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Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia Programa de Pós-Graduação em Sociologia Área de Concentração: Sociedade e Região Linha de Pesquisa: Sociologia do Trabalho REVENDEDORAS AVON EM CAMPANHA: VENDA DIRETA E INTERAÇÃO SOCIAL Dissertação de Mestrado Autora: Juliana Abrão da Silva Castilho Orientador: Prof. Dr. Jordão Horta Nunes Goiânia, 2005

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  • Universidade Federal de Gois Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia Programa de Ps-Graduao em Sociologia rea de Concentrao: Sociedade e Regio Linha de Pesquisa: Sociologia do Trabalho

    REVENDEDORAS AVON EM CAMPANHA:

    VENDA DIRETA E INTERAO SOCIAL Dissertao de Mestrado

    Autora: Juliana Abro da Silva Castilho Orientador: Prof. Dr. Jordo Horta Nunes

    Goinia, 2005

  • 2

    Juliana Abro da Silva Castilho

    REVENDEDORAS AVON EM CAMPANNHA: VENDA DIRETA E INTERAO SOCIAL

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Gois como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre, sob a orientao do Prof. Dr. Jordo Horta Nunes.

    Universidade Federal de Gois Goinia, 2005

  • 3

    Juliana Abro da Silva Castilho

    REVENDEDORAS AVON EM CAMPANHA: VENDAS DIRETA E INTERAO SOCIAL

    Banca Examinadora

    Prof Dr. Christiane Girard

    Prof Dr. Maria do Amparo Aguiar

    Prof Dr. Jordo Horta Nunes

    Goinia, julho de 2005.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    O presente trabalho no somente resultado do esforo prprio, outros auxiliaram e

    estiveram presentes em seu processo de desenvolvimento.

    Deus, pai querido, que permitiu e me deu equilbrio suficiente realizao de toda minha

    formao profissional.

    Minha me, Maria Lcia, minha v Helena e minha Tia Maria Helena, mulheres que me

    ensinaram a ser doce e forte, determinada e capaz, boa e dura, pelo grande amor a mim

    dispensado, mesmo que no possam estar sempre presentes.

    Agradeo quele sem o qual esse trabalho no seria realizado, pois sempre me

    incentivou ao estudo e disciplina. Essa dissertao um pouco dele tambm, Weimar

    Silva Castilho, meu amigo, meu marido, minha vida.

    A meu amigo e orientador, professor Jordo Horta Nunes, pelos anos de parceria e

    confiana, em que sempre aconselhou e ajudou a conduzir minha carreira acadmica com

    ateno, carinho e amizade.

    Maria do Amparo, querida professora e exemplo de mulher, por demonstrar real

    interesse e auxiliar na viabilizao da pesquisa emprica, e que, com a professora

    Christiane Girard, aceitaram realizar a leitura e avaliao do texto final desta dissertao,

    muito obrigado a ambas.

    Ao mestrado em Sociologia pelo apoio dado a todos os alunos. A todos os professores do

    DCS pela excelncia em ensino e profissionalismo, bem como a seus funcionrios, em

    especial aos amigos Graa e Domingos.

    A todos os interlocutores da pesquisa, pela recepo em seus lares e por permitirem

    compartilhar com eles um pouco de suas vidas. Em especial a Suzy, Vanda e Dani, por

    terem prestado fundamental auxlio para realizao deste trabalho.

    A todos da minha famlia e famlia de meu marido, desculpem pelos momentos de

    omisso, em especial Eliane, Thallyta, Samara, Maria Helena e Diego.

    A todos os colegas de mestrado e ao companheirismo especial de Ana Jlia, Elaine, Mari-

    Nise e Rogrio, amigos desde sempre. A todos os amigos e aos queridos amigos-irmos

    de corao Renata, Odair e Suammy. A Simone por toda contribuio prestada neste

    ltimo ano. Ao colega Antnio Pedroso, por disponibilizar seu tempo e empenho

    auxiliando na pesquisa bibliogrfica. A todos os colegas de trabalho fraterno do Centro

    Esprita Amor e Luz, que estiveram junto a mim torcendo por minhas realizaes. A todos

    que no foram aqui citados nominalmente, mas sabem ter um lugar especial em meu

    corao.

  • 5

    SUMRIO

    1 - RESUMO 6

    2 - INTRODUO 7

    3 - A ECONOMIA EM REDE E AS OVDS 11

    4 - A ANLISE SOCIOLGICA DAS VENDAS DIRETAS 30

    5 - AS REVENDEDORAS AVON EM CAMPANHA

    43

    5.1 - A PESQUISA EMPRICA 43

    5.2 - A EMPRESA E SUA ORGANIZAO 47

    5.3 - A GERENTE DE SETOR 52

    5.4 - AS REUNIES 57

    5.5 - AS EXECUTIVAS DE VENDAS 64

    5.6 - A CAMPANHA E AS REVISTAS 73

    5.7 - AS REVENDEDORAS AVON 78

    6 - CONSIDERAES FINAIS 117

  • 6

    1 - RESUMO

    Ding Dong, Avon Chama! Com esse slogan a empresa Avon expandiu seus

    negcios por toda a Amrica Latina. As vendas diretas representam uma opo ao

    comrcio varejista, o ambiente onde ocorrem quase sempre um ambiente familiar

    ao comprador, habitualmente sua prpria casa. As revendedoras Avon representam

    um tipo especfico de vendedores diretos; so em sua maioria, mulheres que usam a

    revenda para auxiliar no oramento domstico. A empresa busca incentivar e treinar

    as revendedoras atravs de reunies que ocorrem no fechamento de cada ciclo de

    vendas, denominado campanha. Estas reunies as premiaes e brindes

    oferecidos s revendedoras representam um estmulo s vendas. Seus clientes so

    preferencialmente seus amigos e parentes, pessoas de seu convvio ntimo. Isso

    proporciona o encontro de dois mbitos da vida: o pblico e o privado, as relaes

    comerciais, geralmente restritas ao mbito pblico da vida social, e as relaes de

    parentesco e amizades, concernentes ao crculo privado da vida social. As

    interaes entre revendedoras, clientes e outros atores envolvidos na revenda de

    produtos Avon, constituem o principal objeto de estudo desta pesquisa.

  • 7

    2 - INTRODUO

    Desde a antiguidade os homens realizam o comrcio atravs das vendas

    diretas. A venda de porta em porta uma das formas em que ocorrem as vendas

    diretas que, no Brasil, se popularizou pela figura do mascate e continua existindo

    hoje, tanto nas cidades interioranas quanto em bairros suburbanos das grandes

    metrpoles. At os anos 80 do sculo XX a figura do vendedor de enciclopdias

    praticamente identificava esse tipo de vendas, ao mesmo tempo que, podemos

    dizer, marcava uma poca em que algumas mudanas corriam no setor. As cidades

    se verticalizaram, a segurana e a entrada macia de mulheres no mercado de

    trabalho exigiram que as vendas diretas se transformassem. Hoje, em bairros

    perifricos e em cidades interioranas ainda existem vendedores que batem de porta

    em porta oferecendo toda sorte de produtos: comidas prontas, tapetes, produtos de

    limpeza, jias, produtos de segurana, portes eletrnicos, leite, doces, sorvetes

    etc.. Concomitantemente, grandes empresas de vendas diretas surgiram e

    organizaram-se para atender a um pblico que no mais dispe de tempo para

    receber o vendedor por certo tempo em casa, como ocorria com os antigos

    vendedores de seguros, livros ou enciclopdias. Ao mesmo tempo essas empresas

    oferecem aos vendedores a possibilidade de conciliarem a venda de produtos a uma

    outra ocupao remunerada.

    As Organizaes de Vendas Diretas representam grandes indstrias que

    escoam sua produo atravs destes vendedores. Vendedores diretos, porm,

    formam um grupo muito amplo e diverso de ocupaes, conduzindo-nos a delimitar

    um pouco mais a pesquisa. Optamos por privilegiar o segmento dos vendedores

    diretos que esto vinculados, ainda que informalmente, a uma grande empresa. Trs

    grupos de revendedores foram cogitados: Natura, Herbalife e Avon.

    Esta dissertao tem como finalidade analisar as vendas diretas, abordando

    como objeto especfico as interaes das revendedoras Avon e seus clientes, bem

    como os contextos que contribuem para a sua atuao no mercado das vendas

    diretas. A escolha pelas revendedoras Avon se deu pelos seguintes motivos: a

    grande representatividade e popularidade do grupo de revendedores no Brasil; a

    ausncia de pesquisas sociolgicas sobre o objeto; facilidade de acesso ao grupo a

    ser pesquisado. Entretanto, por diversas vezes, a empresa foi procurada para

    viabilizar acesso a dados pertinentes pesquisa, contudo nenhuma informao foi

  • 8

    disponibilizada pela companhia alm daquelas que so de domnio pblico e que

    podem ser encontradas na rede Internet, nos meios de comunicao de massa ou

    nos folhetos distribudos pela empresa. As interaes na modalidade de venda

    direta, os vnculos existentes com os clientes, as peculiaridades da ocupao, os

    rituais nas aes de venda direta so alguns objetos e desenvolvimentos tericos

    que procuramos explorar neste trabalho.

    A pesquisa sociolgica vem, nas ltimas dcadas, abordando os mais

    variados temas e cobrindo uma infinidade de assuntos que compem a vida social.

    Alm disso, a sociologia compreende e amplia, desde os clssicos, o estudo de

    temas fronteirios com outras reas do conhecimento, como no caso do Direito ou

    da Sade. As vrias sociologias que resultam destas fronteiras e da pesquisa de

    novos objetos contribuem para o fortalecimento e para a ampliao dos estudos

    sociolgicos. O presente trabalho no pretende se classificar como um estudo de

    uma rea especfica da sociologia, embora tenha suas razes na Sociologia do

    Trabalho e que seja fortemente influenciado por ela.

    Problemas que abrangem as vendas diretas se mostraram interessantes, tais

    como a relao entre pblico e privado, os mecanismos usados por vendedores para

    convencer clientes, a opo pelo trabalho sem vnculo, a presena macia de

    mulheres neste setor, alm de outras questes que surgiram ao aprofundar o

    contato o objeto.

    A pesquisa bibliogrfica, primeira etapa do projeto, conduziu a poucos

    estudos sobre a Avon, a maioria nos Estados Unidos, embora pouco relevantes

    nossa temtica ou de acesso muito difcil ou oneroso. Em contrapartida, bons

    trabalhos foram feitos no Brasil sobre revendedores da empresa Amway e, na

    medida do possvel, todo esse material foi coletado e analisado.

    Logo no incio da pesquisa percebeu-se que o estudo poderia se tornar muito

    mais amplo do que supnhamos de incio. Em primeiro lugar havia a necessidade de

    conceituar o tema das vendas diretas, para situar a pesquisa e delinear o objeto.

