência de uma narrativa autobiográfica. Nas palavras de Moss:

Em Absence o objeto do filme – minha viagem para casa, o clima da

viagem, meu relacionamento com minha família, etc. – teriam

acontecido sem a presença da câmera. Entretanto, sem a minha

presença, o objeto do filme deixa de existir. Isto é fundamentalmente

diferente do que, digamos, os filmes Drew, onde o que está sendo

proposto são os eventos que estariam acontecendo independentemente

de qualquer câmera ou equipe. O que estou dizendo aqui, creio, é o que

que parece distinguir o “filme pessoal” dos documentários em geral. O

objeto do filme pessoal simplesmente deixa de existir sem a presença

física ou criativa do cineasta. Não estou dizendo que qualquer pessoa

poderia ter feito Happy Mother’s Day, mas estou dizendo que qualquer

um poderia ter filmado o evento dos quíntuplos de Fischer. Em Absence

não existia filme antes do cineasta chegar. (MOSS, 1979, p. 10-11.

Tradução nossa.).

Em Riverdogs, Moss realiza uma narrativa acerca de um grupo de pessoas que,

assim como o próprio diretor, passavam metade do ano excursionando e acampando à

beira do rio Colorado, que entrecorta o Grand Canyon. Moss aponta (1979, p. 4 e 5) que

as viagens pelo rio (river trips) faziam-no entrar em contato com diversos dos valores que

acreditou durante os anos 1960. Essas viagenso proporcionavam o afastamento de

grandes centros urbanos e da poluição, bem como enfatizavam uma maneira diferente de

vida em comunidade, distinto de um sistema de competição, que sugeria esforços

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conjuntos para a melhor subsistência do grupo. Riverdogs busca reconstituir a experiência

de uma destas viagens. Sua narrativa é construída sobretudo a partir da observação de

eventos do dia-a-dia da vida no rio, desde atividades de deslocamento na água ou

alpinismo das montanhas, momentos de alimentação do grupo e, principalmente, os

momentos de reunião e tomada de decisões em que os integrantes discutiam acerca dos

próximos passos da viagem. Em Riverdogs, não existe um desenvolvimento temático que

aponte explicitamente para aspectos da vida individual de Robb Moss, como a

visibilidade de um cotidiano doméstico ou algum conflito familiar. No mesmo sentido da

citação anterior, Moss aponta, entretanto, que a relação entre si próprio e os integrantes

do grupo ao qual também pertencia fazia com que o filme não pudesse ser realizado por

outra pessoa. O diretor reflete acerca da possibilidade do cinema direto, neste novo

momento, de traduzir a particularidade da relação entre o cineasta e elementos do mundo

material (o mundo das superfícies):

Cinema é essencialmente a respeito do mundo visível, do mundo das

superfícies. No ato de filmar, descreve-se como as coisas se parecem

por fora. Todos nós entendemos o sentido do mundo visível de maneiras

conectadas com nossa própria experiência. (...)

O mundo visível tem enormes poderes associativos para nós; estamos

todo o tempo investindo no mundo com sentimento e com memória.

Fazendo isto, transformamos nossa experiência do universo físico em

um lugar que parece se relacionar a nós enquanto seres humanos. Tente

descrever alguém que você conhece bem. Minha sensação é a de que as

pessoas se parecem menos com suas descrições físicas do que com

nosso relacionamento com elas. Quando vejo meu irmão, não vejo

determinado formato de rosto ou cor de cabelo, vejo meu “irmão”. O

fato de conseguirmos obter qualquer emoção ou significado deste show

de luzes oscilantes bidimensionais chamado cinema simplesmente

reflete nossas tentativas neste tipo de construção-de-sentido em um

contexto mais amplo de nossas vidas. (...)

Acho que quando alguém é forçado a tentar fazer sentido, com a

câmera, a partir dos eventos que o cercam, são exatamente estes atos de

descoberta, de “olhar”, como Ricky (Leacock) os chama, que são

reveladores e centrais para o sucesso e para a vitalidade do Cinema-

Vérité. Talvez eu esteja afirmando isto muito vigorosamente. Por

exemplo, eu ficaria muito interessado se Little Edie tivesse filmado

Grey Gardens. Pode-se assumir que o filme dela seria um tanto maluco

e pessoal. Se Edie poderia ou não ter traduzido sua relação com o

mundo fenomenal para a tela (sua relação com os objetos de seu

passado), é uma questão problemática, precisamente por causa de sua

proximidade com tudo. Os Maysles podiam ver Grey Gardens talvez

de uma maneira mais próxima do que Little Edie, ou ao menos mais do

jeito que “nós” poderíamos experienciar seu mundo. Edie teria filmado

seus gatos favoritos, enquanto os Maysles apenas filmaram os gatos.

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No filme do rio (Riverdogs), a questão de se eu poderia transformar o

que é essencialmente um assunto pessoal em um filme não-pessoal (no

sentido descrito) é uma das problemáticas centrais do filme. (MOSS,

1979, p. 17-20. Tradução nossa.)

Figura 16: O grupo de Robb Moss acampando à beira do rio em Riverdogs (1982)

Os personagens apresentados em Riverdogs serão reexpostos mais de vinte anos

depois no longa-metragem The Same River Twice, provavelmente o filme mais conhecido

de Moss. Neste, o cineasta vai ao encontro de algumas das pessoas que fizeram parte da

expedição, buscando tematizar a maneira através da qual o tempo transformou ou

preservou valores que os levaram, num primeiro momento, às viagens pelo rio. Não tão

surpreendentemente, a maioria dos personagens não passou a viver integralmente um

estilo de vida comunal ou hippie, mas constituíram família e trabalhavam em empregos

“normais”. Entretanto, o espírito progressista e atento à coletividade rege a vida

profissional de diversos dos personagens, de maneiras diferentes. Dois dos personagens,

Barry e Cathy, enveredaram-se pela carreira política, tendo cargo de prefeito das cidades

onde moravam no período em que foram filmados por Moss, em cidades dos estados da

Califórnia e de Oregon, respectivamente. O fluxo do “rio da vida”, entretanto, se

relacionado à ideia de progresso e/ou transformação, apresenta-se diferentemente na vida

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de cada personagem. Um deles, Jim, é mostrado como um dos mais enfáticos líderes do

grupo em Riverdogs. Vinte anos depois, em The Same River Twice, vemos que o

personagem continua dedicado à vida de guia de rio (river guide), apresentando uma

relação sensivelmente mais estreita com a natureza e com a abstenção material do que os

colegas. Em The Same River Twice, as filmagens que Moss realizou décadas antes para

Riverdogs são o ponto de amparo para a lembrança e reavaliação de um momento

particular da vida dos personagens (e do cineasta) carregado de juventude, bem como da

reflexão acerca da passagem do tempo, do envelhecimento e da mortalidade.

Figura 17: O personagem Jim Tichenor, na ocasião de Riverdogs (Robb Moss, 1982) e em The Same

River Twice (Robb Moss, 2002)

Se em Riverdogs Moss apresenta-se como um “observador autobiógrafo”,

utilizando-nos da expressão de Jim Lane, em The Same River Twice há uma ênfase maior

em sua interação com os amigos de longa data, bem como uma exploração maior de suas

personalidades por meio da fala e da entrevista, que aparece mais recuada no filme

original. Moss não apresenta um panorama biográfico de sua vida “atual” no momento

do registro, como faz em relação aos seus colegas de juventude. Entretanto, como Scott

MacDonald aponta, a interação de Moss com os personagens em diversas sequencias de

The Same River Twice revelam a mistura “de amizade, afeição, nostalgia,

desapontamento, frustração, importunação, respeito e autoconsciência que continua a

caracterizar seus relacionamentos, assim como a intimidade que continua a existir para

com ele (o cineasta)” (MACDONALD, 2013, p. 256. Tradução nossa). O terceiro capítulo

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da trilogia iniciada com Riverdogs e continuada em The Same River Twice consta como

o projeto atual no qual Robb Moss está trabalhando28.

2.5. Pós-MIT Film Section: Harvard e o departamento VES

Além do MIT, outro polo da produção dos documentários de Cambridge

concentrou-se na universidade Harvard. Tanto os estudos quanto a produção

cinematográfica em Harvard são atualmente representados pelo departamento Visual and

Environmental Studies (VES). Diversos cineastas-autobiógrafos que passaram pelo MIT

Film Section continuaram a carreira como docentes na universidade vizinha. Ed Pincus

lecionou em Harvard de 1981 a 1983, após sua saída do departamento. Ross McElwee é

docente desde 1986 na instituição, portando o título de “Professor de Prática

cinematográfica”. Robb Moss também inicia o trabalho de docente em 1986 e atualmente

detém o posto de decano do departamento. Alfred Guzzetti é outro cineasta que pode ser

visto sob esta ótica e que leciona no VES, porém, diferentemente de Moss e McElwee, o

cineasta começa a dar aulas da universidade ainda em 1968. A partir da produção

cinematográfica e da docência de Pincus, McElwee, Moss e Guzzetti, a autobiografia

continua sendo um elemento do horizonte artístico de Cambridge. Cineastas como Marco

Williams, Jim Lane e Nina Davenport são exemplos de alunos do departamento VES que

desenvolveram documentários autobiográficos a partir do contato com um ou mais dos

professores que passaram pelo MIT Film Section.

As atividades do departamento VES também concetram trabalhos na área das artes

visuais, instalações, fotografia still e cinema de animação. No caso do cinema live-action,

é possível dizer que o departamento mantém uma relação estrita (porém não exclusiva)

com a pesquisa e a produção – discente e docente – no campo do cinema de não-ficção,

não apenas no que concerne o documentário autobiográfico. Um exemplo atual é o

trabalho do Sensory Ethnography Lab (SEL), que é sediado no departamento VES e

28 Esta informação está disponível na página de Moss no website do departamento VES-Harvard. Após

The Same River Twice, Moss realizou documentários em conjunto com Peter Galison, cientista e professor da universidade de Harvard. Secrecy (2008), tematiza a confidencialidade de assuntos internos do governo estadunidense, e Containment (2015) coloca em perspectiva questões acerca da produção de energia nuclear.

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engaja tanto corpo docente quanto alunos em seus projetos. Liderado pelo

professor/cineasta Lucien Castaing-Taylor (Leviathan [2012], Sweetgrass [2005]) o

trabalho do Sensory Ethnography Lab é destaque da produção de não-ficção

contemporânea, tendo obtido espaço tanto no circuito de mostras e festivais quanto em

análises acadêmicas. Nos últimos anos, outros documentaristas que obtiveram certa

projeção referiram-se publicamente à educação cinematográfica que tiveram no

departamento VES. É o caso, por exemplo, de Joshua Oppenheimer, formado em 1997.

Oppenheimer é diretor de The Act of Killing (2012) e, mais recentemente, de The Look of

Silence (2015). The Act of Killing concorreu na categoria de Melhor Documentário da

edição de 2013 do prêmio Oscar juntamente com outros dois filmes dirigidos por diretores

advindos de Harvard: The Square, de Jehane Noujaim, sobre a crise política e social

egípcia, e Dirty Wars, de Richard Rowley, sobre abusos cometidos pelas forças militares

dos EUA durante a “Guerra ao Terror”, em países como Afeganistão e Iêmen. Os

diretores referiram-se positivamente (SUTHERLAND, 2014) à educação

cinematográfica não-ortodoxa recebida em Harvard como determinante para a visão

artística dos filmes. Para além dos cineastas que compõem o corpo docente atual do

departamento VES (Ross McElwee, Robb Moss, Alfred Guzzetti, Lucien Castaing-

Taylor), outros realizadores significativos na história do cinema documentário passaram

pelo departamento, seja por períodos mais prolongados ou como professores visitantes.

É o caso de Robert Gardner, Chantal Akerman, David MacDougall, Ed Pincus, Dušan

Makavejev, Raoul Ruiz e Jean Rouch.

A inclinação do departamento VES para o ensino do cinema documentário em sua

teoria e prática também influenciou a obra de ex-alunos conhecidos pela realização de

filmes ficcionais, como é o caso de Andrew Bujalski. Bujalski (Funny Ha Ha [2002],

Mutual Appreciation [2005]) é um dos diretores relacionados ao gênero mumblecore

(junto a cineastas como Joe Swanberg e os irmãos Mark e Jay Duplass), que foi

desenvolvido a partir dos anos 2000, sobretudo nos EUA. O cineasta constata que a

“educação em cinema documentário” que recebeu no VES moldou sua filosofia e sua

metodologia como realizador (HODDER, 2005). Os filmes mumblecore são feitos a partir

de uma ótica ultra-independente, orçamentos baixos, equipes mínimas e uma visão de

“faça-você-mesmo” que se desdobra nas produções. As narrativas são marcadas por uma

investida naturalista, por cenas que se alicerçam em longos diálogos com tons de

improviso, pela filmagem em locações (tanto internas quanto externas, em um

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engajamento com o mundo “real”) e por uma temática que frequentemente gira em torno

de conflitos sociais, amorosos e existenciais de jovens adultos. Bujalski realizou seu filme

de conclusão de curso no VES sob a orientação de Chantal Akerman no período em que

a cineasta passou como professora visitante do departamento.

Ainda em 2005, Ross McElwee fala a respeito das produções de alunos e

professores do departamento VES. O cineasta/docente relata que antes de um

direcionamento específico em relação à exploração autobiográfica ou antropológica, o

departamento “encoraja os estudantes a ver o que há de complexo e interessante sobre a

vida cotidiana, e isto remonta ao legado do cinema-vérité” (HODDER, 2005). Sendo

assim, é possível dizer que a produção atual do departamento VES relaciona-se com a

tradição da região de Boston e Cambridge no que concerne sua aproximação com o

cinema direto e seus desdobramentos como pano de fundo conceitual – algo que, como

colocamos, se originou ainda com a produção de Drew e passou pela experiência do MIT

Film Section. McElwee explica que os filmes dos alunos do departamento

...refletem uma paciência em observar o mundo, ao invés de tentar

controla-lo e configurá-lo de maneira que ele transmita sua mensagem.

(...) É cada vez mais difícil aderir a este desejo de apresentar o mundo

mais ou menos calmamente e em sua complexidade, sem

sensacionalizá-lo. Se há uma quase-filosofia operante vinda do

departamento, é a de que existem outras maneiras de interagir com o

mundo, e de que um tipo diferente de filme pode ser alcançado. [Graças

ao legado de Gardner e o sucesso de Alfred Guzzetti em proteger e

construir o programa de Cinema de Harvard], estas formas de fazer

cinema foram mais do que estimuladas, elas prosperaram aqui, e nossos

estudantes saíram e realmente constituíram marcos nestas áreas.

(HODDER, 2005. O grifo é do autor. Tradução nossa.)

Diferente do viés predominantemente prático do MIT Film Section, entretanto, o

cinema que foi desenvolvido em Harvard passou, historicamente, pelo diálogo mais

amplo com o campo das humanidades e da arte, a partir de um viés teórico também

enfatizado. Em entrevista de 2005, a autora Giuliana Bruno29, professora do

departamento, ressalta o trabalho no Carpenter Center como o desenvolvimento de uma

tradição de Harvard em pensar o cinema a partir da filosofia (HODDER, 2005). Como

29 O foco do trabalho de pesquisa de Giuliana Bruno concentra-se na intersecção entre cinema, artes visuais e arquitetura. Uma de suas publicações mais conhecidas é “Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film” (BRUNO, 2002).

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exemplo desta relação, é possível mencionar o caso de autores como o filósofo alemão

Hugo Münsterberg, admitido como docente em Harvard em 1892 a convite de William

James. Münsterberg é autor de “The Photoplay: A Psychological Study”, publicado em

1916, considerado um dos primeiros tratados de estudos de cinema. Outro caso é o de

Rudolf Arnheim, teórico da arte e do cinema, que foi contratado como professor de

Psicologia da Arte em 1968, e permaneceu no Carpenter Center até 1974. Já Scott

MacDonald, como frisado, lança a hipótese de que o cinema da região poderia advir da

noção de experiência do pragmatismo, escola filosófica desenvolvida por Charles S.

Peirce e William James, que foi professor de Harvard e também criador do campo da

psicologia experimental (MACDONALD, 2013. p. 7-8).

O fomento do debate crítico propiciado pelo ambiente universitário fez com que

diversos dos cineastas da produção de Cambridge também dispusessem de ideias fortes

sobre Cinema e as exprimissem em textos, como é o caso dos escritos de Robert Gardner

e Ed Pincus. Além disso, é notável o fato de que existia, e existe, um intercâmbio entre

teoria e prática que alimenta tanto os escritos de autores da região quanto seus cineastas.

Pode-se dizer que a obra de maior impacto teórico sobre os cineastas da região de

Cambridge que lidaram com desdobramentos do documentário moderno foi a de Stanley

Cavell, filósofo estadunidense que se juntou ao corpo docente de Harvard em 1963,

permanecendo na instituição até 1997. Ao longo das décadas, Cavell contribuiu de

diversas maneiras para o desenvolvimento do campo dos estudos fílmicos da

universidade, como na fundação do Harvard Film Archive (arquivo fílmico e cinemateca

de Harvard) em 1979, em conjunto com Robert Gardner. Cavell especialmente a partir

das ideias de “The World Viewed: Reflections on the Ontology of film”, é um nome ao

qual cineastas e teóricos da região de Cambridge frequentemente se referenciam em seus

textos como inspiração filosófica, desde a década de 1970 até períodos mais recentes30.

30 Em “New possibilities for film and the university” (PINCUS, 1977), Ed Pincus evoca as ideias de Cavell em sua exposição acerca do trabalho que estava sendo realizado no MIT Film Section, ressaltando as inovações técnicas desenvolvidas no departamento e apontando para a produção, principalmente no que diz respeito à recente experimentação com narrativas autobiográficas, como o “próximo passo” do cinema direto norte-americano. Nos dois principais textos em que Ross McElwee escreve a respeito de sua própria obra (McELWEE, 2005 e 1999), o diretor evoca trechos de The World Viewed, citando-o como inspiração motivacional para a visão artística de seus primeiros filmes. Segundo o autor Charles Warren (WARREN, 2014), McElwee assistiu às palestras de Stanley Cavell em Harvard na primeira metade dos anos 1980. No momento, McElwee ocupava-se do processo de montagem de Sherman’s March e iniciava sua carreira docente na Universidade, ainda na função de monitor de docência (Teaching Assistant).

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William Rothman é outro caso de autor que apresenta uma relação estrita com a

produção cinematográfica de Cambridge. Rothman doutorou-se em filosofia pela

universidade Harvard, lecionou na instituição, dedicou parte de seus escritos à análise da

obra de Stanley Cavell e The World Viewed (ROTHMAN e KEANE, 200031), e também

contemplou diversos dos cineastas advindos do ambiente universitário de Cambridge em

suas análises32. Segundo Jim Lane33, foi durante as sessões de um curso de cinema

documentário lecionado por William Rothman em 1981 na universidade que ocorreu a

primeira exibição pública de Diaries (1971 - 1976), de Ed Pincus. Lane, autor de “The

Autobiographical Documentary in America” (LANE, 2002), também faz parte da história

da produção cinematográfica – tanto teórica quanto prática – de Cambridge. O autor

graduou-se pela universidade Harvard e trabalhou como teaching assistant de Jean Rouch

entre 1981 e 1983, no mesmo período em que Ed Pincus lecionou na instituição, após

deixar o MIT Film Section. Lane trabalhou na distribuição de Diaries (1971 - 1976), logo

após seu lançamento, em 1981 e publicou em 1997 um dos primeiros artigos que busca

enxergar a obra de Pincus em sua extensão (LANE, 1997).

31 Em “Reading Cavell's The World Viewed: A Philosophical Perspective on Film” (ROTHMAN e KEANE, 2000), os autores propõem uma leitura da obra de Stanley Cavell. The World Viewed é analisado em sua totalidade, capítulo por capítulo. Entendendo The World Viewed como uma obra subexplorada da teoria do cinema, Rothman e Keane buscam meditar mais demoradamente por frases e conceitos da obra de Cavell que julgam pouco explorados. É interessante mencionar, também, o trabalho de David N. Rodowick em relação à obra de Stanley Cavell. Rodowick lecionou no departamento VES na década de 2000. Em “The Virtual Life of Film” (RODOWICK, 2007), Rodowick realiza uma longa análise dos escritos de Cavell, com foco em The World Viewed. Frente ao processo de digitalização do aparato de feitura cinematográfica e dos novos questionamentos em relação à era pós-celulóide, Rodowick evoca as ideias de Cavell (bem como as de André Bazin, Noël Carroll e Roland Barthes) primeiro para uma análise da ontologia da imagem fotográfica e cinematográfica analógica, e, posteriormente, para uma meditação acerca do que permaneceu (e o que se transformou) da relação entre filme e mundo na virada para o digital.

32 É o caso da reflexão do autor acerca de Family Portrait Sittings, longa-metragem da primeira geração de documentários autobiográficos de Cambridge, dirigido por Alfred Guzzetti e lançado em 1975 e que integra a obra “The I of the Camera” (ROTHMAN, 1988). Rothman também cita a produção autobiográfica de Cambridge na introdução de “Documentary Film Classics” (ROTHMAN, 1997). Posteriormente, Rothman organiza a publicação “Three Documentary Filmmakers: Errol Morris, Ross McElwee, Jean Rouch” (ROTHMAN, 2009), que reúne textos de autores como Charles Warren e Jim Lane sobre a obra dos três documentaristas. 33 Em troca de e-mails realizada para esta pesquisa, em janeiro de 2016.

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2.6. Documentário moderno e antropologia em Harvard: de Robert Gardner ao

Sensory Ethnography Lab

Robert Gardner, cineasta e antropólogo, é uma das figuras principais ao redor da

qual aglutinou-se a produção fílmica de Harvard. Gardner funda em 1957 o Film Study

Center (FSC), primeira unidade de produção e de pesquisa cinematográficos da

universidade, vinculado ao museu de antropologia de Harvard, o Peabody Museum.

Gardner permanece à frente do FSC até 1997, tendo realizado diversos filmes de sua

carreira no período, dentre os quais Dead Birds (1965) e Forest of Bliss (1985). Já o

cineasta John Marshall realiza The Hunters ainda em 1957, um dos muitos filmes que fez

na Namíbia. The Hunters, assim como grande parte de seus filmes, foi filmado após

sucessivas viagens realizadas ao país, financiadas pelo Peabody Museum. O trabalho de

pós-produção de The Hunters foi realizado em conjunto com Robert Gardner. Assim

como Gardner, Marshall influiu na carreira dos jovens cineastas da região, como o próprio

Ross McElwee e Ed Pincus. Neste mesmo sentido, outro cineasta que merece destaque é

Timothy Asch, que trabalhou no Peabody Museum e auxiliou Marshall em muitos de seus

filmes (MACDONALD, 2013, p. 5). Posteriormente, Asch colaborou com o antropólogo

Napoleon Chagnon34. Juntos, a dupla realizou filmes como The Ax Fight (1975),

finalizada em Cambridge, em um momento em que Asch também já era professor em

Harvard. Neste sentido, portanto, é possível dizer que a produção audiovisual de

Cambridge, na forma de cineastas como Robert Gardner, John Marshall e Timothy Asch,

apresenta influência marcante no debate acerca do desenvolvimento da relação entre

antropologia e cinema documentário. Se as possibilidades narrativas do cinema

documentário autobiográfico continuam sendo um fenômeno destacável na produção

acadêmica de Cambridge, o mesmo é possível dizer em relação à ótica da antropologia.

Trataremos brevemente desta produção como maneira de mostrar outra faceta histórica

do cinema da região.

O Film Study Center fomenta, até a atualidade, produções de alunos e professores

de Harvard, com ênfase especial em produções que “explorem e expandam o potencial

expressivo da mídia audiovisual, especialmente através da não-ficção”, segundo consta

34 Chagnon, que desenvolveu trabalho de muitos anos com os índios Ianomâmi, foi questionado a respeito

de seus métodos de pesquisa e acusado de provocar uma epidemia de sarampo entre os índios. O cineasta

José Padilha explora essa polêmica em seu documentário Secrets of the Tribe (2010).

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no site oficial do órgão35. Para além dos filmes citados e de outros filmes de Marshall e

Gardner, o FSC financiou a produção e/ou finalização de diversos filmes da carreira de

Ross McElwee, como Something to do With the Wall, Time Indefinite, Six O’Clock News

e Bright Leaves; The Same River Twice (2003), dirigido por Robb Moss, e também

Sweetgrass, de Ilisa Barbash e Lucien Castaing-Taylor, atual diretor do FSC. Em

entrevista de 2005, Gardner conta que o Film Study Center foi criado em 1957 como uma

unidade de pesquisa que usaria o cinema como maneira de questionar e explicar o mundo,

constatando que “a ideia era fazer filmes que fossem o mais significativos e penetrantes

o possível a respeito da condição humana. (...) Meu grande desejo era aplicar meios e

métodos visuais – uma linguagem visual – para a expressão de ideias que pudessem ser

adquiridas pela observação das pessoas” (HODDER, 2005).

Gardner acompanhou de perto a carreira de cineastas que faziam parte da pletora

de possibilidades abertas pelas transformações tecnológicas e epistemológicas do

documentário moderno estadunidense. De 1972 a 1981, Gardner protagonizou o

programa Screening Room, no Channel 5, emissora de TV aberta da região de Boston. A

cada episódio do programa de entrevistas, Gardner recebia como convidado um cineasta

independente – frequentemente da própria região de Cambridge ou

pesquisadores/cineastas de passagem pelo local. Screening Room buscava dar visibilidade

à produção do cineasta convidado, conversando sobre trabalhos em andamento e

veiculando trechos (ou filmes inteiros) de produções finalizadas. Mesmo transmitido no

horário da meia-noite, a audiência de Screening Room girava em torno de duzentos e

cinquenta mil espectadores, grande parcela dos quais composta por estudantes das

universidades da região de Boston (MACDONALD, 2013. P. 87). Em sua análise, Scott

MacDonald ressalta a veiculação em TV aberta (e para um público numerosamente

significativo) de filmes como Window Water Baby Moving ou Les Mâitres Fous, nos

programas em que Gardner recebeu Stan Brakhage e Jean Rouch, respectivamente.

Para além destes, o programa recebeu artistas e cineastas ligados ao campo do

cinema experimental avant-garde norte-americano (Bruce Ballie, James Broughton,

Hollis Frampton, Jonas Mekas, Yvonne Rainer e Michael Snow), do cinema

documentário (Richard Leacock, Ed Pincus, Les Blank, Emile de Antonio, Robert Fulton,

Peter Hutton) e do cinema de animação (Robert Breer, George Griffin, John & Faith

35 Em http://www.filmstudycenter.org/about.html, acessado em 18/04/17.

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Hubley, Derek Lamb, Jan Lenica, John Whitney Sr). Em alguns dos programas, os

cineastas eram acompanhados por teóricos ou professores das universidades da região

para o debate, como é o caso de Stanley Cavell (com Standish Lawder) ou Rudolph

Arnheim (com Robert Fulton). As conversas de Gardner com seus convidados também

giravam em torno do estado da arte cinematográfica, novas perspectivas, horizontes e

dificuldades enxergues pelos cineastas naquele dado momento. Outro aspecto

particularmente interessante em Screening Room era o incentivo de que os cineastas

exibissem detalhes técnicos de suas produções. Como exemplo, no episódio de Richard

Leacock, em junho de 1973, o cineasta apresenta o equipamento de captação de imagem

e som direto sincrônico adaptado para câmeras de Super-8mm que estava sendo

desenvolvido pela equipe técnica do MIT Film Section e que fez parte de diversos

documentários autobiográficos produzidos pelos alunos do departamento.

Figura 18: Leacock e técnicos do MIT Film Section demonstram o Sistema sync-sound a Robert

Gardner no programa Screening Room

Scott MacDonald faz um apontamento interessante ao sugerir a relação entre

Screening Room e Forest of Bliss, primeiro filme terminado por Robert Gardner após a

experiência do programa (MACDONALD, 2013, p. 89). Os comentários de MacDonald

sugerem o contato de Gardner, a partir do programa, com cineastas de visões artísticas

bastante diferentes das suas, mas sempre com uma inclinação a um cinema de não-ficção

independente autoral. MacDonald aponta que a experiência de Gardner em Screening

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Room teria servido como uma espécie de educação cinematográfica, em que o cineasta

aprendera com os convidados as “maneiras próprias de fazer as coisas e filmes que

queriam, sem que importasse o que outros pudessem achar destes filmes e como estas

novas formas cinemáticas poderiam conflitar-se com expectativas tradicionais”

(MACDONALD, 2013, p. 89. Tradução nossa.). Forest of Bliss é a narrativa poética de

Gardner que emula o curso de um dia em Varanasi, a cidade mais sagrada da Índia. Como

mencionado no primeiro capítulo deste estudo, o filme coloca em reavaliação cânones do

campo da etnologia fílmica, sendo também reconhecido como marco do cinema

documentário da década de 198036. A influência de Gardner é relatada por cineastas-

professores do departamento, muitos deles cujas obras não estão inseridas diretamente no

diálogo com a etnologia fílmica. Alguns dos filmes posteriores de Gardner inclusive

passam pelo emprego de uma noção de interação/autorreflexividade mais aguçada, como

é o caso de Ika Hands (1988), sobre a população indígena Ika (ou, Arhuaco) do norte da

Colômbia37.

Ainda que os filmes de Gardner, como frisado, tenham valores narrativos e

cinematográficos que fazem com que sua autoria como cineasta não se restrinja apenas

ao campo de estudo da etnologia fílmica, a maior parte de suas obras preocupa-se em

trabalhar narrativamente com povos autóctones de regiões distintas e de costumes

diversos do ambiente universitário de Cambridge, em países como a Namíbia, Colômbia,

Índia, Nova Guiné, Etiópia e outros. A tradição de Cambridge de pensar a antropologia

paralelamente aos novos desenvolvimentos e questionamentos da arte cinematográfica

em dado momento – melhor simbolizada pela figura de Gardner, mas também relativa a

nomes como John Marshall e Timothy Asch – encontra recorrência no trabalho atual que

acontece no departamento VES, como na atividade do Sensory Ethnography Lab (SEL).

O Sensory Ethnography Lab (SEL) teve início propriamente em 2006 e tem como

uma de suas principais figuras seu fundador, o antropólogo e cineasta Lucien Castaing-

36 Forest of Bliss integra, neste contexo, a análise de Bill Nichols em “The Ethnographer’s Tale”, capítulo que integra “Blurred Boundaries”, publicado em 1994 (NICHOLS, 1994, p. 63-91). 37 No filme, Gardner incorpora à narrativa um diálogo seu com o antropólogo Gerardo Reichel-Dolmatoff

sobre o significado da empreitada, tanto para a preservação da cultura em questão quanto para sua carreira enquanto cineasta.

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Taylor38. Castaing-Taylor é docente do departamento VES desde 2002. Sua produção

acadêmica consiste na organização de livros sobre cineastas como David MacDougall

(MACDOUGALL, 1998) e o próprio Robert Gardner (BARBASH e TAYLOR, 2007).

Castaing-Taylor realizou trabalhos cinematográficos ainda no início da década de 1990

(In and Out of Africa, 1992), porém foram filmes como Sweetgrass (2009, co-dirigido

com Ilisa Barbash) e Leviathan (2012, co-dirigido com Verena Paravel) que mostraram

mais decididamente a proposta do SEL.

Sweetgrass tematiza o trabalho moderno do pastoreio de ovelhas, tendo sido

filmado no estado americano de Montana. Leviathan busca reproduzir a experiência da

indústria da pesca em alto-mar, e foi filmado em um golfo na costa do estado do Maine.

Ambos os filmes, entretanto, furtam-se de prover informações analíticas em relação aos

seus objetos temáticos. As localidades onde foram rodados os filmes, como da maneira

que relatamos aqui, são informações extrafílmicas. Tampouco sabemos detalhes, por

exemplo, a respeito da jornada de trabalho das pessoas filmadas ou a maneira como

organizam-se enquanto grupo – informações que seriam integradas a uma narrativa mais

tradicionalmente enquadrada nos moldes da antropologia fílmica. Diferentemente, a

produção do Sensory Ethnography Lab busca emular ao espectador uma experiência

análoga à vivenciada pelos personagens/objetos bem como pelos cineastas no momento

da empreitada. Mais uma vez, é interessante notar como os cineastas ligados à produção

de Cambridge parecem fazer da transposição de “experiência vivida” em filme um

aspecto artístico. Em depoimento sobre seu trabalho, Castaing-Taylor afirma: “nós não

estamos interessados em reduzir a magnitude da experiência vivida a trechos de fala ou a

discutir formulações ou proposições linguísticas que sumarizariam uma cultura, ou a

existência humana, de maneiras que podem ser diminuídas a significados traduzíveis em

linguagem ou em palavras escritas” (CHANG, 2013.Tradução nossa.).

Leviathan é um documentário que parece levar a cabo esta noção. Filmado pela

dupla de cineastas com câmeras GoPro, portáteis e à prova d’água, a narrativa do filme

oferece um efeito de proximidade física, tanto dos objetos quanto dos próprios cineastas,

que aguça uma espectatorialidade mais voltada à fruição sensorial do que a uma

racionalidade analítica. No filme, as pequenas câmeras são acopladas no corpo dos

próprios cineastas, no corpo dos pescadores do navio, colocadas no nível do chão e por

38 Em algumas publicações e filmes da década de 2000 e antes, Castaing-Taylor assinava seus trabalhos como “Lucien Taylor”.

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dentre o cardume de peixes abatidos, elas são alçadas ao céu com um bastão ou

mergulhadas no oceano. O movimento e o campo de visão em grande angular das câmeras

acabam por gerar uma espécie de relação tátil com os objetos e com os corpos. Sobre isto,

a co-diretora Véréna Paravel relata: “A maneira que capturamos as coisas é com nossos

corpos. Não necessariamente olhamos pelo viewfinder da câmera, mas estamos lá,

tentando experienciar a fricção com o mundo real.” (CHANG, 2013). Em um trecho da

obra “The Corporeal Image: Film, Ethnography and the Senses” (MACDOUGALL,

2006), o autor, cineasta e antropólogo David MacDougall39 fala sobre a relação entre os

corpos dos cineastas e a materialidade do mundo à sua frente no momento da tomada de

maneira análoga à sensação descrita por Paravel. MacDougall resgata a noção cunhada

por Jean Rouch do cine-transe, ao mencionar que para Rouch “filmar (...) é escrever com

os olhos, com os ouvidos, com o corpo” (p. 27). No mesmo sentido, o autor relata o êxtase

do corpo-que-filma (filming body) na concepção de John Marshall “você tem essa

sensação: ‘eu estou conseguindo’, ‘estou captando’, ‘está acontecendo, está

acontecendo’”, e o relato de Robert Gardner desta mesma sensação como “o mais perto

que posso chegar de um orgasmo cinemático” (p. 27). Pode-se sustentar que a “fricção”,

segundo Paravel, do corpo dos cineastas com o mundo que filmam – e, subsequentemente,

do “retorno” desta relação à fruição espectatorial – vai ao encontro das ideias de

MacDougall:

O prazer de filmar erode as fronteiras entre cineasta e objeto, entre os

corpos dos cineastas e as imagens que eles fazem. O ato de filmar é

fundamentalmente ávido em “incorporar” os corpos dos outros. A

consciência do cineasta também deve se expandir para acomodar estes

outros corpos, mas ela não pode segurá-los todos; eles devem ser dados

aos outros – ou, ao menos, devolvidos ao mundo. Conseguindo isto, os

corpos do objeto, do cineasta e do espectador tornam-se interconectados

e, de algumas maneiras, indiferenciados. (MACDOUGALL, 2005. p.

27-28. Tradução nossa.)

39 A obra de MacDougall é influência notável no trabalho do SEL. Em 2010, David MacDougall foi professor visitante do departamento VES em Harvard. Antes disto, em 1998, Lucien Castaing-Taylor e Ilisa Barbash já haviam organizado um livro sobre o cineasta.

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Figura 19: A fricção entre corpos, câmera e mundo em Leviathan (Lucien Castaing-Taylor e

Verena Paravel, 2012)

Para além de suas características imagéticas, a experiência sensória de Leviathan

é completada pela trilha sonora do filme, um sound design arrojado que mistura som

direto e elementos adicionados posteriormente para a criação da paisagem sonora40. Além

do trabalho de Castaing-Taylor, destacam-se também os filmes de cineastas do grupo

como J.P. Sniadecki. Um deles é People’s Park (2012), longa-metragem rodado em um

plano-sequência de setenta e oito minutos em um parque urbano em Chengdu, na China.

Também na China Sniadecki realiza The Iron Ministry (2014), uma jornada por diversos

trens das ferrovias do país, cuja narrativa busca evocar a experiência sensória das viagens,

com a proximidade e a interação do cineasta em trens repletos de passageiros, ambulantes

e os objetos e bagagens que carregam consigo. Como em People’s Park, experienciar a

temporalidade de determinada circunstância, em planos-sequencias, é a matéria-prima de

Manakamana (2013), dirigido por Stephanie Spray e Pacho Vélez41. O documentário é

composto de nove planos-sequências filmados dentro de um teleférico em uma montanha

nepalesa. Acompanhamos, em enquadramento frontal, a viagem integral de grupos

40 Tanto em Leviathan quanto no anterior Sweetgrass este trabalho sonoro é realizado pelo engenheiro de som Ernst Karel, que atualmente também gerencia o trabalho do Sensory Ethnography Lab e de seus alunos/cineastas. 41 Pacho Vélez também é creditado como assistente de produção de Bright Leaves, finalizado por Ross McElwee em 2004.

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heterogêneos de pessoas (e, em um dos casos, apenas alguns bodes). Enquanto os

integrantes de alguns dos grupos interagem entre si, outros permanecem em silêncio,

alguns contemplam a vista das montanhas e outros olham fixamente para frente. Como

em outros filmes do SEL, a proximidade com os corpos e a relação destes com o mundo

ao redor em dada circunstância espaço-temporal é matéria-prima para sua construção

narrativa. Auditivamente, para além das falas (e silêncios) dos corpos, dos sons do

teleférico em movimento, pode-se escutar também o ruído da câmera em seu

funcionamento, enfatizando sua presença e sublinhando a unicidade da experiência

captada pelo aparato e transformada em narrativa. Manakamana foi filmado com a mesma

câmera 16mm que Robert Gardner levou para a Índia para a captação de Forest of Bliss

na década de 1980 – outro elemento que de alguma forma revela a ligação umbilical do

trabalho do SEL com o pensamento cinematográfico-antropológico de Harvard,

principalmente a partir da figura de Robert Gardner.

Figura 20: Manakamana (Pacho Vélez e Stephanie Spray, 2013)

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2.7. A produção autobiográfica no contexto de Harvard

A partir do início da década de 1980, o desenvolvimento de documentários

autobiográficos no âmbito de Cambridge e de suas universidades passa a concentrar-se

nas atividades do departamento VES. Cineastas como Ross McElwee e Robb Moss

continuam a desenvolver filmes que se enquadram neste universo quando passam a

lecionar na universidade. Alguns dos principais cineastas e filmes desta produção serão

destacados.

a) Alfred Guzzetti

Para além de Moss e McElwee, um caso que deve ser mencionado é o de Alfred

Guzzetti. Em entrevista para esta pesquisa, McElwee menciona Guzzetti, também

professor do departamento VES, como pertencente à “primeira geração” dos cineastas-

autobiógrafos de Cambridge, juntamente a Ed Pincus. De fato, Guzzetti filma o longa-

metragem autobiográfico Family Portrait Sittings concomitantemente ao trabalho de

Pincus em Diaries, ainda entre 1972 e 1975 – ano do lançamento do filme. O foco

autobiográfico da carreira do diretor desdobra-se, ainda, em três outros documentários:

Scenes from Childhood (1979), Beginning Pieces (1984) e Time Exposure (2012). Em

quatro décadas de carreira, o cineasta trabalhou também em diversos outros campos do

cinema de não-ficção. Um de seus primeiros trabalhos, Air (1971), aproximava-se mais

da obra de realizadores pertencentes ao cinema experimental avant-garde estadunidense.

Em parceria com Richard P. Rogers e Susan Meiselas, Guzzetti produziu documentários

de temática histórico-política na Nicarágua, como Living at Risk: The Story of a

Nicaraguan Family (1985) e Pictures from a Revolution (1991). A exploração

experimental de vídeo e tecnologias portáteis ocupou parcela significativa do trabalho do

diretor a partir da década de 1990, em vídeos como Rosetta Stone (1993), What Actually

Happened (1996), The Tower of Industrial Life (2000), Still Point (2009) e outros.

Family Portrait Sittings apresenta-se como um contraponto interessante à

abordagem autobiográfica do trabalho de Ed Pincus em Diaries. Ambos os filmes,

entretanto, aproximavam-se em suas metodologias ao incorporar o uso do sync-sound

como elemento narrativo indispensável – ainda que de maneiras distintas em suas

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ambições narrativas. Este é o principal elemento que aproxima o trabalho de Guzzetti em

Family Portrait Sittings do documentário autobiográfico que estava sendo desenvolvido

no MIT Film Section e de sua relação com os desdobramentos com o cinema direto. Ainda

que Guzzetti fosse afiliado a Harvard, lecionando na instituição desde 1968, o cineasta

aponta que se sentia muito distante do que o Carpenter Center desenvolvia

cinematograficamente naquele momento (MACDONALD, 2014, p. 111). À parte sua

admiração por Robert Gardner em filmes como Dead Birds (1964) e Rivers of Sand

(1974), Guzzetti via estas produções como “estranhas” (other), em uma “categoria

separada de filmes, sobre sociedades distantes da minha própria” (MACDONALD, 2014,

p.111). Afastando-se, portanto, da ambição antropológica de Harvard, o diretor sentia-se,

segundo o próprio, “mais confortável” (MACDONALD, 2014, p.111) com a produção

desenvolvida no MIT Film Section.

É possível dizer que o realizador e a visão artística de Family Portrait Sittings,

entretanto, apresentavam mais flexibilidade em relação ao rigor metodológico que regeu

a empreitada autobiográfica de Ed Pincus em Diaries. O cineasta aponta que Pincus

“estava comprometido com um tipo muito puro de Cinema-Vérité”, e enxergava Diaries

como uma exploração deste ponto de vista purista (MACDONALD, 2014, p. 116-117).

O filme de Guzzetti mostra-se mais disposto a trabalhar uma multiplicidade de elementos

narrativos se em comparação ao filme de Pincus que, no limite, buscava colocar à prova

as possibilidades de autobiografia em relação ao “novo” cenário do cinema direto sob a

ótica das inovações tecnológicas do período. Se Diaries concentrava-se em uma

experiência de narratividade temporal no sentido da representação da vida cotidiana do

diretor, a partir de uma exploração dos laços familiares e afetivos e os consequentes

desdobramentos durante cinco anos de filmagem, o filme de Guzzetti aborda a questão

autobiográfica a partir da memória familiar, estabelecendo uma relação com a vida

individual do diretor no momento da filmagem com a história de sua família, a partir de

depoimentos de pais, tios e tios-avós. Ao longo de Family Portrait Sittings, o cineasta

serve-se narrativamente da exploração de fotografias still da família, de imagens de

cobertura, som dessincronizado, trechos do arquivo de home-movies, imagens

panorâmicas, entre outras ferramentas.

O longa-metragem cobre diversos aspectos da história familiar do cineasta e

divide-se em três partes. Na primeira delas, o realizador dedica-se à tematização da

imigração da família materna e paterna da Itália para os Estados Unidos, até o ponto

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cronológico do casamento de seus pais. A segunda parte concerne o período da infância

de Alfred Guzzetti e sua irmã, na perspectiva de seus pais, e a terceira parte conecta a

história familiar com aspectos sociais, históricos e políticos. Nos primeiros vinte minutos

de filme, escutamos as vozes em off de diversos parentes do diretor relatando a história

da família sobre imagens da cidade de onde vieram, Abruzzo, e algumas tomadas da

Philapelphia, onde se instalarão posteriormente. Apenas após este grande “prólogo” que

algumas das vozes tornam-se corporificadas. A maior parte do fio argumentativo de

Family Portrait Sittings concentra-se no depoimento de Felix e Susan Guzetti, pais do

cineasta, como também do tio-avô Domenick, alfaiate de profissão. Através destes

depoimentos, como sumariza William Rothman (1988, p. 307), entramos em contato com

a história familiar do cineasta em temas como a ida dos Verlengias (família materna) e

dos Guzzettis para os EUA; o casamento de seus avós; a morte de Dolores (irmã mais

nova de sua mãe); o casamento de seus pais; o próprio nascimento de Alfred Guzzetti e,

posteriormente, o nascimento de sua irmã, Paula; as nuances das carreiras de seu tio

Domenick (alfaiate), de sua mãe (professora escolar) e de seu pai (negócio carvoeiro,

assistente em um estúdio de fotografia de casamento, serviço na Segunda Guerra

Mundial, vendedor em uma loja de fotografia); a mudança de South Philadelphia para um

cenário suburbano; e o crescimento dos filhos – o cineasta e sua irmã.

O aspecto predominantemente verbal de Family Portrait Sittings serve à aspiração

artística de Guzzetti, ao desejar que o filme abordasse as maneiras através das quais

mitologizamos nossas vidas transformando-as em narrativas – “mesmo que não

escrevamos estas narrativas ou façamos filmes a respeito delas. Family Portrait Sittings

é um estudo sobre as maneiras pelas quais uma família mitologiza a si própria”, sustenta

o diretor (MACDONALD, 2014, p. 118). Para Guzzetti, portanto, o longa-metragem

poderia canalizar diversas das histórias que ouvia a respeito de sua própria família desde

a infância. A utilização de uma metodologia sync-sound acontece, como frisado, de

maneira diferente a um filme como Diaries. Porém, mesmo em uma configuração mais

padronizada de depoimento, o realizador explora longas durações de tomada nas

conversas com seus pais e seus tios, buscando preservar as nuances gestuais e de

construção de discurso que dá forma às anedotas e histórias sobre a família que são

construídas por seus protagonistas diante da câmera. Narrativamente falando, Family

Portrait Sittings não trabalha a temporalidade a partir de uma relação de causa-e-efeito

como faz a cronologia de filmes como Diaries, Sherman’s March, In Search of Our

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Fathers, entre outros derivados metodologicamente da “escola” Ed Pincus – e que mais

normalmente são relacionados ao documentário autobiográfico de Cambridge. A

cronologia em Family Portrait Sittings acontece como um olhar narrativo para o pretérito

familiar, resgatado como maneira de compreender o presente, sem deixar de apontar para

o futuro do cineasta e de sua vida para “depois” do período da filmagem.

Figura 21: Felix e Susan Guzzetti falam para a câmera do filho, Alfred Guzzetti em Family Portrait

Sittings (1975)

Ao tecer o panorama histórico de uma família enquadrada na working class

imigrante da Philadelphia, Family Portrait Sittings apresenta algumas particularidades

em relação a outros documentários autobiográficos de Cambridge. Em especial, é

possível notar a herança marxista que perpassa o discurso argumentativo da família de

Guzzetti. Um exemplo é o momento em que o tio avô do cineasta fala sobre sua relação

com o ofício de alfaiate e a crítica que realiza à política capitalista de Nixon em

favorecimento do establishment do petróleo. No mesmo sentido, o depoimento do pai de

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Guzzetti sugere que seu entendimento da relação trabalho/família parece, em alguns

momentos, desviar-se do discurso mais tradicional do american dream. Quando

questionado pelo cineasta em relação à possibilidade de ter aberto um negócio próprio –

o pai era empregado em um estabelecimento fotográfico de terceiros –, sua resposta

consiste na opinião de que o sacrifício do tempo livre e a abdicação de momentos com a

família não recompensaria o enriquecimento material: “nenhum negócio vale este tipo de

sacrifício”, sustenta. Fenômeno semelhante pode ser detectado quando o pai do diretor

declara que embora os filmes do filho “não tenham nenhum valor comercial”, continuava

sendo importante que Guzzetti desenvolvesse atividades que o fizessem feliz e que

dialogassem com sua vocação. Curiosamente, mesmo em uma condição financeira

sensivelmente menos privilegiada do que a família de outros cineastas, Guzzetti é

incentivado a seguir seu caminho no documentarismo independente. Isto será encarado

distintamente na obra de cineastas como Ross McElwee, Miriam Weinstein, Richard P.

Rogers e Nina Davenport. Nestes casos, há um embate entre a aspiração de carreira

artística dos filhos diante da aspiração materna/paterna por um caminho profissional mais

tradicional, em famílias já compostas por médicos, advogados e outros ofícios

consolidados diante da sociedade e diante da possibilidade de recompensa financeira.

