torquemada - clara de andrade

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  • TORQUEMADA DE AUGUSTO BOAL: UMA CATARSE DO TRAUMA

    Clara de Andrade 1

    cena 11 ISSN 2236-3254

    TORQUEMADA DE AUGUSTO BOAL: UMA

    CATARSE DO TRAUMA

    Clara de Andrade

    Atriz, cantora e pesquisadora em teatro. Doutoranda em Artes Cnicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Artes Cnicas pela mesma Universidade. Autora da stssertao: O exlto se Augusto Boal: reflexes sorre um teatro sem frontetras (2011). Sua pesqutsa atual se debrua sobre o teatro poltico do teatrlogo brasileiro Augusto Boal.

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    O sertanejo antes de tudo um forte, escreveu Euclides da Cunha.

    Parafraseando, eu diria: O torturador antes de tudo um covarde.

    (BOAL, 2008, p. 54)

    RESUMO

    A partir de um estudo de caso sobre o teatrlogo brasileiro

    Augusto Boal, o presente artigo busca refletir sobre a questo

    da tortura no teatro de resistncia ao regime militar no Brasil. A

    experincia de tortura vivenciada pelo artista, assim como sua

    produo enquanto dramaturgo, escritor e diretor teatral,

    ancoraram profundamente a atual reflexo. Assim, a partir da

    anlise de sua pea Torquemada (1971) e do romance Milagre

    no Brasil (1979), foi possvel perceber suas motivaes, suas

    escolhas estticas e dramatrgicas e estabelecer um elo entre

    o momento de sua vida da experincia de priso, tortura e

    exlio e sua produo artstica de ento.

    ABSTRACT

    Starting from a case study on the Brazilian playwright Augusto

    Boal, this article seeks to reflect on the issue of torture in the

    theater of resistance to the military regime in Brazil. The

    experience of torture experienced by the artist, as well as his

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    production as a playwright, theater director and writer, deeply

    anchored the current reflection. Thus, the analysis of his play

    Torquemada (1971) and the novel Miracle in Brazil (1979)

    revealed Boals motivations, his aesthetic and dramaturgical

    choices and established a link between the moment of his life

    at the experience of imprisonment, torture and exile, and his

    artistic production at that moment.

    PALAVRAS-CHAVE

    Teatro de Resistncia; Augusto Boal; Tortura; Exlio; Ditadura

    Militar Brasileira.

    1. INTRODUO

    Dramaturgo, encenador e diretor, incessante pesquisador e teatrlogo - um

    dos nicos no Brasil que sistematizou suas tcnicas e teorias em mtodo teatral -

    Augusto Boal , certamente, o nosso homem de teatro mais reconhecido

    internacionalmente. Sua teoria e seu mtodo se estenderam de tal forma pelo

    mundo que hoje o Teatro do Oprimido de Boal possui praticantes em mais de

    setenta pases. Em 2008, Boal foi indicado ao Nobel da Paz e, em maro de 2009,

    foi nomeado embaixador do teatro pela UNESCO, meses antes de seu falecimento

    em 2 de maio do mesmo ano.

    A histria de vida e a carreira de Augusto Boal, assim como sua escrita

    cnica e dramatrgica, trazem marcas profundas da luta poltica do dramaturgo e do

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    seu consequente afastamento do Brasil. Na busca incansvel de encontrar a forma

    ideal de realizar um teatro que fosse nacional e ao mesmo tempo libertador, depois

    de intensa atividade junto ao Teatro de Arena de So Paulo, dirigindo espetculos

    que se tornaram smbolos do teatro engajado brasileiro como Arena Conta Zumbi e

    Opinio (1965), Boal, ainda nos ltimos anos do Arena, final dos anos 60 e incio

    dos 70, vai pesquisar as tcnicas que iro desembocar, durante o seu exlio, no

    sistema do Teatro do Oprimido, com suas ideias revolucionrias do Teatro enquanto

    instrumento de interferncia social para o homem comum, atravs da transformao

    radical da relao ator-espectador.

    Com o golpe militar em 1 de abril de 1964, todos aqueles que haviam

    organizado o contato com operrios e camponeses foram rapidamente reprimidos e

    presos: a sede da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) - onde seria inaugurado o

    teatro do Centro Popular de Cultura (CPC) - imediatamente atacada, incendiada e

    os militares encerram o destino do grupo; em Recife, o Movimento de Cultura

    Popular (MCP) foi fechado logo em seguida ao golpe - Miguel Arraes um dos

    primeiros a ser preso e Paulo Freire parte para o exlio ainda em 64. No entanto,

    aqueles que no travaram contato direto com as massas continuavam ativos na vida

    cultural e ainda assim unidos na campanha contra o governo recm-instaurado.

