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Torquato Neto
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Torquato Pereira de Araújo Neto (Teresina, 9 de novembro de 1944 — Rio de Janeiro, 10 denovembro de 1972) foi um poeta, jornalista, letrista de música popular, experimentador dacontracultura brasileira.
Torquato Neto era filho de um promotor público e de uma professora primária de Teresina.Mudou-se para Salvador aos 16 anos para os estudos secundários, onde foi contemporâneo de
Gilberto Gil no Colégio Nossa Senhora da Vitória e trabalhou como assistente no filmeBarravento, de Gláuber Rocha.
Torquato envolveu-se ativamente na cena cultural soteropolitana, onde conheceu, além de Gil,Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro paraestudar jornalismo na universidade, mas nunca chegou a se formar. Trabalhou para diversosveículos da imprensa carioca, com colunas sobre cultura no Correio da Manhã, Jornal dosSports e Última Hora. Torquato atuava como um agente cultural e polemicista defensor dasmanifestações artísticas de vanguarda, como a Tropicália, o Cinema Marginal e a PoesiaConcreta, circulando no meio cultural efervecente da época, ao lado de amigos como os poetasDécio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, o cineasta Ivan Cardoso e o artista plásticoHélio Oiticica. Nesta época, Torquato passou a ser visto como um dos participantes doTropicalismo, tendo escrito o breviário "Tropicalismo para principiantes", onde defendeu anecessidade de criar um "pop" genuinamente brasileiro: "Assumir completamente tudo que avida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice oumau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, aindadesconhecido". Torquato também foi um importante letrista de canções icônicas do movimentotropicalista.
No final da década de 1960, com o AI-5 e o exílio dos amigos e parceiros Gil e Caetano, viajoupela Europa e Estados Unidos com a mulher Ana Maria e morou em Londres por um breveperíodo. De volta ao Brasil, no início dos anos 1970, Torquato começou a se isolar, sentindo-sealienado tanto pelo regime militar quanto pela "patrulha ideológica" de esquerda. Passou por uma série de internações para tratar do alcoolismo, e rompeu diversas amizades. Em julho de1971, escreveu a Hélio Oiticica: "O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobrecoisa alguma. Todo mundo virou uma espécie de Capinam (esse é o único de quem eu nãogosto mesmo: é muito burro e mesquinho), e o que eu chamo de conformismo geral é issomesmo, a burrice, a queimação de fumo o dia inteiro, como se isso fosse curtição, aqui éescapismo, vanguardismo de Capinam que é o geral, enfim, poesia sem poesia, papo furado,ninguém está em jogo, uma droga. Tudo parado, odeio."
Torquato se matou um dia depois de seu 28º aniversário, em 1972. Depois de voltar de umafesta, trancou-se no banheiro e abriu o gás. Sua mulher dormia em outro aposento da casa. Oescritor foi encontrado na manhã seguinte pela empregada da família.
Sua nota suicida dizia: "Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava queera dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim,chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar". Thiago era o filho de dois anosde idade.
Bibliografia
Torquato Neto. Os Últimos Dias de Paupéria. (Org. Ana Maria Silva Duarte e Waly Salomão),Rio de Janeiro: Max Limonad, 1984.
Torquato Neto. Torquatália - do Lado de Dentro: Obra Reunida de Torquato Neto (vol. 1).(Org. Paulo Roberto Pires). Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2005.
Torquato Neto. Torquatália - Geléia Geral: Obra Reunida de Torquato Neto (vol. 2). (Org.Paulo Roberto Pires). Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2005.
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O Poeta é a Mãe das Armas
O Poeta é a mãe das armas& das Artes em geral —alô, poetas: poesiano país do carnaval;
Alô, malucos: poesianão tem nada a ver com os versosdessa estação muito fria.
O Poeta é a mãe das Artes& das armas em geral:quem não inventa as maneirasdo corte no carnaval(alô, malucos), é traidor da poesia: não vale nada, lodal.