A motivação autobiográfica no momento da filmagem de Family Portrait Sittings

consiste na consolidação da família do próprio cineasta, que havia se casado há pouco

tempo e tornado-se pai do primeiro filho, Ben. A continuação desta motivação é

trabalhada no próximo filme de Guzzetti, Scenes from Childhood, lançado em 1979. No

filme, o diretor busca tematizar o universo infantil a partir de uma metodologia desta vez

mais intimamente ligada com o cinema direto clássico, a partir de uma postura

predominantemente recuada em relação às pessoas filmadas. Durante o verão de 1978,

Guzzetti registra diversas situações que envolviam crianças de três a cinco anos e que

faziam parte de seu universo pessoal no momento. As crianças eram filhos de parentes e

amigos próximos e, também entre eles, seu filho, Ben. A proximidade do cineasta com as

crianças filmadas torna-se evidente na maneira em que elas parecem lidar naturalmente

com sua presença e da câmera. O laço afetivo previamente estabelecido diminui a

possibilidade de interferência de si próprio como “corpo estranho”. Desta maneira, o

filme tem sucesso em apresentar situações em que a interação entre as crianças é colocada

em evidência. O “mundo das crianças” transpõe-se à tela, transbordando nuances que

fazem parte deste “jogo”: tentativas de comunicação, persuasão, pequenas demonstrações

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de poder, a organização de grupos e de lideranças, bem como demonstrações de afeto. O

caráter autobiográfico de Scenes from Childhood é sublinhado sutilmente nas situações

em que o filho do diretor, Ben, participa. A última sequência do filme sublinha o propósito

narrativo de Scenes from Childhood. Nela, Guzzetti conversa com o filho e explica que

está fazendo o filme para que quando o filho e os amigos ficarem mais velhos, possam

ver “como era ser criança”.

Figura 22: Scenes from Childhood, de Alfred Guzzetti (1979)

O projeto autobiográfico de Guzzetti é retomado no média-metragem Beginning

Pieces, lançado em 198642. Neste, o cineasta concentra-se novamente no universo

infantil, porém focando o crescimento de Sarah, sua filha, dos dois aos cinco anos de

idade. Metodologicamente mais variado do que Scenes from Childhood, Guzzetti

emprega outros elementos narrativos, para além a observação/interação com seus filhos

em um estilo vérité. Entre eles, o cineasta emprega excertos de narração em voz over em

primeira pessoa e sequências líricas que contam com o emprego de música não-diegética.

42 Beginning Pieces foi tirado de circulação/distribuição pelo cineasta por um período indefinido, a pedido da filha Sarah (MACDONALD, 2014, p. 123). Uma cópia do documentário, entretanto, pôde ser visionada durante o estágio de pesquisa no exterior.

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Em sua formação, Guzzetti apresentou uma relação estrita com a música – antes de

enveredar para a produção audiovisual, o cineasta trabalhava com composição musical e

dedicou parte de seus estudos em Harvard para isso. Há diversas referências ao universo

da música erudita em seus filmes. O título “Scenes from Chilhdood” refere-se a

“Kinderszenen” (“cenas da infância”), conjunto de treze composições para piano solo

composto por Robert Schumann em 1838 (MACDONALD, 2014, p. 123). Em Family

Portrait Sittings, a mãe do cineasta relata que as aulas de piano faziam parte da rotina de

Guzzetti desde criança. No caso de Beginning Pieces, há um trabalho com a

temporalidade cronológica que é pouco detectável nos filmes anteriores. Um dos aspectos

que tornam este trabalho palpável é o fato de acompanharmos os progressos do filho Ben

com a flauta doce – à medida que o tempo (e que o filme) passa, Ben executa melhor os

estudos. É interessante notar que algo semelhante acontece em Diaries de Ed Pincus,

sendo que o mesmo aspecto de temporalidade palpável é detectado no desenvolvimento

das habilidades de Jane Pincus em relação à flauta transversal. Além de entrarmos em

contato com uma faceta do crescimento dos filhos de Guzzetti, Ben e Sarah, o cineasta

evidencia a maturação de si próprio como indivíduo, ao tematizar no filme o adoecimento

e a morte do pai.

Após Beginning Pieces, Guzzetti permaneceu décadas sem trabalhar

narrativamente aspectos autobiográficos em seus filmes. A pausa foi quebrada em 2012

com a realização de Time Exposure, curta metragem de pouco mais de dez minutos. O

filme pode ser lido como uma homenagem póstuma aos pais do diretor, como aponta

Scott MacDonald (2013, p. 162), tendo sido realizado um ano após a morte da mãe do

realizador, em 2011, e dedicado in memoriam ao seu pai. A construção narrativa

autobiográfica em Time Exposure passa por um terreno pouco experimentado pelo diretor

em filmes anteriores. Neste, o cineasta lança mão da narração over em primeira pessoa

como elemento argumentativo dominante em sua reflexão. Em entrevista, Guzzetti

menciona (MACDONALD, 2014, p. 141) o auxílio que obteve de Ross McElwee para o

desenvolvimento desta tarefa.

O ponto de partida da meditação do cineasta é uma fotografia tirada por seu pai

em 1938. Ela, segundo nos narra Guzzetti, foi a fotografia responsável pelo início da

carreira do pai como fotógrafo. O resultado da foto – uma cena noturna de uma rua deserta

na Philadelphia – impressionara a mãe do cineasta, que o incentivou a inscrever a

fotografia em um concurso que o pai se sagrou vencedor. Utilizando-se de imagens still

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como esta e outras tiradas por seu pai, o realizador reflete acerca da passagem do tempo

e da influência da fotografia na vida do patriarca, que influenciou em sua própria

formação como artista. Quase setenta anos depois da circunstância, o diretor realiza uma

pequena investigação a fim de descobrir o sítio exato onde a fotografia foi tirada,

recorrendo a informações armazenadas nos “cantos” de sua memória, bem como com o

auxílio digital de ferramentas como o Google Mapas. Reencontrando o local onde a

fotografia foi tirada por seu pai, Guzzetti realiza uma nova imagem, porém agora

cinematográfica, digital e em cores.

Figura 23: A fotografia tirada por Felix Guzzetti, pai do cineasta, em 1938, em Time

Exposure (2012)

Apesar de algumas diferenças no cenário, a paisagem da imagem de 1938

permanece reconhecível nos tempos atuais. A distinção maior, entretanto, reside na

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importância simbólica que o local tem para as pessoas que o veem diariamente se em

comparação com o próprio cineasta. Estando diante do local e realizando um novo

registro dele, Guzzetti, aos setenta anos de idade no ano de lançamento do filme,

questiona o que aconteceria se o pai não houvesse feito a imagem décadas atrás: "Eu teria

sido assistente de meu pai quando ele fotografou casamentos e banquetes? Teria

aprendido a mudar os suportes de filme e as lâmpadas, focar a câmera, fazer tiras de teste

e ampliações, colorir as mãos com os óleos semi-transparentes? Meu pai teria comprado

uma câmera de filme de 8mm e equipamentos de edição e feito todos os filmes de nossa

família que eu herdei? Eu teria começado a fazer minhas próprias fotografias e meus

próprios filmes?”.

A partir de uma obra de curta duração (Scott MacDonald refere-se ao filme como

um haikai do documentário pessoal [2013, p. 166]), em Time Exposure Guzzetti resgata

a história familiar ao tematizar o ofício do pai como fotógrafo/cineasta caseiro, artista e

trabalhador, e também a conjuntura do casamento de seus pais, seu nascimento e a

influência da arte em sua própria vida. O diretor, no filme, declara-se “inesgotavelmente

fascinado pela maneira através da qual o cinema coloca diante de nós o infinito fluxo do

tempo”. Estilisticamente livre e variada, a obra do diretor em sua ótica autobiográfica

coloca em primeiro plano, como sugerido pelo próprio, o questionamento acerca da

passagem do tempo e de seu registro, sua cristalização e memória. Os filmes de Alfred

Guzzetti apresentam-se como outra faceta do universo de reflexão que permeia a obra de

cineastas-autobiógrafos de Cambridge como Ed Pincus, Ross McElwee e Robb Moss.

b) Nina Davenport

Um dos principais casos do desdobramento do recorte autobiográfico de

Cambridge já no âmbito do departamento VES, após a chegada de Robb Moss e Ross

McElwee, é o de Nina Davenport. A cineasta faz parte de uma “terceira geração”, segundo

Ross McElwee em entrevista para esta pesquisa, de cineastas-autobiógrafos de

Cambridge, tendo desenvolvido sua própria carreira a partir do contato com a docência e

com os filmes de McElwee e Moss.

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Davenport aponta que seu interesse pela realização de documentários em uma

esfera pessoal iniciou em uma aula de introdução à cinematografia lecionada por Moss,

na qual assistiu a filmes como Chronique d’un été, de Jean Rouch, Happy Mother’s Day

(Richard Leacock, 1963) e Diaries 1971 - 1976, de Ed Pincus. Sobre a ocasião, a

realizadora afirma: “nunca havia visto nada como estes filmes, e nem sabia que este tipo

de cinema existia. Mas com o passar do tempo, compreendi ser o meio que funcionava

melhor para aquilo que me interessa no mundo e como queria me expressar”

(MACDONALD, 2014, p. 171). Davenport atuou como assistente de edição em Six

O’Clock News (Ross McElwee, 1996), filme no qual também faz aparição, quando

podemos vê-la assistindo a uma aula lecionada por McElwee.

A metodologia fílmica na qual a cineasta se especializou, recorrente em seus

filmes, faz jus à “escola” do cinema autobiográfico de Cambridge na linha de Ed Pincus

e seus sucessores. Filmando a partir de uma equipe de uma pessoa só (one-person-crew),

editando e narrando os próprios filmes, a influência vérité é trazida para o primeiro plano

em filmes como Always a Bridesmaid (2000), Parallel Lines (2004), Operation:

Filmmaker (2007) e First Comes Love (2013). Nestes longas-metragens a presença de

Davenport na tomada é um aspecto dominante e torna-se elemento narrativo das

produções. Sua interação conversacional com as pessoas que estão diante da lente é uma

ferramenta enfatizada. A realizadora sublinha sua própria individualidade em todos os

filmes citados, porém é possível dizer que o aspecto autobiográfico se faz mais evidente

em Always a Bridesmaid e First Comes Love. Nestes, há uma ênfase temática de aspectos

que dizem respeito a episódios de sua vida privada, existindo também o emprego da

narração em voz over em primeira pessoa como amparo narrativo e como meio de veículo

de suas reflexões. Os filmes da cineasta lançam mão do aspecto de desenvolvimento

cronológico a partir da construção de movimentos narrativos de tensão e resolução.

Hello Photo (1994), o primeiro filme finalizado por Davenport, entretanto,

inspira-se em outra tradição. O filme foi realizado durante um período de quase dois anos

em que a cineasta viajou pela Índia. A realizadora registra suas experiências pelo local a

partir de uma perspectiva de exploração imagética mais ligada à fotografia do que à

inspiração vérité – o filme foi rodado com uma câmera Bolex e inspirado na obra de Peter

Hutton. Davenport afirma que Hello Photo era uma obra de alguma forma “feito por um

fotógrafo”, em uma narrativa na qual não existe um plot, diálogo ou uma história

(MACDONALD, 2014, p.). O filme conta apenas com a ilusão de som sincrônico que,

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apesar de ter sido captado in loco, teve suas sequencias sonorizadas posteriormente. Os

sons escutados em sync não são relativos a diálogos, mas tratam-se de “sons do mundo”,

como passos ou manuseio de objetos. As interações conversacionais de Davenport com

as pessoas ao seu redor aparecem como um elemento extra da trilha sonora,

frequentemente faladas em hindi e pouco adicionando “coerência narrativa” ao filme. A

realizadora descreve que o encorajamento institucional de Hello Photo veio de Robert

Gardner, que olhava o material bruto do filme mandado aos EUA pela cineasta e provia

financiamento extra para o projeto. (MACDONALD, 2014, p. 173)

Já seu próximo filme, Always a Bridesmaid, lançado em 2000, dialoga com a

tradição autobiográfica do departamento VES. Davenport lança mão de procedimentos

metodológicos, temáticos e narrativos que remetem a filmes de cineastas com quem

esteve em contato acadêmico, sobretudo Ross McElwee. Em Always a Bridesmaid, a

realizadora tematiza aspectos de sua vida amorosa. O título do filme, que remete à

expressão “Always a bridesmaid, never a bride” (sempre uma dama-de-honra, nunca uma

noiva), relaciona-se a uma preocupação que ocupa de maneira significativa os

pensamentos de Nina Davenport na ocasião da filmagem. Chegando aos trinta anos de

idade, a cineasta encontra-se incomodada com o fato de ser uma das últimas mulheres de

seu círculo social a não ter casado. A realizadora sugere a intensificação de sua agonia

por participar inúmeras vezes como dama-de-honra em casamentos de suas amigas, como

também devido à atividade profissional que exerce, a de fotógrafa e videógrafa de

casamentos alheios.

O principal eixo de gravidade temático do filme é o relacionamento amoroso que

a diretora mantém ao longo de sua realização. Seu namorado é Nick, um recém-formado

cineasta cinco anos mais jovem do que Davenport. As situações filmadas pela realizadora

evidenciam sua disposição em consolidar casamento com Nick, apesar de que o namorado

parece resistir à ideia. Ao longo da narrativa, acompanhamos as investidas de Davenport

para que o casal dê um passo além, como dividir um apartamento. O namorado,

entretanto, está mais disposto a morar com amigos ou mesmo a voltar para a casa de seus

pais – episódio que toma forma em determinado momento do filme. A reflexão de

Davenport sobre seu relacionamento é realizada “sem muitas restrições” – entramos em

contato com conversas íntimas que a cineasta tem com Nick sobre o caso, com as análises

que a diretora realiza em voz over sobre a postura do namorado, ou com os diálogos da

cineasta com amigas próximas a respeito do assunto. Davenport amplia seu estudo sobre

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o tema ao tornar uma senhora idosa, que decidiu não se casar, como uma das personagens

do filme, sendo alguém com quem a realizadora revela gostar de passar tempo e a quem

frequentemente pede conselhos sobre seu caso. Outras variações do tema são retratadas

pela realizadora, como uma aglomeração de mulheres em uma liquidação de vestidos de

noiva de uma loja de departamentos, ou o caso de um casal de idosos que se

“encontraram” apenas aos noventa anos de idade e decidem casar-se.

A reflexão de Davenport elabora-se a partir do entendimento de que continua a

existir pressão da sociedade para a consolidação do casamento, da qual a cineasta também

é alvo. A realizadora sugere, da mesma forma, o preconceito que existe em torno da

condição da solteirice – principalmente, neste caso, em relação ao universo feminino.

Como aponta Scott MacDonald (2013, p. 281), há diversos elementos em Always a

Bridesmaid que remetem à construção temática e metodológica de Ross McElwee em

Sherman’s March. Como McElwee, Davenport coloca-nos em contato com uma persona

elaborada a partir da ênfase em um aspecto autodepreciativo. No caso de McElwee, trata-

se do fracasso diante do estabelecimento de um relacionamento amoroso e, no caso de

Davenport, o fracasso existe em relação à expectativa frustrada de um casamento. De

maneira correlata a Sherman’s March, Always a Bridesmaid também suscita uma

exploração hiperbólica de intimidade com a qual nós, enquanto espectadores, não-raro

sentimos incômodo. Se em Sherman’s March é possível colocarmos as intenções de

McElwee em um campo de suspeição ética para com diversas de suas pretendentes (até

que ponto o diretor “tem direito” de fazer isto com as pessoas, em prol de seu filme?),

algo semelhante é evocado na abordagem de Davenport em relação ao namorado, Nick.

Finalmente, como no caso de Sherman’s March, o “fracasso” da cineasta em chegar à

concretização de um casamento resulta no sucesso de Always a Bridesmaid como

tematização da instituição do casamento em um período de reavaliação das organizações

tradicionais de relacionamentos amorosos. Este movimento será novamente conduzido

pela realizadora em First comes Love, no que concerne a possibilidade de tornar-se mãe

sem um cônjuge, a partir de fertilização in vitro. Always a Bridesmaid, também, revela o

domínio de Davenport da metodologia de equipe de uma pessoa só, no que concerne o

trabalho de câmera sob a ótica do cinema direto. Esta estará presente em seus filmes

subsequentes, bem como os processos de montagem e desenvolvimento de narração em

primeira pessoa.

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Figura 24: A cineasta Nina Davenport e o namorado, Nick, em Always a Bridesmaid (2000)

Voltados para um objeto temático externo bem demarcado, os próximos filmes da

realizadora, Parallel Lines (2004) e Operação: cineasta (Operation Filmmaker, 2007)

também sublinham narrativamente sua própria figura. Em Parallel Lines43, a diretora

realiza uma meditação acerca de extratos da sociedade estadunidense logo após os

acontecimentos do 11 de Setembro. O filme revela que a cineasta, moradora da cidade de

Nova Iorque, realizava um trabalho na Califórnia no período do ataque. Permanecendo

no local ainda por dois meses, Davenport decide realizar o trajeto de volta dirigindo –

cruzando o país da costa oeste à costa leste – a fim de conversar com pessoas de diferentes

estados, classes sociais e visões políticas sobre o evento e suas consequências. Parallel

Lines evoca tanto o senso de fragmentação quanto de unidade da sociedade estadunidense

após os ataques, tematizando questões como o sentimento de luto, o patriotismo e sua

crítica.

Operação: cineasta obteve projeção maior que os filmes anteriores de Nina

Davenport, tendo sido inclusive exibido na 13ª. edição do Festival Internacional de

Documentários É Tudo Verdade, em 2008. A estória de Operação: cineasta inicia com

uma reportagem realizada feita pela MTV após a invasão estadunidense ao Iraque. Na

ocasião, a emissora fez uma matéria sobre estudantes de uma escola de cinema de Bagdá

43 Parallel Lines foi exibido na edição de 2005 do ForumDoc.bh, Festival do filme Documentário e Etnográfico sediado em Belo Horizonte.

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destruída pela guerra e perdendo, assim, a possibilidade de dar continuidade aos estudos.

O protagonista da matéria, o estudante iraquiano Muthana Mohmed, captou a atenção do

ator/diretor estadunidense Liev Schreiber, que convida Muthana para participar como

estagiário de seu próximo filme, Uma vida iluminada (Everything is Illuminated, Liev

Schreiber, 2005), rodado na República Tcheca. Originalmente, o trabalho de Davenport

seria o de apenas realizar um filme a respeito da participação de Muthana na filmagem

do longa-metragem americano – não havendo, portanto, “nenhuma intenção” da cineasta

participar ativamente como personagem de seu filme (MACDONALD, 2014, p. 177). A

relação entre Davenport e Muthana começa a tomar contornos mais complexos,

entretanto, com o desvio das expectativas da empreitada inicial, de todas as partes

envolvidas. Tendo atraído atenção sobre si, Muthana apresenta resistência em realizar

trabalhos do baixo escalão do set de filmagem, gerando o desapontamento dos produtores

e do resto da equipe que acreditavam “dar uma chance” ao estagiário iraquiano. O “jogo

de lábia” de Muthana para conseguir as coisas que quer torna-se evidente e leva a seu

descrédito no círculo de trabalho.

Muthana permanece na Europa com a possibilidade de trabalhar em outro longa-

metragem (Doom, Andrzej Bartkowiak, 2005) por alguns meses. Davenport continua

filmando o desenrolar da história do aspirante a cineasta em um período de tempo que

soma quase dois anos. A cineasta o acompanha na empreitada de sobreviver sem dinheiro

e na tentativa de permanecer em solo europeu, evitando o retorno ao Iraque. Com o tempo,

porém, Muthana torna-se mais incisivo em relação ao envolvimento de Davenport em sua

vida e ao filme que a cineasta está realizando. Frequentemente pedindo (ou exigindo)

dinheiro da cineasta para suas despesas – pedidos aos quais Davenport cede por algumas

vezes – a relação entre “cineasta” e “objeto”, na complexidade desta situação particular,

torna-se o mote narrativo de Operação: cineasta. Neste sentido, como aponta o crítico

Fabio Andrade (2008), “Muthana é tão consciente da necessidade, para o filme, de sua

presença, que ela vira uma forma de poder”. A “disputa do controle do filme” por

Davenport e Muthana faz da narrativa “uma relação de co-dependência em constante

mutação. Muthana sabe que precisa do documentário tanto quanto a diretora precisa dele

para que exista um filme. Operação: Cineasta é o registro dessa tensão, desse cabo de

guerra pelo controle da imagem.” (ANDRADE, 2008).

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Davenport retorna à exploração autobiográfica em seu próximo filme, First

Comes Love44, lançado em 2013 e o último realizado pela diretora até o presente

momento. No longa-metragem, a cineasta tematiza o processo da gravidez de seu

primeiro filho, realizado a partir do método de fertilização in vitro. A empreitada da

realizadora inicia-se narrativamente aos quarenta e um anos de idade. Acreditando estar

vivendo em um “período-limite” de seu relógio biológico em relação à maternidade, a

cineasta decide tentar saciar o desejo, já longínquo, pela gravidez. Desenvolvido a partir

de uma macroestrutura cronológica, First Comes Love começa por narrar os momentos

que antecedem sua decisão, ao conversar com amigos e familiares sobre a ideia de

engravidar e cuidar de um filho por conta própria. Munida da câmera, Davenport mostra

momentos como o pedido pela doação do esperma ao amigo gay, Eric, ou o processo de

equilíbrio hormonal necessário para o processo. Com o sucesso do tratamento, assistimos

à condução dos meses de gestação, nos quais a cineasta reavalia as diferentes facetas de

sua escolha. A câmera está presente na sala de parto, na qual assistimos, bastante

graficamente, ao nascimento de seu filho. A narrativa estende-se ainda pelo primeiro ano

da vida de Jasper, filho da cineasta, na qual esta expõe a concretude das consequências

de sua decisão.

First comes Love apresenta aspectos de “continuação autobiográfica” em relação

a Always a Bridesmaid, seu primeiro longa-metragem, lançado treze anos antes.

Analogamente ao filme anterior, o título First comes love também parte de uma cantiga

popular, utilizada no contexto de brincadeiras infantis: “primeiro vem o amor, depois vem

o casamento, depois vem o bebê em um carrinho” (first comes love, then comes marriage,

then comes baby in a baby carriage). Davenport, no filme, evidencia uma subversão da

ordem apontada pela canção e que traduz a visão mais tradicional em relação ao ato de

gestar e criar um filho. Existe certamente muito “amor” em sua decisão, porém a

realizadora deixa de lado a necessidade da relação afetiva para a consolidação de sua

gravidez. Mostrando-se na condição de solteira, treze anos após o lançamento de Always

a Bridesmaid, a cineasta revela que o projeto do casamento, tematizado no filme, de fato

não chegou a se concretizar. Diferentemente da empreitada anterior, entretanto, o

universo social ao redor da cineasta sugere que a nova tarefa pode ser realizada por uma

pessoa só. Diversas de suas amigas passaram pelo processo da “maternidade individual”:

44 First comes Love está disponível (em abril de 2017) para visionamento no banco de dados brasileiro da plataforma de streaming Netflix.

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algumas já são mães, outras estão na fase de gravidez, outras estão tentando. O médico

que acompanha a ultrassonografia de uma destas amigas afirma tratar-se de algo cada vez

mais comum em uma cidade como a de Nova Iorque. Imersa em um círculo social

predominantemente progressista-liberal – inclusive, a campanha de Barack Obama é um

dos motes que pontua temporalmente o filme –, a empreitada da realizadora coloca-se

como exemplo de uma reorganização de valores tradicionais de maternidade e família.

Desde o amigo doador do esperma à figura da melhor amiga, Amy, que faz o papel de

uma companheira de gestação, Davenport está rodeada de pessoas dispostas a

acompanha-la em sua jornada, ajudando-a (e a nós, enquanto espectadores) a

compreender as nuances de sua escolha e o lugar que esta ocupa na sociedade e nos

tempos em que vivemos.

Se a decisão da realizadora parece ter um alto grau de aprovação dentro de seu

círculo de amizades, a resistência surge quando há um passo para além deste grupo. Neste

sentido, sua exploração toca outros pontos de questionamento. A principal interlocução

dá-se em relação a parte de sua família. Davenport faz da iminência da maternidade um

ponto de partida para a reflexão analítica acerca de sua própria criação e seu histórico

familiar. A realizadora vem de uma família que proporcionou a ela todos os privilégios

possíveis: de uma boa e confortável criação à educação universitária em Harvard. Um

primeiro choque atinge a cineasta a partir da conversa com a esposa de um de seus irmãos

– um deles é um banqueiro e, o outro, advogado corporativo. No diálogo, a cunhada

questiona se a criação de um filho não agravaria os problemas financeiros dos quais a

cineasta frequentemente se queixa. Daí, advém a constatação que o ofício escolhido por

Davenport – o de documentarista independente – certamente não proveria ao filho as

mesmas condições com as quais ela pôde contar ao longo de seu crescimento.

A resistência familiar encontra seu principal bastião na figura do pai da

realizadora. Advogado bem-sucedido, seu pai refuta todas as escolhas feitas pela filha.

Mesmo diante da câmera, não apresenta constrangimentos ao afirmar que o trabalho da

filha não passa de uma atividade amadora, de “puro prazer” – suspeição frequente na

carreira de outros cineastas-autobiógrafos, como Ross McElwee, Alan Berliner e Miriam

Weinstein. Diante da notícia de que a diretora está de fato esperando um bebê, o pai

sugere – jocosamente, mas não tanto – que ela procure um médico aborteiro. No âmbito

deste dilema, Davenport leva a narrativa de First comes love a uma reflexão mais densa

sobre relações familiares. A situação de fragilidade faz com que a cineasta se lembre de

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sua mãe, morta um ano e meio antes do início da jornada e de quem porta vasto material

de registros caseiros.

A maturação do “estilo autobiográfico” de Davenport se faz notável na medida

em que a cineasta intercala os registros de sua produção “presente” com o passado

familiar. A partir de diversas fontes de registro audiovisual, a realizadora desenvolve uma

narração em over que amarra os saltos espaço-temporais em uma reflexão analítica. Há,

neste sentido, um movimento de desatamento de um “nó mental”, um engendramento

entre memória e presente, que remete ao trabalho metodológico de um filme como Time

Indefinite, de Ross McElwee. A partir deste trabalho Davenport reflete acerca da nova

experiência na qual está embarcando, porém em perspectiva com diversas facetas daquilo

que viveu anteriormente. A narrativa, portanto, serve como subsídio para o embate da

diretora com o luto em relação à sua mãe, bem como uma maneira de compreender melhor

a visão de mundo do pai. A aproximação de Davenport da figura paterna a partir do

momento em que ela própria apresenta-se na iminência de criar um filho remete

similarmente aos filmes de McElwee, no que diz respeito à reavaliação que o diretor faz

de maneira contínua sobre seu pai, de Time Indefinite a Photographic Memory.

Figura 25: Nina Davenport e o nascimento do filho Jasper em First comes Love (2013)

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c) Outros cineastas: Marco Williams, Jim Lane, Mitch McCabe e Dario Guerrero

O documentarista Marco Williams (Two towns of Jasper [2002], Banished [2007])

também iniciou sua carreira durante a graduação no departamento VES. Williams fora

assistente (monitor, teaching assistant) de Ed Pincus nos cursos que o cineasta lecionou

em Harvard, nos primeiros anos da década de 1980. Também neste período, em 1982,

Williams inicia o projeto de In Search of Our Fathers, documentário autobiográfico

filmado durante uma década e finalizado em 1992. O filme documenta a busca do diretor

pelo pai, James Berry, que nunca conheceu e sobre o qual sabe muito pouco. A história

de sua gestação e nascimento é nebulosa e mesmo seus familiares, como o filme nos

mostra, têm poucas informações precisas acerca do fato. Williams conduz sua busca por

diversas cidades em que morava durante o período das filmagens, como Boston e Nova

Iorque, mas também na Philadelphia, onde cresceu e onde sua família instalou-se. Apesar

de ter o contato telefônico do pai, o realizador nunca obteve sucesso em conseguir um

encontro com ele – suas tentativas esporádicas, via telefone, são registradas por sua

câmera. O filme sugere que a mãe do diretor, radicada em Paris desde a metade da década

de 1970, é a única pessoa viva que poderia ajudar a esclarecer os fatos. Williams vai ao

seu encontro em algumas ocasiões ao longo da jornada, também quando a mãe passa a

morar novamente nos Estados Unidos.

Os encontros entre mãe e filho diante da câmera revelam a evasividade da

matriarca em relação ao assunto, ao invés da disposição em esclarecer as circunstâncias

do relacionamento afetivo que a levou à gravidez. Em uma destas situações, a mãe do

diretor revela que o pouco que lembra do pai de Williams é que ele “conseguia abrir uma

garrafa de cerveja com os dentes”. A postura da mãe, de certa forma, poderia ser traduzida

como uma tentativa de preservar o filho de um encontro potencialmente desapontador.

Ao final da narrativa, o diretor consegue agendar um encontro com o pai, na cidade em

que mora. O encontro é marcado pela ausência de curiosidade da parte do pai, bem como

por sua postura resistiva. Seu argumento é o de que não haveria base para a afirmação de

que o cineasta era, de fato, seu filho. Não sabendo (ou, fingindo não saber) nem ao mesmo

em que cidade havia conhecido a mãe do realizador, a única aproximação palpável entre

ambos é o comentário feito por um conhecido do pai, que aponta a semelhança física entre

eles. Os letreiros finais do filme revelam que este foi o único encontro entre o realizador

e James Berry, tendo este falecido em 1992.

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In Search of our fathers constrói-se episodicamente, a partir da jornada de

Williams filmada em trechos separados por letreiros que indicam a localização geográfica

e o ano dos registros. Suas reflexões sobre os novos desdobramentos do caso são

trabalhadas a partir de uma narração em over e o aspecto vérité rege os encontros do

diretor com as pessoas que encontra. Por vezes, o realizador trabalha solo nos registros e,

em alguns momentos, relega o trabalho de câmera para outra pessoa. Sua jornada alcança

um aspecto público ao unir a particularidade de seu caso a uma realidade das famílias

afroamericanas. Como exposto no primeiro capítulo deste trabalho, Williams ressalta em

determinado momento da narrativa que a ausência da figura paterna no crescimento dos

filhos acontece em 47% das famílias negras nos Estados Unidos. O cineasta vê a

concretude do fato em sua própria família, apresentando esta ausência como um dado que

se repete há gerações, entre avós, tias e primas que, por diversos motivos, acabam por ter

de criar os filhos sozinhas. A narrativa de In Search of our fathers termina no casamento

de uma das primas do diretor. Na ocasião, Williams reflete em over sobre como ele

próprio se sairia no papel de pai – se isto um dia viesse a acontecer. O realizador conclui

que o trabalho de uma década significou um maior entendimento da noção de paternidade

e de família, seja ela “nuclear, estendida ou ambos”. In Search of our Fathers foi indicado

para o grande prêmio do júri na edição de 1992 do Festival de Sundance. A análise de

diferentes facetas da experiência negra nos EUA permeia outros filmes de Marco

Williams, embora não autobiográficos, como From Harlem to Harvard (1985), Two

towns of Jasper (2002) e Banished (2007). Williams é professor do departamento de

cinema da Tisch School of the Arts (NYU).

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Figura 26: O diretor Marco Williams ao telefone em duas ocasiões de sua jornada em In Search of

Our Fathers (1992), sua mãe e seu pai.

Outros exemplos da relação entre os documentários autobiográficos e o

departamento VES podem ser extraídos de alguns trabalhos de conclusão de curso de

graduação (senior thesis) de alunos que passaram pelo local. Três deles, de épocas e com

motivações distintas, sublinham aspectos da vida dos alunos-cineastas em seus últimos

anos de faculdade. Um exemplo distante é Long Time, no See, média-metragem realizado

por Jim Lane e finalizado em 1982, mencionado no capítulo anterior deste estudo. Lane

revela-se no filme como um estudante prestes a se formar, um pouco confuso em suas

aspirações, em busca de aprovação de sua família e das pessoas ao seu redor. É possível

notar a influência das ideias de Ed Pincus no filme. O diretor fez parte da primeira turma

de alunos que assistiu a Diaries (1971 - 1976) em seu formato final e trabalhou na

distribuição do filme nos anos subsequentes. O realizador constrói seu filme a partir das

interações que tem com as pessoas diante da lente da câmera, economizando comentários

em over e ausentando-se de lançar mão de procedimentos que ajudem a “amarrar” o fio

narrativo do filme. O estudo acerca da possibilidade de realizar autobiografia

cinematográfica “no tempo presente”, que é parte do núcleo conceitual de Diaries, é

evidente no filme. Susanna Egan faz de Long Time, no See uma das referências de seu

artigo “Autobiography as Interaction” (1994), ao lado de filmes como Silverlake Life.

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Lane produziu outros filmes de teor autobiográfico, como East meets West (1986) e I am

not an Anthropologist (1995), além de contar com uma obra acadêmica voltada para o

tema (LANE, 1997, 2002, 2009).

Figura 27: O cineasta Jim Lane filma seu próprio reflexo em Long Time, no See (1982)

O trabalho de conclusão de curso da cineasta Mitch McCabe é outro caso como

esse. O média-metragem Playing the part, orientado por Ross McElwee e lançado em

1995, tematiza o desejo da realizadora em revelar à sua família o fato de ser homossexual.

McCabe cresceu no interior dos Estados Unidos em uma família de condições financeiras

privilegiadas. Seu pai é um cirurgião plástico, também formado em Harvard. A cineasta

coloca em contraponto a formação conservadora e religiosa do interior do país com o

ambiente liberal da high-society da universidade. McCabe desenvolve o filme a partir de

interações com sua namorada, bem como com sua família, visitando-os na cidade natal e

recebendo-os em seu dormitório na universidade. Em todos os casos, entretanto, McCabe

não tem coragem de dizer aos pais sobre sua homossexualidade e seu envolvimento

afetivo com outra mulher. Mesmo a partir de uma situação delicada, existe um humor que

perpassa a abordagem da realizadora. Este é confirmado tanto pelo teor de sua narração

em primeira pessoa quanto pelo nos momentos em que se dirige à câmera –

procedimentos de monólogo que também remetem a Sherman’s March e outros filmes de

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McElwee. O fim da narrativa de McCabe sugere que talvez o próprio filme seja o meio

encontrado pela cineasta para contar aos pais sobre sua sexualidade.

Figura 28: A namorada da cineasta Mitch McCabe corta seu cabelo, em Playing the Part (1995)

Um último caso que pode ser destacado é o de Dario Guerrero. Guerrero foi

estudante do departamento VES e formou-se em 2016. O aluno-cineasta realizou um

documentário autobiográfico como trabalho de conclusão de curso, também tendo sido

orientado por Ross McElwee. Nascido no México e crescido na Califórnia, Guerrero

descobriu apenas quando adolescente que sua entrada nos EUA aos dois anos de idade,

juntamente com sua família, fora feita de maneira ilegal. Ele e os familiares, dessa forma,

portavam status de imigrantes sem documento no território estadunidense. A história de

Guerrero veio a público em 2014, sendo veiculada pela imprensa de diversos países, como

a brasileira45. Na ocasião, a mãe de Guerrero sofria de um câncer terminal e não estava

respondendo bem aos tratamentos a que fora submetida nos EUA. O jovem levou-a para

o México em busca de tratamentos alternativos que pudessem auxiliá-la. Sua mãe,

entretanto, não resistiu à doença e morreu em solo mexicano. Guerrero foi barrado na

45 A notícia a respeito do episódio que envolveu Dario Guerrero, noticiada por um portal brasileiro, pode ser encontrada aqui: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/10/eua-barram-aluno-de-harvard-que-foi-ao-mexico-para-ajudar-mae-doente.html

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ocasião de sua tentativa de reentrada nos Estados Unidos, tendo de permanecer meses no

México antes de conseguir reingressar no país em que viveu por toda a vida.

Figura 29: A história de Dario Guerrero em manchete de portal digital brasileiro,

veiculada em 2014

Seu trabalho de conclusão de curso, em processo de finalização e ao qual pôde-se

assistir, documenta a história da doença da mãe durante o período, desde quando a família

permanecia nos EUA até a ida para o México. O filme é baseado em um trabalho de

observação “paciente” do cotidiano que configurava a circunstância na qual o realizador

estava inserido. Há o trabalho de estruturação cronológica da situação, delicada, do seio

familiar, na qual entramos em contato com a evolução física do quadro de sua mãe e a

transformação de humores e consciências das pessoas de sua família.

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Dario Guerrero e sua empreitada representam a maneira através da qual o interesse

pelo desenvolvimento de narrativas documentárias no contexto universitário de

Cambridge permanece no horizonte, em tempos atuais. Este foi um questionamento que

transcorreu em um diálogo via e-mail com o realizador, no ano de 2017. Diante da

indagação a respeito da maneira através da qual a noção de autobiografia perspassou o

tipo de ensino cinematográfico realizado no departamento, em sua formação, Guerrero

afirma que:

(A realização de) cinema autobiográfico de qualidade ainda é muito

importante no departamento VES, atualmente. Em todas as aulas de

cinema documentário que cursei, os estudantes faziam trabalhos sobre

si próprios em algum nível. O espírito da autobiografia permeia até as

aulas de cinema de ficção (...) A maioria dos estudantes atua nas

próprias produções, e nas aulas de documentário alguém

inevitavelmente acaba virando a câmera para si próprio. O trabalho

autobiográfico de Ross (McElwee), Robb (Moss) e Alfred (Guzzetti)

são partes importantes do currículo e são estudados pela maioria dos

outros alunos com quem tive contato.

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3. A obra autobiográfica de Ross McElwee

3.1. Introdução

Ross McElwee, nascido em 1947 em Charlotte, capital do estado da Carolina do

Norte, iniciou seu trabalho como documentarista na década de 1970, estando em atividade

até o presente momento. Seu último longa-metragem, Photographic Memory, foi lançado

em 2011. Em 1986, McElwee iniciou a atividade de docência no departamento Visual

and Environmental Studies da universidade Harvard ocupando o posto de Professor de

Prática Cinematográfica – cargo que também continua a exercer.

McElwee entra no radar do público, crítica e academia norte-americanos no

mesmo ano de 1986, com o lançamento de Sherman’s March (A Meditation on the

Possibility of Romantic Love in the South during an Era of Nuclear Weapons

Proliferation). Como frisado na introdução deste trabalho, a quixotesca narrativa

cinematográfica de mais de duas horas e meia de duração protagonizada por McElwee

acabou por obter mais sucesso do que o esperado. A expectativa era a de que o filme

conseguisse transitar pelo circuito arthouse de museus e festivais de cinema, porém

Sherman’s March teve penetração entre um público menos restrito e consolidou-se como

um marco da filmografia documentária norte-americana. No filme, McElwee parte em

busca de um novo relacionamento amoroso em meio a meditações e reflexões acerca da

Guerra Civil norte-americana, estabelecendo uma relação alegórica entre sua própria

personalidade e a do general William Tecumseh Sherman. O general encabeçou o

episódio da “Marcha para o Mar”, liderando o Exército da União na devastação e

destruição do território de diversos Estados do Sul dos Estados Unidos, finalmente

forçando o Exército Confederado à rendição. Apesar do sucesso dos objetivos de sua

campanha, as atitudes de Sherman revelam uma personalidade complexa e dúbia. Sua

figura pública teria sido marcada na História não apenas pela repreensão que obteve da

população sulista, mas também pelo descrédito recebido pelas autoridades políticas da

União. Sherman foi acusado de oferecer termos de rendição demasiadamente generosos

ao exército confederado, sendo considerado complacente em relação aos inimigos.

O diretor tem uma ligação pessoal com o território devastado por Sherman. Tendo

nascido na Carolina do Norte, McElwee é um genuíno cidadão sulista, apesar de ter

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mudado para a região da Nova Inglaterra, no nordeste dos EUA, ainda quando

universitário. Em Sherman’s March, sob o pretexto de realizar um documentário

elucidativo a respeito do episódio da “Marcha para o Mar” e das marcas deixadas por ele

na sociedade sulista contemporânea, o diretor parte para uma road trip munido de sua

câmera, passando por muitos dos lugares destruídos pelo general na campanha. A

motivação existencial da jornada de McElwee, entretanto, divide-se também em um

incidente de ordem emocional: o recente término de um relacionamento amoroso. Com a

separação, o diretor abre-se à busca de um envolvimento afetivo através do

reestabelecimento do contato com mulheres que passaram por sua vida anteriormente e

fazendo da câmera um instrumento de aproximação com novas pretendentes. A interação

de McElwee com as pessoas que encontra pelo caminho, entretanto, também produz e

entrega conhecimento acerca da herança deixada pela Guerra Civil e pela figura de

Sherman mais de cem anos após o episódio, como também revela a faceta emocional

fragilizada do diretor naquele momento de sua vida. A originalidade apresentada na

narrativa da suposta jornada fracassada de McElwee pelo Sul dos Estados Unidos fez com

que Sherman’s March conquistasse um lugar na história do documentário estadunidense.

O filme, pelo qual o diretor ainda é mais frequentemente lembrado, apresenta

características narrativas, estilísticas e temáticas que farão parte de sua autoria como

documentarista. Sherman’s March introduziu propriamente uma carreira que contou com

seis longas-metragens produzidos e lançados desde então, sendo que estes filmes se

remetem de maneiras vívidas aos principais propósitos artísticos de McElwee que

compõem a narrativa lançada em 1986.

A principal particularidade da obra de Ross McElwee, inaugurada em formato

longa-metragem por Sherman’s March, é maneira através da qual o diretor consolidou

uma carreira inteira calcada em narrativas documentárias que apresentam aspectos

autobiográficos e de escrita sobre si bem demarcados. Em uma das sessões de entrevistas

realizadas com McElwee para esta pesquisa, questionou-se se o diretor havia planejado

de alguma maneira consciente, no início de sua carreira, que seus filmes explorassem

tematicamente aspectos de sua vida individual por décadas a fio. McElwee responde

negativamente. Diz que à época da feitura de seu primeiro filme, não teria como saber

que este seria seu métier, mas que agora seria tarde demais para mudar, mesmo que ele

quisesse. A resposta de McElwee parte de um tom cômico, como se o fazer fílmico

autobiográfico no presente momento tenha se tornado mais forte do que sua própria

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vontade. Mesmo que este não seja exatamente o caso, não é equivocado afirmar que existe

uma relação particular entre a carreira do diretor enquanto documentarista e sua vida

individual que faz com que este questionamento seja passível de reflexão. Se em 2016

McElwee dirigisse e lançasse um documentário que abrisse mão de aspectos de

autorrepresentação e da construção de uma narrativa de teor autobiográfico, é possível

vislumbrar que o ato causaria uma reação tanto de perplexidade quanto, possivelmente,

de desapontamento na comunidade de cinéfilos e pesquisadores que seguem seu trabalho

de perto. Mais do que outras características, o aspecto definidor de sua carreira reside na

maneira através da qual o diretor engajou-se em um trabalho contínuo de tematização

autobiográfica filme-após-filme, em um movimento que dura mais de três décadas. Desde

1984, McElwee nunca realizou um filme em que sua própria figura e/ou eventos de sua

vida individual (em uma esfera social, familiar, de trabalho, matrimonial ou parental) não

tivesse papel preponderante na narrativa. Além disto, o trabalho de construção

autobiográfica nos filmes não se encerra em cada um deles – apesar de assim também

funcionarem. A potencialidade da relação entre vida e filme, no caso de McElwee, reside

no fato de que sua carreira se constrói a partir de um processo autobiográfico contínuo,

que é ampliado a cada filme lançado pelo diretor.

Inicialmente tida como uma abordagem menos pretensiosa, como afirmado pelo

diretor, a atividade de filmar as pessoas próximas de si e eventos importantes no

desenvolvimento de sua vida ocupa parcela significativa de sua adultez. Tomando o

lançamento de Backyard (primeiro filme deste ciclo) como ponto de partida, em 1984

(apesar de filmado ainda em 1977), até o lançamento de seu último filme, Photographic

Memory, em 2011, consideramos que há pelo menos vinte e sete anos os filmes de

McElwee passam por um trabalho de construção autorrepresentativa que traz à arena

pública da tela de cinema aspectos de sua personalidade e eventos de sua vida privada,

bem como das pessoas mais próximas de si, de diferentes maneiras. A partir do material

que o diretor nos oferece em seus filmes, produz-se um tipo de conhecimento que gravita,

em grande parte, ao redor de sua vida como indivíduo que ocupa singularmente o mundo,

da mesma forma que nós também o habitamos. Em seus filmes, McElwee lida

tematicamente com aspectos que apontam para transformações que ocorrem em sua vida

fora das telas, sobrepondo, portanto, a narrativa de sua vida extrafílmica com a narrativa

criada por seus filmes e por sua carreira.

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De Backyard a Photographic Memory, somos testemunha do início de sua

atividade como artista, um pouco desnorteada, sob os olhos de uma família conservador-

republicana de médicos da Carolina do Norte. Assistimos à sua consolidação como

documentarista, seu matrimônio e o início de sua família, com o nascimento do primeiro

filho. Tomamos ciência da morte repentina de sua mãe, ocorrida ainda antes do início do

interesse do diretor pelo cinema, seguida pela morte também repentina de seu pai, dez

anos depois. Entramos em contato com o afastamento gradual do cineasta de sua terra

natal (a Carolina do Norte e, de maneira mais ampla, do Sul dos Estados Unidos) a partir

do estabelecimento de sua família no “frio e populoso” Norte. Assistimos aos trâmites do

processo de adoção de sua segunda filha, em uma viagem realizada pela família McElwee

ao Paraguai. Testemunhamos o crescimento de seu filho e o consequente distanciamento

entre o diretor e ele, no momento em que este atinge a vida adulta. Finalmente, assistimos

ao momento em que McElwee reconhece seu envelhecimento e a chegada à maturidade.

Em uma sequência de Photographic Memory, filmando em close seu próprio rosto e

examinando-o, McElwee comenta: “Como pude ficar tão velho?”. Cada documentário

lançado pelo realizador, portanto, admite uma análise aprofundada enquanto narrativa

construída através de uma intenção e de uma ótica autobiográfica – em outras palavras,

cada filme apresenta uma narrativa fechada em si própria (com começo, meio e final),

que assim foi pensada pelo diretor. Entretanto, parece impossível não ceder à noção de

que um estudo sobre McElwee e sua carreira requer um olhar que enxergue os filmes

também considerando o forte senso de unidade autoral suscitado por eles. A ideia de um

processo autobiográfico contínuo, ampliado e complexificado em cada um dos filmes

deve ser sustentada. Da mesma forma, existe um jogo delicado com a temporalidade que

engaja o entendimento de seus filmes em uma imbricada teia de passado, presente e futuro

e que deve ser considerado de perto.

Em seus filmes e, consequentemente, ao longo destas três décadas, McElwee nos

reporta que o ato de filmar vai tomando gradualmente uma dimensão mais complexa em

sua vida, de maneira que esta atividade se incorpora à sua experiência de habitar o mundo

dia após dia. Seja a partir do registro de momentos cotidianos, repetíveis e banais, ou da

filmagem de eventos singulares, irrecuperáveis, intensos ou traumáticos, a câmera torna-

se um instrumento sobre qual existe a sensação de que o realizador nunca está totalmente

desvencilhado. Em relação a estes momentos, “trechos de vida”, cristalizados por

McElwee em imagem e som, há o vislumbramento de que eventualmente eles poderão

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integrar alguma de suas narrativas fílmicas, seja em um futuro próximo ou depois de duas

décadas. O diretor nos mostra em seus filmes que durante estes anos a câmera tornou-se

para si um artefato precioso, podendo com ela lidar com o luto resultante do falecimento

de seu pai e outros entes queridos, em uma tentativa de tornar a morte “palpável” em

celuloide (Time Indefinite), ou mesmo um instrumento ao qual recorre para obter uma

experiência quase narcótica, análogo ao que faz um fumante em relação ao vício do tabaco

(Bright Leaves). Em sua análise sobre a obra de McElwee, o autor Josep María Català

reconhece uma “amargura” sempre presente em seus filmes, de maneira que o diretor se

sente obrigado a contemplar as pessoas e o mundo à sua volta, através da lente da câmera,

mesmo em seus momentos mais íntimos e privados (CATALÀ, 2008, p. 106). Català

sugere: “A câmera que McElwee constantemente carrega consigo parece ser, em algumas

ocasiões, uma penitência que algum deus sombrio impôs sobre ele e que ele se sente

obrigado a cumprir para alcançar algo que continuamente o escapa” (2008, p. 106-107).

Seja pelo prazer narcótico, pela arte ou pelo fardo da representação imposta por um deus

sombrio, portanto, talvez não esteja tão distante da verdade a constatação, realizada pelo

diretor, de que não poderia fazer outro tipo de filme atualmente, mesmo que quisesse.

A jornada autobiográfica de McElwee começa ainda na década de 1970, no

período em que o diretor foi aluno do MIT Film Section, de 1975 a 1977. O cinema não

foi, entretanto, sua primeira escolha de carreira artística. O realizador passou sua infância

e juventude em Charlotte, capital da Carolina do Norte, envolto por uma família de

praticantes da medicina. Tanto seu avô quanto seu pai tinham carreira médica, tradição

que também foi posteriormente seguida por seu irmão mais novo – Backyard, seu

primeiro filme autobiográfico, narra justamente os momentos que antecedem a saída do

irmão do lar da família, rumando à faculdade. McElwee, entretanto, desviou-se do

caminho predestinado e nutriu desde cedo interesse pelo trabalho criativo. Interessou-se

primeiramente pela escrita, tendo a ambição de tornar-se romancista. Este interesse

determinou a escolha de seu curso de ensino superior. Ainda na década de 1960, o

realizador deixa o Sul dos Estados Unidos e muda-se para a região da Nova Inglaterra.