    Abordar as relaes entre clientes e revendedores era somente um tpico dentro de

    um universo muito mais complexo onde as revendedoras Avon representam

    somente parte de uma realidade muito mais engenhosa e complexa, a ponta de um

    iceberg. Este iceberg toda a estrutura montada pela empresa que d sustentao

    ao trabalho da revendedora. Falar da revendedora sem abordar toda esta estrutura,

    mesmo que superficialmente, comprometeria toda a pesquisa.

  • 9

    A pesquisa teve sua dimenso qualitativa reforada pela dificuldade de

    obteno de informaes quantitativas. Como a empresa recusou-se a divulgar

    informaes sobre seus revendedores obedeceu a tcnica de amostragem terica. A

    entrevista com uma gerente proporcionou o acesso a muitas revendedoras, outras

    gerentes e executivas de vendas, dando novas opes para o desenvolvimento da

    pesquisa de forma mais ampla. Foi realizado um survey, os dados quantitativos

    confirmaram e respaldaram algumas anlises.

    Um longo e rduo trabalho de pesquisa bibliogrfica foi feito e refeito por

    diversas vezes a fim de no permitir que informaes relevantes fossem deixadas de

    lado. A pesquisa na Internet, em bases de peridicos cientficos e arquivos de jornais

    e revistas, dentro e fora do Brasil, assim como no portal da CAPES foi muito alm do

    que prevamos e em muito auxiliou o desenvolvimento da pesquisa. Muitas questes

    sugiram ao tomar contato com o tema; as principais se referiam relao

    revendedora/cliente. Um ponto recorrente no incio da investigao remetia aos

    artifcios usados pela revendedora para convencer o cliente a realizar compras e

    como a revendedora instrumenta sua argumentao para que tal fato ocorra. Outros

    aspectos que se evidenciaram num primeiro contato com o objeto dizem respeito

    organizao e diviso do trabalho na empresa, principalmente no nvel da relao

    entre sua base, as revendedoras, e nveis administrativos mais elevados. Algum

    conhecimento prvio sobre o objeto nos fez supor que os principais clientes das

    revendedoras fossem pessoas ligadas ao seu crculo familiar. Outro interesse

    relevante da pesquisa era captar a maneira como estas pessoas lidavam com a

    transformao de pessoas ntimas em clientes.

    A primeira parte deste documento trata do tema mais amplo: as vendas

    diretas, sua importncia e peculiaridades, diferenciando as vendas diretas e o varejo

    tradicional. O captulo engloba desde informaes coletadas em instituies

    representativas de empresas de venda direta, atravs de vrios meios, at

    resultados de pesquisas sobre vendas diretas que colaboram para mostrar ao leitor

    um panorama do setor. A pesquisa de BIGGART, documentada no livro Charismatic

    capitalism (1989), sobre vendas diretas, foi fundamental para perceber como a

    sociologia aborda o tema, alguns de seus pressupostos tericos so tambm

    destacados na segunda parte deste trabalho.

    O segundo captulo aborda as demais teorias sociolgicas utilizadas em

    estudos da rea de vendas, seus principais debates e questes. No s as vendas

  • 10

    diretas so priorizadas nesta discusso, como indicam os estudos de PRUS (1989)

    sobre o comrcio varejista, que prioriza, como este trabalho, as interaes entre

    vendedores e clientes, valorizando o discurso do entrevistado. Outras pesquisas

    como as de PEDROSO NETO (2000) e de SOUZA (1996) contriburam

    substancialmente para o direcionamento dos estudos realizados. Os estudos de

    Weber sobre carisma colaboram para a percepo da relao existente entre

    vendedores diretos e as Organizaes de Venda Direta. A sociologia dramatrgica

    de GOFFMAN orienta algumas das mais importantes reflexes acerca do tema e

    influi na elaborao de um esquema conceitual bsico que direciona o trabalho e a

    pesquisa emprica em meio a pluralidade de perspectivas sociolgicas utilizadas

    para tratar esta temtica.

    A pesquisa emprica envolvendo interlocutores e trabalho de campo ocupa o

    terceiro captulo, abrangendo desde o planejamento, a descrio e a justificao das

    tcnicas metodolgicas seus resultados e as anlises decorrentes do material

    colhido. O captulo apresenta os resultados das entrevistas semi-estruturadas,

    realizadas com revendedoras, executivas de vendas e gerentes de setor; as

    descries das observaes participantes; dos dados colhidos em um survey

    realizado com 106 revendedoras em uma tentativa de perceber este estilo de

    vendas diretas. Esses resultados compem, de maneira conjunta, a anlise dos

    resultados para a percepo das revendedoras Avon e do contexto em que esto

    inseridas e atuam na sociedade.

  • 11

    3 - A ECONOMIA EM REDE E AS OVDS

    Ding Dong, Avon Chama! Com esse slogan a empresa Avon expandiu seus

    negcios por toda a Amrica Latina. A Avon uma das mais bem sucedidas

    Organizaes de Venda Direta (OVDs) ou Direct Selling Organizations do mundo.

    A venda direta um gnero de comrcio bastante popular nos dias de hoje,

    mas que tem suas bases no comrcio realizado por mercadores das civilizaes

    mais antigas. Egito, Sria, Babilnia, ndia e Grcia realizavam comrcio atravs de

    mercadores que viajavam em caravanas; esse tipo de trfego beneficiou vrias

    civilizaes, incentivando a manuteno de intercmbios culturais. Na Idade Mdia,

    os vendedores diretos que trabalhavam com os mais diversos tipos de produtos, iam

    de feudo em feudo a procura de clientes para estabelecer trocas. Ciganos europeus

    que, depois de emigrar para a Amrica, praticaram o comrcio de venda direta na

    nova terra, trouxeram a tradio deste tipo de venda da Inglaterra, Esccia, Irlanda,

    Alemanha e Hungria para a Amrica Colonial. Mais tarde, esse comrcio foi

    realizado, nos Estados Unidos, por mercadores que viajavam de cidade em cidade

    vendendo pequenas mercadorias. Logo os comerciantes desenvolveram rotas

    acessveis para facilitar a viagem por terra, facilitando a abertura de novas estradas

    e intercmbios comerciais. O mascate, que ia de uma cidade a outra batendo de

    porta em porta procura de clientes para seus produtos, geralmente de pequeno

    porte, foi o exemplo mais popular deste tipo de trabalhador no Brasil. Embora a

    figura do mascate no mais esteja presente no cenrio comercial brasileiro, a venda

    direta no desapareceu, ela se reconfigurou atravs dos tempos; hoje h uma

    infinidade de pessoas que batem de porta em porta vendendo produtos dos mais

    variados tipos, principalmente em cidades no interior do pas.

    Segundo BIGGART (1989), analisando o surgimento das OVDs nos Estados

    Unidos, as vendas diretas atingem os padres que conhecemos hoje impulsionadas

    pelo comrcio de varejo, principalmente o que ocorria dentro dos armazns, que

    hoje foram substitudos pelos grandes supermercados e pelas lojas de

    departamento. O produto de uma empresa concorre lado a lado, preo a preo, com

    outro produto semelhante, mas produzido por outra empresa. Algumas empresas

    percebiam esse tipo de comrcio como uma ameaa a seus lucros; a venda direta

    aparece como alternativa a essa concorrncia direta. Desde o final do sculo XIX,

    passou a ser utilizada para estimular a competio com o varejo onde este tinha

  • 12

    maior dificuldade de se expandir: fora das cidades grandes e principalmente na zona

    rural. Tecidos, produtos para limpeza de casa, produtos para cuidado pessoal e at

    automveis so exemplos de mercadorias que eram comercializadas atravs de

    venda direta.

    Vrias das companhias de venda direta de hoje, inclusive o gigantesco

    conglomerado Avon Products, tm suas origens no perodo tardio de

    crescimento urbano e expanso econmica do sculo dezenove. (...)

    Justamente como os mascates ianques, os novos vendedores diretos

    distribuam bens e, talvez to importante quanto realizar vendas eles

    distribuam as idias urbanas e a cultura em uma poca de acelerada

    mudana social (BIGGART, 1989, p. 22).

    Nessa poca a maior parte os vendedores recrutados pelas OVDs era

    constituda por trabalhadores acostumados com o servio braal do campo,

    residentes no interior dos Estados Unidos, que no tinham conhecimento sofisticado

    como o dos habitantes da cidade, mas eram mais submissos ao controle

    administrativo e sua vontade de crescer economicamente era maior. Em 1920 as

    indstrias que utilizavam a venda direta para escoar sua produo organizaram-se

    em companhias especializadas no ramo. As estimativas realizadas sobre o nmero

    de trabalhadores envolvidos com vendas diretas na poca acusavam cerca de

    duzentos mil distribuidores comercializando produtos das OVDs de ento. Foi neste

    momento que as mulheres passaram a se interessar pelas vendas diretas, pois

    encontravam um meio de realizar a venda de bens de consumo, principalmente

    eletrodomsticos nessa poca, sem sair de seus lares. Um grande impulso a este

    surgimento foi o desenvolvimento tecnolgico provocado pela primeira grande guerra

    mundial, que fez com que o potencial de produo industrial aumentasse. A crise

    instalada na indstria mundial em 1929 tambm atingiu as OVDs, que foram

    reduzidas metade, cerca de trs mil, mas o grande nmero de trabalhadores

    desempregados na poca representou a possibilidade de recrutamento de mais

    vendedores. Curiosamente, um grande nmero de companhias de venda direta foi

    criado nesta poca e outras companhias j existentes optaram por este tipo de

    comrcio, pois sua maneira de distribuir produtos representava menores gastos

    empresa. Durante os anos que se seguiram, aps inmeras batalhas judiciais e

  • 13

    discusses sobre as regras referentes contratao de trabalhadores destas

    empresas, as normas legais relativas aos vendedores diretos foram definidas mais

    claramente. As empresas descobriram maneiras para desvincular esses

    trabalhadores de seus quadros de funcionrios legais, pelos quais pagavam

    impostos e encargos. Na dcada de 1980, os vendedores diretos j eram

    considerados legalmente como trabalhadores autnomos, que assinavam um

    contrato que determinava o tipo de relao que teriam com a empresa e a posse do

    controle de suas vendas, como acontece at os dias de hoje (BIGGART, 1989).

    fundamental esclarecer aspectos do comrcio varejista para posteriormente

    enfocar os tpicos relativos s vendas diretas; a organizao deste mercado de

    negcios analisada por Robert Prus em seu livro Pursuing costumers (1989).