A poesia é o pai da ar-timanha de sempre: quentura no forno quentedo lado de cá, no lar das coisas malditíssimas;alô poetas: poesia!poesia poesia poesia poesia!O poeta não se cuida ao pontode não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nadaalém da MINHA bandeira ////////// =sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar: em primeiríssimo, o lugar.
poetemos pois
torquato neto /8/11/71 & sempre.
Cogito
eu sou como eu soupronomepessoal intransferíveldo homem que inicieina medida do impossível
eu sou como eu souagorasem grandes segredos dantessem novos secretos dentesnesta hora
eu sou como eu soupresentedesferrolhado indecentefeito um pedaço de mim
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eu sou como eu souvidentee vivo tranquilamentetodas as horas do fim.
A rua
Toda rua tem seu cursoTem seu leito de água claraPor onde passa a memóriaLembrando histórias de um tempoQue não acaba
De uma rua, de uma ruaEu lembro agoraQue o tempo, ninguém maisNinguém mais cantaMuito embora de cirandas(Oi, de cirandas)E de meninos correndoAtrás de bandas
Atrás de bandas que passavamComo o rio ParnaíbaO rio mansoPassava no fim da ruaE molhava seus lajedosOnde a noite refletiaO brilho mansoO tempo claro da lua
Ê, São João, ê, PacatubaÊ, rua do BarrocãoÊ, Parnaíba passandoSeparando a minha ruaDas outras, do Maranhão
De longe pensando nelaMeu coração de meninoBate forte como um sinoQue anuncia procissão
Ê, minha rua, meu povoÊ, gente que mal nasceuDas Dores, que morreu cedoLuzia, que se perdeuMacapreto, Zé VelhinhoEsse menino crescidoQue tem o peito feridoAnda vivo, não morreu
Ê, PacatubaMeu tempo de brincar já foi-se emboraÊ, ParnaíbaPassando pela rua até agoraAgora por aqui estou com vontadeE eu volto pra matar esta saudade
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Ê, São João, ê, PacatubaÊ, rua do Barrocão
In: TORQUATO NETO. Os últimos dias de paupéria: do lado de dentro. Org. Ana Maria S. de Araújo Duarte e WalySalomão. 2.ed. rev. e aum. São Paulo: M. Limonad, 1982
Panorama Visto da Ponte
Azulejos retorcidos pelo tempoFazem paisagem agora no abandonoA que eu mesmo releguei um mal distante.
Faz muito tempo e a paisagem é a mesmaNão muda nunca - sempre indiferenteA céus que rolem eu infernos que se ergam.
Alguns vitrais. E em cinerama elásticoO mesmo campo, o mesmo amontoado
Das lembranças que não querem virar cinzas.
Três lampiões. As côres verde e rosaA brisa dos amores esquecidosE a pantera, muito negra, das paixões.
Não passa um rio enlameado e doceNem relva fresca encobre a terra dura.É só calor e ferro e fogo e brasa
Que insistem como cobras enroladasNos grossos troncos, medievais, das árvores.Uma eterna camada de silêncio
E o sol cuspindo chumbo derretido.O céu é azul - e como não seria?mas tão distante, tão longínquo e azul...
Rio, 13.12.62
Bilhetinho Sem Maiores Consequências
Uma retificação, meu bom Vinícius:Você falou em "bares repletos de homens vazios"e no entanto se esqueceude que há bareslares
teatros, oficinasaviões, chiqueirose sentinas,cheinhos(ao contrário)de homens cheiosHomens cheios.(e você bem sabe)entulhados da primeira à última geraçãoda imoralidade desta vidadas cotidianas encruzilhadas e decepçõesda patente inconsequência disso tudo.
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Você se esqueceuVinícius, meu bom,dos bares que estão repletos de homens cheiosda maldade das coisas e dos fatos,dos bares que estão cheios de homens cheiosda maldade insaciáveldos que fazem as coisas
e organizam os fatosE vocêque os conhece tão de pertoVinícius "Felicidade" de Moraesnão tinha o direito de esquecer essa parcela imensa de homens tristes,condenados candidatos naturaisa títulos de tão alta racionalidadea deboches de tão falsa humanidade.
