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5/11/2018 TextoHart-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/texto-hart 1/353 H. L. A. HART O Conceito de Direito 3. a edição Com um Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz Tradução de A. Ribeiro Mendes FUNDAÇÃO CALO U S T E GULBEN K1AN I LISBOA

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H. L. A. HART

O Conceito de Direito

3.a edioCom um Ps-escrito editado por

Penelope A. Bulloch e Joseph Raz

Traduo

de

A. Ribeiro Mendes

FUNDAO

CALO UST E GULBENK1AN

I LISBOA

Traduo do original ingls intitulado: THE CONCEPT OF LAWH.L.A. HART

Oxford University Press, 1961 Primeira edio publicada em 1961 Segunda edio publicada em 1994 (com um novo Ps-escrito)

Reservado todos os direitos de acordo com a lei Edio da FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN Avenida de Berna, Lisboa

A J.H.

NOTA PRVIA DO TRADUTORO livro de H.L.A. Hart, cuja traduo a Fundao Calouste Gulbenkian apresenta agora ao pblico de lngua portuguesa, uma obra que goza de um grande prestgio entre os cultores da filosofia do direito e da teoria geral do direito. Trata-se de um livro que revela um grande rigor de anlise, encadeando-se os raciocnios e argumentaes sobre a natureza do direito, sobre a distino dos conceitos de leis, comandos e ordens, sobre as relaes entre o soberano e o sbdito, sobre as relaes entre a justia e a moral e entre esta e o direito. Em especial, a concepo do Professor de Oxford que considera o direito como uma unio de regras primrias e secundrias tem sido alvo de vivo debate entre os filsofos do direito no ltimo quarto de sculo. O tradutor procurou apresentar uma verso fiel do pensamento de Hart, mas a sua tarefa no foi fcil, nomeadamente porque no existe em Portugal uma experincia de verso em lngua portuguesa de obras jurdicas inglesas ou norte-americanas. Procurando respeitar o desejo do autor, de reduzir ao mnimo as notas de p de pgina, o tradutor evitou incluir notas da sua responsabilidade, s o fazendo quando considerou conveniente indicar as expresses utilizadas na lngua inglesa pelo autor ou dar uma breve explicao sobre normas, institutos ou referncias com os quais o leitor portugus no est familiarizado. Tais notas aparecem na traduo assinaladas com asterisco. Porque esta traduo se destina em larga medida a estudantes de direito, pareceu conveniente incluir no final um glossrio de palavras ou expresses latinas utilizadas na obra, atendendo a que deixou de ser obrigatrio o estudo de latim no ensino secundrio para os estudantes que pretendem ingressar nas faculdades de direito. Esta tarefa no teria sido seguramente levada a cabo se no fosse o auxlio valioso e constante do Sr. Dr. Jos de Sousa e Brito, profundo conhecedor da filosofia analtica inglesa e discpulo de Hart. Este projecto de traduo partiu, alis, do Dr. Sousa e Brito, tendo sido apresentado por ele e pelo ora tradutor Fundao Calouste Gulbenkian h cerca de onze anos, s agora tendo sido possvel a respectiva concretizao. Duas ltimas palavras de reconhecimento so devidas Sr." Dr.a Ana de Freitas, encarregada de proceder reviso da traduo, e ao irmo do tradutor, Dr. Fernando Ribeiro Mendes, pelas sugestes que fizeram em momentos diferentes da preparao desta verso.

NOTA DOS EDITORESDecorridos alguns anos desde a sua publicao, O Conceito de Direito transformou o modo como era compreendida e estudada a Teoria Geral do Direito (!, no mundo de lngua inglesa e fora dele. O seu enorme impacte deu origem a uma multiplicidade de publicaes que discutem o livro e as suas doutrinas, e isso no s no contexto da Teoria Jurdica, como tambm no da Filosofia Poltica e da Filosofia Moral. Durante muitos anos, Hart acalentou no esprito a idia de aditar um captulo ao livro O Conceito de Direito. No desejava retocar o texto, cuja influncia to grande tem sido, e, de harmonia com o seu desejo, publica-se aqui esse texto inalterado, salvo correces menores. Mas o autor queria dar resposta s muitas discusses sobre o livro, para defender a sua posio contra os que o interpretaram incorrectamente, refutando as crticas infundadas, e facto que assumia igual importncia a seus olhos aceitando a procedncia das crticas justificadas e sugerindo modos de adaptar as doutrinas da obra para ir ao encontro desses pontos. A circunstncia de o novo captulo concebido, em primeiro lugar, como um prefcio, mas, no fim, como um ps-escrito estar inacabado ao tempo da sua morte, apenas em parte se ficou a dever ao seu perfeccionismo meticuloso. Tal ficou a dever-se tambm s suas dvidas persistentes sobre a bondade do projecto e angustiante incerteza sobre se conseguiria estar altura do vigor e do carcter penetrante das teses da obra, tais como haviam sido originalmente concebidas. No obstante, e com muitas interrupes, perseverou no trabalho sobre o ps-escrito, achando-se quase completo, na altura da sua morte, o primeiro dos dois captulos projectados. Quando Jennifer Hart nos pediu para vermos os seus papis e para decidirmos se havia neles algo susceptvel de ser publicado, a nossa primeira idia foi a de no deixar que se publicasse qualquer texto com o qual Hart no teria ficado satisfeito. Ficmos, por isso, encantados ao descobrir que, na sua maior parte, o primeiro captulo 1 1 do ps-escrito se achava em estdio final de redaco. Descobrimos apenas notas manuscritas destinadas ao segundo captulo ' *', mas estas eram demasiado fragmentrias e incipientes para serem susceptveis de publicao. Em contraste com isto, o primeiro captulo 1 1

X

NOTA DOS EDITORES

j

: ; .

aparecia em diversas verses, tendo sido dactilografado, revisto, tornado a dactilografar e revisto de novo. Mesmo a verso mais recente no tinha, obviamente, sido encarada por ele como tendo alcanado a forma definitiva. H numerosas alteraes a lpis e a esferogrfica. Alm disso, Hart no eliminou as verses mais antigas, parecendo, antes, ter continuado a trabalhar em qualquer das verses que tivesse mo. Embora isto tornasse mais difcil a tarefa de edio, as alteraes introduzidas durante os dois ltimos anos foram, sobretudo, mudanas de matiz estilstico, o que, em si, indicava que ele se achava satisfeito, no essencial, com o texto, tal como estava, A nossa tarefa consistiu em comparar as verses alternativas, e, quando estas no tinham correspondncia entre si, em determinar se as partes do texto que apenas figuravam numa delas estavam ausentes das outras porque o autor as abandonara, ou porque nunca chegara a ter uma verso que incorporasse todas as emendas. O texto publicado inclui todas as emendas que no foram eliminadas por Hart e que aparecem em verses do texto que ele tinha continuado a rever. Por vezes, o prprio texto era incoerente. Isso deve, freqentemente, ter resultado de confuses de leitura do manuscrito pelo dactilgrafo, cujas incorreces Hart nem sempre detectava. Outras vezes, tal ficou, sem dvida, a dever-se ao modo natural como as frases saem deturpadas no decurso da redaco, para serem corrigidas na verso final, no tendo ele tido j vida para o fazer. Nestes casos, tentmos reconstituir o texto original ou captar de novo, com a mnima interveno, o pensamento de Hart. Surgiu um problema especial com a seco 6 (sobre o poder discricionrio ''). Encontrmos duas verses do pargrafo inicial, uma numa cpia que terminava nesse ponto, e outra numa cpia que continha o resto da seco. Como a verso trancada se encontrava numa cpia que incorporava muitas das suas mais recentes revises e nunca foi por ele eliminada, e como ela consonante com a discusso geral constante do ps-escrito, decidimos permitir que ambas as verses fossem publicadas, aparecendo em nota final aquela em que no aparecia a continuao do texto.

Hart nunca mandou dactilografar as notas que continham, na sua maior parte, referncias bibliogrficas. Tinha uma verso manuscrita das notas, sendo a respectiva inserI o mais facilmente localizada na cpia dactilografada mais antiga do texto principal. Mais tarde, aditou ocasionalmente referncias em comentrios marginais, mas estavam, na sua maioria, incompletas, por vezes no indicando mais do que a necessidade de loca: lizar a referncia. Thimothy Endicott procedeu verificao de todas as referncias, localizou as que estavam incompletas e aditou as referncias das obras, quando Hart citava Dworkin ou o parafraseava de perto, sem indicar a fonte. Endicott corrigiu tambm o texto, quando as citaes eram inexactas. No decurso deste trabalho, que envolveu uma vasta pesquisa e largo engenho, sugeriu tambm, em conformidade com as linhas orientadoras da edio acima traadas, vrias correces ao texto principal, que acolhemos com gratido. No restam dvidas no nosso esprito de que Hart, se tivesse tido a oportunidade, teria burilado mais o texto e t-lo-ia melhorado, antes de o publicar. Mas cremos que o ps-escrito agora publicado contm a sua resposta ponderada a muitos dos argumentos de Dworkin P.A.B. J.R.

PREFCIO

Foi meu desgnio neste livro aprofundar a compreenso do direito, da coero e da moral como fenmenos sociais diferentes mas relacionados. Embora seja primariamente destinado aos estudantes de direito, espero que possa tambm servir queles cujos principais interesses recaem na filosofia moral ou poltica, ou na sociologia, mais do que no direito. O jurista considerar o livro como um ensaio sobre teoria jurdica analtica of Law and State, (1949), pg. 61.2

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p a g a m e n t o do imposto de rendimento, ou que estabelece o que tem de fazer-se para se outorgar um testamento vlido. Praticamente toda a gente, exceptuados os estrangeiros ou as crianas, que depare com a palavra inglesa lawr) pela primeira vez, ser capaz de multiplicar tais exemplos e a maior parte das pessoas poder ir mais longe. Poder descrever, pelo menos nos seus contornos, como se descobre se algo direito em Inglaterra; sabe que h especialistas a consultar e tribunais que tm uma palavra final a dizer, e dotada de autoridade, em todas estas questes. Muito mais do que isto seguram e n t e bem conhecido da generalidade. A maior parte das pessoas instrudas tem a idia de que as leis na Inglaterra formam uma q u a l q u e r espcie de sistema e que na Frana, nos Estados Unidos, na Rssia Sovitica e, na verdade, em quase todas as partes do mundo que so consideradas como pases distintos, h sistemas jurdicos q u e so, de u m modo geral, semelhantes na estrutura, no obstante diferenas importantes. Na verdade, teria seriamente falhado uma educao que deixasse as pessoas na ignorncia destes factos e dificilm e n t e consideraramos uma marca de grande sofisticao se os q u e soubessem tal pudessem dizer tambm quais os pontos importantes de semelhana entre os diferentes sistemas jurdicos. Poder-se- esperar que qualquer homem instrudo seja capaz de identificar estes aspectos salientes de u m a forma esquemtica, como a seguir se indica. Eles compreendem: (i) regras que probem ou impem certos tipos de comportamento, sob cominao de pena; (ii) regras que exigem q u e as pessoas compensem aqueles que por si so ofendidos de certas maneiras; (iii) regras que especificam o que deve ser feito p a r a outorgar testamentos, celebrar contratos ou outros instrumentos q u e confiram direitos e criem obrigaes; (iv) tribunais que determ i n e m quais so as normas e quando foram violadas e que estabeleam o castigo ou compensao a ser pagos; (v) um poder legislativo p a r a fazer novas regras e abolir as antigas. Se t u d o isto do conhecimento comum, como que a questo O que o direito? tem persistido e lhe tm sido dadas tantas respostas, to variadas e extraordinrias? Ser porque, alm dos casos-padro ntidos constitudos pelos sistemas jurdicos dos Estados modernos, os quais ningum em seu juzo duvida de que sejam No original ingls, Wills Act. f**' Traduzimos a clebre expresso due process of law por observncia dos trmites legais. 1 J. D. March, Sociological Jurisprudence Revisited, Stanford Law Review, n. 8 (1956), pg. 518.

