todorov, tzvetan - o espírito das luzes

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> O çi O a O f--< Z -< f--< > N f--< Tzvetan Todorov "D epois da morte de Deus e do de moronamento sobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa vida comum? Para nos comportarmos como seres responsáveis, precisamos de um plano conceitual que possa fundam entar não somen te nossos dis cursos, o que é ficil, mas também nossos atos. Em busca desse plano, fui atraído para uma corrente de pensa- m en to e de sensibilidade, Du rante os três quartos de século que preced em 1789 produ- ziu-se uma grande reviravolta que, mais do que qualquer outra, é responsável por nossa present ei den tidade." o i O espírito das Luzes v TODOROV I SBN 978 -85 -98233 -31 -4 I II I 9 7.8 8 5 9 8 233314 « -I -I o e:::: « u e:::: « co ----.J- BARCAROL LA

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Page 1: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

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Tzvetan Todorov

"Depois da morte de Deus e do de moronamentosobre qual base intelectual e moral queremos construir nossa

vida comum? Para no s comportarm os como seres responsáveis,precisamos de um plano conceitual que possa fundamentar não

somente nossos discursos, o que é ficil, mas também nossos atos.Em busca desse plan o, fui atraído para uma corrente de pensa­

m ento e de sensibilidade,

Duran te os três quartos de século que precedem 1789 produ ­ziu-se uma grande reviravolta qu e, mais do que qualquer outra,

é responsável por nossa presente identidade."

o

i O espírito das Luzesv

TODOROVI SBN 978 -85 -98233 -31 -4

I II I9 7.8 8 5 9 8 233314

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BARCAROLLA

Page 2: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

Copyright © 2006 Éditions Robert Laffont/Susanna Lca Associares

REVISÃO Roberto Alves e Marfísia Lancelotti

C A PA Marcelo Girard

iMAGEM DA CAPA Marcelo Girard, s/titulo, 2006

FOTO Gian Spina

COMPOSiÇÃO IMG3

1Jados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SI', Brasil)

Todorov, TzvctanO espírito das Luzes / Tzvctan Todorov ;

tradução Mônica Cristina Corrêa. ~ São Paulo:Editora Barcarolla . 2()OH.

200S

Título original: L'esprit dcs Luruiêrcs.BibliografiaISBN 'J7H-H5-'!H2",,""31-4

índices para catálogo sistemático:t. Espírito das Luzes: Iluminismo ; Filosofia

1911

Todos os direitos reservados à

Editora Barcarolla Lrda.

Av" Pedroso de Moracs, (lJ 1/ 11"o andar

05419-000 Pinheiros Seio Paulo SI' Brasil

Telefone/fax (55 11) 3S 14-4('()O

www.editorabarcarolla.corn.br

1 O PROJETO 11

2 REJEIÇÕES E DESVIOS 31

3 AUTONOMIA 47

4 LAICIDADE 63

5 VERDADE 81

6 HUMANIDADE 101

7 UNIVERSALIDADE 115

8 As LUZES E A EUROPA 131

Aj?radecímentos 151

Notas 153

<:1 lJ) I'!o

1. Espírito das Luzes 2. f-ilosofia moderna

3. Iluminismo I. Título.

OH-041 H3

Page 3: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

DEPOIS DA MORTE D E DEUS e do desmoronam ento das

utopias, sobre qual base intelectual e moral queremos

co nstruir nossa vida co mum? Para nos co m po rtarmos

como seres responsáveis, precisamos de um plano conceituaI

qu e possa fundamentar não somente no ssos discur sos, o

que é facil, mas tamb ém nossos atos.Em busca desse plano,

fui atraído para uma corrente de pensamento e de sen­

sibilidade, a vertente humanista das Luzes. Durante os três

quartos de século que precedem 1789 produziu-se uma

grande reviravolta que, mai s do que qu alquer outra, é

responsável por nossa presente identidade. Pela pr imeira

vez na História, os seres humanos decidem tomar nas mãos

seu destino e colocar o bem-estar da humanidade como

obj etivo principal de seus atos. Esse movimento emana

9

Page 4: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E spi R IT O DA S L U Z E S

de toda a Europ a e não apenas de um país, exprime-se

através da filosofi a e da política, das ciências e das artes,

do romance e da autobiografia.

É claro que um simples retorno ao passado não é

nem possível nem desejável. O s aut ores do século XV III

não saberiam resolver os problemas surgidos desde então,

os quais, a cada dia, dilaceram o mundo. No entanto, com­

preender melhor essa mutação radical pode nos ajudar a

viver melhor hoje. Eu qu is, assim, sem desviar o olhar de

nossa época, destacar as grandes linhas do pensam ento das

Luzes, num vaivém constante entre passado e presente.

10

I 1 I o PROJETO

Page 5: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

T

o P R O JE T O

N ÃO É FÁCIL dizer em que consiste exatam ente o projeto

das Luzes e isso por du as razõ es. Primeiro, as Luzes são

um a época de conclusão, de recapitulação, de síntese - e

não de in ovação radi cal. As gran des idéias das Luzes

não têm origem no século XV IIl ; qu ando elas não vêm

da Antigüid ade, tr azem os traços da Idade M édia, do

R en ascimento e da época Cl ássica. As Luzes absorvem

e articulam opiniões que, no passado, estavam em conflito.

É por isso que os historiadores quase sempre observaram

qu e é preciso dissipar algumas imagens conven cion ais,

As Luzes são ao mesmo tempo racion alistas e empiristas,

herdeiras tanto de Descar tes como de Locke. Elas acolhem

os Antigos e os Modernos, os universalistas e os parti­

cularis tas; possuem um forte apreço por história e eter-

13

Page 6: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

nidade, detalhes e abstrações, natureza e arte, liberdade e

igualdade. Os ingredientes são antigos, no entanto sua

combinação é nova: eles foram não somente combina­

dos entre si,mas também - e isso é essencial- é no momen­

to das Luzes que essas idéias saem dos livros para passar

ao mundo real.

O segundo obstáculo consiste no fato de o pensa­

mento das Luzes ter sido conduzido por numerosos indi­

víduos que, longe de estarem de acordo entre si, estão

constantemente engajados em ásperas discussões, de país

a país e também em cada país. O tempo que decorreu

desde então nos ajuda a fazer a triagem, é verdade, mas

só até certo ponto: os desacordos de outrora fizeram

nascer escolas de pensamento que se enfrentam ainda em

nossos dias.As Luzes foram uma época mais de debate do

que de consenso; de assustadora multiplicidade, aliás.

No entanto, é certo que reconhecemos sem muita difi­

culdade a existência do que se pode chamar de projeto

das Luzes.

Três idéias se encontram na base desse projeto, as

quais nutrem também suas inumeráveis conseqüências:

a autonomia, a finalidade humana de nossos atos e, enfim,

a universalidade. O que se deve entender por isso?

O primeiro traço constitutivo do pensamento das

Luzes consiste em privilegiar o que escolhemos e deci­

dimos por nós mesmos em detrimento daquilo que nos

é imposto por uma autoridade externa. Essa preferência

comporta então duas facetas, uma crítica e outra, cons-

14

1I

'\j

() PROJETO

trutiva: é preciso subtrair-se a toda tutela imposta aos

homens de fora e deixar-se guiar pelas leis, normas e regras

desejadas por aqueles a quem elas se dirigem. Emancipação

e autonomia são as palavras que designam os dois tempos,

igualmente indispensáveis, de um mesmo processo. Para

poder engajar-se nele, é preciso dispor da inteira liber­

dade de examinar, de questionar, de criticar, de colocar

em dúvida: nenhum dogma ou instrução pode mais ser

considerado sagrado. Uma conseqüência indireta, porém

decisiva, dessa escolha é a restrição que incide sobre o

caráter de qualquer autoridade. Esta deve estar de acordo

com os homens, isto é, ser natural e não sobrenatural. É

nesse sentido que as Luzes produzem um mundo "desen­

cantado", obedecendo de ponta a ponta às mesmas leis

tisicas,ou, no que diz respeito às sociedades humanas, reve­

lando os mesmos mecanismos de comportamento.

A tutela sob a qual viviam os homens antes das Luzes

era, em primeiríssimo lugar, de natureza religiosa; sua ori­

gem era então ao mesmo tempo anterior à sociedade pre­

sente (fala-se nesse caso de "heteronomia") e sobrenatu­

ral. É à religião que se dirigirá a maior parte das críticas,

visando tornar possível que a humanidade tome nas mãos

seu próprio destino.Trata-se, todavia, de uma crítica foca­

da: o que se rejeita é a submissão da sociedade ou do

indivíduo a preceitos cuja única legitimidade advém daqui­

lo que uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais;

não é mais a autoridade do passado que deve orientar a

vida dos homens, mas seu projeto para o futuro. Ainda

15

Page 7: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E S P Í R I T O DA S LU ZES

assim, nada se diz da própria exp eriência religiosa, nem

da idéia de trans cendência, nem de tal doutrina moral

sustentada por uma religião em particular; a crítica visa

à estrutura da sociedade, não ao conteúdo das crenças. A

religião sai do Estado sem, no entanto, abandonar o indiví­

duo. A grande corrente das Luzes não pleiteia o ateísmo,

mas a religião natural, o deísmo, ou uma de suas nume­

rosas variantes. A ob servação e a descrição das crenças

do mundo inteiro, às quais se consagram os homens das

Luzes, não têm por objetivo recusar as religiões, mas con­

duzir a uma atitude de tolerância e à defesa da liberdade

de consciência.

Tendo rejeitado o antigo jugo, os homen s fixarão

suas novas leis e normas com a ajuda de m eios pura­

mente humanos - já não há lugar, aqui, para a magia nem

para a revelação. À certeza da Luz descida do alto substi­

ruir-se- à a pluralidade de luze s que se difundem de pes­

soa para pessoa.A primeira autonomia conquistada é a do

conhecimento. Este parte do princípio de qu e nenhuma

autoridade, por mais bem estabelecida e prestigiosa que

seja, está livre de crítica. O conhecimento só tem duas

fontes, a razão e a experiência, e ambas são acessíveis a

todos.A razão é valorizada como ferramenta de conheci­

mento, não como motor das condutas humanas; opõe-se

à fé, não às paixões. Estas, por sua vez, são ema ncipadas

das imposições externas.

A liberação do conhecim ento abre a via real ao desa­

brochar da ciência.Todos queriam então se colocar sob

16

\

O PR OJ ETO

a proteção de um personagem que não fosse um filósofo,

mas um sábio: Newton tem, no século das Luzes, um papel

comparável ao de Darwin nos séculos seguintes.A tisica

obtém progressos espetaculares, seguida pelas outras ciên­

cias: química, biologia e até sociologia ou psicologia. Os

promotores desse novo pensamento queriam levar luze s

a todos,pois estavam convencidos de que serviriam ao bem

de todos: o conhecimento é libertador, eis o postulado.

Favorecerão assim a educação em todas as suas formas,

desde a escola até as academias, e a difusão do saber, por

publicações especializadas ou por enciclopédias dirigidas

ao grande público.

O princípio de autonomia revoluciona tanto a vida

do indivíduo qu anto a das sociedades. O combate pela

liberdade de consciência, qu e deixa a cada um a escolh a

de sua religiã o, não é novo, mas deve ser perpetuamente

recomeçado ; ele se prolonga numa demanda de liberdade

de opinião, de expressão, de publicação . Aceitar que o

ser humano seja fonte de sua lei é também aceitá-lo por

inteiro, tal como é, e não tal como deveria ser. Ora, ele

é corpo e espírito, paixões e razão, sensualidade e medi­

tação. Por menos que observemos os homens reais em vez

de no s atermos a uma imagem abstrata e idealizada , per­

cebemos que eles são, também, infinitamente diversos, o

que se constata ao passar-se de um país a outro, mas

também de uma pessoa a outra. É o qu e saberão dizer,

melhor do que toda literatura erudita, os novos gêneros

que põem o indivíduo no centro de sua atenção: romance

17

Page 8: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Es p í R I T O D A S L U Z E S

de um lado, autobiografia de outro. Gêneros que não

aspiram mais a revelar as leis eternas das condutas humanas ,

nem o caráter exemplar de cada gesto, mas que mostram

homens e mulheres singulares, envolvidos em situações

particulares. É o que diz também a pintura, que se desvia

dos grandes temas mitológicos e religiosos para mostrar

seres humanos nada excepcionais, apreendidos em suas

atividades comuns, em seus gestos mais cotidianos.

A autonom ia do indivíduo se perpetua no con­

texto de sua vida e de suas ob ras. Leva à descob erta do

mei o natural, feito de florestas e de torrentes, de clareiras

e de colinas que não foram submetidas a exigências geo­

métricas ou práticas. Paralelamente, concede um lugar

novo aos artistas e a suas práticas. Pintores e mú sicos,

atores e escritores não mais são simples animadores ou

decoradores, tampouco os servido res de D eu s, do rei

ou de um me stre, mas tornaram-se a enca rnação exem­

plar de uma atividade apreciada: o artista cr iado r é qu em

decide por si suas próprias composições e as destina a um

prazer puramente humano. Essas duas atribuições de valor

atestam a nova dignidade con cedida ao mundo sensível.

A exigência de auto no mia transforma ainda mais

profundamente as sociedades polít icas; prol on ga e cum­

pre a separaçã o do temporal e do espiritual. N o século

das Luzes, ela produz uma prim ei ra forma de ação: os

autores de pesqui sas livremente conduzidas se esforçavam

para co municar seus resultados aos soberanos benevo­

lentes, para que estes inflectissem sua política. Isso é o que

lR

o P R OJET O

se espera de Frederico II em Berlim, de Catarin a II em

São Petersburgo ou de Jo sef II em Viena. Para além desse

despotismo esclarecido - que cultiva a autonomia da razão

no monarca, mas preserva a submissão do povo - essa exi­

gêncía leva a dois princípios. O primeiro é o da soberania,

princípio já antigo que recebe aqui um novo conteúdo:

a fonte de todo poder está no povo, e nada é super ior à

vontade geral. O segundo é o da liberdade do indivídu o

em relação a tod o poder estatal, legítimo ou ilegítimo,

nos limites de uma esfera que lhe é própria; para assegurar

essa liberdade, vela-se pelo pluralismo e pelo equilíbrio

dos diferentes poderes. Em todos os casos está consumada

a separação do teológico e do político; este se organiza desde

então em fun ção de seus próprios cri térios.

Todos os seto res da sociedade tendem a se tornar

laicos, ainda qu e os indivídu os permaneçam crentes. Esse

programa concerne não some nte ao poder políti co, mas

também à justiça: o delito, dano causado à soc iedade, é

o único a ser reprimido, e deve ser diferen ciado do peca­

do, falta moral para com uma tradição. Também a escola,

destina-se a ser subtraída ao poder eclesiást ico para se

tornar um lugar de propagação das Luzes, abe rta a tod os,

portanto gratuita, e ao m esmo tempo obr igatór ia para

todos. E assim a imprensa periódica, qu e passa a ser o

lugar do debate públi co.Também a econo mia deve ser

liberada das obrigações arbitrárias e permitir a livre cir­

culação dos bens; deve fundar-se sobre o valor do tra­

balh o e do esforço individual, em vez de encher-se de

1')

Page 9: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Es p íR ITO DA S L U ZES

privilégios e de hierarquias vindos do passado. O lugar

mais apropriado para todas essas mutações é a cidade gran­

de, que favorece a liberdade do s indivíduos e lhes dá ao

mesmo tempo a oportunidade de se en contrar e debater

em comum .

A vontade do indivíduo, como a das comunidades,

ema ncipou-se das antigas tutelas; isso quer dizer qu e ela

agora é inteiramente livre, que não conhece mais nenhum

limite? Não : o espír ito das Luzes não se reduz unica­

mente à exigência de auto no mia, mas traz também seus

próprios meios de regulação. O primeiro diz respeito à

finalidade das ações humanas permitidas. Esta desce à terra:

não visa mais a Deus, mas aos homens. Nesse sentido, o

pensamento das Luzes é um humanismo ou, se preferir­

mos, um antropocentrismo. N ão é mais necessário, como

pedi am os te ólogos, estar sem pre pronto a sacrifica r o

amor das criaturas ao do C riador; é possível co ntentar­

se com amar outros seres humanos. Seja o qu e for a vida

no além , o homem deve dar um sentido à sua existênc ia

terrena. A busca de felicidade substitui a da salvação . O

próprio Estado não se coloca a serv iço de um intento

divin o, seu objetivo é o bem- estar de seus cidadãos . Estes,

por sua vez, não dão prova de um egoísmo culpável quan­

do aspiram à felicidade no domínio que dep ende de sua

vontade, têm razão em embalar suas vidas particul ares,

procurar a intensidade dos sentim entos e do s prazeres,

cultivar afeição e amiz ade.

A segunda restrição imposta à livre ação tanto do s

20

o P RO J E T O

indivíduos como das comunidades consiste em afirmar

qu e todos os seres human os possuem, por sua própria

natureza humana, direitos inalienáveis.As Luzes absorvem

aqui a herança do pensamento do direito natural, tal como

formulada nos séculos XV II e XV III : ao lado dos direitos

de que os cidadãos gozam no âmbito de sua sociedade, eles

detêm outros, comuns a todos os habit antes do globo e,

portanto, a cada um; direitos não escritos, mas nem po r

isso menos im perativos.Todo ser humano tem direito à

vida; então a pena de morte é ilegítima, me smo quando

atinge um criminoso qu e matou: se o assassinato privado

é um crime, como o assassinato público deixaria de sê-lo?

Todo ser humano tem direito à integridade de seu corpo;

então a tortura é ilegítima, mesmo quando é praticada em

nome da razão de Estado. O pertencimento ao gêne ro

humano, à humanidade universal, é mais fundamental

ainda que o pertencim ento a determinada soc iedade. O

exercício da liberdade está contido então na exigência de

uni versalidade e o sagrado, que deixou os dogmas e as

relíquias, encarna-se doravante nesses "direitos do homem"

recém- reconhecidos .

Se todos os seres humanos po ssuem um co nj unto de

direitos idênticos, decorre qu e sejam iguais em direito: a

demanda de igualdade decorre da uni versalidade. Ela per­

mite empreender co mbates que continuam em nossos

dias: as mulheres devem ser iguais aos homen s perante a

lei; a escravidão abo lida, a alienação da liberdade de um

ser humano não pode j am ais ser legítima; os pobres, os

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Page 10: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E s p íR I TO DA S L U Z E S

excluídos, os marginais, reconhecidos em sua dignidade,

e as cri anças, consideradas como indivíduos.

Essa afirmação da universalidade humana gera o inte­

resse por sociedades diferentes daquela em que se nasceu .

Os viajantes e os sábios não conseguem , do dia para a

noite, deixar de julgar os povo s longínquos a partir de cri­

térios provindos de suas próprias culturas;no entanto, sua

curiosidade é despertada, eles se to rnam con scientes da

multiplicidade de formas qu e a civilização pode assumir

e começam a acumular informações e análises qu e, com

o tempo, transformam-lhes a idéia de humanidade.Assim

é para a pluralidade no tempo: o passado deixa de ser a

encarnação de um ideal eterno ou um simples repertório

de exemplos para se torn ar uma sucessão de épocas his­

tóricas, cada uma co m sua coerê ncia e seus pr óprios

valores. O conhecim ento de sociedades diferentes daqu e­

la do obse rvador lhe permite ao mesmo tempo consi­

derar a si me smo com um olhar menos ingênuo: ele não

confunde mais sua tr adição co m a ordem natural do

mundo. É assim qu e o francês Montesquieu po de criti­

car os persas, mas tamb ém imagin ar os persas cri ticando

j udiciosamente os franceses.

Tal é, em linh as bem gerais,o generoso programa que

se formula no século das Luzes. Como devemos j ulgá- lo

hoj e, duzentos e cin qü en ta anos após seu surgimento?

Uma dupla constatação parece se impor. De um lado, na

Europ a e nas parte s do mundo influenciadas por ela, a

mentalidade das Luzes impôs incontestavelmente uma vit ó-

22

o P R O ) ET O

ria sobre o adversá r io qu e co mbatia. O co nhecimento

do universo progride livrem ente, sem se preocupar demais

com interdições ideológicas. Os indivíduos já não temem

tant o a autoridade da tradi ção e tentam gerar por si me s­

mos seu espaço privado, gozando ao m esmo tempo de

um a grande liberdade de expressão.A democracia, na qual

a soberania po pular é exercida pel o respei to das liber­

dades individuais, tornou-se um modelo querido ou dese­

j ado em todo lugar. O s direitos univer sais do homem

são co nside rados co mo um idea l co mum; a igu aldade

diante da lei é a regra em todo Estado legítimo. Preocu­

par-se com a felicidade pessoal ou com o bem-estar comum

é uma escolha de vida que não choca ninguém . Não qu e

os objetivos assim visados tenham sido atingi dos; mas o

ideal foi aceito e hoje ainda se critica a ordem existente

inspirando-se na mentalidade das Luzes. No entanto, por

ou tro lado, os benefícios esperados não estão tod os aí, as

pro messas formuladas outrora não for am cumpridas. O

século xx, em particular, qu e conheceu a carn ificina de

duas guerras mundiais, os regimes totalitários estabeleci­

dos na Europa e alhures, as conseqüências mortífe ras das

invenções técnicas, pareceu trazer um desmentido defi­

nitivo a todas as esperanças formuladas outro ra, a ponto

de termos deixado de reivindicar as Luzes, e as idéias

trazidas por palavras como humanismo, emancipação, pro­

gresso, razão, livre arbítrio, caíram em descrédito.

A distância permanente entre o que podia ser lido

como uma promessa e as realidades do mundo de hoj e

23

Page 11: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E spi R I T O D A S L U ZES

nos obriga a tirar uma primeira conclusão: toda leitura

rigidamente otimista da História pertence à ilusão. É ver­

dade, porém, que tal fé no progresso linear e ilimitado

do gênero humano pôde tentar alguns pensadores das

Luzes. Um de seus importantes precursores, o poeta inglês

Milton, lamenta que a humanidade, curvando-se aos dita­

mes da tradição, tenha ficado deliberadamente na infân­

cia, tal como um estudante que não ousa avançar sem as

instruções de seu professor. Ele formula a esperança que,

graças ao livre exercício da razão, ela atinja, enfim, a idade

adulta. Na França, Turgot, em seu discurso intitulado

Quadro filoséifico dos progressos sucessivos do espírito humano

(1750), declara :"Os costumes amainam, o espírito huma­

no se aclara, as nações isoladas se aproximam umas das

outras I...], a massa total do gênero humano [...] conti­

nua marchando, ainda qu e a passos lentos, rumo a uma

perfeição maior'" (é verdade que no momento em que

escreveu esta frase tinha vinte e três anos!) . Outros,

Voltaire, d' Alembert, seguirão, com mais ou menos pre­

cauções, essa mesma via. Lessing vai aderir à idéia do pro­

gresso em sua Educação do gênero humano (1780) . Condor­

cet, escrevendo seu testamento espiritual no fundo de seu

esconderijo, durante as perseguições perpetradas pelo

Terror (1793), vai lhe dar por título Esboço de um quadro

dos progressos do espírito humano,Todos esses autores crêem

que, apesar dos atrasos e lentidão, a humanidade poderá

atingir sua maioridade graças à difusão da cultura e do saber.

Essa visão da História como cumprimento de um objetivo

24

o PRO J E T O

será retomada e reforçada por Hegel, depois por Marx, e

passará, graças a este último, à doutrina comunista.

Erraríamos, entretanto, em atribuir essa crença ao

próprio pensamento das Luzes . Na realidade, a escolha de

Turgot ou de Lessing é questionável no próprio momen­

to em que é formulada .Vários outros autores, tais como

Hume ou Mendelssohn, não compartilham a fé numa

marcha mecânica rumo à perfeição, a qual não é, de resto,

senão uma transposição no espaço profano da doutrina

cristã ligada às vias da Providência; eles se recusam a ler

a História como o cumprimento de um objetivo. É o mais

profundo pensador da língua francesa nos tempos das

Luzes, Jean-Jacques Rousseau, que se oporá a essa con­

cepção de maneira frontal. Para ele, o traço distintivo da

espécie humana não é uma marcha para o progresso,

mas unicamente a perfectibilidade, isto é, uma capacidade

de se tornar melhor, bem como de melhorar o mundo,

mas cujos efeitos não são nem garantidos nem irreversí­

veis. Essa qualidade justifica todos os esforços, porém não

assegura nenhum sucesso.

Além disso, Rousseau crê que cada progresso é infa­

livelmente pago por uma regressão num outro domínio.

