toma lá poesia 2009-2010 - 5 sentidos
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Teus Olhos Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima, silêncio que fala, tempestades sem vento, mar sem ondas, pássaros presos, douradas feras adormecidas, topázios ímpios como a verdade, Outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro duma árvore e são pássaros todas as folhas, praia que a manhã encontra constelada de olhos, cesta de frutos de fogo, mentira que alimenta, espelhos deste mundo, portas do além, pulsação tranquila do mar ao meio-dia, universo que estremece, paisagem solitária.
Octavio Paz, in Liberdade sob Palavra Tradução de Luis Pignatelli
Olhos Olhos: brilhantes da chuva que caiuquando Deus me mandou beber.
Olhos: ouro, que a noite me contou nas mãos, quando colhi urtigas e fiz arrepender as sombras dos Provérbios.
Olhos: noite, que sobre mim resplandeceu, quando escancarei o portão e atravessado pelo gelo invernoso das minhas fontes saltei pelos lugares da eternidade.
Paul Celan, in Papoila e Memória Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno
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George Underwood, Left Eye
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Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, porque não vos fixais? Que passais como a água cristalina Por uma fonte para nunca mais!... Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncais, E o vago medo angustioso domina, — Porque ides sem mim, não me levais? Sem vós o que são os meus olhos abertos? — O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos... Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão casual de meus dedos incertos, — Estranha sombra em movimentos vãos.
Camilo Pessanha, in Clepsidra
De Quem é o Olhar De quem é o olhar Que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo, Quem continua vendo Enquanto estou pensando? Por que caminhos seguem, Não os meus tristes passos, Mas a realidade De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra Do meu quarto, quando eu Por mim próprio mesmo Em alma mal existo,
Toma um outro sentido Em mim o Universo — É uma nódoa esbatida De eu ser consciente sobre Minha ideia das coisas.
Se acenderem as velas E não houver apenas A vaga luz de fora — Não sei que candeeiro Aceso onde na rua — Terei foscos desejos De nunca haver mais nada No Universo e na Vida De que o obscuro momento Que é minha vida agora!
Um momento afluente Dum rio sempre a ir Esquecer-se de ser, Espaço misterioso Entre espaços desertos Cujo sentido é nulo E sem ser nada a nada. E assim a hora passa Metafisicamente.
Fernando Pessoa, in Cancioneiro
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Imagens que Passais pela Retina
Olhar e Chorar Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza; prodigioso artifício da Providência! Eles são a primeira origem da culpa; eles a primeira fonte da Graça. São os olhos duasvíboras, metidas em duas covas, e que a tentação pôs o veneno, ea contrição a triaga. São duas setas com que o Demónio se armapara nos ferir e perder; e são dois escudos com que Deus depoisde feridos nos repara para nos salvar. Todos os sentidos do homemtêm um só ofício; só os olhos têm dois. O Ouvido ouve, o Gosto gosta, o Olfactocheira, o Tacto apalpa, só os olhos têm dois ofícios: Ver e Chorar. Estes serão osdois pólos do nosso discurso. Ninguém haverá (se tem entendimento) que não deseje saber por que ajuntoua Natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista; e por que uniu a mesma potência o ofício de chorar, e o de ver? O ver é a acção mais alegre; o chorar amais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todosos gostos é o ver; pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento. Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários, ver e chorar? A razãoe a experiência é esta. Ajuntou a Natureza a vista e as lágrimas, porque as lágrimas são consequência da vista; ajuntou a Providência o chorar com o ver,porque o ver é a causa do chorar. Sabeis porque choram os olhos? Porque vêem.
René Magritte (1898-1967),O Espelho Falso, 1928
Rafal Olbinski
Fuga
O músico procura Fixar em cada verso O cântico disperso Na luz, na água e no vento.
Porém, luz, vento e água Variam riso e mágoa, De momento a momento.
E em vão a área dos dedos Se eleva! Não traduz Os súbitos segredos Escondidos no vento, Nas águas e na luz...
Pedro Homem de Mello, in Segredo
Pobre Velha Música!
Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora.