    Segundo Roberto Schwarz (2008), isso ocorreu porque o governo militar que

    se instaura imediatamente aps o golpe, ao associar-se com o imperialismo,

    priorizando a integrao econmica e militar com os Estados Unidos, no se

    preocupa em apresentar uma ideologia que o sustente, at mesmo porque, usando

    da fora, dispensa qualquer apoio da populao. Neste sentido, nos primeiros anos

    da ditadura, a arte burguesa manteve-se razoavelmente livre para manifestar seus

    contedos, por mais engajados que fossem, contanto que no apresentasse

    perigo iminente de sublevao da ordem, ou alguma atuao junto s classes

    populares, como o CPC. Este afrouxamento ideolgico dos primeiros anos de

    censura ajudava a dar um ar de normalidade civil ao regime ditatorial. De acordo

    com Schwarz (2008), somente em fins de 1968 oficialmente reconhecida a guerra

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    revolucionria no Brasil, respondida pelos militares com policiamento pesado,

    represso imprensa e tortura em propores absurdas, culminando com a

    promulgao do Ato Institucional n 5 (Schwarz, 2008, p. 87).

    De fato, o Teatro de Arena, apesar da crescente atuao da censura em

    textos teatrais desde o perodo dos Seminrios de Dramaturgia, s sofreria a

    represso radical e definitiva que recara sobre o CPC, a partir da realizao da I

    Feira Paulista de Opinio, em 1968, quando os cortes de cerca de 65% do texto

    praticamente impediram a realizao da mesma. (Boal, 2000, p. 257) Depois de

    redigido um pedido de liberao para a realizao do espetculo, assinado por

    Cacilda Becker, que se solidarizou com a situao, a classe artstica organizada

    ficou de viglia no Teatro Ruth Escobar at que a pea pudesse ser apresentada,

    num estado de Desobedincia Civil de abolio censura. No dia seguinte, com o

    teatro cercado pela polcia, a classe manteve o estado de Desobedincia Civil e

    avisou aos espectadores que o espetculo seria apresentado no Teatro Maria Della

    Costa, onde Fernanda Montenegro estava realizando temporada. A atriz permitiu

    que seu espetculo fosse interrompido para que os atores da Feira cantassem as

    canes que haviam sido proibidas. Segundo Boal, no terceiro dia previsto para

    apresentao, os teatros de So Paulo se encontravam cercados pela polcia. O

    elenco, acompanhado de espectadores, segue ento para a cidade de Santo Andr

    e apresenta no Teatro de Alumnio o texto integral da Feira Paulista de Opinio.

    (Boal, 2000, p. 257)

    A promulgao do Ato Institucional n 5 e o consequente acirramento da

    censura e da represso, portanto, dificultaram muito a sobrevivncia do Teatro de

    Arena em territrios brasileiros. Em 14 de dezembro de 1968, dia seguinte

    divulgao do AI-5, Augusto Boal parte para Cuba. (Boal, 2000, p. 264) Depois de

    um ms, inicia longa turn com Arena Conta Zumbi pelo Mxico, Peru e Estados

    Unidos, a convite de Joanne Pottlitzer, onde o espetculo obteve elogiosas crticas

    no New York Times. Foi a internacionalizao do Arena (Boal, 2000, p. 267), um

    processo necessrio, protetor em certo sentido - a solidariedade internacional

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    poderia ser til nos casos de represso e de fato foi - e um dos primeiros sinais do

    exlio que j se aproximava. No entanto, o grupo decide voltar para o Brasil e

    continuar resistindo. (Boal, 2000, p. 270) Em 1970, o Teatro de Arena encena A

    Resistvel Ascenso de Arturo Ui, de Bertolt Brecht, e ensaia novo espetculo

    histrico, Arena Conta Bolvar.

    Certa noite, em 2 de fevereiro de 1971, caminhando de volta para casa

    depois do ensaio, na cidade de So Paulo, Augusto Boal v trs homens armados

    saltarem de um carro. No teve escolha: foi sequestrado e preso. Boal permanece

    um ms em cela solitria no DOPS de So Paulo (Departamento de Ordem Poltica

    e Social) sob tortura e interrogatrios sistemticos, comandados por um dos nomes

    mais temidos da represso, o temido delegado Srgio Paranhos Fleury (Boal, 2000,

    p. 276). Nas palavras de Boal: difcil enfrentar com cenrios, tanques, com

    figurinos, fuzis. Perdemos. (Boal, 2000, p. 270)

    De incio, se passaram sete dias sem que a famlia e os amigos de Boal

    tivessem notcia de seu paradeiro. Seu irmo, que por sua vez era do servio militar,

    decide ir delegacia do DOPS, mas o nome de Boal no estava na lista dos presos:

    sua entrada havia sido feita com o nome de Francisco de Souza, para que ele no

    fosse encontrado. Ao ouvir um investigador perguntar: E agora, o que se faz com o

    corpo?!, o irmo de Boal, em um ato de desespero, sacou sua arma e obrigou que

    lhe mostrassem Augusto, como estivesse, vivo ou morto. Os policiais finalmente

    trazem Boal e os irmos tm um encontro de cerca de trs minutos. Seu sequestro,

    ento, pde ser oficializado como priso. (Boal, 2000, 279-280)

    Graas determinao de seu irmo, depois de um ms preso, Boal

    consegue que seu paradeiro seja noticiado nos jornais. quando a solidariedade

    internacional intervm com uma srie de protestos contra sua priso. Desde uma

    carta redigida por Arthur Miller e assinada por importantes personalidades do teatro

    mundial como Peter Brook, Richard Schechner, Bernard Dort, Jean-Louis Barrault,

    Arianne Mnouchkine e Antoine Vitez, a manifestaes lideradas por Jack Lang -

    ento diretor do Festival de Nancy e que depois veio a se tornar ministro da Cultura

