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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
TRABALHADORAS DOMÉSTICAS EMPODERADAS: O FEMINISMO NEGRO DO
SINDOMÉSTICO/ BAHIA NA LUTA POR VALORIZAÇÃO, RECONHECIMENTO E
DIREITOS
Sintia Araújo Cardoso1
Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de contribuir com os estudos sobre a participação política das
trabalhadoras domésticas que compõem a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia –
Sindoméstico/BA no processo nacional de luta pela equiparação de direitos sociais e trabalhistas e pela
conquista de políticas públicas voltadas ao trabalho doméstico no Brasil a partir do ano de 2003, e as
teorias feministas, destacando o pensamento feminista negro decolonial que vem sendo produzido no
Brasil. A luta dessa categoria trabalhista por direitos é bastante antiga, o que tem promovido o seu
fortalecimento através da organização política das mulheres que compõem os sindicatos, bem como tem
fomentado o empoderamento dessas trabalhadoras enquanto mulheres negras lutando contra o machismo,
o sexismo e o racismo em seu cotidiano.
Palavras-Chaves: Trabalho Doméstico, Participação Política do Sindoméstico- BA, Transversalidade de
Gênero e Raça nas Políticas Públicas.
O presente artigo busca relacionar o objeto de pesquisa de dissertação de mestrado desenvolvido
no Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo
(PPGNEIM), sobre a participação política das trabalhadoras domésticas que compõem a diretoria do
Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia – Sindoméstico/BA no processo nacional de luta pela
equiparação de direitos sociais e trabalhistas e pela conquista de políticas públicas voltadas ao trabalho
doméstico no Brasil, a partir do ano de 2003, com as teorias feministas apresentadas na disciplina
“Dinâmica das Relações de Gênero, Raça e Classe”, sobretudo com o pensamento feminista negro
brasileiro. Em se tratando de trabalho doméstico, há muitos agravantes quanto às condições de vida e de
trabalho das mulheres, pois a maior parte da categoria é formada por mulheres negras e pobres, o que
significa dizer que essas trabalhadoras reúnem fatores de grande vulnerabilidade em nossa sociedade,
quanto ao seu gênero, raça e classe social. Fundamentando essa análise, temos o pensamento feminista
negro, e mais especificamente, o pensamento que vem sendo produzido no Brasil. Tomando também
como base a composição dessa categoria profissional, de maioria de mulheres negras e pobres (MORI et
all, 2011), foi feita a escolha metodológica por denominar “trabalhadoras”, e não “trabalhadores
domésticos” neste trabalho, em conformidade com Mori et al (2011).
Para enfrentar a sua realidade difícil e complexa, as trabalhadoras domésticas vêm se
1 Discente do Mestrado em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM / UFBA).
Brasil, Salvador.
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organizando desde a década de 1930, e tiveram muitas conquistas importantes nos anos compreendidos
entre 2003 e 2015, no sentido da equiparação de direitos sociais e trabalhistas com as demais categorias
profissionais no Brasil. Nesse contexto, o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia –
Sindoméstico/BA teve uma atuação fundamental, principalmente através da sua diretoria, que possui
articulação com diversas organizações a nível nacional.
O sindicato da Bahia também protagonizou a formulação e a execução da primeira política
pública voltada para o trabalho doméstico no Brasil, através do Projeto Trabalho Doméstico Cidadão
(2006-2007), e atualmente o sindicato tem proposto e participado de diversas atividades no sentido de dar
visibilidade à sua luta, avançar na garantia de direitos sociais e trabalhistas para a categoria, e no combate
ao racismo e ao sexismo aos quais as trabalhadoras e trabalhadores domésticos estão sujeitos não somente
no exercício da sua função, mas na lida cotidiana com a nossa sociedade marcadamente preconceituosa e
excludente.
Esse exercício diário tem sido incorporado à atuação e na organização política das trabalhadoras
domésticas, sendo traduzido em empoderamento das mesmas no tocante as desigualdades de gênero, raça
e classe social, o que tem gerado desdobramentos e ações importantes para o avanço da luta por
dignidade, direitos e valorização pessoal e profissional.