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QUESTES

PERSISTENTES

u m a questo de regras um enorme exagero, se no mesmo u m erro? Tais pensamentos levam-nos negao paradoxal que j citmos: As leis so fontes de direito, no parte do prprio direito 1 .

3.

Definio

Aqui esto, pois, as trs questes recorrentes: Como difere o direito de ordens baseadas em ameaas e como se relaciona com < estas? Como difere a obrigao jurdica da obrigao moral e como { | est relacionada com esta? 0 que so regras e em que medida o | direito u m a questo de regras? Afastar dvidas e perplexidades respeitantes a estas trs questes tem sido o principal objectivo da m a i o r parte das especulaes sobre a natureza do direito. possvel a g o r a ver por que razo estas especulaes tm sido geralmente concebidas como u m a procura de u m a definio do direito, e t a m b m por que razo pelo menos as formas familiares de definio t m feito to pouco para resolver as dificuldades e as dvidas persistentes. A ^definio, como a palavra sugere, primariamente uma q u e s t o de traado de linhas ou de distino entre uma espcie de coisa e outra, as quais af linguagem delimita por palavras distintas. A necessidade de tal Traado de linhas muitas vezes sentida por a q u e l e s que esto perfeitamente vontade com o uso no dia a dia da p a l a v r a em questo, mas no podem exprimir ou explicar as distines que, segundo sentem, dividem uma espcie de coisas de o u t r a . Todos ns estamos por vezes nesta provao; fundamentalm e n t e o caso do homem que diz: Sou capaz de reconhecer um elefante q u a n d o vejo um, mas no sou capaz de o definir. A mesma p r o v a o foi expressa pelas famosas palavras de Santo Agostinho 2 acerca da noo de tempo. 0 que , pois, o tempo? Se ningum me p e r g u n t a r , eu sei; se desejar explic-lo quele que me pergunta, no sei. deste modo que mesmo hbeis juristas tm sentido que, ; e m b o r a conheam o direito, h muito acerca do direito e das suas i relaes com outras coisas que no so capazes de explicar e que no c o m p r e e n d e m plenamente. Tal como u m homem que capaz de ir de u m p o n t o a outro n u m a cidade familiar, mas no capaz de explicar ou m o s t r a r a outros como faz-lo, aqueles que insistem por uma (gefini precisam de um mapa que demonstre claramente as

1

-

Gray, loc. cil. Confessiones, XIV, 17.

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relaes tenuemente sentidas entre o direito que conhecem e as o u t r a s coisas. Por vezes, nesses casos a definio de u m a palavra pode fornecer u m tal m a p a : a um s e ao mesmo tempo, pode tornar explcito o princpio latente que guia o nosso uso de u m a palavra e pode m a n i f e s t a r relaes entre o tipo de fenmenos a que ns aplicamos a palavra e outros fenmenos. Diz-se por vezes que a definio meram e n t e verbal ou s relativa a palavras; mas isto pode ser muito e n g a n a d o r , q u a n d o a expresso definida de uso corrente. Mesmo a definio de um tringulo como uma figura rectilnea de trs lados, ou a definio de elefante como um quadrpede distinto dos outros pela posse de u m a pele grossa, presas e tromba elucida-nos de uma f o r m a modesta, quer quanto ao uso-padro destas palavras, quer q u a n t o s coisas a que as palavras se aplicam. Uma definio deste tipo familiar faz duas coisas de imediato. Simultaneamente fornece u m cdigo ou frmula de traduo da palavra para outros termos beim conhecidos e localiza-nos a espcie de coisa para cuja referncia a palavra utilizada, atravs da indicao dos aspectos q u e p a r t i l h a em comum com uma famlia mais vasta de coisas e dos q u e a distinguem de outras da mesma famlia. Ao procurar e ao descobrir tais definies, no estamos simplesmente a olhar para N palavras... mas t a m b m para as realidades relativamente s quais u s a m o s palavras para delas falar. Usamos um conhecimento aguado das palavras p a r a aguar a nossa percepo dos fenmenos 1 . Esta forma de definio (per genus et differentiam), que se v no caso comezinho do tringulo ou do elefante, a mais simples e, para alguns, a mais satisfatria, porque nos d u m a srie de palavras que pode ser sempre substituda pela palavra definida. Mas nem sempre est disponvel, nem sempre clarificadora, quando disponvel. O seu sucesso depende de condies que freqentemente no esto preenchidas. A principal entre estas ltimas que devia haver uma famlia mais extensa de coisas ou genus, relativamente a cuja natureza estamos esclarecidos e dentro da qual a definio localiza o q u e define; porque, claramente, uma definio que nos diz que algo m e m b r o de u m a famlia no nos pode a j u d a r , se tivermos apenas idias vagas ou confusas quanto natureza da famlia. esta exigncia que, no caso do direito, torna intil esta forma de definio, p o r q u e aqui no h uma categoria geral bem conhecida e familiar, de q u e o'direito seja membro. O mais bvio candidato para uso deste

J L. Austin, A Plea for Excuses, Proceedings vol. 57. I956-7), pg. 8.

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of lhe Arisiolelian

Societv.

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QUESTES

PERSISTENTES

m o d o n u m a definio de direito a famlia geral de regras de comportamento; contudo o conceito de regra, como vimos, to c a u s a d o r de perplexidade como o do prprio direito, de tal forma que definies de direito que comeam por identificar as leis como uma espcie de regras, normalmente no a u m e n t a m mais a nossa fcomp r e e n s o do direito. Para isto, exige-se algo de mais fundamental do que u m a forma de definio que seja utilizada com sucesso para localizar u m tipo especial e subordinado dentro de um tipo genrico de coisa, familiar e bem conhecido. H, contudo, formidveis obstculos ulteriores ao uso vantajoso desta simples forma de definio no caso do direito. A suposio de q u e u m a expresso geral possa ser definida deste modo baseia-se na assuno tcita de que todos os casos daquilo que vai ser definido como tringulo ou elefante tenham caractersticas comuns que sejam referidas pela expresso definida. Claro que, mesmo num estdio r e l a t i v a m e n t e elementar, a existncia de casos de fronteira impe-se nossa ateno, e tal mostra que pode ser dogmtica a assuno de q u e vrios casos de um termo geral devem ter as mesmas caractersticas. Muito freqentemente o uso comum, ou mesmo tcnico, de um t e r m o bastante aberto, na medida em que no probe a extenso do t e r m o a casos em que apenas algumas das caractersticas n o r m a l m e n t e concomitantes esto presentes. Isto, como j notmos, verdadeiro q u a n t o ao direito internacional e quanto a certas formas de direito primitivo, de modo que sempre possvel argumentar de f o r m a plausvel a favor e contra tal extenso. O que mais i m p o r t a n t e que, excludos tais casos de fronteira, os vrios casos de u m t e r m o geral esto freqentemente ligados entre si de maneira b a s t a n t e diferente da postulada pela forma simples de definio. Podem estar ligados por analogia como quando se fala do p de um h o m e m e t a m b m do s o p n de u m a montanha. Podem estar ligadas por relaes diferentes a um elemento central. V-se esse princpio unificador na aplicao da palavra saudvel no s a um h o m e m , mas tambm sua tez e ao seu exerccio matinal; no segundo caso, trata-se de um sinal e no terceiro de uma causa da p r i m e i r a caracterstica central. Ou de novo e aqui talvez tenhamos u m princpio similar ao que unifica os diferentes tipos de regras que f o r m a m um sistema jurdico os diferentes casos podem ser elementos constituintes diferentes de certa actividade complexa. O uso da expresso caminhos-de-ferro no s quanto a um comboio,

No oriiiinal ingls, joot o/ a

mountain.

O CONCF.ITO DE DIREITO

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mas t a m b m relativamente s linhas, estaes, carregadores ou a u m a sociedade annima regido por este tipo de princpio unificador. H, claro, muitos outros tipos de definio, alm da forma tradicional m u i t o simples que debatemos, mas parece ntido, quando recordamos a natureza das trs questes principais que identificmos como subjacentes questo recorrente O que o direito?, que nada de suficientemente conciso, susceptvel de ser reconhecido como u m a definio, lhe podia dar resposta satisfatria. As questes subjacentes so demasiado diferentes umas das outras e demasiado fundamentais p a r a serem capazes deste tipo de resoluo. A histria das tentativas para d a r definies concisas mostrou isso. Contudo, o instinto que f r e q e n t e m e n t e reconduziu estas trs questes conjuntamente a u m a nica pergunta ou pedido de definio no foi mal orientado; porque, como mostraremos no decurso deste livro, possvel isolar e caracterizar um conjunto central de elementos que formam u m a p a r t e c o m u m da resposta a todas as trs questes. Quais sejam estes elementos e por que razo merecem o importante lugar que lhes est reservado neste livro, tal evidenciar-se- melhor, se c o n s i d e r a r m o s ^ p r i m e i r a m e n t e em detalhe as deficincias da teoria que tanto tem d o m i n a d o a cincia jurdica inglesa, desde que Austin a exps. Esta teoria consiste na pretenso de que a chave da compreenso do direito se encontra na noo simples de u m a ordem baseada em ameaas, que o prprio ^Austin' denominou ^comando; A investigao das deficincias desta teoria vai ocupr~s"tfs prximos captulos. Ao cfitTc-la primeiro e ao deixar para os ltimos captulos do livro a anlise da sua principal rival, no atendemos conscientemente ordem histrica por que a moderna teoria jurdica se desenvolveu; porque a pretenso rival de que o direito mais bem c o m p r e e n - \ dido atravs da sua conexo necessria com a moral uma / doutrina mais antiga, que Austin, tal c o m o f B e n t h a m iantes d e l e / tomou como alvo principal de ataque. A nssTdesculpa, se se precisar de alguma, para este tratamento no histrico, reside em que os erros da teoria imperativa simples so uma melhor bssola para a verdade, do que os das suas rivais mais complexas. Em vrios pontos deste livro encontrar o leitor discusses de casos de fronteira em que os teorizadores do direito sentiram dvidas na aplicao da expresso direito ou sistema jurdico, mas a resoluo sugerida para tais dvidas, que tambm encontrar aqui, constitui apenas uma preocupao secundria do livro. Porque o seu objectivo no fornecer uma definio do direito, no sentido de uma regra por referncia qual pode ser testada a correco do uso da palavra; antes fazer avanar a teoria jurdica, facultando uma

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QUESTES

PERSISTENTES

anlise melhorada da estrutura distintiva de um sistema jurdico interno e fornecendo uma melhor compreenso das semelhanas e diferenas entre o ,direiU)J) a^coerj) e a. moral, enquanto tipos de fenmenos sociais. O conjunto cT elementos identificados no decurso da discusso crtica dos prximos trs captulos e descritos em detalhe nos captulos V e VI serve este propsito atravs de formas que so demonstradas no resto do livro. por esta razo que so t r a t a d o s como os elementos centrais no conceito de direito e de p r i m e i r a importncia na sua dilucidao.