Fernando Pessoa, in Cancioneiro
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Padre António Vieira, in Sermões
Rafal Olbinski
Fernando Pessoa
Rafal Olbinski
Rafal Olbinski
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Uma Gargalhada de Raparigas
Uma gargalhada de raparigas soa do ar da estrada. Riu do que disse quem não vejo. Lembro-me já que ouvi. Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada, Direi: não, os montes, as terras ao sol, o Sol, a casa aqui, E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da cabeça. Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa), in Poemas Inconjuntos
O Suporte da Música
o suporte da música pode ser a relação entre um homem e uma mulher, a pauta dos seus gestos tocando-se, ou dos seus olhares encontrando-se, ou das suas
vogais adivinhando-se abertas e recíprocas, ou dos seus obscuros sinais de entendimento, crescendo como trepadeiras entre eles. o suporte da música pode ser uma apetência
dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se ramifica entre os timbres, os perfumes, mas é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos, e eles sabem-no, perpassando
por uns frágeis momentos, concentrado num ponto minúsculo, intensamente luminoso, que a música, desvendando-se, desdobra, entre conhecimento e cúmplice harmonia.
Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos
DIÁLOGOS E ANALECTOS
Antelóquio
Aprendiz – Como posso ouvir-te? Como posso entender-te? Como soa a tua voz quando me falas?
Silêncio – Soa tal como a tua quando me pronuncias. E, se me pronuncias, como podes tu não me escutar? Não há música ou palavra que não me contenha; Desenho contornos, preencho vazios Dou tempo ao tempo para que o sentido flua.
Aprendiz – Talvez seja por isso que o mundo me parece cheio de música Sobretudo quando o encontro dentro de um livro Ou penso estar a criá-lo quando escrevo. Talvez seja por isso que as palavras parecem brotar De todas as coisas que existem ou penso. Ora cantam, ora voam, ora se calam… E, no entanto, continuo sempre a ouvi-las… Será apenas a ti que ouço?
Palavra – O que farás agora comigo? Não te menosprezes. O que seria o mundo sem os aprendizes? Escuta todos os silêncios. É na minúscula centelha do teu ser que eu sou eterna. O que serias tu sem a minha eternidade Para interrogar e criar permanentemente?
Silêncio – Por que insistes em chamar-me silêncio, Se não paras de me escutar, de me falar, de me dizer. Bem sabes que não sou mais do que as palavras que nascem de ti.
Suy, Diálogos e Analectos
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Os Cinco Sentidos Os nossos sentidosJá tos vou distinguirCom palavras excelentes,- Escuta, amor, se queres ouvir.
O primeiro era verTua boquinha a falar.Que linda cara para beijos,Se os quisesses aceitar.
Segundo era ouvir,Gosto de ouvir novas tuas,Trago-te no pensamentoMuito mais do que tu cuidas.
Terceiro era cheirar,Tu cheiras mesmo a rosaOh que lindos olhos tens!Oh que cara tão formosa!
O quarto era gostar,Que gostos posso eu ter,Ausente do teu amorMais me valia morrer.
O quinto apertarAs tuas mãos com as minhas.Havemos de ir à igrejaTrocar nossas palavrinhas.
(poema tradicional da Beira Baixa, Rochas de Baixo), Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, 2ª edição, vol. V, Lisboa, 1966.
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Rafal Olbinski
Jacek Yerka
«A música é o barulho que pensa.»Victor Hugo
As Rosas Amo dos Jardins de Adónis As Rosas amo dos jardins de Adónis, Essas volucres amo, Lídia, rosas, Que em o dia em que nascem, Em esse dia morrem. A luz para elas é eterna, porque Nascem nascido já o sol, e acabam Antes que Apolo deixe O seu curso visível. Assim façamos nossa vida um dia, Inscientes, Lídia, voluntariamente Que há noite antes e após O pouco que duramos.
Antes o Voo da Ave
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto, Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão. A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve, Mostra que já esteve, o que não serve para nada. A recordação é uma traição à Natureza, Porque a Natureza de ontem não é Natureza. O que foi não é nada, e lembrar é não ver. Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
Passa uma Borboleta por Diante de Mim
Passa uma borboleta por diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo Que as borboletas não têm cor nem movimento, Assim como as flores não têm perfume nem cor. A cor é que tem cor nas asas da borboleta, No movimento da borboleta o movimento é que se move, O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta E a flor é apenas flor.
Quando Olho para Mim não Me Percebo
Quando olho para mim não me percebo. Tenho tanto a mania de sentir Que me extravio às vezes ao sair Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo, Pertencem ao meu modo de existir, E eu nunca sei como hei de concluir As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca, propriamente reparei, Se na verdade sinto o que sinto. Eu Serei tal qual pareço em mim? Serei
Tal qual me julgo verdadeiramente? Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu, Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa), in Poemas
Ditosa Ave
Quem fosse acompanhando juntamente Por esses verdes campos a avezinha, Que despois de perder um bem que tinha, Não sabe mais que cousa é ser contente!