O trabalho doméstico no Brasil: Uma história de luta
No Brasil, trabalho doméstico remunerado é herança do trabalho escravo (MELO, 1998;
BERNARDINO-COSTA, 2007; DIEESE, 2013; RATTS, 2006; MORI et al, 2011), é contextualizado
como sendo pré-capitalista (MOTTA, 1992), e é considerado de suma importância no processo de
reprodução humana e social (ÁVILA, 2007). Fruto da divisão sexual do trabalho, que relegou às mulheres
os cuidados com a casa e os filhos, ou seja, os cuidados domésticos, muito da discriminação sofrida pelo
trabalho doméstico se deve ao fato de ele ser entendido como trabalho reprodutivo, em contraposição ao
trabalho produtivo, realizado fora do lar, remunerado por ser produtor de bens / riquezas (NOBRE, 2004).
Sendo responsabilizadas e responsáveis pelo trabalho da casa, quando vão para o mercado de trabalho,
percebe-se que a divisão sexual do trabalho se repete, subalternizando as mulheres. Elas geralmente
desempenham tarefas ditas “femininas”, relacionadas ao cuidado, além de ser maioria no trabalho
doméstico remunerado (NOBRE, 2004; MORI et al, 2011). Bruschini (1996) defende que “qualquer
análise sobre o trabalho feminino, procurando romper velhas dicotomias, estará atenta à articulação entre
produção e reprodução, assim como às relações sociais entre os gêneros.”.
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O trabalho doméstico remunerado no Brasil compreende uma categoria profissional composta
por cerca de sete milhões de pessoas (IPEA, 2011). Desse quantitativo, cerca de 93% são mulheres e
aproximadamente 62% são mulheres negras (MORI et al, 2011). Quanto à sua regulamentação, verifica-se
que a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) brasileira é datada de 1943, mas os trabalhadores
domésticos foram excluídos dessa legislação e regidos por uma legislação especial, e esse trabalho só foi
formalizado em 1972, mas à categoria não foram concedidos os mesmos direitos garantidos às demais.
Diante disso, essas profissionais vêm se organizando ao longo dos anos, em prol da equiparação dos
direitos sociais e trabalhistas, e da valorização de sua profissão. A fundação da primeira associação de
trabalhadoras domésticas do Brasil foi em Santos (SP), em 1936, tendo como presidenta Laudelina
Campos de Melo, que também militava em organizações de mulheres negras contra o racismo e no Partido
Comunista Brasileiro (CFEMEA, 2008), e atuou anos depois na fundação da Federação Nacional dos
Trabalhadores Domésticos, em Campinas (SP), em 1997. Os trabalhadores domésticos, com muita luta,
foram reconhecidos como categoria trabalhista com a Lei n. 5.859, de 11 de dezembro de 1972. A
mobilização social em prol da Constituição Federal de 1988 foi um marco importante para os movimentos
sociais no Brasil e as trabalhadoras domésticas estavam inseridas nesse contexto de luta. Conseguiram
ampliar direitos sociais e trabalhistas, mas ainda assim, os/as trabalhadores/as domésticos/as não estavam
incluídos no Art. 7º da CF 1988, que regimenta “os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social” (BRASIL, 1988).
A partir de 2001, o Ministério do Trabalho e Emprego aprofundou suas ações quanto ao trabalho
doméstico remunerado e ao combate ao trabalho doméstico exercido por crianças e adolescentes, e
entidades públicas importantes, tais como Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, no nível
federal, a Secretaria de Políticas Públicas para a Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria de Políticas
para Mulheres (SPM) também prestigiaram o trabalho doméstico em suas ações em 2003, além de
debaterem sobre esse tema em conferências nacionais. No ano de 2006 foi executado o Projeto Trabalho
Doméstico Cidadão, sendo “a primeira iniciativa exclusivamente voltada às trabalhadoras domésticas na
história do Brasil”.2 Esse projeto, só foi executado entre 2006 e 2007, tempo menor do que o inicialmente
previsto, devido a restrições orçamentárias. Também no ano de 2006 foram alterados artigos da Lei n.
