tipologias habitacionais urbanas sustentáveis: o caso do conjunto

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1 TIPOLOGIAS HABITACIONAIS URBANAS SUSTENTÁVEIS: O CASO DO CONJUNTO HABITACIONAL DO INSTITUTO DE APOSENTADORIA E PENSÕES DOS COMERCIÁRIOS DE COELHO NETO, NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, BRASIL Sustainable Urban Housing Types: The Case of the Housing Settlement of the “Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários” of Coelho Neto, in the City of Rio de Janeiro, Brazil Mario Elian 1 , Angela Maria Gabriella Rossi 2 Arq. Mario Elian PEU/POLI/UFRJ Rio de Janeiro - Brasil Prof. Angela Rossi PEU/POLI/UFRJ Rio de Janeiro - Brasil 1 Arquiteto e Urbanista, Mestrando do Programa de Engenharia Urbana – PEU da Escola Politécnica – POLI da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Av. Athos da Silveira Ramos 149, Bloco D, Sala 101, Ilha do Fundão, 21941-909 Rio de Janeiro, RJ, Brasil, [email protected] 2 Arquiteta e Urbanista, Professora do Departamento de Expressão Gráfica e do Programa de Engenharia Urbana – PEU da Escola Politécnica – POLI da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Av. Athos da Silveira Ramos 149, Bloco D, Sala 101, Ilha do Fundão, 21941-909 Rio de Janeiro, RJ, Brasil, [email protected] Palavras-chave: Habitação de Interesse Social, Empreendimentos Habitacionais, Tipologias Habitacionais, Sustentabilidade Urbana Resumo Este artigo trata da promoção de moradia realizada pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs, órgão precursor da política habitacional brasileira, com destaque para o Conjunto Habitacional do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários de Coelho Neto – IAPC Coelho Neto, localizado no município do Rio de Janeiro, Brasil. O IAPC Coelho Neto foi inaugurado entre no ano de 1950 e implantado em uma área cercada de comunidades de baixa renda. O objetivo do presente trabalho é descrever as tipologias habitacionais desse Conjunto e demonstrar como as soluções adotadas na época foram um instrumento eficaz de inserção urbana e integração social, dois dos princípios da sustentabilidade urbana, conceito estudado na atualidade para recuperar critérios de qualidade ambiental que possam ser aplicados em novos empreendimentos habitacionais. No IAPC de Coelho Neto conviveram jovens de famílias de baixa renda e classe média baixa sem qualquer tipo de discriminação ou segregação entre os membros do grupo. As tipologias habitacionais adotadas eram constituídas por edifícios multifamiliares de quatro pavimentos com estabelecimentos comerciais no pavimento térreo, além de unidades

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TIPOLOGIAS HABITACIONAIS URBANAS SUSTENTÁVEIS: O CASO DO CONJUNTO HABITACIONAL DO INSTITUTO DE

APOSENTADORIA E PENSÕES DOS COMERCIÁRIOS DE COELHO NETO, NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, BRASIL

Sustainable Urban Housing Types: The Case of the Housing Settlement of the “Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários” of Coelho Neto, in the City of Rio de Janeiro, Brazil

Mario Elian 1, Angela Maria Gabriella Rossi 2

Arq. Mario Elian

PEU/POLI/UFRJ

Rio de Janeiro - Brasil

Prof. Angela Rossi

PEU/POLI/UFRJ

Rio de Janeiro - Brasil

1 Arquiteto e Urbanista, Mestrando do Programa de Engenharia Urbana – PEU da Escola Politécnica – POLI da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Av. Athos da Silveira Ramos 149, Bloco D, Sala 101, Ilha do Fundão,

21941-909 Rio de Janeiro, RJ, Brasil, [email protected]

2 Arquiteta e Urbanista, Professora do Departamento de Expressão Gráfica e do Programa de Engenharia Urbana – PEU da Escola Politécnica – POLI da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Av. Athos da Silveira Ramos 149, Bloco D,

Sala 101, Ilha do Fundão, 21941-909 Rio de Janeiro, RJ, Brasil, [email protected]

Palavras-chave: Habitação de Interesse Social, Empreendimentos Habitacionais, Tipologias Habitacionais, Sustentabilidade Urbana

Resumo

Este artigo trata da promoção de moradia realizada pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs, órgão precursor da política habitacional brasileira, com destaque para o Conjunto Habitacional do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários de Coelho Neto – IAPC Coelho Neto, localizado no município do Rio de Janeiro, Brasil. O IAPC Coelho Neto foi inaugurado entre no ano de 1950 e implantado em uma área cercada de comunidades de baixa renda.