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    na Frana - e telegramas, um deles, de Jean Paul-Sartre, chegou a ser lido em sua

    sesso solene, e outros vindos at do Japo. Tal presso acelerou muito o seu

    processo jurdico e em um ms Boal estava sendo ouvido em julgamento, junto de

    mais seis pessoas, fato raro naqueles tempos obscuros. Porm, as informaes

    contidas nos depoimentos, mesmo realizados diante do juiz, foram registradas

    dubiamente, de tal modo que o teatrlogo acabou sendo sentenciado a mais dois

    meses de priso preventiva, no presdio Tiradentes. (Boal, 2000, p. 280)

    Em outra etapa de seu julgamento, Boal consegue liberao para viajar para

    a Frana e se juntar ao Arena, que participava do Festival Mundial de Teatro de

    Nancy com Zumbi e outras peas-curtas de Teatro-Jornal. Sua presena no Festival

    contribuiria para uma imagem menos srdida da ditadura brasileira. Prestes a

    embarcar, o artista precisou assinar um documento prometendo que voltaria ao pas

    para seu julgamento final. Nesta ocasio, ouviu a seguinte frase do funcionrio que

    lhe fez assinar a promessa de retorno: No prendemos ningum segunda vez:

    matamos! No volte nunca. Nesta linha: assine! Prometa voltar. (Boal, 2000, p.

    282). Boal relata ter sido este o nico conselho da ditadura que seguiu risca: partiu

    definitivamente para o exlio.

    2. NOS PORES DE TORQUEMADA

    O primeiro pouso do exlio de Augusto Boal ser na Argentina. Alm de ser a

    terra natal de sua mulher, a atriz e psicanalista Cecilia Thumin Boal, a ditadura se

    mostrava mais branda aos argentinos naquele momento, com o governo militar de

    transio de Alejandro Lanusse. A fuga para a Argentina, por se tratar de um pas

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    da Amrica Latina, prximo ao Brasil, significava tambm a esperana de que se

    poderia voltar em breve, a iluso de que a ditadura brasileira logo se extinguiria.

    Em Buenos Aires, Boal pde dirigir sua pea Torquemada, escrita quando

    ainda se encontrava preso ilegalmente no Brasil. O dramaturgo comeou a idealiz-

    la em fevereiro de 1971 quando esteve em regime de solitria no DOPS-SP (F1 -

    Fundo). Atravs de desenhos que eram entregues sua me em dia de visita -

    alegando que eram apenas desenhos para o seu filho Fabian - Boal registrava as

    cenas que via na priso. (Abellan, 1998, p. 185) Continuou a escrever a pea no

    presdio Tiradentes (Pavilho 1, cela 3, de nome Mario Alves), onde, em cela

    compartilhada com outros presos polticos, possua mais liberdade. Boal enfim

    consegue finalizar Torquemada em 2 de novembro de 1971, j exilado em Buenos

    Aires. (Boal, 1973, p. 62) Escrita, portanto, em formato semelhante ao de um dirio

    de priso - Boal a define como Relatrio (Boal, 1973, p.61) -, a pea trata

    explicitamente da questo da tortura e da censura em regimes ditatoriais.

    No texto de apresentao da pea, Boal no menciona onde exatamente se

    passa a ao, mas deixa claro para o leitor, no decorrer das cenas, que pode se

    tratar tanto de um pas da Amrica Latina, quanto de qualquer outro onde j se

    tenha instaurado um governo autoritrio. A figura do inquisidor espanhol

    Torquemada - conhecido por sua crueldade, estmulo a delaes, torturas e

    assassinatos em pblico, durante o reino de Arago e Castela, de 1478 a 1494, com

    o intuito de alcanar a sangre limpia ao manter na Espanha somente aqueles que

    teriam sangue puramente cristo - aparece como uma alegoria do sistema

    corrupto e doentio que se instaura no continente latino-americano. O personagem

    de Dramaturgo, que preso, interrogado e submetido a toda sorte de torturas, nos

    remete imediatamente figura do prprio autor, Boal. Ao final do Prlogo da pea, o

    ator que representa este papel, como uma quebra de distanciamento brechtiano, se

    dirige plateia: Esta pea foi escrita na priso Tiradentes, do Estado de So Paulo,

    Brasil no ano de 1971. Foi escrita tambm na Espanha, no fim da Idade Mdia.

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    Continua sendo escrita no Chile, depois de tantos anos, no Uruguai, em [El]

    Salvador. Comea sempre assim. (Boal, 1990, p. 112)

    Na pea de Boal, Padre Toms de Torquemada nomeado inquisidor-mor

    pelo Rei, com o objetivo de pacificar o povo que, segundo ele, quis mais do que

    podia ao desejar participar do progresso econmico a que o reino vinha assistindo.

    O Rei pede ajuda a Torquemada para fazer com que o povo aceite ser escravo. O

    padre prontamente aceita sua incumbncia, e a aluso ao crescimento econmico

    que se via ocorrer no perodo do golpe militar brasileiro, assim como em outros

    pases latino-americanos, fica ainda mais ntida: Meu rei: eu farei um Milagre.