5.859, e foi editada a Lei n. 11.324, a qual garantiu mais direitos sociais à categoria.3
2 MTE. Trabalho Doméstico Cidadão – Valorização e Importância Social – Planseq. 2008.
3 Com a Lei n. 11.324, os trabalhadores domésticos firmaram direito a férias de 30 dias, obtiveram a estabilidade para
gestantes, direito aos feriados civis e religiosos, além da proibição de descontos de moradia, alimentação e produtos de
higiene pessoal utilizados no local de trabalho. Também ficou estabelecida a dedução no Imposto de Renda Pessoa
Física de 12% do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), e a contribuição referente ao 13º salário. Fonte:
http://www.esocial.gov.br/DireitosEmpregado.aspx.
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Mas foi em 2013 o marco mais importante para a maior categoria trabalhista brasileira. Nesse ano
foi votada e aprovada a Emenda Constitucional 72, mais conhecida como a “PEC das Domésticas”, a qual
atribuiu às trabalhadoras domésticas os mesmos direitos já concedidos às outras categorias profissionais4.
Em outubro de 2015 foi lançado pelo Governo Federal o eSocial5, que é uma ferramenta eletrônica que
visa cadastrar as trabalhadoras domésticas e unificar a arrecadação dos tributos e do FGTS, o Simples
Doméstico.
O Sindoméstico/Ba e sua atuação na luta nacional
A representação baiana das trabalhadoras domésticas na luta nacional por direitos trabalhistas
deu-se de maneira organizada a partir de 1986, quando um grupo de trabalhadoras que se reunia de forma
sigilosa foi formalizado, tornando-se uma Associação Profissional, e em 1990 tornou-se o Sindicato dos
Trabalhadores Domésticos da Bahia – Sindoméstico-BA, sendo um espaço de participação política e
empoderamento das trabalhadoras domésticas, onde se despertam a consciência dos seus direitos e da
dignidade humana (MORI et al, 2011), reconhecido por elas como um espaço de luta por direitos e
conscientização (CASTRO, 1992).
A atuação de trabalhadoras domésticas enquanto sujeitos políticos envolveu uma participação
atuante e decisiva. Essa luta, movida pela necessidade do reconhecimento enquanto membros da classe
trabalhadora, pela conquista de direitos e de políticas públicas para a categoria foi motivada também pelo
anseio da superação das discriminações de gênero, raça e classe sofridas por essas trabalhadoras, o que
também justifica as desigualdades existentes entre essa categoria trabalhista e as demais (CASTRO, 1992;
MELO et al, 2011). Podemos também relacionar com o que Munanga (2004) chama de “racismo
popular”, pois as discriminações sofridas pelas trabalhadoras domésticas, que negligenciam as suas
demandas perante as demandas de outras categorias trabalhistas, o fato de elas terem sido socialmente
injustiçadas durante todo esse tempo, sem o reconhecimento de seus direitos. Seria o “racismo popular”
uma espécie de racialização da categoria social à qual elas pertencem, composta majoritariamente por
mulheres negras e pobres.
4 Site da FENATRAD. http://www.fenatrad.org.br/site/banner-pec-guia/. Acesso em 15 nov 2015.
5 O projeto eSocial é uma ação conjunta dos seguintes órgãos e entidades do governo federal: Caixa Econômica
Federal, Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, Ministério da Previdência – MPS, Ministério do Trabalho e
Emprego – MTE, Secretaria da Receita Federal do Brasil – RFB. O Ministério do Planejamento também participa do
projeto, promovendo assessoria aos demais entes na equalização dos diversos interesses de cada órgão e gerenciando a
condução do projeto, através de sua Oficina de Projetos. Fonte: http://www.esocial.gov.br/Conheca.aspx. Acesso em 28
out. 2015.