Com uma admiração "deste tamanho".
Rio 7.7.62
Um Cidadão Comum
Sempre subindo a ladeira do nada,Topar em pedras que nada revelam.Levar às costas o fardo do ser E ter certeza que não vai ser pago.
Sentir prazeres, dores, sentir medo,Nada entender, querer saber tudo.Cantar com voz bonita prá cachorro,Não ver "PERIGO" e afundar no caos.
Fumar, beber, amar, dormir sem sono,Observar as horas impiedosasQue passam carregando um bom pedaçoda vida, sem dar satisfações.
Amar o amargo e sonhar com doçurasSaber que retornar não é possívelSentir que um dia vai sentir saudadesDa ladeira, do fardo, das pedradas.
Por fim, de um só salto,Transpor de vez o paredão.
Rio 9.8.62
Explicação do Fato:
Parte I
Impossível envergonhar-me de ser homem.
Tenho rins e eles me dizem que estou vivo.
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Obedeço a meus pés
e a ordem é seguir e não olhar à frente.
Minúsculo vivente entre rinocerontes
me reconheço e falho
e insisto.
E insisto porque insistir é minha insígnia.
O meu brasão mostra dois pés escalavrados
e sobram-me algumas forças: sei-me fraco
e choro.
E choro e nem assim me excedo na postura humana:
sofro o corpo inteiro, pendo e não procuro
a arma em minhas mãos.
Sei que caminho. É só.
Joelhos curvam-se, amaziam ao chão que queima
e me penetra e eu decido que não posso
envergonhar-me de ser homem.
A criança antiga é dique barrando o meu escôo
e diz que não, não me envergonhe.
Não me envergonho.
Tenho rins mãos boca orgão genital e
glândulas de secreção interna:
impossível.
No entanto sinto medo
e este é o meu pavor.
Por isso a minha vida, como o meu poema,
não é canto, é pranto
e sobre ela me debruço
observando a corcunda precoce
e os olhos banzos.
Parte II
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Também tenho uma noite em mim tão escura
que nela me confundo e paro
e em adágio cantabile pronuncio
as palavras da nênia ao meu defunto,perdido nele, o ar sombrio.
(Me reconheço nele e me apavoro)
Me reconheço nele,
não os olhos cerrados, a boca falando cheia,
as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando,
mas um calor de cegueira que se exala dele
e pronto: ele sou eu,
peixe boi devolvido à praia, morto,
exposto à vigilância dos passantes.
Ali me enxergo, à força no caixão do mundo
sem arabescos e sem flores.
Tenho muito medo.
Mas acordo e a máquina me engole.
E sou apenas um homem caminhando
e não encontro em minha vestimenta
bolsos para esconder as mãos, armas, que, mesmo frágeis,
me ameaçam.
Como não ter medo?
Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui
sobre esta noite maior e sem fantasmas.
como não morrer de medo se esta noite é fera
e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e
ainda insisto?
Não é viável.
Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou.
O que é viável não existe, passou há muito tempo
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e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva
e eu menino.
eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas
que escorriam em tardes e manhãs sem pernase eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua,
menino sentado sem a preocupação da ida.
E era todo dia.
Havia sol
e eu o sabia
sol: era de dia
Havia uma alegria
do tamanho do mundo
e era dia no mundo.
Havia uma rua
(debaixo dum dia)
e um tanque.
Mas agora é noite até no sol.
Parte III
Vou à parede e examino o retrato,
irresponsável-amarelo-acinzentado-testemunha.
Meus olhos não se abrem e mesmo assim o vejo.
E mesmo assim te vejo, ó menino, encostado à palmeira de tua praça
e sem querer sair.
E mesmo assim te penso dique,
desolação de seca na caatinga, noite de insônia,
canção antiga ao pé do berço,
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prata
fósforo queimado
poço interminável, seco.