Ingressa no curso de Escrita Criativa (Creative Writing) da universidade Brown

(Providence, RI), onde forma-se com um diploma de Bacharel em 1971.

Na universidade, McElwee desenvolve interesse pela escrita não-ficcional e

começa a manter um diário escrito, prática que o acompanhou mesmo após o término da

faculdade. Em seu documentário de 2011, Photographic Memory, o cineasta nos mostra

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alguns dos diários de juventude, escritos durante a viagem à França que realizou em um

período sabático e que é o mote temático do filme. A atividade diarística dava vazão ao

impulso autobiográfico e revelou-se de maneira premente em sua obra cinematográfica.

Nesta, evidencia-se o trato de McElwee com a escrita literária, porém na forma de sua

narração em over. Em um dos textos que McElwee escreve a respeito de sua própria obra,

o diretor aponta: “O diário parecia me fornecer, de alguma forma obscura, uma

perspectiva a respeito de minha própria vida e também uma turva validação dos eventos

que a compunham.” (McELWEE, 2005, p. 2)46.

Desde o momento, portanto, para McElwee a validação da “experiência vivida”

estaria vinculada, de alguma forma, à sua transposição em linguagem. O interesse pela

cristalização de momentos vividos e sua transformação em narrativa encontrou terreno

fértil em ferramentas como a câmera e o gravador de som, no cinema documentário e na

forma metodológica do cinema direto. Seu primeiro contato com este tipo de produção

também ocorreu na universidade, em sessões de filmes como Titicut Follies (1968), de

Frederick Wiseman, e Primary (1960), de Robert Drew. McElwee relata a forte impressão

deixada pelos filmes, que trabalhavam com a narrativização da realidade de uma maneira

“simples e rústica” (2005, p.3). A estes filmes aliou-se a experiência que o realizador teve

ao assistir A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), de Orson Welles, na Cinemateca

Francesa. A partir da narrativa sombria e pessimista do filme, McElwee reconheceu o

cinema como forma capaz de transmitir uma voz autoral (neste caso, a de Welles),

conferindo a ele uma sensação totalmente distinta do tipo de cinema Hollywoodiano que

assistia enquanto jovem na Carolina do Norte. Decidido a estudar cinema, o diretor teve

conhecimento (MACDONALD, 2014, p. 149) do curso que estava sendo desenvolvido

no MIT Film Section a partir das entrevistas dadas por Richard Leacock e Ed Pincus na

publicação de G. Roy Levin (LEVIN, 1971), constatando que claramente havia um

experimento interessante acontecendo lá, do qual gostaria de fazer parte.

Como explicitado no capítulo anterior, o MIT Film Section reuniu um grupo de

cineastas e professores que pensavam o desenvolvimento do documentário moderno

46 Este texto partiu de uma publicação escrita por Ross McElwee para a revista Trafic em 1995, em que fala sobre sua formação e sobre seus filmes até o momento. Trata-se de um dos poucos textos, excetuando-se entrevistas, em que McElwee fala sobre sua própria carreira. Em 2005 o diretor escreveu um adendo a este texto original, em que disserta acerca de produções lançadas nos dez anos após a publicação na Trafic. Este novo texto (que contempla os dois momentos) está disponível no website do diretor.

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estadunidense a partir de inovações metodológicas e tecnológicas, regidos por uma

ideologia pós-1968 que trouxe novas preocupações à produção midiática do período.

Havia por um lado a “ressaca” de um primeiro momento do cinema direto, cuja pretensão

de retratar o mundo narrativamente a partir de uma ótica de objetividade era

vigorosamente questionada. Estudavam-se processos de interação e de autorreflexividade

da figura do cineasta como pontos de apoio da construção narrativa. Ainda assim, o grupo

do MIT Film Section engajava-se diretamente com a tradição do cinema direto

estadunidense e a “Sensação de Estar Lá” apresentada nos filmes de Robert Drew,

Richard Leacock, Ed Pincus e Frederick Wiseman, fomentada a partir de um registro

paciente da realidade e um vínculo indissociável com a captação da tomada imagético-

sonora sincrônica.

As experiências fímicas de McElwee realizadas durante o período do MIT Film

Section remetem a este ínterim conceitual. O cineasta aponta que a produção do

departamento foi uma das principais responsáveis por uma espécie de “contra-

movimento” em relação ao início do cinema direto do qual o próprio Richard Leacock,

um dos tutores do departamento, também participava. McElwee sustenta (McELWEE,

2005, p. 4) que Leacock dava sinais de ter perdido o senso de “aventura” relativo ao

cinema direto. Após muito tempo dedicado a filmar personalidades e eventos importantes

para a História, como John Kennedy e Igor Stravinsky, Leacock estaria neste momento

voltando-se para uma possibilidade mais excêntrica deste tipo de cinema, com o registro

de atividades cotidianas e mais próximas de si próprio, a partir de uma ótica “caseira”.

Neste sentido, McElwee cita ter entrado em contato no período com o filme A Visit to

Monica47, dirigido e filmado por Leacock, uma pequena narrativa desenvolvida a partir

de uma visita que o cineasta fizera à filha de Robert Flaherty, Monica Flaherty, no interior

do estado de Vermont.

Para além de Leacock, a passagem de McElwee pelo MIT foi marcada pelo

contato com outros cineastas que influenciaram suas produções no departamento. O

realizador ressalta a visita de Jean Rouch ao MIT, para exibição de seus filmes (entre eles,

Chronique d’un été), que, ainda em 1960, dava indícios de subverter a ordem de um

cinema etnográfico “observativo”, como era praticado até então (McELWEE, 2005, p. 4).

Houve também o contato com a produção de Alfred Guzzetti, que já lecionava na

47 Aparentemente este filme não foi lançado, visto que não integra a filmografia oficial do diretor.

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universidade Harvard e a quem McElwee posteriormente se juntaria no corpo docente do

departamento VES. McElwee recorda-se de ter assistido no período ao documentário

Scenes from Childhood48, dirigido por Guzzetti. Como já citado, o filme de Guzzetti é

filmado dominantemente a partir de um recuo observativo da câmera e demonstra rigor

no trato com a paciência para o registro do cotidiano das crianças em seus momentos mais

singulares. O realizador ressalta justamente este tipo de característica, ao sublinhar que o

filme apresentava “atenção e reverência ao detalhe mundano da vida cotidiana. Ele eleva

o mundano a uma condição quase mística” (McELWEE, 2005, p. 5). Jeff Kreines, técnico

do MIT Film Section no período, é outro cineasta cuja influência frequentemente é

ressaltada por McElwee. Kreines, também já citado, é diretor de The Plaint of Steve

Kreines as recorded by his younger brother Jeff (1974) e foi o responsável por

desenvolver a metodologia de captação autossuficiente de imagem e som sincrônicos (que

Ed Pincus aperfeiçoou, escreveu sobre, e denominou “equipe de uma pessoa só”).

Entretanto, o contato com Ed Pincus teria sido decisivo para que McElwee

considerasse trabalhar narrativamente com a ideia de autobiografia aplicada ao cinema

documentário. Ainda que Diaries (1971 – 1976) tenha sido finalizado apenas no início da

década de 1980, ou seja, após Ross McElwee formar-se no MIT, o diretor constata ter

assistido trechos da experiência nas aulas ministradas por Pincus (McELWEE, 2012). O

realizador enxerga em Diaries a ternura no que toca a exploração do cotidiano da família

Pincus como eixo temático em potencial e cuja transposição acontece em uma narrativa

autobiográfica. Muitas das principais preocupações de McElwee enquanto

documentarista estão presentes no diário filmado de Pincus: a revelação do cotidiano

familiar como uma experiência complexa e transcendente, um gosto pela análise de

relações geracionais, como da relação entre pais e filhos, o apreço pela tematização da

passagem do tempo como ponto temático forte, e, finalmente, a metodologia do cinema

direto de uma-pessoa-só para o registro imagético-sonoro sincrônico aplicado a uma ótica

de autobiografia fílmica.

48 Em seu relato, McElwee aponta que teria assistido ao filme de Guzzetti em seu primeiro ano de MIT, isto é, em 1975. Ao que consta, Scenes from Childhood não teria sido lançado por Guzzeti até 1979. 1975 é a data do lançamento de seu primeiro filme autobiográfico, Family Portrait Sittings. Este trecho do relato de McElwee foi escrito à ocasião de um pedido da revista francesa Trafic em 1995. Como trata-se de um escrito em retrospecto, de lembrança, resta a dúvida se o diretor teria porventura cometido um lapso ao asserir que assistiu ao filme de Guzzetti ainda em 1975.

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Apesar de todas estas características, McElwee relata que assistir ao filme de

Pincus instigava o desejo de poder ter acesso aos sentimentos interiores de seu criador,

suas meditações e reflexões a respeito dos eventos pelos quais passava e que estava

filmando (McELWEE, 2005, p.5). O cinema direto, conforme mostra a experiência de

Pincus, seria uma ferramenta poderosa no que diz respeito à possibilidade de escrever

autobiografia “no momento presente”: ser/estar e, ao mesmo tempo, registrar

cinematograficamente o que os olhos veem e os ouvidos escutam. Pincus aposta na

interação de si próprio com seus pares, no momento da tomada, como uma via de acesso

à interioridade de sua consciência no momento presente da filmagem – mais como um

ser em sua atividade dialógica em uma situação mundana e menos como um ser em sua

atividade de expertise intelectual. Para McElwee, a peça faltante residia em uma maneira

de expressar narrativamente este aspecto “interior”, reflexivo e analítico, de modo tão

instigante quanto a metodologia do cinema direto possibilitou o registro exterior de sua

vida. Em Backyard, que pode ser considerado o primeiro filme de sua carreira

autobiográfica, o cineasta realizou a primeira experiência com a voz over como via de

acesso a este outro registro de performance autobiográfica. Nas palavras de McElwee:

Filmar a realidade tão cruamente, sem a mediação do acesso às

reflexões do cineasta a respeito daquilo que está sendo filmado, tinha o

resultado de objetificar uma experiência pessoal que naturalmente

aparentava almejar uma interpretação subjetiva. Para mim, teria de

haver uma maneira em que a presença objetificante da câmera poderia

ser fundida com a perspectiva subjetiva do cineasta que a segura. O

“auto” por detrás da autobiografia tinha de ser encarnado. Tinha de sair

de seu esconderijo. (McELWEE, 2005. Tradução Nossa.)

Com efeito, McElwee fez da voz over um pilar narrativo de sua carreira

autobiográfica, lançando mão deste elemento em todos os seus filmes a partir de

Backyard. Parte significativa do estilo pelo qual se tornou reconhecido reside no trabalho

com o “texto” que os filmes do diretor engajam. O cineasta narra seus filmes a partir de

uma fluida escrita em primeira pessoa, permeado por um tom meditativo, no qual lança

seus questionamentos em relação ao eixo temático particular de cada um dos filmes. Se a

metodologia de filmagem proposta por McElwee em seus filmes evoca uma sensação de

indeterminação e de abertura para o acaso, sua narração em over tem exatamente o efeito

inverso. Há um esforço meticuloso no qual trabalha palavras, tempos e frases em suas

narrações. Em diversas de suas entrevistas o diretor afirma que a escrita da narração em

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over é o trabalho mais exaustivo de seu processo criativo, tendo de passar por inúmeras

provas e revisões antes de sua aprovação e finalização. A importância da narração em

over de seus filmes é grande, sendo difícil delimitar exatamente sua função em cada uma

das narrativas. É possível sugerir que os filmes do diretor se tornam seus a partir de um

vínculo indissociável, orgânico, desta característica em relação ao estilo que desenvolveu.

Um dos aspectos mais interessantes da voz de McElwee é o contorno

autoquestionador, interrogativo, no qual o diretor promove o benefício da dúvida acerca

tanto de aspectos de sua vida individual quanto da própria construção cinematográfica a

que estamos assistindo. Há um movimento entre o interior e o exterior, encadeado pelo

fluxo de pensamentos de McElwee e construído cinematograficamente, que alguns

autores reconhecem a partir de um movimento “ensaístico”. Um deles é o autor Alberto

Nahúm García, que sublinha:

Todas as divagações de McElwee são entrelaçadas com suas dúvidas,

suposições e repetições, de uma maneira em que somos apresentados a

uma argumentação que está sendo feita e corrigida diante da câmera ao

mesmo tempo em que o autor o apresenta. Trata-se da característica de

transparência de qualquer ensaio, onde o enunciador coexiste junto a

seu texto. (GARCÍA, 2008, p.76. Tradução Nossa.)

Em outras palavras, nos filmes de McElwee há um processo constante de

apresentação da trilha de seu pensamento em relação a algo que, no limite, ele mesmo

está tentando descobrir. Não é incomum nos filmes do diretor que o texto de sua voz over

apresente expressões vacilantes como “eu não sei exatamente, mas” ou “não tenho

certeza”. Efetivamente, é possível ver em seus filmes uma abertura, ou explicitação, do

próprio processo de aprendizado acerca de determinado assunto. Para o autor Phillip

Lopate, que também enxerga no diretor a “alma” dos ensaístas, este estilo literário rastreia

os pensamentos de uma pessoa à medida em que esta tenta desatar um “nó mental”, ou,

mais precisamente, um ensaio é “uma busca a fim de que se descubra o que uma pessoa

pensa sobre algo” (LOPATE, 1996, p.245). A sensação de fluidez evocada pela fala em

primeira pessoa do diretor engaja também um aspecto de “livre associação” na qual a

individualidade analítica, pensante, de McElwee é pivô. A autora Dominique Bluher

(2008, p. 142) assere que McElwee seria um dos partidários da “montagem horizontal”,

termo cunhado por Andre Bazin em relação à montagem de Chris Marker em Carta da

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Sibéria (1958), que funcionaria “do ouvido para o olho”, da fala para a imagem. Com

efeito, McElwee expressa em inúmeras entrevistas a influência que o trabalho de Marker

– em especial, Sans Soleil – teve em seus filmes. Sua aproximação com o universo francês

do fazer cinematográfico traz algum balanço à tradição vérité estadunidense com a qual

McElwee igualmente se relaciona. Em uma entrevista, o realizador menciona Dominique

Cabrera, Agnès Varda, Alain Cavalier e Claire Simon como os cineastas franceses que

ele “particularmente gosta” (BUI, 2014). A autora Diane Stevenson assere que McElwee

“é, de fato, um escritor”, estendendo a noção de “escrita” em sua obra não apenas ao trato

com a palavra em si, mas a um sentido semelhante ao da “montagem horizontal” sugerido

por Dominique Bluher: “a escrita é precisa e também elegante – não apenas a escrita da

narração em over, mas o arranjo das coisas em sequência, que também é uma espécie de

escrita” (STEVENSON, 2009. p. 66).

É, de fato, interessante a relação que se faz entre o sistema simbólico das palavras,

no que diz respeito à importância deste raciocínio na construção narrativa de McElwee.

O esforço do diretor com este universo criativo, o da “escrita”, apresenta-se como parte

fundamental da “cola” que liga as imagens do cineasta ao entendimento de que estamos

diante sua individualidade ao assistir aos filmes. A cineasta francesa Claire Simon ressalta

este ponto de vista, asserindo que McElwee “é o único romancista no universo do cinema.

Ele vem filmando por tanto tempo que ele pode ir para o passado, pode ir para o presente

e talvez possa ir para o futuro. Ele tem todos os tempos (tenses) que um romancista tem

e que um cineasta não tem.” (DU GRAF, 2017). A relação de McElwee com o universo

da escrita mais frequentemente apontada é a comparação feita de si com Michel de

Montaigne, cujos Ensaios introduzem propriamente esta noção literária, ainda no século

XVI. Alberto Nahúm Garcia sustenta que “O espelho intelectual de McElwee poderia ser

um ensaio de Montaigne transformado em imagens” (2008, p. 72). Phillip Lopate sugere

que “McElwee chega à mesma consciência libertadora que também tinha o grande

Montaigne: a saber, tudo está conectado entre si, se de nenhuma outra maneira, então a

partir da mente do ensaísta” (LOPATE, 2003). Charles Warren coloca que “ao ler

Montaigne ou, para mim, ao assistir um filme de McElwee, entra-se não em um mundo

de fuga, mas abre-se para uma sequencia de surpresas puramente deliciosas” (WARREN,

2009, p. 92). Timothy Corrigan aponta que “para ensaístas como McElwee, o cinema é

parte das histórias públicas e dos lugares sociais, em que a questão final retorna como

uma questão a ser pensada” (CORRIGAN, 2015, p. 32-33) Corrigan compara uma cena

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ao final de Bright Leaves, com uma passagem do escritor francês: “Como a libertação do

peixe pelo filho e o diálogo imaginário de Montaigne com Étienne de la Boétie, o eu

ensaístico invariavelmente é desfeito em um mundo em expansão de reflexão contínua e

mutante” (CORRIGAN, 2015, p. 33). Para Dominique Bluher, “como Montaigne,

McElwee é o material de seus filmes, tanto sujeito quanto objeto de conhecimento”

(BLUHER, 2008, p. 148). O extrato mais fundamental das comparações de McElwee com

Michel de Montaigne parece residir na maneira através da qual ambos transitam entre o

simples e o complexo, o privado e o público, o particular e o univesal, e o individual e o

coletivo a partir de uma perspectiva narrativa que reconhecemos como própria à expertise

intelectual dos escritores. É interessante o consenso dos críticos, ao enxergar que

McElwee nos apresenta o pêndulo entre interior e exterior de maneira fluida e satisfatória,

tal como faz Montaigne e tantos outros bons escritores de não-ficção – sejam eles

reconhecidos como ensaístas ou autobiógrafos – cujas obras contemplam ambos os

aspectos.

Há ainda outros elementos cujas recorrências sublinham a necessidade de

olharmos para a carreira de McElwee de maneira longitudinal. Um dos elementos

explorados pelo diretor e que é frequentemente remetido à sua obra artística é a relação

estabelecida com o Sul dos Estados Unidos, tanto de uma maneira temática quanto

narrativa. Mais do que apenas uma divisão geográfica, compreende-se que o “Sul” dos

Estados Unidos (“American South”, “The South”) é um território marcado pelos

costumes, cultura, culinária, relações sociais e uma história particulares dentro do

território estadunidense. Ou, ao menos, diferente o suficiente da “elite” cultural,

intelectual e política – o “berço” da democracia - relacionada à região da Nova Inglaterra

(Connecticut, Maine, Massachusetts, New Hampshire, Rhode Island e Vermont), no

Nordeste nos Estados Unidos, onde McElwee passa a residir permanentemente desde o

início de seus estudos universitários, no final da década de 1960.

Explorar o Sul e o imaginário relativo a ele é parte fundamental dos filmes do

cineasta, em diferentes níveis. Na introdução de Backyard, primeiro de seus filmes

realizados sob uma ótica propriamente autobiográfica, o diretor afirma na narração em

over: “Peguei emprestado uma câmera e voltei para casa, a fim de fazer um filme sobre o

Sul. O que, para mim, significava fazer um filme sobre minha família.”. Em 1977,

McElwee terminou o mestrado no MIT Film Section e entregou como dissertação um

relatório a respeito dos três documentários que filmou durante o curso – Charleen

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(lançado em 1979), Space Coast (1980) e o citado Backyard. Os três filmes têm em

comum o fato de terem sido filmados no Sul, ao que constata McElwee: “Os três filmes

refletem meu desejo de retornar eventualmente para o Sul, onde eu continuarei a filmar.”

(McELWEE, 1977. p. 4).

McElwee efetivamente realizou aquilo que se propôs ainda no início de sua

carreira, visto que a maior parte de seus filmes tematizam a necessidade do diretor de

periodicamente estar presente, fisicamente, de volta ao Sul, seja no estado da Carolina do

Norte ou em outras localidades. A maior parte de suas narrativas orientam-se localmente

pela região, seja como ponto de origem, de chegada ou de passagem. O Sul é o local onde

passou sua infância, adolescência e início de sua vida adulta, bem como estabeleceu boa

parte de suas relações familiares e a partir de onde desenvolveu seu ponto de vista sobre

diversos assuntos. Backyard tematiza as relações cotidianas do lar dos McElwee, em

Charlotte, e aquilo que se passa ao redor da casa. Sherman’s March constitui-se como

uma jornada por localidades devastadas pela Guerra Civil em diversos estados do Sul,

realizando um panorama de diversos aspectos de sua sociedade contemporânea. Time

Indefinite propõe diversas voltas ao Sul em um período de sete anos da vida de McElwee,

marcado por episódios emocionalmente turbulentos. Bright Leaves inicia sua narrativa a

partir da necessidade do diretor de sua “transfusão periódica de ‘Sulice’”, desdobrando-

se em uma ida à Carolina do Norte e ao desenvolvimento de um paralelo entre a economia

do tabaco e a história de sua família.

Para além da possibilidade de retratar imageticamente espaços e paisagens do Sul,

bem como o comportamento de alguns de seus habitantes, através de imagens e sons, as

narrativas cinematográficas de McElwee buscam tocar em pontos temáticos

determinantes da História e cultura sulistas. O exemplo máximo destes pontos é a Guerra

Civil americana, cujos desdobramentos e heranças para o território e seus habitantes são

explorados em diversas de suas nuances na narrativa de Sherman’s March. A Guerra Civil

teve poder definidor no que diz respeito à identidade da população e de sua relação com

o território, sendo uma das temáticas mais recorrentes de sua literatura e dos autores do

Sul desde o século XIX até a contemporaneidade. Segundo o historiador e novelista

sulista Shelby Foote, “A Guerra Civil nos definiu como aquilo que somos (...) e nos abriu

para aquilo que nos tornamos – coisas boas e ruins... Foi a encruzilhada do nosso ser”

(apud RUST, 2002, p. 155).

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Desde a questão da escravidão – como principal deflagradora do processo de

tentativa de separação dos estados Confederados e, subsequentemente, da Guerra Civil –

até a segregação racial observada nos estados e, posteriormente, o movimento pelos

Direitos Civis na segunda metade do século XX, as complexas relações em diferentes

épocas entre negros e brancos no Sul estadunidense também é um tópico dominante do

imaginário sulista e parte integrante de sua cultura, sobretudo na literatura, tanto no

domínio do romance quanto da não-ficção. Este é outro exemplo de tema relativo à

história do Sul que é trabalhado por McElwee em diversos de seus filmes. A reflexão está

imbuída na narrativa de Sherman’s March ou, em um nível mais próximo de sua própria

vida, na relação de trabalho estabelecida pelo casal Melvin e Lucille – empregados por

muitas décadas no lar dos McElwee, sobre quem o diretor reflete primeiramente em

Backyard mas que reaparecem em vários outros de seus filmes. A cultura de tabaco

própria da Carolina do Norte e de outros estados do Sul é tematizada como aspecto

econômico do território em Bright Leaves, de cuja história a própria família McElwee

teria feito parte, ainda no século XIX. Outro exemplo é uma certa tendência sulista ao

conservadorismo, retratada por McElwee nos filmes tanto em uma dimensão política

(como quando diante do republicanismo de seu pai, ou ao isolacionismo redneck dos

sobrevivencialistas em Sherman’s March), quanto em um elo forte entre o Sul e a

religiosidade católica ou protestante, também tematizada pelo diretor em diversos de seus

filmes.

A exploração temática do território vai desde o resgate de fatos históricos, de suas

práticas econômicas e de costumes, mas também no que concerne o imaginário dos

comportamentos (estereótipos) com os quais os habitantes do Sul são frequentemente

relacionados. Um destes exemplos é o certo estereótipo macho que entrecorta asua

jornada em Sherman’s March. Para além disto, entretanto, o desejo de McElwee de filmar

narrativas total ou parcialmente a respeito do Sul – e, também, a partir de sua própria

condição de “sulista” – diz respeito à sua identificação com uma abrangente tradição

literária de autores advindos do território, a “Southern Literature”. Especialmente no

século XX, do modernismo da Southern Renaissance ao presente, escritores com carreiras

relevantes e de forte veia autoral foram relacionados a este fenômeno, como William

Faulkner, Allen Tate, Thomas Wolfe, Flannery O’Connor, Tennessee Williams, Eudora

Welty e Walker Percy. Estes autores frequentemente utilizam-se do Sul em diferentes

nuances, como as que mencionamos acima, nas suas estórias, mas também foram

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responsáveis por aglutinar elementos estilísticos e narrativos que um olhar externo (como

do “Norte”) reconhece como próprio da região – uma espécie de Southern Storytelling de

cuja fonte McElwee bebeu e a que seus filmes também são por vezes relacionados.

O imaginário acerca da literatura sulista é um ponto de referência nos filmes do

diretor. Neste sentido, um dos pontos mais evidentes entre a noção de Southern

Storytelling e a carreira de McElwee é a maneira através da qual o diretor trabalha a noção

de humor nas narrativas. Como aponta M. Thomas Inge, alguns dos aspectos principais

do humor na literatura moderna sulista envolvem a construção de narrativas anedóticas a

respeito da experiência sulista, não sem um tom de absurdo, transformando-as em fábulas

que refletem sobre os fracassos e desilusões da natureza humana em sua forma mais

adversa. Segundo o autor para estes novelistas a cultura sulista “serve em suas mãos como

um paradigma para a absurdez da vida em todos os cantos da nação – exceto pelo fato de

que em sua versão sulista, ela se depara com o riso ao invés de com o desespero. ” (INGE,

2002. p. 361).

Com efeito, há um elemento jocoso que perpassa a maioria dos filmes de

McElwee, principalmente no que concerne a construção de sua própria persona com um

aspecto evidente de quixotismo e de auto-depreciação. É o caso de sua apresentação como

um jovem artista que ainda não encontrou o sucesso, em Backyard, frente às investidas

contrárias de seu pai conservador. Ou a própria jornada absurda de McElwee pelo Sul em

Sherman’s March, que envolve uma alegoria delirante entre si próprio e o general

Sherman, bem como o encontro casual com um sósia de Burt Reynolds (e o próprio ator,

posteriormente), símbolo da masculinidade sulista, que é anteposta a seus fracassos

amorosos. Em outra faceta desta característa há a crença infundada de que seu bisavô teria

sido a inspiração para o papel de Gary Cooper em um filme hollywoodiano, como vemos

em Bright Leaves, que é o combustível existencial da jornada de McElwee na narrativa.

Finalmente, ainda, há os diversos momentos em que as coisas simplesmente “dão errado”

em seus filmes, tanto em um nível técnico quanto narrativo. De certa maneira, portanto,

o aspecto anedótico que é relacionado ao humor sulista parece transpor-se à maneira que

McElwee apresenta a si próprio ao longo dos filmes, também evidenciando uma

aproximação sua com a produção de seu território natal.

As características aqui destacadas revelam-se como algumas das possibilidades de

estudos aprofundados que poderiam ser conduzidos em relação aos filmes de McElwee.

O foco das análises desta pesquisa concentra-se na maneira através da qual o realizador

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constrói a noção de autobiografia em seus filmes. Engajando aspectos estilísticos e

temáticos, o objetivo é o de expor como esta noção complica-se em sua carreira, a partir

de sua consideração contínua, engajada a cada filme lançado. A temporalidade desta

característica apresenta-se como um dos aspectos mais particulares da proposta

autobiográfica dos filmes do diretor. A apresentação dos filmes de maneira cronológica,

nas análises, revelou-se como a melhor possibilidade de contemplar a evolução da

construção autobiográfica de sua carreira. Buscamos evidenciar como este aspecto torna-

se mais complexo com o lançamento de cada um dos filmes, emulando também seus

desdobramentos nos filmes posteriores.

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3.2. Do Cinema Direto à Autobiografia: Space Coast (1979), Charleen (1979) e

Backyard (1984)

A jornada autobiográfica de McElwee inicia em sua passagem pelo MIT Film

Section. Seus primeiros filmes foram realizados a partir da “cartilha” do departamento,

inserindo-se como estudos da metodologia do cinema direto. Durante o período no MIT,

McElwee pôde filmar material para três de seus primeiros documentários, Space Coast,

Charleen e Backyard. A condição de aluno regular do MIT permitia-o um acesso

facilitado ao equipamento de filmagem que julgava não poder custear após o término do

curso. Por este motivo, McElwee aponta sua “paranoia” (MACDONALD, 1988) em

filmar o máximo que podia durante o período, para diferentes projetos, com a esperança

de editá-los posteriormente.

Um destes projetos é Space Coast, finalizado após a formatura de McElwee no

departamento, realizado juntamente com o aluno/cineasta Michel Negroponte, que

colabora com realizador também em Charleen. Trata-se de um registro vérité de três

residentes do Cabo Canaveral, na Flórida, conhecido pelas bases espaciais que operavam

na localidade, dez anos após o lançamento do Apolo XI. No filme, McElwee trabalha

com personalidades excêntricas de um lugar cuja popularidade estava em declínio. É o

único dos três primeiros filmes em que não existem apontamentos que podem ser feitos

em relação ao emprego de processos autorreflexivos da parte do diretor.

Charleen é o primeiro documentário finalizado por McElwee. Foi entregue como

parte do trabalho de conclusão de curso do MIT e sobre cujas filmagens o diretor escreve

um detalhado memorial em sua dissertação. Charleen não se trata de um filme

autobiográfico per se, como reconhecido por ele próprio (McELWEE, 2005, p. 6), mas

traz aspectos que dialogam com seus filmes posteriores e que fazem com que possa ser

considerado neste sentido. O mais evidente deles gira em torno da temática escolhida por

McElwee para seu primeiro documentário. Charleen tem como principal personagem a

ex-professora e poeta Charleen Swansea, que lecionou poesia para o diretor durante o

período do colegial, na cidade de Charlotte, onde continuara a viver e trabalhar.

A partir deste filme, Charleen e McElwee realizaram uma duradoura parceria.

Ainda mais do que sua própria família, Charleen é a figura mais recorrente nos filmes do

diretor. A professora também figurará em Sherman’s March (1986), Time Indefinite

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(1993), Six O’Clock News (1996) e Bright Leaves (2004). Charleen consiste em uma

espécie de musa, mentora ou psicóloga – dependendo da situação – para McElwee, a

quem o diretor recorre no desenvolvimento de cada nova empreitada e em quem deposita

grande parcela de confiança. O autor Josep María Català (2008, p. 104), sugere que o

realizador busca em Charleen uma substituição da figura materna. A mãe do diretor,

morta prematuramente, é um ponto de reflexão primeiramente abordado em Backyard e

que figura em vários de seus filmes. Já Charleen funciona como cupido e conselheira

amorosa do diretor em Sherman’s March, ambos dividem a experiência do luto em Time

Indefinite, partilham um sentimento de fragilidade em relação à imprevisibilidade do

mundo em Six O’Clock News e testemunham a relação complexa entre a cultura do tabaco

e a região da Carolina do Norte em Bright Leaves. Quatorze anos mais velha do que o

realizador, assistimos à maturação de ambos ao longo das décadas e através de seus

filmes. Nos documentários, Charleen e McElwee estabelecem uma relação dialógica,

regida pelo laço afetivo entre os dois e que se torna um ponto potencial de identificação

dos espectadores. Em um procedimento inaugurado por sua performance carismática em

relação ao diretor em Sherman’s March, Charleen apresenta-se como um veículo de

entrada em relação a traços da personalidade de McElwee expressados por alguém que

não seja ele próprio. São muitas as situações em que Charleen realiza comentários,

frequentemente críticos e/ou jocosos, que se revelam como juízos de valor da vida do

realizador e de suas escolhas pessoais.

Figura 30: Charleen Swansea ensina poesia para alunos do ensino médio em Charleen

(1979)

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A relação entre o realizador e a professora, entretanto, não é o ponto de apoio

temático de Charleen, o filme. A única informação explícita em relação à proximidade

entre ambos acontece nos letreiros iniciais, em que um texto em primeira pessoa informa-

nos que o diretor teve aulas com a personagem durante o colegial e que são “bons

amigos”. O filme narra aspectos da vida cotidiana de Charleen no que concerne seu

trabalho como professora de literatura na cidade de Charlotte, mas também aborda

detalhes de sua vida privada e amorosa. Assistimos a sua performance como professora

de jovens de ensino médio, estimulando o acesso à fala em público e à criação poética.

Tanto nas interações de Charleen com os alunos em sala de aula, quanto nas situações em

que a acompanhamos em ambientes extraclasse, subjaz a Charleen uma tematização das

relações entre negros e brancos no Sul dos Estados Unidos. McElwee aponta que

Charleen, como catalizadora destas interações, confronta o senso de racismo dos brancos

sulistas, assim como o senso de separação vivido pelos negros, porém não politicamente

e, sim, “pelo bem da arte” (MACDONALD, 1988). McElwee explica que Charleen “faz

com que as pessoas se exteriorizem, confrontando-as com suas próprias inseguranças

raciais – e no Sul, essas inseguranças são desenfreadas tanto negros quanto para brancos.”

(MACDONALD, 1988). Inaugurado em Charleen, o tema das relações raciais no Sul dos

Estados Unidos é um ponto de constante recorrência nos filmes do realizador, sendo

evocado de diferentes maneiras.

Ainda que o documentário seja dominantemente filmado a partir de uma ótica

vérité de recuo da câmera, a proximidade entre McElwee e Charleen é explicitada a partir

da narrativização de aspectos íntimos da vida da personagem. É o caso de algumas

discussões entre Charleen e o namorado Jim – cujo suicídio será tematizado

posteriormente em Time Indefinite – e uma longa sequência final, em que Charleen realiza

um depoimento auto avaliativo em relação à sua vida pessoal e amorosa diante de uma

traição recém-descoberta. Mesmo que abrindo mão de uma interação explícita com a

personagem, a relação próxima preestabelecida entre o diretor e a professora foi

determinante para que sua câmera se apresentasse como um “canal para que o público

perscrutasse a alma de Charleen” (McELWEE, 2005, p. 6).

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Figura 31: Charleen fala para a câmera de McElwee em Charleen (1979)

A exploração de uma ótica decididamente autobiográfica é iniciada no média-

metragem Backyard, filmado por McElwee durante a passagem pelo MIT Film Section

na década de 1970, mas finalizado apenas em 1984. Em Backyard, assim como em Space

Coast e Charleen, o diretor dá continuidade ao desejo de retornar periodicamente ao Sul

dos Estados Unidos e filmar na região. Nesta vez, entretanto, como McElwee aponta

durante a narrativa, “filmar o Sul” significaria fazer um filme sobre sua própria família.

Backyard foi pensado inicialmente como um documentário que lidaria com o elo entre o

pai e o irmão de McElwee, nos dias que antecediam sua saída do lar para a faculdade de

medicina. O filme acaba tendo uma exploração temática ampliada, ao deter-se na análise

da relação existente entre as pessoas que habitavam a casa naquele momento específico:

a família McElwee (ele próprio, pai, irmão, madrasta) e trabalhadores empregados no lar,

entre eles a cozinheira Lucille e o jardineiro Melvin.

A abordagem autobiográfica passa a ocupar um papel central na narrativa. No

filme, o realizador reflete acerca do estranhamento existente entre ele próprio e o resto de

sua família naquele momento, também marcado pela morte recente de sua mãe. Backyard

engaja, como em Charleen, a macrotemática das relações raciais entre negros e brancos

no Sul dos Estados Unidos, porém, neste caso, no que diz respeito à relação entre patrões

e empregados, utilizando-se de seu próprio universo doméstico para um olhar mais

demorado sobre o assunto. A importância de Backyard para o projeto autobiográfico de

McElwee como todo reside no fato de que o filme se consolida como “marco zero” deste

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procedimento, ao redor do qual uma rede de relações começa a ser tecida em cada um de

seus próximos lançamentos. No filme, McElwee oferece alguns dos principais alicerces

de sua carreira autobiográfica, compostos de fragmentos da construção da persona

autorrepresentativa que continua a ser elaborada em outros filmes, quanto de episódios

marcantes de sua vida pessoal sobre os quais se voltará recorrentemente.

Abordagem que será popularizada em Sherman’s March, McElwee apresenta-se

em Backyard a partir de um humor de tons autodepreciativos, sublinhando aspectos da

“estética do fracasso”. A partir do questionamento de si próprio e de seus dotes artísticos

– em uma execução desafinada de Beethoven ao piano, em relação à câmera que quebra

recorrentemente frente à imponência de seu pai, ou no que diz respeito ao senso geral de

incomunicabilidade entre McElwee e as pessoas que fazem parte de seu cotidiano – o

diretor constrói os primeiros traços de certo quixotismo que permeará sua obra. McElwee

mostra a si próprio como uma espécie de herói desajeitado, perambulando pelo mundo

com uma inseparável câmera sem saber muito bem o que fazer com ela, a não ser filmar

a fracassada tentativa de habitar o mundo como uma pessoa “qualquer”. Esta comicidade

anedótica, com requintes de caricatura, exagero e absurdez, relaciona-se, como citado,

com o humor sulista ao qual McElwee começa a se referenciar.

Em Backyard, McElwee apresenta episódios de sua vida pessoal e familiar que

serão pedras fundantes em sua carreira. Por meio do filme, o realizador informa que aos

dezoito anos deixou sua casa na Carolina do Norte. Deste momento em diante, qualquer

tentativa de entendimento entre ele e o pai, nascido e criado no Sul, médico-cirurgião e

republicano conservador, resultou em fracasso. Diante de certa indecisão sobre o destino

profissional do filho, que diz interessar-se por Cinema – mas que pensa em alternativas

como as de trabalhar com o registro de eleitores negros no Sul (“Black Voter

Registration”), envolver-se com os movimentos de paz ou ingressar em um monastério

budista – o patriarca decide pela “resignação” de suas preocupações para com McElwee.

O desconforto em relação à identidade territorial será um mote recorrente na carreira do

diretor. McElwee tem forte ligação com os costumes, cultura e comportamento da

Carolina do Norte e do território do Sul, de maneira geral, porém decide-se ainda jovem

por deixar a região e habitar no “frio e populoso Norte”, configurando uma espécie de

identidade exílica, deslocada, que se configura como ponto de reflexão. No caso de

Backyard, isto contribui para o sentimento do diretor como uma espécie de “ovelha

negra” dentro da família. Sua opção em seguir uma carreira artística inserido no universo

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acadêmico da elite intelectual dos EUA, na região da Nova Inglaterra e em suas

universidades, berço da democracia progressista-liberal, é vista como contraste, senão

afronta, à família republicana-conservadora dos McElwee simbolizada pelo seu pai,

cirurgião. A sensação de deslocamento parece se agravar com a ida de seu irmão para a

faculdade de medicina, optando por seguir os passos do pai e embarcando em uma jornada

que inspira mais segurança e menos excentricidade se comparada à de um documentarista

independente.

Figura 32: McElwee posa ao lado de seu pai em fotografia apresentada no início de

Backyard (1984)

A metodologia de filmagem de Backyard acompanha outras experiências de

documentário autobiográfico do MIT Film Section. Trata-se do primeiro filme em que

McElwee incorpora a si próprio em uma “equipe de uma pessoa só”, incumbido do

registro imagético-sonoro sincrônico que perpetuará em todos seus filmes. No filme, o

diretor sublinha a possibilidade do registro imagético/sonoro de cristalizar interações

dialógicas, gestos e reações que traduzissem a relação delicada entre si próprio, sua

família e os empregados de sua casa naquela circunstância específica. A relativa

instabilidade emocional e afetiva entre o diretor e sua família no momento, mais

especialmente com seu pai, transpira nas tomadas captadas por McElwee em seu ambiente

doméstico ou em situações ao redor. Uma destas situações, de ordem figurada, consiste

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na maneira em que a câmera do realizador parece apresentar defeitos técnicos quando

tenta filmar seu pai. Isto acontece em alguns momentos de Backyard, como quando

McElwee registra o pai operando em um centro cirúrgico – a película “enrosca” no chassi

da câmera –, e torna-se uma metáfora da relação instável entre ambos naquele momento,

que o diretor rememora em diversos de seus filmes posteriores. Sua obra pressupõe a

utilização de sequências de filmes anteriores como via de lembrança e reavaliação de

algumas passagens de sua vida. Em Backyard instaura-se o “marco zero” temporal, o

ponto de partida, deste procedimento, sendo que o filme apresenta trechos que se tornam

recorrentes em sua carreira. Um dos mais importantes destes é a cena em que o pai volta-

se para McElwee depois de terminar uma conversa telefônica e diz que apenas ficará

satisfeito “quando esse olho grande (a lente da câmera) desaparecer” (“I’ll be glad when

the big eye is gone.”). A sequência, que demonstra o descrédito ou a desconfiança do pai

em relação à aspiração cinematográfica de McElwee naquele momento, será rememorada

em outros de seus filmes como Time Indefinite (1993) e Photographic Memory (2011),

sob contextos modificados pela passagem do tempo.

McElwee utiliza-se de Backyard como uma maneira de experimentar pela

primeira vez a narração em voz over em primeira pessoa, apresentando um contraponto

ao estilo vérité que emerge de seu tête-à-tête com as pessoas que fazem parte de seu

cotidiano doméstico. Através desse tipo de narração, o diretor almejava estabelecer um

canal de acesso às sensações ou pensamentos condizentes com seu estado de espírito no

momento da filmagem, bem como uma maneira de estabelecer comentários analíticos ou

(auto)questionadores, que julgava que o trabalho metodológico vérité não conseguia

cumprir. Em outras palavras, o realizador pressupunha com este procedimento uma

maneira de arrojar à narrativa autobiográfica reflexões de densidade intelectual que

dificilmente emergem à “superfície da consciência” em um momento de interação

cotidiana. Note-se, por exemplo, a conotação dada por McElwee em relação ao esforço

dispendido para a elaboração do texto em over, realizado “meticulosamente”

(“escrupulosamente”, painstakingly), “com muitas e muitas revisões” (MACDONALD,

1988). Logicamente, este procedimento, cuja ausência é detectada por McElwee em

filmes como os Diaries de Ed Pincus, contribui para o desenvolvimento dos traços de sua

persona autobiográfica de maneira mais adensada se em comparação a um modus

operandi puramente vérité. O procedimento, que também aproxima seu interesse pela

escrita literária não-ficcional, fez com que Backyard consistisse em um rascunho para

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Sherman’s March, um “experimento sobre como poderia abordar o filme maior”, segundo

o próprio diretor (MACDONALD, 1988). O aspecto de “preparação” de um filme em

relação ao outro também reside no fato de que Backyard, embora filmado entre 1975 e

1977, foi finalizado apenas em 1984, já no período de montagem de Sherman’s March –

que levou cinco anos para ser editado e foi lançado em 1986 (McELWEE, 2005, p. 17).

Figura 33: “Ficarei satisfeito quando esse olho grande desaparecer” diz o pai para o

cineasta em Backyard (1984)

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3.3. Sherman’s March (1986): a Guerra de Secessão dentro de si

Até hoje o mais conhecido de seus filmes, Sherman’s March consolidou

propriamente a estilística esboçada por McElwee em Backyard. Meticuloso na concepção

de sua estrutura narrativa, o filme oferece uma gama de interpretações em relação ao seu

estatuto autobiográfico. Construído a partir da ênfase da figura do cineasta McElwee

como protagonista, e através de diversos processos de autorreflexão, Sherman’s March

apresenta um movimento pendular entre aspectos narrativos que “transbordam” a vida de

McElwee enquanto indivíduo que ocupa o mundo “fora das telas”, e a potencialização de

certa persona autorrepresentativa construída dentro da empreitada que está sendo

proposta. Sherman’s March narra uma jornada de McElwee pelo Sul dos Estados Unidos,

na qual o realizador desenvolve reflexões sobre o legado da Guerra Civil estadunidense

nos territórios devastados pela guerra, provê uma tentativa de estabelecer um relato

biográfico do general ianque responsável pela destruição, William Tecumseh Sherman,

tematiza o temor por uma catástrofe nuclear iminente em plena corrida armamentista e

mostra a busca frustrada do protagonista pela possibilidade de estabelecer um novo

relacionamento amoroso, após uma separação dolorosa. A empreitada do personagem

McElwee, ao longo de semanas a fio, milhares de quilômetros rodados e mais de duas

horas e meia de filme, é tomada por uma comicidade com requintes de absurdez. Esta

comicidade suscita ponderações acerca dos artifícios de fabulação empregados para o

efeito jocoso que predomina na narrativa. Entretanto, a potencialização da citada “estética

do fracasso”, que permeava Backyard e que aqui se desenvolve plenamente, bem como a

autopersonificação de McElwee a partir de uma roupagem de “perdedor”, colocam-se em

paralelo com o transbordamento de afetos “reais” e da relação do cineasta com as pessoas

próximas de si.

Resumidamente, Sherman’s March narra a história do cineasta McElwee, que

passou pelo término de um relacionamento amoroso quando se preparava para rodar um

documentário a respeito do episódio da “Marcha para o Mar” – momento histórico

decisivo da Guerra Civil estadunidense, liderado pelo general Sherman e que levou à

destruição total, militar e civil, de diversas cidades do Sul dos Estados Unidos, forçando

a rendição do exército confederado. Com a desilusão amorosa, o realizador sai de Boston,

onde mora, e ruma ao Sul para tentar começar o filme, passando antes pela Carolina do

Norte a fim de permanecer um pouco com sua família. Encorajado por sua irmã, McElwee

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enxerga na câmera de filmar uma maneira de conhecer e de dividir momentos com novas

pretendentes. Sempre assolado pela tarefa de continuar o filme a respeito da Guerra Civil,

o realizador viaja com sua câmera por diversas das principais cidades da Marcha para o

Mar, resgatando pormenores históricos do episódio, registrando sensações sobre o legado

da guerra para o território sulista e interagindo com novas conhecidas em cada um destes

lugares. Algumas delas são pessoas que fizeram parte do passado do cineasta, outras

tornam-se conhecidas em sua passagem pelas cidades. Fracassando na empreitada

amorosa e também na missão de realizar o filme, McElwee enxerga no general Sherman

uma figura exótica e controversa, cuja personalidade privada é pouco conhecida pelos

próprios sulistas. O diretor relaciona-se alegoricamente com a figura atormentada de

Sherman, com suas perturbações e ansiedades. Ele retorna ao Norte com a sensação de

“dever não-cumprido”, deixando de realizar o filme que gostaria e falhando em sua

abordagem romântica em relação às mulheres. Subjaz, logicamente, ao “fracasso” do

personagem McElwee, um filme que tem sucesso em entregar conhecimento em relação

à História oficial da Marcha para o Mar, em trazer à tona requintes da personalidade não-

pública (e pouco conhecida) do General Sherman, em realizar um estudo das diferentes

vertentes da sociedade sulista contemporânea – no que diz respeito tanto ao legado da

Guerra Civil quanto ao temor pela guerra nuclear –, em tematizar um estereótipo da

masculinidade sulista, representada pelo culto a personalidades como Burt Reynolds (que

o diretor chega a encontrar pelo caminho); e, finalmente, traz um tipo de conhecimento

“doméstico”, relacionado à vida do diretor para além da câmera. Tomamos conhecimento

da relação delicada que McElwee detém com seu pai, sabemos sobre a morte de sua mãe,

entendemos seu vínculo com o Sul e sua condição de “desgarrado”, e captamos traços de

sua personalidade a partir de sua interação com familiares e amigos.

Um dos pontos mais frequentemente analisados de Sherman’s March é o

questionamento acerca da possível dualidade entre cineasta e personagem na narrativa

criada por McElwee. Em seu texto ao redor da definição de filme-ensaio, Phillip Lopate

sugere a diferença entre o cineasta McElwee e a persona “Ross”, que toma a forma de

um solteirão exageradamente racional e absorto (LOPATE, 1996, p. 262). Scott

MacDonald dá o título à sua análise de dopplegänger (ou, o “duplo”) (2013, p. 108),

sugerindo a disparidade entre os “desejos” de McElwee enquanto cineasta em

contraponto ao de seu personagem. Efetivamente, o visionamento de Sherman’s March

suscita o questionamento: o quanto estamos diante de uma genuína jornada “ao acaso” do

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cineasta McElwee? Seria realmente possível que estejamos assistindo à busca de um novo

relacionamento amoroso do diretor, que espontaneamente decide filmar a empreitada e

mostrar a nós, espectadores? Poderia McElwee realmente ter tentado realizar um

documentário “convencional” a respeito da Marcha para o Mar, enfim fracassado? Por

mais que o tom absurdo da jornada do protagonista possa sugerir um grande processo de

fabulação, há da mesma forma aspectos na narrativa que apontam para a sobreposição

entre as vidas do personagem e do cineasta McElwee. Resgatamos aqui novamente a

entrevista no qual o autor Scott MacDonald é categórico em relação à falsa motivação do

diretor no filme: “Sherman’s March finge ser a respeito de sua busca pelo amor, mas na

realidade você apenas está usando isto para fazer um longa-metragem”. McElwee

responde negativamente: “Não sei se concordo com a noção de que a busca pelo amor é

um simples MacGuffin em Sherman’s March. Parte de mim realmente estava esperando

que a mulher certa se materializasse pela miasmática névoa do Sul” (MACDONALD,

2014, p. 163-164).