    Seguindo princpios da escola sociolgica conhecida como Interacionismo Simblico,

    o autor analisa a configurao do comrcio varejista, atravs de entrevistas

    realizadas com diversos agentes deste ramo. A organizao de um negcio se d

    prioritariamente de duas formas: primeiro, ou atravs de uma firma que pode ser ou

    individual (organizao que tem em vista fins lucrativos e que pertence a um nico

    indivduo, em seu prprio nome, ou com nome de fantasia), ou atravs do

    estabelecimento de uma sociedade (associao de duas ou mais pessoas que

    atuam como proprietrias de uma empresa). A segunda maneira a corporao, tipo

    de entidade que, representada por pessoa jurdica, necessita de uma carta patente

    concedida pelo governo para que a empresa possa atuar. necessrio capital de

    giro para implementar o negcio e a presena de alguns investidores, que dividem o

    controle acionrio da firma, os lucros e as responsabilidades proporcionalmente. As

    taxas e impostos pagos neste ltimo tipo de organizao so diferentes do que se

    efetiva em outros tipos de negcio; a principal vantagem que h a delimitao

    clara das obrigaes e responsabilidades de seus investidores.

    O investidor (ou investidores) vo posteriormente optar por um formato para

    instalar sua empresa. Uma das escolhas a ser feita entre ter somente um ou vrios

    pontos de venda. Optar por um ponto de venda proporciona certa independncia,

    por outro lado limita a atuao da firma no mercado. A opo por instalar uma cadeia

    de lojas requer maior investimento, mas por estarem localizadas em vrios pontos

    h a possibilidade de atingir um pblico maior e assim ter suas vendas

    incrementadas.

  • 14

    Outra opo a ser feita entre utilizar ou no mltiplas frentes de vendas.

    Significa que um mesmo negcio pode lanar produtos destinados a atender uma

    mesma rea, mas com nomes diferentes. Assim o comprador pode ter a impresso

    de optar por este ou aquele produto, que suprem uma mesma necessidade. Essa

    multiplicidade pode significar diferentes qualidades, estilos e preos para dois

    produtos de funo igual ou semelhante.1

    Um negcio pode tambm ter um posicionamento no mercado que PRUS

    (1989) denomina guarda-chuva (umbrella), uma forma de organizar vrias

    empresas em um mesmo espao no mercado, em que as marcas partilham uma

    mesma estrutura fsica e assim incrementam suas vendas por oferecerem maiores

    opes de compra aos clientes em um mesmo espao; no Brasil so mais

    comumente chamadas de lojas de departamento.

    Escolher por estabelecer negcios em grandes malls, mais conhecidos como

    shopping centers, representam uma outra opo a ser feita. Nestes locais as

    organizaes que se instalam so completamente independentes umas das outras.

    Cada negcio possui uma localizao especfica, as lojas so as unidades ocupadas

    por cada representante de uma marca. Os lojistas dividem os custos operacionais do

    espao que pode tambm acolher reas de entretenimento e lojas de departamento,

    visando atrair uma maior quantidade de consumidores para este espao.

    As franquias so diferentes das formas de estabelecer negcios j citadas,

    pois neste caso o investidor compra o direito de revender uma determinada gama de

    produtos originados do negcio de outro investidor e passa a representar uma

    empresa na regio em que se instalou. Firma-se um contrato com aquele que lhe

    cedeu a franquia trato, no qual se prope seguir as recomendaes sobre a

    administrao do negcio e o estabelecimento de preos e promoes, submetendo-

    se a uma padronizao j estabelecida anteriormente. H tambm o compromisso

    de se vender somente os produtos ou servios da empresa no ponto de venda

    organizado para o negcio (PRUS, 1989).

    A venda direta, que se apresenta como alternativa de compras diferente do

    comrcio varejista, consiste em realizar a comercializao de produtos fora do

    1 As indstrias de cosmticos so pioneiras nessa prtica, lanam duas, ou mais, linhas de produtos que tm a mesma funo (por exemplo, hidratao da pele), mas que se diferenciam entre si por pequenos detalhes como a fragrncia, a embalagem e/ou o preo dos produtos, fazendo com que o consumidor tenha a impresso de ter grandes opes de escolha em uma s marca. Esta estratgia tambm utilizada por OVDs dentro da gama de produtos que oferecem.

  • 15

    ambiente comercial, como lojas, supermercados ou armazns, que so exemplos de

    locais reconhecidos como comerciais por abrigarem vrios produtos que so

    vendidos queles que procuram satisfazer uma necessidade de consumo. O

    ambiente onde ocorrem as vendas diretas quase sempre um ambiente familiar ao

    comprador, habitualmente sua prpria casa. Neste caso, no o consumidor que

    primeiro busca um bem, mas um intermedirio (representante de vendas, distribuidor

    ou revendedor) que oferece o produto na casa do cliente ou no lugar onde esteja,

    seja no trabalho, na igreja ou na escola. A venda direta engloba uma srie de

    trabalhadores, que se dispe a bater de porta em porta ou ir procura de algum

    interessado em adquirir seus produtos, como no exemplo tpico de vendedores de

    enciclopdias, bastante comuns na dcada de 1980 ou os vendedores de pamonha,

    que em bairros perifricos de muitas cidades anunciam seus produtos em carros

    com som amplificado: Olha a pamonha! Pamonha quentinha um Real!. H muitos

    tipos que vendem os mais variados produtos, inclusive nas reparties pblicas,

    abordando o consumidor fora dos ambientes de comrcio tradicionais. As

    revendedoras Avon, assim como grande parte das consultoras de beleza, fazem

    parte deste tipo de comrcio. Munidas de seus produtos e das tabelas de preos

    elas buscam clientes. A venda direta vem recebendo um enfoque sociolgico por

    alguns autores, como PEDROSO NETO2:

    Pode-se definir as vendas diretas segundo um arranjo especfico de

    estratgias de vendas. De modo geral, o vendedor vai at o comprador,

    geralmente em sua casa, e, atravs de uma relao face a face, expe os

    produtos. Os vendedores podem ser indivduos empregados por empresas,

    sob comisso, salrio fixo ou ambos. Podem ser indivduos que vendem, no

    varejo, bens que compram por atacado. Neste caso, eles ganham a diferena

    entre o preo do produto comprado no atacado e o preo do produto vendido

    no varejo. Podem ser indivduos contratados independentes juridicamente

    em relao empresa, no empregados, no assalariados que recebem

    uma comisso sobre a venda realizada (2000).

    PETERSON e WOTRUBA (1996) analisaram aspectos deste tipo de

    comrcio, assunto que at ento vinha sendo ignorado pela literatura na rea de

    2 Em interessante trabalho sobre a empresa de venda direta Amway, Pedroso Neto analisa, dentre outros aspectos a coeso existente entre os revendedores dos produtos desta marca.

  • 16

    marketing. Apesar dos dicionrios de marketing no conterem qualquer referncia ao

    tema os autores declararam ser muito simples definir venda direta como um

    comrcio face a face que ocorre em locais diferentes dos usualmente utilizados para

    efetivar vendas. Porm a definio se torna mais especfica se a considerarmos

    atravs de trs perspectivas. Primeiro, as vendas diretas percebidas atravs de

    caractersticas inerentes sua operacionalidade podem configurar-se como uma

    forma de comunicao interpessoal entre dois indivduos em uma transao que

    pode se apresentar como sendo de benefcio mtuo. Alm disso, podemos

    apreender a venda direta pela ttica de atuao e perceber que esse no um

    fenmeno homogneo, ao contrrio do que se pode pensar antes de uma anlise

    mais criteriosa. As vendas diretas podem ser consideradas, no que se refere s

    tticas, segundo:

    as caractersticas ligadas ao vendedor e sua relao com o produto e com o

    empregador;

    o intervalo de tempo dirio destinado s vendas;

    o local onde estas transaes ocorrem;

    o ato ser ocasionado decorrente da comercializao em si ou da existncia de uma

    relao anterior entre o vendedor e o cliente;

    o revendedor pode ser percebido tambm como cliente (os agentes precisam

    consumir para depois venderem);

    a forma utilizada para distribuir e pagar os produtos;

    os nveis de classificao entre revendedores: multinvel (multilevel) representa

    vrios nveis de classificao entre revendedores e mononvel (monolevel) a forma

    de organizao em que os revendedores se reportam diretamente a um indivduo ou

    empresa.

    Os autores diferenciam tticas de estratgias de atuao. A venda direta pode

    ser vista, como uma maneira de se organizar as vendas ou como uma funo das

    vendas, dependendo das estratgias utilizadas pelo vendedor. Outra opo

    estratgica deve ser feita entre perceber as vendas diretas como uma organizao

    para a distribuio de produtos, como um meio de acesso ao mercado ou como uma

    opo para a efetivao de negcios (PETERSON e WOTRUBA, 1996).

    No se deve confundir a venda direta com o marketing direto. Segundo

    JONES e KUSTING (1995) o marketing direto uma maneira de se vender produtos

  • 17

    atravs de um canal direto entre produtor e consumidor, um dos meios mais comuns

    de se estabelecer essa comunicao o telemarketing.

    Hoje os trabalhadores buscam cada vez mais alternativas para manter uma

    renda mensal adequada a seus gastos. Uma destas alternativas e que est

    conquistando trabalhadores, donas de casa e at mesmo adolescentes em alguns

    casos, a venda direta, apesar de que esta no garanta uma renda mensal fixa e

    tambm no assegure quele que se dispe a entrar neste esquema, os benefcios

    advindos de um vnculo empregatcio seguro, como carteira de trabalho assinada ou

    frias remuneradas.

    O que pode ser comercializado atravs de venda direta? Hoje o mercado das

    vendas diretas bastante diversificado e os vendedores nesse setor no podem ser

    vistos somente por sua adeso a uma OVD. Eles podem realizar vendas de maneira

    bastante diversificada, sem a necessidade de representarem uma determinada

    empresa. Trabalhadores autnomos, tais vendedores incluem pessoas que

    comercializam desde doces em estaes de nibus ou vendedores de utilidades

    domsticas que batem de porta em porta, sem qualquer vnculo com alguma

    empresa ou organizao, dificultando um mapeamento de suas atividades, atuando

    at mesmo de forma ilegal, engrossando as estatsticas do mercado informal no

    Brasil. Tambm compreendem que revendem produtos fabricados e distribudos por

    grandes organizaes, aqueles o que, pode ser evidenciados atravs das

    estatsticas fornecidas por rgos que representam estas corporaes. Praticamente

    tudo pode ser vendido atravs de venda direta, mas os dados disponveis indicam

    que as OVDs tm seus maiores faturamentos em produtos para cuidados pessoais

    (86%) e complementos nutricionais (11%).

    TABELA 1 - CARACTERSTICAS DA ATUAO DAS EMPRESAS DE VENDA DIRETA

    RAMO DE ATUAO (%) Cuidados Pessoais (Cosmticos, jias, etc.) 86 Complementos Nutricionais 11 Cuidados com o lar 2,6 Lazer e Educao 0,3 Servios e outros 0,1 FONTE: ABEVD - ASSOCIAO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE VENDA DIRETA, 2004.