Ouço teu sorriso e te obedeço.
Eu que desaprendi a preparação do sorriso
e não o consigo mais.
Estou preso a ti, ainda agora,
apesar do cabelo escurecido,
as mãos maiores e mais magras
e um súbito medo de morrer, amor à vida, tolo.
tenho preso a ti a palavra primeira
e o primeiro gesto de enxergar o espelho:
ouço-te, sou mais desgosto em mim, imcompreensível.
À tua ordem decido não envergonhar-me de existir
nesta forma disforme e de osso
carne
algumas coisas químicas
e uma vontade de estar sempre longe,
visitando países absurdos.
Não posso envergonhar-me de ser homem.
tenho um menino em mim que me observa
e ele tem nos olhos
(qual a cor?)
todas as manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva
e eu menino, que me alumiava.
Tenho um menino em mim e ele é que me tem:
por isso a corcunda precoce
e os olhos banzos: tenho o corpo voltado à sua procura
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Torquato Neto11
e meu olhar apenas toca, e leve,
a exata matriz da calça
molhada em festa vespertina da bexiga.
Pílulas do tipo deixa-o-pau-rolar.na mesma base: deixa.
Primeiro passo é tomar conta do espaço.Tem espaço a bessa e sóvocê sabe o que o que pode fazer do seu.Antes ocupe. Depois se vire.
Não se esqueça de que você estácercado, olhe em volta e dê um rolê.Cuidado com as imitações.
Imagine o verão em chamas e fiquesabendo que é por isso mesmo.A hora do crime precede a hora davingança, e o espetáculo continua.cada um na sua, silêncio.
Acredite na realidade e procureas brechas que ela sempre deixa.Leia o jornal, não tenha medo demim, fique sabendo: drenagem, dragase tratores pelo pântano. Acredite.
Poesia. Acredite na poesia e viva.E viva ela. Morra por ela se vocêse liga, mas por favor, não traia.O poeta que trai sua poesia é uminfeliz completo e morto.Resista, criatura.
Sínteses. Painéis. Afrescos. Repor-tagens. Sínteses. Poesia. Posições.Planos gerais. "O Close-up é umaquestão de amor". Amor.
Eu, pessoalmente, acredito emVampiros. O beijo frio, os dentesquentes, um gosto de mel.
16/11/71 - 3ª-feira
ai de mim copacabana
um dia depois do outronuma casa abandonadanuma avenidapelas três da madrugadanum barco sem vela abertanesse mar nem mar sem rumo certo
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longe de tiou bem pertoé indiferente, meu bem
um dia depois do outroao teu lado ou sem ninguémno mês que vem
neste país que me enganaai de mim, copacabanaai de mim: querovoar no concordetomar o vento de assaltonuma viagem num salto(você olha nos meus olhose não vê nada -é assim mesmoque eu quero ser olhado).
um dia depois do outrotalves no ano passadoé indiferenteminha vida tua vidameu sonho desesperadonossos filhos nosso fuscanossa butique na augustao ford galaxie, o medode não ter um ford galaxieo táxi, o bonde a ruameu amor, é indiferente
minha mãe, teu pai a luanesse país que me enganaai de mim, copacabanaai de mim, copacabanaai de mim, copacabanaai de mim
Desejo
Mas...se eu pudesse um diacom as mãos o sol pegar;a lua apertar entre meus pés etrêmulo de prazer em plena Via Láctea, todos os astros reter comigo,um gozo frenético e sem fim,apesar de tanta infelicidadeeu chegaria a ter pena de mim mesmopois, indiscutivelmente,eu estaria louco,demente!