O objetivo do presente trabalho é descrever as tipologias habitacionais desse Conjunto e demonstrar como as soluções adotadas na época foram um instrumento eficaz de inserção urbana e integração social, dois dos princípios da sustentabilidade urbana, conceito estudado na atualidade para recuperar critérios de qualidade ambiental que possam ser aplicados em novos empreendimentos habitacionais. No IAPC de Coelho Neto conviveram jovens de famílias de baixa renda e classe média baixa sem qualquer tipo de discriminação ou segregação entre os membros do grupo. As tipologias habitacionais adotadas eram constituídas por edifícios multifamiliares de quatro pavimentos com estabelecimentos comerciais no pavimento térreo, além de unidades

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unifamiliares de um único pavimento. Além das edificações residenciais, foram construídos equipamentos urbanos, a saber: um centro social, com quadra esportiva, salas de aula, salão de dança e biblioteca, uma escola secundária e uma praça no coração do Conjunto Habitacional, onde os jovens se encontravam diariamente. O Conjunto foi implantado ao lado da Favela de Acari e próximo à Favela Morro União, na época chamada Morro do Jorge Turco, comunidades com um número expressivo de habitantes de renda mais baixa. O Conjunto também se localizou próximo a outras comunidades menores como a do Furão e a da Cafua.

A metodologia utilizada para a realização deste estudo constitui-se primeiramente na construção de referencial teórico sobre sustentabilidade urbana relacionada a tipologias habitacionais para empreendimentos multifamiliares de maneira geral, e sobre os empreendimentos promovidos pelos IAPs em particular. Em seguida, realiza-se uma análise do Conjunto Habitacional do IAPC de Coelho Neto, baseada nos dados obtidos através de entrevistas abertas realizadas com antigos moradores do Conjunto, memória viva que se conseguiu resgatar de uma experiência considerada bem-sucedida do ponto de vista da sustentabilidade de espaços urbanos para baixa renda.

Este estudo pretende contribuir para demonstrar que a Habitação de Interesse Social não se constitui somente em produzir unidades habitacionais sem uma adequada inserção urbana e sem a promoção de uma coesão entre seus futuros moradores e destes com a vizinhança. Estes são princípios de sustentabilidade urbana importantes a serem perseguidos pelos diversos agentes da promoção habitacional. O exemplo bem sucedido do IAPC de Coelho Neto é uma referencia emblemática de implantação de um Conjunto Habitacional popular que proporcionou, a seus moradores, boas condições de qualidade de vida, esta traduzida como satisfação das necessidades básicas e superiores, saúde e segurança. Aos que decidem em nível de governo, o exemplo dos conjuntos habitacionais dos IAPs, e neste estudo o IAPC de Coelho Neto, poderá servir de orientação para promover melhores soluções arquitetônicas e urbanas para a Habitação de Interesse Social (HIS) no Brasil.

1. INTRODUÇÃO

A carência de moradias no Brasil se constitui em um dos grandes desafios sociais a serem enfrentados pela administração pública. Segundo a avaliação mais recente realizada pela Fundação João Pinheiro, publicada em 2008, apesar de sua diminuição em comparação com o ano anterior, o déficit habitacional brasileiro em 2008 era de 5.546.310 domicílios, dos quais 4.629.832, ou seja 83,5%, estavam localizados em áreas urbanas. Ainda mais grave é o fato de que 89, 6% do déficit atinge as famílias com renda mensal familiar de zero a mil e seiscentos reais [1].

O problema habitacional brasileiro tem origem na carência de políticas públicas voltadas à provisão habitacional para famílias de baixa renda, situação que vem se modificando a partir dos novos marcos legais e institucionais que vem sendo instituídos pelo governo federal, como a aprovação do Estatuto das Cidades, em 2001, a criação do Ministério das Cidades em 2003, a elaboração da Política Nacional de Habitação (PNH), em 2004 e seu posterior Plano Nacional da Habitação (PLANAB), além da criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e da criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). Através da implementação desses mecanismos legais, institucionais e financeiros, o governo federal lançou, em 2009, o “Programa Minha Casa Minha Vida”, com a meta de financiar dois milhões de moradias para famílias com renda mensal bruta de até cinco mil reais até o ano de 2014.