  • 18

    Os trabalhadores e a organizao de trabalho no sistema de venda direta s

    recentemente se tornaram objeto de estudo na Sociologia, despertando interesse

    nos pesquisadores que analisam o mercado de trabalho no somente como um

    reflexo da organizao produtiva no cho de fbrica; as possibilidades de anlise

    se multiplicaram na atual configurao do mercado mundial. Segundo Manuel

    Castells, h uma nova tendncia global de organizao do trabalho, que se torna

    cada vez mais interdependente internacionalmente. A configurao da sociedade

    est permeada pela influncia do sistema capitalista e informacional; mesmo nos

    pases onde a cultura e a histria em muito diferem do mundo ocidental, esta

    questo se apresenta com muita fora. A revoluo tecnolgica atual, cujo resultado

    mais aparente o surgimento da Internet, propicia a formao de redes, criadas

    para dinamizar a comunicao entre as pessoas. Vrias trasformaes vem

    ocorrendo nos ltimos tempos, fazendo com que os indivduos modifiquem suas

    rotinas de vida e reestruturem sua forma de lidar com o contexto social. Noes

    como as de tempo e espao mudaram. O processo globalizacional em parte

    responsvel por essas mudanas. Essa nova forma organizacional uniu-se ao

    sistema de idias que compe a base terica da globalizao, tendo como princpios

    fundamentais a liberdade de comrcio entre as naes e o uso cada vez maior de

    capitais transnacionais nas operaes de negcios. Os valores dos indivduos que

    se adequaram a esse estilo de atuao e a ideologia do livre mercado converteram-

    se em senso comum. As linhas que delimitam as fronteiras entre os Estados

    tornaram-se cada vez mais tnues, no s relativo ao mercado e efetivao de

    comercializaes entre naes, mas tambm tendo em vista as trocas culturais e a

    considervel perda de autonomia dos Estados. Os pressupostos em que nos

    baseamos para interagir esto em constante renovao. A televiso e a Internet

    refletem essa tendncia de forma bastante clara; os valores mudaram e se

    adequaram nova ideologia globalizacional (CASTELLS, 1999 [2000]).

    A criao de redes de comunicao til para a expanso de empresas

    capitalistas que estabelecem redes internacionais. Ligando vrios mercados

    domsticos, as redes adaptam e modificam sua configurao, inovando conforme o

    pas; a inteno no mais fazer com que o capital estrangeiro assuma o controle.

    CASTELLS ressalta que as informaes circulam pelas redes: redes entre

    empresas, redes pessoais, e redes de computadores. As novas tecnologias de

    informao so decisivas para que esse modelo flexvel e adaptvel realmente

  • 19

    funcione (2000, p. 186). Esse modelo dificulta a minimizao, controle e correo de

    possveis erros, por ser um modelo idealizado para macro situaes e enfocar um

    contexto de mudanas constantes. Os problemas que podem ocasionar desta forma

    de organizao podem ser amenizados por duas caractersticas das redes: a

    adaptabilidade a novos contextos e a situaes desfavorveis e a flexibilidade para

    realizao de modificaes. Essas so peculiaridades da empresa horizontal: rede

    dinmica e estrategicamente planejada de unidades autoprogramadas e

    autocomandadas com base na descentralizao, participao e coordenao (idem,

    p.187). A produo em massa, o modelo rgido e associado grande empresa e aos

    oligoplios est sendo gradativamente substitudo por um novo modelo, o da

    empresa em rede, que tem a informao como principal meio para manuteno e

    expanso em uma economia global, permeada pelo novo modelo tecnolgico.

    Roberto Grn (GRN, 2003) atenta para o fato de que existem atualmente

    diferentes formas de insero na vida econmica que foram resultado das alteraes

    recentes na configurao do mercado de trabalho. A forma de sociabilidade que o

    autor se prope a analisar a chamada sociedade em rede, popularizado por

    Manuel Castells, que se refere a mudanas nas formas de sociabilidade com o

    advento das novas disposies tecnolgicas depois da dcada de 1990. Segundo a

    anlise de CASTELLS (1999 [2000]), estamos diante de uma reorganizao das

    formas hierrquicas de organizao. H uma grande dificuldade dos profissionais em

    lidar com a flexibilizao exigida pelas redes. A network organization provoca grande

    desconfiana nos que pretendem aderir ao comrcio em rede, que preferem as

    conhecidas lgicas mercantis. O advento da Sociedade em Rede visto como obra

    coletiva que gera o subconjunto de agentes locais inovadores e de propagadores de

    novos evangelhos (GRN, 2003, p. 15). Um bom exemplo so as literaturas ligadas

    auto-ajuda que parecem se adequar filosofia de trabalho de empresas do tipo

    OVD. Existem dois tipos de sujeitos que podem estar ligados rede: um so os bons

    empreendedores, aqueles que garantem a fluidez e a incluso no mbito da rede, o

    outro tipo de sujeito so os maus empreendedores, que se aproveitam da rede e

    exploram a boa f das pessoas a quem se associam. O fato a que devemos nos

    atentar de que o sucesso dentro deste filo do mercado muitas vezes atribudo

    ao prprio indivduo e sua dedicao, uma vez que a empresa possibilitaria todos

    os recursos necessrios ao bom desempenho nas vendas, como treinamentos e

    suporte tcnico (GRN, 2003).

  • 20

    Neste mbito esto inseridas as OVDs, organizaes que tm seus produtos

    comercializados atravs da venda direta. Diferentemente do mascate ou do

    vendedor ambulante, as revendedoras Avon tm como sustentculo uma marca

    bastante conhecida e respeitada no Brasil. Os produtos que comercializam no so

    por elas produzidos, h a infraestrutura de uma empresa formal, que possui

    inmeras indstrias espalhadas pelo globo, que produzem os cosmticos e

    utilidades que so revendidos, e dando suporte a estas revendedoras, consideradas

    autnomas.

    As OVDs datam da dcada de 1920 nos EUA e desde a dcada de 1980 vem

    sofrendo alteraes e ampliando seus mercados, adequando sua ao aos novos

    padres de ao capitalista descritos acima; porm dois aspectos diferenciam estas

    empresas dos demais tipos. Em primeiro lugar os distribuidores no so

    empregados formais, so considerados autnomos, no h nenhum tipo de vnculo

    empregatcio formal com a empresa. Em segundo, estas organizaes no tm

    pontos de venda, seu sistema de comrcio montado para facilitar a interao face

    a face.

    O padro de atuao das OVDs muito difere das organizaes burocrticas

    do capitalismo avanado. A burocracia tem como caractersticas o estabelecimento

    de regras, a instituio de comandos hierarquizados, a regulao dos indivduos, o

    estabelecimento de relaes impessoais e a separao entre as esferas pblica e

    privada dos agentes que as compem. A lgica organizacional das OVDs

    radicalmente diferente, principalmente em dois aspectos; as relaes sociais e as

    estratgias de gerenciamento. A posse do produto e o gerenciamento do trabalho

    em uma OVD esto concentrados no distribuidor, que legalmente no est

    subordinado empresa e no pode ser cobrado por sua produo ou pelo uso de

    seu tempo. Alm disso, as organizaes estimulam a indicao de parentes e

    amigos para a insero em suas redes. Enquanto as instituies burocrticas

    parecem excluir as relaes sociais no ligadas ao trabalho para controlar os

    trabalhadores, a indstria de venda direta busca pelo lucro da maneira oposta,

    fazendo redes sociais para servir s finalidades do negcio (BIGGART, 1989, p. 8).

    Uma caracterstica bastante interessante que para se trabalhar como

    revendedor no preciso nenhum conhecimento especfico ou experincia,

    facilitando a adeso de muitos a esse estilo de comrcio. Seus quadros de

    revendedores so estimulados a cooperar, ao invs de competir, como geralmente

  • 21

    ocorre nas grandes organizaes empresariais e suas relaes com amigos e

    familiares so estimuladas, uma vez que auxiliam na expanso da rede. Essa ltima

    caracterstica estende-se at os clientes, com os quais a corporao estimula seus

    membros a manterem relaes similares s mantidas com parentes ou amigos,

    visando facilitar a instaurao de vnculos mais fortes que os geralmente

    estabelecidos atravs do comrcio comum. Nas vendas diretas os trabalhadores

    mantm o controle sobre suas horas de trabalho e podem integrar essa esfera com

    as demais esferas de suas vidas. Oferece-se aos indivduos condies que a maioria

    dos empregos tradicionais no comporta3.

    As OVDs tm prosperado porque representam uma alternativa de trabalho

    que muitas pessoas, especialmente mulheres, acham atrativa. No incio do sculo

    XX as mulheres, especialmente as casadas e com filhos, sofriam presso da

    sociedade para permanecerem no lar, se dedicando aos afazeres domsticos. Hoje

    a situao bem diferente, grande parte das mulheres educada para o mercado

    de trabalho. Segundo dados estatsticos da PNAD de 2002 as mulheres brasileiras

    tm mais anos de estudo que os homens, o que poderia nos fazer pensar que a

    tendncia para os prximos anos seja a de as mulheres ocuparem cargos com

    salrios mais altos. Porm, deve-se lembrar que a discriminao do trabalho

    feminino ainda existe e bastante clara no mercado formal (CASTILHO e ALMEIDA,

    2004). Em contrapartida o trabalho domstico tambm sofre preconceito, fator que,

    junto crescente necessidade de insero da mulher no mercado de trabalho, faz

    com que a dona-de-casa seja um ator social cada vez mais raro. Por outro lado, a

    mulher permanece com o dilema de ter que escolher entre atuar em casa ou no

    mercado de trabalho. Se optar por um trabalho formal a mulher se distancia da casa

    e dos filhos ou designa a funo de dona-de-casa a uma trabalhadora especializada

    em limpeza, ou ainda acumula funes (a chamada dupla jornada de trabalho). As

    vendas diretas se tornam atrativas para as mulheres porque resolvem o problema

    que os empregos burocrticos no conseguiriam solucionar. A oportunidade de

    gerenciar e escolher seus horrios de trabalho, aparentemente d mulher a opo

    de conciliar o trabalho e as tarefas ligadas ao lar. Por isso as vendas diretas atraem

    tantas mulheres no mundo todo.

    3 PETERSON e WOTRUBA (1996) e BRODIE, PURDY, STANWORTH e WOTRUBA (2004) observaram em pesquisas empricas as caractersticas dos vendedores diretos.

  • 22

    Outra questo importante se refere distino entre pblico e privado. Em um

    emprego formal essa distino clara; as empresas tm normas rgidas para

    efetivar a separao destas duas esferas visando a mxima produo de seus

    funcionrios. As OVDs, ao contrrio, incentivam a aproximao da esfera privada de

    seus revendedores dentro do mbito dos negcios. A famlia coopera para as

    finalidades de lucro da organizao. Os laos de amor e autoridade so usados para

    as finalidades comerciais (BIGGART, 1989). Quando essas organizaes oferecem

    a oportunidade de o trabalhador gerir seus prprios horrios, sem dar qual quer

    satisfaes empresa, na verdade do a entender que o revendedor ter como

    organizar sua vida profissional de acordo com sua vida pessoal. Mas, na prtica, o

    que as empresas visam captar o revendedor com esta imagem e com o passar do

    tempo induzi-lo a integrar seus familiares e amigos em sua rede de vendas. O ideal

    para a empresa que todos em mbito domstico estejam integrados nas tarefas

    relativas execuo dos negcios. Assim, pblico e privado so aproximados com o

    propsito de maximizar os lucros.