II

LEIS, COMANDOS E ORDENS1. Variedades de imperativos

A tentativa mais clara e completa de anlise do conceito de direito e m termos de elementos aparentemente simples de comandos e hbitos foi a feita por Austin na obra Province of Jurisprudence Determined. Neste e nos prximos dois captulos, exporemos e critic a r e m o s u m a posio que , em substncia, a mesma da doutrina de Austin, m a s que provavelmente dela diverge em certos pontos. Isto p o r q u e a nossa principal preocupao no tem a ver com Austin mas com as credenciais de um certo tipo de teoria que tem atractivos perenes, sejam quais forem os seus defeitos. Assim no hesitmos, q u a n d o o sentido de Austin duvidoso ou quando os seus pontos de vista parecem inconsistentes, em ignor-lo e em expor uma posio clara e coerente. Mais ainda, quando Austin se limita a dar leves indicaes q u a n t o aos modos por que as crticas podiam ser rebatidas, ns desenvolvemo-las (parcialmente pelas linhas seguidas por teorizadores posteriores, nomeadamente Kelsen), de forma a asseg u r a r que a doutrina por ns considerada e criticada seja exposta na sua forma mais intensa. Em m u i t a s situaes diferentes da vida social, uma pessoa pode exprimir u m desejo de que outra pessoa deva fazer ou abster-se de fazer algo. Quando este desejo formulado, no apenas como uma nota de informao com interesse ou de auto-expresso propositada, mas com a inteno de que a pessoa interpelada se deva conformar com o desejo expresso, costume usar, em ingls e em muitas outras lnguas, embora no necessariamente, uma forma lingstica especial c h a m a d a modo imperativo: V para casa!. Venha aqui!, Pare!, No o mate!. As situaes sociais em que nos dirigimos assim aos o u t r o s em f o r m a imperativa so e x t r e m a m e n t e diversas; contudo, incluem certos tipos principais repetitivos, cuja impor-

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LEIS. COMANDOS F. O R D E N S

tncia m a r c a d a por certas classificaes familiares. Passe-me o sal, por favor usualmente um simples pedido1-1 uma vez que dirigido normalmente por quem o diz a outra pessoa que pode p r e s t a r um servio e no h qualquer sugesto nem de grande urgncia, nem de insinuao acerca do que pode seguir-se, se houver o m i s s o do servio. No me mate, seria normalmente proferido c o m o u m a imploraquando a pessoa que assim fala est merc d a pessoa a quem se dirije ou numa provao de que este ltimo tem o poder de a libertar. No se mexa, por outro lado, pode ser um aviso*-""*, se quem o diz conhece qualquer perigo que ameace a pessoa interpelada (uma cobra na relva), a qual pode evit-lo mantendo-se imvel. As variedades das situaes sociais em que feito uso caracteristicamente, embora no de modo invarivel, de formas imperativas da linguagem so no s numerosas, como ainda se esbatem umas nas o u t r a s , e os termos como implorao, pedido ou aviso servem a p e n a s para fazer algumas distines grosseiras. A mais importante destas situaes aquela, relativamente qual a palavra imperativo parece especialmente apropriada. ilustrada pelo caso do assaltante a r m a d o que diz para o empregado do banco, Entregue-me o dinheiro ou disparo. O seu aspecto distintivo, que nos leva a falar da ordem do assaltante, e no do simples pedido e ainda menos da implorao feita ao empregado para entregar o dinheiro, reside no facto de que, para se assegurar do cumprimento face aos desejos expressos, o autor da frase ameaa fazer algo que um homem normal consideraria prejudicial ou desagradvel e torna a atitude de conservar o dinheiro u m a conduta de aco substancialmente menos susceptvel de escolha pelo empregado. Se o assaltante armado conseguir o seu intento, descrever-se-ia a situao como tendo o e m p r e g a d o sido coagido por aquele e neste sentido se diria que aquele se achava sob o poder do assaltante. Muitas questes lingsticas delicadas podem surgir acerca destes casos: ns poderamos correct a m e n t e dizer que o assaltante ordenou ao empregado que entregasse o dinheiro e que este lhe obedeceu, mas seria algo nganador dizer q u e o assaltante deu uma ordem ao empregado para entregar o dinheiro, j que esta frase, que soa bastante a actuao militar, sugere algum direito ou autoridade para dar ordens, a qual no

No original ingls, *request*. '**) No original ingls, p/ea. ***' No original ingls, *waming.

O CONCF.ITO DE DIREITO

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ocorre no nosso caso. Seria, contudo, bem natural dizer que o assaltante deu u m a ordem ao seu cmplice para vigiar a porta. No necessitamos aqui de nos preocupar com estas subtilezas. E m b o r a u m a sugesto de autoridade e de deferncia para com a a u t o r i d a d e possa muitas vezes ligar-se s palavras ordem e obedincia usaremos as expresses ordens baseadas em ameaas^""e ordens coercivas p a r a nos referirmos a ordens que, tal como as do "" assaltante, so baseadas em ameaas, e usaremos as palavras obedincia e obedecer p a r a a b r a n g e r o c u m p r i m e n t o de tais ordens. Contudo importante notar, nem que seja por causa da g r a n d e influncia sobre os juristas da definio de Austin da noo de c o m a n d o , q u e a situao simples em que as ameaas com um mal, e n a d a mais, so usadas p a r a impor a obedincia, no a situao em q u e n a t u r a l m e n t e falamos de i comandos 4 Esta palavra, que no m u i t o c o m u m fora de u m contexto militar, traz consigo implicaes v m u i t o fortes de que h u m a organizao hierrquica de homens r e l a t i v a m e n t e estvel, tal como u m exrcito ou u m corpo de discpulos e m q u e o comandante ocupa u m a posio de proeminncia. Tipicamente o general (no o sargento) que o comandante e emite comandos, e m b o r a se fale nestes termos de outras formas de proeminncia especial, como sucede q u a n d o se diz no Novo Testamento que Cristo' c o m a n d a v a os seus discpulos. Mais importante porque u m a distino crucial entre formas diferentes de imperativo o p o n t o q u e postula que, quando se emite u m comando, no sucede necessariamente que haja uma ameaa latente de um mal, na eventualidade de desobedincia.\ Comandar caracteristicamente exercer a u t o r i d a d e sobre homens, no o poder de lhes infligir u m mal, e, e m b o r a possa estar ligado com ameaas de u m mal, um comando p r i m a r i a m e n t e u m apelo no ao medo, mas ao respeito pela autoridade. E bvio que a idia de um comando com a sua conexo muito forte com a autoridade est muito mais prxima da de direito do que a o r d e m do nosso assaltante baseada em ameaas, embora esta l t i m a seja u m caso daquilo que Austin chama, ignorando as distines observadas no ltimo pargrafo, de forma enganadora um c o m a n d o . Um comando est, contudo, demasiado prximo do direito p a r a os nossos propsitos, isto porque o elemento de autoridade implicado no direito tem sido sempre um dos obstculos no caminho de q u a l q u e r explanao fcil daquilo que o direito . No podemos, por isso, usar com proveito, na elucidao do direito, a noo de um c o m a n d o que t a m b m o implique. Na verdade, constitui uma virtude da anlise de Austin, quaisquer que sejam os seus defeitos, que os

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LEIS. COMANDOS F. ORDENS

elementos da situao do assaltante no sejam em si, diferentemente do elemento de autoridade, obscuros ou necessitados de muita explanao; e da que sigamos Austin na tentativa de construir a idia de direito a partir deles. No teremos, porm, esperana, como teve Austin, de triunfar, mas antes de tirar ensinamentos da nossa derrota.

2.

O Direito como ordens coercivas

Mesmo n u m a sociedade grande e complexa, como a do Estado moderno, h ocasies em que um funcionrio, frente a frente com um indivduo, lhe ordena que faa algo. Um polcia ordena a um certo motorista que pare ou a um certo mendigo que continue a andar. Mas estas situaes simples no so, nem podiam ser.i^ojmodo-padr de f u n c i o n a m e n t o do direito, ainda que fosse s porque nenhuma socied a d e poderia arcar com o nmero de funcionrios necessrio para conseguir que cada membro da sociedade fosse informado, oficial e s e p a r a d a m e n t e , de todos os actos que lhe exigiam que fizesse. Em vez disso, tais formas particularizadas de fiscalizao ou so excepcionais, ou so acompanhamentos ou reforos ancilares de formas gerais de directivas que no contm o nome de, nem so dirigidas a indivduos determinados e no indicam um acto especfico que deva ser feito. Da que a m e s m o numa lei criminal (a qual, entre todas as variedades de direito, tem a semelhana mais aproxim a d a com u m a ordem baseada em ameaas), seja geral em dois sentidos: indica um tipo geral de conduta e aplica-se a uma categoria geral de pessoas que se espera que vejam que se aplica a elas e que a / a c a t e m . As directivas oficiais individualizadas, caso a caso, tm aqui um lugar secundrio: se as directivas gerais primrias no so obedecidas por um indivduo em particular, os funcionrios podem \ c h a m a r a ateno daquele e pedir o acatamento de tais directivas, tal \ como o faz um inspector tributrio, ou a desobedincia pode ser oficialmente verificada e objecto de auto, sendo o castigo objecto de a m e a a imposto por um tribunal. O controlo jurdico , por isso, primariamente, embora no exclusivamente, controlo por directivas, que so gerais neste duplo sentido. Este o primeiro aspecto que temos de acrescentar ao mo3elo simples do assaltante, se quisermos que ele nos reproduza as caratersticas do direito. O conjunto das pessoas afectadas e o modo por que tal conjunto indicado podem variar, consoante os diferentes sistemas jurdicos e mesmo consoante os diferentes direitos. Num