Embora seja um dos maiores programas de provisão habitacional da história das políticas públicas brasileiras e o primeiro a subsidiar a compra da moradia para a renda mais baixa da população, percebe-se, em vários empreendimentos já realizados, que ainda há muito que se avançar para oferecer produtos com melhor qualidade arquitetônica e urbana e mais sustentáveis na dimensão ambiental e social. As características principais dos novos empreendimentos habitacionais são a homogeneidade tipológica das edificações e uma morfologia urbana carente de princípios que favoreçam o sentido de vizinhança e de integração com o entorno. Essas características representam a repetição de erros feitos no passado que resultaram em espaços degradados e discriminados pelo restante da cidade.

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No entanto, houve um período na história da provisão habitacional brasileira em que se produziram empreendimentos com boa qualidade arquitetônica e boa inserção urbana, resultando em espaços que promoveram as relações sociais de vizinhança e desta com o entorno imediato. Tratam-se dos empreendimentos surgidos a partir dos Institutos de Aposentadorias e Pensões. Este trabalho tem por objetivo apresentar, analisar e discutir o caso do Conjunto Habitacional do IAPC de Coelho Neto, construído pelo Institutos de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários entre 1948 e 1950.

O tema do “desenvolvimento urbano sustentável” vem sendo amplamente discutido em várias áreas do conhecimento, com predominância dos estudos e discussões sobre a dimensão ambiental do desenvolvimento sustentável. No Brasil, assim como em outros países com semelhante evolução, a dimensão social representa talvez a frente mais importante a ser tratada no momento. Nesse âmbito, a questão habitacional exerce papel determinante na qualidade do espaço urbano que se está produzindo, uma vez que a necessidade de combater o grande déficit habitacional faz com que o solo brasileiro venha sendo ocupado de maneira pouco sustentável por vários empreendimentos habitacionais recentes. Dois critérios de sustentabilidade urbana, em sua dimensão social, necessitam ser tratados com mais atenção também na realização de empreendimentos para baixa renda: a tipologia habitacional adotada e a inserção do empreendimento em seu entorno imediato.

Assim como se procuram referências que possam inspirar inovações, busca-se, com este trabalho, recuperar uma experiência bem-sucedida e identificar suas principais características, de modo a poder repeti-las em novos empreendimentos habitacionais para baixa renda, contribuindo, dessa forma, para a produção de um ambiente construído brasileiro de melhor qualidade.

2. TIPOLOGIAS HABITACIONAIS E SUSTENTABILIDADE URBANA

O conceito de “tipologia” utilizado neste trabalho baseia-se nos estudos realizados por Aldo Rossi em seu clássico livro “A Arquitetura da Cidade”, publicado em 1964. Segundo o autor, “um tipo serve como base, segundo a qual os projetos podem ser concebidos, os quais, no final, não são de forma alguma um igual ao outro” [2].

A definição de tipologias permite a criação de alguns critérios que servem para justificar a escolha arquitetônica e sua respectiva adoção no ambiente urbano. Independente da tecnologia empregada, a tipologia confere ao espaço a sua função. Apesar de não ser possível estabelecer uma definição única de padrões, pois a habitação varia de acordo com a sociedade, cultura, modos de vida, condições econômicas e tecnológicas existentes, ainda assim é possível identificar idéias e experiências que possam servir de base para um modelo geral [3].

As tipologias habitacionais podem ser descritas em três escalas: a tipologia da unidade habitacional, a tipologia da edificação e a tipologia urbana. Entende-se por tipologia da unidade a distribuição dos cômodos na planta baixa, enquanto a tipologia da edificação é definida por sua geometria, pela quantidade de unidades habitacionais e como as mesmas são agrupadas e acessadas em cada pavimento, no caso da edificação ser multifamiliar [4]. A tipologia urbana, por sua vez, estabelece a implantação da edificação ou do conjunto de edificações em um terreno e sua relação com o sistema viário local, assim como com o sistema de espaços verdes e de uso coletivo.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a opção pela adoção de uma ou outra tipologia vem obedecendo, no Brasil, não somente a um desenvolvimento histórico da arquitetura habitacional, inspirado e muitas vezes replicado de modelos europeus, como também às legislações urbanas e edilícias que foram sendo alteradas ao longo do tempo. De maneira geral, as tipologias habitacionais adotadas no Brasil para a habitação de interesse social promovida com apoio governamental vão desde as vilas operárias construídas no início do Século XX, passando pelos conjuntos habitacionais construídos pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs em meados do mesmo século, seguidos por aqueles promovidos pelo Banco Nacional da Habitação – BNH de 1964 a 1984, chegando àqueles financiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009 pelo governo federal.