    As OVDs divulgam outras vantagens para o revendedor, como por exemplo, a

    inexistncia de riscos no negcio, j que o investimento inicial muito pequeno ou

    desnecessrio e a dedicao s vendas fica a critrio do revendedor. Essa opo

    torna-se invlida quando o trabalhador se insere na rede e percebe que s obter

    lucros satisfatrios dedicando um tempo mximo s vendas. Isso faz com que

    muitos trabalhem mais de oito horas dirias, o que o indivduo, onde esteja, assuma

    o papel de vendedor direto e veja em todas as pessoas possveis clientes. No h

    necessidade de se manter um capital de giro, pois os produtos revendidos so, na

    maior parte das vezes, pagos com o dinheiro recebido na venda; as empresas

    estimulam para que o indivduo adquira produtos mesmo no tendo recebido

    qualquer pedido de seus clientes para compr-los.

    Segundo LAN (2002), as redes de negcios, ou network business,

    construdas pelos distribuidores so sustentadas por vnculos frgeis entre as

    pessoas. Ento, as transaes comerciais so transformadas em vnculos pessoais

    e as alianas de negcios em laos de famlia, com a finalidade de se estabelecerem

    mecanismos de confiana entre o consumidor e o vendedor. As redes sociais

    facilitam o comrcio e, assim que sua atuao torna-se mais sutil, elas se

    transfiguram em um valioso meio de controle. LAN afirma que os distribuidores

    personalizam as vendas, confundindo os limites existentes entre pblico e privado,

  • 23

    transformando atividades de negcios em atividades sociais. Portanto, dois aspectos

    se tornam importantes: o distribuidor passa a agir como se estivesse sempre sendo

    observado por seus clientes e estes se transformam em observadores oniscientes

    do revendedor; o ato da venda transforma-se em ato de demonstrao de uma

    crena. O primeiro aspecto reflete como o distribuidor passa a direcionar sua vida e

    suas atividades dirias para atingir seu pblico alvo. Em todos os locais que vai seus

    atos so direcionados para captar clientes; aonde quer que esteja ele est sendo

    observado por muitas pessoas, clientes em potencial. Os distribuidores pretendem

    se tornar o testemunho vivo dos benefcios proporcionados pelos produtos que

    vendem. Ento, para o distribuidor, ter a pele bem cuidada, sem manchas e/ou o

    corpo saudvel so boas qualificaes para ele revender cosmticos ou produtos de

    cuidados com a sade, por exemplo. O segundo aspecto descrito tambm por

    BIGGART (1989), que analisa a transformao da identidade que ocorre com os

    revendedores, semelhante transformao que ocorre com o religioso quando se

    converte a uma nova crena. Na tentativa de conciliar a ansiedade emocional do

    papel de revendedor e sua identidade o indivduo entra em conflito no processo da

    rede, e leva a si mesmo a acreditar nos valores morais difundidos pelas OVDs (LAN,

    2002). Fazer dinheiro torna-se a meta de vida dos distribuidores. Seu estilo de vida

    e trabalho visto como superior aos dos demais indivduos; isso inclui seus valores,

    seus relacionamentos e suas crenas religiosas.

    GRN (2003), por sua vez, salienta que as empresas em rede pretendem se

    distanciar ao mximo da organizao e dos mecanismos comerciais utilizados por

    empresas familiares, tnicas e tradicionais, que em sua maioria tem sua organizao

    do trabalho baseada em costumes; as decises de seus negcios so tomadas por

    um grupo de indivduos reduzido, no estimulando a abertura dos negcios a

    terceiros; mantendo padres de administrao e marketing que passam de pai para

    filho durante as geraes. Ao contrrio, as OVDs, oferecem aos indivduos um

    pacote organizacional, visto como um suporte de alta organizao e eficcia, com

    instrumentos e pesquisas de mercado, de base pretensamente cientfica, que visa

    balizar sua atuao e conferir uma liberdade de movimentos e aes, mediante a

    propagao de slogans do tipo: seja seu prprio chefe, que faz com que o tipo de

    organizao em rede se diferencie ainda mais das formas tradicionais de comrcio.

  • 24

    H trs principais motivos que levam uma pessoa a comprar produtos de um

    vendedor direto: a qualidade do produto, o preo e o conhecimento prvio dos

    produtos vendidos. Em pesquisa realizada com 490 consumidores australianos

    englobando temas relativos s vendas diretas, KUSTING e JONES (1995)

    perceberam que esta modalidade de venda no vista, pelo consumidor, como mais

    vantajosa do que a compra no varejo tradicional. Em sua pesquisa, os autores

    notaram um movimento contraditrio: houve um crescimento das vendas diretas,

    mas o consumidor australiano demonstrou uma percepo negativa deste estilo de

    comrcio, principalmente dos revendedores de organizaes de network marketing.

    Tal repulsa poderia advir de quatro principais motivos: o medo de se envolver com

    esquemas de remuneraes chamados de pirmides (forma ilegal de atuao no

    mercado), o baixo valor das comisses, a atmosfera desconfortvel no momento da

    venda e a atitude agressiva que alguns revendedores adotam.

    A Amway um exemplo bastante conhecido de OVD, investigada por

    PEDROSO NETO (2000) e por SOUZA (1996), que realizaram estudos sobre a

    organizao desta companhia e sobre as especificidades de uma forma de venda

    direta chamada de Marketing de Rede4. Tal empresa foi a primeira e mais conhecida

    empresa deste ramo. No Brasil, sua forma de atuao se compara com a da

    Herbalife, bastante conhecida atualmente. As empresas deste tipo organizam um

    esquema de lucratividade mais sofisticado que as demais OVDs: quando um

    distribuidor capta outro distribuidor ele passa a receber uma porcentagem por todo o

    produto revendido pela pessoa que captou. Ou seja, forma-se um esquema de

    comissionamento que incentiva o distribuidor a buscar pessoas para inserir nessa

    rede. H uma srie de artifcios, segundo autores supracitados, utilizados pela

    empresa para estimular as vendas; uma delas a utilizao de livros de auto-ajuda,

    usados para restaurar em seus revendedores a confiana em seu potencial e

    incentiva-los a se tornarem pessoas de sucesso 5. A empresa tambm realiza

    cursos e reunies peridicas que tm por finalidade estimular vendas e apresentar

    benefcios de novos produtos6. Segundo SOUZA (1996), os distribuidores dos

    produtos Amway vem-se inclusos em um crculo social muito semelhante ao

    4 Tambm chamado de Network Marketing ou Multilevel Marketing (MLM). 5 A literatura de auto-ajuda utilizada por esta e outras empresas do mesmo modelo estimulam os leitores a se tornarem empreendedores e os leva a pensar que podem conquistar uma vida melhor do que a que tem mudando sua forma de atuar no mundo. 6 Estratgia tambm utilizada pela Avon que ser mais frente rigorosamente descrita e que tem as mesmas finalidades, s que com uma metodologia diferente, que visa atingir seu pblico especfico.

  • 25

    familiar, onde os relacionamentos entre si e com o cliente so direcionados para se

    tornarem semelhantes queles dos encontrados nas famlias. No obstante isso os

    padres hierrquicos entre os distribuidores so baseados em um sistema

    meritocrtico, onde aqueles que trazem um maior nmero de novos distribuidores a

    rede e que tm uma maior quantidade de vendas ocupam os lugares mais altos da

    escala que determina privilgios e remuneraes. Esse tipo de sistema de

    classificao bastante comum na cultura norte-americana. A empresa foi fundada

    em 1959, nos Estados Unidos, com origem num grupo de revendedores da Nutrilite

    que se uniram para formar a Amway (American Way Association). O prprio nome j

    indica que todo iderio do American Way of Life contribuiu para a formao

    filosfica do discurso da empresa: valores como livre iniciativa, integridade

    profissional, possibilidades de negcios baseadas em critrios meritocrticos,

    respeito individualidade e vida familiar" (SOUZA, 1996, p. 27).

    Esta uma das caractersticas notadas por BITTENCOURT:

    (...) a Amway constri seu discurso a partir dos valores e smbolos do

    American Way of Life, expressos por uma ideologia meritocrtica, no culto ao

    sucesso e a um esprito empreendedor de forte inspirao nos princpios

    liberais, sintetizados em seu Compassionate Capitalism` e ainda, atravs da

    apropriao de outros campos discursivos, sobre os quais promove um estilo

    de vida contraditriamente individualista e totalitrio (1998, p. 10).

    Os distribuidores destes produtos apresentam o seguinte perfil: so quase

    sempre profissionais liberais, com curso superior e que se trajam de maneira

    austera. Suas rotinas e encontros ligados empresa so quase sempre ritulizados e

    esses rituais so sempre reforados nos encontros entre vendedores (PEDROSO

    NETO, 2000).

    Os indivduos optam pela venda direta por uma variedade de motivos; alguns

    esperam algum tipo de recompensa social, como por exemplo, a oportunidade de

    estabelecer novos laos de amizade, que seriam proporcionados pela relao entre

    vendedor e cliente. Outros buscam as vendas diretas porque as OVDs disseminam a

    idia de que esse tipo de trabalho d ao revendedor liberdade para escolher o que

    fazer e quais os melhores horrios para trabalhar. Outra vantagem seria a autonomia

    do trabalhador para decidir suas prioridades, pois, no estando contratualmente

  • 26

    vinculado a uma empresa especfica, no necessita se dedicar exclusivamente

    venda de produtos daquela empresa, podendo conciliar uma outra ocupao ou

    emprego fixo.

    Segundo GRACIOSO e NAJJAR, para os especialistas em vendas o

    marketing de rede um sistema que permite levar produtos da indstria para o

    consumidor sem passar pelo varejo tradicional. Para os que nele trabalham, porm,

    o MLM acima de tudo, uma oportunidade de ganhar dinheiro, suplementar a renda

    familiar e realizar sonhos pessoais (1997, p. 16). Esta afirmao resume a viso dos

    especialistas em administrao e marketing sobre a Venda Direta como instrumento

    de comercializao e divulgao de produtos.