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Nesse contexto, a transversalidade de gênero nas políticas públicas é imprescindível, pois é
preciso contemplar as diferenças entre homens e mulheres para que se promova de fato a igualdade de
espaços, de oportunidades, e de direitos. Não se pode também desconsiderar a relevância do viés de raça
nessas ações, através do combate ao racismo. No caso dessas trabalhadoras, são necessárias políticas
públicas que levem em consideração a sua qualificação profissional e um investimento na elevação da
escolaridade, o combate à informalidade nas relações de trabalho, ao trabalho infanto-juvenil, à
discriminação e violência contra as mulheres e ao racismo no mercado de trabalho, pois o trabalho
doméstico tem crescido mundialmente, mas ainda apresenta os maiores déficits de trabalho decente, o que
requer também da comunidade internacional investimentos no sentido de transformar essa realidade
(MORI et al, 2011). Como exemplo prático, destaca-se o Projeto Trabalho Doméstico Cidadão (2006-
2007). Com a “PEC das Domésticas”, aprovada em 2013, observou-se algumas mudanças: O número de
trabalhadoras domésticas em idade escolar tem diminuído, assim como o das residentes em seu local de
trabalho (IPEA, 2009), e de um total de 6,4 milhões de trabalhadores e trabalhadoras compondo essa
categoria, 20% possui carteira assinada (RIZZOTTO, 2015). Isso é o fruto de uma história de muita luta e
mobilização, contexto esse onde o Sindoméstico (BA) e suas articulações foram de suma importância.
Sobre o trabalho doméstico: Articulando gênero, raça e classe a partir do feminismo negro
Dentre as grandes discussões da teoria feminista está a concepção da categoria “Mulher” como
sendo universal, por ser o sujeito do feminismo, abarcando a todas as mulheres, por sofrerem a opressão
de gênero. Essa concepção foi trazida pelas feministas clássicas. As críticas a esse feminismo brotaram de
diversas partes do mundo, pois essas teóricas preconizavam um conceito de Mulher que era
universalizante, pois as opressões que elas sofriam eram tidas como extensivas a todas as mulheres (DE
BEAUVOIR, 1980; ORTNER, 1979). Parte das críticas a essa formulação deve-se ao fato de que a
construção da categoria “Mulher” foi durante muito tempo baseada nas diferenças biológicas entre os
sexos, o chamado binarismo, que era pautado nas supostas características das naturezas feminina e
masculina, essencializando as questões de gênero. Bairros (1995), uma das grandes teóricas e ativistas
brasileiras situada no pensamento feminista negro, analisa esse fato, dizendo que a atribuição de um
sujeito “mulher” se deu por conta da concepção de que existem naturezas “femininas” e “masculinas”, e
que todas as mulheres teriam essa “natureza feminina”, o que atribuiria uma unicidade à essa categoria,
naturalizando a opressão sexista, desconsiderando que as opressões sofridas pelas mulheres se situam em
contextos históricos e culturais. Essa questão também foi discutida por Piscitelli (2002), que afirma que a
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atribuição de caráter universal à categoria mulher foi importante para a construção de uma coletividade,
mas essencializou as diferenças entre as mulheres, e, portanto, é preciso avançar nesse conceito.
