trabalho de português - textos e poesias geanne e
TRANSCRIPT
Memór ia
Amar o perdido deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis tornamse insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas muito mais que lindas,
essas ficarão.
Aurora
O poeta ia bêbedo no bonde. O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas. As casas também iam bêbedas.
Tudo era irreparável. Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada), que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos! últimos telegramas! José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens, Sebastião, que se arruinava, Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.
O poeta está bêbedo, mas escuta um apelo na aurora:
Vamos todos dançar entre o bonde e a árvore?
Entre o bonde e a árvore dançai, meus irmãos! Embora sem música dançai, meus irmãos!
Os filhos estão nascendo com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor (o amor e outros produtos).
Dançai, meus irmãos! A morte virá depois
como um sacramento.
Em face dos ú lt imos acontecimentos
Oh! sejamos pornográficos (docemente pornográficos). Por que seremos mais castos que o nosso avô português?
Oh! sejamos navegantes, bandeirantes e guerreiros
sejamos tudo que quiserem, sobretudo pornográficos.
A tarde pode ser triste
e as mulheres podem doer como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).
Teus amigos estão sorrindo de tua última resolução. Pensavam que o suicídio fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados, que o melhor é ser pornográfico.
Propõe isso ao teu vizinho, ao condutor do teu bonde,
a todas as criaturas que são inúteis e existem,
propõe ao homem de óculos e à mulher da trouxa de roupa.
Dize a todos: Meus irmãos, não quereis ser pornográficos?
No corpo feminino, esse ret i ro
No corpo feminino, esse retiro a doce bunda é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro, pois tanto mais a apalpo quanto a miro.
Que tanto mais a quero, se me firo em unhas protestantes, e respiro a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro
a mão em concha a mão, sábio papiro, iluminando o gozo, qual lampiro, ou se, dessedentado, já me estiro,
me penso, me restauro, me confiro, o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda tornase vampiro.
Anjo daltônico
Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.
Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.
Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.
Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.
ALTA NOITE QUANDO ESCREVEIS
À senhora Heitor Usai
Alta noite, quando escreveis um poema qualquer
sem sentirdes o que escreveis,
olhai vossa mão — que vossa mão não vos pertence mais;
olhai como parece uma asa que viesse de longe.
Olhai a luz que de momento a momento
sai entre os seus dedos recurvos.
Olhai a Grande Mão que sobre ela se abate
e a faz deslizar sobre o papel estreito,
com o clamor silencioso da sabedoria,
com a suavidade do Céu
ou com a dureza do Inferno!
Se não credes, tocai com a outra mão inativa
as chagas da Mão que escreve.
A TRISTEZA ERA TANTA, TANTA A MÁGOA...
A tristeza era tanta, tanta a mágoa
que seu anjo da guarda resolvera
lutar com ele, lutar para lutar,
que o interesse da vida perecera.
Ave e serpente, círculo e pirâmide,
os olhos em fuzil e os doces olhos,
os laços, os vôos livres e as escamas.
Que doida simetria nesses ódios!
Que forças transcendentes aros e ângulos
alguém quis que lutassem nesse dia!
Ave e serpente, círculo e pirâmide:
Que divina constante simetria
nessa luta soturna, nessa liça
em que Deus reconstrói o eterno cisne!
O homem, a luta e a eternidade
Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!
Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.
METADE PÁSSARO
A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.
A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.
ANTIELEGIA Nº 1
O dia e a noite são ligados pelo prazer
E pelas ondas do ar
A vida e a morte são ligadas pelas flores
E pelos túneis futuros
Deus e o demônio são ligados pelo homem.