    Existem vrias OVDs atuando em nosso pas: a Avon, desde 1959; a Natura e

    a Stanley Home comearam em 1969; em 1970 a Chrystian Gray, a Jafra e a

    Tupperware; em 1981, a Pierre Alexander. Na dcada de 1990, alm da Amway,

    comearam a operar no Brasil Bom Apetite, Natures Sunshine, Hermes, Yves

    Rocher, Post Haus, Herbalife, Mary Kay, DeMillus e Nu Skin. Estas informaes so

    disponibilizadas pela ABEVD, Associao Brasileira das Empresas de Venda Direta,

    que representa os interesses das Organizaes de Venda Direta no Brasil. Segundo

    consta em seu site na Internet todas as empresas filiadas a essa instituio e a

    WFDSA7 seguem um cdigo de conduta especfico categoria, que defende tanto

    as empresas quanto consumidores e revendedores de seus produtos, logo, as

    empresas e seus revendedores diretos esto sujeitos a seguir suas regras de

    conduta (PETERSON e WOTRUBA, 1996).

    importante caracterizar o consumidor que geralmente opta por comprar

    produtos atravs de venda direta. Nos Estados Unidos esses consumidores so na

    maioria mulheres, jovens e de nvel educacional alto. As caractersticas de sua

    personalidade incluem: facilidade de comunicao e sensibilidade; so pessoas

    bastante sociveis, extrovertidas e religiosas. O perfil dos vendedores diretos

    naquele pas demonstra que a grande maioria de mulheres (90%), brancas, que

    tem entre 25 e 44 anos de idade, casadas, cursam ou cursaram um curso superior e

    tem ao menos mais um emprego fixo. Estes indivduos, segundo a pesquisa, seriam

    7 WFDSA World Federation of Direct Selling Associations. Organizao no governamental, fundada em 1978, cumpre o papel de representar mundialmente as OVDs.

  • 27

    mais extrovertidos, entusisticos, agressivos e ousados que os demais indivduos da

    populao8 (PETERSON e WOTRUBA, 1996).

    Estas caractersticas tambm foram notadas no estudo realizado sobre os

    vendedores diretos no Reino Unido, segundo este estudo a maior parte dos

    distribuidores vinculados as OVDs so de mulheres, que trabalham meio perodo do

    dia, que compem a maioria dos 500 mil trabalhadores diretos naquele pas. As

    anlises apontaram para um curioso movimento do mercado de trabalho: o nmero

    de trabalhadores autnomos vinha aumentando significativamente, enquanto a

    quantidade de trabalhadores vinculados formalmente a uma empresa vinha

    diminuindo. A categorizao da fora de trabalho estava se modificando. As

    vantagens, para as OVDs, ao optar pela utilizao de trabalhadores autnomos so

    muitas. Os custos com taxas e encargos trabalhistas no existem e os pagamentos

    destes trabalhadores so efetuados tendo por base sua produo (vendas),

    poupando gastos para empresas e incrementando as vendas, uma vez que so as

    comisses oriundas pela venda de produtos que, somadas, resultam na

    remunerao do trabalhador (BRODIE, et al, 2004). A maior parte dos vendedores

    diretos vinculados a OVDs do mundo no recebe qualquer tipo de remunerao fixa

    e no possuem vnculos empregatcios formais com as empresas que representam.

    Segundo dados da WFDSA o Brasil est entre os dez maiores mercados de

    venda direta no mundo. Os dados da tabela abaixo demonstram o volume de

    transaes em vendas diretas, em dlares, nos dez maiores mercados no ramo em

    2003, segundo declarao da WFDSA.. O Brasil est em stimo lugar com 1.953

    bilhes de dlares em vendas diretas. Em anos anteriores o Brasil alcanou US$ 2.7

    bi em 1999, US$ 2.9 bi em 2000 e US$ 2.5 bi em 2002. Segundo a ABEVD, em

    2001 uma quantia de cerca de US$ 78 bi foi movimentada em todos os 60 pases

    onde ocorre esse tipo de comrcio, que possuam na poca cerca de 43 milhes de

    vendedores diretos operando. Neste mesmo ano somente no Brasil foi movimentado

    um montante de US$ 2.5 bi envolvendo 1.2 milhes de vendedores diretos.

    8 Dados obtidos no ano de 1992.

  • 28

    TABELA 2 - RENDIMENTO TOTAL EM VENDAS DIRETAS 2003

    COLOCAO PAS BILHES DE DLARES

    1 Estados Unidos 28.700

    2 Mxico 3.106

    3 Frana 2.884 4 Alemanha 2.557 5 Reino Unido 2.024 6 Itlia 1.995

    7 Brasil 1.953 8 Taiwan 1.255 9 Austrlia 1.200 10 Argentina 1.152 TOTAL 46.826 FONTE: WFDSA, 2004.

    Entre 2000 e 2001 a venda de produtos por venda direta cresceu 4,8%; de

    2001 a 2002 aumentou 2,2%, chegando a um total de 815 milhes de produtos

    produzidos por OVDs e comercializados por vendedores diretos mundialmente. Se

    em 1991 US$ 49 bilhes foram movimentados graas a esses revendedores, em

    2002 o valor total de US$ 79 bilhes. No Brasil foi registrado um crescimento de

    18,6% no terceiro trimestre de 2003, em comparao com o mesmo perodo do ano

    anterior, totalizando um faturamento de R$ 2.146 bilhes contra R$ 1.809 bilhes de

    2002. Outra caracterstica interessante se refere ao local das vendas: a maior parte

    realizada em casa, 70% do total; 20% das transaes so efetivadas no trabalho

    do comprador (Dados: WFDSA e ABEVD).

    TABELA 3 - LOCAIS ONDE OCORREM AS VENDAS DIRETAS LOCAL (%)

    Casa 70,0 Trabalho 20,0 Eventos Pblicos 8,0 Telefone 2,0 Outros 0,5 FONTE: ABEVD - ASSOCIAO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE VENDA DIRETA, 2004.

    A maior parte das vendas realizada em ambiente domstico (70%) e de

    trabalho (20%) dos compradores, o que refora a afirmao anterior de que as

  • 29

    vendas diretas esto quase sempre ligadas esfera privada da vida. O mercado de

    venda direta mostra-se ainda mais representativo quando verificamos que, em

    pesquisa realizada pela ABEVD, somente 8% dos brasileiros afirmaram nunca

    haverem comprado um produto atravs de venda direta. Outra caracterstica

    importante se refere estrutura organizacional das empresas que atuam no

    mercado de venda direta no pas; a maior parte dos vendedores diretos brasileiros

    revende produtos oriundos de empresas Monolevel, como a Avon, representando

    96% das vendas do setor. Somente 5% optaram por empresas que adotam o

    Network Marketing ou Multilevel (ABEVD).

  • 30

    4 - A ANLISE SOCIOLGICA DAS VENDAS DIRETAS

    A venda direta um tema ainda pouco explorado, no mbito das cincias

    sociais em geral; a maior parte dos trabalhos que abordam as vendas diretas tem

    forte compromisso com a divulgao e a sustentao desse tipo de atividade

    comercial. Tais trabalhos mostram as vantagens em ingressar no ramo e pretendem

    ensinar ao leitor como ganhar dinheiro e ser bem sucedido vendendo produtos; os

    livros se auto-intitulam guias para a venda direta. Nessa linha, pouca ou nenhuma

    reflexo terica sobre o tema realizada. Raros so os trabalhos em que, nas reas

    de marketing e administrao, se procura realizar uma reflexo sobre o tema ou uma

    anlise de dados quantitativos sobre a configurao do mercado. Na rea da

    Sociologia destaca-se o livro Charismatic capitalism: direct selling organizations in

    Amrica, de Nicole Biggart (BIGGART, 1990), considerado por vrios autores9 como

    o mais importante trabalho sociolgico sobre as vendas diretas. No Brasil,

    destacam-se alguns trabalhos sobre as vendas diretas, dissertaes de mestrado

    nas reas de sociologia ou cincia poltica, realizados por SOUZA (1996),

    BITTENCOURT (1998) e PEDROSO NETO (2000). Estes trabalhos abordam o

    marketing multinvel e, mais especificamente, seus diferentes aspectos, tendo como

    objeto de anlise os revendedores da empresa Amway e recorrendo a diversas

    vertentes sociolgicas. Trabalhos especficos na rea de sociologia sobre a Avon

    ainda no foram realizados no Brasil e referncias internacionais sobre esta

    empresa e seus revendedores ainda no figuram em trabalhos cientficos. Neste

    captulo pretendo realizar uma releitura do tema das vendas diretas como abordado

    por outros autores, contemplando referncias e orientaes tericas essenciais para

    a anlise do tema.

    BIGGART escolheu como objeto de sua pesquisa as organizaes de venda

    direta por serem organizaes que possuem tticas de administrao de recursos

    humanos diferentes das empresas que trabalham com o padro administrativo mais

    aceito dentro dos estudos da rea de administrao. Recorrendo da metodologia

    weberiana para a percepo organizacional das OVDs, BIGGART afirma que, para

    Weber, uma explicao completa da vida social tem que incluir trs dimenses

    9 Dentre estes esto PETERSON e WOTRUBA (1996), PEDROSO NETO (2000), BITTENCOURT (1998), SOUZA (1996).

  • 31

    conceituais: interesses materiais, ideais e valorativos, e a maneira como estes esto

    combinados nas estruturas sociais (1990, p. 10). Sua pesquisa pretendeu abordar

    aspectos da vida social que normalmente no so levados em considerao para o

    estudo das organizaes empresariais, tais como: famlia, crena, valores, gnero,

    ideologia, e outros, para estabelecer uma nova forma de perceber o que chama de

    Sociologia da Economia.

    A autora realizou entrevistas com questionrio semiestruturado, surveys e

    anlises etnogrficas de reunies de membros de cinco empresas: Mary Kay

    Cosmetics, Shaklee Corporation, Amway Corporation, A. L. Williams Company e

    Tupperware Corporation. O uso da metodologia Weberiana se expressa mais

    claramente na proposio da autora em formular um tipo ideal, um modelo, que sirva

    anlise comparativa das organizaes de venda direta (BIGGART, 1990).

    Faz-se necessrio expor os aspectos mais relevantes referentes a dois tipos

    ideais weberianos, burocracia e carisma, sobre os quais se baseia a autora para

    compor um terceiro tipo, o da organizao de venda direta, ou do capitalismo

    carismtico. Segundo Weber um dos resultados do processo de racionalizao no

    qual a sociedade moderna se encontrava em sua poca o crescimento e

    estabelecimento da burocracia nas mais variadas esferas da vida social, como a do

    campo da administrao de empresas, pblicas ou privadas. A empresa burocrtica

    descrita por Weber funciona conforme normas administrativas fixas e oficiais, ditadas

    pela autoridade mxima da organizao, que possui o poder de punir aqueles

    funcionrios que desobedecerem as normas, que se transformam gradativamente

    em rotinas cotidianas de execuo do trabalho. H nessas organizaes o

    estabelecimento de hierarquias entre os diversos cargos que os funcionrios

    ocupam, em um sistema muito bem definido de mando e subordinao. O escritrio

    agrega todas as atividades oficiais dos trabalhadores. Esse local sempre diferente

    de local onde o funcionrio realiza suas atividades de foro ntimo, determinando uma

    clara distino entre as esferas pblica e privada da vida social. Para atuao na

    empresa necessrio conhecimento especializado e complexo, sendo que o

    desempenho do cargo segue um determinado programa que pretende alcanar

    metas pr-definidas. O sistema de cargos e hierarquias estabelecido faz com que o

    profissional se dedique a construir uma carreira dentro destas empresas (WEBER,

    1971).