A tipologia adotada para as vilas operárias, a exemplo dos bairros operários ingleses, constituiu-se de casas geminadas, e são consideradas, em sua maioria, modelos representativos da boa qualidade urbana e

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arquitetônica. A mesma avaliação é feita em relação aos modelos produzidos pelos IAPs, cuja tipologia já obedece ao modelo modernista de edificações multifamiliares com espaços coletivos no mesmo terreno. As tipologias adotadas pelo BNH, no entanto, constituiram-se de edificações multifamiliares homogêneas, replicadas pelo território nacional, sem considerar as peculiaridades de cada local. A utilização dessa tipologia, que resultou em espaços degradados posteriormente, tinha sua justificativa na grande escassez de moradia e na necessidade do barateamento de custos através da replicação de um mesmo modelo em larga escala. Em sua fase inicial, os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida repetiram esse mesmo modelo, contribuindo para a produção de espaços urbanos com baixa qualidade.

Atualmente, vários estudos e iniciativas práticas vem sendo desenvolvidas a partir do conceito do desenvolvimento sustentável aplicado ao planejamento e projeto urbanos, sob a denominação conhecida como “sustentabilidade urbana”.

O referencial teórico para definir o conceito e identificar os critérios a serem perseguidos para planejar e intervir em uma área urbana é amplo e diversificado e sua origem remonta à Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Nesse evento, o conceito de “desenvolvimento sustentável” passou a ser introduzido no planejamento urbano, através da utilização de um documento denominado Agenda 21. Dois anos depois, em 1994, foi elaborada a Carta Européia para as Cidades Sustentáveis, como resultado da Conferência Européia realizada em Aalborg, na Dinamarca [5].

Na esfera prática, é importante destacar o papel dos empreendimentos habitacionais experimentais em escala de bairro realizados a partir dos anos de 1980, com o propósito de testar medidas para redução de consumo e poluição de energia, água e solo, aliadas a medidas de barateamento de custos de projeto, execução, operação, uso e manutenção, além de medidas relacionadas à melhoria da qualidade de vida, como inserção urbana e integração social. Essas experiências têm sido conhecidas como “bairros sustentáveis” e têm sua origem na Alemanha, Áustria e Holanda, tendo sido posteriomente desenvolvidos principalmente em outros países europeus e norte-americanos. O legado desses empreendimentos tem sido a consolidação dos critérios de sustentabilidade urbana, que, embora semelhantes, têm sido agrupados e nomeados de forma heterogêna por diversos métodos de avaliação ambiental que conferem certificação [6].

Os principais critérios relacionados às tipologias habitacionais mais sustentáveis devem incluir: a) mistura de funções urbanas em uma mesma comunidade; b) mescla social; c) variedade de tipologias arquitetônica; d) variedade de espaços públicos; e) variedade de áreas verdes. A mistura de funções, principalmente entre as funções residencias, comerciais e de lazer, favorece a integração social. A mescla de diferentes classes de renda, desde que não extremas, propicia um ambiente urbano no qual vários grupos sociais podem se beneficiar da convivência e da troca cultural. A variedade das tipologias arquitetônicas adotadas na concepção das edificações, assim como de sua implantação no terreno, propicia espaços heterogêneos e com identidade própria, o que provoca o sentimento de pertencimento de seus moradores [7].

3. OS INSTITUTOS DE APOSENTADORIAS E PENSÕES NA HISTÓRIA DA POLÍTICA HABITACIONAL BRASILEIRA E O IAPC DE COELHO NETO

Na história da provisão habitacional de interesse social no Brasil, os Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs eram Instituições de Previdência Social que concediam crédito imobiliário aos trabalhadores a eles filiados que reuniam, na década de 1940, institutos previdenciários de comerciários (IAPC), bancários (IAPB), industriários (IAPI), transportes e cargas, estiva e outras caixas de aposentadorias e pensões. Vale salientar que até a criação do Banco Nacional da Habitação, em 1964, não havia, no Brasil, um sistema financeiro habitacional [8].