Seu Discurso sobre a origem da desioualdade (1755) é abun­

dante em fórmulas desse gênero. Os acasos"puderam aper­

feiçoar a razão humana deteriorando a espécie , tornar um

ser malvado ao torná-lo sociável". "Os progressos ulte­

riores representaram, aparentemente, tantos passos rumo

à perfeição do indivíduo quanto à decrepitude da espé -

25

Sergio Lucio
Realce
Page 12: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E s pí R IT O D A S L U Z E S

cie". A necessidade de se distinguir é responsável pelo

"que há de melhor e pior entre os homens, nossas vir­

tudes e nossos vícios". Rousseau não afirma, no entanto,

que a degradação é a única direção para a qual marcha

a humanidade, nem recomenda, como se crê às vezes, um

retorno. Chama a atenção precisamente para a solida­

riedade dos efeitos positivos e negativos. A razão desse

duplo movimento reside na própria condição humana. É

próprio do homem ser dotado de uma certa liberdade

que lhe permite trocar-se e trocar de mundo e é essa liber­

dade que o leva a fazer tanto o bem como o mal. É a per­

fectibilidade, em si mesma a responsável por suas gran­

des conquistas, que é também a fonte de seus infortúnios,

é ela que faz eclodir "suas luzes e seus erros, seus vícios

e virtudes". É próprio do homem tirar do olhar dos

outros o sentimento de sua existência, sem o qual não

consegue ficar; ora, essa necessidade se traduz tanto em

amor quanto em violência: os rapazes que aspergem gaso­

lina e ateiam fogo às moças que recusaram suas investi­

das agem unicamente por esse motivo. "O bem e o mal

jorram da mesma fonte'", conclui Rousseau.

Decorre que toda esperança num progresso linear

é vã. Os problemas ditos sociais não constituem dificul­

dades provisórias, tais que um partido político ou um

governo possa, graças a reformas engenhosas, resolver para

sempre, mas são conseqüências de nossa condição huma­

na. Podemos constatar hoje que Rousseau tinha razão e

que a aspiração à perfectibilidade não implica uma fé

26

o P R OJE T O

no progresso. Não somente os avanços tecnológicos e

científicos não trazem necessariamente uma melhora moral

e política, mas também esses avanços não têm nada de

linear e podem de repente se revelar nocivos. Empenhan­

do-se em transformar o mundo a fim de torná-lo mais

conforme às suas necessidades e desejos, nossa espécie

evoca sempre o personagem do aprendiz de feiticeiro. Os

agentes dessas transformações podem prever seus efeitos

imediatos, mas não suas últimas conseqüências, as quais

sobrevêm décadas, até séculos mais tarde. O exemplo da

fissão do átomo é conhecido por todos, mas é quase

simples demais: os sábios que chegaram a essa descober­

ta não podiam imaginar o horror de Hiroshima e de Naga­

saki, mas tiveram de imediato preocupação com o uso

que se faria de seus trabalhos. No entanto, deve o bió­

logo que está estabelecendo o código genético humano

cessar sua pesquisa porque há risco de amanhã abusa­

rem de seus resultados? Tudo a nossa volta, os motores

aperfeiçoados de nossos carros, produzem gases tóxicos

que contribuem para perturbar o clima do planeta, as

máquinas graças às quais nos desincumbimos de tarefas

penosas consomem cada vez mais energia, fabricando

desemprego... Toda conquista tem um preço.

O espírito das Luzes faz o elogio do conhecimen­

to que liberta os seres humanos das tutelas exteriores

opressoras. Mas ele não consiste em dizer que, estando

tudo determinado e portanto passível de conhecimento,

os humanos aprenderão a controlar integralmente o mundo

Sergio Lucio
Realce
Sergio Lucio
Realce
Sergio Lucio
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Page 13: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

() E S p i Il I T () !l AS L U / . E '

e a moldá-lo segundo seus desejos. A complexidade da

matér ia é tam anha qu e mesmo as hipóteses científicas

mais ambiciosas não deveriam nunca se destacar de uma

certa humildade. "A maioria dos efeitos chega por vias

tão singulares, e dependendo de razões tão imperceptí­

veis ou tão afastadas, que não se pode prev ê-los" - escre­

ve Montesquieu em seu Tratado do s deveres. Isso é ainda

mais verdadeiro no estudo da sociedade,pela simples razão

de que é essa a própria liberdade dos sere s humanos:

eles podem se opor a sua própria natureza e assim agir de

maneira imprevisível."O homem como ser fisico é, assim

como os outros corpos , governado por leis invariáveis.

Como ser inteli gente, ele viola sem parar as leis qu e Deus

estabeleceu e muda aquelas qu e ele pr óprio estabele­

ce' ". O co nheci mento das socie dades humanas dep ara-se

com a impossibilidade de prever e controlar todas as von­

tades; a vontade do indivíduo, po r sua vez, depara-se co m

sua incapacidade de conhecer as razões de seus próprios

atos. O qu e há de m ais importante na vida de um ser

humano do qu e a escolha de seu objeto de amor? Ora,

nem a vontade nem a ciência conseguem perscrutar até o

fim o segredo dessa escolha. Eis por que todo ut opismo,

seja ele político ou técnico, é fadado ao fracasso.

Se quisermos hoje en contrar um apoio no pensa­

m ento das Luzes para enfrentar nossas dificuldades pre­

sentes, não podemos acolhe r tod as as propostas formu­

ladas no século XVIII - não somente porque o mundo

mudou , mas tamb ém porque esse pensamento é múltiplo,

28

o P R OJ E T O

não uno. É antes de tudo de uma refundação das Luze s

que precisamos: preservar a herança do passado, mas sub­

metendo-o a um exame crítico , confrontando - o lucida­

ment e co m suas co nseqüênc ias desej áveis e indesejáveis .

Fazendo isso, não arr iscamos trair as Luzes; ao contrário:

a verdade é que as criticando, continuamos fiéis a elas, e

coloca mos em prática seu ensiname nto.

2')

Sergio Lucio
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Page 14: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

I 2 I REJEIÇÕES E DESVIOS

Page 15: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

REJEIÇÕES E DESVIOS

DESDE A ÉPOCA em que foi formulado, no século XVIII,

o pensamento das Luzes já foi objeto de numerosas crí­

ticas; foi até recusado em seu princípio. No próprio

momento em que suas idéias vieram a público, suscitaram

a condenação previsível daqueles que elas combatiam, a

saber, as autoridades eclesiásticas e civis. Essa reação redo­

bra em força no final do século, em conseqüência dos

acontecimentos políticos advindos naquele Ínterim. Uma

dupla equação se coloca: Luzes igual a Revolução, Revo­

lução igual aTerror; ela leva a uma condenação sem apelo

das Luzes. "A revolução começou pela declaração dos

direitos do homem", afirma Louis de Bonald", um de seus

adversários mais obstinados, é por isso mesmo que ela aca­

bou em sangue. O erro das Luzes teria sido o de colocar

33

Page 16: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

o homem no lugar de Deus como fonte de seus ideais,

a razão de que cada indivíduo queria se servir livremente

em vez das tradições coletivas, a igualdade em vez da hie­

rarquia, o culto da diversidade em vez da unidade.

A imagem que Bonald ou outros conservadores do

tempo da Restauração dão das Luzes é, em linhas gerais,

exata: é fato que esse pensamento valoriza o homem, a

liberdade ou a igualdade. O que nos diz respeito é um

conflito frontal, um desacordo fundamental sobre os prin­

cípios e os ideais da sociedade; é legítimo falar neste

caso de uma rejeição das Luzes. Mas freqüentemente a

situação é diferente. As críticas que lhe são dirigidas pare­

cem então passar ao largo do espírito das Luzes; ou, mais

precisamente, dirigir-se a uma de suas caricaturas. Ora,

essas caricaturas ou, para usar um termo ruais neutro, esses

desvios (no século XVIII dizia-se antes "corrupções") real­

mente existem. Também aí se pode remontar ao pró­

prio momento das primeiras formulações: as Luzes são

acusadas por alguns de exagerar, por outros, de pouco

fazer. Um Montesquieu estava bem consciente de que

os próprios princípios pelos quais se batia podiam se

tornar nefastos, estava alerta contra os excessos da razão

e os prejuízos da liberdade. Ele se comparava, por con­

seguinte, aos habitantes do segundo andar de uma casa,

que, dizia, "são incomodados pelo barulho de cima e pela

fumaça de baixo". Rousseau, por sua vez, sabia muito bem

que, assim que acabasse seu debate contra os devotos, seria

necessário engatilhar um outro contra "o materialismo

34

REJEIÇÕES E DESVIOS

moderno'". São esses desvios, e não as Luzes em si, que

se tornam muitas vezes objeto de rejeição.

Acabamos de observar o seguinte caso: está no espí­

rito das Luzes afirmar a perfectibilidade dos homens e

de suas sociedades. Esta idéia é rejeitada por aqueles

que pensam, ao contrário, que, em razão do pecado ori­

ginal, o ser humano se tornou irremediavelmente cor­

rompido. Mas a idéia pode também ser desviada de seu

sentido na afirmação de um progresso mecânico pró­

prio da história humana: ela está ali simplificada, cnr i­

jecida, e, simultaneamente, levada ao extremo. Quan­

do, num segundo momento, rejeita-se por sua vez a dou­

trina do progresso, acumulando exemplos que provam

o contrário, crê-se estar rejeitando as próprias Luzes; na

realidade, refutou-se um de seus adversários. O pensa­

mento das Luzes é um caminho com altos e baixos

ou, se preferirmos, uma peça que sempre se encenou

a três.

Uma das recriminações habituais que se dirigem âs

Luzes é que elas forneceram os fundamentos ideológicos

do colonialismo europeu do século XIX. O raciocínio l' o

seguinte: as Luzes afirmam a unidade do gênero humano,

portanto a universalidade dos valores. Os Estados euro­

peus, convencidos de serem portadores de valores supe­

riores, acreditaram-se autorizados a levar sua civilização

aos menos favorecidos do que eles; para assegurarem-se

do sucesso de sua empreitada, precisaram ocupar terri­

tórios que essas populações habitavam...

35

Page 17: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ES PÍR I TO DAS L UZ E S

Um olhar um pouco superficial sobre a história das

idéias poderia, com efeito, nos fazer crer que o pensamen­

to das Luzes preparou as futuras invasões. Condorcet

estava convencido de que uma nação civilizada tem uma

missão: a de levar a luz a todos. "N ão deveria a popula­

ção européia [...] civilizar ou fazer desaparecer , m esmo

sem co nquista, as na çõ es selva gens que ocupam ainda

vastas áreas'? " Condorcet sonha com a instauração de um

Estado universal homog éneo ao qual a interven ção dos

europeus poderia levar. É verdade também que uma cen­

tena de anos m ais tarde os ideólogos da colonização

francesa farão apelo a esse tipo de argumento para legi­

timá-la: assim como temos a obrigação de criar nossos

filhos , temos a de ajudar os povos ainda pouco desenvol­

vidos. "A colonização - esc reve, em 1874, um de seus

partidários, Paul Leroy-Beauli eu , economista e soc ió lo ­

go, professor no Collêg« de France - é, na ordem social,

o que, na ordem da família é, não digo a ge ração ape­

nas, mas a educação". É a respo sta a uma pergunta pre­

m ente, acresce nta ele alguns anos mais tarde (em 1891 ):

"Começava-se a perceber qu e cerca da metade do mundo,

em estado selvagem o u bárbaro , solicitava ação m et ódi­

ca e perseverante dos povos civilizados?". N ão é por acaso

que Jules Ferry, partidár io da educação gratuita e obri­

gatória na França, se torna, nesses mesmos anos, o grande

promotor das conquistas coloniais, na Indochina ou na

África do Norte. As raças superiores, tais como os fran­

ceses ou os ingleses, têm, diz ele, um dever de ingerên cia

36

RE J E I Ç () E S E DES VIOS

para co m os outros:" Elas têm o de ver de civilizar as raças

inferiores'?' .

No entanto, não é certo que se de va tomar esses

propósito s como m oeda corren te. O que eles provam é

que os ideais das Luzes gozam de um grande prestígi o e

qu e, quando nos lançam numa perigosa empresa, fazemos

questão de tê-los ao nosso lado. Os colonizad ores espa­

nhói s e portugueses do séc ulo XV I não agiam de ou tro

m odo quando, para justificar suas conquistas, invocavam

a necessidade de ex pandir a religião cristã. M as, quando

se viram obrigados a defender suas ações passo a passo,

deixaram rapidamente cair os argumentos humanitá­

rios. O marechal Bugeaud, conquistador da Argélia no

meio do século X IX, não estava tentando bancar o bon­

zinho quando se viu obriga do, diante da Câmara Francesa

dos D eputados, a assum ir os massacres co ntra argel inos.

" Eu preferiria sem pre os interesses franceses a uma absur­

da filantropia para co m estrangeiros qu e cortam a cabe­

ça de nossos soldados prisioneiros ou ferid os?" . Numa

intervenção diante da mesma Câm ara,Tocqueville, então

deputado, envereda pelo m esmo cam inho : eu não acho,

di z ele, que " o m érito dominante do senhor mare chal

13ugeaud sej a precisam ente o de ser um filantropo : lião,

eu não creio ni sso ; m as ac h o que o se nhor M ar echal

Bugeaud prestou , na terra da África, um grande serviço

a seu país lO" •

Quando Jules Ferry, por sua vez, vê-se acuado pelas

objeções de seus contraditares na Câmara, acu sand o-o de

37

Page 18: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

trair os princípios das Luzes, bate em retirada; tais argu­

mentos, afirma, "não são política nem história: isso é meta­

fisica políticaII". A política de colonização se camufla atrás

dos ideais das Luzes, mas ela é na realidade conduzida

em nome de um simples interesse nacional. Ora, o nacio­

nalismo não é um produto das Luzes; é, no melhor dos

casos, um desvio dele: o que não reconhece nenhum

limite imposto à soberania popular. Os movimentos anti­

colonialistas são, nesse sentido, muito rnais diretamente

inspirados pelos princípios das Luzes; principalmente

quando reivindicam a universalidade humana, a igualdade

entre os povos e a liberdade dos indivíduos. A coloniza­

ção européia dos séculos XIX e XX tem então essa carac­

terística surpreendente e potencialmente autodestrutiva:

arrasta em sua trilha as idéias das Luzes que inspirarão seus

mmllgos.

Outra recriminação particularmente grave ao espí­

rito das Luzes é a de ter produzido, ainda que involunta­

riamente, os totalitarismos do século xx, com seu cortejo

de extermínios, prisões, sofrimentos infligidos a milhões

de pessoas. O argumento se formula aqui mais ou menos

nesses termos: tendo rejeitado Deus, os homens escolhem

eles mesmos os critérios do bem e do mal. Embriagados

por sua capacidade de compreender o mundo, eles ten­

tam remodelá-lo para torná-lo conforme a seu ideal; assim

fazendo, não hesitam em eliminar ou reduzir à escravidão

porções importantes da população do globo. Essa crítica

às Luzes através das devastações dos totalitarismos foi

38

REJEiÇÕES E DESVIOS

conduzida especialmente por alguns autores cristãos que

pertenciam, no entanto, a diferentes Igrejas. Encontra-se

tanto num anglicano como o poeta T. S. Eliot, autor em

1939 de um ensaio intitulado A idéia de uma sociedade

cristã, quanto num ortodoxo russo como o dissidente

Alexandre Soljénitsyn, que a expõe no seu discurso de

Harvard em 1978, ou ainda nas obras do papa João Paulo

II (cito aqui seu último livro, terminado pouco antes de

sua morte: Memória e identidade).

Eliot, que escreveu no momento em que estourava

a Segunda Guerra mundial, e mais especificamente entre

a Alemanha e a Grã-Bretanha, procura mostrar que a única

verdadeira oposição ao totalitarismo viria de uma socie­

dade autenticamente cristã: não há outra solução. "Se vocês

não querem ter um Deus (e Ele é um Deus invejoso) será

preciso submeter-se a Hitler ou a Stalin?". Ora, a rejei­

ção de Deus é obra das Luzes, que permitiram fundar

Estados modernos sobre bases puramente humanas. A

recriminação se faz mais incisiva em Soljénitsyn: na ori­

gem do totalitarismo, diz este, "encontra-se a concepção

do mundo que domina no Ocidente, nascida do Renas­

cimento, moldada nos moldes políticos a partir da era das

Luzes, fundamento de todas as ciências do Estado e da

sociedade: poder-se-ia chamá-la 'humanismo racionalista',

que proclama e realiza a autonomia humana com relação

a qualquer força colocada acima dele. Ou ainda - e de

outro modo - 'antropocentrismo': idéia do homem como

centro do que existe." Mas se um conduz automatica-

3'J

Page 19: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o z s r í n r r o D A S L U ZE S

mente ao outro, não está na hora de mudar de ideal? "Agar­

rar-se hoje às fórmulas fixas da era das Luzes, conclui

Soljénitsyn, é mostrar-se retrógrado '?",

A genealogia esboçada porJoão Paulo II não é muito

diferente. As "ideologias do mal" em prática nos totali­

tarismos provêm da história do pensamento europeu:

do Renascimento, do cartesianismo, das Luzes. O erro

desse pensamento foi ter colocado a busca da felicidade

no lugar daquela da salvação. "O homem ficara só : só

como criador de sua própria hi stória e de sua própria

civilização;só como aquele que decide sobre o que é bom

e o qu e é ruim". Daí às câmaras de gás não há mais que

um passo: "S e o homem pode decidir por si mesmo,

sem D eus, sobre o qu e é bom ou ruim, ele pode tam­

bém resolver que um grupo de homens seja aniquilado".

O "drama das Luzes européias" é que elas rejeitaram o

Cristo; com isto "abriu-se a via para as experiências devas­

tadoras do mal que devia vir mais tarde 14" •

Em tal visão da História, escamoteia-se a diferença

entre Estados totalitários e Estados democráticos, pois

ambos encontram sua origem comum no pensamento das

Luzes. Para Eliot, essa diferença é de importância secu n­

dária , uns e outros participam do mesmo ateísm o, do

mesmo individualismo, do mesmo apreço pelos bens mate­

riai s. Segundo Soljénitsyn , são variantes de um m esmo

modelo: "No Leste, é a feira do Partido que piso teia nossa

vida interior, no Oeste, a feira do comércio: o que é assus­

tador, não é nem mesmo o fato do mundo desp edaçado ,

40

R E J EI Ç Õ E S E D E SV IOS

é que os principais pedaços sejam atingidos por uma doen­

ça análoga'?". A permissividade moral , característica das

soci edades ocidentais, parece a João Paulo II "uma outra

forma de totalitarismo, sorrateiramente escondida sob as

aparências da democracia". O marxismo totalitário e o

liberalismo ocidental são variantes mal distintas da mesma

ideologia, produto da aspiração exclusiva ao sucesso mate­

rial. E quando "um parlamento autoriza a interrupção de

gravidez, admitindo a supressão da criança a nascer '?" , ele

não age muito diferentemente desse outro parlamento

qu e deu plenos poderes a Hitler e abriu por aí uma via

à "solução final".

É preciso aqui fazer a triagem entre as diferentes

acusações dirigidas às Luzes. D eve-se , primeiro, como para

o colonialismo, destacar que uma id eologia prestigiosa

pode servir de camuflagem. O comunismo, diferentemen­

te do nazismo, efetivamente reivindicou essa gloriosa

herança; mas,observando-se a prática das sociedades comu­

nistas mais do que seus programas grandiloqüentes, pena­

mos em descobrir-lhe tais traços.A autonom ia do s indi­

víduos é neles reduzida a nada, o princípio da igualdade

é vilipendiado pela onipresença de hierarquias imutá­

veis no seio do poder, a busca de conhecimentos está sub­

metida a dogmas ideológicos (a genética e a teoria da rela­

tividade são doutrinas burguesas, a serem reprimidas), e o

" humanism o" do s manifestos é uma miragem: antes de

se consagrar à busca de sua felicidade pessoal, os indivíduos

são obr igados a se sacrificar no altar de uma longínqua

41

Page 20: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E s pi RIT O DAS L U Z E S

salvaçã o coletiva. O s valores materiais estão longe de

triunfar: o comunismo tem a maior dificuldade em pro­

duzir uma sociedade de abundância. N a realidade, é mais

ou menos uma religi ão política, o qu e é bem diferente

do espír ito das Luzes e da democracia.

Ao lado desse emprego puram ente decorativo das

Luz es, o comunismo introduziu outros, que se aparentam

antes a desvios; condená- los é, desta vez, bastante legíti­

mo, mas esse julgamento não é realmente dirigido con­

tra as Luzes.A exigência de autonomia per mitia subtrair

o conhecime nto da tutela da moral, a busca da verdade

dos imperativos do bem. Levada ao extrem o, essa exigên­

cia aumenta desmesuradamente seu ape tite: é agora o

conhec ime nto que pretende ditar os valores de um a socie­

dade. Tal cientificismo será efetivamente ut ilizado pelos

reg imes totalitários do século xx para j ustificar sua vio­

lên cia. Sob pretexto de qu e as leis da história, reveladas

pela ciênci a, anunciam a extinção da bu rguesia, o comu­

nismo não hesitará em exterminar os m embros dessa clas­

se. Sob pretexto de qu e as leis da biologia reveladas pela

ciênc ia demonstram a infer ioridade de certas "raças" , os

nazistas levarão à morte aqueles qu e identificam como

seus membros. N os Estados democráticos, tais vio lências

são inconceb íveis; mas não se invoca m enos autoridade

da ciência para legiti mar tal ou qu al escolha , co mo se

os valores de uma sociedade pudessem decorrer automa­

ticamente do conhe cim ento. O cientificismo é perigoso,

decerto; no enta nto não se pode deduzi-lo do espí ri to

42

R EJEI Ç ÓE S E DE SV I O S

das Luzes já qu e estas, acabamos de ver, recusam-se a crer

na tran sparên cia total do mundo diante do olh ar do sábio

e, ao m esmo tempo, a ver o ideal dec orrer da sim ples

observação do mundo (o que deve ser, do que é). Desvio

das Luzes, o cientificismo é seu inimigo, não seu avatar.

H á enfim algumas caracte rísticas do espí r ito das, ' ~

Luzes reveladas por Eliot, Soljénitsyn , João Paulo II ou

outros críticos, que correspondem efetivamente à sua iden­

tid ade: autonomia, antropocentr ismo, fundamento pura­

mente humano da política e da moral, a pre ferência por

argume ntos de razão em detrimento dos argume ntos de

autoridade. D esta vez, o obj eto da rejeição é bastante real;

mas essa rejeição ser ia, no entan to, fundada? João Paulo

II acusa a moral oriunda das Luzes de ser pu ram ente sub­

j etiva, de depender então unicamente da vo ntade, de ser

suscetível, de se dobrar às pressões dos detentores do poder,

à diferen ça da moral cristã, imutável porque funda da obje­

tivamente na palavra de Deus. Pode-se perguntar, todavia,

se essa últ ima objetividade é real, já qu e ninguém pod e

se prevalecer de um cantata di reto com Deu s e que os

homens são obr igados a se reportar a intermediári os. cre­

ditad os por instâncias puramente humanas, profetas e teó­

logos, que dizem conhecer a intenção divina.A or todoxia

de uma religiã o depe nd e de um gr upo de homens qu e

nos legou uma tradição. A moral das Luzes não é subje­

tiva, mas inte rsubje tiva: os pri ncípi os do bem e do mal

constitue m o obj eto de um cons enso, que é potencial­

mente aquele de toda a humanidade, e que se estabelece

43

Page 21: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

trocando-se argumentos racionais, também fundados numa

característica humana universal. A moral das Luzes decorre

não do amor egoísta por si mesmo, mas do respeito pela

humanidade.

Lamentemos ou não, a concepção da justiça própria

às Luzes é menos revolucionária do que sugerem suas crí­

ticas. A lei é, decerto, a expressão da vontade autónoma

do povo; mas essa vontade se encontra contida por limi­

tes. Fiel ao pensamento dos Antigos, Montesquieu declara

que a justiça é anterior e superior às leis. "A justiça não

é dependente das leis humanas - escreve no Tratado dos

deveres - ela é fundada na existência e na sociabilidade dos

seres racionais e não sobre as disposições ou vontades par­

ticulares desses seres". E no Espírito das leis: "Dizer que

não há nada de justo nem de injusto senão o que orde­

nam ou defendem as leis positivas, é dizer que antes que

fosse traçado o círculo, nem todos os raios eram iguais17".

As leis que perseguem os burgueses ou os cúlaques, na

Rússia, os judeus ou os ciganos, na Alemanha, contravêm

aos princípios de justiça. Os princípios não apenas cons­

tituem o objeto de um largo consenso (qualquer um hesi­

ta em admitir que é preciso exterminar uma parte da

população para favorecer uma outra), eles se encontram,

além disso, inscritos, na maioria dos países democráticos

na Constituição ou em seus preâmbulos. A vontade do

povo é autónoma, não é arbitrária. Rejeições e desvios

das Luzes não se confundem então entre si, e não se con­

vocam, para combatê-los, os mesmos argumentos. O que

44

REJEIÇÕES E DESVIOS

evolui é sua relativa importância: o adversário que se apóia

nas aquisições das Luzes era ontem menos ameaçador

do que aquele que os atacava de fora; é o contrário que é

verdadeiro hoje. No entanto, os dois perigos permane­

cem sempre presentes, e não é um acaso se estes que,

em nossos dias, atribuem-se o espírito das Luzes, se vejam

obrigados a se defender em dois flancos. É assim que uma

associação de defesa das mulheres escolheu definir-se por

uma dupla negação, "Nem putas nem submissas": sub­

meter as mulheres é uma rejeição das Luzes, reduzi-las

à prostituição é um desvio da liberdade que pedem. E

não é verdade que sejamos obrigados a abraçar uma das

vias se recusamos a outra: fica aberta também aquela da

autonomia, do humanismo, da universalidade.