É interessante mencionar que o conhecimento extrafílmico da carreira de

McElwee anterior a Sherman’s March fornece elementos que tanto possibilitam a

desconstrução do senso de “autenticidade” da narrativa quanto potencializam os aspectos

em que a vida do diretor enquanto indivíduo “ordinário” parece falar mais alto. Um

exemplo pode ser extraído da sequência que abre o filme. Ainda que se possa supor que

Ross McElwee eventualmente quisesse realizar um documentário com uma temática bem

estrita – como o episódio histórico da Marcha para o Mar –, considerar que ele o faria da

maneira que nos apresenta na abertura do filme é uma opinião dificilmente sustentável.

O realizador, como já mencionado, foi formado no MIT Film Section, berço do

documentário autobiográfico moderno estadunidense e com forte inflexão da

metodologia do cinema direto. Seria possível que o diretor iniciaria um documentário

com uma animação de um mapa dos Estados Unidos, que indica a movimentação das

tropas de Sherman pelo território, acompanhada auditivamente por uma narração em over

que narra factoides da campanha do general Ianque? Em outras palavras, é possível

acreditar que McElwee trabalharia com uma exposição assertiva e didática plenamente

inserida nos moldes do documentarismo clássico, a que o cinema direto julgou

ultrapassado e epistemologicamente suspeito, sem que esse recurso fosse proposital? A

brincadeira torna-se evidente quando tomamos conhecimento, nos créditos finais do

filme, que o dono da voz que narra a sequência inicial é Richard Leacock – um dos

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principais porta-vozes do antagonismo em relação a este tipo de metodologia. Ou seja,

não é necessário muito esforço de abstração para captar as maneiras através das quais

McElwee está “piscando” para os espectadores, sugerindo certa complacência em relação

à reivindicação de “autenticidade” da jornada de seu protagonista. Em um sentido

parecido, Scott MacDonald sugere que McElwee utiliza-se de seu personagem para

simular que existe de fato um interesse “pessoal” de sua parte por aproximar-se de

determinadas pessoas e se envolver em alguns episódios da jornada (MACDONALD,

2013, p. 204). Para MacDonald, não existe um desejo real ou desenvolvimento emocional

que aproxime afetivamente o diretor das pessoas que encontra pelo caminho: trata-se,

sobretudo, de uma motivação “cinematográfica”, uma maneira de conduzir

narrativamente o filme ao redor de seu personagem. É o caso, por exemplo, da designer

de interiores Claudia, amiga de juventude do diretor e ex-cheerleader. Durante o tempo

que passam juntos, a personagem revela uma posição no eixo ideológico diametralmente

oposta à de McElwee, no que diz respeito a crenças religiosas e orientações políticas. O

temor em relação à possibilidade da guerra nuclear (partilhado por diversos dos outros

personagens de Sherman’s March) apresenta-se em Claudia como a convicção de que o

sentimento de proximidade da destruição do mundo é o estágio que antecede a segunda

vinda de Jesus Cristo. A personagem, inclusive, guia McElwee em um tour por uma

comunidade sobrevivencialista, armada e ultraconservadora, que prepara o

funcionamento de um território secreto autogestor em caso de uma guerra nuclear.

Figura 34: Integrante do grupo sobrevivencialista e a designer de interiores Claudia, em

Sherman’s March (1986)

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É evidente, neste caso, que McElwee busca retratar uma vertente da sociedade

sulista que entendemos como portadora de valores sensivelmente distintos dos seus. O

cineasta aponta em entrevista que a distância entre ele próprio e o grupo dos

sobrevivencialistas evoca outro tipo de trato cinematográfico: “Eles não fazem parte do

meu mundo, então posso me recuar e filmá-los objetivamente” (MACDONALD, 1988).

Com efeito, o retrato do diretor a respeito de si próprio evidencia sua inserção em certa

elite cultural/intelectual bem como revela sua opção por valores políticos progressistas.

Sendo assim, a relação com a personagem Claudia dificilmente soa para os espectadores

como um esforço em encontrar o “amor verdadeiro”, ou estabelecer um relacionamento

duradouro, mais do que parece uma maneira de satisfazer a curiosidade cinematográfica

de seu diretor. Entretanto, fazer coro à noção de autores como Scott MacDonald, que

afirmam que toda a busca pelo amor em Sherman’s March não tem outra função que não

um amparo narrativo, é desconsiderar o potencial que circunda as tomadas de muitas das

interações de McElwee com as pretendentes, amigos próximos e sua família. Estas

interações transpõem relações interpessoais bastante particulares e que contribuem para

o estatuto autobiográfico do filme.

Em várias entrevistas o realizador é questionado sobre como teria surgido a ideia

da narrativa de Sherman’s March ou, ainda, se a estrutura do filme fora de alguma forma

preconcebida. McElwee constata que o início da jornada ocorreu de fato na mesma ordem

que a narrativa nos propõe: passando pelo término recente de seu relacionamento anterior,

a conversa travada com sua irmã o fez considerar a utilização da câmera como via de

aproximação às pessoas. McElwee descreve este momento:

A descoberta ocorreu com a minha irmã no dia seguinte, quando ela

disse – um pouco a sério, um pouco brincando – "Você devia usar a

câmera como uma forma de conhecer mulheres". Ela estava

sinceramente chateada com o fato de eu ter terminado meu

relacionamento com minha namorada e estava buscando maneiras de

me colocar “de pé” novamente. Acredito que ela achava que eu estava

sendo incapaz de voltar à vida – algo bem pior do que eu realmente

estava sentindo. Obviamente, eu tinha como colocar a câmera no ombro

e sair filmando alguma coisa. Mas no momento em que ela me deu

conselhos sobre como usar a câmera, eu experienciei uma pequena

epifania. Em seguida, houve o anúncio de que Mary estava no bairro.

Por que não a procurar com a câmera e ver o que acontecia? O mini-

retrato de Mary correu bem. Ela tinha de ir embora no dia seguinte, por

isso não havia potencial para filmá-la mais, mas era um começo. E era

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um microcosmo de como o filme poderia funcionar. (MACDONALD,

1988. Tradução nossa.)

Figura 35: A irmã Dede dá conselhos amorosos ao cineasta, no início de Sherman’s March

(1986)

A interação de McElwee com a irmã Dede é um dos momentos de Sherman’s

March que revela o comprometimento do diretor com a construção de uma narrativa

autobiográfica que engaja a particularidade de relações familiares ou preestabelecidas

como parte de sua matéria-prima. A fala de Dede para a câmera a respeito do término do

relacionamento do irmão, sugerindo energicamente maneiras de se recompor, evoca um

senso de naturalidade em relação à mediação da câmera naquela circunstância. Tendo

realizado Backyard há poucos anos, McElwee já trabalhava com o registro das pessoas

de sua família, seja em eventos banais e repetíveis do cotidiano familiar, ou em ocasiões

especiais. Sendo assim, é possível imaginar que aquela situação não seria de todo estranha

tanto para Dede, de alguma forma acostumada à abordagem do irmão no que diz respeito

ao registro fílmico familiar, quanto para o próprio McElwee, ao procurar a irmã para

conversar sobre o ocorrido em sua vida com a câmera, mesmo sem saber exatamente se,

ou como, utilizaria o material para uma narrativa fílmica.

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Estes momentos reforçam o pedido para que o espectador deposite uma parcela

mais sólida de sua confiança no que diz respeito à acepção de pontos de contato entre a

narrativa e a vida de seu criador. É o caso, por exemplo, da reação do pai do diretor à

empreitada fílmica que McElwee está desenvolvendo. Vestido com o uniforme do

exército confederado antes de rumar a um baile à fantasia, McElwee é confrontado por

seu pai, que questiona qual a validade, para este ou outro filme, do fato do filho ter

passado o dia “filmando a irmã lavando o seu cachorro”. Por mais que McElwee

potencialize o aspecto desajeitado e fracassado de sua persona em momentos que

dependem totalmente dele próprio, como em sua narração em over ou no monólogo em

que cita a desconfiança do pai em relação ao seu projeto fílmico, é sabido, desde tempos,

que o pai do diretor olha com certa desaprovação para suas ambições artísticas. Em

Backyard este embate é tematizado e continuará sendo, em outros filmes, um ponto

recorrente de rememoração e meditação.

O mesmo pode-se dizer da participação de Charleen na narrativa. Por mais

performática que sua encenação possa parecer diante da câmera de McElwee, existe uma

relação real de afeto entre ela e o diretor que faz com que as interações entre ambos façam

pulsar a intensidade da experiência. O fato é que Charleen, com efeito, preocupa-se com

os rumos da vida de McElwee como sua amiga, para além da realização de um filme. Em

Charleen indicava-se a relação de confiança e intimidade travada entre ambos, e, após

Sherman’s March, Charleen estará próxima de McElwee em eventos importantes de sua

vida individual, como em seu casamento e no processo de luto diante da morte de seu pai.

Com isso, os momentos em que ela necessita chamar a atenção do diretor, expondo suas

fraquezas ou dando-lhe “lições de moral” em relação à maneira que enxerga o mundo,

evocam uma particularidade da relação entre realizador e “objeto”. À maneira da

encenação explorada por cineastas do MIT Film Section e, especialmente, na influência

de Diaries de Ed Pincus, trata-se de um procedimento que “escreve autobiograficamente”

a partir da explicitação de relações afetivas particulares entre o diretor e as pessoas

próximas de si.

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Figura 36: Charleen Swansea aplicando uma “lição” em McElwee em Sherman’s March

(1986)

O envolvimento afetivo de McElwee com as pessoas que fazem parte da narrativa

toma forma, também, nos indicativos de que o diretor chega a engajar um romance com

algumas de suas pretendentes ao longo da jornada. Para além dos casos em que não existe

a possibilidade do florescimento real do interesse amoroso de uma ou ambas as partes (o

caso da designer Claudia, citado, é um deles), em outros, a possibilidade chega a

concretizar-se ou torna-se um assunto explicitado na narrativa. O fato destes

envolvimentos resultarem, fundamentalmente, em fracasso, acaba por abastecer a

persona “loser” que McElwee constrói em relação a sua própria figura, porém agora com

um amparo no mundo “real”: não é apenas ele quem endossa sua inabilidade no trato

interpessoal e/ou afetivo, mas existem pessoas que sublinham, em frente à câmera, o

desinteresse em relação ao cineasta.

Um destes casos acontece com Wini, a linguista que vive na ilha de Ossabaw

(Geórgia), uma espécie de reserva científico-ambiental em um território praticamente

deserto, habitado apenas por alguns grupos de pesquisadores. Há um entendimento de

que McElwee e Wini chegaram a envolver-se durante o tempo em que o diretor

permaneceu na ilha. O romance acaba, entretanto, durante um retorno do diretor a Boston

para a realização de um trabalho freelancer, e Wini passa a relacionar-se com outro

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cientista que mora no local. Voltando à ilha e pedindo para que a ex-pretendente explique

o porquê da troca, Wini ressalta a impaciência do diretor e seus frequentes pretextos para

deixar o local. Após o momento, McElwee reconhece um senso de “autossabotagem” que

endossa a dubiedade entre a busca pelo amor, sua personalidade insegura em relação a

seus próprios desejos e a construção de uma narrativa cinematográfica: “se eu realmente

quisesse que as coisas dessem certo, daria um jeito de voltar antes”, o diretor relata em

sua narração em over. A mesma sensação existe em relação a Karen, advogada e sua ex-

namorada de juventude, já ao final do filme. Este é um dos momentos em que

irremediavelmente questionam-se a ética e senso moral de McElwee em relação às

pessoas filmadas. O diretor confronta a ex-namorada em relação ao insucesso do caso

amoroso que mantiveram, insistindo ad nauseam que Karen exponha os motivos pelos

quais a situação não foi levada adiante. O momento chega ao ápice quando Karen pede

ao diretor que interrompa a filmagem, alegando crueldade de sua parte.

O diálogo suscita em McElwee o reconhecimento de que sua câmera, inicialmente

pensada como uma ferramenta com a qual poderia aproximar-se das pessoas, adquire

agora o potencial de um instrumento sádico. Ciente de que está em uma situação limite,

tanto em relação aos possíveis requintes de crueldade com a câmera quanto a uma

autodepreciação masoquista insustentável, McElwee volta à cidade natal de Charlotte

antes de rumar de volta para o Norte. Em uma narração em over, o diretor disserta a

respeito da extensão de seu fracasso:

ROSS (v.o.)

A Confederação morreu oficialmente aqui, na minha cidade natal de

Charlotte, Carolina do Norte. Jefferson Davis, presidente da

Confederação, teve sua última reunião de gabinete não muito longe

desta marcação e bateu em retirada rumo ao México, deixando por

detrás de si um Sul arruinado. Eu chego ao fim de minha jornada sem

carro, sem dinheiro e com apenas um rolo de película. O que é pior é

que parece que não tenho mais uma vida real. Minha vida real ficou na

fenda entre mim mesmo e meu filme. (Tradução Nossa)

Em um dos vários acasos que regem a narrativa de Sherman’s March, McElwee

constata que o derradeiro fim do exército confederado sulista aconteceu na cidade natal

de Charlotte, enfatizando sua possível relação com um fracasso endêmico. O realizador

divaga acerca do final de sua jornada sem o carro (que quebra recorrentemente durante a

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empreitada), sem dinheiro e romantizando (senão, fabulando) acerca do último rolo de

película, que é tudo que lhe restou: mesmo sua “vida real” não existe mais, perdeu-se em

meio à possibilidade de filmar. O diretor pondera que sua “vida real” agora existe apenas

na fenda entre ele próprio e o filme. McElwee ressalta, portanto, a relação de

codependência entre “câmera” e “vida” que regeu a jornada: a câmera seria a motivação

sine qua non pode existir sentido em interagir com as pessoas ao seu redor e, ao mesmo

tempo, sua vida “real” seria o material que impulsionaria o fazer cinematográfico. Diante

do fracasso da empreitada, portanto, como McElwee poderia voltar a relacionar-se com

o mundo e com as pessoas que o habitam? Neste sentido, o diretor confessa, algumas

sequencias antes de sua chegada em Charlotte: “Parece que estou filmando minha vida

com o intuito de ter uma vida para filmar, como um organismo primitivo que se alimenta

através de seu próprio devoramento, crescendo à medida que diminui”. Julgando não ter

realizado da maneira que gostaria o filme sobre a Marcha para o Mar, bem como não

tendo sucesso em engatar um novo relacionamento amoroso, McElwee expõe o fracasso

de sua persona. Na perda do diretor em relação a si mesmo, entretanto, reside o sucesso

da narrativa de Sherman’s March.

Nos filmes seguintes, a performance de McElwee do momento “atual” de sua vida

em Sherman’s March é vista a partir da ótica de sua então solteirice, quando podia gozar

da “liberdade” de filmar inadvertidamente os eventos que se desenrolavam ao seu redor

– havendo, por exemplo, a possibilidade de colocar-se em situações inesperadas como

uma jornada pelo Sul dos Estados Unidos em busca do amor romântico. Estas

possibilidades, McElwee dirá no futuro, teriam se tornado mais tímidas diante da

configuração de um relacionamento duradouro, da configuração de responsabilidades

relativas ao mundo do trabalho (como as da universidade na qual inicia o trabalho de

docência) e, principalmente, da formação de sua própria família, com o matrimônio e a

chegada dos filhos. Certo ímpeto aventureiro permanece em suas jornadas, porém voltada

para uma exploração continuada sobre os mistérios, dores e benefícios da vida adulta. Isto

ocorre especialmente no que concerne o matrimônio e a família, ao realizar meditações

acerca das relações geracionais entre pais e filhos.

Como frisado, a projeção de Sherman’s March foi maior que a esperada. O filme

influenciou muitos cineastas – sobretudo estadunidenses, porém não apenas – que

posteriormente experimentaram com a construção de documentários que sublinhavam

aspectos de narratividade autobiográfica, das maneiras mais diversas. Ainda que a

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particularidade da carreira de McElwee pós-Sherman’s March tenha sua visibilidade

assegurada por um público especializado (cinéfilos, pesquisadores, docentes, estudantes),

nenhum de seus filmes teve a mesma amplitude de recepção como o lançado em 1986. É

possível sugerir que, de certa maneira, a figura de Ross McElwee ficou atrelada à

supercaracterização de si próprio em Sherman’s March, colocada em paralelo à

comicidade autorreferente de outros cineastas como Buster Keaton ou mesmo Woody

Allen.

Entretanto, se o filme faz do humor um de seus pilares narrativos e uma condição

irremediável em sua recepção, passando pelo uso de estereótipos e pela depreciação

hiperbólica do protagonista/cineasta, seus documentários subsequentes não são tão

diretos no que diz respeito à finalidade (e capacidade) de entreter, ou divertir, o

espectador. A partir de Time Indefinite, McElwee fez um cinema autobiográfico de

propósitos bastante distintos dos de Sherman’s March. Se a dubiedade entre “cineasta” e

“personagem” continua a levantar questionamentos (como característica intrínseca de

qualquer representação ou, neste caso, autorrepresentação), seus filmes passam a apostar

significantemente menos neste aspecto. De alguma forma, o personagem “Ross” se

apequena diante dos compromissos do mundo “real” com os quais seu criador passa se

deparar. Como se de um momento para o outro, McElwee percebe-se diante do fardo da

existência e sua câmera passa a se tornar cada vez mais pesada. Da mesma maneira, o ato

de registrar o mundo cinematograficamente é visto com mais seriedade. O sentimento de

“não ter nada a perder” evocado pela narrativa de Sherman’s March é questionado

diretamente em Time Indefinite, que lida justamente com a possibilidade, aleatória, da

perda. O filme é recebido a partir da acepção de um trabalho mais sério se comparado

com Sherman’s March. Esta constatação é frequente em sua recepção crítica: “Enquanto

o filme anterior era basicamente uma comédia, Time Indefinite é uma obra que crava seus

dentes em assuntos mais substanciais” (PETRAKIS, 1993) ou “ ...(McElwee) o estabelece

como um trabalho mais sério e pensativo, em oposição ao aspecto improvisado e

impulsivo do filme anterior” (FILMPHEST, 1999). Mesmo que Sherman’s March seja o

filme, isoladamente, pelo qual o diretor é mais conhecido, é possível dizer que Time

Indefinite inaugura sua proximidade com uma ideia de narratividade autobiográfica mais

definitiva. Este movimento engaja seus filmes posteriores e sugere uma promessa de

continuidade que será levada a cabo nas décadas seguintes, marcando o ponto alto de seus

propósitos enquanto documentarista.

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Figura 37: Vestindo o uniforme do exército Confederado, McElwee elabora para a câmera

os próximos passos de sua jornada, em Sherman’s March (1986)

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3.4. Time Indefinite (1993): A câmera e o calvário

Como vários dos filmes de McElwee, Time Indefinite levou um extenso período

de tempo de sua filmagem à finalização: o início da narrativa situa-se, ao que consta, em

1986, porém o filme foi lançado apenas sete anos depois, em 1993. Em 1991, entretanto,

McElwee lança o longa-metragem Something to do with the Wall dirigido conjuntamente

com a esposa Marilyn Levine, sobre o qual podemos tecer alguns comentários. Something

to do with the Wall é pouco explorado em análises sobre a obra do diretor. Ainda que

existam alguns pontos de contato com a estilística e a temática relativas à autoria de

McElwee, é evidente que se trata de um filme feito à ocasião de um evento histórico.

Realizado apenas pelo casal (dividindo as funções de direção, edição, narração e captação

de som e imagem), Something to do With the Wall foi filmado em duas viagens distintas

para a então Berlim Ocidental: uma em 1986 e outra em 1989, quatro dias após a queda

do Muro. A preocupação dos diretores era, sobretudo, a de conhecer e passar algum tempo

com habitantes de Berlim que moravam em locais próximos à barreira, a fim de

compreender suas implicações em suas vidas e famílias. McElwee e Levine vivem a

tensão que circunda o aniversário de vinte e cinco anos do Muro, em que diversos tipos

de protestos são protagonizados, principalmente dirigidos às forças militares que zelam

pela preservação da ordem diante da barreira. O casal retorna à cidade três anos depois,

com a queda repentina do Muro. Na ocasião, em que o filho recém-nascido, Adrian,

também é levado, McElwee e Levine procuram as pessoas que conheceram na viagem

original, dialogando agora sobre suas perspectivas diante da reunificação da cidade.

Something to do with the Wall é o único filme dirigido em conjunto por McElwee

e por Marilyn Levine, implicando uma coautoria que se faz presente de maneira mais

evidente no aspecto de uma dupla narração em over, ora narrada por McElwee e ora por

Levine. O filme reivindica uma motivação “autobiográfica” que não se sustenta tão

densamente se em comparação à exploração da temática histórica que o domina. No início

do documentário, sobre uma imagem do filho recém-nascido, Adrian, os diretores

ressaltam em over que o filme seria uma maneira de exteriorizar um “sentimento do

mundo” diante da Guerra Fria: como explicar ao filho, quando crescido, a sensação de

viver sob o temor da possibilidade de uma guerra nuclear? Como fazê-lo entender a

separação do mundo em duas polaridades distintas e a corrida armamentista? Este tipo de

reivindicação, entretanto, permanece tímido no filme. Fica relegado à superfície qualquer

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tipo de consideração em relação à recém consolidação do casal McElwee-Levine e a vida

conjugal de ambos. Da mesma maneira, inexiste uma abordagem narrativa de alguma

questão moral que porventura toca a coautoria do filme, ou mesmo os meandros

psicológicos que dizem respeito aos sentimentos de ambos diante do evento histórico que

estão presenciando. Metodologicamente, Something to do with the wall preserva o

aspecto vérité de outros filmes de McElwee. Há uma ênfase em sublinhar a experiência

do casal durante as duas viagens que fizeram à Alemanha, mostrando o encontro com as

pessoas que conhecem pelo caminho, e a criação de laços de proximidade com elas. As

narrações em over, entretanto, são retraídas no que diz respeito ao espaço de meditação e

autorreflexão frequentemente vistos em outros documentários do diretor. Apesar de haver

uma ou outra estratégia argumentativa neste sentido, não há insistência em desenvolver

aspectos que enfatizem o “interior” dos cineastas de maneira mais aguçada.

Além disso, Something to do with the wall apresenta-se como uma espécie de

parênteses dentro da carreira autobiográfica de McElwee. A partir da ciência das

motivações de sua obra, é estranho imaginar que o diretor se apresentaria no filme como

um homem casado e já pai de um filho, Adrian, sem enfatizar narrativamente qualquer

um destes eventos. Como isto teria evoluído em sua vida desde a jornada de solteiro tão

evidente em Sherman’s March? Todos estes aspectos são, na realidade, abordados pelo

diretor em Time Indefinite, lançado em 1993, que estava em processo de feitura desde o

lançamento de Sherman’s March. A sensação de Something to do with the wall constituir

um pequeno “desvio” em sua carreira é inclusive citado em Time Indefinite, quando

McElwee refere-se a ele como um filme mais fácil de ser realizado, pelo fato de “não

lidar diretamente com sua própria vida”.

O comentário de McElwee em relação a Something to do with the wall é um

contraponto interessante, visto que Time Indefinite tem a vida individual do diretor como

matéria-prima dominante de seu eixo temático. Time Indefinite, diferentemente de filmes

como Sherman’s March, Something to do with the wall ou Bright Leaves, não aponta para

uma exploração temática de aspectos históricos, sociais, políticos ou culturais mais

demarcados, como a Guerra Civil estadunidense, o Muro de Berlim ou a cultura de tabaco

no Sul dos Estados Unidos. Tematicamente esguio, requer-se mais tempo durante o

visionamento de Time Indefinite para que se compreenda o tipo de questão sobre a qual o

diretor pretende jogar luz. McElwee nos toma pela mão em um fluxo semelhante ao visto

em Diaries (1971 - 1976) de Ed Pincus, em uma narrativa na qual protagonizam os

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principais acontecimentos de sua vida individual, sem sabermos muito bem até onde o

diretor nos levará. O realizador enxerga nos eventos mais simbólicos que transcorrem em

sua vida privada durante quase sete anos uma maneira de abordar temas universais.

Durante duas horas de filme, acompanhamos o curso de pensamentos do diretor no que

concernem temas como o amor, o matrimônio, o casamento, a família, a paternidade, a

morte, a imprevisibilidade da vida e a possibilidade de perda. Time Indefinite engaja tanto

uma celebração pela vida quanto uma maneira de McElwee lidar com o luto diante da

perda de entes queridos. A “interioridade” do discurso do realizador em Time Indefinite

revela-se também no caráter amplamente verbal do filme, que conta com uma narração

em primeira pessoa praticamente incessante. Se, como propôs o diretor em contraponto a

Diaries de Ed Pincus, existe uma relação da voz como canal a um sentimento interior do

autobiógrafo que o registro do mundo exterior se faz insuficiente, Time Indefinite aposta

na potencialização deste auto racional e analítico por meio da voz over. Intercala-se um

processo de situação espaço-temporal das imagens que estamos vendo e uma meditação

ativa acerca das imagens filmadas (e das memórias de eventos já transcorridos na vida do

diretor), que faz com que exista uma sensação intermitente de contato com sua

racionalidade analítica.

Como já citado, McElwee sugeriu em entrevista para esta pesquisa que a partir de

Time Indefinite tornou-se clara em sua carreira a possibilidade de oferecer um aspecto

autobiográfico contínuo. Até mais que isto, o tipo de reivindicação autobiográfica que o

diretor desenvolve no filme acaba por adquirir um caráter irrevogável, tanto pelo tipo de

“projeção” para o futuro que a narrativa propõe, como também pelas cicatrizes que seu

ato autobiográfico deixará em si próprio e nas pessoas ao seu redor. A questão da

temporalidade em Time Indefinite, que pressupõe um movimento de olhar para o passado

e para o futuro do diretor, tanto em sua vida privada quanto em sua vida

“cinematográfica”, sugere estarmos diante da construção de um alicerce. É a metáfora

usada por Jim Lane em sua análise sobre o filme, que sugere que a “Autobiografia parece

ser o discurso completamente apropriado para a construção do novo edifício de

McElwee” (LANE, 2009, p. 90). Time Indefinite sugere desde o título que a noção de

tempo, ou temporalidade, será um fator de questionamento na narrativa. Este é o filme

que expõe mais consistente e pela primeira vez o interesse de McElwee pela abordagem

deste assunto nos filmes. Seus documentários tipicamente sugerem ao espectador um

visionamento engajado na reflexão acerca de como as múltiplas camadas de suas

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enunciações cinematográficas relacionam-se com a noção de tempo – pretérito, presente

e futuro. Da mesma forma, McElwee explicita questionamentos acerca da representação

fílmica como aporte de construção autobiográfica, bem como o efeito da cristalização da

vida em registros de imagem/som.

Logo na primeira sequência de Time Indefinite, McElwee lança mão de

procedimentos que sugerem a inserção do filme neste campo de reflexão. Munido de sua

câmera, o diretor está na tradicional reunião familiar dos McElwee com uma missão:

anunciar para parentes o noivado com a companheira/parceira de trabalho Marilyn

Levine. Igualmente importante para McElwee é registrar o momento em que o anúncio é

realizado, colocando-nos, enquanto espectadores, na posição de experienciar o momento

da reação de sua família à notícia, ao mesmo tempo em que ele o faz. Seja por

coincidência ou por certo azar endêmico que parece assolar sua vida, as baterias da

câmera apresentam um mau-funcionamento que estraga seus planos e suas tomadas.

McElwee aponta a presença de seu pai como responsável pelo agouro, a quem o

diretor atribui uma espécie de “campo de força surreal Freudiano” que faz com que seu

equipamento enguice. O acontecimento o lança em uma epifania de reavaliação do

passado: não é a primeira vez que o “peso” da presença do pai influi no seu trabalho

artístico. O diretor já nos mostrou isto, em Backyard, e nos mostra novamente. Ele lembra

que, no meio da década de 1970, filmou seu pai por dias a fio, acompanhando-o no

cotidiano de seu trabalho de cirurgião. Algumas imagens-chave resultaram deste

momento de sua vida, que recorrentemente voltam à mente (e às narrativas) do diretor.

Entre elas, uma imagem de Lucille, uma das empregadas de sua casa, empacotando os

sapatos de sua mãe logo após sua morte. McElwee aponta que é o mais próximo que pôde

chegar de um registro fotográfico dela. Em outra destas imagens-chave, citada

anteriormente, seu pai fita a câmera do filho-diretor e sublinha que apenas ficará satisfeito

quando o “olho grande”, a lente, tiver desaparecido: “I’ll be glad when the big eye is

gone”. Esta cena, que figura pela primeira vez em Backyard, pela segunda vez em Time

Indefinite e voltará a aparecer em Photographic Memory, é o emblema da disparidade

entre McElwee e seu pai naquele momento, no que diz respeito à sua desconfiança sobre

a opção do diretor em seguir uma carreira artística. No momento “presente” da filmagem

de Time Indefinite, entretanto, a relação entre o diretor e seu pai parece estar apaziguada,

devido à certa estabilidade que o patriarca enxerga na decisão do filho em casar-se, bem

como pela vida profissional do cineasta, que já rende frutos. O acúmulo de

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responsabilidades, pondera McElwee, coloca-o em uma situação diferente da que se via

em anos anteriores. Isto lança-o a uma segunda epifania. Sobre imagens de Sherman’s

March, período que McElwee nomeia como “determinado verão”, o diretor pensa em seu

passado sob a ótica de sua condição de solteiro, como frisado, quando havia um senso de

liberdade que promovia a possibilidade de filmar tudo o que ocorria ao seu redor. A

atividade de registrar livremente o que transcorre diante de si, entretanto, parece tornar-

se cada vez mais difícil.

Figura 38: A reação da família McElwee ao anúncio do noivado em Time Indefinite (1993)

Para situar-nos no “presente” de sua vida individual no momento das tomadas da

ocasião do anúncio de seu noivado, portanto, McElwee recapitula eventos significativos

de seu passado. Não se tratam, porém, de lampejos randômicos de memória aos quais o

diretor poderia dirigir-se simbolicamente (como descrevendo-os através apenas de sua

narração em over, em palavras), mas eventos cristalizados em imagem e som. Mais que

isso, os eventos que McElwee nos mostra como parte integrante de seu passado não são

tomadas típicas de um acervo familiar particular, guardadas por décadas e agora tornadas

públicas por meio do filme. O diretor utiliza-se de trechos de seus filmes anteriores,

evidenciando que os momentos de seu passado que merecem menção são aqueles de uma

memória “cinematográfica”: eventos de sua vida individual passada, porém já trabalhados

por meio da linguagem e transformados em narrativa. Analisando um fenômeno que vai

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em direção ao recurso utilizado por McElwee, o teórico da autobiografia Avram

Fleishman sustenta que o livro publicado transforma o autobiógrafo em um novo ser. O

escritor não seria mais a pessoa que viveu os eventos, mas, sim, aquela que os escreveu.

Os eventos, por sua vez, também são inevitavelmente modificados: um evento

transcorrido no plano real (aquilo que efetivamente aconteceu) cristaliza-se naquilo que

foi expresso em palavras pelo autobiógrafo. (FLEISHMAN, 1983, p. 6). A partir de

procedimentos como estes, McElwee entra em um processo que circunda sua carreira dali

em diante, engajando maiores questionamentos acerca da relação entre ato autobiográfico

e vida individual. Time Indefinite é o filme que efetivamente dá forma a uma espécie de

“bola de neve” autobiográfica relativa à carreira de Ross McElwee, que por vezes parece

crescer desordenadamente, suscitando algumas questões éticas mais delicadas. A

narrativa de Time Indefinite evoca algumas destas questões, tanto se considerada

isoladamente, quanto se avaliada em relação à sua força potencial na obra de McElwee

como um todo. A temporalidade trabalhada pelo diretor no filme diz respeito a estas duas

alternativas.

Uma delas concerne a relação temporal entre a narração em voz over de McElwee

e as tomadas fílmicas por ele realizadas. Em um procedimento que transcorre por toda a

narrativa de Time Indefinite, McElwee busca construir uma narração em primeira pessoa

a partir da utilização do tempo presente. Trata-se de uma característica que não é

incomum em outros filmes do diretor, porém neste, em especial, a escolha evoca alguns

questionamentos. Utilizando ainda como exemplo a primeira sequência de Time

Indefinite, durante a reunião da família McElwee, o diretor constata em over: “Minha

mãe, que morreu há 12 anos, gostava de dizer que tudo começa e termina com a família.

Mas agora eu tenho 39 anos de idade, ainda solteiro, e penso que minha família

praticamente perdeu as esperanças de que eu construa a minha própria”. O diretor,

entretanto, não tem trinta e nove anos, seja no momento da gravação da voz em over (cuja

data é impossível precisar), quanto no ano de lançamento de Time Indefinite, em 1993.

Nascido em 1947, McElwee teria trinta e nove anos em 1986, o que indica que este seria,

provavelmente, o ano da reunião familiar a que o diretor está se referindo.

Subjaz a esta escolha narrativa uma maneira de aproximar o espaço temporal da

narração em over ao das imagens realizadas pelo diretor. Como referido, a metodologia

do cinema direto aplicado à ótica de uma exploração autobiográfica suscita a sensação de

“tempo presente”, na qual podemos experienciar, enquanto espectadores, uma espécie de

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sobreposição de nosso corpo ao do cineasta, estando junto a ele e assistindo às reações

das pessoas ao seu redor diante dos eventos que estão sendo tematizados. Neste caso, a

metodologia do cinema direto diz respeito, dominantemente, à projeção da exterioridade

(os corpos e diversos elementos do mundo material) à lente da câmera, em uma

circunstância espaço-temporal determinada. Já com a voz over, McElwee busca emular

um estado de espírito interior de si próprio, bem como das pessoas ao redor (“minha

família praticamente perdeu as esperanças”), que regia a mesma circunstância. O fato de

se tratar de um texto escrito no tempo presente acentua movimentos de tensão e resolução,

motor propulsor de qualquer narrativa tradicional. Isto aconteceria de uma maneira

distinta se as reflexões travadas por McElwee em over fossem construídas através do

tempo verbal pretérito. Através de uma narração cunhada no passado, o ato autobiográfico

adquiriria um aspecto de resgate da memória, impossibilitando a sensação de que estamos

vivendo “junto” do diretor os momentos pelos quais passou e registrou. O efeito

dramático é potencializado se nos sentimos próximos de um narrador que assere seu

desconhecimento acerca do que o futuro lhe reserva – mesmo se o desconhecimento seja,

de fato, ilusório. McElwee disserta sobre esta “volta temporal” ao momento da tomada,

como um aspecto de estranha dualidade:

Filmar a própria vida configura uma dualidade estranha, sincopada,

entre o presente de uma pessoa e seu passado. De certo modo, faz com

que seja muito difícil viver no presente. Uma espécie de esquizofrenia

se instala quando você está montando – ou, talvez, “retrofrenia” seja

uma palavra melhor –, uma estranha sensação de, estando no presente,

olhar para trás, em um outro presente que também parece muito vívido:

o mundo, como foi registrado pelo cineasta alguns anos antes.

Sherman’s March tomou-me quatro anos para montar. Quando eu me

aproximava da finalização do filme, ficava pensando: “Não pode ser eu,

aí, perseguindo estas mulheres tão desafortunadamente.”. Era como se

eu estivesse assistindo às escapadelas de alguém que talvez fosse como

eu, mas que não era eu. (...)

Constantemente tenho de lidar com o paradoxo de que o material

filmado não contém efetivamente “eu”, seja lá o que isto for. Mas,

ainda, sou eu, ou alguma versão de mim. Eu não consegui começar a

montar Time Indefinite, com o material que lida com a morte de meu

pai, até muitos anos depois de sua morte. E neste momento eu mesmo

já era pai. A vida continuou e eu continuei com ela, mas para a edição

precisava reocupar este tempo passado pessoal, de maneira que pudesse

recriar um presente para o filme. Então, no mínimo, este tipo de cinema

fornece um senso estranhamente desarticulado para a passagem do

tempo em sua vida. Nos piores momentos, pode te fazer ter a certeza de

que está enlouquecendo e que você não tem fixação na realidade.

(McELWEE, 2005. p. 17. Tradução Nossa.)

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Estas questões apresentam mais densidade no segundo ato de Time Indefinite.

Ainda no primeiro, após o anúncio de noivado do diretor com Marilyn Levine, seguem

narrados diversos eventos que antecedem a cerimônia de matrimônio. Entre eles, exames

de saúde requeridos pelo governo estadunidense para o casamento e comemorações do

noivado com amigos: um jantar com Ricky Leacock e a despedida de solteiro do diretor

em um bar com outros cineastas, como Robb Moss e Steve Ascher. Durante os eventos,

McElwee reflete em over sobre o período vindouro, sobre o significado da união com

outra pessoa a partir do casamento. Não se separando da câmera no dia da cerimônia, o

cineasta filma até o último momento possível os bastidores da celebração: preparativos

de decoração e buffet, bem como a noiva vestindo-se. Sendo filmado por um de seus

amigos, a desajeitada persona de McElwee emerge novamente ao dar a mão errada para

receber a aliança, tudo isto sob o olhar auspicioso do pai. Em Time Indefinite, McElwee

narra os eventos como um período de bonança e felicidade que parecia eterno. O

casamento dá lugar ao anúncio da gravidez de Marilyn. Com o bebê vindouro, assistimos

ao casal McElwee saindo em busca de mobília e enxoval em uma loja da cidade, bem

como a mudança para uma casa que possa alocar a família e seu novo membro. McElwee

nos confessa sentir o peso da mudança, os lampejos de insegurança em relação à

paternidade e as dificuldades financeiras que podem advir da nova situação. As novas

responsabilidades parecem influir no peso que a câmera passa a ter em seus ombros: o

ato de filmar o mundo da maneira que fazia antes tende a conflitar com a dedicação à

família que terá a partir do momento.

Figura 39: Marilyn Levine e Ross McElwee na cerimônia de casamento, em Time

Indefinite (1993)

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Três mortes sequenciais interrompem o ciclo de felicidade ao redor da vida de

McElwee e transformam o eixo narrativo de Time Indefinite em uma meditação acerca da

perda e do luto. A morte da avó do diretor – a única de alguma forma antevista por ele –

antecede o aborto espontâneo do bebê do casal, e, cinco dias depois, a morte repentina do

pai do cineasta. Durante o processo de luto, McElwee passa por um hiato de meses sem

filmar, seguido por viagens à Carolina do Norte e encontros com familiares e amigos. Se

a importância ou a viabilidade da câmera e do ato de registrar haviam sido postos em

questionamento pelo diretor em um período de felizes transformações, McElwee agora

traça o caminho inverso, fazendo da câmera um necessário instrumento de catarse. Por

entre diversos tipos de registros audiovisuais, McElwee traça uma busca incessante de

concretude à noção de perda, ou, como o próprio diretor confessa ao final do filme: “Eu

queria encurralar a morte com uma câmera e de alguma forma preveni-la de se tornar

abstrata”.

Na casa onde cresceu com sua família, no Sul, o diretor faz tomadas das roupas

de seu pai, ainda penduradas nos cabides e organizadas dentro das gavetas. Através de

uma conversa com Lucille, que trabalha no lar da família há décadas e que já foi procurada

pela câmera do diretor em outras ocasiões, McElwee ouve sobre algumas das últimas

conversas que ela teve com seu pai e procura algum amparo em sua religiosidade latente.

Em um movimento análogo ao visto em Backyard em relação à morte da mãe, o realizador

conversa com o irmão cirurgião, que também não consegue precisar o motivo da morte

do pai, tendo em vista a ausência de qualquer problema de saúde preexistente. Viajando

à Flórida, o realizador vai ao encontro da irmã Dede, mas obtém apenas memórias

evasivas a respeito das lembranças da irmã sobre ele. Há, entre os irmãos, uma dificuldade

em falar a respeito da morte. O diretor atribui isto, em algumas entrevistas, como parte

do estereótipo que gira em torno da “Etiqueta sulista”, que sugere que se evite abordar

temas de dificuldades pessoais. McElwee procura mais uma vez a amiga Charleen, que

também tem uma morte recente com a qual tem de lidar. Trata-se do ex-marido Jim, que

“conhecemos” em Charleen, e que suicidou-se ateando fogo à casa em que moravam.

Charleen, como o cineasta, luta com a dificuldade em deixar que a morte se torne abstrata.

Ao invés de realizar imagens cinematográficas, a professora opta por continuar guardando

as cinzas do ex-marido. Em uma ida do realizador e de sua amiga a um riacho que corre

para o mar, Charleen alega ainda não se sentir preparada para descartar as cinzas e desiste

da ideia.

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Figura 40: Charleen olha para a casa reconstruída após o incêndio, em Time Indefinite

(1993)

No porão da casa dos McElwee em Charlotte, o diretor encontra um rolo de filme

super-8 guardado por quarenta anos, sobre o qual aposta que os pais nunca tiveram a

oportunidade de olhar. Assistindo às imagens, e fazendo-nos também as assistir, o

cineasta diz que gostaria de achar que seu pai e sua mãe estão agora no paraíso, sendo a

vez do pai tornar-se o “olho grande”, a lente, que olha por ele. O trabalho cotidiano,

realizado ano após ano, seguido pelo ato de criar os filhos, fazer festas de aniversário,

acompanha-los em eventos infantis e jogos de basquete transformaram o tempo em um

“borrão de quarenta anos de imagens e eventos”, segundo o diretor, que fez com que não

houvesse a oportunidade de assistir ao filme do casamento, relegando-o à posterioridade.

McElwee, diferentemente de sua família, transforma as imagens em narrativa, como um

meio de “desacelerar o tempo”, como o diretor constatará posteriormente em Bright

Leaves. Trata-se de sua maneira de fazer algo em relação a esta angústia – alguma

cristalização, alguma salvaguarda. Como astutamente apontado pelo autor Gary Hawkins,

McElwee parece sofrer de um caso grave de mono-no-aware (HAWKINS, 2008, p. 230),

um conceito estético japonês cuja tradução aproximar-se-ia de uma “sensibilidade para

com as coisas efêmeras”. Suas reflexões diante de um rolo de película guardado há

quarenta anos que o diretor “massageia de volta à vida” (expressão também do próprio

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McElwee), na forma de uma narrativa, é o extrato de um sentimento que permeia todos

os filmes do diretor, principalmente depois de Time Indefinite. Trata-se da mesma

“amargura” que Josep Maria Català detecta nos filmes de McElwee, ou uma melancolia

diante da efemeridade dos eventos do mundo e das pessoas que o habitam. O realizador

busca conformar-se com a realidade da vida através de sua pesada câmera, com a qual

filma crescimentos e envelhecimentos, nascimentos e mortes, ano após ano e geração

após geração, de si próprio e das pessoas com quem se importa. Transformando imagens

em narrativas, a angústia de McElwee torna-se uma fonte pulsante de vida a cada vez que

seus filmes são revisitados pelos espectadores.

O nascimento de Adrian, primeiro filho do diretor, marca o final da narrativa de

Time Indefinite. Nas últimas frases de sua narração em over, o diretor sugere que

eventualmente fará um filme sobre Adrian “crescendo no mundo”. A sugestão de

McElwee, na realidade, é a afirmação de que a exploração da relação parental entre ele e

seu pai, que protagonizou o eixo narrativo autobiográfico de seus filmes até aquele

momento, dará lugar à meditação acerca de sua própria condição de “pai”. A relação entre

si próprio e Adrian, em várias de suas nuances, apresenta-se como o foco da força

narrativa de McElwee em seus filmes subsequentes. O teste da perpetuação desta relação

diante da força que o tempo tem de amortecer e transformar laços afetivos é um dos

principais alicerces da reflexão do cineasta em seu projeto autobiográfico.

Figura 41: Adrian McElwee com uma semana de idade, no plano final de Time Indefinite

(1993)

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Em entrevista recente McElwee utiliza a expressão “continuidade geracional”

(MACDONALD, 2014, p. 160) para referir-se à relação entre pais, filhos, avós, netos;

dentro do universo de questionamentos que envolve este fenômeno: matrimônio,

divórcio, nascimento, morte, adoção, senilidade, juventude. Nos filmes, o realizador

aposta na análise deste tipo de relação interpessoal familiar e na ciência de que o passar

do tempo faz com que estes laços se modifiquem de alguma forma. A “continuidade

geracional”, neste caso, diz respeito ao fato de que os filhos tornar-se-ão pais, as pessoas

unem-se em matrimônios, os pais tornar-se-ão avós, as pessoas envelhecem e morrem, os

jovens adquirem maturidade, etc. McElwee parte de um olhar para sua própria vida como

exemplo deste tipo de evolução e transformação da relação entre pais e filhos. Primeiro,

no que diz respeito ao apaziguamento de tensões entre ele próprio e seu pai (de Backyard

a Time Indefinite) e, depois, no distanciamento entre o si próprio e seu filho, ao atingir a

adolescência e a fase de jovem adulto, em um movimento que se inicia em Time Indefinite

e vai até Photographic Memory. Segundo McElwee, “usando este emaranhado de

relações geracionais como minha rede de segurança, estava feliz em me equilibrar no

trapézio e buscar repostas a estas questões – na realidade, irrespondíveis – de criação e

propósito [da vida]” (MACDONALD, 2014, p. 159). A “rede de segurança”, para o

diretor, neste caso, significaria que a união da família seria, por si só, um subsídio com o

qual poderia trabalhar por tempo indeterminado: as relações familiares continuariam a se

desenvolver à medida que o diretor envelhecesse.

Entretanto, em material bibliográfico e em entrevistas dos últimos anos –

principalmente, nos dois últimos livros publicados pelo autor Scott MacDonald

(MACDONALD, 2013 e 2014) – revela-se que o último filme de McElwee, Photographic

Memory (2011), fora produzido em um período em que seu casamento estava

desmoronando. É possível notar que o filme pouco mostra o convívio do diretor com o

resto da família, para além de Adrian, evocando um aspecto de cisão familiar menos

detectável nos trabalhos anteriores. O casamento do diretor com Marilyn terminou ainda

em 2011, tendo durado vinte e três anos (e quatro longas-metragens). McElwee indica

que este acontecimento, no momento atual, coloca-o em uma situação de reavaliação de

sua carreira e de suas possíveis criações futuras. Em outras palavras, o “presente” que o

diretor constrói na narrativa de cada um de seus filmes (o caso do seu casamento em Time

Indefinite é o mais pungente), e que é reconstruído toda vez que um espectador assiste a

eles, talvez comportar-se-ia como o “defunto” de um momento presente. Ou seja, a

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previamente citada “rede de segurança” do casamento e da união em família, neste

momento atual da carreira do diretor, seria colocada em cheque. Se a obra de McElwee

garante sua força autobiográfica justamente na maneira em que se apresenta como um

complexo emaranhado entre família e cinema, parece natural que um golpe profundo em

uma destas estruturas causaria desestabilidade na outra. Nesta mesma entrevista, por

exemplo, o diretor menciona que está separado de sua filha, Mariah, cujo processo de

adoção é o leitmotiv de In Paraguay (2008), e que agora ela vive com a mãe.

Parcela significativa da obra do diretor depende de sua inclinação vertiginosa

acerca de aspectos de sua vida individual e, em especial, das relações familiares que

advém da paternidade e do matrimônio. Neste caso, portanto, o “desmoronamento” de

um casamento parece ser especialmente problemático. Se McElwee transitava livremente

na reutilização de trechos de seus filmes anteriores, como ativação de uma “memória

cinematográfica”, é provável que a modificação de sua estrutura familiar venha a afetar

este processo. Haveria a possibilidade, agora, de utilizar sequencias de um filme como

Time Indefinite – um filme que, entre outras coisas, celebra o amor entre ele e sua ex-

esposa? De alguma forma, portanto, os acontecimentos “atuais” da vida de McElwee

acabaram por alterar a percepção que o próprio tem em relação à autenticidade dos

sentimentos que expressa nos filmes que fez no passado. Em entrevista a Scott

MacDonald, o diretor faz uma avaliação deste momento de sua carreira:

Quando eu dou um passo atrás em relação ao trauma emocional do que

aconteceu, coloco em questão todo o empreendimento da não-ficção

autobiográfica através de uma perspectiva quase filosófica e

fenomenológica. O que significa produzir estes filmes sob a ótica do

fato de que os contextos e as circunstâncias pessoais invariavelmente

alteram seus significados? (...) Eu sempre senti que meus filmes

dependiam da disposição do espectador em aceitar a profundidade da

continuidade geracional – aquilo que devemos a nossos pais e avós e,

para aqueles de nós fortunados o suficiente para ter filhos, o que

devemos à nossa prole. Como um documentarista-autobiógrafo, estou

lutando para aceitar que esta continuidade – que sempre foi tão

importante para mim – foi, ao menos parcialmente, decepada. Em meus

piores momentos, as cenas de família em meus filmes agora me

parecem ficções, uma espécie de mentira. Talvez nunca tenha havido

nenhuma verdade real por trás das cenas, nos sentimentos dos meus

filmes. Talvez eu devesse adicionar uma mensagem no final dos

créditos “Qualquer semelhança entre os personagens retratados no

filme e as pessoas do mundo real é meramente coincidência.”