A concepção técnica dos conjuntos habitacionais produzidos pelos IAPs foram o resultado de diretrizes formuladas por funcionários do Conselho Nacional do Trabalho, órgão do então Ministério do Trabalho, responsável pela normatização, fiscalização e aprovação de procedimentos dos IAPs. Essas diretrizes seguiram os princípios do modernismo, ou seja, uma tipologia da unidade habitacional e da edificação que privilegiasse a função e eliminasse qualquer decoração sem utilidade, utilizando materiais construtivos padronizados. Essas

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tipologias, inovadoras para a época, influenciaram fortemente a produção arquitetônica brasileira, pela ligação que se estabeleceu entre uma inteira geração de arquitetos locais com o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, expoente do modernismo e que esteve no Rio de Janeiro expondo suas idéias a respeito da cidade. As soluções deveriam obedecer às seguintes diretrizes: a) conjuntos habitacionais isolados do traçado urbano existente, construídos em um mesmo terreno; b) construção em blocos padronizados, de modo a favorecer a pré-fabricação e construção em série; c) limitação de altura dos blocos em quatro pavimentos, desprovidos de elevador; d) pilotis, a fim de recuperar área construída e a utlização do espaço para uso comum de recreação [9].

O IAPC de Coelho Neto, objeto deste estudo, localiza-se na zona norte do município do Rio de Janeiro. Embora sua concepção não tenha obedecido estritamente a todas as diretrizes definidas pelo Conselho Nacional do Trabalho, possuía, em sua tipologia urbana, características que contribuíram para uma forte integração social entre seus moradores e entre os moradores da vizinhança, de classes de renda diversificadas.

As tipologias das edificações adotadas constituíram-se de 400 casas térreas, inauguradas em 1948, e de 11 edifícios multifamiliares de 4 pavimentos, inaugurados em 1950. Os edifícios multifamiliares eram geminados e possuíam 14 unidades habitacionais e dois espaços comerciais no térreo, configurando, dessa forma, um edifício com uso misto. A tipologia da unidade habitacional, tanto das casas térreas quanto dos edifícios unifamiliares, era composta de uma sala e três quartos. A Figura 1 ilustra a tipologia adotada nas casas térreas [10].

Figura 1: Tipologias das casas térreas do IAPC Coelho Neto

A tipologia urbana, por sua vez, além das casas unifamiliares e dos edifícios multifamliares, contava com um Centro Social, uma escola pública secundária, uma praça e uma igreja. O Centro Social era denominado, por seus moradores, “serviço social”, e era composto por uma biblioteca, um salão destinado a festas e reuniões e por outros cômodos menores destinados a salas de aula que promoviam atividades culturais e de formação, que ocorreram ininterruptamente de 1950 a 1970, enquanto a promoção dessas atividades esteve sob a gestão dos IAPCs. A praça era considerada o coração do Conjunto Habitacional, onde os jovens se encontravam todos diariamente. O Conjunto foi implantado fazendo limites com a Favela de Acari e próximo à Favela Morro União, na época chamada Morro do Jorge Turco, com um numero expressivo de habitantes. No entorno ainda havia comunidades carentes de menor população, como a do Furão e a da Cafua. Em uma época em que a violência urbana e o tráfico de drogas ainda eram incipientes, os moradores do IAPC e das comunidades citadas interagiam no mesmo espaço do IAPC.

Na frente dos edifícios multifamiliares havia grandes áreas gramadas e arborizadas, que criavam um parque contínuo em toda a extensão do terreno, utilizado pelas crianças e seus pais, que podiam desfrutar de momentos de lazer protegidos pelas sombras das árvores. Esse cuidado contribuía também para a composição

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da paisagem, e os moradores dos edifícios, ao olhar de cima das janelas dos quartos e das varandas dos apartamentos, podiam usufruir de uma visão agradável. Na parte posterior dos edifícios, havia uma grande área calçada, utilizada como ponto de encontro de jovens e crianças para brincadeiras e jogos de futebol.