Retomemos agora alguns desses debates para obser­

vá-los um pouco mais de perto.

45

Page 22: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

I 3 I AUTONOMIA

Page 23: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

AUTONOMIA

NO PONTO DE PARTIDA da revolução realizada pelo

pensamento das Luzes encontra-se um duplo movimento,

negativo e positivo, de liberação com relação às normas

impostas de fora e de construção das novas normas,

escolhidas por nós mesmos. O bom cidadão - escreve

Rousseau - é aquele que sabe "agir segundo as máxi­

mas de seu próprio julgamento". Num artigo coetâneo

da Encíclopédía, Diderot esboça assim o retrato de seu herói

ideal: é "um filósofo que, pisoteando os preconceitos, a

tradição, a Antigüidade, o consenso universal, a autori­

dade, numa palavra, tudo o que subjuga a multidão das

mentes, ousa pensar por si mesmo'?". Este filósofo não

quer se submeter sem discussão a nenhum mestre, ele pre­

fere sempre se fundar sobre o que é acessível a todos: o

49

Page 24: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E sp íR IT O DA S L UZE S

testem unho dos sentidos, a capacidade de raciocinar. No

final do século, Kant confirmará que o princípio primor­

dial das Luzes reside nessa adesão à auto nomia."Tenha cora­

gem de servir- te de teu próprio entendime nto! Eis o lem a

das Luzes"."A máxima de pensar por si mesmo é as Luzes'?".

Todos os fatos - acrescenta D idero t - "são também

sujeitos à crítica" . Em matéria de ciências morais e polí­

ticas, insiste Condo rcet, "é preciso ousar examinar tudo,

discutir tudo, até mesmo tudo ensina r". Kant co nclui:

" Nossa época é a época da crítica, à qu al tudo te m de

submeter-se'?". Isso não significa qu e um ser human o

possa passar ao largo da tradição, isto é, de toda a herança

transmitida por seus ancestrais: viver numa cultura é seu

estado natural; pois bem, a cultura, a começar pela língua,

é transmitida a cada um por aquel es qu e o precede m.

Imaginar qu e se possa raciocinar sem preconceitos é o

pior dos preconceitos. A tradição é co nstitutiva do ser

humano, mas não é suficiente para tornar um princíp io

legítimo, nem uma proposta verdadeira.

Uma escolha dessas te m co nseqüê nc ias políti cas

óbvias: um povo é feito de indivídu os; se estes começa­

rem a pensar por si mesmos, o povo inteiro quere rá tomar

nas mãos seu próprio destino. A qu estão da origem e da

legitimidade do po der político não é nova; duas grandes

interpre tações se enfrenta m no séc ulo X VIII. Segundo

alguns, o rei recebeu sua coroa de D eus, qualquer que seja

o número de intermediários que se deva im aginar entre

essa fonte e o destinatário final; monarca de direito divino,

50

A UT O N O MI A

ele não tem contas a prestar a ninguém na Terra. Segundo

outros, qu e fazem apelo à razão, à natu reza ou a um con­

trato original, a fonte do poder está no povo, num direito

comum e no interesse geral; Deus criou os homens livres

e os proveu de razão. "Todo homem qu e supostame nte

tem uma alma livre deve ser gove rnado por si mesmo' !"

- escreve M ontesquieu . Isso não quer dizer que é preciso

derrubar os reis: a opinião predominante à época sugere

qu e o povo, impedido de se governar devid o à sua pró­

pria mul tiplicidade, dê o poder a um príncipe. Este gover­

na soberana mente, no en tan to não é irrespo nsável: é

preciso que seu reino aja de acordo com o interesse de

seu país.

É neste contexto que intervirá R ousseau, cujas idéias

radica is se encontram expos tas em Do contrato social. Ele

não só opta resolutamen te pela orige m humana e não

divina de todo poder, mas também declara que esse poder

não pode ser transmiti do, some nte confiado, como a um

servidor: tal poder é, como dirá Rousseau, inalienável.

Aquilo qu e o povo emprestou durante algum tempo a

um governo, poderá sempre tomar de volta. O interesse

comum, única fon te de legitimidade, se exprime no que

R ousseau chama de a vo ntade geral. Esta, por sua vez,

se traduz em leis."O poder legislativo perten ce ao povo,

e só a ele pode pertencer" . Se chamarmos de " república"

um Estado regido por leis, en tão "qualqu er governo legí­

tim o é republicano'?". A crer-se em R ousseau, ° povo

esqueceu que o po der, mesmo exercido pelo rei, lhe per-

51

Page 25: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E s p íR IT O D A S L UZES

tence naturalmente, e que pode retomá-lo a qualquer

momento. Alguns anos mais tarde, numa colônia britâ­

nica , um grupo de homens tirará desses raciocínios as

conseqüências que se impõem e declarará seu direito de

escolher livremente por si mesmos o seu governo: assim

nascerá a primeira república moderna, no sentido de Rous­

seau , e ela se chama Estados Unidos da América . Ainda

alguns anos mais tarde, as mesmas idéias serão reivindi­

cadas pelos agentes da Revolução Francesa.

Paralelamente à liberação do povo, o indivíduo

adquire também sua autonomia. Ele se engaja no conhe­

cim ento do mundo sem se inclinar diante das autoridades

precedentes, escolhe livremente sua religião, tem o direito

de exprimir seu pensamento no espaço público e orga­

nizar sua vida privada como bem entende. Não é preciso

crer que, ao atribuir-se à experiência e à razão um papel

privilegiado com relação às tradições, os pensadores das

Luzes prolonguem essa exigência como uma hipótese

sobre a natureza dos homens: eles sabem muito bem

que nossa espécie não é racional. "A razão é, e deve ser

apenas, a escrava das paixões" - afirma Hume, antes de

constatar que essa razão não é sempre utilizada de maneira

consciente: "Não é contrário à razão preferir a destrui­

ção do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo'?".

É que a razão é um instrumento que pode servir indi­

ferentemente ao bem e ao mal; para cometer um grande

crime, o malfeitor deve desenvolver grandes capacidades

de raciocinar! Os homens são conduzidos por sua von-

52

A U T O N O M I A

tade e seus desejos, por suas afeições e suas consciências,

e também por forças sobre as quais eles não têm nenhum

domínio; não obstante, a razão pode aclará-los quando

se engajam na busca do verdadeiro e do justo.

A autonomia é desejável, mas autonomia não sig­

nifica auto-suficiência. Os homens nascem, vivem e mor­

rem em sociedade; sem ela, eles não seriam humanos. É

o olhar sobre a criança que está na origem de sua cons­

ciência, é o chamado dos outros que a desperta para a

linguagem. O próprio sentimento de existir, ao qual nin­

guém pode subtrair-se, provém da interação com os

outros. Todo ser humano é acometido de uma insuficiên­

cia congénita, de uma incompletude, à qual busca preen­

cher afeiçoando-se a seres que o cercam e solicitando o

afeto deles. É ainda R ousseau que exprimiu mais forte­

mente essa necessidade. Seu testemunho é particularmente

precioso, pois , enquanto indivíduo, fica constrangido entre

os outros e prefere fugir deles. Mas a solidão é ainda

uma forma dessa vida comum que não é nem possível

nem desejável abandonar. " N ossa mais doce existência é

relativa e coletiva, e no sso verdadeiro eu não está intei­

ramente em nós. Enfim, tal é a constituição do homem

nesta vida, de modo qu e não conseguimos nunca gozá­

la totalmente sem a colaboração de outrem'!". Isso não sig­

nifica que toda a vida em sociedade seja boa ; Rousseau

não cessa de nos advertir contra uma alienação de si sob

a pressão da moda, da opinião pública, do que vão dizer

os outros. Os homens que vivem apenas em função de

53

Page 26: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E S P Í R I TO DAS L UZE S

outrem, negligenciando o ser, preocupam-se apenas com

o parecer, fazem da exposição em público seu único obje­

tivo. O "desejo de reputação " , o "ardor de fazer falar de

si", o "furor de distinguir-se? " se tornaram os principai s

motes de seu s atos, qu e ganharam em conformidade e

perderam em sentido.

Um desvio desse pensamento começa no próprio

momento em qu e ele se formula. E o encontramos na

obra de Sade, qu e procl ama que a solidão diz a verdade

do ser humano. " Não nascemos todos isolados? E digo

mais, todos inimigos uns dos outros, todos num estado de

perpétua guerra recíp roca?":" Desse estado inicial Sade

conclui sobre a necessidade de erigir-se a auto-suficiência

como regra de vid a: tudo o que conta é no sso prazer, não

devo levar em consideração os outros, senão para me pro­

teger de suas intrusões. Como não ver qu e essas fórrnu­

las sadianas são contrárias não ape nas ao espírito das Luzes,

mas também ao simples senso comum? Onde já se viu

uma criança nascer isolada (sem sua mãe) e, sobretudo,

sobreviver sozinha no mundo? O s humanos são, aliás, a

espécie anima l cuja cria é mais lenta em adq uiri r uma

independência mínima: a cria nça abando nada morre sem

cuidado s, não por efeito de uma " perpé tua guerra recí­

proca". Essa longa vulnerabilidade poderi a, ao co ntrá­

rio, encontrar-se na origem do sentimento de compaixão

familiar a todos os seres humanos.

Apesar de sua total inverosimilhança, essas procl a­

mações de Sade tiveram um grande sucesso, durante os

54

A U T ON OM IA

séculos seguintes, nos autores que afirmam em coro que

o ser humano é fundamental e essencialme nte ún ico (será

qu e nunca viram crianças nascerem e crescerem?) . Para

dar apenas um exemplo, Mauri ce Blanch ot, em Lautréamont

e Sade e Georges BatailIe, em O erotismo, viram nesses

argumentos o grande mérito de Sade. Tudo nele é fun­

dado, a crer-se em Blanch ot, "sobre o fato pr imeiro da

solidão absoluta. Sade o disse e repetiu sob todas as fo r­

mas: a natureza nos faz nascer sozinhos, não há ne nhum

tipo de relação de um homem com outro [... 1. O homem

verdadeiro sabe qu e está sozinho, e ele aceit a estar assim " .

Bataille, que cita essas páginas de Blanchot, aqui esce:"O

homem solitário de qu e Sade é porta-voz não leva em

conta de modo algum seus sem elhantes" . Por essa razão,

acrescenta Bataille, seria preciso ser grato a esse autor:

"Foi-nos dada uma imagem fiel do homem diante do

qual outrem deixar ia de co ntar?" .

A sobe rania do indivíduo, segundo Sade, interpre­

tada por Bataille, ser ia ex pressa precisamente 11:1 nega­

ção de qualquer sujeito além de si."A solidarieda de com

relaçã o a todos os outros impede um homem de ter

uma atitude soberana" . Preocupar-se com os outros só

pode resultar de um medo de assumir a si mesmo ple­

na me nte. Segundo Blanch ot, "tudo o qu e é nele [no

homem verdadeiro] herança de dezessete séculos de covar­

dia, tudo que se refere a outros que não ele, ele o nega" .

A autonomia do indivíduo é levada aqui a um ex tremo

em que destrói a si mesma, confundindo-se com a nega-

55

Page 27: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Es p íR ITO D A S L U Z ES

ção dos outros seres em torno de si mesmo, e então com

uma autonegação.

No momento em qu e se formulam duas reivindi­

cações de autonomia , coletiva e individual, seus autores

não imaginam que um conflito possa surgir entre elas: a

soberania do povo é pensada sobre o modelo da liber­

dade individual, a relação é então de continuidade. Con­

dorcet é o primeiro a assinalar o perigo. É pre ciso dizer

que, eleito na Assembléia legislativa, ele está em condi­

ções de observar eventuais desvios do poder do qual é

representante. É se deb ruçando sobre os problemas da

educação pública qu e ele formula suas prevenções con­

tra uma usurpação abusiva da autoridade coletiva sobre

a liberdade individual.A escola, segundo Condorcet, deve

abster-se de toda doutrinação ideológica. "A liberdade

dessas opiniões não seria mais do que ilusória se a socie­

dade se apoderasse das gerações nascentes para lhe s ditar

em que devem crer" .Tal ensinamento, que o aluno seria

inc apaz de avaliar por si m esmo e de contestar , in cul ­

par-lhe-ia "preconceitos" qu e, por serem provenientes da

vontade popular, não ser iam menos tirânicos; ele repre­

sentaria então um "atentado contra uma das part es mais

preciosas da liberdade natural" . Por isso é necessário sub­

trair- se à ação do poder público um território, e preser­

var assim a capacidade crítica dos indivíduos."O objetivo

da instrução não é fazer com que os homens admirem

uma legislação completamente acabada, mas torná-los

capazes de apreciá-la e corrigi- la'?",

56

AU T O NOM IA

Estamos hoj e em condições de fazer justiça à lucidez

de Condorcet,já que ele descreveu nessas linh as a manei­

ra com que os poderes totalitários puderam oprimir suas

populações durante o século xx (voltarei a isto) . Desde

a queda desses regimes, percebemos que um desvio das

Luzes em sentido contrário era igualmente possível, e que

seus efeitos eram po r sua vez preocupantes. Não é ape­

nas o Estado que pode privar os habitantes do país de

sua liberdade; são também alguns indivíduos particular­

mente poderosos que são capazes de restringir a soberania

popular. O perigo vem aqui, não dos ditadores, mas de

algumas pessoas com alto poder aquisitivo.

Tomemos doi s exemplos dessa decadência da sobe­

rania popular, ligados às relações internacionais. O pri­

meiro vem da glob alização econômica. Hoje, os Estados

podem defender suas fronteiras pelas armas, se preciso for,

mas não são mais capazes de conter a circulação dos capi­

tais. Por isso, um indivíduo ou um grupo de indivíduos,

que, no entanto não se beneficiam de nenhuma legitimi­

dade política, são capazes, clicando em seus computadores,

de manter seus capitais onde estão ou transferi-los para

outro lugar e, por aí, mergulhar um país no desemprego

o u evitar a catástrofe im in ente. Eles podem provoc ar

transtornos sociais ou ajudar a afast á-los. O s suce ssivos

governos de um país como a França teriam ficado muito

contentes em diminuir o desemprego; não é cer to que já

tenham os meios para fazê-lo. O controle da economia

não pertence à soberania popular: gostemos ou deplore-

57

Page 28: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

mos, é preciso constatar os limites impostos à autonomia

política.

O segundo exemplo vem de um domínio totalmente

diferente: o do terrorismo internacional. Os atentados

perpetrados recentemente aqui ou ali não são fatos de

Estado adotando uma política agressiva, mas de indiví­

duos ou grupos de indivíduos. Antes, só um Estado e, mais

ainda, um entre os mais poderosos, podia organizar uma

ação tão complexa como as explosões de Nova York ou

Istambul, de Madri ou Londres; desta vez, ela foi obra

de algumas dezenas de pessoas. Hoje, os progressos tec­

nológicos tornam a fabricação de armas perigosas aces­

sível a grupos particulares. Ao mesmo tempo, essas armas

custam cada vez menos; a miniaturização permite trans­

portá-las mais facilmente. Um telefone celular basta para

desencadear uma explosão - eis que o objeto mais comum

se torna uma arma assustadora! Os malfeitores podem

então se esconder sem muito sacrificio e escapar a toda

resposta militar: um indivíduo não tem território. Eles

provêm de vários países, mas não se identificam com nen­

hum deles; são apátridas. Os Estados modernos se reve­

lam mal armados contra esta outra forma de globalização

igualmente destruidora de sua soberania.

Os habitantes desses Estados sofrem também uma

erosão da autonomia vinda do interior; sua fonte não é

mais o poder estático, mas outras forças difusas, sobre as

quais é mais dificil colocar uma etiqueta. Passemos pela

opressão exercida pela máquina económica que toma a

58

AUTONOMIA

forma impessoal da fatalidade e que impede o indivíduo

de usar sua vontade (como poderia, sozinho, frear o desem­

prego?). Outras forças não são menos paralisantes.Acha­

mos que vamos tomar nossas decisões sozinhos; mas se

todas as grandes mídias, da manhã até a noite e dia após

dia, martelam-nos a mesma mensagem, dispomos de pouca

liberdade para formar nossas opiniões. As mídias de massa

são onipresentes: imprensa, rádio e, sobretudo, televisão;

ora, nossas decisões são fundadas sobre as informações

de que dispomos. Essas informações, supondo-se até que

não sejam falsas, foram selecionadas, triadas, reagrupadas

para nos levar a uma certa conclusão mais do que a qual­

quer outra. No entanto, os órgãos de informação não

exprimem a vontade coletiva e não se pode lamentar: o

indivíduo deve poder julgar por si mesmo, e não sob a

pressão de decisões vindas do Estado; infelizmente, nada

garante a imparcialidade dessas informações.

Em alguns países, é possível hoje - tendo bastante

dinheiro! - comprar um canal de televisão, ou cinco, ou

dez, mais estações de rádio, mais jornais, e fazer-lhes dizer

o que se deseja, para que os consumidores, leitores, ouvin­

tes e espectadores pensem por sua vez o que se quer. Nesse

caso, não se trata mais de uma democracia, mas de uma

plutocracia: não é o povo que tem o poder, é simples­

mente o dinheiro.

Aliás, não é uma questão de dinheiro, mas de uma

pressão da moda, do espírito do tempo e do lugar: os jor­

nalistas não estão mais submetidos ao Estado nem são

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Page 29: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Es p íR ITO UAS LUZ ES

comprados pelo capital, no entan to, são muitos a agirem

desse modo, imitando o mais prestigioso entre eles, recean­

do parecer fora do contex to, sentindo-se encarregados de

uma missão idêntica. O fen ômen o não é novo, mas em

nosso mundo submetido à informação contínua, sua força

é multiplicada por dez. O espec tador, ou ouvi nte, ou

leito r que acredita escolher livremente suas opiniões

está forçosame nte condicionado pelo que recebe.A espe­

rança suscitada pela in ternet , essa informação emitida po r

indivíduos não controlados e acessível a todos, arrisca-se

igualm ente a ser em vão: não é somente a in formação

que escapa ao controle, é tamb ém a manipulação, e nada

permite ao internauta distinguir uma da outra.

Quando é muito poderosa, a opinião públi ca restr in­

ge a liberdade do indivíd uo, que acaba por subme ter-se.

Rousseau estava muito sensível a essa dimensão das socie­

dades modernas e recomendava por essa razão cr iar as

crianças numa relativa solidão, lon ge das pressões da moda

e das idéias pront as; pela mesma razão, ele preferi a fugir

das grandes cidades.Já em seu tempo, essa solução podia

parecer ut óp ica. O ra, o mu ndo foi desde então na dire­

ção oposta: as mídias de massa, e em part icular a televi­

são, foram introduzidas no espaço individual, na cidade

como no campo; as crianças, mais especificame nte, pas­

sam várias horas por dia diante da telinha. A te levisão

não é subm etida à tutela do Estado, mas ela precisa de

dinheiro para funcionar, e o encontra na publicidade, ou

seja, nos vendedores de bens de consumo. At ravés da

60

A U T O NOM IA

publicidade, mas também através do s modos de vida que

mostra em suas reportagens ou em suas ficções , a tel e­

visão nos dá um modelo a imitar, sem, no entanto,jamais

formulá-lo de man eira explíc ita - o qu e nos permiti ­

ria ao m en os qu estioná-l o.

O pensamento das Luzes leva a cultivar o espí rito

crítico. Esse princípio deve sempre ser defendido, especial­

mente co ntra aqueles que reagem a tal ou qual crí tica que

lhes desag rada, levando imediatam ente o problem a aos

tribunais. A lib erdade de opi nião , incluindo-se o que

nos incomoda, deve ser preservada. Isso não sign ifica

que toda postura crítica sej a, em si mesma, admirá vel.

Se, beneficiando-se da liberdade de expressão qu e tem

curso no espaço público democrático, ado ra-se um a ati­

tu de de aviltamento generalizado, a crítica se torna um

jogo gratuito que não produz nada, exceto a subve nção

de seu próprio ponto de partida . C rítica demais mata a

crítica . N a tradição das Luzes, esta represen tava, num pri­

meiro tempo, apenas um movimento dupl o, de crí tica e

de reco nstrução. Em suas Mcmàrias, R aym ond Aron conta

um episódio marcante de sua juventude. Assustado co m

o avanço do nazismo nos anos 1930 na Alemanha, ele

mantém discursos mu ito crí ticos sobre a atitude do gover­

no francês . Um ministro, na França, o escuta atentame nte

e se propõe relatar suas idéias ao presidente do Conselho.

M as ele pede a Aron que dê mais um passo, e responda

primeiro a esta qu estão : "O que o senhor far ia se esti­

vesse no lugar dele"? " Por ter aprendido esta lição, Aron

61

Page 30: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E SPÍ RI TO DA S L U ZE S

se tornou um intelectual à parte. Sem sua contrapartida

positiva , o discurso crítico cai no vazio. O cetici smo gene­

ralizado e a derrisão sistemática só têm aparência de sabe­

doria; desviando o espírito das Luzes, criam um sólido

obstáculo à sua ação.

62

I 4 I LAICIDADE

Page 31: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

LAICIDADE

NÃO É APENAS O PODER real estabelecido por direito

divino que ameaça a autonomia da sociedade. Esta repre­

senta um conjunto complexo no qual se enfrentam várias

forças. Desde o início da história européia, criamos o

hábito de distinguir entre poder temporal e poder espi­

ritual. Quando cada um deles dispõe da autonomia em

seu domínio e se vê protegido contra as intrusões do

outro, fala-se de uma sociedade laica ou, como se diz tam­

bém, secular.

Poderíamos crer que, na parte do mundo marcada pela

tradição cristã, essa relação em torno da questão da auto­

nomia já estaria prontamente organizada, pois o Cristo

anunciou que seu reino não era deste mundo, que a

submissão a Deus não interferia em nada na submissão

65

Page 32: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Esp í R ITO DAS L UZE S

a César. No entanto, a partir do momento em qu e o

imperador Constantino impôs o cristianismo como reli­

gião de Estado, no século IV, a tentação de apoderar-se

de todos os poderes de uma vez revelou-se. É fácil enten­

der a razão desse movimento. Dir-se-á que a ord em tem­

poral reina sobre os co rpos, a ordem espiritual sobre as

almas. Ma s alma e corpo não são entidades simplesme n­

te justapostas, no interior de cada ser eles formam ine­

vitavelmente uma hierarquia. Para a religião cristã, a alma

deve comandar o corpo ; por isso cabe às instituições reli­

giosas, isto é, à Igreja, não somente dominar diretamen­

te as almas, mas também, indiretamente, controlar os cor­

po s e, portanto, a ord em temporal. Por sua vez, o poder

temporal procurará defender suas prerrogativas e exigirá a

manutenção do controle sobre todos os negócios terres­

tres, inclusive sobre uma instituição como a Igreja. Para

proteger sua autono mia , cada um dos doi s adversários fica

então tentado a invadir o território do outro.

A fim de justificar suas ambições, os partidários do

poder espiritual ilimitado fabricam (em 754) um falso

documento, destin ado a ter um papel de primeiro plan o

nesse conflito : é a Doação de Constantino, um pseudo-docu­

menta segundo o qual o primeiro imperador cristão teria

confiado ao papa não some nte o cuidado das almas dos

fiéis, mas também a soberania sobre os territór ios de toda

a Europa Ocidental. N a segunda metade do século XVII,

sob o papa Alexandre III , essas pretensões serão co difi­

cadas na doutrina dita plcnitudo potestatis, plenitude da

66

L AI CIDADE

potência. Segundo essadoutrina, o Papa detém dois gládios

simbó licos, o espiritual e o temporal, enquanto o impe­

rador só det ém o último; o Pap a é então seu superior

hierárquico.

Pode-se falar aqui no projeto de uma teo cracia,

primeira forma da plenitude de potên cia: o poder tem­

poral é sim plesmente posto a serv iço do projet o reli­

gioso. Em op osição a ele se desenvolve ao me smo tempo

uma forma com pletamente diferente; a qu e tende a fazer

da Igreja um instrumento, entre outros, a serviço do poder

temporal. Os imperadores mais vigorosos en carnam essa

atitude (que era já a do próprio Constantino); chamam­

na às vezes de cesaripopismo, Suas diversas var iantes se

opõ em à teocracia, mas não à aspiração a uma pleni tude

de poder: qu er o Estado fosse posto a serviço da Igreja

ou o inverso, cada um qu eria possuir o pod er em sua inte­

gralidade. Somente a impossibilidade de trazer uma vitó­

ria de cisiva in trodu z a limitação de uma força por sua

rival. Poder civil e poder eclesiástico coexistem ao lon go

daquele período que chama mos de Idade M édia, sendo

sua fronteira simplesme nte a linha na qu al parou a últi ­

ma batalha. N o interior de seu território, cada um reina

sem com partilhamento; qu anto aos indivíduos, eles não

dispõem de ne nh uma liberdade de escolha .