O CONCEITO DE DIREITO

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Estado moderno, entende-se normalmente que, na ausncia de indicaes especiais a alargar ou a reduzir o conjunto, as suas leis gerais a b r a n g e m todas as pessoas dentro das fronteiras territoriais. No direito cannico existe um entendimento semelhante de que normalmente todos os membros da igreja esto dentro do mbito do seu direito, excepto quando se indica u m a classe mais restrita. Em todos os casos, o mbito de aplicao de u m a lei uma questo de interpretao dessa lei em particular, auxiliada por tais entendimentos gerais. Aqui vale a pena observar que embora os juristas,"x entre eles Austin includo, falem por vezes das leis como sendo dirigidas1 a categorias de pessoas, isto enganador ao sugerir um / paralelo com u m a situao de pessoas frente a frente, a qual efectivamente no existe e nem o que est na mente dos que usam esta expresso. Ordenar s pessoas que faam coisas uma forma de comunicao e efectivamente implica que nos dirijamos a elas, isto eTquftTse atraia a ateno delas ou se tomem medidas para a atrair, m a s fazer leis para as pessoas no implica tal. Por isso o assaltante, atravs de unia s mesma frase, Entregue-me essas notas, exprime o seu desejo de que o empregado faa algo e efectivamente dirige-se ao empregado, isto , pratica o que normalmente suficiente p a r a fazer chegar esta expresso ateno do empregado. Se ele no fizesse tal, mas se limitasse a proferir as mesmas palavras numa sala vazia, no se teria dirigido de forma alguma ao empregado e no lhe teria ordenado que fizesse algo: podamos descrever a situao como u m a em que o assaltante se limitou a dizer entregue-me essas notas. Neste aspecto, fazer leis difere de ordenar s pessoas que faam coisas, e temos de contar com esta diferena, ao usar esta idia simples como modelo para o direito. Pode, na verdade, ser desejvel que as leis sejam levadas ateno daqueles a quem se aplicam, to depressa q u a n t o possvel aps a sua feitura. O propsito do legislador ao fazer leis seria frustrado, se tal no fosse feito com carcter geral e os sistemas jurdicos freqentemente conseguem, atravs de regras especiais respeitantes promulgao, que tal seja feito. Mas as leis podem estar completas, enquanto leis, antes que tal seja feito e mesmo que tal nem sequer seja feito. Na falta de regras especiais em contrrio, as leis so feitas validamente, mesmo se se deixar que os afectados descubram por si prprios quais as leis que foram feitas e quem por elas afectado. O que normalmente pretendem os que falam de leis dirigidas a certas pessoas dizer que h pessoas a

Dirigidas comunidade em geral, Austin. ob. cit., pg. 22.

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q u e m u m a lei em particular se aplica, isto , a quem ela exige que se c o m p o r t e de certa maneira. Se utilizarmos aqui a palavra dirigidas, podemos no s deixar de observar uma importante diferena e n t r e a feitura da lei e o dar uma ordem frente a frente, mas tambm y c o n f u n d i r as duas questes distintas: A quem se aplica a lei? e ,.,Para q u e m foi ela publicada?. Alm da introduo do a ^ ^ t o d e general idade, deve fazer-se u m a alterao mais fundamental na situao do assaltante, se q u i s e r m o s ter um modelo plausvel da situao em que existe direito. E verdade que existe um sentido em que o assaltante tem ascendente ou superioridade sobre o empregado do banco; reside tal na sua c a p a c i d a d e temporria para fazer uma ameaa, a qual bem pode b a s t a r p a r a levar o empregado do banco a fazer a coisa especfica que lhe dizem para fazer. No h outra forma de relao de superioridade e inferioridade entre os dois homens, excepto esta relao coerciva de c u r t a durao. Mas para os fins do assaltante, tal pode ser suficiente, p o r q u e a ordem simples e frente a frente: Entregue-me essas notas ou disparo desaparece com a ocasio. O assaltante no emite ordens permanentes para o empregado do banco (embora o possa fazer q u a n t o ao seu bando de sequazes), as quais de,vam ser seguidas r e p e t i d a m e n t e por certas classes de pessoas.^As lei^tm, todavia, de f o r m a proeminente, esta caracterstica de permanncia ou persistncia- Daqui se segue que, se utilizarmos a noo de ordens baseadas em a m e a a s para explicar o que so as leis, temos de tentar r e p r o d u z i r este carcter duradoiro que as leis tm. Devemos, por isso, supor que h uma crena geral da parte d a q u e l e s a q u e m as ordens gerais se aplicam, em que a desobedincia ser provavelmente seguida pela execuo da ameaa, no s no m o m e n t o primeiro da promulgao da ordem, mas continuamente, at q u e a ordem seja retirada ou revogada. Esta crena continuada nas conseqncias da desobedincia pode dizer-se que mantm as o r d e n s originais vivas ou permanentes, embora haja, como se ver mais tarde, u m a certa dificuldade na anlise da qualidade persistente das leis nestes termos simples. Claro que, de facto, pode ser necessrio o concurso de muitos factores, que podiam no estar reproduzidos na situao do assaltante, para existir tal crena geral na p r o b a b i l i d a d e continuada da execuo da ameaa: talvez o poder de executar ameaas, associado a essas ordens permanentes, que afectam largo nmero de pessoas, s pudesse de facto existir e s se pensasse que existia, se se soubesse que uma parte considervel da p o p u l a o estava ela prpria preparada, quer para obedecer volunt a r i a m e n t e , isto , independentemente do medo da ameaa, quer

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p a r a colaborar na execuo das ameaas sobre os que desobedecessem. Qualquer que seja a base desta crena geral na probabilidade da execuo das ameaa-, devemos distinguir dela mais um aspecto necessrio que temos de acrescentar situao do assaltante, se a q u e r e m o s aproximar da situao estabelecida em que h direito. Temos de supor que, qualquer que seja o motivo, a maior parte das ordens mais freqentemente obedecida do que desobedecida pela maior parte dos afectados. Designaremos tal realidade aqui, na esteira de Austin, como um hbito geral de obedincia e n o t a r e m o s , ^ tal como ele~~que, como sucede com muitos outros aspectos do direito, noo essencialmente vaga ou imprecisa. A questo relativa a q u a n t a s pessoas devem obedecer a quantas ordens gerais desse tipo e d u r a n t e q u a n t o tempo, para que haja direito, no admite mais respostas definitivas do que a questo respeitante a quantos j ^ b e l o s menos deve um homem ter para ser careca. Todavia, neste facto da obedincia jgera 1, reside u m a distino crucial entre as leisje o caso simples original da ordem do assaltante, O simples ascendente t e m p o r r i o de uma pessoa sobre outra considerado naturalmente como o oposto polar de direito, com o seu carcter relativamente estabelecido e duradoiro e, na verdade, na maior parte dos sistemas jurdicos, o exerccio de tal poder coercivo de curto prazo, como o do assaltante, constituiria uma infraco criminal. Resta ver, na verdade, se esta noo simples, ainda que confessadamente vaga, de obedincia geral e por hbito a ordens gerais baseadas em ameaas realmente suficiente p a r a reproduzir o carcter estabelecido e a continuidade que os sistemas jurdicos possuem. O conceito de ordens gerais baseadas em ameaas feitas por algum e obedecidas de forma geral, que ns construmos por acresc e n t a m e n t o s sucessivos situao simples do caso do assaltante a r m a d o , est claramente mais prximo de uma lei penal emitida pelo poder legislativo de um Estado moderno do que qualquer outra variedade de direito. Porque h tipos de direito que parecem p r i m e i r a vista muito diferentes de tais leis penais, e teremos de considerar mais tarde a pretenso de que estas outras variedades de direito so t a m b m verses apenas complicadas ou disfaradas desta m e s m a forma, no obstante as aparncias em contrrio. Mas se temos de reproduzir mesmo os aspectos de uma lei penal no nosso modelo construdo de ordens gerais obedecidas de forma geral, algo mais deve dizer-se acerca da pessoa que d as ordens. O sistema jurdico de u m Estado moderno caracterizado por um certo tipo de supremacia dentro do seu territrio e de independncia dos outros

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sistemas, que ainda no reproduzimos no nosso modelo simples. Estas duas noes no so to simples como podem parecer, mas o q u e lhes essencial d u m ponto de vista de senso comum (que pode n o vir a provar-se como adequado), .pode ser expresso como segue: o direito ingls, o direito francs e o direito de qualquer pas moderno r e g u l a m as condutas das populaes que habitam os respectivos territrios, com limites geogrficos razoavelmente bem definidos. Dentro do territrio de cada pas, pode haver muitas pessoas ou corpos de pessoas diferentes que do ordens gerais baseadas em a m e a a s e recebem obedincia habitual. Mas devemos distinguir a l g u m a s dessas pessoas ou corpos (por ex., o L.C.C.1'1 ou um ministro q u e exera o que ns designamos como poderes de legislao delegada) como legisladores subordinados em contraste com a Rainha no P a r l a m e n t o ' " ' que soberana. Podemos exprimir esta relao na simples terminologia dos hbitos, dizendo que enquanto que a R a i n h a no Parlamento, ao fazer as leis, no obedece habitualmente a ningum, os legisladores subordinados mantm-se dentro dos limites legalmente prescritos e, por isso, pode dizer-se que, ao fazerem leis, so agentes da Rainha no Parlamento. Se assim no procedessem, no teramos um sistema de direito na Inglaterra, mas uma pluralidade de sistemas; enquanto que, de facto, s porque a Rainha no P a r l a m e n t o neste sentido soberana, em relao a todos dentro do territrio e os outros corpos no so, temos em Inglaterra um nico sistema em que podemos distinguir uma hierarquia de elementos soberanos e subordinados.

(") Abreviatura de London City Council, conselho municipal de Londres. (**) A expresso Queen in Parliamem (Rainha no Parlamento) utilizada no direito ingls para referir a necessria colaborao entre a Coroa e o Parlamento para elaborao de leis (siatutes). O Parlamento britnico constitudo pela Rainha (ou Rei), pela Cmara dos Lordes e pela Cmara dos Comuns. O Parlamento no pode legislar sem o concurso de todas as suas partes, e, por isso, exigida a aprovao do Soberano. O Soberano no s convoca o Parlamento e pode dissolv-lo, mas deve dar o seu consentimento, antes que qualquer legislao possa produzir efeito. (E.C.S. Wade e G. Godfrey Phillips, Constituiional Law, 6 a ed., 1960, Londres, pg. 125). A a u t o r i d a d e jurdica suprema no Reino Unido , pois, a Rainha-no-Parlamento. No d o m n i o do direito, a Rainha o ramo executivo do poder, de tal modo que a prpria expresso, Rainha-no-Parlamento, sugere a fuso num rgo dos dois ramos tradicionais da governao, a saber, o executivo e o legislativo. Mas a Rainha-no- P a r l a m e n t o tambm encarada, em direito, como o Alto Tribunal do Parlamento; (...) O Parlamento , por isso, a autoridade executiva, legislativa e judicial s u p r e m a , tudo isto junto numa s autoridade, e este estado de coisas, por vezes designado como fuso de poderes, mostra-se em contraste com a organizao nos E.D.A., que so um sistema de poderes separados. (S E. Finer, Five Constiiutions. 1979, Londres, pgs. 40-41).