Uma teorização interessante nesse sentido foi feita por Scott (1990 apud SAFFIOTTI 1992),
quando interpreta cada pessoa como um ser relacional e histórico, compreendido através das relações com
outras pessoas. SCOTT (1990) concebe o gênero como sendo a primeira instância na qual o poder se
articula, e não apenas se reproduz. Para essa autora, o gênero não se baseia necessariamente nas diferenças
aparentes entre os sexos, mas nas diferenças percebidas entre eles. Assim, ela defende que gênero deve ser
a categoria principal de análise, sendo uma categoria política relacional e que se refere a relações de poder
existentes entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e homens, baseada na aparente
distinção entre essas categorias; para essa autora, essa relação de poder historicamente subjugou e
submeteu as mulheres ao domínio masculino. Saffiotti (1992) desconstrói o conceito de gênero, enquanto
situado na esfera social em analogia ao sexo na esfera biológica. Ela verificou o amplo uso do termo
“relações sociais de sexo” na literatura francesa, que não considerava o sexo como sendo restrito ao
terreno biológico, já que ele passa por um processo de elaboração social. As análises de SAFFIOTTI
(1992) são interessantes para o presente trabalho porque essa autora avança na discussão ao articular
gênero e classe social, quando discorre sobre as esferas produtiva e reprodutiva do trabalho. Vale ressaltar
que ela se refere na maioria das vezes à essa esfera reprodutiva como a esfera doméstica de trabalho não
remunerado, ou seja, ao trabalho da mulher em sua casa, e no âmbito familiar, mas o trabalho doméstico
remunerado segue essa mesma lógica. Segundo ela, hierarquiza-se o que se atribui ao masculino –
racionalidade, ao feminino – emotividade, como se o primeiro fosse mais importante, útil e eficaz, já que
produz bens e mercadorias, gerando lucro. Essas formulações são um bom ponto de partida para se pensar
na desvalorização do trabalho doméstico, realizado historicamente pelas mulheres, seja ele remunerado ou
não.
Em se tratando de trabalho doméstico, é imprescindível pensar que as mulheres que
desempenham essa tarefa sofrem discriminações motivadas por preconceito de gênero, mas também de
raça e de classe, e que, para avançar na luta pela garantia de direitos é preciso também lutar contra essas
discriminações, ou seja, há que se entender que se trata de uma luta contra essa múltipla opressão, que
prescinde da incorporação de ações que superem a vulnerabilidade à qual essas mulheres estão sujeitas por
conta dessa condição. Ratts (2006) explica que a ideologia dominante (a miscigenação) se reproduz nessas
mulheres negras, e as relega a “um destino histórico”, no qual continuam trabalhando como escravas. A
sua mão-de-obra não é qualificada para ocupar altos postos no mercado de trabalho, e elas assumem o
trabalho doméstico e os trabalhos mais desvalorizados e de remunerações mais baixas – trabalhos esses
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análogos ao trabalho escravo. Como trabalhadoras, elas continuam ocupando o mesmo papel que
ocupavam quando escravas (fosse na casa grande, ou na lavoura), e a elas se aplica a discriminação
mantida pelos critérios raciais de seleção no mercado de trabalho (RATTS, 2006), o que é incorporado
dialeticamente, fazendo com que essas mulheres não almejem galgar espaços melhores na sociedade como
um todo.
Algumas autoras falam em “alquimia das categorias sociais” (CASTRO, 1992),outras utilizam o
termo “interseccionalidade” (CRENSHAW, 2002; KERNER, 2012) para designar a múltipla opressão
sofrida pelas mulheres negras e pobres – articulando gênero, raça e classe. Essa corrente teórica é muito
adequada para embasar o presente trabalho, pois o pensamento dessas autoras é o que melhor traduz a
condição das mulheres em questão – trabalhadoras domésticas baianas, posto que elas argumentam como
a trajetória das mulheres negras é diferente das mulheres brancas, e que o feminismo clássico não é
suficiente para abarcar as questões referentes a essa problemática.
A autora norte-americana Collings (2000) formula uma metodologia que, segundo ela, é capaz de
explicar a múltipla opressão sofrida pelas mulheres negras, que seria o conceito de “matrizes de opressão’.