Os termos do debate serão modificados a partir da

Reforma, graças ao lugar que esta reserva ao indivíduo.

Um mero camponês, se soube falar a Deus, pod e ter razão

contra o papa - o qu al, afinal de contas, não escapa a

67

Page 33: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

() F. \ I' I 1\ I T ( ) I) A \ I II / . F. \

heresia. O soberano temporal, pensa Lutero num primeiro

momento, é considerado em relação ao domínio invio­

lável do que os teólogos chamam de " os atos imanentes",

isto é, a relação com Deus, com a vida interior, com a

consciência. O príncipe não tem rival no exercício do poder,

no entanto este encontra um limite: não o poder da Igre­

ja, mas a consciência do indivíduo, pela qu al este último

só presta contas a Deus. Uma terceira força surge aqui,

embaralhando a oposição anterior entre poder temporal

e poder espiritual; é aquela do indivíduo qu e controla

sozinho sua comunicação com Deus - e que poderia,

num segundo momento, apoderar-se do controle de out­

ros territórios, subtraídos à influ ência dos antigos pode­

res. Inicialmente, então, "indivíduo " é apenas o nome

do qu adro qu e permite salvaguardar a experiência reli­

giosa das intrusões do poder político. No entanto, esse

qu adro individual pode enriquecer-se; deve então ser

defendido tanto contra o Estado quanto contra os pode­

res eclesiásticos. Tal é o sentido da laicidade moderna.

A história européia moderna, do Renascimento até

as Luzes, de Erasm o a Rousseau, é a da con solidação da

separação entre instituições públicas e tradi ções religio sas,

e a do aumento da liberdade individual. C om efeito, o

poder temporal da Igreja é abalado sem ser abo lido, como

testemunham os vários passos dados em favor da tolerân­

cia religiosa. Um testemunho entre tantos outros: "Estou

indignado, como o senhor - escreve Rousseau a Voltaire

em 1756 - que a fé de cada um não esteja na mais pura

68

L AI C I D A D E

liberdade, e que um homem ou se controlar o interior das

consciências nas qu ais não sabe ria penetrar'?" .

Uns após outros,segmentos inteiros da sociedade recla­

mam a retirada da tutela religiosa e o direito à autonomia.

Uma das reivindicações mais significativas é a de Cesare

Beccari a, autor do tratado Dos delitos e das penas (publica­

do quando ele estava então com vinte e seis anos), no

qual formula com clareza a distinção entre pecado e deli­

to, que permite subtrair a ação dos tribunais do contexto

religioso. As leis só dizem respeito às relações humanas na

cidade; suas transgressões não têm nada a ver com a dou­

trina religiosa. Os pecados, por sua vez, não caem sob os

golpes da lei: direito e teologia deixam de confundir-se.

Beccaria destaca também uma outra amea ça para a

liberdade do indivíduo, qu e já não vem da Igreja (que não

deve deter o pod er temporal), nem do Estado (que não

deve se meter co m o espiritual), mas da famíli a. Nesta, o

chefe pode exercer uma tirania sobre seus outros mem­

bro s e então pr ivá-los da independência adquirida com

relação às estruturas sociais. Assim como todo indivíduo

tendo atingido a idade da razão tem o direito de se diri­

gir diretamente a D eus, ele pode também recorrer dire­

tarnente à República, da qu al é membro, para ben efi­

ciar-se do s direitos que esta lhe assegura. Então, o "espí­

rito de liberdade soprará não somente nos lugares públi­

cos e nas assembléias da nação, mas também no interior

das casas, onde reside, numa boa parte dos casos, a feli­

cidade ou o infortúnio do s indivíduos'!".

(,9

Page 34: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

Numa democracia liberal moderna, a conduta do

indivíduo se reparte então, mais do que entre ordem tem­

poral e ordem espiritual, entre três esferas. Num dos pólos

se situa a esfera privada e pessoal que só o indivíduo

gerencia, sem que ninguém possa nada recriminar: desde

a Reforma, a liberdade de consciência se expandiu como

liberdade de todas as condutas particulares. No pólo

oposto se situa a esfera legal, na qual são impostas nor­

mas estritas ao indivíduo, garantidas pelo Estado, as quais

ele não pode transgredir sem se tornar um criminoso.

Entre as duas se encontra uma vasta terceira zona, públi­

ca ou social, impregnada de normas e de valores, mas que

não possuem um caráter obrigatório. Enquanto as leis for­

mulam ordens e impõem penas, esta terceira zona con­

tenta-se em dar conselhos ou exprimir reprovações, no

contexto de um debate público e isto funciona para as

regras morais, para as pressões exercidas pela moda ou

pelo espírito do tempo, como também para as prescrições

religiosas (ocupando, dessa maneira, o lugar do antigo poder

espiritual) .

O mapa dessas três zonas varia de país para país e

de um momento histórico para outro, mas a necessidade

de distingui-los e de fixar seus limites é reconhecida

por todos. Para nossos contemporâneos, a laicidade con­

siste no fato de cada um perm.anecer dono de si sem piso­

tear a liberdade dos outros: o Estado controla a esfera legal,

mas não pode ditar sua vontade à sociedade civil; esta

ocupa a esfera pública, mas sua ação pára diante de uma

70

LAICIDADE

fronteira que protege a liberdade do indivíduo.Além disso,

o Estado garante a liberdade e a proteção do indivíduo

com relação à sociedade civil. Esse equilíbrio entre esfe­

ras é frágil (como mostra, por exemplo, o debate sobre

o direito ao aborto), mas indispensável ao bom funcio­

namento da comunidade; sua manutenção faz parte dos

deveres do Estado.

É preciso voltar agora a um ponto já evocado: à des­

coberta que faz Condorcet, quando da Revolução Fran­

cesa, de um novo perigo para a autonomia do indiví­

duo e, conseqüentemente, para a laicidade da sociedade.

Esse perigo consiste em que os detentores do poder tem­

poral aspirem, não como no cesaripapismo, a sujeitar-se

a uma religião existente, mas a fundar um novo culto, que

tem por objeto o próprio Estado, suas instituições ou seus

súditos. Se Condorcet o descobre naquele momento, é

porque não existia nos tempos passados: a presença de

uma religião oficial impedia que o poder temporal se tor­

nasse uma delas. Foi o descarte da Igreja cristã que tornou

possível esta nova religião. Aqueles mesmos que quiseram

libertar os homens do jugo da religião correm o risco

de se tornar os servidores de um culto não menos opres­

sor. Quando é o poder que diz ao povo aquilo em que

é preciso crer, está se referindo a uma "espécie de religião

política", raramente preferível à precedente. Condorcet

acrescenta: "Robespierre é um padre, ele só será isto?".

Encontra-se aqui a primeira ocorrência de que se tem

notícia da expressão "religião política", muito diferente

71

Page 35: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Esp i R ITO D AS L U Z E S

da "religião civil" de Rousseau, a qual só implica um

reconhecimento dos princípios de uma vida comum .

Ao fim e ao cabo,o conteúdo específico do novo dogma

importa pouco. Pode tratar-se de um moralismo cívico,

como nos sonhos de alguns revolucionários de recons­

truir a antiga Esparta ou, ao contrário do elogio do espí­

rito m ercantil , da pura busca do lucro, que torna, por

exemplo, lícitos o comércio e a exploração dos escravos

ou a submissã o das populações estrangeiras. O essencial

é a nova "plenitude de poder",já que o poder temporal

impõe também as crenças que lhe convêm. Controlando

a escola, ele transforma a instrução, que supostamente

deveria trazer a liberação, em ferramenta de uma submis­

são ainda maior; ele apresenta como dogmas imutáveis

ou, pior, verdades científicas, as últ imas decisões políticas.

Controlando a informação, ele age de modo a que " os

cidadãos nunca aprendam nada que não lhes po ssa ser

confirmado pelas opiniões que seus mestres lhes querem

inspirar? ", Os indivíduos, assim manipulados, acreditan­

do agir por si mesmos, executam o programa concebido

pelos detentores do poder.

Condorcet desenrola aos olhos do leitor um verda­

deiro cenário catastrófico. Imaginemos, diz ele, que "um

bando de audaciosos hipócritas" se apodere do poder cen­

traI e qu e se garantam revezamentos loc ais no conj unto

do país. Eles poderiam meter a mão nas principais fon­

tes de informação; em conseqüência, acreditaria nela

um "povo cuja falta de instrução deixa sem defesa con-

72

LAI CIDA DE

tra os fantasmas do medo". Alternando então sedução e

ameaças, esse grupo no poder "exercerá, sob a máscara da

liberdade '!" , uma tirania que não perde em eficácia para

nenhuma daquelas que a precederam.

Tal plenitude de poderes seria até pior que seus

precedentes, pois o campo da nova religião política se

confu nde com toda a existência terrestre dos homens.

A religião tradicional queria controlar a consciência do

indivíduo, fosse exercendo ela mesma o poder temporal ,

ou delegando a este a tarefa de reprimir. A religião polí­

tica , por sua vez, poderá vigiar e orientar diretamente

tudo. Por conseguinte, a liberdade pela qual pleiteia agora

Condorcet não é apenas uma liberdade de consciência;

é, como dirá quinze anos mais tarde Benjamin Constant ,

leito r atento das Memórias de Condorcet , toda a liberdade

dos Modernos. Os Antigos, com efeito, não pensam a

liberdade nesses termos, eles não imaginam que o indi­

víduo deva ser defendido contra seus próprios represen­

tantes. O território da nova religião ultrapassa de longe

o do antigo ; em conseqüê ncia aumenta também aquele

que o indivíduo terá de defender.

O terror jacobino encarna j á uma primeira " reli­

gião política". M as cento e trinta anos mais tarde, no

início do século x x , é que as piores apreensões de Con­

dorcet se realizarão. Ao fim da Primeira Guerra mundial

nascerão na Europa vários regimes políticos de um novo

gênero, mas que correspondem justamente a essa ima­

gem premonitória: eles se chamarão comunismo, fascismo,

73

Page 36: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E sp iRIT O DA S L U Z E S

nazismo. As fórmulas de Condorcet são provavelmente

esquecidas nessa época, mas, já nos anos 1920, os obser­

vadores atentos revelam as características do que chamam,

por sua vez , de uma religião política. Entre esses teste­

munhos, que vão de jornalistas católicos italianos e ale­

mães aos autores de obras de referên cia como Eric Voe­

gelin ou de artigos brilhantes como o de Raymond Aron,

uma menção particular deve ser feita a Waldemar Gur ian,

judeu russo convertido ao catolicismo, que morou na Ale­

manha antes de emigrar para a Suíça e mais tarde aos Esta­

dos Unidos, e qu e escreve, desde os anos 1920, estudos

comparativos sobre os totalitarismos europeus.

Como esses outros obser vadores, Guria n revela o

paradoxo que há em chamar de " religião " uma doutrina

que se distingue claramente das confissões tradici onais e

qu e, no caso do comunismo, op õe-se-lhe com viru lên­

cia; ele sugere, por essa razão, tomar emprestado ao mo vi­

mento contemporâneo do s eurasianos, ru ssos emigrados

anima dos de um espír ito an tieurope u , o termo "i deo­

cracia" , para incluir aí como qu e duas subespécies de reli­

giõ es tradi cionais e as novas religiõ es políticas. Essa dis­

tinção não o impede, no entanto, de ver qu e as doutri­

nas totalitárias compartilham algumas características dos

cultos religiosos e, coisa relevante aqui, qu e elas exigem

uma abolição da laicidade lentamente conquistada duran­

te os séculos precedentes. Este novo ataque, conforme

previra C ondorcet, é diferente tanto da teocracia quan­

to do cesaripapismo, pois essas duas formas de confusão

74

Ll\ lC l llA lJE

entre espir itual e temporal mant inham ao mesmo tempo

a distinção do s doi s qu adro s e exigi am apen as a submis­

são de uma à outra; enquanto as novas religiõ es políti cas

eliminam a distinção e impõem uma sacralização do pró­

prio poder político, sob a forma do Estado, do Povo ou

do Partido, ou ainda do regime qu e ele impõe, fascis­

mo, nazismo ou comunismo. A religião tradicional é com­

batida e eliminada (no comunismo), ou subme tida e mar­

ginalizada (no fascismo e no nazismo); em nenhum caso

ela continua sendo a m ediadora privilegi ada do sagrado,

papel atribuído doravant e ao pod er político.

Se tivesse podido evitar uma eliminação definitiva,

o poder espiritual vencido po deria ter exercido uma ação

mod eradora, ainda qu e mod esta. N ada disso é mais pos­

sível aqui, pois não se trata de um a submissão, mas de uma

substitu ição. C omo obse rva Gurian, "as ene rgias e as

força s qu e en contravam outrora seu escape e expre ssão

na religião e que limitavam o pod er do velho sobe rano

despóti co constitue m doravante forças mot ri zes funcio­

nando atrás e no seio de novos regimes despóticos do

século xx. As ideologias totalitárias substituem e suplan­

tam a religião}'''. O s regimes totalitários, podem os acres­

centar com a lucidez que no s dá o de correr do tempo,

passam uma primeira fase " teocrática" , du rante a qu al

o Partido controla o Estado, uma segunda fase "cesaripa­

pista" , ficando o partido a serviço do Estado. N esses dois

casos, confirmando os receios de Condorcet, esse novo tipo

de fusão entre poder temporal e poder espiri tual elimin a

75

Page 37: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESP Í R IT O DAS L U Z E S

mais radicalmente do que nunca a liberdade individual

garantida pela laicidade, em função justamente de sua domi­nação totalitária.

O s inimigos da sociedade secular são numerosos. N a

época das Luzes, são os representantes da Igreja institu­

cional que se inspiram na frase emblemática de Bossuet:

"Eu tenho o direito de perseguir-vos porque tenho razão

e vós estais errados", frase esta que estabelece uma forte

continuidade entre o mundo espiritual (no qu al pode­

riam eventualmente se en contrar as razões e os erros) e

o mundo temporal (no qual podem ser empreendidas per­

seguições). A tolerância só convém às co isas indiferen­

tes, pleiteia também Bonald no dia seguinte à Revolu­

ção ; para tud o o qu e tem realmente importância, é pre­

ciso submeter-se à verdade do dogma. N os reg imes tota­

litários, a laicidade também é rejeitada: a sociedad e é intei­

ram ente subme tida ao Estado.

Todas as sociedades ocidentais contemporâneas pra­

ticam diversas formas de laicidade; mas esta última foi ree­

xaminada a partir dos anos 1990 do século xx, em vir­

tude da expansão do islami smo . A propagação de uma

versão fundamentalista da religião muçulmana teve sobre

a vida de numeroso s países duas conseqüências maiores,

estreitamente ligadas entre si: os atas terroristas que não

visam especificamente à laicidade, e a submissão das mulh e­

res, que o faz. Esta última prática não é exclusivamente

islâmica,j á que se en contra num vasto território incluin­

do o M editerrân eo e o Oriente M édio, onde são pra-

76

L A I C I D ADE

ticadas diversas religiões. Também é verdade que, na

Europa contemporânea, a desigualdade das mulheres é

reivindicada principalmente por certos representantes

do islã. No caso deles, uma interpretação literal dos tex­

tos sagrados leva a justificar a dominação dos homens

- pai irmão ou m arido - sobre as mulheres maiores, ,de idade , e privá-l as das liberdades individuais de qu e

gozam todas as outras mulheres, cidadãs do mesmo país.

A ameaça denunciada por Be ccaria se torna novamente

uma realidade.

Uma interpretação desse tipo tem por efeito erigir

um culto à virgindade e à fidelidad e e assim privar as

mo ças do controle de seu próprio corpo, bem como proi­

bi-Ias de trabalhar fora ou até de simplesmente sair de suas

casas e serem olhadas por desconhecidos. Mais grave ainda:

as mulheres são espancadas a cada transgressão dessas regras,

de acordo com as prescri ções religi osas, como reivindi ­

cam publicamente alguns representantes do islã fundamen­

talista. Lembramo-nos das declaraçõe s de H ani R arnadan ,

então diretor do C entro Islâmico de Genebra, qu e expli­

cava que a lei religiosa era na verdade bem clemente:

"A lapidação prevista em caso de adultério só é co nce­

bível se quatro pessoas forem testemunhas oculares do

delito":". Quantos outros pensam assim sem ousar dizê-lo

em público?

Várias vozes de mulheres muçulmanas se levantaram

para denunciar essa situação. Na França, a associação "Nem

putas nem submissas" engajou-se nesse combate especí-

77

Page 38: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E sp í R IT O DA S L U Z E S

fico; organizou uma marcha nacional e publicou em 2002, ,um manifesto no qual se podia ler:"Nem putas, nem sub­

missas, simplesmente mulheres que querem viver sua liber­

dade para afirmar seu desejo de justi ça? ". São as famí­

lias, não os imames, que querem submeter as mulheres ,

mas é nos textos sagrados que elas en contram a legiti­

mação de suas proibições. O resultado é que a liberdade

dessas mulheres se enc ontra restrita, e assim , finalmente,

a igualdade de todos os membros da mesma soc iedade.

Ayaan Hirsi Ali , hoje deputada holandesa e atéia, mas de

origem soma liana e de educação muçulmana, também

milita há vários anos para proteger e ajudar as mulheres

espancadas, violentadas e mutiladas em nome do s prin­

cípios tirados do islã. O filme qu e ela assinou o roteiro,

S ubmission , provocou, em 2004, o assassinato de seu rea­

lizador T heo Van Gogh . Hirsi Ali recusa a submissão do

indivíduo às prescrições de um grupo como o dos mu çul­

manos fundamentalistas e reivindica, ao contrário, a sub­

mi ssão de todos os cidadãos às mesmas leis. C onform e

afirma,"a liberdade individual e a igualdade entre homem

e mulher" não são escolhas facultativas, mas "va lores uni­

versais " , inscritos nas leis do país" . N uma democracia

liberal, submeter à força as mulheres aos homens e impe­

di-las de agir segu ndo sua própria cabeça não é coisa qu e

se insere no cam po do tolerável.

Ao lado dessas rejeições da laicidade, pode-se também

observar seu desvio por simplifica ção e sistem atiza ção

abusivas. Seria o caso se a sociedade secular se to rn asse

7H

L AI CIDADE

um sin ônimo de uma sociedade da qu al foi ban ido todo

o sagrado. N a sociedade tradicional, o sagrado é defini­

do pelo dogma religioso e pode estender-se às institui­

ções co m o aos obj etos. A R evolução Francesa tentou

sacralizar a nação ; o amor pel a pátri a devia supos tamen­

te fazer o pap el atr ibuído antes ao amor a Deus. O s

regimes totalitários quiseram, por sua vez, sacralizar subs­

titutos terrestr es do divino, tais como o povo, o parti­

do, ou a classe operár ia. As democracias liberais co n­

temporân eas não suprimem todos os deveres do s cid a­

dãos, tampouco o sacralizam. Elas não impedem os indi­

víduos de encontrar o sagrado no interior de sua esfera

privada: para um, é seu trabalho que é sagrado, para outro,

suas férias, para um terceiro, seus filhos, para um outro,

sua religião. M as nenhuma instituição, nenhum obj eto é

sagrado : tudo pode ser criticado. Até os aco ntecimentos

que suscitam na sociedade francesa um julgamento de

valor unânime, como o genocídio do sj udeus ou a Resis­

tência, não possuem, na esfera pública, um cará te r sagra­

do: para qu e progrida, o conhecimento não deve dep a­

rar-se com zonas proibidas, en tretanto, o sagrado é aqui­

lo que não se tem o direito de tocar.

Não é verdade, no entanto, que nossas soc iedades

sec ulares seja m inteiramente de sprovidas de sag rado;

este apenas j á não se encontra nos dogmas nem nas relí­

quias, mas nos direitos dos seres humanos. E sag rado

para nós é uma certa liberdade do indivíduo: seu direito

de praticar (ou não) a religião de sua escolha, de criticar as

79

Page 39: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E SP ÍR IT O D A S L U Z E S

instituições, de buscar por si mesmo a verdade . É sagrada

a vida humana, por isso aos Estados é desautorizado o

direito de atingi-la com a pena de morte. É sagrada a inte­

gridade do corpo humano, por isso foi banida a tortura,

mesmo quando a razão de Estado a recomenda, ou é proi­

bida a excisão, prati cada em menininhas que não dispõem

ainda da autonomia de suas vontades.

O sagrado não está ausente nem da esfera pessoal

de uma sociedade secular nem de sua esfera legal. Quanto

à esfera pública, não está nem dominada por um sagrado,

nem condenada ao caos das opiniões contraditórias; ela

pode ser regulada por máximas que pertencem ao con­

senso geral. Condorcet escrevia: " O que, a cada época,

marca o verdadeiro limite das Luzes, não é a razão par­

ticular de certo homem de talento, mas a razão comum

dos homens esclarecidos'?" . N em todas as opiniões são

iguais, e não se deve confundir a eloqu ência de uma pala­

vra com a justeza de um pensamento. Tem-se acesso às

luzes, não se fiando à iluminação de um único, mas reu­

nindo- se duas condições: primeiro, escolher "homens

esclarecidos", isto é, indivíduos bem infor mados e capazes

de raciocinar; em seguida, levar a buscar "a razão comum",

colocando-os em situação de diálogo argume ntado. Pode

ser, todavia, que com rela ção a isso, o ideal das Luzes

esteja ainda longe de nós.

80

5 VERDADE

Page 40: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

VER D A DE

PAR A MELHOR C IR CU NSCR EVER O lugar da autonomia,

pode ser cômodo partir de uma distinção entre dois tipos

de ação, e também de discurso, aquele cuja finalidade é

promover o bem e aquele que aspira a estabelecer o ver­

dadeiro. Os pensadores das Luzes sentem a necessidade

dessa distinção para subtrair à influência religiosa o conhe­

cimento do homem e do mundo. É a razão pela qu al

Voltaire atrai nossa atenção para o fato de qu e as religiões

são múltiplas (ele fala de "seitas") , enquanto a ciên cia é

um a. Ninguém, com efeito, ou viu falar de seitas de alge­

br istas! Essa diferença fácil de se ob servar tem implica­

ções múltiplas; ela significa especialm ente que os deten­

tores do poder, sejam eles de origem divina ou humana,

não devem ter nenhuma ação sobre o discurso que busca

83

Page 41: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E S PÍR I T O DAS L U Z E S

conhecer o verdadeiro: não pertencem ao mesmo espaço.

Hume escreveu em 1742: "Mesmo que o gênero humano

inteiro concluísse de maneira definitiva que o sol se move

e que aTerra permanece em repouso, apesar desses racio­

cínios, o sol não mexeria uma polegada de seu lugar e. f: 1 A 40"essas conclusões seriam a sas e erroneas para sempre .

A verdade não perten ce a um desejo.

É Condorcet qu e vai explorar as con seqüências dessa

escolha durante os últimos anos do século XVIII, em suas

reflexõ es sobre o ensino. Ele se aproxima ra desse tem a

algumas décadas antes de se dedicar às suas Mem érias, quan­

do defendia a tolerância religiosa e mais particularmente

os direitos dos protestantes de instruir tanto quanto os pro­

fessores católicos. Sobre o qu e podia se fund ar essa reivin­

dicação? Sobre o fato que a religião do professor é indi­

ferente quando a matéria ensinada pertence, não à fé, mas

à ciência. "Tant o quanto é respeitável tentar só confiar a

homens de uma ortodoxia irrepreensível uma dignida­

de ecle siástica, será ridículo ocupar-se da ortodoxia de

um professor de fisica e de anato m ia' !" . Para fazer enten­

der as teorias de Newton , o qu e importa se o professor

é católi co ou protestante! Mas se estamos de aco rdo

com ele neste ponto, uma conclusão se impõe: uma fron­

teira nítida separa dois tipos de matérias suscetíveis de

serem ensinadas. De um lado as religiões, ou mais geral­

mente ainda as opiniões e os valores, tod os perten centes

à crença ou à vontade do indivíduo; do outro, os obje­

tos de conhecimento, atividade cujo horizonte último é,

VE RD A D E

não mais o bem, mas a verdade . Ensinar umas ou outras

corresponde a duas atividades bem distintas.