    Vamos nos enriquecer cada vez mais, e o povo no vai reclamar. (...) Minha

    primeira providncia esta: que se prenda todo o povo. Quero interrog-lo. (Boal,

    1990, p.112) O Milagre Brasileiro, sob o preo da tirania, da manuteno da

    desigualdade e da pobreza, das diversas formas de sujeio e opresso, enfim, da

    escravido social e poltica de um povo.

    Primeiramente, no dito prlogo, o texto denuncia os interrogatrios e sesses

    de torturas vividas pelo personagem nomeado Dramaturgo. Depois, nas cenas que

    se seguem, mostra-se: a violncia que passou a se impor aos estudantes e jovens,

    por mera suspeita de subverso, como na cena intitulada Interrogatrio em que a

    personagem Moa morta em tortura diante de outros Presos; a rotina dos presos

    polticos e os diferentes segmentos e vises dentro da prpria esquerda; a

    participao da Igreja, os que apoiaram o sistema, e os que defenderam os direitos

    humanos dos guerrilheiros; o retrato da alta burguesia no personagem Paulo, sua

    relao de promiscuidade e dependncia com o capital internacional, e assim

    mesmo sua derrota. Todas essas doenas sociais sob o comando cruel do

    inquisidor-mor, El Torquemada.

    O autor dedica a pea amiga Heleny Guariba que, depois de ministrar

    oficina junto com Cecilia Thumin no Arena, vinha trabalhando como assistente de

    Boal, at ser detida. Ser na priso do DOPS, e depois no presdio Tiradentes, que

    os dois iro se reencontrar. Heleny j estava em presdio h cerca de um ano e

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    havia sido chamada delegacia poltica para acareao com prisioneiros recentes.

    quando reconhece a voz de Augusto na cela ao lado e lhe d conselhos para que

    no confessasse absolutamente nada, nem um pequeno detalhe, mesmo que

    inconsequente, e que tivesse um comportamento mais brechtiano que

    stanislavskiano durante seu tempo na priso. Segundo Boal, assim eram os

    conselhos de Heleny: Aqui a gente no pode s sentir, tem que tentar

    compreender. Tem que ter muito efeito de distanciamento... Nada de emoes...

    (Boal, 1979, p. 21). Trata de ver as coisas brechtianamente. Eles nunca tm

    nenhuma prova contra ningum: o que eles tm so s confisses! (Boal, 1979,

    p.27) Heleny logo mandada de volta ao presdio e, meses depois, brutalmente

    assassinada pelos militares. At hoje Heleny Guariba considerada como

    desaparecida.1 Boal lhe dedica a pea com as palavras: Para Heleny,

    assassinada nas prises de Torquemada. (Boal, 1973, p. 61)

    Desde a sua dedicatria, portanto, o texto de Torquemada, carrega o choque

    da experincia de priso e tortura vivida pelo seu autor, Augusto Boal. O pensador

    Walter Benjamin (1975) no ensaio Sobre alguns temas de Baudelaire traz ricas

    reflexes sobre a relao dos choques traumticos e o artista da modernidade. Na

    primeira parte de seu ensaio, Benjamin se refere ao trabalho de Freud Alm do

    Princpio do Prazer, que prope uma correlao entre a memria e a conscincia, a

    partir da hiptese de que a conscincia surja no lugar da marca mnemnica

    (Benjamin, 1975, p. 44), donde ento surgiria a ameaa dos choques traumticos. A

    descrio feita por Benjamin da experincia do choque , enfim, uma das primeiras

    1 Heleny tambm o aconselha a no se impressionar quando ele visse a amiga em comum

    Albertina - que tinha sido a primeira mulher de Boal sair da cela sem conseguir andar, depois de ser torturada: se tratava de mero fingimento para que no a torturassem mais. Boal soube mais tarde que Heleny estava, claro, tentando proteg-lo, que a amiga Albertina de fato quase no podia mais andar depois das sesses de tortura, mas para ele, aquelas palavras o ajudaram a ter mais coragem. (BOAL, 1979, p. 21-22) Em sua autobiografia, Boal diz que os torturados, ento, ao imitarem com perfeio as dores que sentiam estavam desta vez sendo stanislavskianos e lembra Fernando Pessoa: O poeta um fingidor, / finge to completamente, / que chega a fingir que dor, / a dor que deveras sente. (BOAL, 2000, p. 276)

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    e mais fortes imagens do indivduo moderno, fragmentado, incapaz de reagir aos

    estmulos com que se depara.

    Benjamin tambm se refere a Freud no que diz respeito ao funcionamento

    frustrado da reflexo que produziria o espanto. Para ilustrar esta passagem, cita

    uma imagem na qual este elemento foi cruamente fixado pelo poeta Baudelaire: um

    duelo de esgrima no qual o artista, antes de sucumbir, grita de espanto, como

    metfora do processo de criao. E sobre esta possvel relao entre processo de

    criao artstica e memria do trauma que nos deteremos agora mais atentamente.

    No caso de Augusto Boal, as experincias de tortura e do exlio parecem ser

    mais fortes do que ele prprio e, a partir desse momento, passam a se impor em

    sua criao artstica, tanto no que diz respeito dramaturgia quanto esteticamente,

    nas escolhas e mtodos, como diretor.

