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Tradução de WALDéA BARCELLOS 1ª edição 2013 RIO DE JANEIRO S ÃO PAULO E D I T O R A R E C O R D

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Tradução deWaldéa Barcellos

1ª edição

2013R I O D E J A N E I R O • S Ã O PA U L O

E D I T O R A R E C O R D

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sumário

agradecimentos 9

1 Nasce um astro 11 2 a ascensão de Mercury 19 3 Que importância tem um nome? 45 4 Fé cega 63 5 Truques de ilusionismo 77 6 Único no seu gênero 93 7 ego em excesso 125 8 Perigo sorrateiro 151 9 alicerces instáveis 163 10 Irritando-se 179 11 o mago de Wembley 199 12 o anúncio da morte 217 13 em busca de refúgio 243 14 dor silenciosa 257 15 a lenda permanece viva 271

Índice 289

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Nasce um astro

Freddie Mercury é uma das maiores lendas do rock. como incomparável vocalista do Queen, ele tinha uma presença arrebatadora no palco, e sua persona era refinada, altiva e sem igual em seu fantástico egocentrismo. seu temperamento oscilava entre extremos. Numa hora podia ser divertido e, logo depois, cruel; e o uso frequente que fazia de cocaína intensificava de forma desmesurada essa tendência, além de servir de combustível para seu apetite sexual desenfreado. Mercury não conseguia ser fiel aos relacionamentos homossexuais que lhe eram importantes, embora tenha permanecido constante em seu amor por Mary austin, que ele conheceu antes que a fama o lançasse a alturas estratosféricas. a vida inconsequente que levava — às vezes afundando-se no ambiente sórdido da promiscuidade brutal com desconhecidos — resultou em sua trágica morte em decor-rência da aids em 1991, aos 45 anos. desde o assassinato de John lennon, o desaparecimento de um astro do rock não causava tanto impacto no mundo inteiro.

Por outro lado, Mercury era um homem culto e inteligente, com um extenso conhecimento das artes. Magnífico contador de casos e anedotas, ele era mestre nas tiradas picantes; e era capaz de oferecer uma enorme bondade, lealdade e generosidade a um pequeno e seleto grupo de amigos. Mercury revelou força incrível e coragem comovente ao enfrentar sua

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doença e morte traumáticas. assim, não foi surpresa que um personagem tão paradoxal e exagerado atraísse a atenção de cineastas. Quando foi di-vulgado que em 2011 seria produzida a cinebiografia de Freddie Mercury, com sacha Baron cohen no papel principal, a notícia provocou enorme empolgação e expectativa entre as legiões dos fãs mais fiéis do Queen.

Quando lhe perguntaram em certa ocasião como gostaria de ser lem-brado, o cantor, que não tinha papas na língua, disparou, com um movi-mento rápido do pulso: “ah, não sei. Quando eu estiver morto, quem vai se importar? eu é que não.” a verdade é que ser imortalizado nas telas de cinema num filme produzido por um grande estúdio seria, para Freddie, nada menos do que o que merecia. contudo, por trás da frivolidade e da exuberância, quem era ele de verdade?

Freddie Mercury, cujo nome era Farrokh Bulsara, nasceu em 5 de se-tembro de 1946 no Hospital Público de Zanzibar, a ilha das especiarias, no oceano Índico. era o orgulho de Jer e Bomi Bulsara, ambos loucos por seu primeiro filho. descendente de persas, seu pai, Bomi, era caixa na representação da administração colonial britânica. Todos os dias depois do expediente, no início da tarde, ele ia com a família à praia para ensinar o filho a nadar, ou saíam para um passeio pelos exóticos jardins da cidade.

esse estilo idílico de vida começou, porém, a se desintegrar em 1951, quando Freddie foi matriculado na escola missionária da ilha, dirigida por rigorosas freiras britânicas. Meses mais tarde, depois de Freddie ter sido filho único por seis anos, nasceu sua irmãzinha, Kashmira, e ele deixou de ser o centro das atenções em casa. enquanto Freddie lutava para se adaptar a essa nova realidade, a transferência de seu pai para a Índia foi um prenúncio de enorme transformação para a família, pois foram forçados a deixar Zanzibar e ir para Mumbai.