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A m e s m a caracterizao negativa da Rainha no Parlamento, como no obedecendo habitualmente s ordens de outros, define de f o r m a grosseira a noo de independncia que utilizamos ao falar dos sistemas jurdicos distintos dos diferentes pases. O supremo rgo legislativo da Unio Sovitica no tem o hbito de obedecer Rainha no Parlamento, e fosse o que fosse que a ltima legislasse sobre questes soviticas (embora constitusse parte do direito da Inglaterra) n o faria parte do direito da U.R.S.S.. S faria parte se a Rainha no P a r l a m e n t o fosse habitualmente obedecida pelo poder legislativo da U.R.S.S.. Nesta simples descrio do assunto que teremos mais tarde de e x a m i n a r criticamente, devem existir, sempre que exista um sistema jurdico, a l g u m a s pessoas ou corpos de pessoas que emitem ordens gerais baseadas em ameaas, que so geralmente obedecidas, e deve acreditar-se em geral que estas ameaas provavelmente sero levadas a cabo, em caso de desobedincia. Esta pessoa ou corpo devem ser internamente soberanos e externamente independentes. Se, na esteira de Austin, c h a m a r m o s a tal pessoa ou corpo de pessoas, supremos e independentes, o soberano, as leis de qualquer pas sero as ordens gerais baseadas em ameaas que so emitidas, quer pelo soberano, q u e r por subordinados em obedincia a este.

III

A DIVERSIDADE DAS LEISSe c o m p a r a r m o s a diversidade dos diferentes tipos de leis, que se e n c o n t r a m n u m sistema moderno como o do Direito Ingls, com o modelo simples de ordens coercivas construdo no captulo anterior, ocorre ao esprito u m a grande quantidade de objeces. Por certo que n e m todas as leis impem s pessoas que faam ou no faam algo. No ser enganador classificar assim leis que conferem poderes aos particulares p a r a outorgarem testamentos, celebrarem contratos ou casamentos, e leis que do poderes aos funcionrios, por exemplo a u m juiz p a r a julgar casos, a u m ministro para fazer regulamentos ou a u m conselho municipal para fazer posturas? Certamente que nem todo o direito legislado ou constitui a expresso do desejo de algum, como nas ordens gerais do nosso modelo. Tal afigura-se falso no caso do costume, que tem um lugar genuno, embora modesto, na m a i o r p a r t e dos sistemas jurdicos. Certamente que as leis, mesmo q u a n d o se t r a t e de legislao deliberadamente elaborada, no so necessariamente ordens dadas apenas a outros. No vinculam tantas vezes as leis os prprios legisladores? Finalmente, tero as leis p r o m u l g a d a s , p a r a serem leis, de exprimir realmente os efectivos desejos, intenes ou aspiraes de um qualquer legislador? No seria lei u m a lei devidamente aprovada se (como deve ser o caso relativamente a muitos artigos de u m a lei oramentai inglesa '') os q u e a votaram no soubessem o que significava? Estas so algumas das mais importantes, entre as muitas objeces possveis. Claramente, ser necessrio operar alguma

No original: English Finanace Act. Trata-se na realidade de uma lei financeira especfica. Na prtica constitucional, existe anualmente um Finance Act que autoriza a cobrana dos impostos previstos no oramento apresentado pelo Ministro das Finanas (Chancellor of the Exchequer). A lei do oramento portuguesa corresponde ao Finance Act e ao Appropriation Act (lei de autorizao de despesas).

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DAS

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modificao ao modelo simples original para lhes responder e, q u a n d o todas elas tiverem sido atendidas, pode suceder que a noo de ordens gerais baseadas em ameaas tenha sido transformada de tal f o r m a que se torne irreconhecvel. As objeces mencionadas reconduzem-se a trs grupos principais. Algumas dizem respeito ao contedo das leis, outras ao seu modo de origem e outras ainda ao seu campo de aplicao. Qualquer sistema jurdico parece, em todo o caso, conter leis que, a respeito de u m ou mais destes trs aspectos, divergem do modelo de ordens gerais que elabormos. Neste captulo, consideraremos separadamente estes trs tipos de objeco. Deixaremos para o captulo seguinte uma crtica mais fundamental, segundo a qual, para alm destas objeces a respeito do contedo, modo de origem e campo de aplicao, toda a concepo de um soberano supremo e independente habitualmente obedecido, na qual assenta o modelo, enganadora, visto pouco haver em qualquer sistema jurdico real que lhe corresponda.

1.

O contedo das Leis

O direito criminal algo a que obedecemos ou desobedecemos e o que as suas regras exigem designado como dever. Se desobedecermos, diz-se que infringimos a lei e que o que fazemos juridicam e n t e errado, u m a violao do dever ou um delito. A funo social que a lei criminal cumpre a de prescrever e definir certos tipos de conduta como algo que deve ser evitado ou feito por aqueles a q u e m se aplica, independentemente dos seus desejos. O castigo, ou sano, que associado pela lei s infraces ou violaes do direito criminal (sejam quais forem as outras finalidades que a punio possa servir) destina-se a fornecer um motivo para a absteno dessas actividades. Em todos estes aspectos, h pelo menos u m a forte analogia entre o direito criminal e as suas sanes e as ordens gerais baseadas em ameaas do nosso modelo. H certa analogia (no obstante muitas e importantes diferenas) entre tais ordens gerais e o direito da responsabilidade civil'*' cujo principal objectivo atribuir aos indivduos compensao pelos danos sofridos em resultado da conduta de outrem. Aqui, igualmente, as regras que d e t e r m i n a m quais os tipos de conduta que constituem os factos ilcitos f u n d a m e n t o de aco judicial so referidos como impondo s

r> Traduzimos t o m alguma impropriedade por direito da responsabilidade ci\ il a designao do ramo de direito 'law r>/ torts.

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pessoas, independentemente dos seus desejos, deveres (ou, mais r a r a m e n t e , obrigaes) de absteno de certa conduta. Esta c o n d u t a em si mesma designada como violao de um dever e a c o m p e n s a o ou os outros modos jurdicos de reparao so designados como sano. Mas h importantes tipos de leis em que tal analogia com as ordens baseadas em ameaas falha redondamente, visto que preenchem u m a funo social bastante diferente. As regras jurdicas que definem os modos pelos quais se podem celebrar contratos, testamentos, ou casamentos vlidos no obrigam as pessoas a a t u a r de d e t e r m i n a d a maneira, quer queiram, quer no. Tais leis n o i m p e m deveres ou obrigaes. Em vez disso, facultam aos indivduos dispositivosr) para a realizao dos seus desejos, conferindo-lhes poderes jurdicos legais para criar, atravs de certos procedim e n t o s especificados e sujeitos a certas condies, estruturas de direitos e deveres dentro do q u a d r o coercivo do direito. O poder assim conferido aos indivduos de dar forma s suas relaes jurdicas com outros atravs de contratos, testamentos, casamentos, etc., constitui u m a das grandes contribuies do direito p a r a a vida social; e u m a caracterstica do direito obscurecida, ao representar-se toda a lei como u m a questo de ordens baseadas em ameaas. A diferena radical de funo entre as leis que conferem tais poderes e o direito criminal reflecte-se em muitos dos modos correntes por que nos referimos a esta espcie de leis. Ao outorgarmos u m testamento, podemos cumprir ou no o disposto no artigo 9. d a Lei de Testamentos O texto ingls refere a proibio de accumulation s. Trata-se da apropriao de rendimentos capitalizados de uma quantia deixada por testamento a beneficirios sucessivos e que deve ser investida. Tal accumulation pode no ser autorizada em certos casos. A expresso aparece por vezes de forma composta: bequest of a sum and ali honuses and accumulation thereoj. g. 62). Os tribunais ingleses foram levados a examinar a consideralion de certas promessas, isto , as razes pelas quais foi assumida a promessa e as circunstncias em que o foi. Assim, quanto aos contratos bilaterais, consistindo na troca de uma promessa por outra, cada promessa foi vista como'consideralion ou contrapartida da outra. Ja q u a n t o s promessas puramente gratuitas, que no constem de um deed, os tribunais entenderam que havia falta de consideralion, j que s se descobria um

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e n c a r a r a regra que estabelece a ineficcia do testamento feito sem d u a s t e s t e m u n h a s como servindo p a r a levar os testadores a cump r i r e m o artigo 9. da Lei dos Testamentos, tal como somos levados obedincia do direito criminal pelo pensamento na pena de priso. Ningum poder negar que h, em alguns casos, esta associao e n t r e a nulidade e factores psicolgicos, como, por exemplo, a frust r a o da expectativa de que um negcio ser vlido. Apesar disso, a extenso da idia de sano de modo a incluir a nulidade uma fonte (e u m sinal) de confuso. Algumas das objeces menores que lhe tm sido feitas so bem conhecidas. Assim, em muitos casos, a nulidade p o d e n o ser u m mal para aquele que no satisfez uma qualquer condio exigida para a validade jurdica. Um juiz pode no ter q u a l q u e r interesse material na validade da sua sentena e esta ser-lhe indiferente; a parte que descobre no estar vinculada ao contrato r e l a t i v a m e n t e ao qual foi demandada, porque era menor ou no tinha a s s i n a d o o documento escrito exigido para certos contratos, poder n o reconhecer aqui a ameaa de um mal ou sano. Mas, para alm destas crticas banais que poderiam ser resolvidas com alguma dose de engenho, h razes mais importantes para a nulidade no p o d e r ser assimilada ao castigo associado a uma regra como estmulo p a r a a inibio das actividades que a regra probe. No caso de uma regra de direito criminal, podemos identificar duas coisas distintas: u m c e r t o tipo de conduta que a regra probe e a sano dirigida ao seu desencorajamento. Ora, como se poderiam considerar a esta luz actividades sociais to desejveis como a de homens que assumem r e c i p r o c a m e n t e promessas, que no satisfazem as exigncias legais q u a n t o forma? No se trata de algo semelhante conduta desenc o r a j a d a pela regra criminal, algo que as regras jurdicas que e s t i p u l a m formas jurdicas para os contratos visassem suprimir. As regras limitam-se a retirar-lhes reconhecimento jurdico. Ainda mais a b s u r d o conceber como sano o facto de uma medida legislativa, se n o obtiver a necessria maioria, no ganhar estatuto de lei. Assimilar este facto s sanes do direito criminal seria como pensar as regras de pontuao de um jogo destinadas a eliminar todas as j o g a d a s excepo da marcao de golos ou p o n t o s 1 . Se tal

desejo (por boas razes ou insuficientes) para fazer uma doao. F. usual aproximar a figura da consideration da figura romanista de causa dos negcios jurdicos (neste sentido, cf. K. Zweigert e H. Ktz, An Introduction to Comparatnv l.aw. trad inglesa, vol. II. 1977, pgs. 61 e segs.) '"> No texto ingls faz-se referncia s rims. unidade de pontuao nos jogos de crquete (cricket) e de basebol (baseball) (runs, corridas em certo percurso) Trata-se de jogos sem tradio em Portugal.