    Torquemada mostra claramente a luta psicolgica de Boal com o trauma

    recm-vivido. Ele relata que escrevera e dirigira o texto por no acreditar no que

    havia lhe acontecido na priso, precisava ver tudo aquilo acontecer fora dele, em

    cena, para que pudesse, assim, enxergar a si mesmo. Dirigi Torquemada. No

    acreditava no que me havia acontecido. Precisava v-lo acontecer fora de mim, em

    cena, para que me pudesse ver, separar-me de mim. Eu e a palavra, eu e o ator. S

    assim me entenderia. (Boal, 2000, p. 294) Nesta fala de Boal transparece

    nitidamente o deslocamento, que ele via ser necessrio, da figura de seu prprio eu

    encarnada no texto, nas palavras e nas situaes dramticas encontradas na pea,

    como reflexo das cenas vividas e assistidas na priso. E ainda, como um desejo de

    reencontrar sua prpria identidade:

    No me bastava espelho nem memria: precisava me ver em

    algum que me roubasse o nome, o Augusto Boal que eu pensava

    ser, que trazia colado ao rosto, s mos, ao peito. J no sabia

    quem era eu ou tinha sido. Queria ouvir palavras que pronunciei na

    tortura. Voz empostada de ator bem treinado reproduzindo gritos

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    roucos. Ver-me longe de mim. Dirigir-me como dirijo atores. (Boal,

    2000, p. 294)

    Toda a dor que ele mesmo no pde conter ser catalisada para a escrita e

    exposta em cena como um grito de socorro e de desespero, no esforo de

    assimilao e compreenso do trauma vivido, de modo a se realizar uma verdadeira

    catarse dentro dele mesmo. Na rubrica inicial do texto, Boal ainda esclarece: Tudo

    nesta pea verdadeiro: ocorreu realmente. A nica fico a estrutura da prpria

    pea, que busca a teatralidade. (Boal, 1990, p. 102)

    Torquemada se inicia ento com uma longa rubrica que descreve como o

    autor v seus personagens em cena. O espao cnico: uma cela com cinco camas

    duplas e uma porta com uma grade alta; os figurinos: os atores se vestem iguais,

    mas no de uniforme, j que se trata de presos polticos (Boal, 1973, p.63), os

    policiais se vestem de policiais ou de frades. Deve existir uma mistura de roupas

    histricas e modernas. (Boal, 1990, p. 102) E sobre o estilo de representao, o

    autor afirma ser basicamente realista, porm diz que cada cena em particular deve

    ser feita segundo o estilo que melhor lhe convenha, sem necessidade de se manter

    uma forma de representao nica para todo o espetculo.

    A primeira edio do texto, argentina (1973), traz informaes sobre um estilo

    de encenao (no-realista) que se aproximam muito do sistema coringa,

    informaes estas que no se encontram na edio brasileira (1990). Na primeira,

    Boal observa que os atores devem intercalar seus personagens em cada cena e

    que nenhum personagem deve ser representado por um mesmo ator em duas

    cenas consecutivas. Cada personagem deve ter sua mscara de comportamento

    (movimentos, voz, etc.) que deve ser mantida por todos os atores que o

    representem. (Boal, 1973, p. 64) Porm, em relao estrutura dramtica

    propriamente dita ocorre o contrrio, a estrutura do sistema coringa mantida mais

    fielmente na segunda verso, a brasileira. As cenas denominadas de Explicao,

    por exemplo, na edio em portugus tm como porta-voz o Ator - exatamente

    como na estrutura do coringa, na qual se acrescenta apenas a denominao do Ator

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    como Coringa - enquanto que na edio argentina, estas mesmas cenas, ainda que

    sob o ttulo de Explicacin, aparecem apenas como rubrica. (1990, p.144)

    Em seguida rubrica de abertura da pea, se segue outra que descreve o

    ambiente do Prlogo: uma sala de torturas. Cinco policiais vestidos de frades j se

    encontram em cena (Barba, Atleta, Baixinho, Frade 1, Frade 2) e preparam os

    aparelhos a serem utilizados: um pedao de pau, duas pequenas mesas, uma

    garrafa de gua com sal, um aparelho eltrico, espcie de reostato (dispositivo que

    possibilita aumentar ou diminuir a corrente eltrica de um circuito), cordas, algemas.

    Barba o chefe das operaes. Ele traz cadernos e papis em uma pasta, que

    examina. Entram mais um frade e o Dramaturgo. A cena se inicia com um breve

    interrogatrio e rapidamente o Dramaturgo ordenado a tirar a roupa e a sentar-se

    no cho. Barba e Atleta o colocam em posio fetal no pau-de-arara.2 Desde esse

    primeiro momento j possvel reconhecer a experincia vivida por Boal, projetada

    em sua escrita. Um trecho da cena mostra claramente esta transposio:

    BARBA - Onde que voc conheceu o Alusio, aqui ou em Paris?

    DRAMATURGO Em nenhum lugar.

    BAIXINHO L em Paris, na casa do Alusio, quem que se reunia

    com vocs? (...) Alusio nome de guerra ou nome

    verdadeiro?

    DRAMATURGO No sei.