As unidades residenciais térreas não possuíam qualquer tipo de cercamento ou vedação entre as generosas áreas gramadas localizadas em frente às edificações, formando um cinturão verde contínuo no perímetro dos quarteirões, conforme mostra o desenho da Figura 2, elaborado pelo primeiro autor deste artigo, antigo morador do Conjunto em estudo.

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Centro Social Praça projetada Igreja Quarteirões com casas térreas Cinturão verde de grama Blocos de apartamentos Favela de Acari Via férrea Rodovia Cinema Bairro de Coelho Neto Viaduto da Av. das Bandeiras (atual Avenida Brasil) Área verde predominantemente arbustiva Olaria Escola primária

Figura 2: Implantação do IAPC Coelho Neto

Em frente à praça projetada, que possuía uma concha acústica e uma grande área gramada, foi erguida uma igreja e o edifício do Centro Social, já descrito. Esse local representava o coração de todo o Conjunto Habitacional. O sistema viário do conjunto foi projetado como uma continuação do traçado viário original do bairro de Coelho Neto, o que permitiu uma integração harmônica e fluida entre a nova implantação e o contexto urbano existente.

4. INFORMAÇÕES E DADOS LEVANTADOS A PARTIR DOS DEPOIMENTOS DE ANTIGOS MORADORES DO IAPC COELHO NETO

Nenhum elemento gráfico, relativo ao projeto arquitetônico e ao projeto urbanístico do Conjunto Habitacional do IAPC de Coelho Neto, foi encontrado em pesquisa na Internet ou nos acervos físicos e virtuais do Instituto Nacional de Previdência Social, que unificou e absorveu os IAPs em 1966, no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro ou na Biblioteca Nacional.

Todavia, embora não se conheça a existência de informações gráficas ou escritos que possam evidenciar as características do IAPC de Coelho Neto, este estudo serviu-se de depoimentos de moradores que testemunharam a melhor fase desse espaço urbano, ou seja, antes que a especulação imobiliária e a fragilidade do controle do uso do solo permitissem a degradação urbana da área, que repercutiu sobre o próprio Conjunto Habitacional em questão, como ocorreu em vários outros pontos da cidade, independente da concepção técnica adotada.

Se por um lado não se obtiveram informações gráficas e escritas, por outro lado houve a oportunidade de obter dados a partir de três antigos moradores do IAPC de Coelho Neto, com os quais se realizaram entrevistas abertas: Luciana C., assistente social, Paulo N., empresário e Nádia N., dona-de-casa.

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Luciana C., que morou no bairro de Coelho Neto e frequentou o IAPC Coelho Neto dos dois aos vinte e três anos, afirmou que, apesar de ter sido concebido como um conjunto habitacional, o IAPC possuía serviços urbanos que lhe conferiam o significado de bairro, o que tornava o próprio bairro de Coelho Neto atípico em relação aos outros bairros da vizinhança. Segundo Luciana, o que tornava o Conjunto Habitacional um bairro era a riqueza de relações sociais promovidas tanto pela gestão do IAPC como pela tipologia habitacional adotada:

Coelho Neto foi muito atípico em relação aos outros bairros. Ele tinha o IAPC. Tudo se referenciava ao IAPC: o baile, as festas, o jardim de infância. Todo mundo estudava no IAPC. Era um bairro que tinha história, prendia as pessoas. Ali era como se você tivesse tudo em volta: a cidade, o ginásio, o jardim de infância, o Serviço Social. Era uma comunidade. Você tinha todos os serviços ali. Você tinha o cinema. Era uma referência você ter um cinema em um bairro longe como era Coelho Neto. As pessoas de outros bairros não tinham essa experiência de ir ao cinema como a gente tinha ali. Tinham os bailes do Serviço Social onde toda garotada ia. Eram os bailes do Ginásio que fazia parte do conjunto. Você não tinha muito que sair, você encontrava tudo ali. Você tinha toda sua vivência ali. Isso era o que eu achava mais interessante. Tudo que você precisava numa cidade, você tinha ali, ao alcance, naquele projeto. Era um projeto muito completo. Era uma coisa que fazia parte das pessoas. Outros bairros de passagem não tinham isso. Você não ficava tão preso ao bairro. No IAPC Coelho Neto você tinha tudo junto ali. Isso fazia com que todo mundo se conhecesse. Outros bairros próximos, como Irajá, Colégio, não tinham vida de bairro. O Conjunto do IAPC permitiu isso, vida de bairro.