As formas de opressão estão imbricadas umas nas outras, e fazem parte de uma estrutura que subjuga as
mulheres, com maior prejuízo para as mulheres negras. Essa autora também traz uma crítica contundente
ao feminismo “maisntream”, ou feminismo branco, europeu, quando afirma que as mulheres negras, não
acadêmicas, desde sempre travaram uma luta feminista, mas nunca foram retratadas por esse feminismo
clássico; ela chama essas mulheres de “mulheres reais”, que sempre atuaram em trabalhos desvalorizados
e mal pagos, enquanto a luta das feministas brancas era pelo direito ao mercado de trabalho. Para essa
autora, feminismo negro é tudo o que as mulheres negras fazem, em seu cotidiano – são vidas de luta
contra vários tipos de exclusão. Segundo ela, o olhar dessas mulheres sobre o homem branco, e sobre a
sociedade é um olhar diferenciado, que somente por estarem posicionadas em suas trincheiras cotidianas,
podem imprimir. Outra autora estadunidense, Lord (1984), também compartilha dessa crítica. Segundo
ela, não há hierarquias de opressão, pois as categorias se intercruzam e operam articuladamente,
resultando na opressão das mulheres. Bairros (1995) compartilha dessas análises, de que as mulheres
compartilham a luta contra o sexismo, e não a luta contra a mesma opressão, já que as experiências de
opressão são vividas diferentemente entre elas. Através dessas questões, Carneiro (2002) afirma que o
racismo deve ser a principal categoria de análise, por ser estruturante, hierarquizando inclusive as relações
de gênero. Atrelado a isso é imprescindível, obviamente, pensar em superar a supremacia masculina
(machista e patriarcal), para que se pense no feminismo enquanto projeto emancipacionista. Carneiro
(2002) também discute a impossibilidade de o feminismo clássico representar a todas as mulheres, pois a
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história das mulheres negras e brancas é diferente, e, inclusive, as mulheres brancas também são
opressoras das negras, principalmente quando se trata de suas condições de trabalho – as brancas lutaram
para a sua inserção no mercado de trabalho, enquanto as negras trabalhavam (e trabalham) em suas casas.
Bairros (1995) também traz expressamente essa crítica, e tomando por base Collins (1991), ela analisa que
é relegado às trabalhadoras domésticas um lugar subalterno nas casas onde trabalham, onde elas devem
desempenhar suas atividades de forma passiva, desprendendo certa afetividade para os patrões, já que são
“acolhidas” nesse ambiente, mas sem o devido questionamento quanto à exploração da sua força de
trabalho. A autora reafirma a tese de Collings (1991), de que é a partir desse lugar marginalizado que as
trabalhadoras negras conseguem perceber, “de forma distinta, as contradições da classe dominante”, e
sugere a sua organização, através da reflexão sobre a sua condição, e de ações políticas, para o
enfrentamento desse lugar de subalternidade.
É exatamente nessa direção que o SINDOMÉSTICO/BA vem atuando, no sentido de sua
organização e de seu fortalecimento. No ano de 2016 foi possível acompanhar algumas atividades, a
exemplo da Semana de Comemoração do Dia da Trabalhadora Doméstica, no dia 28 de abril, com a
“Quinta Temática: Trajetória das Trabalhadoras Domésticas – Avanços e Desafios”, e a VII Semana de
Valorização do Trabalho Doméstico, realizado em parceria entre a SETRE e parceiros, através da Agenda
Bahia do Trabalho Decente. Também houve o II Seminário Nacional: O Emprego Doméstico Entre
Passado e Futuro – Uma reflexão a partir de Gênero e Raça6. No dia 30 de novembro, como parte das
atividades do “Novembro Negro”, mês conhecido como “Mês da Consciência Negra”, foi realizada uma
audiência pública na sede da OAB/BA, intitulada: Negros e Habitação - Reflexões acerca da especulação
imobiliária. Mais recentemente, no dia 18 de dezembro, foi realizada a primeira reunião para a fundação
do “Grupo de Mulheres de Mata Escura e Adjacências”, na casa de Milka Martins, Diretora de Formação
do Sindoméstico/BA, que tem se reunido mensalmente. Essas ações são fruto da participação atuante das
mulheres negras trabalhadoras do sindicato da Bahia, sobretudo a última, que é uma ação que parte delas,
para abranger as mulheres da comunidade onde moram, sendo que muitas também compartilham a
condição de trabalhadora doméstica.