    BARBA No que ele no saiba: ele no se lembra. D um

    pouquinho de memria a pra ele. (Novo choque eltrico.

    Novo grito.)

    2 Pau-de-arara: (...) Aplicado j nos tempos da escravido para castigar escravos rebeldes,

    consiste em amarrar punhos e ps do torturado j despido, e sentado no cho, forando-o a dobrar os joelhos e a envolv-los com os braos; em seguida passar uma barra de ferro de lado a lado perpendicularmente ao eixo longitudinal do corpo por um estreito vo formado entre os joelhos fletidos e as dobras do cotovelo. A barra suspensa e apoiada em dois cavaletes (no DOPS de So Paulo, os cavaletes so substitudos por duas escrivaninhas), ficando o preso dependurado. (...) (BAFFA, 1989, p. 66-67)

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    Clara de Andrade 14

    cena 11 ISSN 2236-3254

    BAIXINHO - A gente tem provas de que voc se encontrava com o

    Alusio em Paris.

    DRAMATURGO Eu encontrei muita gente em Paris, mas no

    lembro o nome de todo mundo.

    BARBA Est melhor: voc se encontrou com o Alusio, mas

    quando voc entregou os recados, voc ainda no sabia

    como era o nome dele, no verdade? (...)

    DRAMATURGO No, eu no disse isso. Eu no levei nenhum

    recado pra ningum. Mas pode ser que eu tenha me

    encontrado com uma pessoa chamada Alusio, ou Pedro, ou

    Paulo, ou Jos, por casualidade. Foi isso que eu disse. Mas

    no levei recado nenhum a ningum.

    BAIXINHO Recado no, mas artigos voc levou. Recados, voc

    trouxe, t lembrando agora? (...) (Choque e grito.)

    DRAMATURGO No verdade nem uma coisa nem outra.

    BAIXINHO Ento como que foram publicados tantos artigos

    difamando o nosso pas?

    DRAMATURGO Eu no li nada.

    BAIXINHO Mas os artigos foram publicados! Sim ou no? (Para o

    Atleta) Pergunta! (Choque e grito) Na revista Temps

    Modernes. Sim ou no? (...) Vai ter que confessar!

    DRAMATURO Confessar o qu?

    BARBA Confessa que voc difama o nosso pas quando viaja para

    o exterior.

    DRAMATURGO No exterior eu apresento os meus espetculos, as

    minhas peas. Isso no difamar.

    BARBA Voc difama e tchau. Confessa de uma vez.

    DRAMATURGO Mas como? Como que eu difamo?

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    Clara de Andrade 15

    cena 11 ISSN 2236-3254

    BARBA Voc difama, porque, quando voc vai ao exterior, voc

    diz que no nosso pas existe tortura. (H um silncio. O

    Dramaturgo, pendurado no pau-de-arara, no consegue

    evitar um sorriso.)

    BAIXINHO Ele est rindo.

    DRAMATURGO (Tentando parar o riso.) No, no, eu no estou

    rindo, quer dizer, eu s ri um pouquinho, quer dizer, como

    voc disse que eu difamava porque aqui no existe tortura...

    bom, quer dizer, o que que eu tou fazendo aqui? Isso daqui

    o que que ?... Isso tortura!

    BARBA Manda brasa pra que ele aprenda! (O Atleta vai fazer o

    jogo normal de ligar o aparelho e desligar imediatamente.)

    Deixa, deixa um pouco mais de tempo pra que ele aprenda.

    (O Dramaturgo grita continuamente de dor pelo choque

    eltrico demorado. Depois de uns instantes, o Atleta desliga.)

    BARBA Claro que isso tortura. Mas voc tem que reconhecer

    que eu estou te torturando com todo o respeito! No estou te

    dando porrada na cara nem apagando o cigarro aceso na tua

    boca. Estou fazendo o mnimo indispensvel. (...)

    BAIXINHO (Olhando o Dramaturgo) Parece que ele t mal.

    (BOAL, 1990, p. 104-106)

    Depois de Torquemada, Boal escreve o romance Milagre no Brasil, no qual

    relata em primeira pessoa a sua experincia na priso. Publicado inicialmente em

    Portugal em 1976, e no Brasil somente em 1979, sua narrativa funciona quase como

    um depoimento e nos remete imediatamente denncia presente em Torquemada.

    No trecho abaixo ele descreve a sensao do choque eltrico em seu corpo,

    pendurado no pau-de-arara:

    - Ento vamos comear. Voc j vai ver que sabe muito mais do que

    pensa que sabe. Vai lembrar muito mais do que pensa que lembra.

    Por exemplo: quem o Eduardo?

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    cena 11 ISSN 2236-3254

    - No sei...

    Creio que nem terminei de falar e soltei um grito fortssimo. Nunca

    me havia ouvido gritar semelhante grito. Nem pude acreditar que era

    a minha voz. Em geral, quando uma pessoa quer gritar, prepara o

    grito. Esse foi o primeiro grito da minha vida sem nenhuma

    preparao. Por isso era diferente, no parecia meu, no se parecia

    a nenhum grito conhecido. Comecei a tremer convulsivamente:

    sentia a eletricidade em toda parte do meu corpo, nos braos, nas

    pernas, na cabea, no estmago. Minhas orelhas pareciam queimar.