Em 1791, quando redige suas Memórias, Condorcet

encontrará duas apelações para essas formas de ensino: ele

opõe agora a instrução pública à educação nacional, e pleiteia

em favor da primeira, a única qu e pert ence, em sua opi­

nião, às competênc ias republicanas. A educação "abrange

todas as opiniões políticas, morais ou religi osas"; a edu­

cação nacional dará a todos os alunos o m esmo espírito

patriótico. Em cont rapartida, a instru ção não se ocupará

mais de "con sagrar opiniões estabelecidas" , de "fazer os

homens admirarem uma legislação completamente aca­

bada" , mas lhes ensinará a "subme ter ao livre exame" suas

próp rias convicçõ es, a fazer um julgamento sobre elas e,

eventualmente, corrigi- las.A edu cação visa a propagar seus

valores, a promover o que ela estima ser útil : a instrução

ensina "verdades de fato e de cálculo" , abre o acesso às

informaçõ es obj etivas e oferece aos homens ferram entas

que permitem fazer bom uso de sua razão, a fim de que

"possam se decidir por si mesmos?". A finalidade é a auto­

nomia do indivídu o, a capacidade de examinar de manei ­

ra crítica as normas existentes c escolhe r por si mesmo

suas regras de conduta ou suas leis;o meio, o domínio das

competências intelectuai s fund amentais e o conhecimen­

to do mundo. É nisso qu e consiste a passagem da infância

à idade adulta. Defender a liberdade do indivíduo implica

reconhecer a diferença entre fato e interpretação, entre

ciência e op inião, verdade e ideologia; é fazendo apelo ao

85

Page 42: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E sp íR IT O DA S L U ZE S

primeiro termo dessas oposições, termo que escapa a toda

vontade, portanto a todo poder, que esse co mbate tem

chance de ser concluído.

O raciocínio de Condorcet pressupõe nossa grande

dicotomia, aquela entre o domínio da vontade, cuj o hori­

zonte é o bem, e o domínio do conhecime nto, orientado

para o verdadeiro. A primeira encarna-se exemplarmente

na ação política; a segunda, na ciên cia. As du as segue m

lógicas diferentes e Condorce t chega até a escrever:"Em

geral, todo poder, de qualquer natureza que seja, em quais­

quer mãos que tenha sido posto, de qualquer maneira qu e

tenha sido conferido, é naturalmente inimigo das luzes".

A razão desse co nflito lhe parece simples: qu anto m ais

esclarecidos fore m os indivíduos, mais eles serão capazes

de decidir por si mesmos - e terão men os tendência a

se subme ter cegamente ao poder."A verdade é então a ini­

miga tanto do poder co mo daqueles qu e o exerc em?".

N o en tanto, nem todos os pod eres se equivalem. O bom

governo é aquel e que, preocupado com o bem-estar de

seus súditos mais do que com seu próprio triunfo, favo­

rece o progresso das luzes, portanto da instru ção pública;

o que aj uda seus súditos a adquirir auto nomia facilitan­

do-lhes o acesso à verdade.É um governo paradoxal o que

dá a seus cidadãos, senão varas para bater nele, ao men os

meios para emanciparem-se dele. N este ponto ele é com­

parável aos pais que procuram dar autonomia a seus fi­

lhos, mesmo sabendo que o suces so destes traz o risco

de torná-los inúteis enquanto pais e afastá-l os deles.

86

VERDADE

Um governo sábio não se opõe ao crescimento e à

propagação dos co nhecimentos. Ma s seu papel pára aí;

em nenhum caso ele deve levar o zelo até contr ibui r

ele próprio à progressão da verdade, pois não é uma ques­

tão de vontade. O poder público não deve ensinar suas

escolhas camuflando -as em verdades."Seu dever é armar

co ntra o erro, que é sempre um mal público, toda a força

da ve rda de; mas ele não tem direito de decidir onde

reside a verdade, onde se enc ontra o erroH" . O pod er

públi co deve tornar materialmente possível o avan ço do

co nhecimento, não estabel ecê-lo ele mesmo. Não cabe

ao povo se pronunciar sobre o que é verdadeiro ou falso,

não cabe ao parlamento deliberar sobre o significado

dos fatos hi stóricos do passad o, não cabe ao governo

decidir o qu e é preciso ensinar na escola.A vontade co le­

tiva, ou soberania do povo, depara-se aqui com uma limi­

tação, qu e é a da verdade, sobre a qual não tem ascendên­

cia; essa indep en dên cia da verdade protege ao me smo

tempo a autonomia do indivíduo que pod e, face ao pod er,

atribuir-se o verdadeiro. A verdade está acima das leis.

R ecip rocamente, as leis do país não decorr em de lima

verdade estabe leci da : elas são a expressão da vontade

pública, sempre sujeitas à variação. A busca da verdade

não pertence à esfera da deliberação pública, nem esta

àquela. O s Estados modernos segui ram esse princípio,

separando o domínio do legislativo, qu e só pertence ~l

vontade popular, do domínio regulamentar, em qlle inte r­

vêm outros fatores.

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Sergio Lucio
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Sergio Lucio
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Page 43: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

o bom desempenho da vida política numa república

como também a autonomia de seus cidadãos estão amea­

çados por dois perigos simétricos e inversos: o moralismo

e o cientificismo. O moralismo reina quando o bem domi­

na o verdadeiro e, sob pressão da vontade, os fatos se tor­

nam uma matéria maleável. O cientificismo se lhe impõe

quando os valores parecem decorrer do conhecimento

e as escolhas políticas se travestem em deduções cientí­

ficas. Condorcet se põe eficazmente de sobreaviso con­

tra a tentação moralista. Assustado com o entusiasmo

dos revolucionários que imaginam a França contempo­

rânea uma nova Esparta, ele afirma a independência da

ciência e da busca das luzes. O Terror, no qual a exigên­

cia da virtude não deixa nenhum lugar para uma verdade

independente, é uma forma extrema de moralismo e jus­

tifica a resistência de Condorcet que perecerá sob seus

golpes. Ele mesmo, por outro lado, não escapa sempre à

ilusão cientificista, ao esperar que o progresso dos conhe­

cimentos gere sozinho a melhor ordem política e a feli­

cidade dos homens.

O cientificismo é uma doutrina filosófica e política,

nascida com a modernidade, que parte da premissa de que

o mundo é inteiramente passível de conhecimento; então

passível de transformação de acordo com os objetivos que

nos colocamos, objetivos deduzidos eles próprios dire­

tamente desse conhecimento do mundo. É nesse sentido

que o bem decorre do verdadeiro. As Luzes já conhe­

cem bem a tentação científica. Esta se manifesta, por exern-

88

VERDADE

pIo, na reflexão moral de Diderot, que queria que as leis

da "natureza" fossem as únicas às quais nossa conduta

tivesse de obedecer. "A lei civil não deve ser senão a enun­

ciação da lei da natureza. [... ] O que constitui o homem,

o que ele é, [... ] deve fundar a moral que lhe convém?",

Ora, quem melhor do que a ciência poderia nos ajudar

a conhecer a natureza? Do que é deduziremos automa­

ticamente o que deve ser. Alguns anos mais tarde, Sade

aproveitará desse raciocínio para legitimar seu desvio

do espírito das Luzes. "A destruição sendo uma das pri­

meiras leis da natureza, nada do que destrói poderia ser

um crime". "Não tenham outro freio senão aquele de

vossas inclinações, outras leis senão as de vossos dese­

jos, outra moral senão a de vossa natureza":". Diderot e

Sade supõem que o homem vive sozinho, como se seus

atos não tivessem nenhuma incidência sobre outros seres

humanos; isso lhes permite considerar toda a lei civil

ou moral como supérflua.

O mesmo raciocínio se aplica à ordem política.

Para d'Holbach, o homem é infeliz porque não conhece

a natureza. Pode-se deduzir daí que um tal conheci­

mento seria necessário e suficiente à sua felicidade, que

bastaria saber para viver bem. De seu lado, Condorcet afir­

ma: "Conhecer a verdade para conformá-la à ordem da

sociedade, eis a única fonte da felicidade pública?". Sen­

sível à ascendência do bem sobre o verdadeiro, Condorcet

não vê inconveniente em que a verdade seja "a única

fonte" do bem; a ação exercida sobre a sociedade lhe pare-

89

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Page 44: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E SPÍR IT O DAS L U ZE S

ce não comportar nenhuma escolha de valores nem de

objetivos, é o próprio conhecimento que se encarrega de

produzi-los.

Esse cientificismo em germe desde a época das Luzes

é, no entanto, combatido por outros representantes de seu

espírito. Já vimos já que, para Montesquieu, toda ambi­

ção de domínio total do mundo é vã, em razão ao mesmo

tempo de sua extrema complexidade e do caráter sin­

gular de um de seus habitantes, o ser humano,jamais intei­

ramente previsível, pois está prestes a escapar a todos os

determinismos - sempre capaz de "aquiescer ou de resis­

tir", segundo a fórmula de Rousseau. Dissipar a ilusão

de uma continuidade automática entre acúmulo de conhe­

cimentos e aperfeiçoam ento moral e político é inclusi­

ve o ponto de partida da reflexão de Rousseau , qu e se

oporá a bom número de seus contemporâneos, enc iclo ­

pedistas e " filósofos" . Para tornar a humanidade melhor,

repete incansavelmente R ousseau, não basta "expandi r

as luzes". "N ós podemos ser homens sem sermos sábios?",

Certas formas de cientificismo, gravemente co mpro­

metidas nas aventuras totalitárias do século xx, são hoj e

rejeitadas por todos: não se defende mais a eliminação das

raças inferiores nem a das classes reacion àrias. Isso não

quer dizer que as democracias contemporâneas estejam

livres de todo traço de cien tifi cismo ; simplesmente este

toma outras formas . D aí a tentação de confiar a elabo­

ração das normas morais ou dos objetivos políticos a

"experts", como se a defini ção do bem pertencesse ao

tJo

VERDADE

conhec im en to. Ou ainda o projeto "s ócio- bio lóg ico"

de absorver o conhecimento do homem no da natureza

e fundar nossa moral como nossa política nas leis da tisica

e da biologia. Pode-se perguntar assim por qu e os bió­

logo s ser iam os mais bem qualificados para figurar no s

diver sos comitês éticos cr iados pelos países ocidentais.

Esses comitês estão, co m efeito, habitualmente compostos

por duas categorias de pessoas, os cientistas e os religiosos,

co mo se nenhuma instância política, nenhuma auto ri­

dade moral existisse entre os dois.

Tais escolhas implicam uma concepção segundo a

qual bastaria ter as informações certas para tomar as boas

decisões. Ora, as próprias informações estã o longe de

serem hornogêneas, e nenhuma abordagem puramente

qu antitativa é satisfatória: multiplicando-as indefinida­

mente, não somente não nos tornamos mai s virtuosos,

co mo j á previa Rousseau , mas também não nos torna­

mos nem mesmo mais sábios. O crescim ento ver tigi no­

so do s meios de esto cagem e de transmissão de infor­

mação revelou um novo perigo: informação demais mata

a informação. Basta fazer uma pergunta na internet para

receber imediatamente cem mil respostas; co mo sabe r qual

é a mais digna de co nfia nça e a mais esclarecedora? Uma

enciclopédia composta livremente pelos usuár ios (aW iki­

pedia) é preferível àquela redigida por cientistas compe­

tentes? Somente se apagarmos o limite entre querer e saber.

Além do mais, o co nhecimento não pe ga ne cessa­

riamente a via da ciênc ia: para penetrar nos arcanos das

tJ]

Sergio Lucio
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Page 45: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

condutas humanas, a leitura de um grande romance pode

se revelar mais esclarecedora do que a de um estudo socio­

lógico.Alguns pensadores das Luzes o tinhamjá compreen­

dido - tais como Vico, que afirmava que o conhecimento

pelo mito e pela poesia convinha mais a algumas matérias

do que aquele que se apóia na razão abstrata. Essa hete­

rogeneidade das vias do conhecimento, da qualidade das

informações, das formas de intervenção social compro­

mete por sua vez as ambições do cientificismo.

O moralismo, neste caso uma submissão da busca

do verdadeiro às necessidades do bem, é muito mais anti­

go que as Luzes, e diretamente oposto a seu espírito;

ele lhe sobreviveu, no entanto. Poderíamos ilustrar essa

tenacidade por um debate que ressurge periodicamen­

te na sociedade francesa há uns quinze anos e que diz

respeito à escritura da história do século xx. Seu últi­

mo episódio data de 2005. Um grupo de deputados intro­

duziu uma proposta de lei com relação à interpretação

que é preciso dar à empreitada colonial francesa e mais

particularmente à ocupação da Argélia. Um artigo dessa

nova lei diz: "Os programas escolares reconhecem em

particular o papel positivo da presença francesa além­

mar, especialmente na África do norte". A lei foi vota­

da em 23 de fevereiro de 2005, e reconfirmada por uma

maioria de deputados no dia 29 de novembro do mesmo

ano. Uma interpretação do passado foi então submetida

ao voto e adquiriu força de lei; quem se opuser pode ser

condenado. Assim como a Igreja no século XVII proibindo

92

VERDADE

Galileu de pesquisar livremente a verdade, os deputados

franceses, no século XXI, prescrevem aos historiadores ­

e àqueles que se beneficiam de suas pesquisas, professores

e alunos - o conteúdo de seus estudos. As advertências

de Hume são esquecidas; a verdade resulta aqui de um

desejo.

Poderíamos notar, com relação ao texto dessa lei, que

é chocante mencionar o único "papel positivo" da coloni­

zação,chamado de modo pudico "a presença francesa além­

mar". A invasão de um país estrangeiro sob pretextos fala­

ciosos, a manutenção de sua população em estado de

inferioridade legal, o desprezo de princípios republica­

nos que a metrópole reivindica durante esse tempo, a

repressão das veleidades de independência pelos massa­

cres e pela tortura são aí fatos estabelecidos há muito

tempo, cujo lado positivo - assim que deixamos a ótica

etnocêntrica e nacionalista - é difícil de ver. E talvez ainda

mais lamentável, é reduzir, meio século depois do fim das

colónias, a complexidade da História a adjetivos de puro

julgamento moral como "positivo" ou "negativo", impon­

do uma visão"otimista" ou "pessimista". Tal simplifica­

ção maniqueísta só pode trair a experiência de milhões

de pessoas, durante mais de um século. O estudo da his­

tória nunca pode abstrair inteiramente valores dos quais

está impregnada a existência humana, mas ela não leva a

tais etiquetas lapidares. Para avançar na compreensão, para

recolher o máximo de fatos e formular as interpreta­

ções mais finas, o historiador não deve decidir antes sobre

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Page 46: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

a "moralidade" à qual deve chegar. A história comporta

poucas páginas escritas apenas em preto e branco.

O que há de particularmente perturbador para quem

preza o espírito das Luzes é o próprio fato de que o Par­

lamento engaje um voto sobre uma interpretação da

história, como se bastasse uma maioria política para pro­

clamar verdadeira uma proposta; como se esse voto, em

vez de proteger uma afirmação, não a tornasse mais vul­

nerável (uma outra maioria poderia rejeitá-la). Diante

da ciência, as seitas desapareciam, dizia Voltaire; face à

verdade, os partidos se calavam. Pois não são os repre­

sentantes do povo os mais bem armados para buscar a ver­

dade: esta não é uma questão de vontade. Em que a

eleição de um deputado o torna competente para julgar

a história? É este o papel de um parlamento, decidir a inter­

pretação a ser dada aos acontecimentos do passado ou

até aos fatos que o constituem? O fato de ser necessário

fazer-se tais perguntas dá a medida do escândalo anacró­

nico que representa a votação de uma lei como esta.

É preciso reconhecer que os deputados franceses

não estavam em sua primeira tentativa. Alguns anos antes,

eles haviam decidido que a Turquia era culpada pelo

genocídio armênio e que a escravidão fora um crime

contra a humanidade. Alguns anos ainda antes, votaram

uma lei, ao que parece a primeira do gênero, punindo

qualquer negação do genocídio dos judeus durante a

Segunda Guerra mundial. Os eventos em questão ser­

vem menos a controvérsia do que a colonização do

')4

VERDADE

Magrebe, mas a questão de princípio permanece a mesma.

O poder público não tem o direito de decidir onde resi­

de a verdade, dizia Condorcet; esse princípio elementar

parece esquecido pelo Parlamento francês. Ora, subtrair

uma proposta ao campo da pesquisa de verdade para

incluí-la num catecismo e enchê-la de sanções penais

não a consolida, mas a rebaixa.

A verdade não pode ditar o bem; mas ela não deve

ficar-lhe submetida. Cientificismo e moralismo são, tanto

um quanto outro, estranhos ao verdadeiro espírito das Luzes.

Um terceiro perigo existe: que a própria noção de verda­

de seja tida por não pertinente. Num estudo consagrado

ao romance 1984, o filósofo Leszek Kolakowski elogia

Orwell por ter reconhecido a importância que toma

nos regimes totalitários o questionamento da verdade.

Não é somente que nele os homens políticos recorram

ocasionalmente à mentira - eles o fazem em todo lugar.

É antes a própria distinção entre verdade e mentira, ver­

dade e ficção que se torna supérflua, face às exigências

puramente pragmáticas de utilidade e de conveniência. É

por isso que nesses regimes a ciência não é invulnerável

aos ataques ideológicos e a noção de informação obje­

tiva perde seu sentido. A história é reescrita em função

das necessidades do momento, mas as descobertas da bio­

logia ou da fisica podem também ser negadas se forem

julgadas inapropriadas. "É o grande triunfo cognitivo

do totalitarismo: não se pode mais acusá-lo e mentir já

que ele conseguiu prescrever a própria idéia de verdade",

')5

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Page 47: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E S P Í R I T O DA S L U Z E S

conclui Kolakowski" . Os detentores do poder, desta vez,

se livram definitivamente da impertinente verdade.

Poderíamos crer que esse perigo ameace apenas os

países totalitários, e não as democracias.No entanto, vários

episódios recentes da vida pública nos Estados Unidos

ilustram uma nova fragilidade da verdade.

Um primeiro fato dessa natureza é a decisão de ensi­

nar, em de algumas escolas, a teoria da evolução oriunda

dos trabalhos de Darwin e o mito bíblico da criação

(ou como se diz hoje, o "plano inteligente") como duas

"hipóteses" igualmente dignas de respeito. Num país onde,

como nos mostram as sondagens, 73% dos habitantes

crêem na vida depois da morte e 39% pensam que a Bíblia

foi ditada diretamente por Deus e deve ser tomada ao

pé da letra", não é surpreendente que muitas pessoas pre­

firam a versão bíblica à da biologia; mas cada uma dessas

pessoas só compromete a si mesma, essa opinião só vale

então em sua zona privada, o que permanece de acordo

com o espírito e a letra da Constituição americana. A

decisão que se refere ao programa de ensino numa dada

escola, ao contrário, engaja a comunidade local e é esta

que recusa ver uma diferença qu alitativa entre os dis­

cursos da ciência e aquele da ficção, entre logos e muthos.

Os autores dessa deci são permanecem, no entanto, pru­

dentes e não tiram toda s as conclusões que se impõem:

eles não tocam, por exemplo, no s cuidados médicos pro­

digalizados nos hospitais fundados sobre essa mesma bio­

logia que questiona a "teoria" criacionista.

96

V ERD A D E

Um segundo exemplo de mudança no estatuto da

verdade, aparentemente sem nenhuma relação com o pri­

meiro, é fornecido por um acontecimento político recen­

te: a justificativa da guerra contra o Iraque pelas armas

de destruição em massa que possuiria aquele país. Sabe­

se que essas armas se revelaram inexistentes, mas o pro­

blema não está aí: sua presença era possível.Todavia, vários

elementos desse episódio continuam perturbadores. Fica­

se sabendo, com efeito, que os homens de Estado tinham

feito tudo para convencer a população americana da pre­

sença dessas armas , exibindo especialmente provas de cuja

fragilidade sabiam muito bem, ou tentando comprometer

os indivíduos que traziam informações em sentido inver­

so. Noutras palavras, esses homens de Estado sabiam que

o que afirmavam não era verdadeiro, mas o apresenta­

vam ao menos como tal, pois acreditavam - sem dúvida

- que tal informação fosse útil para seu país. Esse des­

prezo pelo verdadeiro era de resto confirmado por um

de seus responsáveis, Paul Wolfowitz, segundo o qu al o

argumento das armas de destruição em massa fora esco­

lhido porque era o que podia levar mais facilmente à

adesão do maior número de pe ssoas. A questão da ver­

dade desse argumento não era simplesmente evocada por

Wolfowitz; ela era considerada como não pertinente ­

como o foi , antes, pelos ideólogos totalitários.

A mentira ofi cial ordinária, assim co m o qu ando

um homem político nega estar enganando sua mulher,

é uma homenagem disfarçada de verdade, poi s tudo se faz

97

Page 48: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

para simulá-la. É completamente diferente no presente

exemplo, o de uma indiferença à verdade de uma infor­

mação. Esse exemplo é ainda mais preocupante porque não

é isolado. Outras tomadas de posição atestam igualmente

essa modificação do estatuto da verdade, bem como a afir­

mação segundo a qual o campo de detenção de Guantá­

namo está conforme o espírito das convenções interna­

cionais com relação aos prisioneiros de guerra; ou essa

outra, segundo a qual o Iraque dá todo dia um grande passo

rumo à paz e à democracia. Ou ainda, para citar um fato

pertencente a uma área completamente diferente: ficou-se

sabendo recentemente que a administração federal ame­

ricana havia modificado de propósito os dados de um certo

número de relatórios científicos sobre o aquecimento glo­

bal do planeta, pois tais relatórios não iam na direção dese­

jada, ou seja, uma rejeição do protocolo de Kyoto. Ora,

se tocarmos o estatuto da verdade, não se vive mais numa

democracia liberal. Como explicar tal atentado aos seus

fundamentos? Uma parte desses enunciados liberados de

qualquer relação com a verdade se tornou aceitável por­

que eles foram proferidos numa situação de crise, exi­

gindo consenso nacional e então suspendendo o julga­

mento crítico daqueles cujo trabalho é fornecer uma infor­

mação confiável, isto é, os jornalistas. Essa crise dura desde

o 11 de setembro de 2001. O aumento do espírito patrió­

tico e o despertar dos "fantasmas do medo", para falar como

Condorcet, bastam para afastar a preocupação com a ver­

dade, a qual, no entanto, constitui o espaço democrático.

9H

VERDADE

Não é só nos Estados Unidos que o governo prefere

a vitória à verdade; no entanto, é legítimo escolher esse

exemplo mais do que um outro. É que os Estados Unidos

representam, neste começo de século XXI, uma potência

militar e política superior a todas as outras. O grande

poder gera grandes perigos, pois dá àquele que o possui

o sentimento de que sempre teve razão e de que não é

necessário levar em conta a opinião dos outros. Para se

proteger do abismo que traz o risco da vertigem do poder,

para evitar que este não carregue igualmente o resto do

mundo, até mesmo o país mais poderoso deve reconhe­

cer que não se deve brincar com a verdade.

99

Page 49: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

I 6 I HUMANIDADE

Page 50: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

,

H U M A NI D A DE

A AUTON O M IA SOZIN H A não basta para descrever a maneira

como as Luze s concebem o ideal da conduta humana.

É melhor ser dirigido por sua própria vontade do que

por uma regra vinda de fora, decerto, mas para ir aonde?

N em todas as vontades e açôes são equivalentes. Ora , não

se pode mais apelar ao céu para decidir quais são as boas

e quai s são as más, é preciso ater-se âs realidades terres­

tres. Da finalid ade longínqua - Deus - deve-se passar a

uma finalidade mais próxima. Esta, proclama o pensamen­

to das Luzes, é a própria humanidade. É bom o que serve

para aumentar o bem-estar dos homen s.

Tal afirmação repres enta uma flexibilização da dou ­

trina cristã mais do que sua rejeição. Esta colocou de fato

a equivalência dos dois amores, a Deus e ao próximo. São

103

Page 51: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E s p í RI T O I.> A S L U Z E S

Paulo proclama diversas vezes que "aquele qu e ama o

próximo cumpriu a Lei". Simplesmente, os pensadores

das Luze s declaram se satisfazer com um só termo dessa

equação. "Basta que os homens se apeguem ao amor cris­

tão ; pouco importa o que aconteça à religião cristã" ­

escreve Lessing em 1777: o quadro doutrinal e institu­

cional é afastado, não o conteúdo que ele valorizava. É

o mesmo espírito deísta que Franklin ilustra dez anos

mais tarde, afirmando: "O culto mais agradável a Deus

é fazer o bem aos homens". O amor pelos seres huma­

nos não tem necessidade de uma justificativa divina ; ima­

ginando um ato de hospitalidade, Franklin comenta: "Não

é pelo amor do Cristo, que lhes ofereço minha casa, mas

por amor de vocês"!".

Daí o ser human o se tornar o horizonte de nossa

atividade, o ponto focal para o qual tudo converge. Quan­

do Diderot se interroga sobre o princípio que unifica seu

projeto enciclopédico, ele só vê um: o homem. E assim

é para o universo que essa Enciclop édia tenta apreender e

representar. "Por que não introduzimos o homem em

nossa obra com o ele está colocad o no universo? Por

que não faríamos dele um centro comum" ?" É ao mesmo

tempo um direito e um dever: o homem se torna o cen­

tro da obra porque ele é o centro do mundo - ou me­

lhor, é o que lhe dá sentido. Por isso sua existênc ia deixa

de ser um simples meio posto a serviço de um objetivo

mais elevado, a salvação de sua alma ou advento da cidade

de Deus; sua finalidade deve ser encontrada em si mesmo.