Do Sindoméstico/Ba para a vida, ou da vida para o Sindoméstico?
Atuação das mulheres negras enquanto trabalhadoras domésticas empoderadas
6Para mais informações sobre o evento nas redes sociais, ver:
https://www.facebook.com/events/197488167334470/permalink/211053455977941/;
https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSepVFU_IrV1IZObu2PdpWpf2bNtGZJSQygZEWppiEBa-
coOSw/viewform?c=0&w=1. Acesso em 15 dez. 2016.
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A história das trabalhadoras domésticas no Brasil desde sempre tem sido uma história de luta.
Tanto esse trabalho quanto essa luta descendem de um passado marcado por relações de escravidão
(BERNARDINO-COSTA, 2007; MELLO, 1998; RATTS, 2006), onde essas mulheres negras foram
relegadas à condição de maior vulnerabilidade e exploração. A participação no sindicato tem possibilitado
para essas mulheres a articulação com outras trabalhadoras, que compartilham da mesma realidade de
opressão, mesmo estando em cidades e estados diferentes. O Sindoméstico é tido como espaço para
conscientização e luta (CASTRO, 2002), e o acúmulo adquirido através da participação nesse espaço gera
uma consciência de classe mais apurada, além de ampliar a sua atuação para fora dele, conforme propõe
Lord (1984), ao sugerir que superemos os nossos medos e quebremos o silêncio sobre as coisas que nos
oprimem, a fim de enfrentar e superar essas opressões. Assim, as trabalhadoras domésticas têm proposto e
desenvolvido ações que conferem maior visibilidade à categoria, através de atividades que possibilitam o
debate e a articulação com outras entidades, traçando estratégias para a conquista de suas demandas, e
para a negociação e a proposição de políticas públicas para o trabalho doméstico.
A atuação política das trabalhadoras do Sindoméstico/BA tem se dado conforme Carneiro (2002)
considerou acerca das mulheres negras brasileiras, as quais, segundo essa autora, têm se encaminhado
como vozes atuantes na luta por espaço e representação. O Sindoméstico/BA tem dialogado com o
movimento feminista, quando atua no sentido da emancipação e da transformação das condições de vida
das mulheres, também por estarem conscientes do crescente fenômeno da feminização da pobreza,
conforme Carneiro (2002) destaca. O sindicato também dialoga com o movimento negro, suas diretoras
fazem parte da Rede de Mulheres Negras da Bahia, no combate ao racismo e às opressões sofridas pelas
mulheres negras trabalhadoras, pois entende que esse fator ideológico – o racismo - não pode ser
desconsiderado, não devendo ser atribuída a sua condição de discriminação apenas aos fatores econômicos
(RATTS, 2006; SOUZA, 2005), de desigualdade diante das outras categorias trabalhistas. Não tivemos
um sistema racista explicito como o apartheid da África do Sul, por exemplo, mas temos um racismo
velado e perverso, reforçado pelo mito da democracia racial (RATTS, 2006; SOUZA, 2005), que relega o
nosso povo negro aos piores lugares na pirâmide social, e, na base dessa, as mulheres negras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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produção, reprodução e sexuali
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Empowered Domestic Workers: Political Participation of the Sindoméstico / Bahia in the struggle
for valorization, recognition and rights.
Abstract: The present work seeks to make the first approximation between a soon analysis about
political participation of domestic workers who make up the board of directors Syndicate of
Domestic Workers of the State of Bahia - SINDOMÉSTICO / Bahia, in the national process of
struggle for the assimilation of social and labor rights and the conquest of public policies focused on
domestic work in Brazil since 2003, with the feminist theories, highlighting the decolonial feminist
black thought that is being produced in Brazil. The struggle of this labor category for rights is quite
old, which has promoted its strengthening through the political organization of the women who
make up the unions, as well as promoting the empowerment of these workers as black women
fighting against machism, sexism and racism of our day.
Keywords: Domestic Work, Political Participation of the Sindoméstico- BA, Transversality of
Gender and Race in Public Policies.