    O choque eltrico no tinha durado muito - talvez alguns poucos

    segundos mas os seus efeitos continuavam muito alm. Eu

    respirava fortemente, muito tenso. Ouvia perguntas sem identificar

    quem perguntava (...). Quando minha cabea dava volta eu

    conseguia ver o relgio do baixinho, mas no via as horas. Que

    horas seriam? Eu queria saber as horas. Talvez isso pudesse me

    distrair da dor. (Boal, 1979, 62-63)

    A narrativa prossegue com a descrio exata da cena transcrita

    anteriormente de Torquemada. A sensao reflexa do choque, porm, cada vez

    mais forte:

    O barbado, muito srio, ordenou:

    - Deixa, deixa, um pouco mais. Outra vez. E mais. Que se foda!

    Chora! Chora! Voc sabe chorar? Riu, no , agora vai ter que

    chorar!

    Desta vez no me lembro nem mais ou menos quanto durou o

    choque, mas certamente foi muito mais do que eu podia aguentar,

    em estado de conscincia. Eu me lembro que o meu corpo saltava

    pendurado pelos joelhos, como se fosse uma mquina de quebrar

    pedras. Lembro do meu grito continuado e das caras ferozes,

    ofendidas. Deve ter passado muito tempo. Desmaiei. No sei se

    uma ou duas vezes, se muito ou se pouco tempo. S sei que depois

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    cena 11 ISSN 2236-3254

    de algum tempo eu ainda continuava ali, pendurado (...). (Boal,

    1979, p.67)

    Tortura e Sintoma Social, da psicanalista Maria Rita Kehl (2010), apresenta

    uma profunda reflexo sobre a questo da tortura e sua insero nos discursos

    coletivos de poder e memria social. Maria Rita nos aponta para a face hedionda,

    porm inegavelmente humana da tortura: alm de se inscrever justo no lao social,

    no se conhece outro ser, a no ser o prprio ser humano, capaz de

    instrumentalizar seu semelhante, e ainda ter prazer com isso, a pretexto de se obter

    uma suposta verdade. No que toca questo do corpo torturado, a autora

    esclarece ser este um corpo roubado ao seu prprio controle; corpo dissociado de

    um sujeito, transformado em objeto nas mos poderosas do outro seja o Estado

    ou o criminoso comum. (Kehl, 2010, p. 130-131) Segundo Kehl (2010), ao instaurar

    a separao entre corpo e sujeito, a tortura remontaria, portanto, ao dualismo

    corpo/mente, ou corpo/esprito, fazendo do corpo sob tortura simples carne sem

    alma merc da crueldade e do gozo do outro. (Kehl, 2010, p.131)

    Ser nessa mesma direo que o escritor Jaime Ginzburg em seu artigo

    Escritas da Tortura (2010) chama a ateno para o estudo dos psicanalistas

    Maren e Marcelo Viar, do livro Exlio e Tortura (1992), que apresenta relatos de

    pacientes torturados no Uruguai e reflexes sobre as dificuldades especficas

    encontradas por estes pacientes. A partir dos estudos de caso, os autores chegam

    concluso que o objetivo da tortura exatamente provocar a exploso das

    estruturas arcaicas constitutivas do sujeito, isto , destruir a articulao primria

    entre o corpo e a linguagem. Tamanha desproporo de posies de poder entre

    torturador e torturado levaria o sujeito, em situaes extremas de sofrimento

    corporal e psquico, a identificar-se com o inimigo sua frente, na tentativa de

    resgate da realidade e de sua constituio enquanto sujeito, passando assim, em

    muitos casos, a identificar-se, tambm, com o pensamento do torturador. (Ginzburg,

    2010, p. 142)

  • TORQUEMADA DE AUGUSTO BOAL: UMA CATARSE DO TRAUMA

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    cena 11 ISSN 2236-3254

    De acordo com Maria Rita Kehl, esta identificao ocorreria porque a fala que

    pertence ao sujeito deixa de lhe pertencer, j que o torturador, tendo o poder fsico e

    psicolgico sobre sua vtima, pode arrancar dela a palavra que ele quer ouvir, e

    no a que o sujeito teria a dizer. Nas palavras da psicanalista:

    Resta ao sujeito preso ao corpo que sofre nas mos do outro o

    silncio, como ltima forma do domnio de si, at o limite da morte. E

    resta o grito involuntrio, o urro de dor que o senso comum chama

    de animalesco. Por que animalesco se um homem que urra?

    (Kehl, 2010, p. 131).

    a prpria Maria Rita Kehl quem nos responde: o grito no seria mais a

    expresso do sujeito assim como no o , tampouco, a palavra extorquida. E,

    talvez, ao evocar o terror, convm cham-lo de animalesco justamente para no se

    correr o risco de se identificar com ele. (Kehl, 2010, p.131)

    O grito involuntrio e a palavra extorquida so, portanto, a manifestao

    possvel do trauma no momento em que vivido. E nos levam ao problema de como

    lidar com a memria deste trauma, que muitas vezes precisa de outras linguagens

    que no a verbal para se manifestar, e assim ser passvel de elaborao.