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ocorresse, seria o fim de qualquer jogo; contudo, s se concebermos as regras que conferem poderes como orientadas para levar as pessoas a comportarem-se de certa maneira e acrescentando a nulidade como u m motivo para a obedincia, poderemos assimil-las a ordens baseadas em ameaas. A confuso inerente noo de nulidade, entendida como s e m e l h a n t e a ameaa de mal ou s sanes do direito criminal, pode ser explicitada de outro modo. No caso das regras de direito criminal logicamente possvel e poder ser desejvel que haja tais regras, ain(la que a ameaa de qualquer mal ou castigo no existisse. verdade que se poder argumentar no serem neste caso regras jurdicas', apesar disso, podemos distinguir com clareza a regra que probe u m certo comportamento da estatuio de sanes a aplicar, se a regra for violada, e supor que aquela existe sem estas. Em certo sentido, podemos subtrair a sano, sem eliminar um padro inteligvel de comportamento que aquela visava manter. Mas no p o d e m o s logicamente fazer tal distino entre a regra que exige a observncia de certas condies, por exemplo a interveno de testem u n h a s p a r a u m testamento vlido, e a chamada sano da nulidade. Neste caso, se a no observncia desta condio essencial no implicasse nulidade, a existncia da prpria regra sem sanes no poderia ser a f i r m a d a de forma inteligvel, mesmo como regra no jurdica. A estatuio de nulidade parte integrante deste tipo de regra, de u m modo que a pena associada a uma regra que impe deveres nunca . Se o no conseguir-se colocar a bola entre os postes n o significasse a nulidade da no marcao, a existncia das regras de pontuao do jogo no poderia ser afirmada. O a r g u m e n t o por ns atrs criticado uma tentativa de mostrar a identidade fundamental entre as regras que conferem poderes e as ordens coercivas atravs do alargamento do significado de sano ou a m e a a de u m mal, de forma a incluir a nulidade de um negocio jurdico, q u a n d o est viciado pela no observncia de tais regras. O segundo argumento que vamos considerar prossegue uma via diferente, ou mesmo oposta quele. Em vez de procurar mostrar que aquelas regras so uma espcie de ordens coercivas, nega-lhes o e s t a t u t o de lei. Para as excluir, restringe o significado da palavra lei. A forma geral deste argumento, que surge em torma mais ou menos extrema em diversos juristas, consiste na afirmao de que aquilo que referido, sem rigor ou atravs de modos populares de expresso, como regras jurdicas completas, constitudo na realidade por fragmentos incompletos de regras coercivas, que so as nicas regras jurdicas genunas.

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As regras que conferem poderes como fragmentos de Leis

j ] i

N a sua f o r m a extrema, este argumento nega que at mesmo as r e g r a s do direito criminal, nos termos em que freqentemente so e n u n c i a d a s , sejam leis genunas. nesta forma que o argumento a d o p t a d o por Kelsen: O direito a norma primria que estipula a s a n o 1 . No h u m a lei que proba o homicdio: o que h apenas u m a lei que encarrega os funcionrios de aplicar certas sanes, em c e r t a s circunstncias, queles que praticam um homicdio. Deste p o n t o de vista, o que vulgarmente se concebe como o contedo das leis, visando guiar a conduta dos cidados comuns, meramente o a n t e c e d e n t e ou a clusula condicionante d u m a regra no dirigida a eles, m a s aos funcionrios, ordenando-lhes a aplicao de certas sanes, se certas condies tiverem sido satisfeitas. Todas as leis genunas, deste ponto de vista, so ordens condicionais a funcion r i o s p a r a aplicarem sanes. Todas elas assumem a forma: Se algo do tipo X for praticado, for omitido ou suceder, ento aplique-se a s a n o do tipo Y. Atravs de u m a crescente elaborao do antecedente ou das clusulas condicionantes, as regras jurdicas de qualquer tipo, incluindo as r e g r a s que conferem e definem o modo de exerccio de poderes p r i v a d o s ou pblicos, podem ser reformuladas nesta forma condicional. Assim, as regras da Lei dos Testamentos, exigindo as duas t e s t e m u n h a s , surgiriam como u m a parte comum de directivas muito diferentes dirigidas aos tribunais, para aplicarem sanes ao executor testamentrio que, violando as disposies do testamento, se recusasse a p a g a r os legados: se e s se houver um testamento devidamente o u t o r g a d o p e r a n t e testemunhas contendo estas disposies e se... e n t o devem ser-lhe aplicadas sanes. De modo semelhante, u m a regra q u e especifique o mbito da jurisdio de um tribunal apresentar-se-ia como u m a parte comum das condies a satisfazer, antes de aplicar quaisquer sanes. Assim, t a m b m as regras que conferem poderes legislativos e definem o modo e a forma da legislao (incluindo as disposies de u m a constituio sobre o poder legislativo supremo) podem ser reformuladas e apresentadas como especificando certas condies comuns, com base no cumprimento das q u a i s (entre outras) os tribunais devero aplicar as sanes mencion a d a s nas leis. Assim, a teoria solicita-nos a destrinar a substncia d a s f o r m a s que a obscurecem; ento, veremos que formas constitucionais tais como o que a Rainha no Parlamento promulga lei, ou

General Theury uf Law and State, pg. 63. Ver acima, pg. 6.

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as disposies da Constituio americana, quanto ao poder legislativo do Congresso, especificam meramente as condies gerais sob as quais os tribunais devero aplicar sanes. Estas formas so essencialmente clusulas condicionantes e no regras completas: Se a Rainha no Parlamento promulgou assim... ou *se o Congresso d e n t r o dos limites especificados na Constituio promulgou assim... so formas de condies comuns a um vasto nmero de directivas p a r a os tribunais aplicarem sanes ou punirem certos tipos de conduta. Estamos perante uma interessante e formidvel teoria, que se prope desvendar a verdadeira e uniforme natureza do direito, latente sob u m a variedade de formas e expresses comuns que a obscurecem. Antes de observarmos os seus defeitos, deve notar-se que, nesta forma extrema, a teoria envolve uma deslocao da concepo original do direito enquanto ordens baseadas em ameaas de sano que devem ser aplicadas quando as ordens so desobedecidas. Em vez disso, a concepo central agora a de ordens a funcionrios para aplicarem sanes. Deste ponto de vista, no necessrio que u m a sano esteja prescrita para a violao de cada lei; to s necessrio que toda a lei genuna dirija a aplicao de u m a qualquer sano. Assim pode dar-se o caso de que um funcionrio que no c u m p r a tais directivas no seja passvel de punio, e, realmente, o que sucede em muitos sistemas jurdicos. Esta teoria geral pode, como referimos, tomar uma de duas formas, sendo uma menos extrema do que a outra. Na forma menos extrema, a concepo original do direito (que muitos consideram intuitivamente mais aceitvel) como ordens baseadas em ameaas dirigidas, entre outros, aos cidados comuns preservada, pelo menos, para as regras que, do ponto de vista do senso comum, se referem em primeiro lugar conduta dos cidados comuns e no apenas de funcionrios. As regras de direito criminal, nesta perspectiva mais moderada, so leis em si mesmas e no necessitam de q u a l q u e r reformulao como fragmentos de outras regras completas. O mesmo no se passa j, porm, noutros casos. As regras que conferem poderes jurdicos aos particulares so aqui, como na teoria mais extrema, meros fragmentos das verdadeiras leis completas, p o r q u e so j ordens baseadas em ameaas. Estas ltimas devero ser identificadas pela interrogao: quais as pessoas a quem a lei ordena que faam coisas, sujeitas a um castigo se no obedecerem? Q u a n d o se sabe isto, as disposies de regras tais como as da Lei dos Testamentos de 1837, em relao s testemunhas, e outras regras que conferem poderes aos indivduos e definem as condies para o

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seu vlido exerccio, podem ser reformuladas como especificao de a l g u m a s das condies a que obedece, em ltima anlise, a criao de u m tal dever jurdico. Aparecem ento como parte do antecedente ou clusula condicionante das ordens condicionais baseadas em a m e a a s ou regras que impem deveres. Se e s se um testamento tiver sido assinado pelo testador e testemunhado por duas testem u n h a s no modo especificado e se... ento o executor testamentrio (ou o u t r o representante legal) dar cumprimento s disposies do testamento. As regras relativas celebrao do contrato surgiro, de m o d o semelhante, como simples fragmentos de regras que ordenam a certas pessoas, se determinados factos sucederem ou forem ditas ou feitas certas coisas (se a parte maior, se se vinculou por documento autntico ou se estipulou a consideration), que estas faam as coisas que, pelo contrato, devem ser feitas. A reformulao das regras que conferem poderes legislativos (incluindo as disposies de u m a constituio quanto ao supremo rgo legislativo), de modo a represent-las como fragmentos das verdadeiras regras, pode ser realizada em linhas semelhantes s explicadas atrs na pgina 45 no caso da verso mais extrema desta teoria. A nica diferena reside em que, na verso mais moderada, as regras que conferem poderes so representadas pelos antecedentes ou clusulas condicionantes das regras que ordenam aos cidados comuns, sob ameaa de sanes, que faam coisas e no simplesmente (como na teoria mais extrema) como as clusulas condicionantes das directivas aos funcionrios para aplicarem sanes. Qualquer das verses desta teoria procura reduzir variedades a p a r e n t e m e n t e distintas de regras jurdicas a uma nica forma que, alegadamente, portadora da quintessncia do direito. Ambas, de modos diversos, fazem da sano um elemento de importncia central e a m b a s falharo, se for demonstrado que uma lei sem sanes perfeitamente concebvel. Esta objeco geral deve, porm, ser deixada para mais tarde. A crtica especfica das duas formas da teoria que vamos desenvolver aqui de que elas compram a uniform i d a d e agradvel do padro a que reduzem toda a lei por um preo d e m a s i a d o alto: o de distorcerem as diversas funes sociais que os distintos tipos de regra jurdica cumprem. Tal verdadeiro em q u a l q u e r das formas da teoria, mas mais evidente na reformulao do direito criminal exigida pela teoria na sua forma mais extrema.A distorso como preo da uniformidade

A distorso operada por esta reformulao merece ser considerada, porque ilumina muitos aspectos diferentes do direito. H

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m u i t a s tcnicas de controlo da sociedade, mas a tcnica caracterstica do direito criminal consiste em designar, atravs de regras, certos tipos de c o m p o r t a m e n t o como padres para orientao do conjunto dos m e m b r o s da sociedade ou de grupos especiais dentro desta; -lhes solicitado que, sem a ajuda ou interveno de funcionrios, c o m p r e e n d a m as regras, percebam que lhes so aplicveis e com elas se c o n f o r m e m . S quando a lei violada e falha esta funo primria d a lei, compete aos funcionrios identificar o facto da violao e i m p o r as sanes previstas. O trao distintivo desta tcnica, compar a d a com as ordens dirigidas individualmente por um funcionrio a algum, como sejam as de u m polcia de trnsito a um condutor, reside em que os membros da sociedade devem descobrir as regras e p a u t a r o seu comportamento por elas; neste sentido, aplicam eles prprios as regras a si mesmos, embora lhes seja fornecido um m o t i v o p a r a obedecerem, com a sano acrescentada regra. Claram e n t e escamotearemos o modo caracterstico em que tais regras o p e r a m , se nos concentrarmos nas regras que exigem aos tribunais a imposio de sanes em caso de desobedincia, ou as transformarmos e m regras primrias; porque estas ltimas tomam precaues quanto violao ou fracasso do propsito primrio do sistema. Tais regras p o d e m na verdade ser indispensveis, mas so subsidirias. A idia de que as regras substantivas do direito criminal tm c o m o funo (e, em sentido lato, como significado) a orientao no s dos funcionrios que administram um sistema de penas, mas t a m b m dos cidados comuns nas actividades da vida no oficial, n o pode ser eliminada, sem que se alijem distines fundamentais e se obscurea o especfico carcter do direito como um meio de controlo social. O castigo de um crime, como seja uma multa, no o m e s m o que u m imposto sobre u m a actividade, ainda que ambos envolvam directivas a funcionrios para infligir idntica perda de dinheiro. O que diferencia estas idias, que a primeira envolve, ao c o n t r r i o da segunda, um delito ou u m a falta de cumprimento de um dever sob a forma de violao de u m a regra estabelecida para o r i e n t a r a conduta dos cidados comuns. verdade que uma tal distino geralmente ntida pode, em certas circunstncias, surgir ofuscada. H impostos que podem ser criados sem objectivos de receita, m a s p a r a desencorajar as actividades sobre as quais incidem, e m b o r a a lei no d qualquer indicao expressa de que estas devam ser a b a n d o n a d a s , como o caso das que torna criminosas. Inversam e n t e , as m u l t a s exigidas por qualquer delito podem, em virtude da depreciao do dinheiro, tornar-se to diminutas, que sejam pagas de boa vontade. So ento talvez tomadas como simples impostos e os