104

H U M A N I D A D E

Pela voz de sua heroína Julie, Rousseau enuncia esse prin­

cípio: "O homem é um ser nobre demais para ter de

servir simplesmente de instrumento para outros? " . Este

novo lugar do homem, opondo-o, agora, enquanto abso­

luto às coisas, que são apenas relativas, conduzirá Kant a

sua célebre formulação do princípio da moral humanis­

ta. "Age de tal maneira que uses a humanidade tanto na

tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre

e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente

como um meio":".

Uma palavra designa o bem-estar humano ne sta

Terra: é f elicidade. Sua busca se torna legítima e substi­

tui a da salvação. " O h felicidade! Fim e fin alid ade de

nossa era! - exclama Alexander Pope em seu Ensaio sobre

(1 homem. O que choca na leitura das obras européias

da época, apesar de sua diversidade quanto ao gênero

literário, aos países de origem ou às co nvicções de seus

autores, é que elas apresentam um mundo natural no

qu al os seres humanos são dominados por forç as hostis

puramente humanas e tentam realizar-se plenamente no

seio de sua existência terrestre. O melhor cidadão é aque­

le que "contribui para a felicidade do mundo" - decla­

raVoltaire",Tratados filosóficos, romances, poemas, peç as

de teatro con tam as difi culdades de um mundo pura­

mente humano. O s quadros do s pintores repres entam os

encantos da vida campestre, as diversões da vida privada,

a felicidade citadina, a felicidade doméstica, os prazeres

e as alegrias dos homens.

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Page 52: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E s p í R I TO lJ A S L U ZE S

Onde é preci so procurar as chaves da felicidade? A

maioria dos filósofos e escritores não se contenta em enco­

rajar as reformas sociais, mas valoriza as exp eriências indi­

viduais. E entre estas, o primeiro lugar é ocupado pelas

afeições que ligam cada um aos seres que o cercam. "Façam

desaparecer o amor e a amizade, o que sobra do mundo

para que valha a pena aceitá- lo?" - escreve H ume" . Uma

vida bela é uma vida rica em amor. O qu e conta não é

a qu antidade: Hume imagina o rei Salomão, cercado de

suas setece n tas mulheres e trezentas conc ubinas, como

um ser profundamente infeliz ;um a ún ica mulher ou uma

só amante, alguns amigos bem escolhidos ter-lh e-iam per­

mitido viver melhor sua humanidade em tod a a pleni­

tude. R ou sseau é proli xo no mesmo sen tido: "Eu não

creio que aquele qu e não ama nada possa ser feliz". A feli­

cidade é então acessível a todos, basta amar e ser amado;

mas, por isso mesmo, ela é frágil.A afeição dos outros no s

é necessári a para vive r, entretanto nada pode garan tir

sua perenidade. Quanto mais um homem é rico de afe­

tos, mais ele fica vulnerável. "Quanto mais aume nta seus

apegos, mais ele multiplica seus sofrimenros'?", Esta é a

natureza da felicidade humana, e não há nenhum meio

de garanti-la.

Por volta do fim do século XV II, pretende- se ergue r

a felicidade como finalidade, não ape nas da existência

individual, mas tamb ém do governo e do Estado.A "busca

da felicidade" figurará nos Estados Unidos na Declara­

ção da independên cia; na Fran ça, Lavoisi er, ao mesmo

106

H U M A NI D A lJ E

tempo químico notável e homem pol ítico, escreveu uma

tese em 1787 : "A verdadeira finalidade de um governo

deve ser aume nta r a soma dos prazeres, a soma da felici­

dade e do bem-estar de todos os indivíduos". Dois anos

mais tarde, ele dirige essas palavras aos Estados gerais:"A

finalidade de toda instituição soc ial é tornar o mais feliz

possível aqueles que vive m sob suas leis. A feli cidad e

não deve ser reservada a um pequeno número de homens,

ela pertence a todos 59" . A R evolução, da qual será víti­

ma Lavoisier, mostrará que é po uco recomendável deixar

a totalidade de uma existência humana aos cuidados do

governo. R esta, no entanto, o princípio segundo o qu al

as instituições sociais de um país devem estar a serviço

dos homens e das mulheres que nelas vivem.

Desde então, a situação mudou de novo. O s regimes

totalitári os do século xx nos mostraram largam ente o

quanto era perigoso confiar ao Estado a responsabilidade

pela felicidade individual. N o entanto, a última vitó ria das

democracias teve um efeito surpreendente: na medida em

que esse regim e político não pretende ser uma encar­

nação do bem soberano, deixa-se de pôr a esperança da

felicidade terrestre ou de realização pessoal numa estru­

tura política, qu alqu er qu e seja ela. Como a dem ocracia

vence u, não suscita mais a paixão. A auto no mia indi vi­

dual saiu revigorada dessas provações, e pede-se do ravan­

te ao Estado apenas qu e afaste os obstáculos à felicidade

dos indivíduos, não que a garanta; o Estado não é por­

tador de esperança, ele é simplesmente o fornec edor de

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Page 53: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

serviços. Não dispondo de um quadro religioso comum,

não crendo na revolução que traria a felicidade a todos,

os homens não renunciam, entretanto, ao desejo de tornar

suas vidas mais belas e mais ricas de sentido; mas eles

seguem agora vias que escolheram individualmente.

Essa inversão de perspectiva na finalidade de nos­

sos atos, essa passagem do divino ao humano, não pode

ser comparada em sua radicalidade senão à revolução

copernicana,que colocou o Sol no lugar da Terra - exce­

to pelo fato de que aqui o homem mais se aproxima

do centro do que se afasta. Como era de se esperar, essa

inversão provocou a viva rejeição daqueles que defen­

diam a hierarquia precedente, de Bonald a João Paulo II.

Esses adversários temiam que, sem a referência central

a Deus, a sociedade arriscaria degringolar: "se Deus está

morto, tudo é permitido. Para que reine a ordem, os direi­

tos de Deus devem substituir os do homem. A ideolo­

gia totalitária, por sua vez, rejeita o humanismo das Luzes:

a finalidade da sociedade não é mais "a felicidade de todos

os indivíduos", mas uma abstração, o povo regenerado,

o Estado comunista, o futuro radioso.

Os desvios do espírito humanista das Luzes tomam

formas ainda mais variadas. Eles estão também presentes

desde o século XVIII; é Sade, novamente, que lhe forne­

ce as formulações mais extremas. Partindo do princípio

de que o homem é um fim legítimo de sua atividade,

ele procede a uma dupla redução: primeiro, a felicidade

é essencialmente trazida ao prazer sexual; depois, a huma-

lOS

HUMANIDADE

nidade é reduzida ao indivíduo isolado, ao sujeito que

deseja. "Nenhum limite a vossos prazeres senão de vos­

sas forças ou de vossas vontades'?". Nada limita então a

autonomia individual, que aspira unicamente à intensi­

dade da experiência no momento em que se produz: o

mundo se restringe ao aqui e ao agora. Sob uma forma

menos hiperbólica, esse raciocínio é compartilhado por

numerosos libertinos da época. Rousseau, ao contrário,

se lhe opõe formalmente. Primeiro porque ele não con­

segue imaginar que uma sociedade possa escapar de toda

regulação das forças e das vontades de seus membros: "Ensi­

na-me então em qual crime pára aquele que não tem por

leis senão os desejos de seu coração, e não consegue resis­

tir a nada que deseje?" Principalmente, Rousseau não

ignora que a auto-suficiência do indivíduo é uma arma­

dilha. "Todos sentirão que a felicidade não está neles mes­

mos, mas depende de tudo que os cerca"!". As doutrinas

sensualistas e egocêntricas falham não tanto por serem

imorais, mas porque são falsas. É verdade que as socieda­

des ocidentais dão freqüentemente a impressão de parecer

caricaturas que desenham delas seus adversários religiosos

do Ocidente e do Oriente: seus membros parecem preo­

cupados unicamente com o sucesso material, o dinheiro

e os prazeres que este pode comprar. Mas para deplorar

essa atitude, não é necessário invocar Deus: basta lem­

brar o quanto as necessidades humanas são na realidade

diversas e múltiplas.

O espírito das Luzes consiste, aqui, em diminuir a

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Page 54: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Es p i R I T O DAS L U ZE S

distância entre ação e a finalidade da ação: esta desce do

céu para a Terra e se encarna na humanidade, não em

Deus; ora, a ação em si é humana e terrestre. O desvio

desse espírito leva a desembaraçar-se não somente da fina­

lidade divina, mas de toda finalidade, qualquer que seja

ela, para só cultivar o movimento pelo movimento, a força

pela força, a vontade pela vontade. Nosso tempo se tor­

nou, em muitos sentidos, o do esquecimento dos fins e

o da sacralização dos meios. O exemplo talvez mais claro

dessa radicalização nos é fornecido pelo desenvolvimen­

to da ciência. Não é porque tal trabalho científico serve,

direta ou indiretamente, a finalidades especificamente

humanas - a felicidade, a emancipação ou a paz - que ele

será incentivado e financiado; é porque ele prova a vir­

tuosidade do sábio. Dir-se-ia que, se uma coisa é possí­

vel, deve tornar-se real. Caso contrário, por que ir a Marte?

A economia, por sua vez, funciona segundo o mesmo

princípio : o desenvolvimento pelo desenvolvimento, o

crescimento pelo crescimento. A instância política deve

se contentar em ratificar essa estratégia? Há várias déca­

das já, ela produziu resultados contestáveis nos países do

Terceiro Mundo; há anos, suas conseqüências se fazem

também sentir nos países industrializados do Ocidente.

Deve-se aceitar o triunfo do capitalismo financeiro, com

suas conseqüências, a globalização e as implantações de

filiais, porque elas são de nosso interesse ou porque tal é

a direção atual de um movimento embriagado de simesmo?

110 " 1,

H U M A N I D A D E

Semelhante desaparecimento de toda finalidade

externa parece abalar às vezes a vida política das demo­

cracias liberais, e começamos a duvidar: os homens (e

mulheres) fazem uma carreira política para colocar o poder

a serviço de certos ideais ou aspiram apenas ao poder

em si mesmo, sendo seu único horizonte o de mantê-lo

pelo maior tempo possível? O dilema é, claro, antigo, mas

adquire uma acuidade particular em nossos países. Um

exemplo desse desvio é fornecido por um episódio recen­

te da vida política francesa, o referendum sobre a Consti­

tuição Européia, no dia 29 de maio de 2005. As posi­

ções assumidas pelos dirigentes dos dois campos, o do

"sim" e o do "não" não eram óbvias . A própria decisão

de fazer um rejerendum, tomada pelo chefe de Estado fran­

cês, tinha alguma coisa de surpreendente. Jacques Chirac

sabia bem que seu partido tinha perdido as duas pesqui­

sas eleitorais precedentes e que ele corria então o risco

de se ver infligir mais uma derrota; sabia também que um

voto dos parlamentares, via completamente aceitável para

a aprovação do texto,já lhe era dado, pois, uma vez que

todos os partidos representados no Parlamento fossem

favoráveis ao projeto de Constituição, este seria aprova­

do por cerca de 90% dos votos. O presidente francês pre­

feriu mesmo assim correr o risco da derrota. Por quê?

Tudo leva a crer que tenha feito uma escolha puramen­

te tática: submeter a questão ao referendum lhe permitia

dividir o eleitorado de esquerda e com isso enfraquecê­

lo, almejando a eleição presidencial seguinte, em 2007.

111

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Page 55: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E SP ÍRI T O DAS L U ZE S

A Constituição européia, da qual o presidente Chirac

é provavelmente um sincero partidário, foi sacrificada no

altar de sua ambição pessoal, do desejo de garantir que

o poder ficasse em suas mãos e nas de seus fiéis. Na outra

ponta, Laurent Fabius, membro do Partido Socialista em

desacordo com sua direção c único personagem políti­

co de primeiro plano a se engajar na campanha pelo

não, não agiu diferentemente. Conhecido até aí por seus

engajamentos pró-europeus, surpreendeu ao se lançar

numa campanha pelo não, dando a impressão de que

ele também não conseguia tirar o olho da eleição pre si­

dencial de 2007. Seu primeiro objetivo, nessa ótica, era o

de impor-se como candidato incontornável da esquerda

inteira. Para isso, era-lhe necessário apostar alto, espe­

cialmente na esquerda de seu partido; ainda que provavel­

mente ligado à construção européia, ele escolheu por essa

razão favorecer o "não" ("de esqu erda") . Chirac, tanto

qu anto Fabius, parecem ter agido visando à conquista

do poder, mais do que para colocar tal poder a serviço de

uma idéia mais elevada.

O movimento que consi ste em aproximar progres­

sivamente uma finalidade do que devia ser o meio para

atingi-la, noutras palavras, para transformar o meio em

fim, esboça-se desde o século XVIII , mas fica curiosa­

mente limitado a um domínio particular, o da arte , e mais

especificamente da pintura. O pensamento que esta traz

através de seu modo de repre sentação do mundo parec e,

de fato, sempre preceder em um século ou mais o pen-

112

H U M A N I D A D E

samento que se exprime nos discursos. O interesse pela

análise do indivíduo em razão de sua própria singulari­

dade, independentemente das qualidades de que pode­

ria ser provido, afirma-se no século XVI com Montaigne

e seus contemporâneos, enquanto que na pintura já entra­

ra desde meados do século XV , com os retratos e auto­

retratos das pinturas hol andesas, depois as italiana s. No

século XVII , o discurso oficial em países protestantes elo­

gia as virtudes domésticas enquanto meio de se confor­

mar às ordens divinas; os quadro s dos pintores holande­

ses da mesma época mostram uma sublimação do huma­

no sem qu e este remeta a nenhuma realidade superior:

eles exaltam o gesto da mãe debruçada sobre seu filho, a

preocupação em seus olhos qu ando ele está doente.

N o século XVIII, a interpretação da pintura muda

de natureza; descobre-se nela, não um elogio de Deus,

nem mesmo do homem , mas da arte. O s afrescos de

Michelangelo, a C apela Sistina, produzidos, no entanto,

num espírito impregnado de religiosidade, dão ao pin­

tor inglês Reynolds, que os admira, "uma idéia da dig­

nidade da arte" ; a finalidade da arte é doravante encar­

nar a beleza, não a virtude. Goethe, diante dos me smos

afrescos, só tem olhos para a performance do artista, deixa

de lado a mensagem doutrinal. " É preciso ter visto a cape­

la Sistina para se ter uma id éia concreta do poder de

um homem'?" . O s próprios pintores produzem quadros

cuja justificativa parece ser, antes de tudo, a de tomar a

identidade secreta do que mostram , noutros termos, de

113

Page 56: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ES I' Í R I T O DA S L U ZE S

produzir a beleza - é o que testemunham os sonhadores

de Watteau ou as naturezas mortas de Chardin, as paisa­

gens de Gainsbourough ou os retratos imaginários de

Fragonard.

Assim fazendo, os pintores, bem como os especta­

dores de seus qu adros, se contentam em destacar uma

dimensão da pintura que estava presente desde sempre,

mas tinha passado em silêncio durante os séculos prece­

dentes, a saber, a própria art e de pintar. Essa descoberta

conduz às vezes ao que se chama "a arte pela arte". M as,

o que quer que seja da evolução artística, a política ou a

economia não devem obedecer às mesmas exigências:

pode-se admirar o estilo do político ou a habilidade do

empreendedor; deve- se, não obstante,julgar um e outro

a partir dos resultados de sua ação. Uma arte consciente

das leis que lhe são próprias não se opõe ao espírito das

Luzes. Ao contrário, quando a ciência ou a política dei­

xam perecer as finalidades humanas das ações que enga­

jam, põem em perigo esse espírito e as benfeitorias qu e

dele esperamos.

114

l

,~•l1,

1. ,

I 7 I UNIVERSALIDADE

Page 57: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

U NI VE R S ALI D ADE

A LIBERDADE DAS AÇ ÕES é limitada por sua finalidade

necessariamente humana, mas também pela tomada de

consciência desse fato : todos os homens pertencem à

mesma espécie e têm, por conseguinte, direito à mesma

dignidade. Essa exigência toma um sentido diferente

segundo se pensa nos cidadãos de um país ou nos habi­

tantes do globo terrestre.

Quando Rousseau observa a sociedade que o cerca ,

ele não encontra nem igualdade de direito nem igu al­

dade de fato. É o que o motiva a escrever sua primeira

reflexão de conjunto sobre a condição humana , o Dis­

curso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre

os homens, que termina com a severa constatação: "É mani­

festamente contra a Lei da Natureza [...] qu e um punha-

117

Page 58: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E spí R IT O D A S LU ZE S

do de gente esbanje superfluidade, enquanto à multidão

faminta falte o ne cessário" . Só para imaginar um come ­

ço de redistribuição das riquezas, é preciso colocar-se

no contexto de um Estado j usto, o que não é mais o

caso dos países onde viveu R ousseau. Ele se propõe então

refletir sobre com o deveria ser organizado tal Estado, e

apo nta, no Contrato social, para a exigên cia de uma igual­

dade rigorosa diante da lei . " O pacto soc ial estabelece

entre os cidadãos uma tal igualdad e que eles se engajam

todos sob as mesm as co ndições e devem go zar todos

dos mesmos direitos63" .A vontade que governa o país não

é realm ente geral senão sob a condição de não excluir

nenhuma voz .

A França do meio do século XV Ill está longe de satis­

fazer a essa exigência. Sua população está dividida em

castas qu e não gozam dos mesmo s privilégios, as mulhe­

res não têm os mesmos direitos que os homens e os escra­

vos não têm nenhum direito. Rousseau estabeleceu um

princípio; sua realização levará tempo. A idéia de igual­

dade do s cidadãos será adorada parcialmente em 1789,

mais completamente em 1848.A escravidão será abolida

no me smo ano.As mulheres só obterão o direito de voto

em 1944. Essa igualdade diant e da lei não basta, de resto,

para eliminar todas as discrimin ações, e a exigência de igual­

dade permanece atual em nossos dias. Nossos co mbates

se inspiram ainda nos programas das Luzes, eles prolon­

gam aqueles que foram entabulados dois ou três séculos

antes. Daniel Defoe j á afirmava qu e a inferio ridade das

I I!'!

U N I V ER S ALI D A D E

mulheres era devida unicamente à impossibilidade de

terem acesso à educação. H elvétius estava convencido

de que as mulheres eram, por natureza, iguais aos homens.

Condorcet pedia que os rapazes e mo ças fizessem os mes­

mo s estudos, nos mesmos lugares, formados pelos mesmos

professores, indiferentemente homens ou mulheres; que

a lei não afastasse as mulheres de nenhuma carreira.

O s pensadores das Luz es condenam a escravidão,mesmo qu e não se engajem numa luta eficaz contra ela.

"A escravidão é tão oposta ao direito civil quanto ao direi­

to natural" , declara M ontesquieu. Rousseau varre de uma

só vez todas as constantesjustificativas à manutenção dessa

prática. "Essas palavras, escravidão e direito, são contraditó­

rias; elas se excluem mutuam ente" . Condorcet entabula

suas Rejlexões sobre a escravidão dos m;\!ros (que ele assina sob

o pseud ónimo "M . Schwa rtz") por essas palavras:" R edu­

zir um homem à escravidão, comprá-lo, vendê- lo, mantê­

lo na servidão são verdadeiros cr im es, e cr imes piores

do que o roubo"' " . No momento da Revolução, ü lympe

de Gouges se propõe fazer um duplo com bate - pel a

abolição da escravidão, pela igualdade dos direitos da mu­

lher - escrevendo uma peça de teatro, A escravidão dos

Ilej(ros e lançando a Declaração dos direito s da mulher e

da cidadã; ela própria terá direito ao cadafalso...

Além das fronteiras do país, a un iversalidade ganh a

um outro sentido. Todos os habitantes de um país deve­

riam ser seus cidadãos; todos os habitantes do globo são,

de pronto, seres humanos. O que os homens têm em

119

Page 59: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

comum é mais essencial do que aquilo que os diferencia.

"Sou necessariamente homem e só sou francês por acaso"

- declara Montesquieu. Os que se sentem impregnados

pelo espírito das Luzes apreciam mais seu pertencimento

ao gênero humano do que a seus países. Denis Diderot

escreve a David Hume, em 22 de fevereiro de 1768:"Meu

caro David, o senhor é de todas as nações e nunca pedi­

rá ao infeliz seu atestado de batismo. Eu me vanglorio de

ser,como o senhor, cidadão da grande cidade do mundo'?".

A universalidade não é apenas responsável pela imagem

que se pode fazer de si mesmo; neste mundo, onde bem

e mal não podem mais ser fundados na palavra de Deus

nem nas lições da tradição, ela fornece uma legitimação

possível. A adesão à humanidade valida a escolha do bem.

"O que o senhor chama de justo e injusto?" - pergunta

Voltaire num de seus Diálo,CSosfilosqficos, e ele responde: "O

que parece com o universo inteiro". Rousseau interpre­

ta também o justo e o injusto como um efeito de altruís­

mo e de egoísmo. "Quanto menos o objeto de nossos

cuidados se liga a nós mesmos, menos a ilusão de inte­

resse particular deve ser temida; quanto mais se genera­

liza esse interesse, mais ele se torna justo, e o amor do

gênero humano não é outra coisa em nós senão o amor

pela justiça?"; sabe-se que Kant formulará nesse espírito

seu imperativo categórico: uma ação é boa se corres­

ponde a uma máxima que pode ser universalizada.

A igualdade está então na base dos direitos dos cida­

dãos e da moral dos homens. Estes possuem ainda direi-

120

UNIVERSALIDADE

tos que decorreriam de sua simples qualidade de seres

humanos? É o que pensam alguns autores, ligados à esco­

la do direito natural moderno, que procuram a origem

desses direitos, não numa ordem cósmica, nem na palavra

de Deus, mas no próprio fato de que nós pertencemos

todos à mesma espécie e somos providos da mesma dig­

nidade. Existe um Direito Universal, escreve no meio

do século XVIII Christian Wolff, um dos mais influentes

entre esses autores, é "aquele que pertence a cada homem

enquanto homem". Obviamente, esses direitos naturais

não têm o mesmo estatuto daqueles de que gozam enquan­

to cidadão, já que na ausência de um Estado provido de

seu aparelho de justiça nada garante que se possa usufruí­

los. Desse ponto de vista, esses direitos universais se apro­

ximam dos princípios morais, que, sem ter uma força res­

tritiva, são sentidos como desejáveis. Nada impede, no

entanto, um Estado de tomar para si os direitos ditos do

homem e de integrá-los à sua constituição. A partir desse

momento, mesmo se beneficiando de um reconhecimen­

to universal, eles adquirem a força de lei no interior do

país. É assim que procedem as Declarações dos direitos

dos Estados americanos, já em 1776, ou a Declaração

dos direitos do homem e do cidadão, na França, em 1789.

Hoje os direitos do homem gozam de um imenso pres­

tígio e quase todos os governos gostariam de se apresentar

como seus defensores. Isso não impede que os governos,

mesmo os mais eloqüentes nessa reivindicação, os rejei­

tem na prática quando as circunstâncias parecem exigi-lo.

121

Page 60: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E SPÍ R I TO D A S L U Z E S

Tal é o caso, por exemplo, da pena de morte. É

Beccaria que, em seu tratado, Dos delitos e das penas, expri­

me melhor o pensamento das Luzes sobre esse assunto.

Todo ser humano, como membro da espécie e não por­

que é cidadão deste ou daquele país, tem direito à vida,

e esse direito é inalienável: eu renuncio à minha liber­

dade natural para me beneficiar de uma liberdade (e de

uma proteção) civil, mas nunca concedi à comunidade,

nem explícita nem tacitamente, um direito de vida e de

morte sobre mim. O que poderia justificar essa supres­

são total da vontade individual pela vontade coletiva? Não

é a necessidade de impedir o criminoso de prejudicar j á

que, para matá-lo, teve-se de antes prendê-lo e ele já se

encontra na prisão. Expiar sua falta? Essa punição só teria

sent ido se acreditássemos numa forma de vida depois da

morte: no além, a pessoa executada poderia medir a gra­

vidade de sua falta graças à severidade da punição. Se a

pessoa não está lá, a lição é necessariamente inútil para ela.

Resta outra justificativa freqüentemente aferida, o

valor dissuasivo do castigo supremo junto aos sobrevi­

ventes: a punição como exemplo. No entanto, nenhu­

ma observação jamais veio confirmar a regularidade desse

efeito e o país ocidental que ainda pratica a pena de

morte, os Estados Unidos, é também aquele que detém

a maior taxa de criminalidade. Beccaria duvida, por sua

vez, que tal efeito seja possível já que, longe de se opor

ao assassinato que ela supostamente pune, a pena de morte

o imita. "O espírito feroz que guiava a mão do legisla-

122

U N IVER S AL IDADE

dor conduzia também aquela do parricida e do assassino".