E quem fosse apartando-se da gente, Ela por companheira e por vizinha, Me ajudasse a chorar a pena minha, E eu a ela também a que ela sente!
Ditosa ave! que ao menos, se a natura A seu primeiro bem não dá segundo, Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.
Mas triste quem de longe quis ventura Que para respirar lhe falte o vento, E para tudo, enfim, lhe falte o mundo!
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Charles West Cope, 1811-1890, The Thorn, 1866
«A rosa tem espinhos que o olfacto ignora.»Rui de Morais, in Do Riso das Insónias, 2007
«O instinto é o olfacto da mente.» D. Gay de Girardin
«A memória é o perfume da alma.» George Sand
«De todos os sentidos, a vista é o mais superficial, o ouvido o mais orgulhoso, o olfacto o mais voluptuoso, o gosto o mais supersticioso e inconstante, o tacto o mais profundo.»
Denis Diderot
«Aquilo a que a terminologia romântica chama génio ou inspiração não é mais do que encontrar empiricamente o caminho, seguir o próprio olfacto, tomar atalhos.»
AFORISMOS
As MãosBrandamente escrevem dos espasmos do sol.
Envelhecem do pulso ao cérebro, ao calor baço de um revérbero no eixo dos ventos, usura
das máscaras que, sucessivamente, as transformam
de consciência em cal ou metal obscuro. E já não é por si que a presença existe ou
subsiste o que separa. Destroem as sementes, apodrecem como um sopro e não são remanso
na areia ou domadoras de chamas. Igualam-se à água, para serem raiz do que se cala
e insinuam-se, para sempre, no pó da noite.
Um castelo de pele tomba. Deixam de ser nomeadas ou nome. Escrevem, brandamente,
do termo da música o luto do silêncio.
Orlando Neves, in Decomposição - o Corpo
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Ricardo Reis (heterónimo de Fernando Pessoa), in Odes
Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa), in O Guardador de Rebanhos - Poema XLIII
Walter Pfisterer, Physalis
Fonte: Dover
As Tuas Mãos Terminam em Segredo
As tuas mãos terminam em segredo.Os teus olhos são negros e macios
Cristo na cruz os teus seios (?) esguios E o teu perfil princesas no degredo...
Entre buxos e ao pé de bancos frios Nas entrevistas alamedas, quedo
O vendo põe o seu arrastado medo Saudoso o longes velas de navios.
Mas quando o mar subir na praia e for Arrasar os castelos que na areia As crianças deixaram, meu amor,
Será o haver cais num mar distante... Pobre do rei pai das princesas feias No seu castelo à rosa do Levante!
Fernando Pessoa, in Cancioneiro
CACIDA DA MÃO IMPOSSÍVELNão quero mais que uma mão,
mão ferida, se possível. Não quero mais que uma mão,
inda que passe noites mil sem cama.
Seria um lírio pálido de cal, uma pomba atada ao meu coração,
o guarda que na noite do meu trânsito de todo vetaria o acesso à lua.
Não quero mais que essa mão para os diários óleos e a mortalha de minha agonia.
Não quero mais que essa mão para de minha morte ter uma asa.
Tudo mais passa. Rubor sem nome mais, astro perpétuo.
O demais é o outro; vento tristeenquanto as folhas fogem debandadas.
Federico García Lorca, in Divã do Tamarit Tradução de Óscar Mendes
Em Todas as Ruas te Encontro Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura e bebo a água e sorvo o ar que te atravessou a cintura tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura.
Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco.
Mário Cesariny, in Pena Capital
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Robert Mapplethorpe
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Dobrada à Moda do Porto
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, Serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha Que a preferia quente, Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer? Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim, Particular ou público, ou do vizinho. Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes, Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram Dobrada à moda do Porto fria? Não é prato que se possa comer frio, Mas trouxeram-mo frio. Não me queixei, mas estava frio, Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa), in Poemas
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Gostava de Gostar de Gostar
Gostava de gostar de gostar. Um momento... Dá-me de ali um cigarro, Do maço em cima da mesa-de-cabeceira. Continua... Dizias Que no desenvolvimento da metafísica De Kant a Hegel Alguma coisa se perdeu. Concordo em absoluto. Estive realmente a ouvir. Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho). Que coisa curiosa estas associações de ideias! Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa. Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...
Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa), in Poemas
Não só Vinho, mas nele o Olvido
Não só vinho, mas nele o olvido, deito Na taça: serei ledo, porque a dita É ignara. Quem, lembrando Ou prevendo, sorrira? Dos brutos, não a vida, senão a alma, Consigamos, pensando; recolhidos No impalpável destino Que não 'spera nem lembra. Com mão mortal elevo à mortal boca Em frágil taça o passageiro vinho, Baços os olhos feitos Para deixar de ver.
Ricardo Reis (heterónimo de Fernando Pessoa), in Odes
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«A fome só se satisfaz com a comida e a fome de imortalidade da alma com a própria imortalidade. Ambas são verdadeiros instintos.»
Fernando Pessoa
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Ayd, Bulgária, 2009
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Fred Wessel, Anticipating Bacchus
Os Cinco Sentidos Os nossos sentidosJá tos vou distinguirCom palavras excelentes,- Escuta, amor, se queres ouvir.
O primeiro era verTua boquinha a falar.Que linda cara para beijos,Se os quisesses aceitar.
Segundo era ouvir,Gosto de ouvir novas tuas,Trago-te no pensamentoMuito mais do que tu cuidas.
Terceiro era cheirar,Tu cheiras mesmo a rosaOh que lindos olhos tens!Oh que cara tão formosa!
O quarto era gostar,Que gostos posso eu ter,Ausente do teu amorMais me valia morrer.
O quinto apertarAs tuas mãos com as minhas.Havemos de ir à igrejaTrocar nossas palavrinhas.
(poema tradicional da Beira Baixa, Rochas de Baixo), Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, 2ª edição, vol. V, Lisboa, 1966.
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Christopher Gilbert
«Hoje, setenta por cento da humanidade ainda morre de fome... e trinta por cento faz
«Um
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em livre.»
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As Rosas Amo dos Jardins de Adónis As Rosas amo dos jardins de Adónis, Essas volucres amo, Lídia, rosas, Que em o dia em que nascem, Em esse dia morrem. A luz para elas é eterna, porque Nascem nascido já o sol, e acabam Antes que Apolo deixe O seu curso visível. Assim façamos nossa vida um dia, Inscientes, Lídia, voluntariamente Que há noite antes e após O pouco que duramos.
Antes o Voo da Ave
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto, Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão. A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve, Mostra que já esteve, o que não serve para nada. A recordação é uma traição à Natureza, Porque a Natureza de ontem não é Natureza. O que foi não é nada, e lembrar é não ver. Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
Passa uma Borboleta por Diante de Mim
Passa uma borboleta por diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo Que as borboletas não têm cor nem movimento, Assim como as flores não têm perfume nem cor. A cor é que tem cor nas asas da borboleta, No movimento da borboleta o movimento é que se move, O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta E a flor é apenas flor.
Quando Olho para Mim não Me Percebo
Quando olho para mim não me percebo. Tenho tanto a mania de sentir Que me extravio às vezes ao sair Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo, Pertencem ao meu modo de existir, E eu nunca sei como hei de concluir As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca, propriamente reparei, Se na verdade sinto o que sinto. Eu Serei tal qual pareço em mim? Serei
Tal qual me julgo verdadeiramente? Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu, Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa), in Poemas
Ditosa Ave
Quem fosse acompanhando juntamente Por esses verdes campos a avezinha, Que despois de perder um bem que tinha, Não sabe mais que cousa é ser contente!
E quem fosse apartando-se da gente, Ela por companheira e por vizinha, Me ajudasse a chorar a pena minha, E eu a ela também a que ela sente!
Ditosa ave! que ao menos, se a natura A seu primeiro bem não dá segundo, Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.
Mas triste quem de longe quis ventura Que para respirar lhe falte o vento, E para tudo, enfim, lhe falte o mundo!
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Charles West Cope, 1811-1890, The Thorn, 1866
«A rosa tem espinhos que o olfacto ignora.»Rui de Morais, in Do Riso das Insónias, 2007
«O instinto é o olfacto da mente.» D. Gay de Girardin
«A memória é o perfume da alma.» George Sand
«De todos os sentidos, a vista é o mais superficial, o ouvido o mais orgulhoso, o olfacto o mais voluptuoso, o gosto o mais supersticioso e inconstante, o tacto o mais profundo.»
Denis Diderot
«Aquilo a que a terminologia romântica chama génio ou inspiração não é mais do que encontrar empiricamente o caminho, seguir o próprio olfacto, tomar atalhos.»
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Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa), in O Guardador de Rebanhos - Poema XLIII
Fernando Pessoa
Walter Pfisterer, Physalis
Fonte: Dover