A DIVERSIDADE DAS LEIS

it

delitos so freqentes, precisamente porque nestas circunstncias se p e r d e u a noo de que a regra , tal como na maior parte do direito c r i m i n a l , p a r a ser levada a srio, enquanto padro de comportamento,,

Argumenta-se por vezes em favor de teorias, como a que est em discusso, no sentido de que, reformulando a regra em termos de u m a directiva p a r a aplicar sanes, se obtm um progresso em clareza, p o r q u e esta forma torna simples tudo aquilo que o homem m a u q u e r saber acerca do direito. Tal pode ser verdade, mas no deixa de parecer u m a defesa inadequada da teoria. Por que razo no dever o direito preocupar-se tanto ou mais com o homem confuso ou com o homem ignorante que est disposto a fazer o que lhe exigido, desde que lhe digam o que ? Ou com o homem que deseja resolver os seus assuntos desde que lhe digam como? evidentem e n t e m u i t o importante, se quisermos compreender o direito, ver c o m o os tribunais o administram, q u a n d o chegam aplicao das suas sanes. Mas tal no deve levar-nos a supor que tudo o que h p a r a compreender o que sucede nos tribunais. As funes principais d o direito como meio de controlo social no podem ser apreendidas nos litgios privados ou nos processos penais, que representam disposies vitais, mas mesmo assim subsidirias, para as falhas do s i s t e m a . Devem ser vistas nos diversos modos como o direito usado p a r a controlar, orientar e planear a vida fora dos tribunais. Podemos c o m p a r a r a inverso do secundrio e do principal, o p e r a d a por esta forma extrema da teoria, com a seguinte sugesto p a r a r e f o r m u l a r as regras de um jogo: Um teorizador, considerando as r e g r a s do crquete ou do basebol, poder proclamar que tinha descoberto u m a uniformidade escondida pela terminologia das regras e pela pretenso convencional de que umas se dirigiam p r i m a r i a m e n t e aos jogadores, outras sobretudo aos funcionrios ( r b i t r o e m a r c a d o r n ) e outras ainda a ambos. Todas as regras, p o d e r i a a r g u m e n t a r o terico, so na realidade regras que ordenam aos funcionrios que faam certas coisas em certas condies. As r e g r a s q u e dizem que certos movimentos depois de bater a bola c o n s t i t u e m u m a corrida ou que o jogador apanhado fica fora, so na realidade directivas complexas para os funcionrios; num caso ao m a r c a d o r p a r a m a r c a r uma corrida no livro de marcao e, no outro, a o r b i t r o p a r a fazer sair de campo o jogador. A forma de p r o t e s t o n o r m a l reside em que a uniformidade imposta s regras(*) No jogo do crquete, alm de um rbitro (umpire) existe um marcador (scorer), pessoa q u e a p o n t a todas as corridas (runs), estando sujeito s directivas do rbitro.

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atravs desta transformao esconde os modos como elas operam, e a m a n e i r a como os jogadores as usam para orientar as actividades dirigidas para determinados propsitos, e assim obscurece a sua f u n o no empreendimento social de cooperao, embora competitivo, que o jogo. A forma menos extrema da teoria deixaria o direito criminal e todas as outras leis que impem deveres intocadas, visto que elas se c o n f o r m a m partida com o modelo simples de ordens coercivas. Mas reduziria todas as regras que conferem e definem o modo de exerccio de poderes jurdicos a esta forma nica. Fica exposta neste aspecto a crtica idntica da forma extrema da teoria. Se virmos qualquer regra simplesmente do ponto de vista das pessoas a quem so impostos deveres e reduzirmos todos os outros aspectos ao estatuto de condies mais ou menos elaboradas em que os deveres as vinculam, estaremos a tratar como algo de meramente secundrio elementos que so, pelo menos, to caractersticos do direito e to vlidos p a r a a sociedade como o dever. As regras que conferem poderes particulares, para serem compreendidas, ho-de ser vistas na perspectiva daqueles que os exercem. Surgem ento como um elemento adicional, introduzido pelo direito na vida social, acima do elemento de controlo coercivo. Isto assim, porque a titularidade de tais poderes jurdicos torna o cidado particular, que, a no existirem tais regras, no passaria de mero suporte de deveres, num legislador privado. Ele torna-se competente para determinar o curso da lei dentro da esfera dos seus contratos, trustsC), testamentos e outras estruturas de

(*) No se traduz a designao deste instituto caracterstico da equity inglesa. Trata-se de instituto prprio do direito ingls, sem correspondncia no direito privado dos ordenamentos do continente europeu, dominados pela tradio do direito romano. N u m a perspectiva comparatstica, vejam-se K. Zweigert e H. Ktz, An Introduction to Comparative Law. trad. inglesa, vol. I, 1977, pgs. 275-284. E um instituto caracterizado pela atribuio de bens a uma parte Co trustee) para benefcio de outra (cestui que trust). O trustee um titular segundo o direito, o beneficirio tem um mero equitable interest. Existe ainda o instituidor do trust, designado como settlor (trustor ou donor). Este instituto utilizado para diversas finalidades, no m b i t o do suprimento da incapacidade de menores, na instituio de entidades anlogas s nossas fundaes, para beneficiar herdeiros ou legatrios, etc. Na definio conhecida de Sir Arthur Underhill, um trust uma obrigao regida pela equity que impe a uma pessoa (que chamado o trustee) o dever de a d m i n i s t r a r a propriedade sobre a qual detm o controlo (que chamada a trust propertv) em benefcio de pessoas (que so chamadas beneficirios ou cestuis que trustent), das quais aquele pode ser uma delas, e qualquer delas pode exigir judicialmente a execuo da obrigao (Law of Trusts and Trustees, 12.a edio, 1970, pg. 3; citado com referncia anterior edio por Philip H. Pettit, Equity and the Law

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A DIVERSIDADE DAS LEIS

direitos e deveres que est capacitado a criar. Por que razo as regras q u e so utilizadas desta forma especial, e conferem to grandiosa e distintiva vantagem, no ho-de ser reconhecidas como distintas das q u e i m p e m deveres, cuja incidncia , alm do mais, determinada em p a r t e pelo exerccio de tais poderes? Estas regras que conferem poderes so concebidas, designadas e usadas na vida social de forma diferente das regras que impem deveres e so valorizadas por razes t a m b m diversas. Que melhor teste para a diferena de natureza entre elas poderia haver? A reduo das regras que conferem e definem poderes legislativos e judiciais a enunciados das condies sob as quais surgem deveres tem u m vcio obscurecedor semelhante na esfera pblica. Os q u e exercem estes poderes para ditar medidas e decises dotadas de a u t o r i d a d e usam aquelas regras n u m a forma de actividade guiada por u m propsito completamente diferente do cumprimento do dever, ou da submisso ao controlo coercivo. Representar tais regras como meros aspectos ou fragmentos das regras de dever , ainda mais do q u e na esfera privada, obscurecer as caractersticas distintivas do direito e das actividades possveis dentro da sua estrutura. Porque a i n t r o d u o na sociedade de regras de atribuio de competncia aos legisladores p a r a alterarem e acrescentarem as regras de dever, e aos juizes p a r a determinarem q u a n d o as regras de dever foram violadas, u m passo em frente to importante para a sociedade, quanto a inveno da roda. E no apenas constituiu um passo importante; c o m o defenderemos no captulo IV, pode mesmo ser considerada c o m o a passagem do mundo pr-jurdico ao mundo jurdico. 2. O mbito de aplicao

De todas as variedades de leis, so claramente as leis penais que se a p r o x i m a m mais estreitamente do modelo simples de ordens coercivas. Contudo, mesmo estas leis apresentam certas caractersticas, e x a m i n a d a s nesta seco, em relao s quais o modelo susceptvel de nos cegar, e que no compreenderemos enquanto no nos f u r t a r m o s sua influncia. A ordem baseada em ameaas essencialmente a expresso de um desejo de que outros faam ou se a b s t e n h a m de fazer certas coisas. Evidentemente que possvel a legislao tomar esta forma exclusivamente dirigida a outros. Um

of Trusts, 2 a edio, 1970, pg. 16. E s t e ltimo autor d conta que a definio primitiva acima transcrita aparece com um aditamento nas edies posteriores da obra, de forma a c o n t e m p l a r os charitable trusts).

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m o n a r c a absoluto exercendo o poder legislativo pode, em certos sistemas, ser sempre considerado fora do alcance das leis que faz; e at num sistema democrtico podem ser feitas leis que no se aplicam queles que as fazem, mas to-s a grupos especiais indicados na lei. Mas o mbito de aplicao de uma lei sempre u m a questo da sua interpretao. Poder ou no concluir-se da sua interpretao se exclui os que a fizeram e, evidentemente, h hoje m u i t a s leis que se fazem e que impem obrigaes jurdicas aos autores da lei. A legislao, diferentemente do simples ordenar a outros que faam coisas sob ameaas, pode perfeitamente ter tal fora auto-vinculativa. No existe nada de essencialmente dirigido a outros na legislao. Trata-se de um fenmeno jurdico apenas intrigante enquanto pensarmos, sob a influncia do modelo, que as leis so sempre emanao de um homem ou homens acima da lei p a r a outros a elas sujeitos. Esta imagem vertical ou de cima para baixo do direito, to atractiva na sua simplicidade, algo apenas possvel de conciliao com as realidades pelo artifcio de distinguir entre o legislador na sua qualidade oficial e na sua qualidade privada, como se de duas pessoas se tratasse. Actuando na primeira daquelas qualidades, ele faz e n t o a lei que impe obrigaes s outras pessoas, incluindo ele prprio na sua qualidade privada. No existe nada de criticvel nestas formas de expresso, mas a noo de qualidades diversas, como veremos no Captulo IV, s inteligvel em termos de regras de direito que conferem poderes, que no podem ser reduzidas a ordens coercivas. Entretanto, deve observar-se que este artifcio complicado , na realidade, perfeitamente desnecessrio; podemos explicar a q u a l i d a d e autovinculativa do acto legislativo sem ele. Porque dispomos, tanto na vida quotidiana como no direito, de algo que nos habilita a compreend-la muito melhor. E o funcionamento de uma promessar) que, de muitos pontos de vista, constitui um modelo bem melhor do que o das ordens coercivas para compreender muitas, e m b o r a nem todas, as facetas do direito. Assumir u m a promessa dizer algo que cria uma obrigao para o promitente; para que as palavras tenham este tipo de efeito, devem existir regras que assegurem que, se as palavras forem usadas pelas pessoas apropriadas nas ocasies apropriadas (isto , por pessoas ss que compreendem a sua posio e se acham livres de vrias espcies de presso), os que as usam ficaro obrigados a fazer as coisas que as

(*> No original ingls, promise.