a mudança repentina foi interessante para os Bulsaras. Bomi e Jer eram parses praticantes — os atuais descendentes do antigo zoroastrismo — e, embora essa doutrina religiosa tivesse sido um dia predominante no Irã persa antes de sua conquista pelos muçulmanos, desde o século XVII os parses se concentraram em sua maioria em Mumbai e arredores. além da segurança de estar entre sua própria gente, os pais de Mercury acreditavam

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que esse era o melhor lugar para dar ao filho uma boa instrução. de mais a mais, ainda que a família morasse confortavelmente numa excelente casa com criados, havia agora certa imprevisibilidade no emprego de Bomi Bulsara, o que levou à decisão de que seria melhor mandar o filho mais velho, com apenas 7 anos de idade, para um internato.

st. Peter’s school era um internato particular britânico em Panchgani, Maharashtra. a escola preservava todas as disciplinas acadêmicas, com ênfase em esportes como críquete, boxe e tênis de mesa. Mercury descobriu logo que detestava críquete, mas por algum tempo gostou de boxe. embora anos depois viesse a afirmar que tinha sido muito bom no esporte, ele não tinha o tipo físico adequado. sua estrutura magra e ágil era mais adequada à velocidade e à destreza do tênis de mesa, esporte no qual posteriormente Mercury se tornou campeão da escola. ele sobressaiu também no atletismo.

Por volta dos 8 anos de idade, Mercury começou a ter aulas de piano na st. Peter’s. Quando sua mãe lhe ensinava, ele praticava apenas porque lhe devia obediência. agora, num curso de piano formal, ele começava a se desenvolver; e quanto mais sua aptidão ficava visível, mais ele gostava de tocar. ele também esperava ansioso pelas ocasiões em que ia para casa. os amigos da escola já o tinham rebatizado de Freddie — não mais Farrokh —, e sua família também passou a chamá-lo assim.

a religião desempenharia um importante papel no início de sua vida. os parses realizam seus cultos em templos de fogo, onde chamas sagradas ardem continuamente — algumas há mais de 2 mil anos — e diante das quais são proferidas orações para prestar juramento. da mesma forma que outras crianças parses, Mercury frequentava esses templos, e, como era o costume, sua iniciação formal se deu quando ele tinha 8 anos, numa cerimônia Navjote celebrada por um mago zoroástrico. Foi uma cerimônia calcada na mais antiga tradição, e nela Mercury se envolveu com toda a solenidade devida.

como centro comercial e financeiro da Índia, Mumbai ostentava uma imensa população urbana, e a vida da cidade arrebatava Mercury. sempre que podia, ele mergulhava naquele caos. adorava todos os aspectos da cidade, do glamour do bairro de Malabar Hill, que dava para o mar da

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arábia, passando pelos elegantes Victoria Gardens em Parel road, ao tu-multo do porto de Mumbai, onde ficava observando navios mercantes que se lançavam ao mar. ele costumava perambular no labirinto formado pelas ruelas apinhadas de bazares, onde encantadores de serpentes se sentavam de pernas cruzadas no chão, tocando assustadoras melodias hipnóticas com suas flautas, e faquires se deitavam em camas de pregos. essa cultura exótica de Mumbai se aliava à sua arquitetura de tirar o fôlego, dando um sentido de grandeza, cor e esplendor que começou a inspirar a criatividade incipiente de Mercury.

Quando pequeno, Mercury sentia uma atração irresistível por esses mer-cados movimentados. regateando com manhosos vendedores ambulantes árabes e com apenas algumas rúpias no bolso, ele sabia exatamente o que queria e aprendeu a barganhar com eficácia. anos depois, já milionário, faria compras nos melhores estabelecimentos do mundo até matar de can-saço os que estavam ao seu redor. Quando pagava quantias vultosas por obras de arte e antiguidades para coleção, ele extraía quase tanto prazer da compra em si quanto do fato de possuir aqueles objetos.

em sintonia com sua população poliglota, a música de Mumbai era um caleidoscópio de gêneros, e praticamente todos os estilos tiveram influên-cia sobre o desenvolvimento precoce de Mercury. seus pais eram cultos e tinham preferência por música clássica e pela ópera, que ele próprio viria a apreciar em sua vida adulta. Mas as influências locais predominantes tinham raízes nos ritmos místicos da música indiana e, de meados da década de 1950 até seu final, traços da nova “mania” da música popular, o rock’n’roll, começaram a se infiltrar em Mumbai.