Ba, 02/07/61
(NETO, Torquato. inéditos da juventude. Torquatália (do lado de dentro). Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda., 2004, p.35)
Literato cantabile
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agora não se fala maistoda palavra guarda uma ciladae qualquer gesto é o fimdo seu início;
agora não se fala nadae tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gestoe em sua orlaos pássaros de sempre cantamnos hospícios.
você não tem que me dizer o número de mundo deste mundonão tem que me mostrar a outra faceface ao fim de tudo:
só tem que me dizer o nome da república do fundoo sim do fim do fim de tudoe o tem do tempo vindo;
não tem que me mostrar a outra mesma face ao outro mundo(não se fala. não é permitido:mudar de idéia. é proibido.não se permite nunca mais olharestensões de cismas crises e outros tempos.está vetado qualquer movimento
(Op.cit., p.168)
Três da madrugada (1971)
Três da madrugada
Quase nadaNa cidade abandonadaNessa rua que não tem mais fimTrês da madrugadaTudo e nadaA cidade abandonadaE essa rua não tem maisNada de mim...NadaNoite alta madrugadaNa cidade que me guardaE esta cidade me mataDe saudadeÉ sempre assim...
Triste madrugadaTudo é nadaMinha alegria cansadaE a mão fria mão geladaToca bem de leve em mim.Saiba:Meu pobre coração não vale nadaPelas três da madrugadaToda palavra caladaNesta rua da cidadeQue não tem mais fim
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Torquato Neto14
Que não tem mais fim...
Gravações: Gal Costa no compacto gravado para a primeira edição de Os últimos dias de Paupéria e reeditada em2002 na coletânea Todo dia é dia D (Dubas); Verônica Sabino em Verônica (1993); Nouvelle Cuisine em Novelhonovo(1995).(Op.cit., p.103)
Pra dizer adeus (1966)
AdeusVou pra não voltar E aonde quer que eu váSei que vou sozinhoTão sozinho amor Nem é bom pensar Que eu não volto maisDesse meu caminho
Ah,Pena eu não saber Como te contar Que o amor foi tanto
E no entanto eu queria dizer VemEu só sei dizer VemNem que seja só Pra dizer adeus.
Gravações: Elis Regina em Elis (1966); Edu Lobo e Maria Bethânia em Edu e Bethânia (1966); Edu Lobo (versão eminglês, To say goodbye) em Sérgio Mendes presents Lobo (1970); Edu e Tom Jobim em Tom & Edu (1981); NouvelleCuisine em Free Bossa (2000).(Op.cit., p.105)
Geléia geral (1968)
Um poeta desfolha a bandeiraE a manhã tropical se inicia
Resplandecente cadente fagueiraNum calor girassol com alegriaNa geléia geral brasileiraQue o jornal do brasil anuncia
É bumba iê, iê boiAno que vem mês que foiÊ bumba iê, iê iêÉ a mesma dança, meu boi
“A alegria é a prova dos nove”E a tristeza é teu porto seguroMinha terra é onde o sol é mais limpoE Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagemPindorama, país do futuro
Ê bumba iê, iê boiAno que vem mês que foiÊ bumba iê, iê iêÉ a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na salaNo Canecão na TVE quem não dança não fala
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Assiste a tudo e se calaNão vê no meio da salaAs relíquias do Brasil:Doce mulata malvadaUm elepê de SinatraMaracujá mês de abrilSanto barroco baiano
Superpoder de paisanoFormiplac e céu de anilTrês destaques da PortelaCarne-seca na janelaAlguém que chora por mimUm carnaval de verdadeHospitaleira amizadeBrutalidade jardim
Ê bumba iê, iê, boiAno que vem mês que foiÊ bumba, iê, iê, iêÉ a mesma dança, meu boi
Plurialva contente e brejeiraMiss Linda Brasil diz bom diaE outra moça também CarolinaDa janela examina a foliaSalve o lindo pendão dos seus olhosE a saúde que o olhar irradia