  • 32

    Weber contrape o modelo de burocracia ao de carisma, porm em seus

    escritos tarefa rdua perceber o conceito de carisma em instituies empresariais.

    O carisma se contrape a esta ordem racionalizadora, aparece sempre personificado

    na figura do lder, aquele que possui o dom, o guia nato, que lidera seu sqito

    como grande heri. Esse homem considerado o salvador do povo que, possudo

    por um estado de graa, age carismaticamente conquistando a simpatia de muitos.

    Seu carisma se ope rotina do mundo burocratizado. WEBER via no carisma o

    efeito de bloquear a ao dos funcionrios do partido ou do burocrata, pois se o

    processo de racionalizao burocrtica irreversvel, a orientao no racional que

    vem do lder carismtico possibilita uma revoluo no sistema fazendo com que o

    processo tome um outro rumo. O trecho abaixo deixa esse tipo ideal mais claro.

    O carisma s conhece a determinao interna e a conteno interna. Seu

    portador torna a tarefa que lhe adequada e exige obedincia e um sqito

    em virtude de sua misso. Seu xito determinado pela capacidade de

    consegui-los. Sua pretenso carismtica entra em colapso quando sua

    misso no reconhecida por aqueles que, na sua opinio, deveriam segui-

    lo. Se o aceitam, ele senhor deles enquanto souber como manter essa

    aceitao, provando-se. Mas no obtm seu direito por vontade dos

    seguidores, como numa eleio, mas acontece o inverso: o dever

    daqueles a quem dirige sua misso reconhec-lo como seu lder

    carismaticamente qualificado (WEBER, 1971, p. 285).

    Weber v o carisma como caracterstica de um lder, portador de um dom,

    uma pessoa. Xams, messias, heris so alguns dos nomes mais comuns atribudos

    a estes lderes que possuem um poder sobrenatural, que uma vez revelado o eleva

    categoria de chefe de um grupo.

    BIGGART acredita que a definio de carisma dada por Weber muito

    restritiva. A autora usa a contraposio entre carisma e burocracia para perceber as

    instituies empresariais e determinar o conceito de capitalismo carismtico,

    especificando as caractersticas das empresas carismticas, tal qual Weber o faz

    com as organizaes burocrticas. Para tanto necessrio despersonificar o

    carisma. Algumas organizaes tm da sociedade um respeito adquirido ao longo

    dos anos que ocorre por causa de seu extraordinrio poder de moldar o mundo e

  • 33

    tirar ordem do caos (BIGGART, 1990, p. 133). A relao entre uma organizao e a

    atuao carismtica possvel se as empresas forem colocadas no papel do lder.

    Elas [as OVDs] tm ideologias organizacionais que so missionrias em seu

    carter. Algumas, e no todas, expressam a viso de um lder fundador. Os

    revendedores vem-se como superiores aos demais trabalhadores. Ser um

    empreendedor, para eles, significa pertencer a uma escala superior da vida

    social. Eles citam o sucesso econmico e ideolgico da organizao como a

    conquista mais valorosa das cruzadas do lder (BIGGART, 1990, p. 134).

    Outras caractersticas so incorporadas ao tipo ideal de organizao de

    venda direta. Os membros dessas empresas so vistos como seguidores. A parte

    administrativa da organizao apresenta uma mnima diferenciao entre as funes

    entre os cargos existentes. Autoridade e hierarquia so aspectos pouco relevantes

    ou inexistentes. Os critrios para recrutamento de novos integrantes so feitos

    conforme o comprometimento da pessoa em empenhar-se para manter alto padro

    de vendas, os laos afetivos e vnculos familiares tambm facilitam a entrada de

    uma pessoa em uma OVD. As recompensas oferecidas no so somente

    financeiras, h a promessa de incrementar outras reas da vida social como, por

    exemplo, ter mais tempo com a famlia e fazer novas amizades. Assim as empresas

    apresentam mais que um emprego bem remunerado, chegando a orientar um estilo

    de vida.

    As OVDs tm estratgias claras de controle, como uma primeira que se refere

    criao de um novo self, ao desenvolvimento individual de uma nova identidade

    social ligada misso da empresa. A segunda a celebrao da entrada no grupo,

    que se relaciona com os processos pelos quais so administradas as relaes

    dentro da organizao, aceitao de scios da comunidade como parte do corpo

    que toma decises significativas. Outra estratgia oferecer incentivos, brindes ou

    prmios, para os que atingem as metas traadas (BIGGART, 1990).

    Tais aspectos so considerados mais relevantes para a formao de um tipo

    ideal de organizao de venda direta, ou capitalismo carismtico. importante

    ressaltar que a pesquisa de BIGGART foi pioneira na anlise das OVDs, e suas

    contribuies so reconhecidamente importantes para o assunto das vendas diretas

    desde sua publicao.

  • 34

    SOUZA (1996) realizou sua pesquisa de mestrado tendo como foco principal

    da anlise uma OVD, na tentativa de perceber os motivos que levam os indivduos a

    optar pelo trabalho de venda direta e, mais especificamente, por integrar a rede de

    distribuio da empresa Amway. SOUZA (1996) apia-se em na fenomenologia de

    SCHTZ (1967), segundo o qual as pessoas, para conviverem em sociedade,

    compartilham um sistema de referncias, que torna possvel a interpretao da ao

    social. Em sua pesquisa sobre os revendedores de produtos da Amway, o autor

    tenta perceber como o estoque de conhecimento de um indivduo interfere na

    interpretao de suas experincias e influencia em suas aes futuras.

    Ora, no universo de todas as interpretaes possveis da realidade a

    topologia do conjunto de interpretaes comuns de um grupo social

    determinada, em boa parte, pelas situaes biogrficas comuns dos membros

    individuais que o compem. As diferenas de interpretao intra-grupo seriam

    dadas pelas diferentes posies no grupo (situaes biogrficas diferentes)

    em termos de prestgio, poder ou qualquer outra caracterstica, que o

    mesmo que reconhecer que na estruturao dos grupos h heterogeneidade

    nos membros e que dessa heterogeneidade surgem diferenas relativas nos

    esquemas de referncia e, portanto, nas interpretaes (SOUZA, 1996, p.

    88).

    SCHTZ (1967) procura estabelecer uma crtica ao conceito weberiano de

    ao significativa. O ponto central da perspectiva weberiana que a realidade

    humana no possui um sentido inerente, dado de modo natural, independentemente

    dos valores e motivos que guiam as aes humanas. So os indivduos que

    estabelecem recortes na realidade e se posicionariam diante deles conferindo-lhes

    sentido. As aes sociais so dotadas de um significado ou sentido, que as torna

    passveis de serem observadas e interpretadas. A sociedade constituda de

    indivduos agindo com um sentido especfico e produzindo uma srie de

    conseqncias. Cada fenmeno cultural s poderia ser compreendido na sua

    significao e ter sua origem explicada a partir da referncia a agentes sociais que

    ao organizarem significativamente suas aes contribuiriam, de forma mais ou

    menos intencional, para determinar essa significao e essa origem.

    SCHTZ pretende estabelecer uma crtica sociologia weberiana neste

    ponto; segundo o autor um erro pressupor que os indivduos conferem sentido

  • 35

    ao que est sendo praticada, pois conferir significado uma ao reflexiva, s

    possvel de ser mediante a experincia de aes passadas. O comportamento so

    as experincias olhadas atravs de certa luz, que se refere ao que originalmente

    as produziu (SCHTZ, 1967, p. 57). S se pode atribuir um sentido s aes

    passadas, somente estas podem ser interpretadas e se tornarem significativas para

    os sujeitos (SCHTZ, 1967).

    Todo indivduo trs consigo um estoque de conhecimento, que tem como

    principal utilidade tipificar outros indivduos, no intuito de prever a resposta destes s

    suas aes, visando estabelecer comunicao coerente com outros. Este estoque

    de conhecimento fruto das aes ocorridas em ocasies anteriores. Assim, no

    momento em que age o indivduo est diante de vrias opes de ao e

    selecionam na realidade os fatos que lhe parecem ser de mais relevncia,

    priorizando-os para construir os elementos que so almejados (GIDDENS, 1996

    [1976]). Essa seleo se baseia no estoque de conhecimento que j foi absorvido

    anteriormente; assim, o indivduo seleciona o que ser ou no importante para

    percepo da realidade. Grande parte do conhecimento que os indivduos tm do

    mundo que os rodeia vem das experincias coletivas. na convivncia com outros

    que se aprende a definir o ambiente e o sistema de relevncia pr-concebido e

    aceito pelo grupo. Ao orientar-se pelo projeto fornecido por um grupo a pessoa d ao

    grupo a responsabilidade de guiar suas aes.

    A adoo de um projeto influencia a interpretao de sinais. medida que o

    sujeito se convence de sinais positivos que indicam o sucesso do projeto,

    mais difcil se torna fazer com que evidncias contrrias ao sucesso do

    projeto sejam interpretadas como sinais de fracasso. Assim, preciso de

    evidncias fortes e sucessivas para sinalizar um fracasso do projeto.

    Decidindo sob manipulao ideolgica, informaes falsas ou limitadas os

    indivduos podem adotar comportamentos que, aos olhos de um observador

    externo, tm pouca ou nenhuma relao com as metas a serem alcanadas.

    Logo, no a avaliao de opinies e comportamentos isolados, mas o

    encadeamento dessas opinies e comportamentos que permite a

    compreenso da subjetividade dos indivduos (SOUZA, 1996, p. 97).

    A Fenomenologia das Relaes Sociais de SCHTZ utilizada para a

    percepo do objeto e justificao das tcnicas de pesquisa adotadas para seleo

  • 36

    e coleta de dados empricos que compe a pesquisa de SOUZA. Os fenmenos

    sociais so vistos como a reunio das manifestaes dos homens em sociedade. As

    percepes de SCHTZ tm suas razes na fenomenologia de HUSSERL, que

    prope a percepo de um objeto atravs da observao e descrio rigorosa do

    fenmeno (GIDDENS, 1996 [1976]).