Nessa ocasião, perto de concluir o Nível IV no curso de piano, que englobava teoria e prática, Mercury já era louco por música. Tinha forma-do sua própria banda, os Hectics,* nome apropriado para refletir a fonte inesgotável de energia de Mercury. ele adorava cantar e vivia ansioso para se apresentar em público, algo que as regras arcaicas da escola que frequentava não permitiriam. Mesmo assim, já cantava no coral da escola

*em inglês, hectic significa “agitado”, “irrequieto”, “desassossegado”. [N. da T.]

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e costumava atuar em peças de teatro amador. Nessas primeiras aparições em comemorações e festas da escola, a formação como cantor do coral de meninos e um sentido extremamente aguçado para as artes cênicas ficavam evidentes na originalidade com que se apresentava.

apesar do regime austero, Mercury gostava de muitas coisas em sua vida no internato. o lado ruim era que não via muito sua família — fato que, segundo aqueles que o conheceram bem, fez com que mais tarde ele viesse a se deter sobre esse assunto. Já adulto, durante os anos em que morou em Munique, ele costumava visitar a casa do produtor de discos reinholdt Mack, onde presenciava o amor entre Mack e seus filhos.

Mack afirma ter ouvido Mercury dizer a seu filho, numa conversa entre os dois, o quanto perdera da convivência em família por causa do tempo que viveu longe de seus pais. em público, Mercury só iria admitir o seguinte: “Uma coisa que os internatos ensinam é como se defender por conta própria, e eu fiz isso desde a mais tenra idade. o que me ensinou a ser independente e a não ter de contar com mais ninguém.”

Todavia, apesar dessa bravata, ele costumava se sentir muito só. como o pai viajava com frequência, Mercury às vezes era forçado a passar as férias escolares com parentes; e em algumas ocasiões ele chegou a ficar na escola, enquanto todos os outros alunos tinham ido para casa. Isso demonstra que, nos anos de sua formação, não houve tanta oportunidade quanto ele gostaria para desenvolver os melhores laços com sua família. ao esconder seus sentimentos sobre isso, ele foi construindo, pouco a pouco, uma defesa em torno de si. e, à medida que amadurecia, essa proteção foi se reforçando a tal ponto que, se quisesse, ele poderia excluir totalmente alguma coisa, eliminando-a por completo de sua mente.

essa atitude de isolamento não foi o único motivo de Freddie jamais ter mencionado um desdobramento importante em sua vida já na época em que estava entrando na adolescência. durante os dois anos que viriam a ser os seus últimos na st. Peter’s, duas atividades extracurriculares, ambas sinônimas da vida escolar na rede de internatos particulares ingleses, viriam a absorver sua atenção: o bullying e a homossexualidade.

No que diz respeito ao bullying, com sua habilidade rudimentar de boxe, o jovem Freddie Mercury era capaz de se defender, e isso parece não

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tê-lo deixado com nenhum problema residual. Já a homossexualidade foi encarada por ele de maneira diferente. ainda que em anos posteriores Mercury tenha se tornado famoso por exibir em público um comporta-mento extravagante e insolente, ele era, na verdade, um homem muito reservado. levando-se em consideração sua fama mundial, ele não con-cedeu muitas entrevistas e, quando o fez, pouco revelou sobre sua criação ou sua homossexualidade.

Na st. Peter’s, parece que Mercury não se sentia tão afrontado com o comportamento sexual não ortodoxo de seus companheiros, à medida que ia se tornando gradualmente consciente disso. certa vez confessou: “Tive um ou outro colega que vivia atrás de mim. aquilo não me incomodava. eram tempos em que eu era jovem e imaturo. é uma coisa pela qual os me-ninos passam quando estão na escola. Não vou entrar em maiores detalhes.”