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A D I V E R S I D A D E DAS

IFI . .S

p a l a v r a s designam. Assim, quando prometemos, fazemos uso de procedimentos especficos para mudar a nossa prpria situao moral, impondo-nos obrigaes e conferindo direitos a outros; na linguagem dos juristas, exercemos um poder, conferido por regras p a r a o fazer. claro que seria possvel, ainda que sem utilidade, distinguir duas pessoas dentro do promitente: uma que actua na q u a l i d a d e de criador de obrigaes e a outra na qualidade de pessoa obrigada; e conceber uma como ordenando outra que faa algo. E igualmente dispensvel este artifcio para compreender a fora autovinculativa da legislao. Porque a elaborao de uma lei, tal c o m o a assuno de u m a promessa, pressupe a existncia de certas regras que disciplinam o processo: as palavras ditas ou escritas pelas pessoas p a r a tal qualificadas por estas regras, e que seguem o proced i m e n t o nelas especificado, criam obrigaes para todos, dentro do m b i t o explcita ou implicitamente designado pelas palavras. Estas podem incluir os que tomam parte no processo legislativo. Sem dvida que, e apesar de haver esta analogia que explica o c a r c t e r autovinculativo da legislao, existem mttas diferenas e n t r e a assuno de promessas e a elaborao de leis. So muito mais complexas as regras que disciplinam esta ltima, estando delas ausente a natureza bilateral da promessa. No h geralmente quem se coloque na posio especial do promissrio, ou seja, daquele perante quem a promessa feita e que tem u m direito especial, se no mesmo nico, ao seu cumprimento. A este respeito certas formas de auto-imposio de obrigaes conhecidas no direito ingls, tais como aquela pela qual algum se declara trusteen de propriedade por conta de o u t r e m , oferecem uma analogia mais prxima d o aspecto autovinculativo da legislao. Porm, em geral, a criao de regras por via legislativa poder ser mais bem compreendida, se tivermos em consid e r a o tais modos privados de criao de obrigaes jurdicas particulares. O que se impe como corrector do modelo de ordens ou regras coercivas u m a nova concepo de legislao, como introduo ou modificao dos padres gerais de conduta, destinados a ser seguidos em geral pela sociedade. O legislador no necessariamente semelhante a q u m d ordens a outrem: algum que est, p o r definio, fora

r b a t e d o r (jogador que bate a bola com o basto, hal).

O CONCEITO

DF

niRFUO

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aceites o possam, referir-se geralmente a uma categoria ou seqncia de sucessivos legisladores futuros, assim como ao legislador presente, ou tornar provvel a obedincia aqueles. Portanto, o facto de se prestar obedincia habiiual a um legislador no fundamenta nem a a t i r m a o de que o seu sucessor tem direito a criar direito, nem a afirmao factual de que ser provavelmente obedecido. Nesta altura, porm, um aspecto importante deve ser assinalado, que desenvolveremos em captulo posterior. Constitui um dos pontos fortes da teoria de Austin. Para revelar as diferenas essenciais entre regras aceites e hbitos, considermos uma forma muito simples de sociedade. Antes de deixarmos este aspecto de soberania, devemos indagar ate que ponto a nossa explicao da aceitao de uma regra que confere autoridade para legislar pode ser transposta para um Estado moderno. Referindo-nos nossa sociedade simples, falmos como se a maioria das pessoas comuns no s obedecesse ao direito, mas compreendesse e aceitasse a regra que qualifica uma sucesso de legisladores para legislar. Numa sociedade simples, tal poder ocorrer; mas, num Estado moderno, seria absurdo pensar que o c o m u m da populao, por mais respeitador do direito que seja, tem u m a percepo clara das regras que especificam as qualificaes de u m corpo continuamente em mudana de pessoas com a faculdade de legislar. Falar das massas como aceitando estas regras, do mesmo modo que os membros de uma qualquer pequena tribo podem aceitar a regra que d autoridade aos seus sucessivos chefes, implicaria a t r i b u i r mente dos cidados comuns uma compreenso de questes constitucionais que podem no ter. Apenas exigiramos tal compreenso dos funcionrios ou peritos do sistema; aos tribunais, a q u e m cabe a responsabilidade de determinar o que o direito, e aos juristas que o cidado comum consulta, quando quer saber o que o direito. Estas diferenas entre uma simples sociedade tribal e um Estado moderno merecem ateno. Em que sentido devemos pensar ento sobre a continuidade da autoridade legislativa da Rainha no Parlamento, preservada atravs das mudanas de legisladores sucessivos, como fundada n u m a qualquer regra ou regras fundamentais geralm e n t e aceites? Obviamente, a aceitao geral neste caso um fenmeno complexo, em certo sentido dividida entre autoridades e cidados comuns, que contribuem para ela e, portanto, para a existncia de u m sistema jurdico, atravs de modos diversos. Dos funcionrios do sistema, pode dizer-se que reconhecem explicitam e n t e tais regras fundamentais que conferem a autoridade legislativa: os legisladores fazem-no quando elaboram leis, com observncia

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O SOBERANO

E O

SliROITO

d a s regras que lhes atribuem poder para praticar tais actos; os t r i b u n a i s q u a n d o identificam como leis a serem por eles aplicadas as leis criadas por aqueles daquele modo qualificados, e os peritos q u a n d o orientam os cidados comuns relativamente s leis feitas do referido modo. O cidado comum manifesta a sua aceitao em larga m e d i d a pela aquiescncia quanto aos resultados destes actos oficiais. Acata a lei feita e identificada deste modo, apresenta pretenses e exerce t a m b m poderes conferidos por ela. Mas pode ignorar quase t u d o acerca da sua origem e dos seus autores: alguns podem no s a b e r nada acerca das leis para alm de que so o direito. Probe coisas que os cidados comuns querem fazer e estes sabem que p o d e m ser presos por um polcia e condenados a priso por um juiz, se desobedecerem. a fora da doutrina, que insiste em que a obedincia habitual a ordens baseadas em ameaas constitui o fundam e n t o de um sistema jurdico, que nos obriga a pensar em termos realistas este aspecto relativamente passivo do fenmeno complexo q u e designamos por existncia de um sistema jurdico. A fraqueza da d o u t r i n a consiste em obscurecer ou distorcer o outro aspecto relativ a m e n t e activo que discernido primeiramente, ainda que no exclusivamente, nos actos de criao, identificao e aplicao do direito pelos funcionrios ou peritos do sistema. Ambos os aspectos devem ser tidos em conta para que possamos ver este complexo fenmeno social, tal qual na realidade.

2.

A Persistncia do Direito

Em 1944, u m a mulher foi processada em Inglaterra e condenada por ler a sina, em violao da Lei sobre Bruxaria{'] de 1735'. Trata-se apenas de um exemplo pitoresco de fenmeno jurdico bem familiar: u m a lei promulgada ha sculos pode continuar a ser direito a i n d a hoje. Contudo, por familiar que seja, a persistncia de leis nesta f o r m a e algo que no pode tornar-se inteligvel nos termos do e s q u e m a simples que as concebe como ordens dadas por uma pessoa h a b i t u a l m e n t e obedecida. De facto, temos aqui a situao inversa dol Caso R Vs. Dwu an (1944) 1 K. B 713 (**). i'i Witchcraft Act. cm ingls. I**I K.B e a abreviatura usada para indicar uma das divises da Htgh Court of Justice, tribunal central com sede em Londres, precisamente o Kings Bench (designado c o m o Quee>i\ Rench. Q.B., quando uma rainha ocupa o trono). Publica-se uma colectnea dos casos julgados por este tribunal, a qual faz parte da 2 a Srie dos Law Rcports E a que se refere na nota acima.

O CONCF.ITO DE

DIREITO

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p r o b l e m a da continuidade da autoridade criadora do direito que a c a b m o s de considerar. A a questo era como se poderia dizer, na base do esquema simples dos hbitos de obedincia, que a primeira lei feita por um sucessor no cargo de legislador era j lei antes de ele pessoalmente ter recebido a obedincia habitual. Aqui a questo j_ como pode a lei criada por um legislador anterior, desaparecido h muito, ser ainda lei p a r a u m a sociedade de que no pode dizer-se que lhe obedea h a b i t u a l m e n t e ? Como no primeiro caso, nenhuma dificuldade se levanta para o esquema simples, desde que confinemos a nossa observao ao perodo de vida do legislador. Na realidade, parece m e s m o explicar admiravelmente por que razo a Lei sobre Bruxaria era direito na Inglaterra mas no o teria sido em Frana, mesmo que os seus termos abrangessem os cidados franceses que lessem a sina em Frana, embora evidentemente pudesse ser aplicado aos franceses que tivessem a infelicidade de serem levados perante os tribunais ingleses. A explicao simples seria que em Inglaterra havia u m hbito de obedincia queles que promulgaram esta lei, ao passo que em Frana no havia. Da que fosse direito em Inglaterra, m a s no o fosse em Frana. No podemos, todavia, limitar a nossa perspectiva das leis ao t e m p o de vida dos seus criadores, porque a caracterstica que temos de explicar justamente a persistente capacidade de sobreviverem aos seus criadores e queles que habitualmente lhes obedeciam. Por que ainda a Lei sobre Bruxaria direito para ns, se no era direito p a r a a Frana contempornea? Por certo, nenhuma extenso da linguagem poder levar a dizer que ns, os ingleses do sculo XX, obedecemos agora habitualmente ao Rei Jorge I I n e ao seu Parlamento. A este respeito, os ingleses de hoje so semelhantes aos franceses de ento: nem uns, nem outros obedecem ou obedeceram h a b i t u a l m e n t e ao criador desta lei. A Lei sobre Bruxaria poderia ser a nica lei que tivesse sobrevivido daquele reinado e, contudo, seria ainda direito na Inglaterra de hoje. A resposta ao problema de porqu direito ainda? , em princpio, a mesma do nosso problema anterior de porqu direito j? e envolve a substituio da noo d e m a s i a d o simples de hbitos de obedincia a uma pessoa soberana pela noo de regras fundamentais correntemente aceites, que especificam u m a categoria ou seqncia de pessoas, cuja palavra deve constituir u m padro de comportamento para a sociedade, isto , que(*' Monarca britnico e eleitor de Hanover, nascido em 1683 e que reinou na Gr-Bretanha e Irlanda entre 1727 e 1760.

78 O S O B E R A N O

E O SI B D I T O

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t e m o direito de legislar. Uma tal regra, embora deva existir n