    Michael Pollak, em seu texto Memria, Esquecimento, Silncio (1989), se

    refere justamente ao trabalho psicolgico do indivduo de assumir o controle sobre

    suas prprias feridas e lembranas pessoais. O autor reflete tambm sobre o papel

    do cinema nos processos de enquadramento da memria 3, o que nos leva a fazer

    uma breve reflexo sobre a possvel funo do teatro nestes mesmos processos. O

    pesquisador argumenta que a importncia crescente do cinema na formao e

    3 Tentativa de insero das memrias coletivas dentro de limites e referncias no tempo e no

    espao que as definem como pertencentes a diferentes grupos sociais. Por exemplo, um evento que tenha sido vivido por um grupo de amigos de uma gerao especfica sobre o qual apenas eles podem se lembrar. Pollak cita tambm o termo memria enquadrada de Henry Rousso. (POLLAK, 1989, p. 2)

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    reorganizao das memrias se d pelo fato de ele se dirigir emoo e no

    apenas ao pensamento cognitivo. O teatro, assim como o cinema, lida com o

    pensamento cognitivo e tambm com a emoo. Seu instrumento, no entanto, no

    a cmera, mas sim a presena fsica do corpo do ator diante do pblico. Nas mais

    diferentes formas e expresses do teatro ao longo da histria, o corpo humano ser

    instrumento para o ator, seja para acessar suas prprias memrias e emoes ao

    longo de seu processo de criao, seja na comunicao com o espectador, ao

    expressar-se em cena com diferentes matizes de voz, gesto e movimento.

    A relao do teatro com a memria, portanto, estar intimamente ligada a um

    discurso do corpo tanto no sentido de uma memria corporal quanto no sentido da

    encenao de lembranas de fatos passados. Atravs de uma espcie de

    corporificao da memria, o teatro possibilitar ento que memrias

    subterrneas (Pollak, 1989, p. 2) venham tona. Este carter de denncia e

    reflexo faz do teatro um poderoso instrumento para a reestruturao da memria

    de processos histricos marcados pelo trauma e pelo silncio.

    Este , portanto, um trao que aparece claramente em Torquemada. Ao

    expor cenas da tortura de maneira to crua, como no trecho que transcrevemos

    anteriormente, a pea atua como denncia aos crimes de tortura cometidos durante

    o regime militar no Brasil e em toda a Amrica Latina. A anlise dos depoimentos de

    Augusto Boal sobre seu processo de escrita e do prprio texto da pea nos mostram

    a necessidade do dramaturgo e diretor do retorno da palavra extorquida pela

    tortura, apontada por Maria Rita Kehl, da exposio em cena do grito involuntrio, o

    urro de dor, dele prprio enquanto sujeito, como de todos aqueles que tambm

    foram torturados. Assim, o texto de Torquemada pode ser visto como uma tentativa

    de reestruturao da memria poltica do trauma, individual e social, da ditadura

    militar brasileira. Outras peas deste mesmo perodo como Pattica (1977) de Joo

    Ribeiro Chaves Netto, Fbrica de Chocolate (1979) de Mrio Prata, ambas

    inspiradas no assassinato do jornalista Vladimir Herzog pelos militares, e Campees

    do Mundo (1979) de Dias Gomes, que narra as diferentes motivaes de jovens

  • TORQUEMADA DE AUGUSTO BOAL: UMA CATARSE DO TRAUMA

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    cena 11 ISSN 2236-3254

    engajados na luta armada, acabaram por exercer tambm este papel de denncia,

    atuando como expresses de um teatro de resistncia ditadura militar.

    Boal se remete mesma cena que transcrevemos anteriormente da tortura,

    ainda uma vez mais, porm anos mais tarde, em sua autobiografia. (Boal, 2000, p.

    279) Em entrevista a Joan Abellan (1998), no ano em que se propunha a escrever

    suas memrias, Boal relata a permanncia fsica e psicolgica destas lembranas:

    Tem coisas que a gente no esquece nunca, que so para sempre.

    Inclusive coisas fsicas. Meus joelhos, por exemplo. Continuam sem

    funcionar muito bem por conta da tortura. E tambm mentalmente.

    (...) agora que j se passaram tantos anos - (...) quase trinta anos, j

    - com a distncia, com o tempo que passou, mesmo assim me vm

    muitas imagens. E elas vm com muita, muita fora. Existem coisas

    que no se apagam. (Abellan, 1998, p. 184)

    O corpo fsico e psquico de Boal, portanto, foi profundamente marcado pela

    tortura, priso e exlio, definindo-se ento como um lugar de memria,4 histrica,

    poltica e, principalmente, humana.

    REFERNCIAS

    ABELLAN, Joan. Boal Cuenta Boal. Barcelona: Institut del Teatro, 2001.

    ANDRADE, Clara de. O exlio de Augusto Boal: reflexes sobre um teatro sem

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    em Artes Cnicas, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio

    de Janeiro (UNIRIO), 2011.

    4 Expresso citada por Maria Paula Arajo e Myrian Seplveda acerca da memria inscrita

    nos corpos de indgenas que participaram da guerra civil no Peru. In: ARAJO & SEPLVEDA, 2007, p. 108.

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    cena 11 ISSN 2236-3254

    ARAJO, Maria Paula; SEPLVEDA, Myrian. Histria, memria e esquecimento:

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