El e pensa até que essa pena corre o risco de levar a

imitações. "A pena de morte é prejudicial pelo exemplo

de cru eldade que dá". É verdade que em tempos de guer­

ra cada governo autoriza e até encoraja seus represen­

tantes a matar o máximo de inimigos. M as, justamente,

a guerra é declarada porque nenhuma regra negociada pôde

ser atingida. O resto do tempo, os cidadãos de um país

vivem segundo a lei, e é comprometer a própria idéia de

lei imitar legalmente a ação militar. "Parece-me absurdo

qu e as leis, qu e são a expressão da vontade geral, que

reprovam e punem o homicídio, o cometam elas me s­

mas, e, para desviar os cidadã os do assassinato, ordenem

o assassinato p úblico'?" .

Outra tran sgressão dos direitos do homem, prati ca­

da esporadicamente pelos governos, é con stituída pela tor­

tura.Todo ser humano tem direito à integridade de seu

corpo; ele some nte pode renunciar a este, infligindo-se

mutilações ou suicidando-se. Então, assim como o homi­

cídio, a tortura não pode ser legalizada. O s governos a

praticam , não por sadismo, mas para obter informações

qu e julgam indispensáveis - eles queriam, escreve Becca­

ria, "que a dor se tornasse o cadinho da verdade"?". Esse

resultado tem um alto preço, já que, para ex trair con­

fissões cujo valo r permanece duvidoso (confessar-s e-ia

qualquer cois a para que a dor cessasse) , não somente

se inflige um sofrimento intolerável a uma pessoa tor­

turada que será marcada por toda a vida, mas também se

123

Page 61: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E SP ÍRIT O D A S L U Z E S

destrói interiormente o torturador, que perde o sentido

da comunidade humana universal, e envia-se a toda a popu­

lação uma mensagem autorizando a transgressão dos

limites colocados pela lei.

O exército francês praticou sistematicamente a tor­

tura durante a guerra da Argélia, em particular a partir de

1957, quando se confiou as funções de polícia, com a jus­

tificativa de que, numa guerra civil como aquela, o ini­

migo permanece invisível e a extração de informações

é necessária para identificá-lo. Acrescentava-se, muitas

vezes, o argumento de que "a bomba vai explodir daqui

a pouco"; caso, na realidade, excepcional, enquanto a tor­

tura envolvia milhares de pessoas e continuaria por muito

tempo depois da hora presumida do atentado. Germaine

Tillion, que procurava então impedir essas práticas, escre­

via ao arcebispo de Paris (7 de dezembro de 1957):"Duran­

te os últimos seis meses, numerosas moças muçulmanas

e cristãs foram torturadas por motivos fútei s ou sem moti­

vo: despidas, suplício da banheira, suplício da eletricidade

às vezes com eletrodos colocados sobre as partes geni­

tais, as mãos amarradas atrás e suspensas pelos pulso s, o que

é um suplício análogo ao da cruz, pois provoca asfixia":".

Foi dessa maneira que morreu também, em novem­

bro de 2003, o prisioneiro iraquiano Manadel al-Jama­

di , torturado na prisão de Abou Ghraib em Bagdá pelos

agentes da CIA. D epois de ter tido seis costelas quebradas

e a cabeça enrolada num saco plástico, ele foi suspenso

pelos punhos algemados atrás das costas; menos de uma

124

U N I VE R S A LI D AD E

hora depois de sua admissão na prisão, ele morreu por

asfixia.Alguns sobrevivem à suspensão, como Jean Améry,

prisioneiro da Gestapo durante a Segunda Guerra mun­

dial , na Bélgica, que deixou um relato detalhado de sua

experiência em Além do crime e do castigo. Outros ex-deten­

tos, saídos do campo de Guantánamo, contam que foram

espancados, colocados nus numa jaula, obrigados a engo­

lir medicamentos e ver filmes pornográficos, alem de

serem ameaçados de perto por cães mantidos em coleiras:

longínqua reminiscência dos ratos que esbarram nos

rosto s dos prisioneiros em 1984.

Os serviços secretos americanos não são provavel­

mente os únicos a submeter seus prisioneiros à tortura;

no entanto, o governo dos Estados Unidos tomou uma

posição excepcional tentando legalizá-la . No dia seguin­

te aos atentados de 11 de setembro de 200 1, o vice-pre­

sidente Cheney prometeu utilizar todos os meios à sua

disposição para combater o terrorismo. Um memorando

do departamento de Justiça, datado de primeiro de agos­

to de 2002, enumera alguns desses meios: fazer sufocar os

indivíduos sem provocar a morte, privá-los de medicamen­

tos para suas feridas, impedi-los de dormir, ensurdecê-los

e cegá-los Trata-se freqü entemente de uma tortura psíqui­

ca mais do que física, mas que conduz os detentos à beira

da loucura e deixa traumatismos indeléveis. O governo

am ericano recusa sistematicam ente tratar esses terroris­

tas de acordo com a convenção de G enebra sobre os

prrsioneiros de guerra. Um sen ador americano, John

125

Page 62: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o EspíRITO DAS LUZES

McCain, antigo prisioneiro que sofreu tortura no Vietnã,

introduziu um projeto de lei impondo às prisões da elA

as mesmas regras das outras prisões americanas; noutros

termos, tornou a tortura ilegal. O projeto, que o Sena­

do finalmente votou, foi asperamente combatido pela Casa

Branca. Esses atas de tortura continuam se produzindo

anos depois dos atentados terroristas e das intervenções

militares. O que é chocante, aqui, é que a tortura não é

somente tolerada, mas é reivindicada em nome da luta

pela segurança interna e pelos direitos do homem ­

esses mesmos direitos que ela ultraja.

Pena de morte e tortura constituem, então, uma rejei­

ção da universalidade que reivindicam as Luzes. Os des­

vios de que ela mesma é objeto consistem numa ruptura

do equilíbrio entre universal e particular, entre unifica­

ção e tolerância. As Luzes pedem as duas, o que faz supor

que a fronteira que as separa não pode ser fixada de uma

vez por todas. Se quaisquer meios servem para impor a

unidade, a liberdade de cada um fica ameaçada. Se os direi­

tos do homem permanecem a única referência incon­

testável no espaço público e se transformam em medida

de ortodoxia dos discursos e dos atas, entra-se no espaço

do "politicamente correto" e do linchamento midiático,

versão democrática da caça às bruxas: uma espécie de

leilão virtuoso que tem por efeito reprimir qualquer pala­

vra que lhe escape.

Essa chantagem moral aparecendo em segundo plano

de todos os debates é nefasta para a vida democrática.Traz

126

UNIVERSALIDADE

uma dominação excessiva do bem sobre o verdadeiro e

dá, por isso, uma aparência de mentira a tudo aquilo

que ruidosamente proclama-se como do bem, uma apa­

rência de verdade a tudo o que se opõe ao discurso

dominante. É assim que prosperam, na França, as teses

de extrema direita, a qual se vangloria de ser a única a

ousar "falar a verdade", enquanto afirma simplesmente o

contrário do politicamente correto. Por aí adquire direito

de cidadania o que se poderia chamar de "politicamente

abjeto".

O direito não deve ser confundido com a moral,

nem os autores de teorias que nos desagradam levados

diante de um tribunal. Segundo Beccaria: "A tarefa dos

juízes é de fazer respeitar, não os sentimentos dos home­

ns, mas os muitos pactos que os ligam entre si7 I" , Pela

mesma razão, a justiça internacional não deve aspirar ao

papel de moral universal, mas apoiar-se sobre os pactos

e contratos realmente existentes, como aqueles que ligam

entre si os países membros da União Européia. Um direi­

to que não garante nenhuma força e com cujo uso teriam

consentido todos os partidos contratantes compromete

a própria idéia de direito.

Não é admitido que um país faça uso da violência

a fim de restaurar a legalidade ou os direitos do homem

em seu vizinho, o que se chama às vezes, hoje, de direi­

to de ingerência. O uso do termo "direito", nessa última

expressão, é dos mais singulares: de onde poderia vir esse

direito que me outorgo a mim mesmo para resolver os

127

Page 63: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E spiR IT O DAS L UZE S

negócios de outrem, uma vez que ele jamais consentiu?

Se uma solidariedade nos liga a todos os habitantes da

Terra , ficamos encarregados , em caso de necessidade,

de ter um dever de assistência, não " direito" de invadir

militarmente o país onde pessoas sofrem. O problema,

aqui , é que o meio utilizado anula o fim buscado, como

no caso da tortura praticada pela c rx, Esse possível des­

vio obriga a traçar um limite claro entre propor e impor,

influenciar e forçar, paz e guerra: o primeiro termo não

anula nossa compaixão pelo sofrimento dos outros, o

segundo o faz.

Pierre Bayle, um dos precursores imediatos das Luzes,

um protestante fugitivo da perseguição católica, soube

encontrar as palavras ne cessárias para advertir todos os

que fossem tentados a empregar a força para impor o bem.

Este, em seu caso, foi definido pelos católico s qu e que­

rem salvar as almas dos protestantes, portanto torná-los

mais felizes; para fazê-lo, eles não hesitam em recorrer à

for ça: o bem é tão grande que se acomoda com alguns

sacrificios (dos outros). Eis o comentário que faz Bayle

desse preceito tirado do Evangelho," Impeça-os de entrar"

(Luc as, XIX, 23), utilizado para justificar as perseguições:

"Batam, chicoteiem, prendam, matem todos aqueles qu e

são teimosos; tirem-lhes suas mulheres e filho s: tudo isso

é bom quando se pratica em minha causa; noutras cir­

cunstâncias, seriam crimes enormes?". Não se pode atin­

gir um fim nobre pelos meios ignóbeis, pois a finalida­

de será perdida no cam inho. É assim que proced eram

12H

~ I

\

U NI V E R SALIDA ll E

os colonizadores que submeteram populações inteiras

sob pretexto de trazer-lhes a igualdade.

É assim que agem hoje as forças armadas que, aqui

ou ali, pretendem levar a liberdade aos povos e, com

esse fim , lançam sobre eles bombas "humanitárias" .

A universalidade não justifica o uso da força, fora de

qualquer lei. Mas, ao contrário, o respeito de cada um não

significa que as normas comuns não tenham razão de ser.

Nem por estarem profundamente ancoradas nas tradições de

um país estrangeiro, algumas práticas são menos condená­

veis.A extirpação de clitóris é um exemplo: transgressão

de um direito humano, ela não justifica uma intervenção

armada; mas esta não é o único meio de açâo disponível.

Nós esquecemos quanto, num passado não muito longín­

quo, no ssas próprias práticas foram diferentes das de hoj e;

se mudaram, não é por causa de uma ocupação estran­

geira, mas por ne cessidade interna. Quando, ao cont rá­

rio, a extirpação é praticada no seio de países cuja lei a

proíbe, não há nenhuma razão para tolerá-la enquanto

especificidade cultural. O mesmo vale para violências infli­

gidas às mulheres, outra "tradição" bem difundida ; ou

ainda maus tratos infligidos nas prisões, ou ate n tados

perpetrados contra a liberdade de expressão. Considerar

que todas as práticas se equivalem leva, por trás da másca­

ra da tolerância, a renunciar à unidade da espéc ie e, afinal

de contas, a julgar os outros como incapazes ou indig­

nos de se beneficiarem do mesmo tratamento qu e nos é

reservado. A igualdade dos direitos não é negociável.

129

Page 64: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ES P Í R I TO DA S L U Z E S

A época das Luzes se caracteriza pela descob erta dos

outros em seu estrangeirismo, tenham eles vivido outrora

ou alhures: cessamos então de ver neles uma encarnação

de nosso ideal ou um anúncio longínquo de nossa per­

feição presente, como se fazia nas épocas precedentes. Mas

esse reconhecimento da pluralidade no seio da espécie só

permanece fértil se escapar ao relativismo radical e não

no s faz renunciar à no ssa humanidade comum .

130

I 8 I As LUZES E A EUROPA

Page 65: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

1A s L U Z E S E A EUROPA

o ESPÍR ITO DAS LUZES, tal como se pode descrevê-l o hoje,

levanta um probl ema curioso : encontram-se nele os ingre­

dientes de épocas variadas, em todas as grandes civilizações

do mundo; e, no entan to, ele só conseguiu se impor a

partir de um momento preciso, no século XV III, e parti­

cularm ente num lugar, a Europa ocidental. Examinemos

brevemente cada uma dessas propostas.

Ainda qu e não se possa ob servá-lo em todo lugar e

sem pre, o pensamento das Lu zes é universal: eis o qu e

somos obrigados a constatar antes de tudo. N ão se trata

apenas das práticas que o pressupõem, mas também de

uma tomada de co nsciência teórica. Encontram-se traços

desde o século III a.C, na Índia, nos preceitos dirigidos

aos imperadores ou nos editos que estes difundem. Encon-

133

Page 66: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

tram-se ainda nos "pensadores livres" do Islã dos séculos

VIII a x; ou durante a renovação do confucionismo sob

os Song, na China, nos séculos XI e XII; ou nos movimen­

tos de oposição à escravidão, na África negra, no século

XVII e no início do XVIII. Enumeremos, um pouco ao

acaso, alguns desses elementos de doutrina provindos

dos condados mais diversos".

É o caso, por exemplo, das recomendações de tole­

rância religiosa, ligadas à pluralidade das religiões prati­

cadas num mesmo território bramaísta e budista na Índia,

confucionismo e budismo na China, presença de muçul­

manos, judeus, cristãos, zoroastristas, maniqueístas do

Oriente Médio, ou ainda na África negra, co-presença do

islã e das tradições pagãs. Em todo lugar se constata ­

como se dirá freqüentemente na Europa no século XVIII

- que a tolerância é, para todos, preferível à guerra e às

perseguições. Outra exigência, provavelmente ligada à

precedente, diz respeito à laicidade, à necessidade de sepa­

rar o político e o teológico, o poder do Estado e o da reli­

gião. Deseja-se que a sociedade dos homens seja dirigi­

dacom base em princípios puramente humanos - e, assim,

que o poder sobre a terra fique antes entre as mãos do

Príncipe do que de intermediários do além.

Autonomia do poder político, autonomia também

do conhecimento.Assim é a idéia, presente na Índia, de que

o rei não deve se submeter à tradição, aos presságios ou

às mensagens dos astros, mas deve confiar unicamente

na investigação racional. Ou ainda da defesa, pelo célebre

134

,

t

As LUZES E A EUROPA

médico árabe Razi, no século IX, do saber estritamente

humano, buscado na experiência e balizado apenas pela

razão. As muitas invenções técnicas que pululam na his­

tória da China dão testemunho de uma atitude de livre

busca no domínio do saber; dá-se o mesmo nos pro­

gressos atingidos no mundo islâmico por ciências como

a matemática, a astronomia, a ótica, a medicina.

Outro traço igualmente difundido diz respeito ao

próprio pensamento da universalidade, da igual digni­

dade de todos os seres humanos, dos fundamentos uni­

versais da moral, e então da unidade do gênero humano.

"Não há atividade superior capaz fazer bem ao mundo

inteiro", declara o imperador hindu Asoka no século III

a.C. É este pensamento da universalidade que se torna

também o ponto de partida do combate contra a escra­

vidão na África: em 1615,Ahmed Baba escreve um tra­

tado pleiteando a igualdade das raças e refutando então

qualquer legitimidade às práticas escravagistas.

Essas manifestações, que ajunto um pouco arbitraria­

mente aqui em torno do que julgamos ser o espírito

das Luzes européias, desempenham um papel mais ou

menos forte, mais ou menos durável. Na Índia, a recomen­

dação de privilegiar a investigação racional, em detrimen­

to das crenças e das superstições, é reservada ao monar­

ca, ela não será generalizada a toda a população. Por mais

proximidade que haja com as Luzes, ela diz respeito essen­

cialmente ao que se chama "despotismo esclarecido". Os

"pensadores livres" muçulmanos são severamente reprimi-

135

Page 67: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ES P Í R I T O DA S L U ZE S

dos a partir do século x. A aproximação mais significativa

permanece com o ensino confuciano na China, que con­

cerne por princípio a um mundo natural e humano: colo­

ca como objetivo o aperfeiçoamento da pessoa, e, como

meio, a educação e o trabalho. Não é um acaso se os

filósofos europeus do século XVIll sentem uma simpatia

particular pelo "modelo" chinês (do qual são, é preciso

admitir, uma idéia bastante aproximativa).

Esses desenvolvimentos múltiplos dão testemunho,

pois, da universalidade das idéias das Luzes, que não

são, de forma alguma, apanágio apenas dos Europeus.

Entretanto, é justamente na Europa que no século XVIII

se acelera e se reforça esse movimento, é ali que se for­

mula a grande síntese do pensamento que se difunde em

seguida para todos os continentes: primeiro na América

do Norte, em seguida na própria Europa, na América

Latina, na Ásia e na África. Não se pode deix~r de fazer

a pergunta: por que na Europa mais do que alhures, na

China, por exemplo? Sem querer resolver esta dificil ques­

tão (as mutações históricas são fenômenos infinitamen­

te complexos, de múltiplas causas, e mesmo contradi­

tórias), pode-se assinalar um traço presente na Europa

e ausente noutros lugares: é a autonomia política, a do

povo e do indivíduo. Esse indivíduo autônomo encon­

tra aqui um lugar no próprio seio da sociedade, e não

fora dela (como podia ser o caso dos "renunciantes" na

Índia, dos místicos na terra do islã,dos monges na China).

O próprio às Luzes européias é ter preparado o aconte-

136

,I'fi1

A s L U ZE S E A EUROP A

cimento conjunto dessas noções: indivíduo, democracia.

Mas como explicar que essas idéias tenham podido pros­

perar justamente na Europa?

Ainda aí, a resposta só pode ser complexa: no entan­

to, um fato salta aos olhos: o de a Europa ser ao mesmo

tempo una e múltipla. Os homens das Luzes tinham obser­

vado bem isso: as potências européias formam entre si

uma espécie de sistema, elas estão ligadas tanto pelo comér­

cio como pela política, e elas se referem aos mesmos prin­

cípios gerais.

Esse sistema está fundado, de um lado, sobre a uni­

dade da ciência e a possibilidade de entender-se sobre o

que constitui um progresso em matéria de conhecimen­

to; e de outro lado sobre a comunidade de um ideal,

que se deve tanto ao ensino cristão quanto às tradições

do direito natural. Rousseau constata a contragosto:"Não

existem mais hoje franceses, alemães, espanhóis, ingleses

ou o que quer que seja; só há europeus74" . Ao mesmo

tempo, os europeus são bem sensíveis às diferenças que

separam os países, e por isso mesmo: dessas diferenças, eles

tiram proveito.Viagens e estadias no exterior se tornaram,

mais do que comuns, indispensáveis. Antes de se dedicar

a sua grande obra O espírito das leis, Montesquieu julga

necessário percorrer a Europa e estudar os costumes dos

diferentes povos que ali se encontram. ))0 mesmo modo,

para aperfeiçoar sua educação, Boswell se lança numa gran­

de viagem pela Europa. Quanto ao príncipe de Ligne,

marechal-de-campo austríaco, embaixador na Rússia,

137

Page 68: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

escritor de língua francesa, ele calculou ter feito trinta e

quatro vezes a viagem entre Bruxelas e Viena e ter pas­

sado mais de três anos de sua vida num carro. Ele con­

clui: "Gosto do meu estado de estrangeiro em todo lugar:

francês na Áustria, austríaco na França, ambos na Rússia;

é o meio de se comprazer em todos os lugares e não ser

dependente de nenhum lugar75" .

O país estrangeiro pode ser tanto o lugar onde se

aprende, quanto aquele onde se escapa das perseguições ou

aquele em que se aguilhoa sua própria busca. Na França,

Lavoisier não teria sabido perscrutar o segredo do ar e da

água se não tivesse sido estimulado pelas descobertas para­

lelas de Priestley na Inglaterra. Definitivamente, nen­

hum país é melhor do que os outros: Prévost, Voltaire,

Rousseau passam temporadas na Inglaterra, Hume Boling­

broke, Sterne na França, Winckelmann e Goethe irão à

Itália, Beccaria virá à França. De seu lado,Voltaire, Mau­

pertuis e La Mettrie abandonam a França para se colo­

carem sob a proteção de Frederico II em Berlim, Diderot

vai aconselhar Catarina II na Rússia. A pluralidade é, em

si mesma, fonte de beneficios; depois de ter comparado

ingleses, franceses e italianos, Voltaire conclui: "Eu não

sei a qual das três nações seria preciso dar preferência,

mas feliz daquele que sabe sentir seus diferentes méritos7" " .

Ele não nos revela, no entanto, a razão dessa felicidade.

É preciso dizer que, com relação às outras partes

do mundo, a Europa se distingue efetivamente pela mul­

tiplicidade dos Estados estabelecidos sobre seu território.

138

It,

I

As LUZES E A EUROPA

Se comparada à China, cuja superficie é mais ou menos

semelhante, pode-se ficar chocado com o contraste: um

só Estado opõe-se hoje a uns quarenta Estados inde­

pendentes. É nessa multiplicidade, que parece ser uma

desvantagem, que os homens das Luzes viram a vanta­

gem da Europa; e a comparação com a China que lhes

parece,justamente, a mais esclarecedora. Hume declara:

"Na China parece existir um fundo considerável de cor­

tesia e de ciência do qual poderíamos esperar que, em

tantos séculos tivesse eclodido alguma coisa mais perfei­

ta e mais acabada do que aquilo que realmente já surgiu.

Mas a China é um vasto império falando uma única

língua, regido por uma lei única, unido pela mesma

maneira de viver?". Um fundo de origem inventiva e

criador foi sufocado pela existência de um imenso impé­

rio unificado onde o reinado incontestado da autorida­

de, das tradições, das reputações estabelecidas provocou

a estagnação dos espíritos. Contrariamente ao que afirma

o adágio antigo, aqui é a divisão que faz a força! Hume

é talvez o primeiro pensador que vê a identidade da Euro­

pa, mais do que um traço compartilhado por todos (a

herança do Império romano, a religião cristã), em sua pró­

pria pluralidade: não a dos indivíduos, mas dos países

que a formam. Resta compreender por qual operação

alquímica consegue-se converter, não a lama em ouro,

mas uma característica em si mesma negativa (a diferen­

ça) em qualidade positiva; e como a pluralidade pode gerar

a unidade.

139

Page 69: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

Os pensadores do século XVIII quiseram saber em

que podiam consistir os beneficios da diversidade e for­

mularam várias respostas, talvez porque tenham sido con­

frontados com essa questão em diferentes áreas. Para

começar, a pluralidade mais problemática, a das religiões:

em viagem a Haia, Voltaire alegra-se com a tolerância

que ali reina: todas as religiões parecem boas, mas nenhu­

ma busca eliminar as outras. Dez anos mais tarde, durante

sua estada na Inglaterra, ele observa os mesmos benefi­

cios da pluralidade, e conclui: "Se só houvesse na Ingla­

terra uma religião, seria de temer-se o despotismo; se

houvesse duas, elas cortariam a garganta uma da outra;

mas há trinta, e elas vivem em paz e felizes":". Advi­

nham-se as razões dessa preferência: se uma religião

ocupasse uma posição hegemónica, seus zeladores seri­

am inevitavelmente tentados a oprimir os outros, até

fazê-los desaparecer. Por outro lado, a presença de ape­

nas duas religiões alimentaria excessivamente a rivali­

dade: a lembrança das guerras de religião, guerras civis

que ensangüentaram a França está ainda fresca em todas

as memórias. A pluralidade começa a partir da cifra três,

e implica que uma instância exterior, portanto não reli­

giosa, garante a paz entre elas: é melhor separar poder

espiritual e poder temporal. Montesquieu, por sua vez,

não condena as religiões, mas deseja que sejam nume­

rosas: cada uma delas busca inculcar em seus fiéis boas

regras de conduta, "ora, o que haveria de mais capaz

de animar esse zelo do que sua multiplicidadej"'" A

140

As LUZES E A EUROPA

pluralidade favorece a emulação e toda boa vontade

nunca é demais.

Num ensaio publicado em 1742 e intitulado Do

nascimento e do progresso das artes e das ciências, Hume se

interroga sobre o que favorece o desabrochar cultural, e

constata: a pluralidade de Estados compondo o espaço euro­

peu é aparentemente um elemento favorável. Sua vantagem

é dupla: esses países não são inteiramente estrangeiros uns

aos outros, eles são "ligados pelo comércio e pela políti­

ca"; ao mesmo tempo, sua pluralidade cria um espaço de

liberdade. Hume descobre, com efeito, que ela favorece o

espírito crítico - sufocado, ao contrário, pela unidade. Não

somente porque o grande território unificado exige um

poder forte e torna seus dirigentes tão afastados do cida­

dão ordinário quanto este tem a tendência a sacralizá-los

e a imaginá-los como se estivessem acima de qualquer

crítica; mas também porque, num espaço unificado, uma

reputação superestimada nunca é objeto de críticas e corre

o risco de se manter por muito tempo. Esse destino funes­

to é ilustrado, como acabamos de ver, pelo caso da China,

mas também pelo do cristianismo: a dominação uniforme

("católica") dessa religião "trouxe a degenerescência de todo

tipo de saber".Ao contrário, desde a Reforma e o reconhe­

cimento de várias formas de cristianismo, uma nova dire­

ção é tomada, as artes e as ciências podem reflorescer.