(MACDONALD, 2014. Tradução nossa.)

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A declaração de McElwee serve como força propulsora para a reflexão acerca de

seu trabalho e de outros documentaristas-autobiógrafos. O diretor questiona até que ponto

seus filmes soariam “reais” para si próprio, atualmente, frente aos acontecimentos

recentes do rompimento do matrimônio e da separação de sua família. Isto diz respeito

não apenas a seus filmes, mas a qualquer empreitada fílmica autobiográfica, que sempre

admitirá que a vida de seu autor poderá sofrer mudanças após o término da narrativa. A

esta reflexão é inerente o devaneio acerca de até que ponto o hábito de filmar do cineasta

acarretou impactos em sua vida pessoal – impactos no sentido de transformação, ou de

desvio. Dentro de seus filmes, McElwee dá indícios de que o registro constante de si

próprio e das pessoas ao seu redor (e, principalmente, a utilização destes momentos em

um contexto cinematográfico) frequentemente cria conflito com outras atividades pelas

quais se julga responsável: a própria família e o professorado. A partir de Time Indefinite,

a esposa do diretor, Marilyn, praticamente não aparece mais em seus filmes. Este pedido

por não ser retratada imageticamente teria partido dela mesma, segundo constata

McElwee em diversas entrevistas. Torna-se evidente que registrar e tematizar a passagem

do tempo, o envelhecimento e o desenvolvimento do ciclo da vida (e da morte) pode

resultar como uma tarefa que não passa ilesa de causar algum impacto nas pessoas ao

redor. Mesmo que por vezes possa parecer o contrário, o cineasta constata que existe uma

dificuldade latente em registrar (e narrativizar) cinematograficamente as pessoas

próximas de si, especialmente sua família, mesmo que estas concordem em ser filmadas:

“Encontro-me muitas vezes sem forças para carregar a câmera e apertar o botão. Prefiro

segurar o meu filho do que a câmera, e, na realidade, filmei muito pouco dos seus quatro

primeiros anos de vida, apesar dele não se importar com meu hábito de filmar. O problema

é meu. ” (McELWEE, 2005. p. 17. Tradução Nossa.).

Evidentemente, a constatação de McElwee de que Adrian não se importa com o

hábito de filmar do pai não evita que a atividade tenha consequências na vida imediata

tanto de um quanto do outro. Existe menos clareza em relação ao contrato firmado entre

cineasta e “personagens”, no caso de documentários autobiográficos como os de

McElwee. Trata-se de uma relação sobretudo (e anteriormente) regida pelo laço familiar

existente entre as partes e guiada pelas nuances de afeto e autoridade que advém deste

tipo de relação. Como pode ser indagado em relação a diversos outros casos de

documentários autobiográficos, que consciência poderia ter um filho pequeno acerca dos

acarretamentos futuros em sua vida de um registro (e de uma subsequente narrativização

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destes eventos) diante de um pai-diretor e de suas, muito frequentemente boas, intenções

cinematográficas? Neste caso, portanto, não apenas o momento do registro (“carregar a

câmera e apertar o botão”) pode ser um fator gerador de impacto tanto para o cineasta

quanto para aqueles que estão envolvidos diretamente com sua empreitada, mas também

a transformação destes eventos em narrativa, por vezes compostos de passagens delicadas

(imbuídas de fatores conflitosos ou traumáticos) de suas vidas privadas e que cujos efeitos

de exposição em relação ao tempo (o “tempo indefinido”) não podem ser precisados. A

carreira de McElwee é repleta deste tipo de passagem. Por vezes, estes momentos

comprometem-se mais com a evocação de um teor jocoso (como o comportamento

desajeitado do diretor em relação às suas pretendentes em Sherman’s March), mas

também podem reivindicar reflexões mais sérias (a morte do pai do cineasta em Time

Indefinite ou o conflito entre pai e filho em Photographic Memory).

A delicada passagem do aborto espontâneo de Marilyn, que figura na narrativa de

Time Indefinite, suscita reflexões neste sentido. No filme, McElwee narra diversas

situações que antecedem a interrupção da gravidez da esposa, que se apresenta como parte

do ponto de virada narrativo do filme – da alegria para o luto. Pode-se levar em

consideração a circunstância da tomada cinematográfica de cada um destes eventos, como

quando o casal anuncia aos pais de Marilyn que ela está grávida, ou quando McElwee e

a esposa estão em uma loja comprando móveis e enxoval para o bebê vindouro. Nestas

ocasiões, a intenção do registro de McElwee girava em torno da urgência em registrar os

momentos, únicos e insubstituíveis, que compunham o cenário do mais importante

acontecimento de sua vida e de Marilyn – o nascimento do filho –, cujo desfecho triste

seria impossível de antever. Entretanto, a utilização destes eventos como aporte narrativo

após o acontecimento dos fatos gera questionamentos difíceis de serem evitados. Ainda

no início do filme, McElwee narra a viagem que realizou com a esposa para o México.

Diante do fato de ter filmado muitos rolos de película em um cemitério infantil, o cineasta

indaga-se a respeito de estar pensando constantemente na morte de um possível filho:

“Sei que é absurdo preocupar-se sobre algo acontecer com uma criança que nem foi

concebida, mas às vezes acho que isto pode ser parte do problema”. Quando narrou esta

frase ou utilizou-a em um contexto narrativo, McElwee já sabia, evidentemente, o que ia

acontecer: o filho já havia sido concebido e, posteriormente, abortado. Por tratarem-se de

espaços fenomenológicos distintos, o diretor trata de emular estados de espírito e

consciência que estejam vis-à-vis com o “presente” das imagens filmadas. Como frisado

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anteriormente, o cineasta assegura seu próprio estranhamento diante deste tipo de

procedimento como uma “retrofrenia” que, no limite, suscita em si a sensação de “não ter

fixação na realidade”.

Ainda que McElwee assuma que existe um estranho paradoxo temporal evocado

por sua metodologia fílmica, é possível também questionar sob uma perspectiva ética suas

escolhas estéticas/narrativas que compõem estas passagens de Time Indefinite. O cineasta

nos narra todos os episódios que antecedem a notícia do aborto de Marilyn a partir de um

narrador/personagem que se mostra falsamente ingênuo em relação ao desfecho do caso.

Em outras palavras, é possível delegar à visão artística de McElwee, enquanto cineasta,

um aspecto de certo “sangue-frio” ou, ainda, de certa morbidez. Não é incomum que

casais que passam por episódios de abortos espontâneos apaguem quaisquer memórias

materiais e imateriais que dizem respeito aos filhos que não vieram a ser. Móveis, roupas,

decoração, e, muito frequentemente, fotografias e filmagens do período da gestação

tendem a ser escondidos ou eliminados. O caso do filme de McElwee parece tender ao

oposto desta postura. As circunstâncias vividas pelo diretor e sua família são

transformadas em imagens em movimento cuja metodologia tende a evocar uma

experiência análoga à vivenciada por McElwee nas situações “originais” – sublinhada

pelo narrador que emula sua não-ciência do desfecho desta sequência de eventos. Neste

caso, este período, que muitos poderiam considerar como traumático, é vivido novamente

toda vez que o filme é projetado e assistido por um espectador.

Sob esta perspectiva, as escolhas estético-narrativas do cineasta em um filme

como Time Indefinite podem ser vistas, como frisamos anteriormente, como um fator

gerador de desconforto, ou impacto, para si próprio e para sua família, em relação à

exposição de um momento delicado. Por outro lado, entretanto, se é justamente na

tematização sensível dos âmbitos mais significativos da vida individual e familiar que os

documentários de Ross McElwee transpiram sua particularidade, como poderia ele ter

deixado estes momentos de lado? É neste sentido que pode-se enfatizar que existe uma

difícil relação que vai se construindo entre o “Viver” e o “Filmar” em sua obra, sendo que

os questionamentos resultantes desta relação são o núcleo da particularidade da

empreitada autobiográfica do diretor. Quando frisamos que há um mergulho vertiginoso

do diretor em meio às questões que imbricam vida, filme e autobiografia, o fazemos no

sentido de afirmar que dificilmente outro cineasta tenha lidado com esses aspectos como

fez McElwee até o momento. De maneira análoga à meditação que o diretor faz a respeito

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da relação entre o cinema e sua própria vida em Sherman’s March – “Parece que estou

filmando minha vida com o intuito de ter uma vida para filmar, como um organismo

primitivo que se alimenta através de seu próprio devoramento, crescendo à medida que

diminui. (...) O que é pior é que parece que não tenho mais uma vida real. Minha vida real

ficou na fenda entre mim mesmo e meu filme.” –, resgatamos aqui a ideia do teórico da

autobiografia Georges Gusdorf, quando afirma que “a verdade da vida não é diferente,

em sua constituição, da verdade da obra: o grande artista, o grande escritor vive, de certa

maneira, para sua autobiografia” (GUSDORF, 1980, p. 47). O comprometimento

explícito de McElwee no engajamento de um projeto autobiográfico que se desdobra por

muito tempo parece tomar forma em Time Indefinite, como uma “promessa” que é

efetivamente cumprida.

Também neste filme o diretor introduz elementos que servirão como metáfora da

relação parental, principalmente do laço que estabelecerá com seu filho, Adrian. Um

destes elementos é a tematização da costa da Carolina do Norte, estado natal do diretor,

banhada pelo oceano atlântico, o mesmo que banha também a Nova Inglaterra e o estado

do Massachusetts, onde McElwee habita e constitui sua família. Time Indefinite inicia

com uma imagem do píer onde o diretor passou muitos momentos de sua infância. Lá, a

pescaria (o ato de pescar) é um elemento a que McElwee recorre quando reflete acerca

do universo de questionamentos suscitado pela “continuidade geracional”. Em

determinado momento ainda no início do filme, McElwee diz em over: “Estou

momentaneamente paralisado por me dar conta que, algum dia, terei um filho ou uma

filha que, entre outras coisas, terá de ser ensinado a pescar”. Não é hiperbólico asserir

que, neste momento, o diretor está sugerindo que seu filho crescerá, será ensinado a pescar

e, muito provavelmente, este evento será registrado e tematizado por ele em algum filme

posterior. O final de Photographic Memory, lançado dezoito anos depois de Time

Indefinite, vem a confirmar a expectativa. Neste, Adrian, já um jovem adulto, junta-se ao

pai em uma pescaria em alto mar um tanto quanto frustrada. O fracasso da pescaria

simboliza, naquele momento, o desgaste da relação entre pai e filho que fora alicerçando-

se ao longo dos anos (e dos filmes).

O leitmotiv do filme In Paraguay, lançado em 2008, tematiza a adoção de Mariah,

filha mais nova do diretor, e se relaciona com uma das últimas sequencias de Time

Indefinite. Nesta, o diálogo entre McElwee, sua esposa, Marilyn, e a amiga Charleen, gira

em torno da possibilidade da adoção de uma criança órfã do “Terceiro Mundo”. Neste

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sentido, o cineasta por vezes expressa deliberadamente a intenção de seus filmes

“jogarem” com aquilo que a vida reserva para o futuro. Time Indefinite é o filme que

efetivamente abre a porta deste processo autobiográfico desencadeado ao longo das

décadas, cujo desfecho ainda não é possível precisar.

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3.5. Six O’Clock News (1996): Deus é uma câmera de filmar

Diante da imagem do recém-nascido Adrian com uma semana de idade, Ross

McElwee retoma sua jornada autobiográfica no primeiro plano de Six O’Clock News. O

filme foi finalizado e lançado em 1996, quando o diretor tinha 49 anos de idade. Neste

momento, suas reflexões são colocadas em movimento a partir da experiência recente da

paternidade. Vivenciando uma responsabilidade outrora não reconhecida e enxergando

no filho um pequeno e vulnerável ser humano, o “peso” da existência concretiza-se em

uma nova faceta de sua vida. A matéria-prima temática de Six O’Clock News não se

desvencilha totalmente da trabalhada por McElwee em Time Indefinite. Originalmente,

os dois filmes foram pensados como sendo um projeto único. Neste caso, a trajetória do

diretor e sua família, no que concerne o período desde o casamento até o nascimento de

Adrian, seria uma espécie de introdução à reflexão desenvolvida em Six O’Clock News.

Diante da dificuldade comercial que envolveria um projeto de quatro horas de duração,

McElwee aponta que decidiu por realizar dois filmes independentes (HUNT, 1994).

Existem, entretanto, pontos de contato entre os documentários que reivindicam um olhar

de unidade entre eles.

Em Six O’Clock News, o “mundo lá fora” parece ter se tornado para o diretor um

lugar mais perigoso do que aparentava anteriormente. A indeterminação que tende a reger

a vida – um aspecto já trabalhado tematicamente em Time Indefinite – refere-se, neste

caso, às possíveis ameaças da experiência de habitar o mundo em seu cotidiano. Em Time

Indefinite, a imprevisibilidade do mundo diante da perda relaciona-se mais a fenômenos

que tendiam à naturalidade, como os acontecimentos súbitos da morte de seu pai (uma

espécie de infarto) ou o aborto espontâneo na primeira gravidez de Marilyn. Em Six

O’Clock News, entretanto, McElwee encontra-se aturdido pela imprevisibilidade de

fenômenos violentos causados por forças externas: outros seres humanos ou o poder

catastrófico da natureza. Sua exposição a este tipo de ameaça do mundo externo é

canalizada pela televisão, diante das transmissões dos noticiários diários. Havendo de

passar mais tempo dentro de casa devido à nova situação familiar, McElwee revela estar

mais exposto ao que os programas de notícia das seis horas da noite (os Six O’Clock

News) trazem de melhor – ou pior. Os Six O’Clock News são os telejornais estadunidenses

que têm como matéria-prima diversos tipos de tragédias e revezes, passando por aspectos

de sensacionalismo, não diferentes de programas brasileiros popularescos como “Cidade

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Alerta” ou “Brasil Urgente”. Assassinatos, roubos, agressões e todo tipo de catástrofes

ambientais, como tempestades, furacões e terremotos, são objeto de pauta destes

programas. O mundo externo em sua imprevisibilidade – o habitat natural de McElwee e

sua câmera de documentarista – é agora enxergado como ameaça constante que coloca

em alerta seu senso paterno de proteção recém-desenvolvido. Desatar este “nó mental”

impõe-se como o objetivo que McElwee pretende desbravar com a câmera nos ombros.

Ao entrar em contato com a maneira através da qual a televisão conta a história

de pessoas anônimas a partir dos episódios violentos ou catastróficos, McElwee coloca

em perspectiva seu próprio trabalho. Afinal, os programas televisivos, entre eles os “Six

O’Clock News”, trabalham com a construção de narrativas partindo da exploração de sua

ancoragem na realidade: os “fatos”, da maneira que aconteceram no mundo concreto,

habitado pelas pessoas. Seriam estes procedimentos substancialmente distintos das

narrativas documentárias cinematográficas que o diretor realizou nos anos anteriores?

Certa suspeição de que o modus operandi das emissoras de televisão passa pela

necessidade de fabulação como ferramenta para a potencialização de efeitos dramáticos

faz McElwee refletir acerca do processo de representação da realidade, como todo. Além

disto, o diretor narra ser vítima recorrente de comentários das pessoas ao seu redor que

dizem que ele deveria aproveitar seu sucesso como documentarista e “tentar a sorte” na

indústria de Hollywood. Aparentemente, pondera McElwee, as pessoas tendem a pensar

no cinema de ficção como filmes “de verdade”, apesar da relação endêmica que

supostamente o cinema documentário teria com a realidade.

Em um dos estudos da representação do real que entra em jogo no filme, McElwee

instiga-se pela possibilidade de entrar em contato mais profundamente com os

protagonistas do tipo de telejornal em questão. O diretor incomoda-se com o fato de que

os episódios (frequentemente violentos, possíveis geradores de trauma) são apenas

retratados de maneira sensacionalista, como requisito sine qua non deste tipo de cobertura

jornalística. Neste sentido, as pessoas que perderam seus entes queridos de maneira

violenta ou abrupta, ou que sobreviveram algum tipo de catástrofe natural, são menos

exploradas na condição de indivíduos repletos de nuances psicológicas e mais como

possíveis geradores de identificação emocional instantânea ou de frases de efeito.

McElwee propõe-se, portanto, a passar um período com algumas destas pessoas que se

tornaram “estrelas” graças aos telejornais popularescos a fim de testar algum outro tipo

de narrativização cinematográfica de suas vidas após os ocorridos. Como acontece na

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maioria de seus filmes, o cineasta ativa suas meditações quando se coloca em movimento.

Mais uma vez, há a necessidade de deixar momentaneamente o “enclausuramento” do

gelado Nordeste dos EUA, bem como o universo acadêmico do professorado, para lançar-

se à indeterminação do mundo exterior. Como de costume, as andanças de McElwee

passam pelo retorno ao Sul dos Estados Unidos, mas também por uma “epifania” pela

Costa Oeste, onde o cineasta se depara com a influência da indústria da ficção

representada pela Califórnia.

Novamente, o impulso autobiográfico é o fator que tira McElwee da inércia.

Assistindo na televisão às imagens da devastação causada por um furacão49, McElwee

reconhece o local onde reside a amiga Charleen Swansea, na Ilha de Palms, estado da

Carolina do Sul. Em um procedimento análogo ao filme-irmão Time Indefinite, sua

narrativa vagueia pela memória cinematográfica de Charleen em seus filmes anteriores.

Nesta rememoração, McElwee sublinha a coincidência negativa de já ter tematizado uma

tragédia recente vivenciada por Charleen: o suicídio do ex-marido Jim, e a consequente

destruição de sua casa no incêndio provocado por ele. Na nova ocasião, entretanto, a casa

da ex-professora não fora totalmente destruída pelo furacão, mas bastante danificada.

Diante de mais um revés, Charleen confirma o combustível das reflexões de McElwee:

parcela significativa daquilo que compõe a vida de uma pessoa passa por um aspecto de

sorte, azar ou circunstancialidade. A ex-professora sustenta que a sensação de temor

diante da imprevisibilidade do mundo é algo que advém do envelhecimento, sugerindo

que não teria tido filhos se sentisse este medo em sua juventude – uma opinião que vai de

encontro às inseguranças de McElwee em seu recém-adquirido papel paterno.

Como viver dia após dia, portanto, sabendo que vidas e projetos podem

desmoronar de um instante para o outro, sem causa anunciada? Quais as chances de

passar, ao exemplo de Charleen, pela tragédia da destruição de sua casa duas vezes em

um curto espaço de tempo? Pode-se pensar na existência de algo como o destino, ou a

predestinação? Existiria algo, ou alguém, em controle de tudo o que acontece? Diante

destas ponderações, McElwee lembra-se que ele e sua família já passaram por um

episódio próprio de notícia de “telejornal das seis horas da tarde”. Seu irmão mais novo

foi atropelado por uma lancha quando criança, durante um passeio de sua família à praia.

49 Infere-se que as imagens da destruição se refiram ao Furacão Hugo, que assolou esta parte da costa dos Estados Unidos bem como países como Porto Rico e as Ilhas Virgens estadunidenses. Tomando isto como pressuposto, é possível situar temporalmente o início da narrativa de Six O’Clock News em meados de 1989, também o ano do nascimento de Adrian, filho do diretor.

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“Como isto pode ter acontecido?”, reflete McElwee, diante da possibilidade

“infinitésima” da lancha ter acertado seu irmão, na imensidão do mar e naquele momento

preciso. Mesmo com o fato – já explorado em Time Indefinite e que volta às reflexões do

diretor – seus pais, segundo constata o diretor, conseguiram fazer com que ele e seus

irmãos pequenos sentissem-se seguros no mundo após o acontecimento.

O imigrante sul-coreano Steve Im é uma das pessoas a quem o diretor vai de

encontro em sua jornada. A esposa de Im fora barbaramente assassinada durante o roubo

de uma loja da qual o casal era proprietário. O empresário rumara aos Estados Unidos em

busca de prosperidade financeira e das promessas do “sonho americano”, chegando ao

país com apenas cinquenta dólares no bolso e construindo, após décadas, um patrimônio

milionário. Im, entretanto, é relutante quanto à cultura capitalista americana, após o

incidente com a esposa. Segundo ele, sua relação com os EUA varia entre o amor e o

ódio. Em sua reflexão em over, McElwee constata que o capitalismo parece ser a “religião

nacional” dos Estados Unidos. Provavelmente, segundo o diretor, o empresário amparou-

se em uma espécie de “salvação monetária” a fim de lidar com o luto. Haveria, desta

forma, uma relação descompensada entre a idealização do “sonho americano” e o fato de

sua esposa ter sido assassinada em um assalto que rendeu cinquenta dólares aos

assaltantes. Tal banalidade provoca em Im a dificuldade de acreditar que Deus está em

cargo de alguma coisa, após a tragédia – o temor diante da imprevisibilidade do mundo

cresce com a sensação de que Deus haveria perdido o controle das coisas.

Há, portanto, uma relação entre “Deus”, “mundo” e “câmera” que começa a se

configurar na narrativa de Six O’Clock News e que permeia o pano de fundo temático do

filme. Em contraponto à história de Steve Im há a de Salvador Peña, buscado pelo diretor

já durante sua passagem pela California. Sua história tornou-se famosa devido ao acidente

que sofreu durante um terremoto. Peña, imigrante salvadorenho, trabalhava como

faxineiro em um estacionamento quando uma viga se rompeu em decorrência do tremor,

mantendo-o soterrado por blocos de concreto. Em decorrência de diversas lesões nos

braços e pernas, seus movimentos foram parcialmente comprometidos. Entretanto, sua

sobrevivência ao acidente foi tratada como “milagre” pelos médicos e pela mídia – se sua

posição no estacionamento tivesse sido alguns centímetros diferente, o acidente seria

fatal.

O diretor passa dias acompanhando Salvador Peña e sua família em um barrio de

Los Angeles, descrito pelo diretor como perigoso. Como o imigrante sul-coreano Steve

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Im, Peña também veio aos Estados Unidos em busca de melhores condições de vida,

porém não conseguiu alcançar o mesmo sucesso financeiro. Suas jornadas de oitenta

horas de trabalho semanais, McElwee nos conta, serve apenas para sustentar a si próprio

e a uma família de seis pessoas que permanecem em El Salvador. Em um dos trechos de

sua narração em over, McElwee responsabiliza o governo dos Estados Unidos pela

interferência nos assuntos internos de países latino-americanos, culminando na

manutenção de processos ditatoriais, e, por conseguinte, em uma desestabilização social

que causou a emigração de diversos de seus habitantes50.

Neste ponto, a reflexão do diretor toca o questionamento acerca do tipo de “sorte”

que poderia ser relacionada ao fato de Salvador Peña ter saído vivo de seu acidente. Ao

invés disso, McElwee pondera, como não enxergar tudo o que passou consigo a partir da

perspectiva de um azar profundo? Sua saída de El Salvador com o intuito de viver melhor

custou-lhe um acidente de consequências graves para sua saúde. Como não olhar para o

ocorrido a partir da perspectiva de um revés que poderia ter sido evitado, ou que poderia

ter acontecido com qualquer outra pessoa, que não ele? Em contraponto a certo ceticismo

que permeia as reflexões de McElwee durante o filme, Salvador Peña assere que, à

maneira de Abraão, o acidente teria sido designado por Deus, a fim de “testar” como ele

reagiria à experiência. Peña diz crer ainda mais em Deus após o acontecido, e acredita

que a incorporação da experiência o transformou em um ser mais belo.

Ainda que não da maneira mais ortodoxa como os processos pelos quais passaram

indivíduos como Steve Im ou Salvador Peña, McElwee também testa suas próprias

crenças em Six O’Clock News. Acompanhando o salvadorenho em uma missa católica

em Los Angeles, McElwee reflete: “É estranho, volta e meia encontro-me dentro de uma

igreja com uma câmera”. O diretor lembra-se, por exemplo, que aos doze anos de idade

fora contratado para gravar o áudio dos sermões do pastor da Igreja local, ou que seu

primeiro trabalho como cameraman foi o de registrar missas presbiterianas de domingo.

É interessante que o realizador exponha efetivamente este sentimento, colocando em

palavras algo que já acontecia em seus filmes anteriores. McElwee depara-se com

manifestações de religiosidade com sua câmera desde o início de sua carreira

autobiográfica e este permanece sendo um aspecto que permeia todos os seus filmes até

50 A mesma crítica pode ser observada, anos depois, na análise histórica realizada por McElwee em relação ao Paraguai, em In Paraguay (2008).

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Photographic Memory. Em todos eles, em dado momento, McElwee está presente dentro

de uma igreja com a câmera nos ombros.

Figura 42: McElwee filma uma missa católica em Six O’Clock News (1996)

O realizador traça um paralelo próximo entre religiosidade e o ato de filmar pois,

como aponta Scott MacDonald, o fazer cinematográfico é a crença mais profunda de

McElwee, a maneira através da qual ele lida com o aspecto “surreal” do mundo

(MACDONALD, 2013, p. 223). Sua “religiosidade” para com a câmera e para com a

possibilidade de narrativizar sua própria vida em construções cinematográficas acontece

de diferentes maneiras. Pode-se lembrar da colocação de Josep María Català, já explorada

aqui, que enxerga a relação primária entre McElwee e a documentação contínua dos

eventos ao redor de si como uma “penitência imposta por um Deus sombrio”. Ou, uma

espécie de fardo que McElwee carrega consigo, projetando esta atividade a um “futuro

indefinido”, cuja conclusão ou linha de chegada permanece em um lugar nebuloso.

Semelhantemente, existe um paralelo incontornável em relação à maneira através da qual

o realizador enxerga a câmera de filmar como única ferramenta capaz de ajudá-lo com o

processo de luto da morte do seu pai – enquanto que no caso de outras pessoas, a

aproximação com a religião também é, muito frequentemente, um meio utilizado para o

mesmo fim.

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Neste sentido, outro ramo do eixo temático de Six O’Clock News dedica-se ao

“teste da fé” de McElwee em relação à maior de suas crenças, o fazer cinematográfico.

Mais precisamente, trata-se de sua “fé” no cinema documentário como possibilidade de

reflexão sobre o mundo material e sobre as pessoas que o habitam. Como frisado, o modus

operandi dos programas de televisão em relação à narrativização da realidade é olhado

com suspeição pelo diretor, sendo uma abordagem cancerosa da mesma matéria-prima

que ele utiliza para a construção de seus filmes. O primeiro de seus “testes de fé” acontece

quando o cineasta recebe uma equipe de telejornalismo em seu apartamento, sendo

entrevistado como “o cineasta que filma constantemente todos ao seu redor”. McElwee

surpreende a equipe ao recebe-los já com a câmera em punho, fazendo com que os

repórteres queiram “reencenar” a entrada no apartamento, filmando o momento da

surpresa. Sobre as imagens de sua entrevista, o diretor divaga: “Então, trata-se de algo

menos real o fato de que estão entrando no meu apartamento pela terceira vez? Que

diferença faz isso, em última instância? Eu editarei esta cena para meus propósitos da

mesma maneira que eles o farão para os propósitos deles. Mas uma versão é mais real que

a outra?”.

Em outro momento de sua jornada, McElwee encontra-se em uma cidade no

deserto do Arizona devastada por uma tempestade. O local aos poucos é tomado (ou

“invadido”, segundo a ótica do diretor) por diversas equipes de telejornalismo. O cineasta

filma o depoimento de um casal que teve seu trailer poupado pela tempestade, e logo sua

câmera chama a atenção das equipes de televisão que acabam por colher o mesmo

depoimento. Mais tarde, McElwee registra o casal assistindo, ansiosamente, a própria

estória figurar uma reportagem de noticiário. Em sua meditação em over, McElwee

aponta as “três” versões da representação do mesmo fato: a que realizou horas antes, a

matéria feita pela equipe de televisão e o registro do casal assistindo à veiculação da

matéria. Trata-se de um questionamento das diferentes possibilidades de construção de

sentido do cinema documentário semelhante à realizada por Chris Marker na famosa

sequência de Lettre de Siberie (1958), em que o diretor narra de três maneiras diferentes

o mesmo conjunto de planos. Mesmo com uma exposição de apenas nove segundos no

telejornal, de acordo com as contas de McElwee, o casal apresenta um entusiasmo

inegável de estar “aparecendo na televisão” – provavelmente, um entusiasmo maior

daquele apresentado diante da promessa de figurar em seu documentário. Ao final da

narrativa, McElwee constata mais uma situação de “vitória” da televisão em relação ao

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seu trabalho: Salvador Peña teve a história de seu acidente comprada pelo programa

Rescue 911, que trabalha com redramatizações de situações de resgate acontecidas na

vida real, em um estilo de docudrama televisivo fortemente difundido.

O cineasta utiliza-se destes momentos em Six O’Clock News para evidenciar que

a construção de narrativas audiovisuais em veículos como a televisão parecem apresentar

um poder de sedução por entre o público geral mais pronunciado do que o cinema

documentário – e, especialmente falando, do que documentários independentes e de

aporte pessoal, subjetivo ou autobiográfico. A vulnerabilidade de McElwee para com sua

“fé” passa também por constantes comentários, à sua volta, em relação à produção

cinematográfica ficcional como o ponto de chegada do profissionalismo de seu metiér.

Diante do novo cenário familiar, tendo um filho pequeno para sustentar e frente à

crescente dificuldade de obter financiamento para seus filmes, McElwee questiona: não

seria o momento dele próprio considerar mais de perto a opção de trabalhar na grande

indústria cinematográfica estadunidense? Ademais, se aparentemente todo discurso passa

por certo grau de fabulação ou dramatização, por que não “dar meia volta” em sua

atividade cinematográfica?

A opção torna-se palpável diante de um convite de produtores de Los Angeles,

que sinalizam que existe o interesse real de um estúdio Hollywoodiano, a Miramax, na

produção de um filme de ficção baseado em um documentário autobiográfico, sendo que

McElwee fora o nome cotado para a direção do filme. A oferta, que já apresenta certa

concretude orçamentária, soa tentadora. Apesar de lisonjeado, McElwee pondera

posteriormente em sua voz over que existe algo estranho em relação a isto tudo. Como

parte de sua “epifania da costa oeste”, o cineasta presencia uma filmagem que acontece

no píer da praia, posteriormente descobrindo tratar-se de uma cena do seriado Baywatch

– visto, segundo McElwee, por mais de 1,4 bilhões de pessoas. Assistindo à cena de cima

do píer, McElwee diz que tudo parece tratar-se de um jogo de xadrez: “Você pode ver o

diretor decidindo para onde mover as peças. E normalmente trata-se do conjunto usual de

peças: “caras”, armas e, é claro, garotas de biquíni. Mas mesmo assim, o diretor tem

controle completo. Seis centímetros para a esquerda, ou um passo para a direita – ele pode

fazer as coisas acontecerem da maneira que quiser, desvencilhado das intrusões fatídicas

da vida real".

As “intrusões fatídicas da vida real”, reflete McElwee, que se cristalizam no

momento seguinte diante de sua câmera. Um homem, aparentemente alcoolizado,

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“estraga” a tomada que o realizador estava fazendo, apontando sua semelhança com o

astro hollywoodiano Paul Newman. De certa maneira, trata-se de um acontecimento

análogo ao momento em que o cineasta cruza caminhos com o sósia de Burt Reynolds na

jornada de Sherman’s March. É inevitável: McElwee parece fadado a lidar, como

matéria-prima cinematográfica, com os momentos mais mágicos da sorte, do acaso e da

imprevisibilidade que a vida mundana vem a oferecer. Seus filmes dependem, por um

lado, de um trabalho analítico minucioso, através do processo de montagem ou de

escrita/narração em voz over, que evocam sua expertise intelectual e artística. Por outro

lado, entretanto, este aspecto tende a ser complementado pela “mágica” da

imprevisibilidade do mundo e da “coincidência” – termo utilizado pela autora Diane

Stevenson (2009) na análise de sua obra. É evidente que para McElwee há algo ao mesmo

tempo assombroso e sedutor no trato com o mundo exterior em seu descontrole. A

sensação de surpresa evocada pelas tragédias dos telejornais noturnos (“Como isto pode

ter acontecido”?) não é tão distinta, em sua essência, da sensação de antecipação da

realidade que um cineasta experiencia na metodologia do cinema direto, em seus

melhores momentos.

A redenção do cineasta para com sua fé acontece ao final de sua epifania pela

costa oeste, quando visita uma Câmara Escura em atividade, abrigada dentro de uma casa

de repouso para idosos e que, aparentemente, não recebe muitos visitantes. Colocando o

aparato em funcionamento, McElwee observa a projeção um pouco distorcida do “mundo

lá fora” em sua naturalidade: pessoas, palmeiras, ruas, carros e o mesmo píer onde

assistira à filmagem do programa de televisão. “Tudo parece tão frágil”, aponta McElwee,

provavelmente, agora, a partir de um olhar mais de ternura do que de pavor diante da

aleatoriedade do mundo. Parece também inevitável que é o “milagre da realidade”,

projetado em uma tela, que faz o coração do cineasta bater mais forte e o coloca em

movimento artístico. É neste momento que McElwee expressa sentir o “desejo

irresistível” de estar junto de sua família, Marilyn e Adrian, novamente – a mesma frase

usada para voltar à sua casa em Boston depois de seu processo de luto em Time Indefinite.

Deus parece estar, para McElwee, nos detalhes da vida cotidiana. O cineasta enche-se de

amor no momento em que está no centro de uma Câmara Escura, da mesma maneira que

sente a “estranha calma” na casa de Salvador Peña, tentando capturar a presença de Deus

em celuloide, como se ele estivesse escondido entre a luz e a sombra.

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Figura 43: Adrian McElwee aos quatro anos de idade, em Six O’Clock News (1996)

O projeto hollywoodiano para o qual McElwee fora convidado não seguiu, enfim,

adiante, como vimos a saber em sequência, quando o cineasta já está de volta ao seu lar

em Boston. Há uma elipse narrativa de três anos e o cineasta nos coloca diante do

aniversário de quatro anos de Adrian, agora uma criança que anda, brinca, pinta e,

principalmente, fala. Adrian aparece como um interlocutor ativo do cineasta, dando sinais

naturais de eloquência e criatividade. Em seu quarto, o filho mostra ao pai um quadro que

pintou, repleto de cores distintas e formas abstratas. A imagem, segundo Adrian,

representa aquilo que imagina ser Deus. Coincidentemente – ou não, neste contexto – a

figura que Adrian diz remetê-lo a Deus assemelha-se bastante com uma câmera de filmar,

McElwee sustenta.

O primeiro plano de Six O’Clock News é o da imagem de Adrian com uma semana

de idade, conforme prometido no final de Time Indefinite. No filme anterior, McElwee

diz que eventualmente utilizaria a imagem para realizar um filme que lidaria com “Adrian

crescendo no mundo” o que, de alguma forma, vem a concretizar-se durante a narrativa.

O final de Six O’Clock News apresenta outro “marco” para o projeto de McElwee. A partir

dali o cineasta faz da figura de seu filho o principal ponto de contato no que concerne a

motivação autobiográfica dos filmes. As meditações do diretor em relação à paternidade

e ao ciclo da vida encontram, agora, a própria voz e consciência de Adrian como

interlocutor. Seu próximo lançamento, Bright Leaves, mostra o filho como pré-

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adolescente e como um indivíduo de personalidade formada, no qual tematiza-se certo

distanciamento entre pai e filho que encontra seu clímax em Photographic Memory.

Ainda em Six O’Clock News, há dois momentos em que Adrian parece reagir à câmera

de McElwee e ao ato de filmar. Nas primeiras tomadas do filme, o recém-nascido chora

diante da lente, nos braços de sua mãe, que sugere: “Adrian, você quer que ele pare (de

filmar)?”. Ao final da narrativa, o filho convida o pai para acampar em uma barraca,

dentro do próprio quarto. Tendo em vista que McElwee continua a filmar a cena, Adrian

pergunta: “mas como você vai acampar com a câmera?”. O ato de viver e o ato de filmar,

desta forma, permanecem constituindo uma via de mão dupla, com causas e

consequências interdependentes, que permeia com mais força a obra autobiográfica de

McElwee à medida em que cada um de seus filmes adiciona uma nova camada à “teia de

relações”. Esta mostra-se intensificada pela mudança das relações afetivas entre o

cineasta e as pessoas ao seu redor, diante da força da passagem do tempo.

Figura 44: Deus – ou uma câmera de filmar – na pintura de Adrian McElwee, em Six O’Clock News

(1996)

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3.6. Bright Leaves (2004): Cinema e legado familiar

Bright Leaves é lançado em 2004 após um hiato de oito anos desde a finalização

de Six O’Clock News. Em seu livro “O filme-ensaio”, o autor Timothy Corrigan dedica

uma análise extensa ao filme, considerando-o uma obra que eloquentemente trabalha com

o jogo entre voz e imagem como a expressão de uma experiência tanto pessoal (privada)

quanto pública (CORRIGAN, 2015, p. 28). O ponto da análise de Corrigan sustenta-se

na maneira através da qual Bright Leaves contempla a confluência entre a expressão de

um universo pessoal, familiar e interior de Ross McElwee e sua relação com o mundo

histórico e social, neste caso, ligado especialmente ao estado natal da Carolina do Norte.

Este aspecto pode ser detectado em seus filmes anteriores, como no estabelecimento de

uma relação entre a busca pelo amor romântico e a Guerra Civil em Sherman’s March. É

possível dizer, entretanto, que Bright Leaves apresenta uma maturação do estilo de

McElwee especialmente no aspecto levantado por Corrigan – a potencialização do

entrelaçamento entre o pessoal e o público através da força analítica individual do diretor.

Também neste sentido, o cineasta assere que encontrar o balanço certo entre todos os

“temas” abordados pela narrativa de Bright Leaves provou ser o maior desafio do filme,

mais do que as filmagens em si (PBS, 2005). O senso de “maturidade” mencionado em

relação a Bright Leaves encontra-se também no fato de que estamos em contato com um

McElwee mais velho e experiente. Trata-se de um estado de consciência atualizado no

que diz respeito, por exemplo, à experiência da paternidade – novamente uma das

principais forças propulsoras de suas indagações em relação ao mundo. No filme, diante

do rol de nuances advindas da relação com um filho pré-adolescente, McElwee começa,

pela primeira vez, a sentir-se mais como o seu próprio pai. A presença da figura paterna

austera revisita-se como a expressão de amorosidade e preocupação, neste novo

momento. De alguma forma, o cineasta passa a aproximar-se, ele próprio, daquilo que

seu pai representava para ele nos primeiros anos de sua carreira cinematográfica.

O título Bright Leaves, “folhas brilhantes”, relaciona-se ao tipo de planta de tabaco

Brightleaf, espécie que se difundiu amplamente pelo solo arenoso da Carolina do Norte,

que, nas palavras de McElwee, “suplicava por tabaco”. Este tipo de tabaco tornou-se uma

das espécies mais comercializadas do produto, tanto para consumo no país quanto para

exportação global. O nome Bright Leaves também se relaciona ao filme Bright Leaf,

melodrama hollywoodiano dirigido por Michael Curtiz (diretor de Casablanca [1942],

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entre outros clássicos), lançado em 1950 e estrelado por Gary Cooper, Patricia Neal e

Lauren Bacall. O filme foi baseado no romance homônimo lançado no ano anterior pelo

autor sulista Foster Fitz-Simmons e que lida com o início da produção de tabaco no estado

da Carolina do Norte, a partir da estória da rivalidade entre dois empreendedores que

buscavam implantar e desenvolver o negócio. Diante da imagem das folhas de tabaco em

uma extensa plantação McElwee começa sua narrativa de Bright Leaves. O cineasta nos

conta que a figura das imensas e estranhas plantas surgiram para ele em um sonho, que,

ao ser interpretado por sua esposa, representariam plantas de tabaco. A lavoura de tabaco,

símbolo cultural e econômico da Carolina do Norte, apontaria analogamente para sua

identidade sulista que, no momento, apresentava-se dormente. Com o estabelecimento da

família McElwee no Norte durante o período de crescimento de Adrian, as idas do

cineasta para o Sul dos EUA tornaram-se cada vez menos frequentes. O ímpeto

cinematográfico é colocado em movimento a partir da constatação da esposa de que o Sul

sempre estaria em seu sangue, independente do fato da família ter se estabelecido na Nova

Inglaterra. Uma “transfusão periódica de ‘sulice’” seria necessária. Estabelecido o parti

pris de McElwee em relação à nova jornada, o cineasta ruma para o Sul para iniciar seu

filme.

Figura 45: As folhas de tabaco no “sonho” de McElwee em Bright Leaves (2004)

A hipótese de que o clássico Bright Leaf diria respeito à história da família

McElwee instiga o cineasta em sua meditação por meio de lavouras de tabaco, em uma

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jornada que passa pelas nuances da história da produção cinematográfica hollywoodiana

e pela sua história familiar – tanto uma história de um tempo passado, remoto, quanto a

história que se constrói em um espaço temporal paralelo ao momento das filmagens. Na

casa do primo de segundo grau John McElwee, um dos integrantes do “clã” da família

que se firmou na Carolina do Norte ainda no século XVIII, o cineasta entra em contato

com o filme Bright Leaf. Ávido colecionador de todo tipo de memorabilia do cinema

clássico hollywoodiano – uma vasta filmoteca de películas, trailers, fotos still – o primo

traz a hipótese de que o personagem vivido por Gary Cooper no filme seria, no limite,

uma representação da história do bisavô dos primos, John Harvey McElwee, e sua relação

com o desenvolvimento da produção do tabaco na Carolina do Norte.

A história do bisavô é conhecida por toda a família. Iniciando como pequeno

produtor de tabaco, John Harvey McElwee viu o negócio dar sinais de prosperidade a

partir da popularização de sua marca “Bull Durham”. O bisavô viu-se no meio de uma

disputa judicial com o rival produtor, James B. Duke, que reivindicava a autoria da marca.

Após um estendido período de batalhas nas cortes, envolvendo um gasto de ambas as

partes equivalente a milhões de dólares em valores atuais, a família Duke venceu os

McElwee judicialmente e obteve os direitos de uso do nome Bull Durham para o produto.

Em grande parte, a vitória deveu-se fato do patrimônio dos Duke ser maior e possibilitar

uma “resistência” aos custos judiciais por mais tempo. Deste momento em diante, para

os Duke reservou-se um lugar na história da Carolina do Norte e dos Estados Unidos.

Monopolizando a produção de cigarros industrializados, os Duke tornaram-se uma das

famílias mais ricas do país – uma espécie de versão sulista dos Rockefellers, como aponta

Ross McElwee durante o filme. Entre casas ostensivas e ações de filantropia, a família

conquistou um lugar permanente no imaginário da população da Carolina do Norte.

Criaram o fundo da família Duke (Duke Endowment), que hoje totaliza mais de três

bilhões de dólares e é dedicado ao financiamento e suporte de instituições de saúde e

ensino superior na Carolina do Norte e do Sul, como é o caso da Duke University, a

principal universidade da região, bem como o de diversos hospitais nos dois estados.

O fato de McElwee ter entrado em contato com a trama hollywoodiana de Bright

Leaf, na qual o personagem de Gary Cooper vai da fortuna promissora à falência total,

resgatando analogamente a narrativa de seu bisavô, acaba por levantar velhas feridas da

família. O cineasta lança, em determinado momento de Bright Leaves, um pensamento

que deve ter passado por todos os membros do clã McElwee ao longo de suas vidas: “Se

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as coisas tivessem sido ligeiramente diferentes, tudo isto (o patrimônio dos Duke) teria

sido meu”. Para o cineasta, entretanto, não se trata apenas de uma questão do patrimônio

financeiro que a família Duke pôde obter com o sucesso na batalha judicial contra seu

bisavô. Mais do que isto, McElwee parece sentir-se injustiçado em relação ao fato da

história de sua família na cultura de tabaco da Carolina do Norte ter sido relegado à

“lixeira da História”. Haveria, portanto, a necessidade de reivindicar mais urgentemente

uma espécie de patrimônio imaterial que o cineasta reconhece como merecido pelos

McElwee. Algum reconhecimento, que o cineasta também julga ter sido “roubado” pelos

Duke em um episódio que remonta a táticas agressivas de persuasão e suborno judicial,

às quais seu bisavô não pôde fazer frente. Se os Duke, como frisado, detém um lugar

irrevogável no imaginário da Carolina do Norte, nomeando hospitais e universidades, a

preservação da História dos McElwee neste mesmo episódio se dá por meio do “Parque

McElwee”: um pequeno canteiro com dois bancos de madeira, sustentado por um bem-

intencionado preservacionista da história do estado que o cineasta vem a conhecer durante

a feitura do filme. Bright Leaf, o melodrama vivido por Gary Cooper, portanto, parece

ser uma alternativa obscura – o filme não é um marco em popularidade, sendo

desconhecido pelo próprio cineasta – à “História oficial” de seu estado natal. Resta a

dúvida, entretanto, se a estória do plot de Bright Leaf, tanto em relação ao romance de

Foster Fitz-Simmons ou ao filme subsequente, de fato foi baseada na história de John

Harvey McElwee. “Seria possível?”. Um dos arroubos da curiosidade do cineasta em

Bright Leaves relaciona-se diretamente a esta pergunta, a qual tenta responder em suas

andanças pelo estado, munido da câmera no ombro.

Um outro lado da questão, entretanto, vem à tona em suas indagações. Seria o

desvencilhamento do nome da família McElwee à cultura do tabaco na Carolina do Norte

um infortúnio ou, em última análise, a maior tacada da sorte de seus parentes? A cultura

do tabaco no estado natal de McElwee apresenta uma influência dominante não apenas

em um passado remoto, mas ainda na contemporaneidade, desdobrando-se como uma das

principais atividades econômicas do estado, figurando como pano de fundo em diversas

manifestações culturais e fazendo parte da história do desenvolvimento de inúmeras

famílias da região. Apesar disto, ao adentrar-se na década de 2000, período da feitura do

filme, é possível dizer que o tabagismo se encontra em um período de impopularidade. O

tabaco é, já durante a filmagem de Bright Leaves, uma das principais questões de saúde

pública nos EUA e no mundo, especialmente no que toca às propriedades de dependência

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narcótica trazidas pelo hábito de fumar. McElwee concentra seus esforços na reflexão

acerca da influência que a misteriosa planta detém sobre a população de seu estado natal.

Olhando ao redor de si, o cineasta reconhece personagens – muitos com quem

mantém algum tipo de laço social prévio à filmagem – que trazem estórias particulares

de suas relações com o tabaco. Desde o estranho balanceamento entre o glamour e a

sensualidade que envolve o hábito de fumar versus suas propriedades mortíferas a partir

de um vício de difícil abandono, passando pela história de famílias que sobrevivem

economicamente da produção e venda do tabaco, McElwee constrói uma espécie de

“mosaico” de pessoas e depoimentos que serve como um panorama do estado atual da

Carolina do Norte e de seu imaginário quanto à planta.

A amiga/mentora Charleen Swansea é novamente procurada por McElwee.

Charleen conta a história de sua irmã, portadora de um pesado vício em cigarros e que se

encontra em estado de saúde terminal devido a um câncer causado pelo tabagismo51.

Posteriormente no filme, McElwee acompanha Charleen ao túmulo de sua irmã que,

infere-se, morreu poucas semanas depois do primeiro contato entre ambos. Outra parte

deste “mosaico” refere-se a um casal de amigos que pede que o diretor os filme

periodicamente na tentativa de parar de fumar. Comicamente, em cada encontro com o

casal, existe um novo motivo pelo qual relatam a impossibilidade de parar totalmente com

o hábito, propondo uma nova data-limite. Há o caso do homem que teve um acesso de

abstinência de nicotina ao sentir o cheiro do tabaco queimado vindo do cachimbo de um

capitão de navio, durante uma travessia a nado pelo Canal da Mancha. Há o amigo do pai

de McElwee, um senhor fazendeiro cuja família trabalha com a plantação de tabaco há

gerações e que é devoto cristão praticante. Diante da pergunta do cineasta a respeito da

opinião do pastor sobre o tabaco e seus malefícios, o fazendeiro relata que existem

“sentimentos divididos” (mixed feelings) em relação ao seu hábito e ao seu cultivo. O

mesmo sentimento dividido, uma espécie de “c’est la vie”, parece rodear os habitantes da

Carolina do Norte, especialmente aqueles que lidam de maneira direta com o tabaco como

meio econômico de subsistência. É o caso de outra fazendeira com quem McElwee cruza

51 É interessante mencionar que em Bright Leaves Charleen aponta que ela própria quase “cometeu suicídio com cigarros”, da mesma forma que a irmã. No primeiro documentário finalizado por McElwee, Charleen, em 1979, vemos a protagonista portando uma relação bastante intensa com o hábito de fumar, segurando um cigarro aceso em diversas das sequências do filme. Apesar de não haver referência explícita ao filme de 1979, é possível ressaltar o aspecto autorreferente do comentário de Charleen em relação à própria carreira anterior de McElwee, também contribuindo para o senso de autobiografia “continuada” sobre o qual nos detemos no trabalho.