Paulo N. também considera que os anos vividos no Conjunto Habitacional do IAPC em Coelho Neto foram muito significativos para sua formação pessoal e ressaltou a integração social que havia no local:

Foi muito importante para minha vida ter sido criado naquela situação, ser morador de um conjunto residencial onde havia uma integração muito grande entre os moradores: adultos, jovens e crianças. Todos se conheciam, se respeitavam e se amavam, porque participavam da mesma Escola e do mesmo Centro Social. Esse Centro Social foi a razão da minha vida, porque nós dançávamos, praticávamos todas as modalidades de esportes juntos. Naquela época, havia também uma integração muito grande entre os IAPs: o IAPI da Penha, o IAPC de Del Castilho. Havia campeonatos esportivos entre os IAPs. Nenhum deles era como o IAPC de Coelho Neto. Tudo era muito limpo, as ruas, as calçadas, tudo gramadinho. No Serviço Social era ensinado canto, turma que eu fazia parte, piano, acordeom, balé, trabalhos manuais e uma carpintaria onde fazíamos arte com madeira e no final do ano fazíamos uma exposição onde vendíamos nossos trabalhos e ganhávamos um dinheirinho. Havia também um aviário no Serviço Social, com galinhas poedeiras, que nós tomávamos conta. Havia diversas salas, e no centro a quadra de esportes, onde se faziam as festas de São João com fogueira. No Serviço Social eu aprendi tudo: vôlei, basquete, futsal. Além da parte musical ensinavam ping-pong, corte e costura e culinária. Todos os fins de semana tinham atividades sociais. Quando garoto fui muito feliz. Não tinha nada para reclamar. Ouve um comentário na ONU que dizia que o Conjunto do IAPC de Coelho Neto era uma referência para o mundo, onde se realizava a integração entre as pessoas num lugar muito limpo e muito tranquilo.

Nádia N. morou no bairro de Coelho Neto, frequentou o Ginásio instalado no Conjunto Habitacional e explica o significado da existência do Conjunto Habitacional do IAPC no bairro de Coelho Neto e em sua vida:

Foi a partir do Ginásio de Coelho Neto. Foi lá que conheci meu marido, que morava no Conjunto. Antes de namorar o Paulo, eu já tinha saído do Ginásio. Eu frequentava todos os bailes no salão do Serviço Social. Namoramos, nos casamos, e somos felizes até hoje, com nossos filhos e nossos netos.

Os depoimentos obtidos através das entrevistas permitem identificar aspectos referentes à tipologia habitacional do Conjunto, cuja adoção contribuiu para a promoção da qualidade da vida cotidiana de seus moradores. Esses aspectos tipológicos, adotados na década de 1950, podem ser considerados como a comprovação da validade de alguns critérios de sustentabilidade urbana presentes nos estudos atuais e definidos no item 2 deste estudo.

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A partir dos dados obtidos, pode-se afirmar que a concepção técnica do Conjunto Habitacional do IAPC de Coelho Neto contemplou principalmente dois dos critérios de sustentabilidade urbana relacionados às tipologias habitacionais: o critério da mistura de funções em uma mesma comunidade e o critério da variedade de espaços públicos.

Quanto ao primeiro, ao definir edifícios com uso misto (residencial e comercial), além de um edifício destinado a um centro social, um edifício destinado a uma biblioteca e outro a uma escola, o Conjunto Habitacional proporcionou aos moradores os equipamentos sociais urbanos necessários para a realização de um grupo de atividades da vida cotidiana que são fundamentais para a realização humana em seus aspectos sociais e culturais.

Quanto ao segundo critério, ao se decidir pela implantação de uma quadra de esportes e de uma praça no coração do conjunto, estabelecem-se alguns dos fundamentos para a integração entre os moradores do conjunto e destes com a vizinhança.

A adoção desses critérios dentro do Conjunto Habitacional do IAPC fez deste um bairro, uma centralidade mais importante que o próprio bairro de Coelho Neto, conforme pode ser observado pelos depoimentos dos entrevistados.