O espaço europeu contemporâneo de Hume ofe­

rece a vantagem da pluralidade que nutre a vigilância para

com toda afirmação e toda reputação. "Onde numero-

141

Page 70: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o E S I' Í R I TO DA S L U Z E S

sos Estados vizin hos dese nvo lvem uma grande troca de

art e e de comércio, a invej a recíproca dissuade uns de aco­

lher levianamen te a lei dos outro s em m atér ia de go sto

e raciocínio, e lhes f:1Z exa minar cada obra de arte com

o maior cuidado e a maio r exatid ão". Uma apreciação

passageira por talou qu al obra em Paris corre o r isco

de não ter muito impacto em Londres, Berlim ou Mi lão .

Se os gostos fianceses tivessem sido impostos pela força

a todo espaço europe u, ningu ém teria ousado criticar a

ciênc ia e a filosofia de D escartes. C omo não foi o caso,

estas foram subm etidas, fora das fronteiras francesas, a uma

crítica vigo rosa, e em seguida foram ex clu ídas pela fisi­

ca de N ewton . Por sua vez, esta última foi o bjeto de

exa mes impied osos fora da Inglater ra, que permitiram

m elhorá-la . Assim , cada um pode aprove ita r da lu ci ­

dez de seu vizinho para cu rar suas própri as cegue iras.

Se uma o bra co nsegue im por-se alé m das fro n tei ras

nacionais, isso é justamente sina l de sua qua lidade supe­

ri or: tal reputação não foi certamen te usu rpada.

A Europa não é a primeira a se ben eficiar da plu­

ralidade interi or. Esta havia já sido responsável pelo apo­

ge u da cultura grega antiga . A disposição geográfica das

cidades gregas, separadas por cade ias de montan has garan­

tia- lhes a independênc ia; a língu a e os interesses co m uns

favorec iam ao mesm o te m po a co m unicação. R esultou

daí um bom equilíbrio entre pluralid ade e uni dade : era

uma "conste lação de pequenos principad os" o nde, no

entanto, "suas riva lidade e debates afinavam as in telig ên-

142

A s L U Z E S E A E U R OP A

cias". O contine nte onde viveu H ume foi co nstr uído no

mesmo modelo: "A Europa é agora uma rép lica em gra n­

de escala do exem plo que foi a Gréci a em m ini atu ra" .

Daquilo qu e alguns conside ram como um en trave nasce

sua superioridade: "A Europa é, das quatro partes do mundo,

a mais despedaçada [...]. Eis por que as ciênc ias nasceram

na Grécia e por que a Europa foi a mai s perman ente

das terras de acolhida":". O s europe us dign os de Hume

seriam os qu e não se contentam em tolerar a diferen ça dos

o utros, mas qu e, dessa ausência de identidade, tiram um a

presen ça: a do espír ito crít ico vigi lan te que não pára

diante de nenhum tabu , qu e se permite exa minar impar­

cialmente todas as tradições, fundando -se sobre o qu e todos

os homens compartilham, isto é, a razão. Nisso, ele se enco n­

tra co m M ontesquieu , cuja grande idéia política é qu e,

para favo recer a liberdade, cujo direito à crí tica é uma

das principais fo rmas, é preciso qu e os poderes seja m

plurais, mais do qu e co ncentrados nas mesmas mãos.

R een contra-se então o probl ema da pluralidad e e de

seus eventuais benefícios no espaço politico.j á qu e as opi­

ni ões e as escolhas dos cidadã os que o com põem são

em ge ral bem variadas; ora , a república qu e os un e deve,

para terminar, falar com uma só voz. Pode- se então obser­

var aqui a man eira de levar em co nta a pluralidade dos

indi víduos para ver se ela pode nos servir de modelo para

a coexistênc ia das nações.

A so bera n ia popular encar na-se numa vo n tade

co m um, mas qu al relação esta tem co m a vontade de cada

143

Page 71: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Es p í R I T O D A S L U Z E S

um? Para responder a essa qu estão, Rousseau introduz uma

distinção que não foi sempre bem co m preendida, en tre

vontade de todos e vontade geral. A vontade de todos é

a soma m ecân ica das vontades particulares. Seu ideal é a

unanimidade, porém sua realidad e é apenas a m aioria

das vozes. Quando as opiniões divergem, essa vontade não

, mais de todos; o u então, ela deve fazer de modo que eles

esteja m de acordo. A idéia de uma vontade de todos co n­

tém em ger me o proj et o totalitário: todos os cidadãos

devem reivindicar o mesmo ideal, as opiniões dissiden tes

- qu ando as há - serão rep rimidas e elim ina das.

A vontad e ge ral no sentido de R ousseau, ao con­

trári o, é uma co nside ração das diferen ças. Sua "gene rali­

dad e" deve ser ente ndida como uma igu ald ad e di ante

da lei : nenhum cidadão é posto à parte, nem tido co m o

inferior aos outros."Toda exclusão forma l rompc a ge ne­

ralidade". Em qu e sentido ela é com um a todos? Ela repre­

senta , acrescenta R ousseau , a " so ma das diferen ças" das

vo ntades parti culares, " uma soma de pequ cn as diferen ­

ças"!" . R ousseau se serve aqui da lin gu agem do cálc ulo

infi nitesim al, tal co m o foi elaborado por Leibniz . A vo n­

tade ge ral não é uma so ma de identidades, ela até se opõe

a cada id entidade individual e consis te em buscar uma

generalida de incluindo as diferenças . Leibniz ilustra essa

passagem do particu lar ao gera l por uma co mparação entre

a cidade, un a, e a visão qu e dela têm seus habi tantes:" U ma

m esma cidade vista de vár ios lados parece out ra, e ela é

co mo que multiplicada perspccti varn ente".

144

A s L U Z E S E A E U R O P A

Co nc re ta me n te, ca da cida dão tem se u p rópri o

in te resse; ora, o interesse diverge de um indiví duo a outro .

Se se renuncia a forçar as pessoas a se submeterem , a ún ica

solução é fazer de modo qu e cada um se torne co nscicn­

te da parcialid ad e de seu ponto de vista, tal co mo o de

um habitante qu alqu er da cidade , que ele se des taq ue dela

(que aja " no silênc io das paixões" , seg undo uma expres­

são de Diderot'"), e que se coloque no po n to de vista

do in teresse geral. É assim, afinal, que , numa democracia,

se supô e qu e os eleito s ajam no interesse de todos, mesmo

quc ten ham sido eleitos pelos votos de alguns ape nas. Para

conseguir isso, cada um deve se co locar provisoriam ente

no lu gar d e seu viz in ho, cuj a o pin ião difere da sua, e

tentar raciocin ar co mo este faria a fim de poder em segui­

da adorar um ponto de vista que leve em conta a dife­

ren ça en tre u m e ou tro. Kant, que persegue a refl exão

de R ousseau so bre esse assunto, não acha qu e se trate

de uma tarefa sobre-huma na:" N 30 há nada de mais natu ­

ral, afirma, qu e pen sar co loca ndo -se no lugar de qualque r

outro ser humano"!" . Proced er-se- á assim a uma integra­

ção das di feren ças numa un idade de tip o superior.

A lição das Luzes co nsiste então em dizer que a plu­

ralidade pode faze r nascer uma nova unidade, ao menos

de três m an eiras: ela inc ita à tolerân cia dentro da em u­

laÇ30, dese nvo lve e protege o livre espírito crítico, facilita

o desligam en to de si, co nduzindo a um a integra ção supc ­

rior de si e de o utrem. Como não ver que a co nstrução

e uropé ia , hoj e, pode tirar proveito dessa lição? Para qu e

145

Page 72: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

essa construção dê certo, ela não deve ater-se unicamente

aos tratados sobre as tarifas alfandegárias, nem conten­

tar-se unicamente em melhorar as estruturas burocráti­

cas, mas assumir também um certo espírito europeu, do

qual os habitantes do continente possam se orgulhar. Con­

tudo um problema se coloca aqui: o que todas as nações

européias possuem em comum - racionalidade científi­

ca, defesa do Estado de direito e dos direitos do homem

- possui uma vocação universal, e não especificamente

européia. Ao mesmo tempo, esse substrato comum não

basta para organizar uma entidade política viável, ele deve

ser completado por escolhas particulares, enraizadas na

história e na cultura de cada nação. O exemplo da lín­

gua é revelador: cada grupo humano fala a sua em vez

de adotar uma língua universal; a existência de uma lín­

gua de comunicação internacional, como o inglês hoje,

não suprime de forma nenhuma as línguas particulares.

Além do mais, no decorrer de suas histórias, as nações

européias viram confrontar-se as opções ideológicas mais

diversas, e cada doutrina dominante suscitou doutrinas

que a combateram.A fé pertence à tradição européia - mas

o ateísmo também, a defesa da hierarquia e a da igual­

dade, tanto a continuidade como a mudança, a extensão

do império como a luta antiimperialista, a revolução tanto

quanto a reforma ou o conservadorismo. As populações

européias são diversas demais para poder serem reduzi­

das a alguns elementos comuns; além do mais, elas rece­

beram a contribuição de outras populações migrantes, que

146

11 As LUZES E A EUROPA

trouxeram consigo sua religião, costumes, memória. A

"vontade de todos", para falar como Rousseau, não pode­

ria se impor sem que uma parte dos europeus sofresse

uma pressão violenta dos outros; ou então ela não pas­

saria de um falso semblante, uma máscara virtuosa com

a qual procuraríamos nos fantasiar.

Contudo, a identidade da Europa e, portanto, sua

"vontade geral", poderá se afirmar se nos apoiarmos nas

análises feitas na época das Luzes; se, em vez de isolar tal

qualidade para imputá-la a todos, tomássemos por base de

unidade o estatuto acordado de nossas diferenças e as

maneiras de delas tirar proveito: favorecendo a tolerância

e a emulação, o livre exercício do espírito crítico, o dis­

tanciamento de si permitindo projetar-se em outrem e ter

acesso assim a um nível de generalidade que inclui o ponto

de vista de uns e outros. Se quiséssemos escrever uma

história idêntica para todos os europeus, seríamos obri­

gados a suprimir toda fonte de desacordo; o resultado seria

uma história devota dissimulando tudo o que perturbas­

se, de acordo com as exigências do "politicamente cor­

reto" do mornento. Se, ao contrário, se tenta escrever uma

história "geral", os franceses não se contentariam em estu­

dar sua história colocando-se exclusivamente em seu próprio

ponto de vista, mas levariam em conta o olhar dos alemães,

ingleses,espanhóis, ou argelinos e vietnamitas sobre essesmes­

mos eventos. Eles descobririam, então, que seu povo nem

sempre desempenhou os papéis vantajosos do herói e

da vítima, e escapariam assim da tentação maniqueísta

147

Page 73: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o Es p i R I T O DA S L U ZE S

de ver bem e m al repartidos de cada lad o da fronteira.

É precisamente essa ati tude qu e os europeus de ama ­

nhã poderiam ter em co mum e estimar como sua maior

herança.

A capacidade de integrar as diferenças sem fazê-las

desaparecer distingue a Europa de outros grandes conjun­

tos políticos mundiais: da Índia ou da China, da Rússia

ou dos Estados Unido s, onde os indivíduos são extre­

m amente diversos, mas incluídos no seio de uma nação

única. A Europa reconhece não somente os direitos dos

indivíduos, mas também os das comunidades históricas,

culturais e polític as que são os Estados membros da União.

Essa sabedoria não é um dom do céu, ela custou muito

caro : antes de ser o cont inente qu e encarnava a tolerân­

cia e o reconhec ime nto mútuo, a Europa foi o das dila­

cera ções dolorosas, do s conflitos chacinantes, das guer­

ras incessantes. Essa longa experiência de que guarda lem­

brança, tant o nas narrativas qu anto em suas construções,

até em suas paisagens, é o tributo que foi necessário

para acertar suas contas e para pod er, séculos mais tarde,

beneficiar- se da paz.

As Luzes são a criação mais prestigiosa da Europa,

e elas não poderiam ter visto o dia sem a existência do

espaço europeu, ao mesmo tempo uno e múltiplo. Ma s

o inverso é igualmente verdadei ro: são as Luzes que estão

na origem da Europ a, tal como a concebemos hoje. D e

modo qu e se pode dizer sem exagero: sem a Europa, nada

de Luz es; mas também: sem as Luzes , nada de Europa.

148

AS LUZES PERTEN C EM ao passado.j á que existiu um século

das Luzes; no entanto, elas não podem " passar", poi s

chega ram a designar não ape nas mais um a doutrina his­

toricamen te situada, mas uma atitude em relação ao

mundo. Continuamos então a evocá-las para, segundo o

caso e as disposições do autor cm questão, acusá- las de ser

a origem de nossos males antigos e atuais, colonialismo.

genocídio, rein ado do egoísmo; ou bem para pedir-lhes

que venham em nosso socorro e combatam no ssas fa­

lhas presentes e futuras. Propomos então " reac ender as

Luzes" , ou ainda fazê- las br ilhar até os lugares remotos

e as culturas qu e ainda não as conhece m. A razão dessa

atualidade é dupla: nós somos todos filh os das Luzes,

mesmo quando as atacam os; ao mesmo tempo, os males

149

Page 74: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

combatidos pelo espírito se mostraram mais resistentes do

que imaginavam os homens do século XVIII; esses males

foram até multiplicados desde então. Os adversários tra­

dicionais das Luzes, obscurantismo, autoridade arbitrária,

fanatismo, são como cabeças de hidra que renascem assim

que são cortadas, pois tiram sua força das características

dos homens e de suas sociedades tão desenraizáveis quanto

o desejo de autonomia e de diálogo. Os homens precisam

de segurança e de consolo tanto quanto de liberdade e

de verdade; eles preferem defender os membros de seus

grupos a aderir aos valores universais; e o desejo do poder,

levando ao uso da violência, não é menos característico

da espécie humana que a argumentação racional. A isso

se somaram os desvios modernos das aquisições das Luzes,

que têm por nome cientificismo, individualismo, dessacra­

lização radical, perda de sentido, relativismo generalizado...

Pode-se recear que esses ataques nunca cessem; por

isso é ainda mais necessário manter vivo o espírito das

Luzes. A idade da maturidade, que os autores do passado

desejavam, não me parece fazer parte do destino da huma­

nidade: ela está condenada a buscar a verdade mais do que

a possuí-la. Quando se perguntava a Kant se já se estava

na época das Luzes, uma época realmente esclarecida, ele

respondia: "Não, mas numa época de esclarecimento'?",

Tal seria a vocação de nossa espécie: recomeçar todos

dias esse labor, mesmo sabendo que ele é interminável.

150

Agradecimentos

Fui levado a redigir as páginas precedentes

atendendo ao pedido que mefez o diretor da

Biblioteca Nacional da Eronça.fean-Noêl

jeanneney, para que participasse da organiza­

ção de uma exposição sobre as Luzes e seu

s((!,níficado para nós. Eu não sabia em que

aventura estava entrando! Dois anos e meio

depois, em março de 2006, a exposição

"Luzes! Uma herança para amanhã" abre

suas portas. Durante esse tempo aprendi

muito, com todo o pessoal da Biblioteca com

que tive contato, colaboradores externos, mas

também com as duzentos e cinqüenta peças

do século XVIII quefazem parte da exposição:

escritores, intelectuais, pintores e músicos me

permitiram conhecer melhor o espírito das

Luzes. A eles agradeço!

151

Page 75: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

N otas

I. Ca lmann- Lévy, 1970, p. 12.

2. tEuvrcscompíites, t. 111 , C allimard, 1964, p. 162, 171. 18tJ, 142;" Lct­

tre sur la vcrt u, l' indi vidu e t la socié té " (1757), A nnalcs de la soci é­

té[ean-jacques Rousseau, XVI (1997), p. 325 .

3. Traité dcs devoirs ITratado dos del'eres] (1725), t .liuvrc« COlllplc1tes, Lc

Seuil, 1964, p. 182; De l'esprit dcs lois I() espírito das leisI (1748) ,

I , 1.

4. U,!!islatiol/ primitive, 1829 , t. I, p. 250.

5. Lertre au marquis de Stanv ille du 27 ma i1750, Cl iuvrcs cOlllplhes,

t. III , Nagel, 1955; Lettre à Beaumont (17ó2), (Euvres co mpletes,

r, IV, 1969, p. 996 .

6 . Esquisse, Édit ians sociales, 1971 , p. 255 -256.

7. De la colonisation chcz lcs pcuplcs modernos. 2 vo l., I')(J2, r. I, p.

X X I, p.VII.

8. (1885), Discours et opinions, 7 vo l., 1893-1898, t .V, p. 211.

9. Par l' épée et par la charrue, PUF, 1948, p. 68.

10. (1846) Cliuvres completes, t. 111 , vol. 1, C allimard, 1962 , p. 299.

153

Page 76: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o s s e t n rr o DAS L UZE S

11. Di scours et opinions, op. cit., p. 209 .

12. T!Je ldea <if Christian Society and Other Writi/l)?s, Londres, Faber

& Faber, 1982, p. 82 .

13. Le Décli/l du COHra)?e, Le Seuil, 1978 , p. 46, 55.

14. Mémoire et ldentiti, Flammarion, 2005, p. 23 , 65.

15. Le D éclin du COllra)?e, op. cit ., p. 53-54.

16. Mémoire et ldentit é ; op. cit., p. 64, 163.

17. De I'esprit des lois, op. cit., p. 18!.

18. Discours sur l' économie politique (1756), (Eu vres complêtcs. t . III , p.

248 ; " Eclectism e", CEuvres completes, Editions Assézat-Tourneu x,

t. XlV.

19. R éponse à la question .. qu'est-ce qHe les Lumi êres? [Resposta à per­

gunta : o que é a ilust ração?] (1784), CEuvres philosophiqucs, t . II,

Gallimard, 1985, p. 20 9; QII'est-ce qlle s'orienter dans la pensée?

(1786), ibid., p. 545.

20. "Fait", ibid., t. XV; Cinq M émoiressur l'instruction puhliquc (1791),

Garnier- Plammarion , 1994 , p. 257; Critique de la raison pllre (1781),

Aubier, 1997 , p. 65.

21. De l'esprit des lois, XI , 6.

22 . DII contrai social [Do co ntrato social] (176 1), tIiuvres completes, t.

III, III, 1; II, 6.

23. Traité de la nature humaine [Tratado da natureza humana] (1737),

3 vol. , Flammarion, 1991-1 995 , II. III, 3.

24. Dialoçu cs (1772- 1776), CEIMes completes, t . 1,1 959, p. 8 13.

25 . Discours sur l'originc de I'illégalité [Discurso sobre a origem da desi­

gualdade], p. 189 .

26. La Philosophie dans le boudoir (1795), CEuvres co m pletes, t . XXV,

J. -J. Pau vert, 1968 , p. 173.

27. L'Erotisme, Minuit, 1979, p. 187, 192,210.

28 . Cinq Mémoires, p. 85, 86, 93.

29. R. Aron, Mémoires, R ob ert LafTont, 2003, p. 59.

30. CEllvres completes, t. IV, p. 1072.

3 1. (1764), Genêve,Droz, 1965, p. 44.

154

N OTAS

32. Cinq Mémoires, op. cit., p. 93 ; cf. Rapport sur l'instruction publi-

que, Edilig, 198 9, p. 254.

33 . Ibid., p. 95.

34 . Ibid., p. 104-1 05 .

35. "Totalirar ianism as PoliticaI R eligion", in C.}, Fri edrich (éd .),

Totalitarianism, C ambridge, Harvard UP, 1953; tr. fr. in E. Tra­

ver so (êd.), Le Totalitatisme. Le Seuil, 2001, p. 452.

36. Le Monde du 10 septern b re 2002.

37. Ni putes ni soumises, La D écouverte, 2004, p. 161.

38. lnsoumise,Robert LafTont, 2005 , p. 46.

39. Cinq Mémoires, op . cit., p. 9 1.

40. Le Sceptique [O cético ], in Essais moraux, politiques & litt érai-

res,Alive, 1999, p. 215 .

41. Cf. Rapport, p. 251 .

42. Cinq Mémoires, op. cit., p. 85- 87, 93-94.

43. Ibid., p. 261.

44 . Ibid., p. 88.

45. "Supplérnent au voyage de Bougainville " , in D. D iderot , Giuvres

philosophiques. Garnier, 1964, p. 505 .

46. La Philosophie dans le boudoir, p. 97, 243.

47. " Vie de Turgot" (1786), CElIvres, t. V, 1849, p. 203 .

48. Él1I ile [Emílio] (176 1), CEllvres completes, t. IV, p. 60 1.

49 . "Totalitar iani sm and th e Lie" , in I. Howe (éd.), 1984 Revisited,

N.Y. , Harper & R ow, 1983 ; tr. fr. in E. Traverso (éd.), Le 'J(,tali­

tarismc , Le Seu iI, 200 1, p. 665.

50 . Citado por S. P. Huntingt on, H1J1O A re We?, Londres, T he Free

Press, 2004 , p. 86 -87.

51. Rom., XIII , 8;Testament j ohan is. Schriften, 1886-1 907, t. XIII ,

p. 15; M émoires, H ach ette, 1866, p. 181,205.

52, "Encyclop êdic". CEII!'res completes, t, XlV.

53.Julie ou la Nouvelle H éloisc Uúlia ou a nova Heloísa] (1761), CEuvres

completes, t. II, 1964, p. 536.

54. Fondements de la m étaphvsique des mceurs [Fundamentação meta-

155

Page 77: TODOROV, Tzvetan - O espírito das luzes

o ESPÍRITO DAS LUZES

física dos costumes] (1785), (Euvres philosophiques, t. II, p. 295.

55. A. Pope, An Essay on Man (1734), Londres, Methuen, 1950, Ep.

IV

56. Lettres philosophiques (1734), Garnier-Flammarion, 1964, p. 67.

57. Essais, p. 236.

58. Emile, p. 503, 816.

59. Pages choisies, Editions sociales, 1974, p. 96, 103.

60. La Philosophie dans le boudoir, op. cit., p. 66.

61. Émile, op. cit., t. IV, p. 817; "Lettre sur la vertu, l'individu et la

société", p. 325.

62. Letters ofJoshua Reynolds, 1929, p. 18; Italienische Reise [Viagem

à Itália] (1787), Werke, Hambourg, Chr. Wegner, 1974, t. XI, p.

386.

63. Discours sur l'origine de l'inégalité, p. 194; Le Contrat social, II, 4.

64. De l'esprit des lois, Xv, 2; Ou contrat social, I, 4; Condorcet (1781),

(Euvres, t.VII, 1847, p.69.

65. Pensées, 10, (Euvres completes, p. 855; Correspondance, Minuit, t.VIII,

1962, p. 16.

66. L'A.B. C. (1768), Dialoyues et anecdotes philosophiques, Garnier,

1939, IV, p. 280; Émile, p. 547.

67. Principes du droit de la nature et des Rens (1750), Caen, Bibliothe-

que de philosophie politique et juridique, 1988, § 68.

68. Des délits et des peines, p. 46, 52.

69. Ibid., p. 30.

70. Les Ennemis complémentaires, Tirésias, 2005, p. 286.

71. Des délits et des peines, p. 55.

72. P. Bayle, De la tolérance. Commentaire philosophique sur ces paroles

deJésus-Christ "Contrains-les d'entrer", Presses Pocket, 1992.

73. CE. Lumiéresl Un héritage pour demain, Bibliothéque Nationale

de France, 2006.

74. Considérations sur le gouvernement de Pologne, (Euvres completes, t.

III, p. 960.

75. Lettres écrites de Russie, 1782, p. 68. 76. Lettres philosophiques, p. 145.

NOTAS

76. Lettres philosophiques [Cartas filosóficas], p.145.

77. Essais, p. 166-167.

78. Lettres philosophiques, p. 47.

79. Lettres persanes (1721), (Euvres completes, Le Seuil, lettre 85.

80. Essais, p. 164-167.

81. Du contrat social, II, 2 et 3.

82. La Monadologie [A monadologia] (1714), Gallimard, 1995, § 57.

83. "Oroit nature!" (1755), Giuores completes, t. XIV

84. Critiquede laJaculté deJURer [Crítica da faculdade do juízo] (1790),

(Euvres philosophiques, t. II, p. 1073.

85. Réponse à la question : qu'est-ce que les Lumiêresi, ibid., p. 215.

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