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caminhos que perdera a mãe recentemente, devido a um câncer de pulmão causado por

fumo compulsivo. Apesar de continuar trabalhando com a lavoura do tabaco, ela assere

chorosamente que nem ela e nem seu trabalho foram responsáveis pela morte de sua mãe,

nem de nenhuma pessoa que morre em decorrência do vício.

McElwee não aderiu ao tabaco, segundo ele nos conta. Como exposto no filme, o

bisavô John Harvey McElwee teve uma relação estreita com o hábito de fumar. Seu filho,

avô do cineasta, também manteve o vício, ocasionando posteriormente uma complicação

de câncer de pulmão, que o levou a óbito. O pai do diretor não fumava, constatando a ele

que a coisa mais difícil que teve de fazer durante a vida foi observar de maneira impotente

o pai morrendo vagarosamente de câncer. Diante de lembranças como estas, McElwee

queixa-se que a figura do pai parece continuamente esvanecer de sua memória à medida

que o tempo passa. Mesmo as imagens cinematográficas que o diretor acumula ano após

ano parecem “não ajudar muito”, segundo o próprio. Em Time Indefinite, dez anos antes

do lançamento de Bright Leaves, McElwee utiliza-se de imagens feitas na década de 1970

de seu pai lendo o jornal em uma situação familiar matinal, asserindo sobre a maneira

através da qual “edita e reedita” seus registros filmados, como sendo uma tentativa, quiçá

infrutífera, de “reanimá-las de volta à vida” de tempos em tempos. McElwee enxerga no

registro de seu pai lendo o jornal um ato simbólico de uma atividade banal que se torna

única a partir de sua cristalização em imagem em movimento. O cineasta resgata este

momento no fundo de sua memória cinematográfica quando a suspeição acerca da

utilidade de seu trabalho como “guardião” da memória familiar parece assolá-lo mais uma

vez. Em Bright Leaves, vendo novamente seu pai lendo o jornal na cozinha do lar dos

McElwee na distante Carolina do Norte dos anos 1970, McElwee assere: “Mesmo nestas

imagens, com o passar do tempo, meu pai está começando a parecer cada vez menos real

para mim – como um personagem ficcional. Gostaria muito de reverter este fluxo, a

maneira que a realidade dele está se esvanecendo. ”.

“O que exatamente está sendo preservado aqui? O que está sendo passado

adiante?”, McElwee questiona-se em relação ao trabalho do amigo historiador

preservacionista, através de quem entra em contato com a existência do “Parque

McElwee”, em memória da contribuição de seu avô para a história do legado do tabaco

na Carolina do Norte. A mesma inquietação subjaz aos questionamentos do cineasta em

relação ao “peso” das imagens acumuladas de seu pai que, nos momentos mais críticos,

pouco parece contribuir com sua memória, ou com a tentativa de “trazê-lo de volta à

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vida”, para perto de si, anos depois do registro. McElwee cede ao fato de que estar

novamente em sua terra natal, depois de um processo gradual de afastamento e de

“nortificação”, é o que parece reavivar a memória e o legado de seu pai. É o caso, por

exemplo, quando visita Tom, o irmão cirurgião que continuou a tradição dos McElwee

na medicina e passou a cuidar de diversos pacientes que eram de seu pai – alguns deles

com problemas relativos ao uso continuado do cigarro. Buscando entrar em contato com

pacientes que foram tratados por seu pai, McElwee adensa a sensação de vivificar sua

memória. Um deles foi operado pelo pai do diretor um dia antes deste ter tido o ataque

cardíaco repentino que o vitimou. Outro deles teve um câncer bucal curado pelas mãos

do pai de McElwee e assere à lente da câmera: “Enquanto você viver ele continuará

vivendo, pois sua voz é exatamente igual à dele”. Esta frase revela-se à câmera do cineasta

trazendo à tona novamente a principal questão que circunda seu projeto autobiográfico:

o tempo e, especialmente, sua passagem, são implacáveis. Poderia McElwee, neste novo

momento, apresentar-se para as pessoas à imagem e semelhança de seu pai? E, ainda,

duas décadas depois do jovem McElwee construir cinematograficamente a figura paterna

como um homem austero e distante, poderia agora sua visão de mundo estar se

aproximando da de seu pai, que uma vez fora reconhecida apenas em sua disparidade?

Conversando com a filha de um dos pacientes do pai, o cineasta escuta uma

história nunca a ele revelada: a de que o pai de McElwee e o paciente, que passaria por

uma cirurgia, ajoelharam-se juntos para rezar nas vésperas do procedimento. Esta

sequência pode ser encarada como outro “marco” do processo de maturação

cinematográfica e individual de McElwee. A história que o cineasta passa a conhecer

explica uma das sequências mais marcantes de Backyard, seu primeiro filme

autobiográfico. Na sequência de Backyard, o pai do cineasta escuta a canção “Noite Feliz”

sendo cantada pelo telefone por um de seus pacientes e sua esposa – estes, pais da mulher

que conta a história sobre a cirurgia vinte anos depois. Em seguida, assistimos ao casal

realizando mais uma vez a performance da canção, porém agora diretamente diante da

lente do próprio McElwee, já em Bright Leaves, como aponta Scott MacDonald (2013, p.

225), e corta-se para a sequência original de Backyard, como se o pai pudesse ouvir

novamente a canção, de algum lugar do infinito, através do filme que o filho agora realiza.

Sobre a sequência, McElwee aponta apenas, em over, que outro dos mistérios

relativos àquele peculiar momento filmado ficou sem resposta: o fato de que o pai, apesar

de presbiteriano convicto, estava trajando um yarmulke judeu na noite de Natal. A

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pergunta sobre esta particularidade, sempre postergada pelo diretor, acabou nunca sendo

feita. Entretanto, há uma forte simbologia na sequência que diz respeito às preocupações

de McElwee em seu projeto continuado. Com estes momentos, o realizador passa a entrar

em contato com uma faceta diferente de seu pai, que não havia sido detectada

anteriormente ou, mais provavelmente, que se fazia oculta diante do leque de perguntas

e inquietações que compunham sua consciência, como jovem cineasta. Dez anos depois

tornar-se pai, ele próprio, o diretor passa a enxergar ternura e sensibilidade na figura

paterna que anos antes era enquadrada na “mira” de sua câmera apenas a partir de uma

situação de alteridade: como o pai médico-cirurgião republicano diante de um filho

democrata, com aspirações profissionais artísticas e que se mudou permanentemente para

o Norte a fim de entrar em contato com o metiér da alta cultura estadunidense. Já

adentrando certa maturidade etária – Bright Leaves foi lançado em 2004, quando

McElwee tinha cinquenta e sete anos –, o cineasta enxerga o pai pela primeira vez

(cinematograficamente) a partir da figura humana de um médico que se ajoelha junto de

um paciente para rezar, às vésperas de sua cirurgia. Algo aparentemente inimaginável

tanto para ele próprio quanto para a sociedade na qual estava inserido: a família dos

Massies, que finalmente vemos diante da câmera, vinte anos depois de Backyard, é

afrodescendente. O fato de um médico-cirurgião branco ajoelhar-se com um paciente

negro para rezar, no Sul estadunidense da década de 1970 ou antes, é realmente mais

significativo do que uma simples anedota. Seria, talvez, algo que “faria muitos ianques

caírem da cadeira”, como aponta Scott MacDonald (1988), quando comenta sobre a

relação de afeto dos McElwee com a cozinheira Lucille, em Backyard.

Figura 46: O casal Massies canta novamente “Noite Feliz”, em Bright Leaves (2004)

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Como frisado, o desenvolvimento da experiência paterna do cineasta é um dos

aspectos que transpira em seu estado de consciência “atualizado” em relação aos filmes

anteriores. Para além da investigação temática acerca da relação entre John Harvey

McElwee e o filme Bright Leaf, a meditação autobiográfica de Bright Leaves parte da

observação de que Adrian, o filho do diretor, parece estar crescendo “muito rápido”. Este

é um fluxo que, McElwee aponta, também parece não ser desacelerado ou revertido

através de seu registro ou documentação cinematográfica. Adrian, que “vimos” pela

última vez como criança de quatro anos de idade em Six O’Clock News, dissertando para

a câmera de McElwee sobre um desenho que havia feito, em Bright Leaves já é um pré-

adolescente com opiniões e gostos bem próprios – que apresentam certo conflito com as

expectativas de seu pai. Segundo nos mostra o diretor, o filho parece, no momento, mais

interessado em passar tempo com seus amigos e pesquisar manobras de skateboard do

que em saber detalhes da história do bisavô lavrador de tabaco. McElwee aponta que

conectar o filho à herança sulista da família parece ser uma tarefa difícil, tendo ele nascido

e sido criado no Norte, plenamente adaptado aos costumes de uma região metropolitana.

O cineasta leva o filho junto de si para o trabalho, como meio de tentar uma

reaproximação entre ambos. Adrian é o responsável pela captação de som das tomadas

de McElwee em um quarto de hospital, onde a dupla filma o diálogo de uma amiga médica

do diretor com uma paciente que desenvolveu câncer devido ao hábito do tabaco. A

circunstância, o cineasta admite, parece não ser tão sedutora para um pré-adolescente,

porém poderia ser interessante para colocá-lo em contato tanto com o metiér do pai quanto

com as consequências do vício. A vontade de “fazer algo pelo filho” no que concerne o

desenvolvimento de uma aptidão profissional é um tema que recorrentemente aparece em

suas narrativas. Apresentar a Adrian uma situação de filmagem profissional parece ser

um privilégio a que poucos aspirantes a cineasta têm acesso, e que McElwee sente-se apto

a oferecer para o filho. De alguma forma, esta intenção do cineasta estabelece-se como

reflexo de sua sensação de deslocamento em relação à prática da medicina, uma tradição

de sua família que ele não pôde levar adiante.

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Figura 47: Adrian McElwee aos treze anos de idade, em Bright Leaves (2004)

Como já frisado, Backyard, seu primeiro filme autobiográfico, é repleto de

imagens fundantes, que volta e meia são usadas como meio de reflexão do cineasta à

medida que envelhece. Neste sentido, é canônica a imagem do pai de McElwee ensinando

o irmão Tom a realizar o nó das suturas, praticando dentro de casa, “Uma volta no dedo

indicador, uma volta no dedão” (“Go around the index finger, and around the thumb.”),

que volta a aparecer em Bright Leaves e, posteriormente, em Photographic Memory. A

noção de que o trabalho de McElwee poderia influenciar positivamente o interesse de

Adrian pela área das artes e da produção audiovisual desenvolve-se mais concretamente

no filme de 2011. Neste, o filho, já em idade universitária, de fato parece demonstrar

bastante entusiasmo com o trabalho midiático, porém está imerso em um universo

hipertecnológico com o qual o pai tem dificuldades para dialogar. Se o início da

configuração de um distanciamento entre o cineasta e o filho é uma hipótese levantada

em Bright Leaves, esta será confirmada em Photographic Memory, no qual tematiza-se

que a relação entre ambos acabou tomando de fato contornos mais delicados. Da mesma

forma, o processo de aproximação de McElwee em relação à figura paterna outrora díspar,

que se aborda pela primeira vez em Bright Leaves, também é aprofundado no filme de

2011, no qual efetivamente McElwee sente-se “nos sapatos que o pai calçava” no

momento da filmagem de Backyard, ainda na década de 1970.

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Em Bright Leaves, subjaz às reflexões de McElwee o entendimento de que a

passagem do tempo tem a força necessária para o entendimento de significados “ocultos”

dos fenômenos, nuances com as quais não conseguimos entrar em contato em um

momento “presente”. Foram necessárias décadas para que o cineasta pudesse entender

uma faceta de sensibilidade de seu pai, como a que representada pelo momento em que

escuta “Noite Feliz” ao telefone, filmado pelo filho, porém que cujo real significado só

pôde ser descoberto muitos anos após sua morte. Diante da surpresa do cineasta pelo fato

de não saber os detalhes deste episódio da vida do pai, a filha de seu paciente argumenta:

“Às vezes os papais não falam sobre este tipo de coisa”. No caso de McElwee, é através

da feitura de Bright Leaves que o cineasta imagina que deixará um legado para o filho,

um universo de questionamentos provavelmente muito apressados para que sejam

revelados a um pré-adolescente. O cineasta apresenta o filme como um tesouro a partir

do qual o qual o filho poderá conectar-se com seu pai, no futuro, a partir de abordagens

que vão desde o resgate da história familiar às indagações acerca do ciclo da vida e de

sua preservação em imagens em movimento. Neste sentido, McElwee pondera em over:

“Quando estou na estrada filmando, às vezes imagino meu filho, daqui a anos, quando eu

não estiver mais vivo, olhando para aquilo que filmei. Quase consigo senti-lo olhando

para trás, e para mim, de algum ponto distante no futuro. Através destas imagens e

reflexões. Através do filme que deixarei para trás.”. Em mais uma faceta da inclinação

pelo rol de questões que envolvem o universo do cinema direto e de seus desdobramentos,

McElwee parece sublinhar o fato de que a câmera, através da tomada fílmica, tem a

capacidade de transbordar estados de consciência que são particularizados por uma

circunstância espaço-temporal determinada. O diretor consegue detectar sua própria

ingenuidade, ou não-conhecimento, em relação à personalidade de seu pai no momento

delimitado pelas filmagens de Backyard, ainda nos anos 1970, que só pode ser reavaliada

a partir de um estado de consciência atualizado, décadas mais tarde. É a mesma sensação

que tem em relação a Adrian, sugerindo (esperando) que um dia o filho finalmente

entenderá os anseios do pai que são transformados em narrativa fílmica, e que no

momento da finalização de Bright Leaves lhe parecem alheios.

“Autenticidade Ontológica” é o nome dado a essa característica pelo teórico Vlada

Petric, professor e ex-diretor do Harvard Film Archive, com quem McElwee engaja uma

conversa em uma curiosa sequência de Bright Leaves. Sendo carregado por Petric em

uma cadeira de rodas, McElwee filma sua interação com o professor a partir de um

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travelling reverso, em um procedimento de exploração de cinestesia incomum ao corpus

estilístico de McElwee e que parece fundamental ao professor. Petric, por sua vez,

aparenta ser alheio ao interesse do cineasta pelo melodrama hollywoodiano Bright Leaf,

julgando os dotes estéticos do filme e de seu diretor, Michael Curtiz, limitados a um

pastiche sem muita relevância. O que interessa a McElwee, entretanto, e pelo que Petric

não demonstra tanto entusiasmo, é a possibilidade de Bright Leaf “conter um filme

caseiro dentro de uma produção ficcional”, nas palavras do próprio diretor. Para além da

hipótese do personagem de Gary Cooper referir-se à vida de seu bisavô, McElwee

aprofunda a reflexão acerca da “Autenticidade Ontológica” da tomada cinematográfica,

tomando como “objeto” uma cena de amor entre Cooper e a atriz Patricia Neal. Na cena,

um beijo entre os dois atores, McElwee detecta um gesto da atriz/personagem, que hesita

ao movimentar o braço ao buscar tocar o corpo do par romântico. A particularidade da

situação reside no fato de que Gary Cooper e Patricia Neal engajavam, de fato, um

romance na “vida real”, no backstage de Hollywood, vivendo um amor que se manteve

proibido pelo fato de Cooper ser casado. Tendo Patricia Neal posteriormente mencionado

Gary Cooper como “o amor de sua vida”, McElwee entusiasma-se com a possibilidade

desta cena conter um pequeno traço de vida pessoal, “documentário”, transbordando na

encenação dramática em um contexto ficcional – novamente frisando a capacidade da

câmera em revelar “verdades secretas” sobre as pessoas, através de seus corpos e

consciências.

Figura 48: Vlada Petric durante sua “aula” a McElwee em Bright Leaves (2004)

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O fato é que aparentemente poucas pessoas que cruzam o caminho de McElwee,

entretanto, apresentam a mesma motivação meditativa em relação a estas características

das imagens-câmera. Para além do professor Petric, a própria atriz de Bright Leaf, Patricia

Neal, não consegue entrar na mesma “frequência” das indagações do cineasta. Em mais

um dos acasos promovidos por suas narrativas fílmicas, McElwee entrevista a atriz

durante uma breve passagem sua pela Carolina do Norte. Vendo McElwee colocar-se no

curioso papel de um entrevistador “ordinário” diante de uma estrela de cinema, assistimos

a uma entrevista apressada e hesitante, com poucos resultados estimulantes para seus

questionamentos. O cineasta explica sobre a possível relação entre seu bisavô e o filme

Bright Leaf, mas Patricia Neal não se entusiasma com a possibilidade de ser a “bisavó do

diretor, de um ponto de vista ficcional”, caso seu personagem e o de Gary Cooper

tivessem tido um filho, nem mesmo reconhece qualquer tipo de particularidade nas

entrelinhas de sua encenação no filme de 1950 que pudesse evocar alguma “verdade”

sobre sua vida pessoal naquele momento da carreira. Há de se convencionar: McElwee

realmente acharia que uma atriz veterana, acostumada a dar centenas de entrevistas, se

disporia a meditar sobre a “autenticidade ontológica” das imagens cinematográficas

evocada por um filme de cinquenta anos atrás e de sucesso questionável, como Bright

Leaf, em uma conversa de poucos minutos? Certa absurdez gira em torno deste encontro

entre o diretor e a atriz hollywoodiana que o transforma em um momento tipicamente

McElweeliano, dotado “quase sem querer” da comicidade autodepreciativa que segue a

rondar sua persona nos filmes.

Como também em outros de seus filmes, McElwee acumula em Bright Leaves

fracassos ao fim de sua empreitada. Para além da rejeição simbólica de Patricia Neal em

relação às suas indagações ontológicas, o cineasta depara-se com o fato de que o filme

Bright Leaf não teria sido inspirado na história de seu bisavô. A partir de uma conversa

com a viúva do autor Foster Fitz-Simmons, revela-se que o marido não se baseou em

nenhuma personalidade real para o desenvolvimento do romance que deu origem ao

filme. Resta ao diretor o sucesso em ter realizado um estudo da complexidade da cultura

de tabaco que permanece viva na contemporaneidade de seu território natal, a Carolina

do Norte, e que resgata intersecções da história dos McElwee em solo americano. A

jornada do cineasta, por entre lavouras da erva misteriosa e através do contato com alguns

de seus adeptos, traz à superfície considerações acerca de seu maior vício. A câmera, a

partir do ato de registrar e documentar eventos de sua própria vida e das pessoas ao seu

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redor, estabelece-se como a mais narcótica das experiências para o diretor. Em entrevista

de 2005, após o lançamento de Bright Leaves, McElwee afirma: “O mundo é

frequentemente visto por mim, mesmo se eu não o estou filmando, em uma espécie de

maneira cinemática, não-ficcional. Como isto teria acontecido se eu tivesse filmado? É

um pouco doentio e neurótico, mas é verdade.” (POPPY, 2005). A câmera permeia

dominantemente os pensamentos de McElwee, de maneira análoga a dependentes de

quaisquer substâncias viciáveis. Não diferentemente da experiência de fumar um cigarro,

como aponta McElwee em Bright Leaves, filmar o mundo, vendo-o acontecer pelo

viewfinder, suscita um lampejo de suspensão da vida, como se o tempo parasse por alguns

momentos. No caso do tabaco, seu paradoxo reside no fato de que a sensação de extensão

do tempo confronta-se, na realidade, com seu próprio encurtamento: morre-se mais

rapidamente a cada tragada. Através de seus filmes, McElwee prova a si próprio que o

registro contínuo do mundo ao seu redor não fez com que, no limite, a passagem do tempo

cessasse ou desacelerasse; nem impediu que a morte chegasse até algumas das pessoas

mais próximas de si. Ainda assim, entretanto, a reavaliação da personalidade de seu pai

amparada pelo registro de imagens-câmera, tanto do passado quanto do presente, mantém

acesa a chama da fé naquilo que escolheu como ocupação vitalícia. Novamente, McElwee

parece crer na particularidade da imagem cinematográfica como parte de seu legado

cinemático. Da mesma forma, o cineasta acredita na estranha relação das imagens com o

o tempo, sendo este o agente que potencializa, flexiona e catalisa quaisquer de suas forças

que aguardam o momento certo para germinar.

Figura 49: McElwee senta-se no “McElwee Park” para pensar, em Bright Leaves (2004)

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3.7. In Paraguay (2008): O defunto de um presente e a ética autobiográfica

In Paraguay, exibido em 2008, é o filme menos conhecido da carreira de Ross

McElwee. O longa-metragem obteve apenas uma exibição pública no circuito de

festivais, quando estreou na edição daquele ano do Festival de Veneza. Outras exibições

de In Paraguay foram suspensas indefinidamente, inexistindo também qualquer tipo de

distribuição comercial. O documentário lida tematicamente com o processo de adoção de

Mariah, segunda filha do diretor, que aconteceu no Paraguai em meados em 1995. A

suspensão de sua exibição estaria ligada a um acordo realizado entre McElwee e a esposa

de que o filme só seria veiculado novamente após Mariah completar dezoito anos de

idade. Mesmo após o cumprimento deste prazo, In Paraguay permanece sem exibição

pública e veiculação comercial. Scott MacDonald infere que o documentário fora

realizado no “período extendido” do processo de separação do casal (MACDONALD,

2013, p. 231), que se completou oficialmente em agosto de 2011. Em comparação com

outros filmes de McElwee, In Paraguay é anacrônico em relação à abordagem de sua

temporalidade narrativa. Por este aspecto o documentário pode ser considerado uma

espécie de paradoxo temporal do projeto autobiográfico contínuo de McElwee, que evoca

alguns questionamentos. Estas características fazem do filme um subsídio para a reflexão

acerca de nuances da construção autobiográfica no cinema documentário, principalmente

em relação a algumas de suas particularidades éticas.

A estrutura narrativa de In Paraguay é decididamente mais enxuta, no que diz

respeito a flexões tanto em seu eixo temático quanto estilístico. O documentário é

construido a partir de um ponto temático delimitado – o processo de adoção de Mariah –

, praticamente inexistindo o movimento de livre associação que junta temas diversos em

um mesmo filme, como é o caso de Time Indefinite, Six O’Clock News ou Bright Leaves.

Resumir os plots destas obras em uma ou poucas frases é uma tarefa mais dificultosa do

que realizar esta atividade em relação a In Paraguay. Ainda que no filme McElwee reflita

acerca de diversas facetas que dizem respeito ao tema da adoção de Mariah, é possível

sustentar que há uma coesão narrativa que toma este como seu único tema. Esta sensação

é também endossada por seu tempo narrativo, que é soberanamente cronológico. Não

existe um processo de engendramento com o passado cinematográfico (ou familiar) de

McElwee, nem projeções temporais para o futuro da maneira que existe, por exemplo, em

Bright Leaves. O tempo narrativo de In Paraguay restringe-se ao período de

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aproximadamente sete semanas que a família McElwee passou em Assunção durante o

processo judicial para a liberação de Mariah. Há uma curta introdução da família nos

EUA antes de embarcarem para a jornada, bem como uma conclusão que mostra os

primeiros momentos da filha adotiva e o desfecho judicial no novo país.

Situando-se temporalmente no aniversário de cinco anos de Adrian, em meados

de 1994, a força propulsora do início da narrativa de In Paraguay consiste na constatação

de que é hora da família McElwee tornar-se maior, a partir da adoção de uma filha. Após

breve preparação, a família ruma ao Paraguai, onde acontece a maior parte do filme.

Instalados em um hotel no centro da cidade, McElwee ocupa-se de filmar o dia-a-dia de

da família. Para além de narrativizar o cotidiano com Marilyn e Adrian no hotel e em seus

arredores, In Paraguay entrega também aspectos da vida de Assunção e sua relação

enquanto microcosmo de uma experiência nacional paraguaia. O filme é desenvolvido a

partir das complicações que surgem durante processo de adoção de Mariah. Devido à

demora do trâmite, acarretada por uma série de fatores, McElwee e a família permanecem

no Paraguai pelo triplo de tempo que imaginavam originalmente. Por fim, à família

McElwee é concedida a autorização para a saída legal do país com o bebê. Voltando aos

Estados Unidos, uma elipse temporal de oito meses revela uma já crescida Mariah

novamente em uma corte judicial, desta vez com a finalidade de terminar o processo da

obtenção de sua cidadania estadunidense.

O tempo da família McElwee no Paraguai é pontuado por idas sucessivas ao

Palácio de Justiça de Assunção para audição em relação ao processo, que acaba sempre

sendo postergada, indefinidamente. Munido da câmera, McElwee decide utilizar o tempo

para conhecer o território que diz respeito à história da recém-chegada filha. Explorando

as ruas de Assunção, o diretor depara-se com diversos tipos de problema social: trabalho

mirim ambulante, subnutrição, péssimas condições de habitação – a pobreza, em suas

variações, que faz parte do cenário de algumas metrópoles latino-americanas. No nível

mais evidente, In Paraguay é o primeiro filme em que McElwee desloca-se de sua zona

de conforto social e territorial na qual está inserido nos documentários anteriores. Embora

a questão do êxodo vivido pelo diretor do Sul para o Norte dos Estados Unidos – e o

consequente deslocamento social e cultural – tenham sido um mote em grande parte de

seus filmes, aqui esta relação torna-se mais complexa.

Desde o início do filme há um posicionamento claro, da parte do diretor, que

enxerga o Paraguai como um país marcado pela pobreza e por certo grau de

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subdesenvolvimento que ele não reconhece nos Estados Unidos. Ainda no início do filme,

vemos Adrian em sua sala de aula, travando uma conversa com sua professora e com os

colegas sobre o conceito de adoção, bem como a respeito da localização do Paraguai,

utilizando-se de um globo para demonstração. Em sua narração em over, McElwee

comenta que o país “provavelmente não seria um destino onde alguém passaria suas

férias”. É interessante notar, todavia, que antes mesmo de realizar seus próprios filmes,

em sua juventude, McElwee viajou por diversos países com culturas e estruturas sociais

diferentes das do de seu país natal. Pode-se destacar uma viagem pela Índia e pelo Sri

Lanka na década de 1970, ocasião na qual estava interessado no budismo Theravada, ou

mesmo sua participação como operador de câmera em um dos filmes rodados por John

Marshall na Namíbia, N!ai, the Story of a !Kung Woman, lançado em 1980. A viagem ao

Paraguai, entretanto, é permeada por mal-estar distinto, sendo desenvolvido como mote

narrativo do filme. O contraponto entre sua experiência individual enquanto

estadunidense e a relação travada com o Paraguai, principalmente em um processo de

adoção de uma criança, é sua principal elaboração analítica. Ficamos diante de uma

narrativa que acaba por não fugir das questões que envolvem qualquer tipo de experiência

fílmica inserida mais diretamente no campo da antropologia, em que o cineasta se coloca

diante de uma experiência outra, frequentemente sobre a qual julga-se em uma posição

privilegiada de análise. Mesmo que McElwee desenvolva um olhar autorreflexivo de sua

própria posição no mundo em relação à experiência, como veremos, In Paraguay não

deixa de causar um estranhamento de antemão, justamente pelo fato de engajar questões

que parecem não ser exatamente o terreno de reflexão no qual o diretor é mais fluente.

O cineasta ampara-se no registro histórico, portanto, para compreender (e

informar o espectador) a origem dos problemas sociais do país. Através das leituras que

faz, o diretor provê informação sobre a história do Paraguai desde a colonização ao século

XX. Ao longo do filme, McElwee disserta sobre episódios-chave da história paraguaia,

como a independência do país, já marcada pelo início do processo ditatorial de José

Gaspar de Francia, seguido pela presidência de Solano López. Um longo comentário é

feito a respeito da Guerra do Paraguai e a consequente aniquilação de boa parte da

população do país (a participação do Brasil no episódio é lembrada especialmente pelo

diretor). Seguem-se, então, comentários sobre a Guerra do Chaco e o período da ditadura

de Stroessner. O cineasta faz visitas com sua câmera a alguns dos sítios históricos que

conhece pelos livros, encontrando paisagens mudadas pelo tempo e mais exemplos do

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extrato social marcado por uma pobreza que o choca. De maneira geral, o diretor enxerga

os problemas sociais paraguaios como fruto de uma evolução histórica nacional marcada

por processos despóticos, ditatoriais e corruptos, um após o outro, cujas cicatrizes são

evidentes.

A enunciação de McElwee em In Paraguay passa pelo desenvolvimento de um

mea culpa no qual o diretor reconhece-se parcialmente culpado por aquilo que vê no país.

O cineasta evoca, em determinado momento de sua narração em over, o desconforto que

sente por ser estadunidense em um país cujos assuntos internos (personal affairs) teriam

sofrido interferência dos Estados Unidos – referindo-se ao apoio norte-americano à

ditadura de Alfredo Stroessner, de 1954 a 198952. A ciência de McElwee da posição

privilegiada de si próprio e de sua família em contraponto a grande parte da população

paraguaia é tematizada ao longo do filme de diferentes maneiras. Em um destes

momentos, a família McElwee leva a Mariah a um médico particular paraguaio para que

seja examinada e vacinada. No encontro, o médico diz que boa parte dos recém-nascidos

não tem acesso à vacinação, pois as famílias não têm como pagar pelo serviço. Em outra

passagem, o cineasta filma garotos realizando trabalho infantil, vendedores ambulantes

dos semáforos de Assunção, e relata o comentário ingênuo feito pelo filho Adrian, negado

pelo diretor, de que seria “bacana” fazer uma atividade como essa. Enquanto cidadãos

estadunidenses, a família acaba tendo acesso ainda a outros tipos de privilégios que serão

determinantes para o desenrolar da jornada. Um deles diz respeito a um conhecido(a) da

alta classe paraguaia, que convida-os para uma festa de grandes proporções no Clube de

Campo da cidade. Na ocasião, o que chama a atenção do diretor é a fartura de comes e

bebes para os convidados, bem como o desperdício dos restos. Em uma área periférica à

festa, crianças paraguaias que não fazem parte da celebração comem e bebem o que foi

deixado de lado, evento este que é filmado de perto por McElwee. O comentário que o

diretor faz em voz over durante a sequência representa este eixo de sua enunciação, um

dos principais pontos analíticos do filme:

Ok, eu já estive em eventos como estes nos Estados Unidos:

casamentos, bar mitzvahs. Lugares onde há bolo demais, champanhe

demais, "tudo” demais. Então, por que este parece diferente? (...) Talvez

52 Algo que também aparece em Six O’Clock News, como já citado, quando reflete sobre a vinda de salvadorenhos para a Califórnia evocando a interferência dos Estados Unidos nos assuntos internos de El Salvador.

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eu esteja sensível em relação a isto porque estar aqui coloca o paradoxo

do background de Mariah em foco. (...) O porquê específico pode ser

difícil de traçar, mas é certamente verdade que a incrível prosperidade

dos Estados Unidos da América – a mesma prosperidade que nos

permite vir até aqui adotar Mariah – também é, de alguma maneira

complicada, ao menos parcialmente responsável pela pobreza de onde

ela vem. Isto, além do fato de que a América não está fazendo o

suficiente para a aliviar (esta pobreza).

A influência e privilégio dos McElwee, por serem estadunidenses, é também

utilizado a favor da família para o desenrolar dos trâmites burocráticos em relação à

adoção. Após diversas tentativas infrutíferas de que o caso de Mariah fosse atendido pela

corte de justiça paraguaia, o diretor e a esposa decidem convidar o juiz encarregado do

caso da adoção para um jantar. Em sua narração em over, McElwee comenta o caso a

partir da sensação de desespero que ele e a esposa vivenciavam no Paraguai. Diante de

um processo confuso, promessas judiciais não cumpridas e a sensação de nenhum tipo de

evolução, a família permanecia no país por muitas semanas além do esperado, sem

perspectiva de quando a legalização do processo de adoção de Mariah poderia acontecer.

O desejo de retornar imediatamente aos EUA é aprofundado por um acidente ocorrido

com Adrian, que sofre queimaduras de segundo grau devido ao contato com a água

fervente de uma chaleira que era utilizada pela família para cozinhar improvisadamente

no quarto de hotel. Apenas após este episódio e mais algumas idas ao palácio de justiça,

os McElwee conseguem embarcar de volta para o país de origem.

Como frisado, In Paraguay não escapa de evocar sensações análogas às de filmes

mais marcadamente antropológicos, em que o cineasta – frequentemente enxergando-se

em um patamar de alteridade cultural ou estrutural – retrata um território ou uma

sociedade bastante distinta da sua. A particularidade deste caso, entretanto, é que o

conhecimento entregue pelo filme é relacionado à própria motivação epistemofílica do

diretor em relação ao assunto tratado. Em outras palavras, trata-se de um conhecimento

corporificado, ou encarnado, a partir do desejo de McElwee de realizar um documentário

a respeito do país de origem da filha que está adotando. Como em outros de seus filmes,

neste caso também existe uma intenção de unir um conhecimento que “toca” o mundo

histórico e social com um episódio particular de sua vida: a explicação que provê sobre

os diferentes processos históricos pelos quais passou o Paraguai relaciona-se com seu

desejo em conhecer mais sobre a cultura do país da filha.

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Em todo caso, é justamente a posição enunciativa corporificada do diretor que

sugere, da mesma forma, que McElwee coloque em perspectiva o seu próprio conjunto

de valores éticos e morais em relação à empreitada que vivenciou e que está

narrativizando. Reconhecendo-se em uma posição privilegiada e sentindo-se “parte do

problema” em relação à condição econômica e social das pessoas que encontra pelo

caminho, McElwee lança mão do discurso de mea culpa que permeia o filme. Este, como

destacamos, vai desde o desejo em prover conhecimento sobre a história pública do

Paraguai, destacar a interferência dos Estados Unidos em diversos processos ditatoriais

na América Latina, colocar si próprio em uma delicada questão ética ao revelar o convite

de jantar feito ao juiz responsável pela adoção de Mariah, ou mesmo nos informar que

teve a oportunidade de conhecer e conversar com a mãe biológica de Mariah, que os

assegurara que não teria condição alguma de cuidar da criança. Por outro lado, a própria

ideia de adotar uma criança do “terceiro mundo” (a expressão aparece em Time Indefinite)

que não pudesse ser criada pela mãe é vista pelo diretor e sua esposa como um ato de

generosidade, ou, “algo correto a se fazer”. Este é um debate entre McElwee, a esposa e

Charleen Swansea que acontece no final de Time Indefinite, à ocasião do nascimento de

Adrian.

Por mais, entretanto, que McElwee “cumpra a cartilha” de tentar oferecer um

panorama de todas as questões éticas que permeiam, ou permeavam, seus pensamentos

em relação à adoção de Mariah, In Paraguay continua evocando a sensação de um

estranho desvio na filmografia do diretor e nas expectativas de seu público. Como frisado

anteriormente, o filme teve exibição pública apenas na edição de 2008 do Festival de

Veneza e, por isto, não foi alvo de muitas análises. Photographic Memory, filme seguinte

do diretor, também fez parte da seleção oficial do Festival de Veneza e, às vésperas da

ocasião, o site português Público lançou uma nota em que cita o filme anterior. Segundo

o site, em In Paraguay, McElwee “Talvez por ter saído do seu mundo, apareceu a olhar

para o mundo com a ingenuidade de um american abroad. Estamos, por isso, a fazer figas

por Photographic Memory, que parece um regresso.” (PUBLICO, 2011). É difícil julgar

o quanto a empreitada de McElwee em In Paraguay poderia ser ingênua ou não, porém é

possível afirmar que o desvio do diretor de sua cultura e do universo temático com o qual

havia trabalhado até então soa, ao menos, dissonante. Pode-se notar, por exemplo, uma

das últimas sequencias do filme em que o diretor filma um pedinte aleijado que se arrasta

até a escadaria de uma igreja de Assunção. McElwee, em sua narração em over, diz:

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“Claramente, sua vida não é fácil. Claramente, sua vida não é fácil, mas ele sorri. ”. Logo

em seguida, em um dos últimos momentos do filme, o diretor realiza uma montagem de

diversos close ups de pessoas com quem cruzou durante o tempo no Paraguai, sob uma

trilha musical não-diegética da peça El Sueño de la Muñequita, escrita pelo violonista

paraguaio Agustín Barrios (que é tocada em outros momentos do filme). Seja ingenuidade

ou homenagem, estes procedimentos acabam por dar ao filme certo tom de “compaixão

ao Paraguai”, em uma posição distinta da avaliação crítica e irônica que McElwee

performa tanto em relação à sua própria vida quanto em relação às diversas facetas da

sociedade norte-americana em seus filmes anteriores.

Para além destes aspectos ressaltados, que lidam mais com uma posição

enunciativa inédita da parte de McElwee e uma exploração temática distinta daquela vista

em sua obra até então, há algumas considerações a serem feitas em relação à maneira

através da qual In Paraguay encaixa-se na carreira autobiográfica do diretor. De alguma

forma, o filme apresenta um paradoxo temporal, ou, nas palavras de Scott MacDonald,

um “buraco negro narrativo” (MACDONALD, 2013. p. 231) para um espectador

conhecedor de sua obra. O filme foi finalizado em 2009, seis anos após o lançamento de

Bright Leaves. No filme de 2004, Adrian já aparece como um pré-adolescente,

distanciando-se da figura pueril que é meticulosamente representada em In Paraguay.

Como frisado, a narrativa inicia em 1994, no aniversário de cinco anos de Adrian, e

estende-se no máximo até 1995, com a volta dos McElwee para os EUA e a concretização

do processo de cidadania estadunidense de Mariah. O filme “volta” no tempo cronológico

da vida privada de McElwee, porém não há referência explícita na narrativa em relação

ao momento da edição e finalização do documentário – mais de dez anos após os eventos

representados. O paradoxo narrativo existe, por exemplo, quando McElwee, no filme,

imagina como Mariah se sentirá em relação à sua origem paraguaia quando tiver crescido

– o que já é uma realidade no momento da finalização do filme, visto que Mariah teria

por volta de 13 anos.

Há uma relação narrativa entre In Paraguay e filmes anteriores de McElwee, em

especial Time Indefinite, que não toma contornos textuais no filme. O final de Time

Indefinite sugere que McElwee e a esposa pensam na ideia de adotar uma criança do

“terceiro mundo” que não pudesse ser criada pelos pais biológicos. É interessante notar

que não existe menção a esta passagem na narrativa de In Paraguay, e também não a

outra sequência do filme de 1993, onde McElwee e a esposa conversam sobre uma bomba

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elétrica de sucção de leite materno, quando Marilyn fica grávida pela primeira vez

(gravidez esta que terminará em um aborto espontâneo). Em In Paraguay, a família

McElwee volta à loja e Adrian, bastante espontaneamente, pede explicação para o pai

sobre o que seria a mesma bomba de sucção. Frente a esta coincidência – substrato da

força do cinema direto e seus momentos mais “mágicos” – um procedimento tipicamente

McElweeniano trataria de realizar um resgate espaço-temporal desta outra ocasião,

utilizada em um filme anterior, e contrapô-lo com a nova situação. Porém, por algum

motivo, como frisado, In Paraguay mantém-se restrito a uma narrativa bem delimitada

temporalmente e não arrisca este tipo de ida e vinda tão característico da reavaliação

meditativa que McElwee faz em relação a si próprio com o passar do tempo e dos filmes.

Scott MacDonald infere (2013, p. 231) que pelo fato de In Paraguay ter sido

editado e finalizado no momento em que McElwee e sua esposa estavam passando pelo

processo de divórcio, talvez o filme fosse uma maneira de realizar uma homenagem a um

momento em que a família vivia o ápice de uma união – que, já por volta de 2008, não

existia mais. Da mesma forma, é possível sugerir que este também seja o motivo pelo

qual o diretor furtou-se de dar visibilidade na narrativa àquilo que acontecia em sua vida

privada neste momento. Tematizar o desmoronamento da família feliz que vemos nas

imagens da viagem ao Paraguai talvez desviasse por demais o foco daquilo que McElwee

buscava, sobretudo, retratar no filme: o processo de adoção de sua filha Mariah.

De fato, as imagens do diretor em In Paraguay revelam substancialmente uma

faceta de sua vida privada que ainda não havia sido retratada em filmes anteriores. Tanto

o início quanto o final do filme, passados nos EUA (e filmados no padrão do diretor, em

16mm), quanto as imagens (filmadas em vídeo hi-8) do miolo da narrativa, no Paraguai,

mostram o cineasta totalmente imerso em uma vida familiar. Apesar de Marilyn ser

retratada consideravelmente em Time Indefinite e, em menor escala, em Six O’ Clock

News, a interação entre o diretor, sua esposa e Adrian em uma empreitada conjunta ocupa

o espaço dominante na consciência de McElwee enquanto cineasta naquele determinado

período. Para além dos momentos em que o diretor ruma sozinho pelas ruas de Assunção

ou provê os detalhes históricos do Paraguai como nação, a intenção de McElwee no filme

é claramente a de trabalhar com a encenação típica de um cotidiano familiar. Os passeios

realizados, as refeições preparadas, os jogos e brincadeiras ao redor do hotel em

Assunção: todos estes momentos denotam como a relação interpessoal familiar ocupava

parcela significativa da vida de McElwee (e de Marilyn) no momento da filmagem. Da

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mesma forma, é possível inferir certa cumplicidade da esposa na empreitada, que não dá

sinais de resistência ou reprovação à câmera de McElwee (excetuando-se um momento

de desgaste emocional de ambos, em que ela pede para o realizador parar de filmar,

durante uma refeição). Os diversos momentos em que o diretor interage com Adrian, da

mesma forma, sugere uma relação harmoniosa entre pai e filho que, como sabemos,

começará a se deteriorar a partir de Bright Leaves, o filme anterior.

É neste sentido que o paradoxo temporal, ou o “buraco negro narrativo”, como

sugere MacDonald, serve um propósito específico no projeto autobiográfico de McElwee.

Em entrevista dada a Scott MacDonald (2014, p. 158), o diretor frisa que a partir de

determinado momento, Marilyn começou a se sentir desconfortável com o fato de ser

filmada, e pediu ao diretor que não aparecesse mais em seus filmes. Posteriormente,

Marilyn haveria dito ao cineasta que não respeitava mais sua forma de fazer cinema. Já

em Bright Leaves, a esposa aparece por não mais de dez segundos em todo o longa-

metragem e em nenhum momento de Photographic Memory, quando o casamento estava

à beira do colapso. Desta forma, tratar a experiência da família McElwee no Paraguai

como uma memória isolada (ainda que seja narrado no tempo presente e

cronologicamente, como todos seus filmes), desconectando-a do que acontecerá

subsequentemente em sua vida (tanto o seu distanciamento em relação a Adrian quanto

sua separação de Marilyn), seria a única saída de preservar narrativamente aquela

determinada conjuntura espaço-temporal, principalmente em relação ao sentimento de

união familiar imperante no momento. Ao montar e finalizar o filme mais de dez anos

depois, McElwee está lidando com o “defunto de um presente” (expressão cunhada pelo

próprio diretor e que já utilizamos anteriormente) – replicando e revivendo sensações e

situações de um relacionamento familiar cujos afetos já não existem mais da mesma

forma.

De qualquer maneira, apesar destas considerações, ainda não existe consentimento

para que o filme seja lançado comercialmente. A história da feitura e da (não) veiculação

de In Paraguay é um ótimo subsídio para a reflexão acerca do escopo ético dos

documentários autobiográficos, que em muitos casos acaba por tomar contornos

complexos. A avaliação no que concerne os desdobramentos da vida privada de McElwee

(como o término de seu casamento ou a não-autorização da veiculação de um filme como

In Paraguay) poderia parecer à primeira vista como mera “fofoca” ou comentário de

coluna social, porém é justamente neste tipo de consideração que o documentário

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autobiográfico mostra a força potencial que circunda as produções e que pode

“transbordar” à vida individual daqueles que estão envolvidos. Este é o caso da carreira

de Ross McElwee, notadamente devido ao período de tempo prolongado, por décadas,

que a empreitada do diretor vem se construindo. Para além disto, sugere-se que

documentários autobiográficos que trabalham no universo metodológico do cinema direto

trazem, ainda, outros tipos de consideração para a questão. Se olharmos isoladamente

para In Paraguay, haveriam elementos dentro da diegese do filme que justificassem à

primeira vista, para um espectador não familiar com a obra anterior do diretor, a proibição

do filme? É possível dizer que Marilyn é retratada no filme como uma mulher forte e

determinada; Ross, como um pai atencioso e carinhoso em suas interações com Adrian.

Este, por sua vez, uma criança que mostra sinais de criatividade, gentileza e educação.

Em relação à temática, para além do eixo narrativo que lida com a vida privada do diretor,

não existe desrespeito com o território paraguaio ou seus habitantes e, sim, uma

culpabilidade recorrente de McElwee em relação à sua própria posição privilegiada.

O problema parece estar diretamente conectado à maneira que o cinema

documentário e, em especial, a ótica metodológica do cinema direto, é usada em favor de

uma construção narrativa autobiográfica. In Paraguay sublinha o fato de que a encenação

do filme é capaz de trazer à tona estados de consciência e relações afetivas entre

indivíduos particularizados por circunstância espaço-temporais determinadas e

“cristalizadas” em celuloide por meio da tomada fílmica. Assistindo às tomadas

realizadas durante o processo de adoção de Mariah é difícil negar que estamos

testemunhando o cotidiano de uma família feliz. No caso de In Paraguay, a

particularidade da questão gira em torno do fato de que McElwee furta-se de esclarecer

que, na realidade, estamos diante de uma família que foi feliz, considerando-se o período

de montagem e finalização do filme. O filme resgata um universo de estados de

consciência e relações afetivas que não encontram correspondente similar em um tempo

futuro – ressuscitando, portanto, o “defunto de um presente”, sem necessariamente

aponta-lo como morto. Neste sentido, o filme poderia tornar-se um causador de

sofrimento àqueles nele envolvidos, podemos supor, menos pelo seu conteúdo

estritamente narrativo, e mais pelo paradoxo temporal que evoca. A maneira através da

qual um filme como In Paraguay cria uma situação delicada ao ressuscitar “afetos

mortos” toda vez que é visto aponta para a força da encenação do cinema direto neste

cenário de construção narrativa autobiográfica. É possível divagar se a situação seria tão

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problemática se McElwee tivesse escrito um livro a partir de suas memórias daquilo que

ele e sua família viveram no momento da adoção de Mariah. Mesmo que tempos depois

seu casamento terminasse, como veio a ser, pode-se questionar se esta narrativa literária

também teria sido proibida de circular, ou ainda se Mariah seria permitida a ler o livro

apenas quando completasse dezoito anos, como foi acordado pelo casal em relação ao

filme.

Aparentemente, a energia potencial que existe na narrativização deste tipo de

situação pode tornar-se “violenta” com o passar dos anos – lembrando-nos aqui, o termo

utilizado por William Rothman (1996, p. 83) justamente em relação a este assunto. In

Paraguay exemplifica um tipo de violência que não está presente em uma leitura direta

das imagens, dos sons ou do discurso textual, diegético, do filme. Sua violência – e a

consequente proibição – concretiza-se a partir do momento em que a narrativa nos remete

temporalmente à circunstância das tomadas, ressuscitando o estado de consciência, as

relações interpessoais e os afetos, do cineasta e das pessoas ao seu redor que não

encontram correspondentes em um tempo futuro. A reflexão acerca deste tipo de questão

engendrada pelos documentários autobiográficos permeia algumas declarações de

McElwee. Tome-se como exemplo os apontamentos em relação às suas reações a um

filme como Time Indefinite, caso fosse visto por ele próprio nos dias atuais:

Eu não consegui assistir a este filme desde que me divorciei, mas o que

significaria para mim assisti-lo agora? Para um espectador que não

sabia que nossos votos de casamento, proferidos com tanta convicção

no filme, foram anulados, o filme seria exatamente o que sempre foi:

engraçado em alguns momentos, ocasionalmente entediante em outros

(quando o cineasta não consegue deixar a câmera de lado), e, nos

melhores momentos, tocante e pertinente.

Mas se eu fosse assisti-lo hoje, seria um filme totalmente diferente –

como se ele tivesse sido re-filmado, reeditado e tivesse ganho uma

narração diferente. Time Indefinite foi feito por outro Ross, vivendo

uma vida diferente. Como um filme antropológico feito a respeito de

uma tribo que não existe mais, Time Indefinite, pelo menos no que toca

o meu casamento, é uma etnografia sobre emoções extintas.

(MACDONALD, 2014. p. 159-160. Tradução nossa.)

O universo dos documentários autobiográficos de Cambridge traz outros

exemplos neste sentido. Beginning Pieces (1984), dirigido por Alfred Guzzetti, e que lida

com o crescimento da filha Sarah, dos dois aos cinco anos de idade, também foi tirado de

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circulação após esta tornar-se adulta, ao seu pedido. O caso do diário filmado de Ed

Pincus, Diaries (1971 - 1976), passa por questões semelhantes. Diferentemente de um

filme como In Paraguay, a narrativa de Pincus lida, já internamente, com temáticas mais

polêmicas em relação à exposição da vida privada de si próprio e daqueles ao seu redor.