Atualmente o Conjunto Habitacional encontra-se desfigurado, devido à ocupação urbana desordenada, a um planejamento urbano incipiente e a políticas públicas ineficazes de um passado ainda próximo. Essa realidade demonstra que não é suficiente a adoção de critérios de sustentabilidade urbana somente em uma unidade de território se esses não forem aplicados nas outras escalas territoriais, de forma integrada.

Mesmo assim, a experiência do IAPC de Coelho Neto demonstra que os critérios de sustentabilidade urbana relacionados às tipologias habitacionais devem ser contemplados em novos empreendimentos habitacionais de interesse social. É fundamental desenvolver estudos voltados a esse tema, considerando a realidade cultural do local e da população a ser atendida e dos novos modos de morar.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Conjunto Habitacional do IAPC de Coelho Neto no Rio de Janeiro comprova que uma tipologia habitacional adequada pode facilitar o atendimento de necessidades básicas e superiores daqueles que serão seus habitantes.

O Centro Social em particular, uma edificação com um pátio interno onde se situava uma quadra esportiva de uso múltiplo, foi o núcleo principal de integração e desenvolvimento da comunidade. Alí, por intermédio de um programa arquitetônico extremamente feliz, jovens e adultos faziam sua iniciação nas práticas esportivas, na literatura, na música, no canto, nas artes manuais e culinárias. Num salão de festas, onde semanalmente haviam bailes organizados pela Escola que ocupava uma das alas da edifícação, toda a comunidade se encontrava e se conhecia. Um cinema com preços populares e exibição de filmes de qualidade permitia que um grande contingente de moradores tivesse algum acesso à cultura.

Uma rua e uma via férrea eram, na época, a única separação entre o Conjunto Habitacional do IAPC e a Favela de Acari. Gradualmente a integração entre crianças e jovens das duas comunidades foi ocorrendo, que com o passar do tempo cresciam e conviviam sem que houvesse entre eles segregação. Culturas e linguagens, nessa interação, se mesclavam e se enriqueciam.

O primeiro autor deste artigo viveu no Conjunto habitacional do IAPC de Coelho Neto dos 10 aos 30 anos, entre os anos de 1950 e 1970, sendo portanto, testemunha da veracidade dos depoimentos obtidos nas entrevistas.

Os atuais gestores das políticas públicas para habitação de baixa renda no Brasil podem voltar seus olhares às experiências bem sucedidas dos IAPs como um todo e em particular ao Conjunto Habitacional do IAPC de Coelho Neto, como um dos exemplos a serem seguidos para o incremento qualitativo de novas concepções de empreendimentos habitacionais. Para reforçar os estudos sobre sustentabilidade urbana, o IAPC de Coelho

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Neto é mais uma experiência bem-sucedida a ser colocado no banco de boas práticas dos pesquisadores sobre o tema e dos profissionais de planejamento e projeto ligados ao setor imobiliário.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Fundação João Pinheiro – Déficit Habitacional no Brasil 2008. Brasília, 2008.

[2] Rossi, A. – A Arquitetura da Cidade. 1st Ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998, 309 p.

[3] Rossi, A.M.G. – Novos Conceitos em Tipologia e Tecnologia na Construção Habitacional com Apoio Governamental:

Uma Comparação entre Brasil e Alemanha. Tese de Doutorado. Programa de Engenharia de Produção, COPPE/UFRJ. Rio de Janeiro, 1999, 310 p.

[4] Schneider, F. (ed.) – Atlas de Plantas. Viviendas/Habitação. 3st Ed. Barcelona: Gustavo Gili, 2006, 311 p.

[5] Agência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos – Planning Sustainable Cities. Global Report on Human Settlements 2009. London: Earthscan, 2009, 307 p.

[6] Allemand, S. – Sous la Ville Durable. Le Génie Urbain. Paris: Le Carnet de l’Info – EIVP, 2009, 325 p.

[7] Rossi, A.M.G.; Barbosa, G.S.; Aragão, T. – Sustainable Neighborhoods and Social Housing Urban Projects: A

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[8] Ribeiro, L.C. de Q. – Dos Cortiços aos Condomínios Fechados. As Formas de Produção da Moradia na Cidade do

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[9] Bonduki, N. – Origens da Habitação Social no Brasil: Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difusão da Casa

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[10] Prefeitura do Distrito Federal. Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro, julho de 1947 e abril/junho de 1954.