Ê bumba iê, iê boiAno que vem mês que foiÊ bumba iê, iê iêÉ a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha aa bandeiraE eu me sinto melhor coloridoPego um jato viajo arrebentoComo roteiro do sexto sentidoVoz do morro, pilão de concretoTropicália, bananas ao vento
Ê bumba iê, iê boiAno que vem mês que foiÊ bumba iê, iê iêÉ a mesma dança meu boi
Gravação: Gilberto Gil em Tropicália ou Panis et circensis (1968) e Daniela Mercury, em Daniela Mercury (1991).(Op.cit., p.126-128)
Vento de maio (1966)Oi você que vem de longe
Caminhando há tanto tempoQue vem de vida cansadaCarregada pelo ventoOi você que vem chegandoVá entrando e tome assentoDesapeie dessa tristezaQue eu lhe dou de garantiaA certeza mais seguraQue mais dia, menos diaNo peito de todo mundoVai bater a alegria
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Torquato Neto16
Ôôôôôô
Oi meu irmão fique certoNão demora e vai chegar Aquele vento mais brandoE aquele claro luar Que por dentro desta noite
Te ajudarão a voltar Monte em seu cavalo baioQue o vento já vai soprar Vai romper o mês de maioNão é hora de parar Galopando na firmezaMais depressa vais chegar
Gravação: Wilson Simonal em Vou deixar cair (1966).(Op.cit., p.121)
Coisa mais linda que existe (1968)
Coisa linda neste mundo
É sair por um segundoE te encontrar por aíPra fazer festa ou comícioCom você perto de mimNa cidade em que me percoNa praça em que me resolvoNa noite da noite escuraÉ lindo ter junto ao corpoTernura de um corpo mansoNa noite da noite escuraCoisa linda neste mundoÉ sair por um segundoE te encontrar por aíPra fazer festa ou comício
Com você perto de mimO apartamento, o jornalO pensamento, a navalhaA sorte que o vento espalhaEssa alegria, o perigoEu quero tudo contigoCom você perto de mimCoisa linda neste mundoÉ sair por um segundoE te encontrar por aíPra fazer festa ou comícioA coisa mais linda que existeÉ ter você perto de mim
Gravação: Gal Costa em Gal Costa (1969).(Op.cit., p.129)
Um dia desses eu me caso com você
de tanto me perder, de andar sem sonopor essa noite sem nenhum destinopor essa noite escura em que abandonouns sonhos do meu tempo de meninode tanto não poder mais ter saudadede tudo o que já tive e já perdi
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dona menina, eu me resolvo agoraa ir-me embora pra longe daqui.
um dia desses eu me caso com vocêvocê vai ver, você vai ver um dia desses, de manhã, com padre e[pompa
você vai ver como eu me caso com vocêmeu tempo de brincar já foi-se emborae agora, o que é que eu vou fazer?não tenho onde morar, vou caminhandosem sono, sem mistérios, sem você;pra terra onde nascinão volto nunca maise esta cidade alheia tem segredosque eu faço tudo pra não compreender
meu pobre coração não vale nadaanda perdido, não tem soluçãomas se você quiser ser minha namoradavamos tentar, não é?não custa nadaaté pode dar certoe se não der eu pego um avião, vou pra xangaie nunca mais eu volto pra te ver.(Op.cit., p.181)
o poeta nasce feitoassim como dois mais dois;se por aqui me deleitoé por questão de depois
a glória canta na camafaz poemas, enche a caramas é com quem mais se amaque a gente mais se depara
ou seja:
quarenta e sete quilatessessenta e nove tragadasvinte e sete sonhos, noitescalmas, desperdiçadas.
saiba, ronaldo, aconteceuma vez em qualquer vida:as teias que a gente teceabrem sempre uma ferida
no canto esquerdo do riso?no lado torto da gente?talvez.o que mais forte precisonão sei sequer se é urgente.
nem sei se eu sou o casoque mais mereço entender -
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Torquato Neto18
de qualquer forma, o A-casome deixa tonto. e querer
não é sentar, ter na mesauma questão de depois:é, melhor, ver com certezaquem imagina um mais dois.