Em outras palavras, há uma probabilidade maior de um espectador sentir-se

desconfortável ao assistir à jornada de Ed, Jane e os filhos, em meio à experimentação,

em geral pouco harmoniosa, do casamento aberto e da poligamia, ou do uso de

alucinógenos, ou frente à nudez do cineasta, de sua família e amigos, ou mesmo quando

Pincus tematiza a violência e a perseguição do esquizofrênico Dennis Sweeney, que

culmina no êxodo da família de Cambridge para uma vida no campo em Vermont. Mesmo

assim, é possível inferir que Pincus faz um trabalho consistente diante de sua intenção de

narrar cinco intensos anos de sua vida matrimonial, de seu trabalho como cineasta e do

crescimento de seus filhos. Ainda que visto sob a ótica da possível “beleza” de um registro

e de uma cristalização da história familiar, entretanto, o filme não deixa de ser violento

para aqueles envolvidos. Em entrevista a Scott MacDonald, Pincus constata que o filme

“tomou muito de si”, ou, muita energia de si próprio, apesar de ter cumprido todas suas

propostas em relação ao tipo de experimento que queria fazer (MACDONALD, 2014, p.

95). Segundo o diretor, sua filha Sami tem problemas (“a hard time”) ao assistir ao filme,

mesmo quarenta anos depois de sua feitura (MACDONALD, 2014, p. 92), relatando

também que sua nora, esposa do filho Ben, chorou e desistiu de assisti-lo após quarenta

e cinco minutos de visionamento. Pincus fala um pouco mais sobre o impacto do filme,

mesmo com o passar do tempo:

Devido ao fato de que estas pessoas eram meus amigos e família,

Diaries revelou muito sobre todos nós. Acredite ou não, sou uma pessoa

muito reservada. Para fazer o filme, tive de me contar uma mentirinha:

a de que após dez anos, eu não ligaria mais para aquilo que seria

revelado nas imagens. Eu esperava ser açoitado por ter feito o filme,

mas, na realidade, a reação da imprensa foi incrivelmente favorável. Eu

fiquei totalmente surpreso e contente, por um lado, mas foi também

muito difícil para mim – e ainda é – estar tão visível. (MACDONALD,

2014, p. 95. Tradução Nossa)

Os casos de In Paraguay, Diaries e Beginning Pieces evocam alguns comentários.

Aqui, podemos lembrar do questionamento de Ross McElwee em relação ao

documentário autobiográfico sob uma perspectiva, segundo o próprio, filosófica e

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fenomenológica: “O que significa produzir estes filmes pelo fato de que seus contextos e

circunstâncias invariavelmente alteram seus significados?” (MACDONALD, 2014. p.

159). O ponto é o de que a recorrência deste tipo de situação – a alteração de seus

significados a partir da mudança de contextos – sugere que existe uma dupla

indeterminação com a qual lida o documentarista-autobiógrafo que trabalha sob a ótica

metodológica do cinema direto. Uma destas indeterminações é relativa àquela própria da

circunstância da tomada, em que o cineasta trabalha com o desenrolar dos eventos do

mundo ao seu redor, a partir de um determinado tempo e espaço. No caso deste tipo de

cinema com o qual estamos trabalhando, é enfatizado o interesse em lidar com pessoas e

localidades com as quais o cineasta tem um vínculo individual e afetivo prévio: pessoas

de sua família, amigos próximos, a casa onde mora, seu local de trabalho; e a subsequente

interação do cineasta neste meio. Já a segunda indeterminação relaciona-se com a reação

destes protagonistas (incluindo-se aí o próprio cineasta) a partir da narrativa construída

(do filme finalizado) em relação à passagem do tempo e a subsequente mudança de

circunstâncias e contextos em suas vidas, utilizando os termos de Ross McElwee.

Naturalmente, a possibilidade de mudança de opinião do cineasta e das pessoas

filmadas em relação ao projeto de que participaram, conforme o tempo passa, não é uma

exclusividade de documentários que trabalham sob a ótica da autobiografia. Há,

entretanto, algumas considerações que devem ser feitas aos documentários

autobiográficos em relação a questões éticas particulares. Esta é a preocupação central de

um texto lançado ainda em 1988 por John Stuart Katz e Judith Milstein Katz, “Ethics and

the Perception of Ethics in Autobiographical Film” (KATZ e KATZ, 1988), que reflete

acerca de algumas destas questões considerando filmes de cineastas como Amalie

Rothschild, Maxi Cohen e Ross McElwee. Os autores apontam que as narrativas dos

documentários autobiográficos já iniciam com níveis de confiança e intimidade entre

cineasta e “objetos” nunca alcançados (ou mesmo nem buscados) em outros tipos de

documentário – justamente por lidarem com a relação entre o cineasta e as pessoas mais

próximas de si. Os autores questionam se este relacionamento especial entre cineasta e as

pessoas filmadas suscitariam algum tipo de distinção ética e, da mesma forma, como este

relacionamento afetaria a percepção do público em relação a estas questões.

Katz e Katz apontam que nesses casos nós, como espectadores, temos padrões

éticos distintos ao julgarmos o registro, a interação e a incorporação à narrativa, que

dependem dos “objetos” explorados pelo cineasta (KATZ e KATZ, 1988. p. 123). Há

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uma distinção da maneira através da qual julgamos a tematização, da parte de um cineasta,

em relação a políticos ou celebridades (e outros tipos de pessoas públicas), se em

comparação a pessoas “comuns” nas ruas (ou pessoas sobre as quais não temos nenhum

tipo de conhecimento prévio), ou pessoas com pouco acesso à educação ou em situação

de marginalidade social. Qual seria o grau de expectativa, portanto, que teríamos em

relação a um(a) cineasta que filma seu marido/esposa, seus pais, irmãos ou filhos? Os

autores colocam que o fato das pessoas retratadas no filme serem da família do próprio

cineasta sugere um grau de responsabilidade maior da parte deste. Culturalmente,

segundo Katz e Katz, supõe-se que as pessoas devam tratar seus familiares com mais

consideração do que tratam estranhos. Existe a presunção – que, embora empírica, acaba

por pautar nossa percepção de um comportamento apropriado – de que as famílias são

grupos que nos nutrem e nos protegem do “mundo malvado lá fora”, e isto é levado em

consideração pelo público (espectadores que também, forma ou outra, têm as suas

próprias famílias). Segundo os autores: “Em nossa cultura, sentíramo-nos mais ofendidos

em saber que um cineasta enganou sua família do que se tivesse enganado um estranho.

Como ele pôde fazer isto? Os padrões que aplicamos são mais altos. ” (p. 123).

Katz e Katz prosseguem a discussão refletindo sobre o tipo de consentimento que

envolve as pessoas da família que são retratadas pelo cineasta-autobiógrafo. Os autores

questionam: será que estas pessoas aceitariam ser filmadas (neste mesmo tipo de registro

caseiro/familiar) por outro cineasta – um estranho? Sugere-se que ainda que as

características variem de indivíduo para indivíduo e de família para família, poderíamos

hipotetizar que, no caso das famílias, “o amor, a culpa, o medo da perda do amor, um

senso de dívida de favores, o desejo de ajudar e o desejo de ser útil” (p.124), em relação

aos documentários autobiográficos, são elementos que contribuem mais para a

“confusão” existente em relação aos motivos pelos quais as pessoas consentem suas

participações em filmes.

Neste sentido, é possível sustentar que nos documentários autobiográficos,

frequentemente, diversas das pessoas retratadas pelo cineasta deixam-no fazer com a

sensação de que estão fazendo um favor para ele. Nossas suposições em relação ao

consentimento de determinado indivíduo podem, inclusive, fazer parte do próprio eixo

temático do documentário. É o caso dos primeiros filmes da carreira autobiográfica de

Ross McElwee, por exemplo, de Backyard a Time Indefinite, no que diz respeito a seu

pai. O cineasta tematiza a maneira através da qual o pai não estaria absolutamente

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confortável, ou satisfeito, em um primeiro momento, com a empreitada do filho em

acompanha-lo em seu trabalho de cirurgião ou em diversos momentos cotidianos. Este

tipo de desconfiança em relação à carreira incipiente do filho parte tanto de comentários

textuais quanto da própria linguagem corporal deste em relação à câmera. Ainda em

Backyard¸ o primeiro filme, o pai diz a frase “Ficarei satisfeito quando o olho grande for

embora” (I’ll be glad when the big eye is gone), já mencionada, que é reutilizada em

diversos de seus filmes subsequentes quando o diretor busca lembrar da relação que tinha

com o pai. Em outros de seus filmes, esta mesma desconfiança é tematizada a partir de

olhares de “reprovação” lançados para a câmera do filho. Em Diaries (1971 - 1976), de

Ed Pincus, a evolução da boa vontade, ou complacência, de Jane em relação à empreitada

do marido, torna-se um mote importante da narrativa. É possível dizer, entretanto, que

nestes casos (como em outros documentários autobiográficos), estes personagens

provavelmente não gostariam, por vontade própria, de ter suas intimidades e seus

cotidianos revelados e narrativizados na forma fílmica, ao menos não desta forma, para

um cineasta que não fosse de sua família. Neste sentido, um caso mais delicado seria o

de cineastas que filmam os filhos durante a infância, quando ainda não há discernimento

em relação à sua própria participação dentro de uma narrativa cinematográfica. A usual

complacência que vemos da participação dos filhos pequenos neste tipo de filme parece

estar sob a égide tanto do amor quanto da autoridade paterna ou materna. Esta

complacência pode endurecer com o passar do tempo: novamente a obra de McElwee

serve como exemplo, se compararmos a encenação de Adrian para a câmera do pai em

filmes como Six O’Clock News ou In Paraguay, quando ainda é uma criança, com o

jovem adulto totalmente autoconsciente de Photographic Memory. Ou mesmo como o

caso supracitado de Beginning Pieces, de Alfred Guzzetti, em que sua filha, depois de

crescida, deixou de concordar com a distribuição do filme.

O que Katz e Katz sugerem é que a relação prévia entre pai e filho, ou entre esposo

e esposa, carrega em si valores que frisamos anteriormente (amor, compaixão, vontade

de ajudar e de estar presente, etc.), que, além de tornar-se parte inexorável de toda

encenação, pautam previamente o contrato de acordo entre cineasta e personagem. Neste

sentido, portanto, o fato dos documentários autobiográficos “invariavelmente alterarem

seus significados”, segundo a ótica de Ross McElwee, frente à passagem do tempo e à

consequente mudança de contextos e circunstâncias, diz respeito justamente à

possibilidade de variação das relações afetivas entre o cineasta e as pessoas que filma – o

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crescimento e amadurecimento dos filhos, por exemplo, ou um processo de divórcio

poderiam deflagrar este tipo de variação. O questionamento que atravessa McElwee na

maturidade de sua carreira parece tomar proporções maiores à medida em que o tempo

passa e a cada filme finalizado pelo diretor. O trato com a exploração de um universo

individual e a rede de sentimentos e afetos pertencentes a ele parece resultar em uma via

de mão dupla, quando aliado à metodologia do cinema direto e suas heranças. McElwee

aposta na passagem do tempo como fator potencializador de diversos momentos de seus

filmes, porém a força narrativa advinda desta aposta resulta tanto nas maiores virtudes de

sua carreira quanto em momentos eticamente delicados. As questões que rodeiam a (não)

distribuição de um filme como In Paraguay sublinham a importância da hipótese de

William Rothman a respeito do aspecto irredutível de violência no papel do cineasta do

cinema direto, mesmo diante das melhores de suas intenções, e que se revela vulnerável

à imprevisibilidade diante da força transformadora do tempo e sua passagem.

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3.8. Photographic Memory (2011): Um ciclo completo

A possibilidade de Photographic Memory, lançado em 2011, constituir o

fechamento de um ciclo autobiográfico da carreira de Ross McElwee foi um dos pontos

discutidos em entrevista realizada com o diretor para esta pesquisa. De fato, o olhar

reflexivo de McElwee para o início de sua carreira, ainda na década de 1970, é um dos

amparos narrativos deste que é o último longa-metragem lançado pelo diretor até o

presente momento. No filme, McElwee enxerga o começo de sua abordagem

autobiográfica, que desemboca no média-metragem Backyard, lançado vinte e sete anos

antes, um fenômeno que deve emergir como rememoração, com a finalidade de ajudar a

solucionar alguns dos dilemas que assolam sua vida individual no momento.

A necessidade do resgate de determinado período da juventude de McElwee não

acontece, evidentemente, por força do acaso. O diretor reconhece conflitos similares neste

período de sua maturidade em relação aos que perpassavam sua vida na década de 1970

e que serviram como motivação para a exploração autobiográfica de Backyard. Naquele

momento, o cineasta apresentava-se como um jovem artista, que tateava o início da trilha

pelo caminho das artes e da exploração criativa da linguagem cinematográfica. Suas

aspirações artísticas dividiam espaço com outras possibilidades que refletiam um estado

de espírito disposto a desafiar padrões mais convencionais de vida e trabalho, como o

envolvimento com o budismo Theravada, com movimentos pacifistas, ou ajudando no

registro de eleitores negros no Sul dos Estados Unidos. Como contraponto ao ímpeto

aventureiro e artístico de McElwee havia a tradição familiar e sua expectativa –

representada sobretudo pela figura de seu pai. Médico, como outros membros da família

McElwee, republicano e conservador, o pai do diretor nunca escondeu a pouca predileção

pelo caminho trilhado pelo filho – ou ao menos por um deles, dado o fato de que o irmão

mais novo de McElwee seguiu a tradição familiar, tornando-se posteriormente cirurgião

e inclusive tomando conta de alguns pacientes do pai após sua morte.

De qualquer maneira, em Backyard assistimos à exploração deste conflito familiar

a partir de um jovem McElwee que enxergava uma vida inteira de desenvolvimento

pessoal e profissional pela frente. Como espectadores, pudemos acompanha-lo em parte

desta jornada de acordo com aquilo que o diretor escolheu compartilhar conosco em suas

narrativas documentárias autobiográficas, em um movimento de três décadas

subsequentes ao lançamento de Backyard. Para além dos percalços não incomuns que

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acompanham o desenvolvimento de carreiras menos ortodoxas como a de documentarista

independente – pelo menos se em relação à prática da medicina – é possível dizer que o

cineasta foi bem-sucedido no caminho que se propôs a trilhar. Contribuiu para o

desenvolvimento da história do documentarismo estadunidense ao adicionar pelo menos

um filme suficientemente integrado aos novos-clássicos desta filmografia (Sherman’s

March), pôde ater-se à sua proposta artística nos longas-metragens que realizou em três

décadas de trabalho e também fez parte do corpo docente de uma universidade que

valoriza sua carreira, lecionando prática cinematográfica.

É evidente, portanto, que em Photographic Memory estamos diante de um

McElwee ciente de que o caminho detrás de si é maior do que aquele que tem à sua frente.

Aos sessenta e quatro anos, o cineasta engaja um olhar de ternura à juventude, que agora

parece decididamente distante. Esta constatação advém também a partir do olhar para sua

estrutura familiar. Para além do desenvolvimento de sua carreira profissional, seus filmes

nos ofereceram o conhecimento acerca dos eventos mais significativos de sua vida

privada. Neste sentido, o crescimento de seus dois filhos, Mariah e, mais especialmente,

Adrian, pontuaram a passagem do tempo no decorrer dos anos de sua vida adulta. A

constatação de que um ciclo geracional inteiro se passou desde a abordagem

autobiográfica de Backyard acontece com o fato de que em Photographic Memory Adrian

é apresentado como um jovem adulto, com idade não tão menor que a de seu pai no início

de sua carreira.

É justamente no reconhecimento de Adrian como um adulto prestes a iniciar sua

vida profissional que o filme traz seus principais conflitos narrativos em uma esfera

autobiográfica. Além de um evidente embate de gerações travado entre McElwee e

Adrian, há um desarranjo entre as expectativas do pai/diretor e os caminhos que o filho

almeja seguir: um choque de valores similar àqueles experienciados pelo diretor em

relação a seu pai, tematizados em Backyard. Apesar da disposição em trabalhar com

mídias, o audiovisual em especial, Adrian parece menos inclinado à exploração da

linguagem sob a ótica das belas-artes se em comparação às motivações do pai no início

de sua carreira, bem como não demonstra desejo algum de ingressar nos estudos

universitários. Diante da constatação do filho de que, se pudesse, teria um helicóptero e

gostaria de morar na cobertura de um arranha-céu “vivendo ridiculamente”, McElwee o

questiona: “De onde diabos você tirou estes valores, Adrian?”. O cenário traçado pelo

início de Photographic Memory revela o cineasta como um pai pouco sintonizado ao

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ímpeto capitalista do filho, inclinado ao acúmulo financeiro e à ostentação de roupas,

carros e de todos os gadgets tecnológicos de última geração que o dinheiro pode comprar.

Ainda confuso em relação às suas aspirações profissionais, Adrian apresenta também

predisposição a comportamentos extremos, como a prática de esportes radicais sob o

efeito de álcool e/ou drogas leves.

Figura 50: Adrian McElwee aos 21 anos de idade, em Photographic Memory (2011)

Completando um processo iniciado em filmes anteriores, portanto, no longa-

metragem McElwee apresenta-se “calçando os sapatos” que seu pai calçou, mais de trinta

anos antes, quando revela uma preocupação genuína com o futuro e a felicidade de

Adrian. O distanciamento entre o diretor e seu filho é tematizado progressivamente, em

um movimento que é iniciado em Bright Leaves, na pré-adolescência do filho, e que

culmina no cenário afetivo instável entre ambos de Photographic Memory.

Concomitantemente a este movimento, há nos filmes uma reaproximação entre McElwee

e a memória do pai, após sua morte. O cineasta passa a enxergar a faceta de humanidade

do pai que lhe era invisível em sua juventude – principalmente a partir dos desafios da

paternidade com os quais o diretor se depara ao longo do crescimento do filho. Assistir

aos caprichos pós-adolescentes de Adrian, em diversas de suas facetas, é um fenômeno

que causa certa surpresa para os espectadores que acompanham a obra de McElwee de

perto. Um olhar atento aos filmes pode sugerir que o realizador parece ter de alguma

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forma evitado tematizar narrativamente os conflitos que advém do crescimento de Adrian

e as disputas entre pai e filho que, naturalmente, tendem a se agravar com a adolescência.

O início deste tipo de conflito é tematizado em Bright Leaves, porém mesmo neste filme

McElwee explora mais substancialmente o material de Adrian ainda em sua infância,

caracterizando-o em sua sensibilidade, criatividade, doçura e puerilidade dos tempos de

criança; movimento este que se repete também na narrativa de In Paraguay.

Esta “lacuna” nos filmes do realizador em relação ao crescimento de Adrian pode

suscitar o questionamento nos espectadores sobre “onde teria ido parar” a polidez

inocente do filho que víamos em seus filmes anteriores. Manter o filho próximo de si,

amparando-o em seus desejos e aspirações, parece não ter evitado que um distanciamento

entre ambos se agravasse. Posteriormente no filme, McElwee assume uma parcela de

culpa neste processo, admitindo a tendência a ter superprotegido Adrian em diversos

momentos de sua vida. Se em Backyard o cineasta relata que a decisão tomada por seu

pai diante do impasse de uma “incompatibilidade de gênios” entre ambos foi o da

resignação (“Eu decidi não me preocupar mais com você. Eu me resigno do seu destino”),

o diretor dispõe-se a trilhar um caminho diferente. A solução buscada pelo cineasta, e que

se apresenta como o principal veio narrativo de Photographic Memory, é o de tentar

entender o momento que o filho está passando através da reconstrução de episódios de

sua vida no período em que tinha a idade de Adrian.

Desta forma, McElwee vê a viagem que realizou para a França após sua graduação

como o ápice simbólico de sua juventude. Antes de ingressar no MIT Film Section, o

diretor passou um ano viajando pelo país, tendo vivido parte especial deste período na

pequena cidade portuária de St. Quay-Portrieux, localizada na região da Bretanha. Os

principais registros desta viagem são diários e anotações que McElwee guarda até

atualmente, revelando-os a Adrian e a nós, espectadores. Na viagem, o cineasta

permanecia imerso no universo da literatura, tendo pouco tempo antes realizado os

estudos de graduação em Escrita Criativa pela Universidade de Brown. Os outros

registros da viagem são as fotografias still que tirou e que cujos negativos permanecem

armazenados em sua casa. Segundo McElwee nos narra ao longo do filme, a viagem para

a Bretanha foi definidora no sentido de estimular seu impulso pelo trabalho com o registro

fotográfico do mundo, neste caso ainda na linguagem da fotografia estática, mas que

revelava já seu apreço por determinadas questões ontológicas que perpassam sua obra

fílmica. No caso, foi em St. Quay-Portrieux que o realizador pôde trabalhar pela primeira

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vez em sua área, como assistente de um fotógrafo chamado Maurice, cujo ofício era o da

fotografia de eventos como batizados e casamentos. Maurice, o cineasta nos conta, fez o

papel de mentor do diretor, estimulando seu interesse por atravessamentos conceituais no

campo da fotografia e da cultura. Morando em um porão da casa de Maurice e sua família,

onde também revelava negativos, McElwee viveu um período de intensa imersão no

mundo da fotografia sob um viés prático. Aliado ao estímulo profissional proporcionado

por Maurice, o cineasta lembra-se também de Maud, jovem com quem manteve um

relacionamento amoroso e com quem perdeu o contato após seguir viagem e deixar a

Bretanha, mas que marcou este período de sua juventude.

McElwee, devido ao descuido (ou à licença poética), narra não ter sequer o

sobrenome destas pessoas, apenas algumas fotografias e os relatos de suas experiências

diárias, a partir de entradas de diário. Decidido a “viver” novamente a paisagem da

pequena cidade da Bretanha, “dar um tempo” de sua relação com Adrian e talvez obter

mais informações sobre as pessoas que fizeram parte de seu passado, o cineasta lança-se

em direção a St. Quay Portrieux munido de sua câmera que, pela primeira vez, depende

e confia apenas na mídia digital (cartões de memória) como suporte de gravação. A maior

parte da narrativa de Photographic Memory, portanto, concentra-se no período em que o

diretor passa em St. Quay em sua empreitada. Intercalado à sua experiência em St. Quay

existem as interações que o realizador teve com Adrian no período, algumas por meio de

videoaplicativo e afins, mas principalmente utilizando-se de momentos em que conversou

com Adrian em um “passado recente”, que ajudam a estabelecer o panorama subjetivo da

relação que envolve pai e filho no momento das filmagens.

Pouco parece ter mudado na essência da cidade de St. Quay, mais de trinta anos

depois. McElwee é capaz de reconhecer diversos dos lugares por onde esteve e que foram

o palco de episódios que circundaram sua experiência naquele período. Um deles, o

momento em que o fotógrafo Maurice o abordou oferecendo um emprego, ou a

circunstância em que viu a jovem Maud pela primeira vez. Apesar de transformações em

fachadas e modernizações de diversos tipos, muitos dos lugares permanecem

reconhecíveis a partir da comparação com as fotos tiradas por McElwee na ocasião

original. O uso da fotografia still, preenchendo todo o quadro, é um recurso explorado

pelo cineasta em Photographic Memory e que praticamente inexiste em seus filmes

anteriores. Através de suas fotos, “pequenas amostras de vida”, segundo McElwee,

entramos em contato com o início do processo de aprendizado do diretor no trato com a

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imagem fotográfica. As fotos mostradas pelo cineasta revelam-se estudos de elementos

como luz, composição e perspectiva, transparecendo também alguns equívocos que

acompanham o processo, como falhas no manejo dos químicos para a revelação e

ampliação das fotos.

McElwee, como o próprio sugere, estava “definitivamente ainda aprendendo”, e

o contato com Maurice parece ter sido um divisor de águas em sua carreira artística.

Segundo o realizador nos narra, o diretor encontrou no fotógrafo uma possibilidade para

o florescimento de uma linguagem artística que dava sinais de germinar. A maneira

através da qual Maurice enxergava a fotografia como arte parece em consonância com o

caminho trilhado pelo cineasta após o retorno desta viagem e o ingresso nos estudos de

cinema do MIT, sob a tutela de Richard Leacock e Ed Pincus. Maurice trabalhava também

com fotografias para os cartões postais de St. Quay. Este, um ofício que pode ser encarado

como ordinário, era visto pelo fotógrafo como uma “janela para o mundo”: ao receber o

cartão postal, o destinatário era capaz de imaginar o remetente vivenciando a experiência

da paisagem retratada no cartão, naquela circunstância em específico. Maurice parece ter

despertado em McElwee a predisposição conceitual para o trabalho posterior com o

cinema direto. Desde a predileção pela fenomenologia de Merleau-Ponty até o fato de

acreditar que “existem segredos a serem descobertos na mais mundanas das fotografias”,

os ensinamentos do fotógrafo caberiam também, certamente, na linha de pensamento de

professores como Ed Pincus.

As reflexões do cineasta sugerem que ainda naquele período havia algo de sagrado

e ritualístico em relação ao ato de fotografar – e, certamente, filmar. Existia uma

fisicalidade intrínseca ao processo, apresentada desde a impressão da luz no material

fotossensível, o filme, mas também no que diz respeito a atividades que dependiam do

manuseio físico dos elementos para que tudo corresse bem: segurar as tiras de filme,

misturar os químicos, molhar o papel fotográfico. Um contraponto a certa sacralização

que circundava a produção de imagens no início da carreira de McElwee é sentido neste

novo momento. “Onde estão as imagens?”, questiona o cineasta à fotógrafa Cecile

LeBrun, que no momento do filme produzia as fotos dos cartões-postais de St. Quay, em

relação à relativa ausência de materialidade que gira em torno da produção fotográfica e

audiovisual na era digital. Se por muitas décadas a metodologia de produção

cinematográfica de McElwee pôde ser considerada como estando na ponta da vanguarda

tecnológica, nos dias de hoje esta atividade é significantemente mais banal. Guardadas

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algumas proporções, a pesada câmera de 16mm equilibrada em um ombro e o gravador

de fita magnética pendurado no corpo, bem como um complicado workflow de cabos,

alimentação de energia e moviolas parece ter dado lugar a pequenas câmeras digitais de

cinema e smartphones que, na essência, alcança resultados finais semelhantes.

Não se sentindo plenamente integrado a ela, McElwee busca refletir sobre o

panorama da era digital que tende a reger atividades não apenas restritas à produção

artística, mas às relações humanas como todo. Diversos dos elementos do mundo no qual

Adrian inicia sua vida adulta parecem menos “talhados em pedra”, definitivos, se em

comparação àquele em que McElwee viveu sua juventude. Tecnologicamente dizendo, a

soberania da câmera de 16mm dá lugar a gadgets que se sobrepõem rapidamente em curto

espaço de tempo e tornam obsoletos seus antecessores. Imagens em movimento, outrora

escassas, são produzidas a todo momento, transmitidas online e frequentemente perdidas,

deletadas ou relegadas a depositórios de memória digital esquecidos pelo tempo. Para

além disto, através de diversos tipos de terminais eletrônicos, Adrian tem a possibilidade

de alcançar qualquer pessoa de seu círculo social – desde amigos próximos, família ou

relacionamentos amorosos a pessoas com quem tem pouco contato. Em pouco tempo e à

palma da mão, Adrian coloca-se em um fluxo constante de comunicação que ocupa

integralmente seu cotidiano, paralelo a qualquer outra atividade que esteja

desempenhando no momento.

Neste sentido, portanto, McElwee ressalta que o filho dificilmente passaria pela

experiência de perder totalmente o contato com alguma pessoa – especialmente alguém

importante em sua vida. Sendo procurado pela ex-esposa do fotógrafo Maurice, Helene,

com quem o cineasta dividia habitação no período em que morou em St. Quay, o diretor

é informado da morte do fotógrafo, aparentemente durante um período de sua vida

marcado por abandono de si próprio, doença e solidão. A convivência com Helene faz

com que o realizador entre em contato com uma faceta de Maurice deixada de lado por

sua “memória fotográfica”. McElwee tendia a lembrar do fotógrafo como um mentor

indefectível. Além disso, de certa forma, Maurice fez um papel que o pai do diretor

realizou apenas em relação a seu irmão, no que diz respeito à transmissão de

conhecimento da prática da medicina. Helene aponta, porém, o fato do cineasta trabalhar

muito mais arduamente do que o próprio Maurice no laboratório de imagens e ressalta o

trabalho “secreto” do ex-esposo, que realizava ensaios eróticos com mulheres da região

e sugeria a possibilidade de Maurice estar vivendo uma “vida paralela” ao casamento. A

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demissão súbita de McElwee do posto de assistente, inclusive, partiu de uma acusação

injusta feita pelo fotógrafo, apontando que o diretor se apropriou de fotogramas destes

ensaios, e expulsando-o de sua casa.

Em um procedimento diferente da maioria dos filmes do cineasta, Photographic

Memory foi realizado em um período de tempo substancialmente mais curto: em torno de

apenas um ano, entre o início das filmagens e sua finalização. Há um ritmo narrativo

sensivelmente “devagar” que circunda seu desenvolvimento, sobretudo durante o tempo

em que McElwee permanece em St. Quay, no qual pouco parece acontecer. Talvez por

isto, também, Photographic Memory conta com menos sequencias em que a intensidade

vérité vem à tona, visto que este tipo raro de circunstância frequentemente requer mais

tempo dispendido no tete-a-tete do cineasta com o mundo e as pessoas ao redor de si –

McElwee aponta, por exemplo, que as tomadas realizadas em St. Quay foram feitas

durante um único mês (MACDONALD, 2014, p. 163). A intensidade vérité existe,

entretanto, em algumas das sequencias de intercâmbio entre McElwee e Adrian, em que

o cenário afetivo delicado entre pai e filho é capaz de emergir, porém ocorre sobretudo

na última das conversas realizadas com Helene. Diante da câmera do cineasta, a ex-esposa

de Maurice reconhece Maud em uma das fotos trazidas por ele, e revela que a fotografia

teria sido tirada por Maurice. A possibilidade de reencontrar Maud torna-se real quando

Helene revela ter conhecimento do paradeiro da ex-namorada de McElwee.

“Ainda não” (“pas encore”), responde o cineasta quando questionado acerca de

seu desejo de descobrir o endereço atual de Maud. Anteriormente julgando esta ser uma

parte praticamente perdida do filme, como McElwee aponta em entrevista para esta

pesquisa, o diretor é confrontado pelo fato de ter de decidir, enfim, se quer ou não ver a

ex-namorada novamente. Tendo Helene obtido o endereço de Maud, McElwee lança-se

em uma epifania sobre o significado de reencontrar um ex-relacionamento romântico

depois de décadas. A fotografia identificada por Helene traz concretude ao fato de que

Maud existe como pessoa no mundo real, não apenas como fragmento de memória do

diretor que não encontraria correspondente no tempo atual e na materialidade da vida.

McElwee reflete: “Por décadas, guardei minhas memórias romantizadas de meu tempo

com Maud. E quando não pude encontra-la, simplesmente assumi que deixaria estas

memórias existirem. Mas a foto, que Helene identificou, ela muda tudo. É a única verdade

inegável em tudo isto. Ela existe, e agora me força a ter a ciência de que Maud existe: no

presente, e não apenas no passado. Prova fotográfica.”. Esta reflexão motiva uma das

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sequencias emblemáticas do propósito narrativo de Photographic Memory, em que

McElwee coloca-se diante de sua própria câmera a fim de examinar como se pareceria

para alguém que não o vê por muito tempo. Enquadrando seu rosto em um close-up e

examinando-o com as mãos, McElwee narra em voz over:

Então, supondo que eu estivesse sentado diante de Maud, em um café

ou em algum outro lugar, como eu me pareceria para ela? Ela estaria

pensando: “Deus, ele ficou tão velho. Ele costumava ser bonitinho, um

pouco magro. E ele era um trabalhador tão ávido, tão energético. Mas

agora ele se parece velho e esgotado. Digo, ele está tão magro agora,

mais magro do que eu me lembrava. Magro demais.”. Sério, como eu

pude ficar tão velho?

Figura 51: “Como eu pude ficar tão velho?”. Ross McElwee em Photographic Memory

(2011)

Desde Time Indefinite, dezoito anos antes, McElwee não expunha visualmente o

efeito do tempo em seu corpo e seu rosto de maneira tão contundente. Em seus filmes, o

cineasta predominantemente apresenta-se diante das pessoas com quem interage em uma

distância próxima daquela que mantemos nas conversas que travamos uns com os outros,

em situações cotidianas e desvencilhadas da câmera. A proximidade, evidentemente,

coloca as pessoas diante de sua lente em uma exposição íntima – rostos que

frequentemente ocupam toda a tela em uma situação de close-up, suscetíveis, desta forma,

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à análise imediata de suas feições e aparências. Neste sentido, é possível lembrar que a

tematização da passagem do tempo é um dos principais aspectos que confere força à obra

do diretor: força que não passa incólume de carregar consigo traços de melancolia e

sofrimento. Em outras palavras, da mesma maneira que a maturidade pode ser encarada

como um ponto de evolução da sabedoria e do savoir-vivre, o envelhecer do corpo,

captado pela lente, traz em si a possibilidade de juízos estéticos de valor e, em última

análise, uma inevitável aproximação à noção de definhamento e morte. A autoanálise de

McElwee em relação a seu rosto, em Photographic Memory, apresenta-se como metáfora

da aproximação do final de um ciclo de sua carreira, não sem estar imbuído da

“sensibilidade para com as coisas efêmeras” – o sentimento de mono-no-aware, como

sugerido pelo autor Gary Hawkins –, ou uma melancolia diante da transitoriedade da vida.

Sentimento este, em especial, que é potencializado pelo fato de McElwee encontrar-se no

momento em cheque diante de alguns valores sobre o qual construiu sua obra fílmica, ao

menos em parte, ao longo das décadas. A separação matrimonial e a cisão de sua família

pressupõem, neste caso, uma reestruturação do viver e do filmar, elementos cuja ligação

íntima alicerçam sua autoria enquanto documentarista, com a qual o cineasta tem de lidar.

Ao realizar esta avaliação acerca da passagem do tempo nos traços de seu corpo,

McElwee pode abster-se fazer o mesmo em relação a Maud. Visitando-a em sua casa, a

câmera do cineasta narra imageticamente o que não precisa ser posto em palavras:

evidentemente, o tempo fez seu papel em relação a ela o tanto quanto fez em si próprio.

O encontro entre McElwee e Maud sugere que eles detêm uma visão diferente sobre o

relacionamento que mantiveram na década de 1970. Aparentemente, o envolvimento de

ambos, assim como seu término, teve um impacto maior na vida do cineasta do que na da

ex-pretendente, pois Maud parece lembra-lo a partir de uma perspectiva mais leve e

pueril, sem ressentimento ou incompletude. Ao ser registrada pela câmera mais de trinta

anos depois, a noção de “Maud” como fenômeno integrante do rol de experiências de

McElwee enquanto indivíduo adquire novos contornos. Para o cineasta, existiriam agora

duas Mauds: “A jovem na minha memória e a mais velha que, de alguma forma, é a

mesma”.

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Figura 52: “Maud” em dos diários de McElwee da década de 1970, em Photographic

Memory (2011)

A meditação do diretor gira em torno, portanto, do embate da transformação de

experiência em linguagem – ou, o caso, em diferentes linguagens. A transcriação de sua

relação com Maud na década de 1970 em linguagem de escrita criativa, guardada em seus

diários, perpetuou uma interpretação dos fenômenos distinta do que aconteceria se o

envolvimento de ambos tivesse sido registrado através, por exemplo, de tomadas

cinematográficas. No início de sua idade adulta, Adrian começa agora a navegar pelo

labirinto da exploração da linguagem e da criação artística, em uma idade similar à de seu

pai no início da carreira. Conversando via videoaplicativo com o filho, ainda em St. Quay,

McElwee detecta uma melancolia que lhe parece familiar. Em um procedimento inédito

em seus filmes, o cineasta utiliza-se em over do discurso direto, em segunda pessoa, para

deixar um recado ao filho. O diretor constata algo para Adrian que talvez tenha levado

décadas para aprender: não existe um caminho prescritível para o trabalho com a

linguagem. Por muito tempo o cineasta ponderou acerca da possibilidade que o pai teve

de ajudar seu irmão com a prática da medicina, não encontrando correspondente dentro

de casa para que alguém fizesse o mesmo em relação às suas aspirações profissionais.

Modelos de inspiração cruzaram seu caminho, como o fotógrafo Maurice ou a amiga

Charleen Swansea, porém, em última análise, o trabalho artístico parece fadado à

confrontação de si com si próprio. Na conversa, Adrian relata estar vivendo seus dias à

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deriva pois não consegue concretizar seus trabalhos. Sua melancolia diante do pai é um

prenúncio de que, pelo menos em parte, a manipulação da linguagem criativa requer certo

grau de isolamento e imbui-se de momentos de ansiedade, autodepreciação e dúvidas

sobre a própria capacidade: “Não é como treinar para tornar-se médico”, McElwee

aponta. Disposto a incentivar o filho em relação ao trabalho criativo e acompanhando-o

em seus passos, o cineasta assume que o desejo de estar próximo de Adrian e protege-lo

acabou por aumentar a pressão que o filho sente diante dos caminhos a trilhar. Se no início

de sua carreira autobiográfica, em Backyard, McElwee aponta a “resignação” do pai em

relação a seu futuro como algo dotado de valor negativo, a partir de Photographic

Memory pode-se inferir que talvez esta resignação fosse a maneira encontrada pelo pai

para que o cineasta desenvolvesse o próprio caminho, em um terreno no qual sua

interferência poderia ser mais problemática do que benéfica.

Se existe um aspecto catártico na posição de Adrian em relação à vida que tem

pela frente, algo semelhante pode ser dito em relação a McElwee, abrindo-se aqui breve

parênteses. A narrativa de Photographic Memory evoca questionamentos sobre o futuro

do trabalho de McElwee que parecem continuar permeando as reflexões do diretor, alguns

anos após o lançamento do filme. Um dos pontos das entrevistas realizadas com o diretor

para este trabalho residiu no questionamento sobre seu entendimento acerca das

possibilidades dos limites, do fechamento, de sua carreira autobiográfica. O diretor

vislumbraria alguma possibilidade de colocar um ponto final à empreitada iniciada há

décadas? Em sua resposta, McElwee comenta sobre como neste momento “o mundo

parece estar recuando” para ele e sua câmera. Em um aspecto imediato, o cineasta refere-

se ao fato de, após o divórcio, não ter mais um casamento e um ambiente familiar para

filmar – ou, ao menos, não mais da maneira que imaginava fazer ao longo de sua carreira.

Mais especialmente, entretanto, McElwee comenta a respeito de como a “paisagem

psicológica” do mundo e das pessoas que o habitam parece ter transformado-se com o

tempo. O realizador acertadamente sugere que o ato de sair de casa com uma câmera e

filmar não é mais o que costumava ser. De fato, as pessoas desenvolveram relações

diferentes com as câmeras e com o ato de filmar se em comparação com quando ele

iniciou sua carreira. Existe mais ciência, entre as pessoas, das implicações de um registro

audiovisual – principalmente se realizado por um estranho, em uma situação de filmagem

vérité. No mínimo, McElwee sugere, as pessoas vão querer saber qual é o destino das

imagens que estão sendo feitas – e, evidentemente, este é um direito que elas têm. Neste

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mesmo sentido, o cineasta comenta que dificilmente alguém com uma câmera conseguiria

passar da porta da frente de um estabelecimento sem ser barrado. Em outras palavras, é

possível sugerir que a noção mais clássica de Cinema-Vérité, de alguma forma, encontra

um outro tipo de “matéria-prima” ao seu redor – uma que talvez encontre mais resistência

do que em tempos de outrora.

Há outro aspecto levantado pelo cineasta, entretanto, que parece mais urgente. É

interessante a menção de McElwee de que a “paisagem” digital faz com que exista um

movimento de reavaliação em relação às suas escolhas estéticas, narrativas, e mesmo em

relação à própria empreitada autobiográfica. Atualmente todos estão de alguma forma

colocando online aspectos de suas próprias vidas em redes sociais como o Facebook e o

YouTube. A possibilidade de exposição de intimidade, McElwee aponta, não é mais

como era quando ele e outros cineastas da região de Cambridge estavam começando a

filmar. Pelo menos em parte, a possibilidade de explorar narrativamente aspectos de um

ambiente doméstico, familiar, era a novidade temática proposta pelo documentário

autobiográfico na década de 1970 – um senso de aventura que atualmente, talvez, também

não seja da mesma maneira que um dia foi. Em sua reflexão, o diretor ressalta estar

“reavaliando como continuar a fazer este tipo de filme”; “se ainda eles são relevantes, se

eu deveria estar fazendo-os”. McElwee sugere, como frisado, que Photographic Memory

de fato marca o final de uma “volta” de um ciclo uma vez iniciado em Backyard – porém

seria este final de ciclo também uma linha de chegada em sua obra?

Diante de uma questão ainda irrespondível fecham-se aqui os parênteses para a

conclusão de uma reflexão sobre Photographic Memory. Por entre meditações acerca da

memória, do processo de envelhecimento, e do trabalho criativo com a linguagem,

McElwee encontra-se novamente dentro de uma igreja, despedindo-se de St. Quay e

constatando como “os últimos trinta e oito anos simplesmente desapareceram”. O cineasta

volta aos Estados Unidos e à costa da Carolina do Norte, “palco” de algumas de suas

principais reflexões ao longo de sua carreira. O mar, os peixes e o ato de pescar são as

metáforas novamente buscadas por McElwee para a reflexão acerca do relacionamento

entre pais e filhos. Com o intuito de reaproximar-se de Adrian, o diretor propõe uma

pescaria em alto mar que tem resultados pouco expressivos. É na costa da Carolina do

Norte que Photographic Memory e o projeto autobiográfico de McElwee terminam, até o

presente momento. Citando uma “súbita mudança”, McElwee aponta que o filho decidira

ingressar na faculdade de cinema, e Adrian propõe que pai e filho façam um filme, ali

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mesmo. No último plano de Photographic Memory, vemos Adrian saindo para uma

corrida à beira-mar, distanciando-se de seu pai e de sua câmera, cuja silhueta pode ser

vista na areia, no campo inferior do quadro. Completando um ciclo geracional, McElwee

vê o filho adulto afastar-se de si e rumar ao horizonte. O cineasta aponta, neste momento,

ser apenas o cameraman, o “olho-grande”, da vida do filho. Para Ross McElwee isto

tende a significar mais do que apenas observá-lo à distância. Seu futuro e o das pessoas

próximas de si residem em algum lugar do “Tempo Indefinido”, aguardando para

tornarem-se presente e oferecerem-se para a lente de sua câmera.

***

Figura 53: “Até mais”, diz McElwee para Adrian, no plano final de Photographic Memory

(2011)

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4. Considerações Finais

O propósito motriz que rege o caminho de reflexão trilhado neste trabalho foi o

de contribuir para o entendimento acerca da noção de autobiografia aplicada ao cinema

documentário. Algumas das facetas deste entendimento projetam-se na própria estrutura

capitular escolhida para o desenvolvimento do estudo: um capítulo dedicado a levantar

questões – e elucidar algumas delas – em relação à ideia de “documentário

autobiográfico”; um segundo capítulo que visa contribuir para o firmamento de uma parte

da História deste mesmo fenômeno e, finalmente, um último capítulo que toma como

objeto de análise a obra de um dos principais cineastas relativos a este universo de

questionamento. É igualmente correto sugerir a existência de um “caminho inverso” sobre

a ordem dos elementos que instigou esta investigação: o contato com a obra de Ross

McElwee, semelhantemente, foi o impulsionador de um estudo aprofundado sobre a

filmografia com a qual ela se relaciona. O mergulho vertiginoso de McElwee na

empreitada autobiográfica, representado por um conjunto de filmes realizados ao longo

de três décadas, suscitou o adensamento de algumas questões que pareciam circundar este

tipo de produção.

Em outras palavras, o visionamento da obra de Ross McElwee em sua totalidade

trouxe contornos a reflexões acerca da ideia de documentário autobiográfico em sua

essência. Seus filmes evocam um despendimento significativo de tempo, energia e

dedicação da parte do cineasta em relação à possibilidade de “filmar-se sendo” e de

transpor a experiência individual em narrativas fílmicas documentárias. Esta mesma

preocupação regeu o trabalho de um número significativo de diretores a partir da década

de 1960, popularizando-se nas décadas seguintes e sendo reconhecida como uma das

facetas particulares do documentarismo contemporâneo. Entretanto, do que se trata,

especificamente, o fenômeno que entendemos aqui como “documentário autobiográfico”,

no que diz respeito às possibilidades e de narrativização fílmica de aspectos da vida

individual de um cineasta? De que maneira a autobiografia encontrou no meio fílmico –

e, especialmente, no documentário – terreno fértil para o florescimento de construções

narrativas que fomentaram o interesse de jovens e criativos cineastas? Se a autobiografia

como “escrita a respeito de si próprio” remonta a uma tradição milenar, por que esta

produção se adensou no cinema de não-ficção apenas nos últimos cinquenta anos? Em

que locais esta filmografia desenvolveu-se mais consistentemente? Quais as estilísticas e

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metodologias que integram dominantemente a noção de autobiografia aplicada ao cinema

documentário?

Diante da compreensão de que a própria obra de McElwee, historicamente

dizendo, foi responsável pelo fomento da noção de autobiografia fílmica – dada a

influência que seus filmes exerceram sobre diversos documentaristas-autobiógrafos –,

parecia importante que um estudo acerca de sua carreira não se restringisse apenas à

exploração de características específicas de seus filmes, mas à consideração do campo de

interesse que ela ajudou a construir. O trabalho de reflexão acerca das questões

supracitadas envolveu, da mesma maneira, a consideração da obra de McElwee em uma

perspectiva histórica. O ato de traçar o nascimento da carreira cinematográfica do diretor,

bem como o de investigar as raízes de seu ímpeto autobiográfico, desembocou no contato

com uma produção mais ampla e que dizia respeito à própria gênese da noção de cinema

documentário autobiográfico, em uma de suas facetas. Ao situar a obra de Ross McElwee

dentro da tradição cinematográfica de Cambridge e de suas universidades, abriu-se

também a possibilidade de contribuir com o preenchimento de uma lacuna referente à

investigação das origens e do alicerçamento deste tipo de cinema. É importante frisar que

o desenvolvimento cinematográfico que tomou forma no MIT Film Section a partir do

final da década de 1960 não foi, naturalmente, a única manifestação de uma produção

fílmica de natureza autobiográfica no período. Entretanto, o esforço em “destrinchar”

conceitualmente os propósitos artísticos de um cineasta como Ed Pincus, estabelecendo

uma relação entre cinema direto e autobiografia, contribuiu para o entendimento acerca

de uma das metodologias fílmicas que perpassou a noção de documentário autobiográfico

deste momento em diante. Metodologia esta que sublinha as potencialidades

fenomenológicas da tomada e que se revela não apenas no trabalho de Ross McElwee,

mas estabelece-se como um dos largos caminhos tomados por cineastas-autobiógrafos,

até a contemporaneidade, para suas construções narrativas.

Além disso, é possível sustentar que a escolha da obra de Ross McElwee como

objeto de análise e, de certa forma, como subsídio para a reflexão acerca da ideia de

documentário autobiográfico, em suas características essenciais, diz respeito ao

comprometimento particular do diretor que pode ser reconhecido em relação a este tipo

de cinema. Em outras palavras, trata-se de considerar que existe um risco sob o qual

McElwee colocou-se constantemente diante de seu engajamento com uma empreitada

autobiográfica que se torna potencialmente mais complexa com a reafirmação, filme após

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filme, desta escolha artística. Existe algo de comovente em relação a este tipo de risco,

detectado também em empreitadas autobiográficas como as de Ed Pincus ou Tom Joslin

que, talvez por isso, tenham sido utilizadas mais de uma vez como ponto de análise ao

longo deste trabalho. A carreira de Ross McElwee faz com que seja exista a possibilidade

de ceder, ao menos em parte, a um tipo de reflexão questionadora em relação à sua

empreitada, em um nível mais fundamental. A exposição e a tematização narrativa

recorrente de si próprio e das pessoas próximas de si, especialmente sua família, faz com

que sua obra se torne um alvo vulnerável a reivindicações de uma espécie de

responsabilidade ética da parte do diretor – reivindicações que são caras e frequentes no

campo de debate crítico do cinema documentário e que no caso da autobiografia

apresentam-se em outra faceta. Resgatando as ideias, já citadas, dos autores John e Judith

Katz (1988) em relação à percepção ética em documentários autobiográficos, o fato de

existir um forte laço afetivo entre o cineasta e aqueles que são seus “objetos” – no caso

de McElwee, por exemplo, a sua família – pode fazer com que nosso crivo como

espectadores, diante de tais narrativas, equilibre-se em uma linha tênue entre identificação

e receio.