    Os membros que compem a rede de revendedores da Amway compartilham

    determinados aspectos de sua vida social, o que faz com que os significados de

    vrios fatores de suas vidas profissionais sejam comuns. SOUZA prioriza a

    apreenso do discurso destes indivduos para compor sua pesquisa. Segundo ele,

    se o interesse avaliar caractersticas intersubjetivas dos membros da rede,

    natural que o ponto de partida dessa avaliao seja a busca de fatores comuns

    envolvidos na construo das subjetividades individuais (1996, p. 100). Utilizando

    os pressupostos da fenomenologia para entender a conduta social, SOUZA analisa

    em sua pesquisa os aspectos da constituio intersubjetiva dos membros da Rede

    da Amway, suas trajetrias biogrficas e representaes construdas.

    BITTENCOURT, em sua dissertao de mestrado na rea de cincia poltica,

    realizou interessante estudo sobre a empresa Amway. Segundo a autora, a

    empresa faz uso de um conjunto de idias e prticas de natureza claramente

    ideolgicas que vo alm da reproduo dos valores do American Way of Life, com

    especial destaque para as formas utilizadas de recrutamento e manuteno dos

    membros na cooperao (1998, p. 8).

    O estudo em questo utiliza instrumentos metodolgicos de observao e

    anlise do uso de um discurso pela empresa que, por vezes, aparece como reflexo

    de valores empresariais e, por vezes, usado como estratgia para alcance dos

    objetivos de venda.

    A autora destaca o conceito de ideologia em sua anlise do objeto.

    Recorrendo a Zizek, Bittencourt considera que a palavra ideologia no atualmente

    bem definida, podendo ser objeto de uma srie de definies: Desde uma atitude

    contemplativa que desconhece sua dependncia em relao realidade social, at

    um conjunto de crenas voltado para a ao; desde o meio essencial em que os

    indivduos vivenciam suas relaes com uma estrutura social at as idias falsas

    que legitimam um poder poltico dominante (ZIZEK, 1996, p. 9).

    Ideologia um conceito muito usado por autores de orientao sociolgica

    marxista. Contudo, BITTENCOURT (1998), em sua concepo de ideologia, prioriza

  • 37

    a anlise do discurso muito usada em uma sociologia de vertente interpretativista.

    Interpreta-se o termo ideologia como percebido por Gran Therborn, por meio de

    seu discurso:

    O funcionamento da ideologia na vida humana implica, basicamente, a

    constituio e padronizao do modo como os seres humanos levam sua vida

    como iniciadores conscientes e pensantes de atos, num mundo estruturado e

    provido de sentido. A ideologia funciona como um discurso, (...) interpelando

    os seres humanos como sujeitos (THERBORN, 1980, p. 15).

    As ideologias so vistas como fenmenos eminentemente sociais e de

    natureza discursiva; esto ligadas aos indivduos de maneira direta, orientado suas

    prticas.

    Segundo BITTENCOURT possvel perceber que a Amway uma empresa

    que possui uma ideologia prpria, que orienta os atores envolvidos no processo de

    distribuio de seus produtos em suas aes. O arcabouo ideolgico que

    fornece as bases, os fundamentos das organizaes, de um modo geral, como

    tambm estabelece e legitima os diferentes arranjos organizacionais e pessoais,

    entre indivduos que compartilham idias e interesses, orientando-os, portanto

    ao (1998, p. 66).

    A ideologia no permearia somente as situaes de vendas dos revendedores

    de produtos Amway, mas toda sua vida, orientando suas aes cotidianas,

    explicando e justificando os meios e fins. A ideologia promove nas pessoas um

    sentimento de grupo, faz com que os indivduos se reconheam e se unam por um

    objetivo. A Amway se encaixa no perfil de empresa ideologicamente orientada, que

    divulga abertamente os princpios que prega e tem a pretenso de normatizar as

    aes dos indivduos que a ela esto vinculados. Os agentes distribuidores de

    produtos Amway absorveram o discurso proposto pela empresa atravs de

    encontros, onde lhes ensinado o que falar e como agir para conquistar clientes e

    novos revendedores; tambm tm acesso ao material impresso de divulgao

    distribudo mensalmente a todos os distribuidores. Segundo a autora, os vendedores

    de produtos Amway so exemplos de incorporao do discurso da empresa.

    BITTENCOURT prope a percepo da empresa atravs de uma analogia

    com os partidos totalitrios, que exigem de seus membros um engajamento total,

  • 38

    enquadrando assim todas as suas atividades, o partido penetra na sua vida

    profissional e familiar (1998, p. 111). Isso ocorre at que no existam limites que

    separem a atuao partidria da atuao pessoal. A autora utiliza-se da cincia

    poltica para comparar a atuao do distribuidor Amway com a atuao de um

    militante partidrio. O partido totalitrio pede a seus membros adeso total, permeia

    toda vida do indivduo que se prope a militar em sua causa, no havendo distino

    entre a vida pblica e privada: s existe uma vida partidria (DUVERGER, 1970, p.

    153). Segundo a autora o militante o adepto ativo, a base onde as aes do

    partido se concretizam. A Amway, neste caso, percebida como uma organizao

    totalitria, semelhante aos partidos totalitrios, e seus distribuidores so

    considerados membros engajados desta organizao. Engajar-se significa adeso

    total, orientao de vida por determinados princpios.

    Antnio Pedroso Neto realizou sua pesquisa de mestrado tendo como objeto

    de anlise a rede organizacional formada por distribuidores de produtos da empresa

    Amway. Em sua dissertao o autor enfatiza a importncia dos rituais na convivncia

    e participao dos distribuidores Amway no sistema de treinamento que visa

    estabelecer normas de conduta para os agentes. Segundo o autor:

    Todo o processo de instituio/consagrao ocorre principalmente nos rituais

    Amway, mas tambm via fitas cassete que os agentes ouvem geralmente

    com mensagens e narrativas reproduzidas de outras reunies ou com

    depoimentos de pessoas que ascenderam na organizao , via as revistas

    de circulao interna na organizao e via uma srie de livros da literatura de

    auto-ajuda e neurolingstica que a Pronet vende e seus agentes lem

    (PEDROSO NETO, 2000).

    Pedroso Neto, inspirado por Mary Douglas (DOUGLAS, 1998) estrutura um

    arcabouo conceitual para a anlise dos rituais ligados venda direta, com o

    objetivo de perceber e explicar a reproduo da coeso organizacional na rede de

    distribuidores Amway (PEDROSO NETO, 2000). Douglas acredita que o

    estabelecimento de normas e parmetros torna a vida social possvel, seguindo a

    teoria estruturalista e os princpios durkheimianos. O processo de aquisio de

    conhecimento fundamenta a ordem social e, no mbito do indivduo, sustentado

    pela ao institucional que se funda, por sua vez, em uma conveno dos indivduos

  • 39

    para estabelecer regras. O aparato cognitivo fundamenta as instituies na natureza

    e na razo, ao descobrir que a estrutura formal das instituies corresponde a

    estruturas formais em domnios no-humanos (DOUGLAS, 1986, p.63). A instituio

    , para a autora, um grupo social legitimado, cuja autoridade legitimadora pode estar

    concentrada em um indivduo ou na conveno do grupo. O conceito de instituio

    remete novamente teoria durkheimiana, pois o indivduo no se realiza, segundo

    Durkheim, fora da sociedade ou do grupo; s o faz entre outras pessoas, em um

    meio onde existam ordem e um conjunto de instituies morais reguladoras do

    comportamento coletivo, que transmitam segurana (tanto fsica como psicolgica) e

    tranqilidade. Segundo DOUGLAS o homem um animal ritual (...) impossvel

    termos relaes sociais sem rituais, sem atos simblicos (DOUGLAS, 1980, p.80).

    O ritual capaz de modificar o padro social estabelecido por represent-lo.

    Trazendo o conhecimento obtido atravs de DOUGLAS (1980) e da teoria

    durkheimiana, Pedroso Neto analisa o sistema de treinamento da Amway:

    O contedo das atividades do sistema de treinamento da organizao

    Amway demonstra que ele est o tempo todo criando e instituindo ou no

    mnimo estabilizando convenes sociais que so coerentes e

    simultaneamente se entrefortalecem. Essas convenes se tornam os

    princpios bsicos de percepo, de viso e de diviso do mundo, princpios

    que orientam a seleo, a confiabilidade e a fixao de informaes. Esses

    princpios esto presentes no discurso performativo dos agentes de alto a

    baixo da pirmide. Assim, de um lado, so geradores de prticas e

    representaes e discursos performativos que reforam as prticas,

    representaes e discursos performativos homlogos de outros agentes, e

    por outro lado, se enrijecem ao gerarem espontaneamente, no calor dos

    conflitos ou das disputas prticas, representaes e discursos performativos

    refratrios aos ataques e constrangimentos da sociedade ou das sociedades

    externas; as gozaes, os nos dos que duvidaram e at mesmo os

    insultaram (PEDROSO NETO, 2000).

    A vertente sociolgica chamada Interacionismo Simblico traz outra maneira

    de analisar as prticas ritualsticas. Um conjunto de prticas sociais organizado

    pelos indivduos para manter inalterada a habilidade de convvio social ou o savoir

    faire (NUNES, 2004). A abordagem de Goffman tambm manifesta grande

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    influncia de aspectos da sociologia durkheimiana, na qual os ritos tm a dupla

    funo de comunicar idias e sentimentos e, ao mesmo tempo, regular as relaes

    entre os indivduos. Em Goffman esses ritos tm a mesma funo servindo para

    estabelecer relaes cordiais entre os indivduos. O ator tem uma dupla funo:

    produto da sociedade, portanto sujeito s regras e normas prescritas socialmente e

    ator social, atua em um jogo ritual no qual pode, ao mesmo tempo, interagir e

    modificar normas de conduta (NUNES, 2000). O interacionismo simblico contribuir

    para que possamos realizar a percepo das situaes ritualsticas nas interaes

    entre revendedoras Avon e seus clientes e na captao de novas revendedoras.

    GOFFMAN em seu livro A representao do eu na vida cotidiana (1985

    [1975]) procura perceber as aes sociais atravs de uma metfora da ao teatral.

    Para o autor os indivduos, na maioria das situaes, assumem a posio de atores

    sociais como os atores teatrais e se apresentam aos demais como se estivessem

    realizando uma representao de algo que querem transmitir, tentando exercer

    dominao sobre as impresses que possam ter dele. A dramaturgia descreve as

    tcnicas do controle da impresso, a identidade, as inter-relaes dos diversos

    grupos que desempenham papis num ambiente social (NUNES, 2000, p.280).

    O ator apresenta-se sob a mscara de um personagem para personagens

    projetados por outros atores. Na vida real o indivduo representa papis para outro

    indivduo ou/e para a platia. Os indivduos orientam-se, nas interaes, por aquelas

    informaes que j tem, ou que procuram ter sobre os outros.

    A interao a influncia recproca dos indivduos sobre as aes uns dos

    outros, quando em presena fsica imediata. A performance a atividade de um ator

    que visa influenciar um dos demais participantes. A prtica torna-se o modelo de

    ao que se desenvolve durante a representao. Nesse contexto o papel social a

    divulgao de direito