paris, europa, o brasil lá no brasil,seis de setembro de 1969*
(Op.cit., p.184-185)* Poema até então inédito, dedicado ao letrista Ronaldo Bastos. (Nota do Organizador)
Ai de mim, Copacabana (1968)
Um dia depois do outroNuma casa abandonadaNuma avenidaPelas três da madrugadaNum barco sem vela abertaNesse mar
Nesse mar sem rumo certoLonge de tiOu bem pertoÉ indiferente, meu bem
Um dia depois do outroAo teu lado ou sem ninguémNo mês que vemNeste país que me enganaAi de mim, CopacabanaAi de mim: queroVoar no ConcordeTomar o vento de assaltoNuma viagem num salto
(Você olha nos meus olhosE não vê nada -É assim mesmoQue eu quero ser olhado.)
Um dia depois do outroTalvez no ano passado É indiferenteMinha vida tua vidaMeu sonho desesperado
Nossos filhos nosso fuscaNossa butique na AugustaO Ford Gálaxie, o medoDe não ter um Ford Gálaxie
O táxi o bonde a ruaMeu amor, é indiferente
Minha mãe teu pai a luaNesse país que me enganaAi de mim, CopacabanaAi de mim, CopacabanaAi de mim, CopacabanaAi de mim.
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Torquato Neto19
Gravação: Caetano Veloso em compacto simples de 1967, reeditada, em 1985, no LP compilação Um poeta desfolha abandeira e a manhã tropical se inicia. Em 1999, a faixa foi incluída no CD Singles, comercializado exclusivamente noJapão, hoje também parte integrante da caixa Todo Caetano.(Op.cit., p.92-93)
Deus vos salve a casa santa (1968)
Um bom menino perdeu-se um dia
Entre a cozinha e o corredor O pai deu ordem a toda famíliaQue o procurasse e ninguém achouA mãe deu ordem a toda políciaQue o perseguisse e ninguém achou
Ó deus vos salve esta casa santaOnde a gente janta com nossos paisÓ deus vos salve essa mesa fartaFeijão verdura ternura e paz
No apartamento vizinho ao meuQue fica em frente ao elevador Mora uma gente que não se entende
Que não entende o que se passouMaria Amélia, filha da casa,Passou da idade e não se casouÓ deus vos salve esta casa santaOnde a gente janta com nossos paisÓ deus vos salve essa mesa fartaFeijão verdura ternura e pazUm trem de ferro sobre o colchãoA porta aberta pra escuridãoA luz mortiça ilumina a mesaE a brasa acesa queima o porãoOs pais conversam na sala e a moçaOlha em silêncio pro seu irmãoÓ deus vos salve esta casa santa
Onde a gente janta com nossos paisÓ deus vos salve essa mesa fartaFeijão verdura ternura e paz
Gravação: Nara Leão em Nara Leão (1968).(Op.cit., p.94)
(Neto, Torquato. Torquatália (do lado de dentro). Volume 1. Organização Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro. EditoraRocco, 2004)
*a) A virtude é a mãe do vício
conforme se sabe;acabe logo comigoou se acabe.
b) A virtude e o próprio vício- conforme se sabe -estão no fim, no inícioda chave.
c) Chuvas da virtude, o vício,conforme se sabe;é nela própriamente que eu me ligo,nem disco nem filme:nada, amizade. Chuvas de virtude:
5/11/2018 Torquato Neto - slidepdf.com
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Torquato Neto20
chaves.
d) (amar-te/ a morte/ morrer:há urubús no telhado e carne secaé servida: um escorpião encravadona sua própria ferida, não escapa: só escapopela porta de saída).
e) A virtude, a mãe do víciocomo eu tenho vinte dedos,ainda, e ainda é cedo:você olha nos meus olhosmas não vê nada, se lembra?
f) A virtudemais o vício: início daMINHAtransa, início, fácil, termino:"como dois mais dois são cinco"como Deus é precipício,durma,e nem com Deus no hospício(durma) nem o hospícioé refúgio. Fuja.
em "Os Últimos Dias de Paupéria" Org. Wally Salomão e Ana Maria S. de Araújo Duarte Ed. Max Limonad, 1982
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