Por um lado, a tematização sensível que realiza o diretor a respeito de diversos

tipos de conflito que atravessaram sua vida individual nestes últimos trinta anos –

conflitos muitas vezes ligados aos extratos de sua intimidade pessoal e de sua família –

faz com que os comparemos com as situações análogas que vivenciamos em nossas

próprias vidas. Nossas vidas privadas, como a de McElwee, são imbuídas das dores e

delícias relativas à convivência com as pessoas com quem mantemos laços – sanguíneos,

comunais, afetivos, familiares. Temos, como o diretor, nossas próprias relações com

instituições como família e trabalho. São considerações como essas que justificam uma

posição espectatorial, que frequentemente assumimos quando assistimos aos filmes, de

colocarmos nossa própria experiência individual em vibração com os cenários expostos

pelo diretor. Como exemplo, a densa relação entre McElwee e seu pai, tematizada em

diversos dos filmes, pode evocar a sensação de tons de familiaridade – ou diversidade –

aos espectadores (“minha relação com meu pai era parecida” ou “minha relação com meu

pai foi bastante diferente”). O mesmo pode ser dito sobre tantas outras situações que

McElwee expõe no curso de sua obra, como a maneira que reage em situações de luto; ou

o modo que desempenha sua paternidade – nas diversas interações com Adrian que

registra ao longo da vida de ambos.

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Desta forma, se tal conexão entre espectador e diretor, diante da exposição

narrativa de cenários que colocam a experiência individual de ambos em vibração, pode

ser considerada um trunfo da obra de Ross McElwee – uma qualidade rara de

identificação que traz particularidade à sua empreitada artística – é ela, também, a força

motriz de certa suspeição ética endereçada a seus filmes. Como aponta a argumentação

conduzida pelo texto de Katz e Katz, esta suspeição parte, justamente, do ato de realocar

certos elementos vinculados à esfera do privado a uma projeção pública em forma de

narrativa cinematográfica. Sim, nossa vida privada, como a de McElwee, é permeada por

conflitos e dissabores – e por que eles deveriam vir à tona, em última análise? O viés

crítico que se vincula a este tipo de entendimento questiona o quão benéfico poderiam ser

desenvolvimentos narrativos como os de McElwee – em relação à sua própria vida, mas,

principalmente, àqueles ao redor de si que o diretor toma como “personagens”. Por haver

um laço afetivo entre o diretor e seus “objetos” há uma carga de questionamento crítico

que não-raro vem à tona. Se existe um sistema de valores instaurado que compreende que

o papel dos indivíduos é o de proteger as pessoas por quem eles têm apreço – família,

amigos –, o fato de oferece-las “à avaliação pública” em um documentário (ou em uma

série de documentários, ano após ano) é, por vezes, encarado como um contrassenso a

esta expectativa de proteção.

Parece pouco producente, entretanto, a tentativa de avaliar de qualquer maneira

absoluta a obra de McElwee – em relação aos seus lados “positivos” ou “negativos” –

diante deste tipo de questionamento. A “paleta narrativa” com a qual o cineasta trabalha

é composta por circunstâncias, afetos e sentimentos nuançados o bastante para que a

reflexão acerca de seus propósitos artísticos e da razão de existência dos filmes também

seja matizada por uma ampla gama de ponderações. Parece importante enfatizar que a

matéria-prima narrativa com a qual trabalha McElwee diz respeito, antes mesmo de

qualquer contato que nós tenhamos com ela nos filmes, a conflitos relativos à própria vida

do diretor – e, sobretudo, a ela. O ponto que se sustenta é o de que o diretor é ciente,

talvez mais do que qualquer outra pessoa, das implicações de seus filmes e do tipo de

crítica ética ao qual eles tornam-se vulneráveis. É neste sentido que o risco da partilha

daquilo que é íntimo, sensível – seja diante da tragédia pessoal, da adversidade ou da

alegria –, continua podendo ser identificado como elemento que traz particularidade à

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existência das empreitadas autobiográficas mais contundentes, grupo ao qual a obra de

McElwee deve pertencer.

Diante desta perspectiva, portanto, podemos retomar a reflexão conduzida no final

da análise de Photographic Memory neste trabalho e que antevê uma das preocupações

que permeia a entrevista realizada com Ross McElwee, transcrita a seguir. Como sugerem

as respostas de McElwee, com efeito, a exposição de aspectos relativos à “própria vida”

tomou contrastes diferenciados com a consolidação de espaços sociais digitais,

especialmente na última década. Além disso, cabe notar, há uma relação de proximidade

entre a imagem filmada e este tipo de exposição: os vídeos têm um papel fundamental

neste fenômeno, realizados sobretudo em aparelhos portáteis como smartphones, e

compartilhados em tempo real. Frente a isso, parece razoável ceder à meditação de

McElwee quando o cineasta aponta que se trata de um momento de reavaliação em

relação à ideia de autobiografia fílmica. Pelo menos de certa forma, como exposto, a ideia

de “filmar-se sendo” transformou-se – desde sua origem e estabelecimento há por volta

de meio século – de um fenômeno raro, incomum e estimulante, a uma atividade

corriqueira e desempenhada certamente além dos laboratórios acadêmicos de

investigação cinematográfica, como foi o caso do MIT Film Section.

Tomando para nós as indagações do cineasta e tentando prover alguns

encaminhamentos para elas, é possível sustentar que embora a própria possibilidade de

registrar e compartilhar cinematograficamente aspectos relativos à individualidade tenha

sido um elemento propulsor do início da atividade de McElwee e outros jovens diretores,

a questão nunca se resumiu apenas a isto. A experiência cinematográfica que Ed Pincus

tentava pôr à prova em Diaries (1971 – 1976) não se tratava apenas da possibilidade de

tornar pública determinada circunstância que permeava a vida do diretor e sua família,

mas fazê-lo de uma maneira bastante específica. Nossa compreensão de “Diaries” deve

perpassar o entendimento de que se trata de uma experiência que, entre outros fatores,

apenas pôde vir à existência a partir de um debruçamento de dez anos da vida de seu

criador em relação à obra. O ato autobiográfico que está em jogo, aqui, depende da

disposição de uma espécie de “capital artístico” que, embora de difícil mensuração,

parece não se manifestar nas expressões rotineiras de exposição do eu a que se refere

McElwee. Trata-se, em outras palavras, de sugerir que a particularidade da autobiografia

como linguagem autônoma depende do desenvolvimento crítico de uma de suas partes, o

“graphos”, que, no caso da autobiografia fílmica, aponta para a multiplicidade de

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maneiras através das quais podem-se construir as narrativas cinematográficas – aquilo

que, em última análise, chamamos de “filme”.

É a partir deste ponto de vista que refletir acerca da existência da noção de

autobiografia fílmica torna-se instigante diante de seus cineastas mais contundentes e de

suas obras. Como no caso de Chantal Akerman, Ed Pincus, David Perlov, Agnès Varda,

Marlon Riggs, Jonas Mekas, Tom Joslin, a relação entre “eu”, “mundo” e “filme” é

inovada e tem seus limites testados apenas diante do esforço e engajamento dos diretores

em cada nova criação. O produto deste engajamento concretiza-se na forma de narrativas

fílmicas que são perenes. O lugar correto de reflexão e de identificação com estas obras

é análogo àquele que faz com que os elementos de uma narrativa autobiográfica como

Walden – elementos de estilo, de construção narrativa ou da relação entre o autor e o meio

em que vivia, em determinada circunstância particular – sejam ainda revisitados e

analisados, cento e sessenta anos após sua escrita e publicação.

Algo semelhante pode ser entendido acerca do engajamento entre espectador e

filme que deve acontecer em casos como Sherman’s March, Time Indefinite e Bright

Leaves. Talvez, inclusive, seja esta aposta na realização de narrativas perenes – a partir

da transposição criativa da experiência individual em relação à linguagem – que garante

a possibilidade da existência autônoma da autobiografia fílmica, mesmo diante das

transformações das “paisagens” sociais, psicológicas e tecnológicas, como aponta

McElwee, que possam acontecer. Sugerindo e enfatizando o elemento de perenidade que

atravessa a obra de Ross McElwee, esperamos que este trabalho auxilie o contato de

outras pessoas com seus filmes. Da mesma maneira, almeja-se que a pesquisa possa servir

como porta de entrada para que sua obra seja analisada, ainda, sob perspectivas que não

tenham sido contempladas nesta empreitada.

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6. Anexo: Entrevista com Ross McElwee

As entrevistas com Ross McElwee foram realizadas em algumas sessões, durante a

pesquisa de campo no departamento Visual and Environmental Studies (VES) da

universidade Harvard, ao longo do fall term de 2015-2016.

Optei por deixar a compilação praticamente em sua integridade, preservando alguns

momentos de descontração e de equívocos de comunicação que trazem um pouco mais

de palpabilidade à experiência das entrevistas.

***

GT - Você poderia explicar um pouco sobre seu envolvimento com o departamento VES?

Há quanto tempo e como exatamente começou a lecionar aqui?

RM - Acho que estou por aqui – odeio admitir – há mais de trinta anos. Mas não

lecionando ininterruptamente, houve momentos em que tirei um tempo para trabalhar em

meus filmes e voltei. Por um período, fui afiliado ao Film Study Center como uma

maneira de permanecer aqui, manter uma sala e ter acesso ao equipamento, mas não

exatamente lecionando. Então, em um período de trinta anos, lecionei por volta de vinte

anos.

Fui convidado porque Ed Pincus estava dando um curso e eu era seu assistente, por um

ano – ou dois anos, não me lembro muito bem. Mas então Ed saiu daqui para fazer outras

coisas, e fui perguntado se gostaria de ficar e continuar lecionando – e disse sim.

GT - E como “Professor de Prática Cinematográfica” você ajuda os estudantes a fazer

seus próprios filmes?

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RM - Sim, eu apenas leciono cursos de realização. Não leciono história ou teoria de

cinema – apesar de que todas estas coisas vêm à tona nas aulas, é claro. Não sou um

acadêmico, sou um realizador. E acredito que a posição “Professor de Prática” é feita para

trazer (à academia) pessoas que tiveram experiência no “mundo externo” para trabalhar

com os estudantes. E também se espera que estes professores continuem a realizar seus

próprios trabalhos. Todos os departamentos em Harvard têm Professores de Prática –

medicina, engenharia, quase todos têm esta posição. É uma maneira de conectar-se ao

chamado “Mundo real” – mas então às vezes me pergunto o quanto existe de uma conexão

real entre os filmes que eu faço e a assim-chamada “Indústria do Cinema”. Mas tem sido

uma ótima situação para se estar. Eu sou inspirado e apoiado por meus colegas aqui –

Robb Moss, Alfred Guzzetti, Lucien Castaing-Taylor, Peter Galison, outras pessoas que

lecionam aqui, os professores visitantes que vêm e vão... Tem sido um lugar vibrante para

dar aulas, e me sinto incrivelmente sortudo de ter tido este trabalho. Eu leciono meio-

período, o que significa que eu dou um curso por semestre – então, dois cursos por ano.

GT - Sabemos da importância do cinema que foi produzido aqui em Cambridge, no que

diz respeito ao desenvolvimento do documentário autobiográfico estadunidense,

especialmente nas universidades – começando no MIT Film Section, ainda no final dos

anos 1960. E até hoje, vários cineastas são relacionados a este fenômeno, como você,

Robb Moss e Alfred Guzzetti, professores aqui no VES, mas também Ed Pincus, Jeff

Kreines, Joel DeMott, Marco Williams, Nina Davenport, Steve Ascher...

RM - Nina Davenport foi depois. Ela foi minha aluna. Se você pensar em Richard

Leacock e Ed Pincus, esta é a primeira geração. Alfred (Guzzetti) também é de certa

forma da primeira geração. Robb (Moss) e eu estamos meio que na segunda onda. Nossos

alunos, como Nina, são terceira onda e agora há até uma quarta onda.

GT - É claro que cada cineasta (ou até mesmo cada produção) tem seu próprio estilo e

sua própria visão artística, mas para mim os cineastas de Cambridge também

compartilham algumas preocupações no que diz respeito mais genericamente às

possibilidades em torno da narratividade autobiográfica no documentário. Autores como

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Scott MacDonald apontam pontos de conexão entre os documentários autobiográficos

que foram feitos por esses cineastas que foram educados, ou que lecionam (ou ambos),

no MIT ou em Harvard. Você pode falar um pouco sobre isso?

RM - Bem, Scott MacDonald falou sobre isso por trezentas ou quatrocentas páginas

(risos). E ele fez um trabalho tão bom de analisar e contextualizar o tipo de cinema que

vem sido feito em Cambridge há décadas... não tenho certeza se eu teria algo novo para

acrescentar ao que ele disse. Tem sido muito entusiasmante estar no centro do vórtice

disto tudo. Quero dizer, é um pequeno vórtice quando se você compara com filmes de

ficção, costa oeste, filmes de Hollywood. É mais como um “vento”, não um tornado ou

um vórtice enorme. Mas tem sido entusiasmante vê-lo abrir, bem como descobrir todas

as diferentes direções para as quais ele vai. E eu acho que esta produção tem tido uma

influência no cinema documentário, tanto no país quanto no mundo. Mas, Scott acabou

de falar bastante sobre isso, ele escreveu, analizou e competentemente construiu uma

visão geral do que você está me perguntando, que eu não acho que eu teria nada de novo

para adicionar.

GT - Esta pergunta é mais sobre a sua carreira como um todo. Uma coisa que torna seu

trabalho como cineasta bastante particular, pelo menos para mim, é a maneira pela qual

você foi capaz de produzir não apenas narrativas autobiográficas que se concluem em si

mesmas – que são independentes, narrativas autobiográficas que têm um começo, um

desenvolvimento e um final. Mas também como elas se complementam nestas mais de

três décadas que você está fazendo filmes, tornando-se um processo autobiográfico

contínuo. A imagem que vem em minha cabeça é como uma bola de neve que vai ficando

maior e mais complexa ...

RM - Até ela te esmagar.

GT - (Risos) E eu queria saber o quão consciente este processo era para você,

especialmente quando estava começando sua carreira. Se você pensava que iria se

comprometer, se dedicar, a esse tipo de filmagem por anos e anos vindouros. Ou, quando

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ficou claro para você que você iria seguir esse caminho autobiográfico – diante do fato

de que a partir de Backyard você nunca fez um filme que não estivesse relacionado à sua

vida pessoal.

Muitas vezes as pessoas olham para os seus filmes na forma como eles envolvem o seu

"passado cinematográfico". Você usa seqüências de seus filmes anteriores para repensar

e reavaliar as coisas que você viveu e registrou em seus filmes, mas agora com uma nova

consciência, de "tempo presente" – como o tempo de fato modificou seus pensamentos

sobre os eventos passados de sua vida. Mas para mim há também um “jogo” que você

realiza com o "futuro" em seus filmes. Por exemplo, em Tempo Indefinido quando você

faz o monólogo sobre seu pai, sua família, sobre a morte, você diz: "Primeiro você é

afetado por suas vidas e, em seguida, você é afetado por suas mortes. E então você cresce

e faz o mesmo com seus próprios filhos”. E, claro, a relação entre você e Adrian vai ser

um mote forte em sua obra, especialmente em Bright Leaves e Photographic Memory. A

maneira através da qual ela se torna mais complexa, como costuam acontecer nas relações

entre pai e filho. Voltando à pergunta: de alguma forma você pensava, já naquela época,

que dali a vinte anos você iria realizar um filme quando seu filho já fosse um homem

crescido? É por isso que eu uso palavras como "comprometer" ou "devotar”, significando

que ao longo de sua carreira você parece ter tido alguma relação com a idéia de que no

futuro aquilo iria fazer sentido e trazer força ao seu trabalho como um artista-

autobiógrafo.

RM - Bem, eu detesto decepcioná-lo (risos), mas eu não sabia, no início, que eu

continuaria a fazer esse tipo de filme. Acho que depois de Time Indefinite percebi que

deveria seguir em frente nessa direção, porque as pessoas – pelo menos um pequeno

número de pessoas–- parecem realmente entender os filmes, apoiá-los e estar interessados

em ver o próximo que aparece. Mas quando eu estava apenas começando, eu não tinha

idéia. Eu fiz Sherman’s March pensando que ele poderia talvez ser exibido em algumas

escolas de cinema, talvez em alguns museus do Sul, e ele se tornou muito mais do que

isso, ele foi amplamente distribuído – não apenas nos EUA, mas também na Europa.

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E eu acho que isso me encorajou a continuar, mas antes disso eu não achava que

continuaria fazendo esse tipo de filme. Na verdade, eu continuei mexendo com tipos mais

convencionais de documentário, fazendo freelance para ajudar a me sustentar quando eu

não estava lecionando. Eu pensei que, bem, eu gostava de trabalhar com outras pessoas,

eu gostava de fazer filmes sobre as complexidades do mundo, questões sociais, eventos

políticos. E quase me sinto culpado por fazer um filme que tem eu mesmo no seu centro.

Mas acho que a maneira pela qual eu dissuado a minha culpa é tentando, tanto quanto

possível, fazer os filmes abrirem-se também para o mundo e para questões que são

importantes para mim, como o personagem principal. Então, de certa forma, tenho a

vantagem de fazer ambos os tipos de filme ao mesmo tempo. Eu não sabia quando eu

estava começando que este seria o meu métier, mas agora eu acho que é tarde demais, eu

não poderia mudar mesmo que eu quisesse. Mas eu não quero, eu acho que quero

continuar fazendo esse tipo de filmes. Isto se torna mais e mais difícil, por diversas razões.

GT - Algumas vezes você se manifestou sobre querer fazer outros tipos de filmes que

fossem diferentes, de alguma maneira, da metodologia à qual você se tornou relacionado.

Me vem à mente Six O'Clock News, quando você fica animado, em um primeiro

momento, com a ideia de colaborar em um roteiro de um filme de Hollywood; ou em

relação à versão alternativa de Bright Leaves, que não foi adiante, na qual você propõe

um futuro imaginado/ficcionalizado, vislumbrando Adrian em um futuro próximo

descobrindo suas filmagens e te conhecendo a partir do filme que você deixou para trás.

Mas, enfim, estas possibilidades narrativas diferentes nunca funcionaram como

planejado.

RM - Bem, como alguém do campo das artes eu sempre penso "Não se repita, faça algo

diferente". Não apenas em termos de conteúdo - o conteúdo vai ser diferente. Ele tem de

ser, se é autobiografia e você está se movendo através do tempo. Sua vida muda, as coisas

ao seu redor mudam. Isso é um dado. Mas acho que em relação a fazê-lo sempre no

mesmo estilo, eu às vezes acho que encontrei uma rotina, estilisticamente, e eu estou indo

de volta para ela de novo e de novo. E uma parte de mim acha que talvez esta não seja a

melhor coisa a se fazer, que talvez eu devesse tentar pensar em uma abordagem diferente

para explorar minha própria vida. Mas estou trabalhando em algo agora e estou pensando

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em diferentes maneiras de explorar e usar o material bruto que tenho, estilisticamente.

Mas acho que fundamentalmente a voz é muito importante, e, por mal ou bem, minha

narração em voz over tem de ser um componente em qualquer trabalho que eu faça. E isto

isto basicamente conduz a forma do filme. Eu brinco com ideias como se determinada

coisa deve ser serializada; se deve tornar-se uma espécie de série documental de TV a

cabo; ou se deve ser disponibilizado na Internet – mas estas são apenas as formas de

acesso. Acho que essencialmente a construção do filme (filmmaking) em si é feita mais

ou menos da mesma forma. E penso em alguém como Chris Marker, que experimentou

com todas essas maneiras radicais de fazer filmes, de fato até o fim de sua vida. Depois

de realizar Sans Soleil ele não fez outro Sans Soleil, ele fez algo bem diferente. E ele

continuou tentando fazer tipos diferentes de filmes. Este tipo de energia e inventividade

é algo que eu realmente admiro, mas eu simplesmente decidi que não acho que sou tão

inventivo assim. Encontrei algo em que gosto de trabalhar, uma fórmula que me agrada e

provavelmente continuarei a fazer isto até o dia em que morrer.

GT - Ainda em relação a estas questões, quando terminei de assistir Photographic

Memory - isto foi em 2012 - fiquei pensando se poderia ter sido o último filme desta

grande carreira autobiográfica, porque de alguma forma ele completa um ciclo em relação

às questões que você levantou em Backyard. Se naquele momento você iniciava sua

carreira como cineasta e também passava por uma espécie de “suspeição” de seu pai em

relação a seus objetivos profissionais, como ocorre com diversos jovens artistas, em

Photographic Memory muitos destes mesmos questionamentos acontecem em relação a

Adrian, que está começando sua carreira como produtor de mídia. Mas agora fiquei

sabendo que você está trabalhando em um novo filme que lida com o remake de

Sherman’s March. Fico curioso em saber se você pensa sobre como você trará este

processo a um fim, de alguma forma. Acho que a maneira com que você conduz este

processo autobiográfico, dividindo-o em por volta de dez filmes no curso de mais de trinta

e cinco anos, é realmente algo sem precedentes na história do cinema documentário. E de

fato traz diversas questões complexas em relação à permanência, ao envelhecimento e à

preservação no que concerne a relação que pode ser travada entre documentário e

autobiografia. Autobiógrafos frequentemente têm de decidir onde colocar o “ponto final”

em suas obras. Se você fosse parar de fazer filmes e fosse realizar outras atividades, como

criar gado ou lavrar batatas...

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RM - Cultivar flores.

GT - …cultivar flores. Você acha que ficaria feliz com o trabalho que realizou até agora?

RM - Bem, acho que não me sentiria deprimido ou miserável se eu de repente parasse

de fazer estes filmes. E de fato acho que existe um ciclo de filmes que se sustentam por

conta própria. Você tem razão que Photographic Memory marca uma espécie de uma

geração desta revolução. Então, se acabasse aí, se eu tivesse um infarto e nunca mais

fizesse outro filme... eu ficaria meio chateado (risos), mas acho que o trabalho se

sustentaria em si próprio. Como você disse, de fato é incomum, porque este processo está

acontecendo já há tanto tempo. Ele é um empreendimento bastante ambicioso e acho que

completou um de seus ciclos. Então... há outro meio-ciclo ou mesmo outro ciclo inteiro?

Talvez. Eu estou me comportando como se existisse uma razão para continuar a fazer

filmes. Mas acho que não é tão intenso quanto costumava ser, e também sei que, por

alguma razão, não estou disposto a me sentir deprimido ou desesperado se por algum

motivo não puder fazer outro filme. Acho que poderia cultivar flores ou fazer outra coisa,

ficaria perfeitamente feliz.

E entendi por quê Ed Pincus repentinamente sentiu que ele apenas queria ser um

fazendeiro por um tempo. Ele me disse que não tinha certeza que tinha algo mais a

aprender sendo um documentarista ou, ao menos, um documentarista-autobiógrafo. E ele

tinha confiança o bastante em si próprio, ao decidir que queria outro tipo de desafio. Digo,

ele realizou um grande salto ao passar de um filósofo a um fotógrafo, ele estava

determinado em obter o doutorado em filosofia, acredito, estando enveredado pelo

caminho acadêmico. Ele se apaixonou por fotografia e viu-se envolto pelo movimento

pelos Direitos Civis e realizou Black Natchez, que é um memorável documento do início

da luta afro-americana por algum tipo de equidade neste país – em 1964, há muito tempo.

Ele foi um dos primeiros cineastas a descer ao Mississippi, Alabama, e fazer um filme

sobre tudo isto. Então ele deixou de lado este tipo de cinema, tornou-se um

documentarista-autobiógrafo e fez isto por alguns anos, culminando em Diaries. Parou

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de fazer isto, começou a cultivar flores – acho que houve vários fatores complicantes,

como o episódio de Dennis Sweeney, que foi algo que o fez deixar a área urbana e

procurar um lugar mais seguro para estar com sua família e sustentar-se de alguma forma.

Mas acho que não foi a única razão.

De qualquer maneira, olho para uma carreira como esta e fico impressionado com ela. E

sinto que, de um modo, tenho muita sorte de ter meios para continuar – este escritório,

este equipamento – para permanecer trabalhando se eu quiser: e eu quero, por enquanto.

Mas também é parte de minha natureza saber que se eu fosse forçado a parar e ter de fazer

outra coisa, como apenas lecionar, também ficaria bastante satisfeito com minha vida.

Talvez isto seja um déficit, ou uma fraqueza de minha parte. Talvez eu não seja

determinado o suficiente. Mas acho que isto é inerente a esta abordagem de fazer cinema,

no qual você realmente não está no controle. Você está sujeito aos caprichos daquilo que

acontece na frente de sua câmera – é o ethos do Cinema-Vérité. E mesmo que meus filmes

não sejam puramente Cinema-Vérité, este espírito os imbui. Mas junto com isto existiu

um precoce aprendizado de abdicar-se de qualquer desejo de estar no controle de seu

ambiente estético enquanto estou filmando. E acho que esta tem sido uma lição valiosa

para mim, porque em ultima análise você não pode controlar tudo. A não ser que você

siga o caminho da ficção até o final.

GT - Você deve uma condição de saúde complicada em 2010. Me parece que você não

teve o desejo de mostrar isto em algum filme seu. Este também foi um período no qual

você passou por uma desilusão em sua vida amorosa.

RM - Bem, eu filmei um pouco naquele período, mas senti que a não ser que pudesse

conectar este material com algo maior, isto não seria tão interessante, honestamente. Foi

traumático ter um tumor cerebral e ter de passar por uma cirurgia delicada para o remover,

mas, por outro lado, dezenas de milhares de pessoas passam por esta cirurgia todos os

anos. E a maioria delas sai da cirurgia bem - não todas, mas a maioria. Então este fato,

em si, não era um assunto. Eu filmei um pouco - obviamente estava muito debilitado para

filmar qualquer coisa, você sabe. Então esta parte da equação tomou conta de si própria,

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nem foi uma opção. Mas eu filmei um pouco da minha recuperação, a reabilitação pela

qual tive que passar. Em determinado momento, Adrian entrou clandestinamente com

uma pequena câmera digital em meu quarto de hospital – porque você não pode filmar

dentro do hospital. E eu tenho algumas tomadas deste momento, eu poderia mostra-las

para você em algum ponto, talvez não hoje. Mas são apenas pequenos fragmentos. Mas o

que era incrível naquela pequena câmera... bem, em primeiro lugar, eu estava feliz de ter

sobrevivido – mas, em segundo lugar, eu mal conseguia andar, eu tinha de reaprender

todas as coisas que você aprende quando é uma criança – como abotoar uma camisa,

como escovar os dentes, como amarrar os sapatos – tudo isto eu tive de reaprender. E

tudo voltou, sabe, bem rapidamente. Mas mesmo assim esta experiência me fez lembrar

– não que eu lembre, de fato – me fez viver a experiência de ser uma criança de quatro

anos e, ao mesmo tempo, de ser um senhor de oitenta e quatro anos, porque eu estava

fisicamente inválido. Quatro anos de idade em termos de aprender como amarrar os

sapatos e oitenta e quatro em termos de ter de usar um andador e me locomover a alguns

passos por vez, sentindo-me exausto o tempo todo, tendo de dormir. Então tudo isto foi

muito interessante; nós falávamos a respeito de ciclos e de ir da juventude à senilidade,

então acho que poderia haver algo no meio de tudo isto que viraria um capítulo de um

filme, não um filme em si próprio. Então eu filmei apenas o suficiente para que tivesse

material daquilo e que pudesse se tornar útil em algum filme futuro.

Mas, novamente, eu penso que o que mudou em relação às possibilidades de minhas

filmagens têm a ver com a maneira através da qual o mundo está recuando para mim e

minha câmera. Existem coisas que estão além do meu alcance, que não estavam quando

eu comecei minha carreira. Algumas delas em relação à minha família, algumas delas são

previsíveis e outras são inesperadas. Obviamente, à medida que as crianças crescem elas

tornam-se repentinamente muito autoconscientes, elas não querem mais ser filmadas

tanto assim – isto era totalmente esperado e previsível. Quase todo cineasta que conhecço

e que filmou sua própria família passou por este tipo de experiência. Então eu sabia que

isto ia acontecer. Eu não sabia que estaria divorciado. E de repente isto é algo que eu não

posso filmar – não tenho mais um casamento para filmar. Mas no nível do controle social,

o que também aconteceu é que a internet mudou uma paisagem inteira do cinema de não-

ficção. De repente todos estão colocando algum aspecto de suas vidas no YouTube ou no

Facebook e este tipo de intimidade que era de alguma forma único, quando eu e outros

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cineastas – muitos deles aqui mesmo em Cambridge – começamos a fazer estes filmes,

trinta ou trinta e cinco anos atrás, não é mais tão único assim. Então isto também é algo

que me fez de alguma forma repensar aonde meus filmes estão indo, e quais suas formas

e estilos têm de ser. Eu poderia dizer mais, mas isto já é bastante... então o ponto é que,

tanto por razões pessoais, que tem a ver com minha vida, minha própria família, e também

por estas preocupações globais – mudanças de mídia que ocorreram nos últimos vinte

anos – isto significa que estou reavaliando como continuar a fazer este tipo de filme. Se

ainda eles são relevantes, se eu deveria estar os fazendo.

GT - Eu estou pensando sobre o que você disse, sobre como a Internet (Youtube /

Facebook) fez você de alguma forma reavaliar ou repensar como o documentário

autobiográfico poderia se encaixar neste novo ambiente. Pois parece que não existe tanto

sigilo (secrecy), se em comparação a quando você começou a filmar, em relação à

narrativização em filme e vídeo de relacionamentos familiares e daquilo que acontece

dentro do ambiente doméstico. Da mesma forma, a Reality Television também tornou esta

relação um pouco mais confusa para o público em geral. Mas, ainda assim, continua a

existir o problema da construção de uma narrativa autobiográfica – as muitas maneiras

através das quais você pode construir um filme em torno de uma questão pessoal e que

você deseja compartilhar com o público.

Além disso, esta facilidade com que você pode filmar, com todos os tipos de pequenos

dispositivos e telefones celulares, e compartilhar o material de imediato; isto tem feito

pessoas – pessoas que não estão de forma alguma envolvidos com a produção

cinematográfica ou de mídia – um pouco mais conscientes do poder da câmera. E isso

parece ser um problema especialmente para os cineastas que trabalham com a ética do

Cinema Vérité, porque ao menos parte desta prática exige uma captura do mundo em um

estado desprevenido (unawares). O mundo em seu desdobramento natural, retratando

pessoas em situações comuns ou situações espontâneas, quando nem todas as suas defesas

psicológicas estão levantadas.

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Agora, todos os seus filmes (alguns deles mais e alguns deles menos) têm a preocupação

de se abrir para o mundo de uma forma que herda muitos dos pensamentos em torno do

Cinema-Vérité. Eu queria saber se para você, nestes últimos anos de realização, existe

uma diferença na forma como as pessoas reagem à sua câmera quando você está filmando

se em relação há, digamos, quinze anos? Ou mesmo antes? Você se lembra de ter tido

problemas dessa ordem nestes últimos anos? E qual a importância de usar este tipo de

metodologia Vérité em uma narrativa autobiográfica?

RM - (brinca) Sabe, o que eu gosto de suas perguntas é que elas são tão volumosas, e

eloquentes, e bem-articuladas.

GT - (risos) Eu treinei bastante em casa.

RM - Coloca muita pressão em mim para que seja tão coerente como você. E também a

maneira que você sumarizou o que eu disse – espero que tenha dito assim tão bem.

GT - Ah, até melhor.

RM - Eu duvido disso. Enfim, há duas palavras-chave que você usou em sua

"dissertação", que talvez eu pudesse corrigir levemente. Uma é, você disse: "Para capturar

o mundo em um estado desprevenido". E eu realmente acho que as pessoas estão

obviamente conscientes de que eu estou filmando, porque lá estou, você sabe, com uma

câmera no meu ombro. Portanto, não é "desprevenido" – isto seria vigilância. E parte da

capacidade de fazer isso é baseada em ter investido tempo suficiente com as pessoas para

que elas relaxem com sua presença lá. Elas confiam em você – mesmo que não devessem

inteiramente – para que simplesmente continue fazendo o que está fazendo, enquanto elas

continuam o que estão fazendo. E isto é realmente um eixo crítico do Cinema-Vérité

clássico.

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E a outra palavra que você usou e que achei que não era muito boa – embora eu tenha

certeza de que as pessoas a utilizam também neste sentido – é que não era tanto que as

coisas fossem "sigilosas" (secretive) antes, e que isto foi agora violado. Eu acho que

"privacidade" é a palavra-chave aqui, não "sigilo". Existem alguns filmes que envolvem

segredos de família. Eu acho que Intimate Stranger (1991) de Alan Berliner é

definitivamente um filme que cultivou esta área, histórias de família até então secretas. E

eu acho que outro exemplo ainda mais conhecido é Na captura dos Friedmans (Capturing

the Friedmans, Andrew Jarecki, 2003). Aquele era obviamente um segredo de família –

e mantido em segredo por uma boa razão, porque, você sabe, no centro dele havia uma

acusação de abuso sexual infantil. Então, isto é realmente ir atrás de segredos na vida

pessoal. E eu diria mais que a "privacidade" não é exatamente mais o que costumava ser.

Tendo isto posto, você me perguntou se o Cinema-Vérité seria essencial para a feitura de

filmes autobiográficos... eu não acho que seja para todos. Mas para mim sempre foi

importante ter trechos dos meus filmes filmados em um estilo Vérité, porque o que sempre

amei no Cinema-Vérité, apesar de todos os seus problemas – seus problemas éticos,

problemas estilísticos, a miríade de coisas que você pode dizer que não são

necessariamente certas desta prática – o que eu amo sobre ele é uma espécie de fascínio

com a revelação momento-após-momento da vida real. Desta forma, para mim, os trechos

de Cinema-Vérité, aumentando minhas próprias reflexões pessoais sobre o mundo em que

estou filmando, são extremamente importantes.

Procuro esse equilíbrio. Tenho certeza de que há cineastas que repudiam o Cinema-Vérité.

Quero dizer, ele sempre pode ser questionado de um ponto de vista ético – você realmente

tem o direito de filmar pessoas comuns, examinar suas vidas e depois tornar pública esta

investigação, mesmo que você tenha consentimento por escrito? É uma boa pergunta.

Mas para mim é importante fazê-lo – gentilmente, se possível – e ter essa maneira de

olhar para o mundo em paralelo com o olhar para a minha própria vida, para o meu próprio

mundo. De alguma forma esse equilíbrio é fundamental para mim. E eu acho, como você

sugeriu, que sair no mundo e filmar no estilo Cinema-Vérité não é mais o que costumava

ser.

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Ontem em minha aula eu passei Belfast, Maine (1999) de Fred Wiseman. É um filme de

quatro horas e as tomadas são muito, muito longas – totalmente fora de padrão para o que

um jovem de vinte anos está acostumado. Por isso, certifiquei-me de que tivéssemos uma

projeção confortável – fui ao salão de luxo do Carpenter Center e fizemos a projeção lá,

de uma ótima cópia em 16mm. Então eu dei ao filme sua melhor chance. Mas eu acho

que eles (os alunos) estavam absortos. Devido ao fato do filme ter quatro horas de

duração, que é todo o comprimento da aula, não fomos capazes de discuti-lo como

estamos acostumados. Eu lhes disse que eles tinham que tomar notas e escolher uma cena

para falar sobre. Mas para mim, vê-lo novamente é sempre reafirmador – eu acho que eu

já o vi três vezes agora, a primeira noite foi quando Fred (Wiseman) exibiu o filme na

estréia no Carpenter Center, depois o passamos em uma aula, há vários anos, e ontem eu

o vi de novo. Vejo coisas diferentes no filme toda vez que assisto a ele. E acho que parte

disso é porque há existe algo sobre a observação paciente da câmera que, se feita da

maneira certa, realmente apresenta uma complexidade em relação à vida cotidiana que é

bastante extraordinária. Especialmente quando se reflete sobre como o material

acrescenta, como ele agrega-se. Como uma cena se refere a outra cena quando não há

conexão entre elas. E acho que esse tipo de magia, essa elasticidade entre esses diferentes

momentos, é algo que eu realmente valorizo, mesmo em um filme como Sherman’s

March.

Sabe, eu não tinha a intenção de fazer um filme que tivesse “X” número de cenas ou que

tivesse cães nele. Mas na verdade há três ou quatro cenas em que os cães têm esses

pequenos papéis, e eu não tinha ideia que eles se tornariam uma espécie de leitmotif. Mas

eles se tornaram! Foi um assunto pequeno (no filme), mas você simplesmente não sabe

disso quando começa a filmar. E, também, porque eu aprecio qualquer coisa que me force

a sair para o mundo e me faça ir a algum lugar que talvez eu não teria ido de outra forma.

Isso, levar a câmera e filmar a vida como ela aconteceria mesmo se eu não estivesse lá,

mesmo que, você sabe, a câmera sempre tem um efeito. Foi tudo muito entusiasmente,

pessoalmente, fez com que meus fluidos criativos continuassem circulando. Ao passo que

se eu estivesse sempre filmando eu mesmo, meus próprios pensamentos e preocupações,

minhas próprias análises... eu fico entediado muito rapidamente comigo mesmo. Preciso

de outros tipos de materiais para “fermentar o pão”.

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GT - Acho que Sherman’s March fica mais impressionante com o passar do tempo.

Grande parte disso é porque o filme é composto de diversos destes momentos vérité

impressionantes, um após o outro, e há muita energia colocada no filme. Parece que

realizar um filme como Sherman’s March atualmente continuaria a ser um desafio.

Sabendo que você o fez há trinta anos, com uma grande câmera de cinema, um gravador

de som a tiracolo, um carro esporte que estava constantemente quebrando... é quase

onírico ver aquela energia na viagem de um jovem cineasta. Você poderia imaginar-se

fazendo algo assim hoje?

RM - Eu não poderia fazer o filme atualmente, e eu não tenho certeza que alguém poderia.

Um questionamento verdadeiramente legítimo é o de que a paisagem – e não a paisagem

física, geológica, mas a paisagem psicológica – de nossa cultura mudou tanto que talvez

as pessoas não permitissem que você filmasse os tipos de coisas que eu pude filmar

quando fiz Sherman’s March. Era um tempo pré-Internet, pré-Facebook, pré-Reality

Television. Acho que todos esses fatores realmente mudaram a forma como as pessoas

pensam sobre a natureza da mídia e câmeras. E eu penso nisso muito em termos dos meus

alunos, porque, como eu disse, eles têm vinte anos de idade, estão saindo deste mundo

frescos e animados e querendo filmar e acho que o que eles encontram às vezes é uma

grande resistência ou, pelo menos, pessoas que querem saber onde o material (que eles

filmam) vai ser utilizado. E essa é uma pergunta que tem de ser feita. Acho que as pessoas

sempre devem ser perguntadas se podem ser filmadas, de alguma maneira. Eles são

estudantes muito jovens, então acho que muitas pessoas ficam felizes em acomodá-los.

Mas existe uma resistência inicial. E acho que quando eu estava filmando Sherman’s

March esta resistência não estava ali. As pessoas sorriam e olhavam intrigadas quando eu

entrava em uma loja com a câmera, mas, sabe, ninguém dizia “não filme”. Agora você

não pode entrar em uma loja, ou nem mesmo passar pela porta da frente sem que um

guarda te pare. Eles não vão permitir. E olhando em retrospecto para meu material

filmado ao longo dos aos –e, como você sabe, eu tenho arquivado cada ano dos últimos

trinta anos – eu não havia pensado a respeito disso até este momento, mas acho que

progressivamente há cada vez menos este sair pelo mundo e filmar livremente, ano após

ano. Se você colocasse em um gráfico, o número de ambientes completamente

exteriorizados ou não-familiares, mesmo que eu esteja filmando meus filhos, parece ter

declinado, perceptivelmente, se nos aproximamos da data presente.

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Quando fiz Sherman’s March foi uma aventura, e, também, eu tinha muito mais energia,

eu era forte e podia carregar uma câmera por dias. E agora, fisicamente, não tenho certeza

se poderia fazer esse tipo de filme. Eu certamente não poderia fazer algumas das cenas

que fiz em Six O'Clock News. Eu lembro daquela cena em que sigo o guarda florestal na

encosta da montanha... digo, aquela era uma caminhada íngreme, e eu estava carregando

dois chassis de filme carregado, mais a câmera, além do gravador de fita. Mas era uma

cena, e foi uma aventura. Eu estava em uma aventura com ele, nós estávamos indo até o

topo e assistindo os bombeiros lutar contra o fogo. E eu queria aquela cena, então eu a

consegui, mas eu olho para trás e digo: "Como eu fiz isso?".

GT - Parece que em Photographic Memory as pessoas lidaram com a sua câmera

razoavelmente bem... talvez porque as pessoas que você filma em Saint-Quay, como o

arquiteto Le Calvez, Helène ou mesmo Maud, de alguma forma, são pessoas mais velhas

e vivem em uma cidade menor... talvez não tão afetadas por esta “paranoia digital”?

RM - Eu não havia pensado sobre isto, mas acho que você tem razão. Talvez porque eles

sejam de determinada geração; a investigação que eu havia começado naquele momento

tinha a ver comigo quando eu era muito mais jovem, o que significava que qualquer

pessoa daquele período com quem eu estivesse falando também seria mais velha. Mas eu

também acabei filmando pessoas mais jovens. Novamente, acho que o componente crítico

foi o de eu ter passado algum tempo com eles antes de começarmos a filmar, para que

eles pudessem confiar em mim. Ou o fato de eu ter sido apresentado a eles por alguém

que eu tivesse conhecido antes. Isto abriu as portas. Por exemplo, há um moço no mercado

de peixe – ele aparece apenas por alguns segundos – mas ele preparando um maravilhoso

prato de peixe para um evento. Sabe, basicamente ele era jovem e estava totalmente

disposto a ser filmado, ele não se importou. Existem pessoas assim. E a fotógrafa, que eu

acabei filmando bastante. Ela era mais jovem e fazia fotos para cartões-postais,

basicamente fotografia turística. Ela ficou um pouco confusa sobre o porquê eu queria

filmá-la, mas estava totalmente aberta para aquilo. Então acho que depende mais de cada

pessoa. E também, naquela área da França, a Bretanha, acho que as pessoas em geral são

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muito mais tranquilas. Se eu eu tentasse fazer isto no verão parisiense, por ser uma cidade

maior, haveria mais resistência.

GT - Há ótimos momentos vérité em Photographic Memory. Alguns deles com Adrian,

por exemplo quando ele está falando sobre morar em uma cobertura e você pergunta a ele

sobre seus valores. Esta sequencia define o tom do filme em relação a algumas das

questões que você está tentando levantar, e isto é feito a partir de uma bela sequência de

dois minutos, sem cortes. Quando a vemos, de alguma forma podemos nos colocar em

sua posição, ou na posição de Adrian, no momento em que a cena estava sendo filmada.

Também penso na cena com Helène, que também é uma figura central do filme. Naquela

cena, você passa a conhecer o que aconteceu com Maurice ao mesmo tempo em que provê

a nós, espectadores, esta informação – como você, naquele momento também queremos

saber como a estória vai se desdobrar. Algo similar acontece quando vocês dois

descobrem que Maud é uma amiga em comum; que Maurice tirou aquela foto e que

Helène poderia descobrir o paradeiro de Maud naquele momento - tudo isto acontece na

frente da lente.

RM - Isto é porque aquilo acontecia pela primeira vez no momento em que eu filmava. E

eu realmente, realmente acho que é algo necessário a se fazer. Porque se você já sabe – e

isto ocorre em 99% dos documentários – o cineasta já saberia exatamente onde estavam

as fotos, e elas seriam puxadas na ordem certa. É mais arriscado, porque se você erra em

algum aspecto técnico, ou se a tomada está fora de foco, você estragou tudo. E daí você

tem de considerar se vale a pena pedir a ela que faça novamente, e se ela fizer novamente

a tomada nunca é tão fresca, e nem a minha reação. E acho que nossa conversa, pelo fato

de não ter ocorrido antes, sobre o mesmo assunto, tem uma espécie de veracidade que não

teria acontecido de outra forma. É muito astuto o fato de você insistir neste assunto,

porque não sei se todos se dão conta disso. Sabe, as pessoas estão tão acostumadas em

assistir às cenas que foram pre-ensaiadas, das quais uma pré-pesquisa foi realizada, e elas

sabem exatamente que as fotos estavam na caixa, e organizam elas para que saiam da

maneira certa... ela (Helène) saberia o que falar e quando falar, etc. Enfim, é uma maneira

totalmente diferente de filmar - e quem sabe se é possível distinguir a diferença? Eu acho

que de alguma forma é possível sentir isso.

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Quando ela (Helène) me perguntou sobre encontrar Maud, ela disse algo como “você quer

vê-la?”, e eu disse “pas encore”. E acho que foi uma resposta genuína, porque fui pego

realmente de surpresa. Também devido ao fato de existir aí um componente emocional.

Sabe, eu não esperava tê-la encontrado. Eu achei que seria uma parte perdida do filme, e

fiquei muito surpreso. Quando a oportunidade se apresentou de talvez ir procura-la, agora

que tínhamos seu endereço, senti que precisava pensar sobre isso por vinte e quatro horas

– um momento realmente não-Cinema-vérité. Então, o que saiu daquele momento foi

exatamente minha própria decisão, como registrado em minha resposta.

GT - Para mim, este tipo de momento vérité traz muita vida aos seus filmes. Como

espectadores, podemos colocar nossa própria experiência em vibração com a sua – temos

a oportunidade de o entendermos como um ser humano que vive aquele momento em

particular, alguém que é confrontado com a possibilidade de encontrar uma velha amiga

e que é pego de supresa. Análoga a esta reflexão, há uma cena em Sherman’s March sobre

a qual você fala frequentemente, aquela na qual você leva seu carro para o conserto e

interage com Phillip, o mecânico.

RM - Esta é outra cena bastante complicada. Eu pensei que filmaria um momento breve

de meu carro sendo consertado para que pudesse continuar minha jornada. Na realidade,

acabamos conversando sobre dois eventos trágicos, mutuamente, em nossas vidas e eu

não antevia esta possibilidade. Mas o que aconteceu, novamente, como você

judiciosamente ressalta, foi em apenas uma tomada – sem edição. Ele está falando sobre

a morte de minha mãe e eu estou falando sobre a morte de sua filha. Digo, a cena

simplesmente desabrocha como uma flor. Eu acho esta cena muito comovente. Já falei

sobre isto em outras entrevistas, há um olhar em seu olho quando ele diz: “eu sinto falta

daquela garota”. E é um pequeno momento, no qual você pode ver toda sua dor naquele

momento em particular: a morte de sua filha. Tudo está lá naquele momento. E eu tentei

olhar exatamente em qual fotograma aquilo acontece, analisando na moviola, indo para

frente e para trás. Não está em lugar nenhum, não é em um fotograma, mas como se fosse

por entre os fotogramas. E é realmente, realmente extraordinário – este é um exemplo do

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tipo de coisa que você pode começar a filmar pensando “é apenas para uma determinada

finalidade” e que acaba tendo muito mais importância do que você imaginava.

GT - Uma cena que gosto de Time Indefinite é quando Charleen está olhando para a casa

que foi dela, falando sobre a tragédia (do incêndio) e podemos ver o reflexo da casa na

lente de seus óculos... também uma espécie de momento mágico.

RM - Bem, isto... foi pura sorte. Eu não falei para ela ficar para ali para que pudesse pegar

o reflexo em seus óculos. Quando você começa a falar com as pessoas daquele jeito faz

com que elas fiquem tensas. Elas sentem que tem de estar em determinada situação e não

se mexerem, sabe, e isto afeta o quão fluentes, ou fluidos, eles podem ser no que concerne

suas respostas emocionais em relação ao momento. E também eu estava muito

preocupado com, você sabe, “será que isto está indo longe demais?”, “será que Charleen

está pronta para fazer isso?”, visto que fazia apenas alguns meses que isto havia

acontecido na sua vida. Daí eu tinha de continuar falando para mim mesmo que ela havia

me chamado para ir até lá, que ela havia me dito que gostaria que eu filmasse, que ela

havia dito que queria registrar um pouco daquilo. Então, ela ficou em frente à casa e eu

assumi que o que teria de fazer seria apontar a câmera para a casa e depois para ela,

algumas vezes. Daí percebi que devido ao ângulo preciso de seus óculos e do lugar onde

ela estava, no jardim em frente à casa, ali estava o reflexo da casa. Foi muito fortuito.

Sabe, o que acho que fiz certo enquanto estava filmando foi que realizei um zoom in para

que ficasse totalmente claro que a casa estava ali. Mas é também uma metáfora

maravilhosa porque, você sabe, não era a casa que estava ali, era uma replica da casa (que

fora destruída) e o que agora estávamos vendo era uma réplica da réplica. E tudo isto

contido em ainda uma outra réplica, que é o filme que estava fazendo.

GT - Acho que é isto por hoje.

RM - Isto é como ter uma consulta com um psicanalista toda sexta-feira.

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GM - Para mim ou para você?

RM - Para mim.