Posteriormente admitiu em conversa particular que sua primeira expe-riência homossexual tinha sido na st. Peter’s, mas a forma natural com que aceitou a situação sugeriria que ele não tinha nenhum arrependimento, nem a menor dificuldade com relação ao fato. de qualquer modo, é improvável que tivesse sido capaz de dizer algo a seus pais: o zoroastrismo considera a homossexualidade moralmente detestável.

sem dúvida, Mercury orgulhava-se de sua habilidade para lidar tão bem com esse segredo. Na vida adulta, ele passaria a gostar de enfatizar a feroz sensação de independência que a vida escolar tinha lhe inculcado. essa independência — que talvez não tenha feito mais que lançar as sementes de uma aguçada vulnerabilidade — logo seria colocada à prova. como resultado da agitação política na Índia na virada da década, seus pais estavam entre as pessoas que decidiram deixar o país. eles encaixotaram seus móveis e utensílios e se mudaram para a Inglaterra, estabelecendo-se em Feltham, Middlesex.

situada não muito longe do aeroporto de Heathrow, em londres, Feltham deve ter provocado um choque cultural no elétrico Mercury, que transbordava da energia própria dos adolescentes e já possuía sagacidade e experiência num nível acima do esperado para sua idade. Na aparência, no sotaque e no temperamento, ele deve ter se sentido diferente, e foi

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tratado como tal pela vizinhança. desde o início, Mercury foi vítima da intolerância típica dos ignorantes — e transformado em alvo de constantes chacotas e insultos. sua primeira reação foi a de recolher-se. entretanto, ao ver que estava ali para ficar, percebeu que viver escondido não seria uma coisa prática. assim, fez uso de sua bem desenvolvida propensão para a autodisciplina e elaborou um plano de ataque simples.

Já que seus algozes bitolados o viam como um estrangeiro grotesco, Mercury bancou o janota persa para eles, fazendo uma paródia implacável de si mesmo, o que neutralizou o veneno, roubando-lhes o prazer das zom-barias. Mas pagou um preço por se comportar com tamanho atrevimento, e terminou por tornar-se infeliz e inseguro em casa, desesperado para se adaptar e, mesmo assim, sabendo que era diferente. Talvez a insegurança e a sensação de alienação que Mercury experimentou nessa época tenham estimulado nele uma necessidade de chamar a atenção como forma de se sentir aceito. Todavia, quanto mais seu comportamento se tornava extro-vertido, mais ele desenvolvia dentro de si um espírito sensível e reservado.

Quando chegaram a Middlesex, os Bulsaras moraram com parentes até se mudarem para uma pequena casa geminada de estilo vitoriano perto de Feltham Park. Mercury ainda não sabia, mas, a menos de cinco minutos a pé, morava um casal, Harold e ruth May, cujo único filho, Brian, já era um guitarrista promissor.

a ida para a Grã-Bretanha constituiu uma mudança drástica para todos. Bomi Bulsara tinha trocado sua posição diplomática privilegiada por um emprego banal na contabilidade da Forte’s. Foi na verdade um rebaixa-mento, pensava Bomi. lá se foi a criadagem que os paparicava; lá se foi, também, o clima maravilhoso. a realidade de Mercury era uma viagem sem graça num ônibus até sua nova escola de ensino médio em Isleworth, onde as zombarias tomaram proporções épicas. esse foi um período na vida de Freddie Mercury do qual mais tarde ele jamais falaria.

como era de se esperar, essa terceira mudança em 14 anos — com a consequente infelicidade e interrupção numa época crucial em sua vida estudantil — resultou no baixo desempenho escolar de Mercury. ele con-seguiu ser aprovado em apenas três disciplinas dos exames de conclusão

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do ensino médio: artes, história e inglês. Mas isso, por si só, não foi tão desastroso assim. Havia muito tempo, Mercury preferia a música e as artes às disciplinas puramente acadêmicas, para as quais jamais tinha mostrado aptidão. além do mais, ele não tinha a menor intenção de tentar uma vaga na universidade.

Tampouco queria ganhar a vida com trabalhos braçais. aos 17 anos, teve dois empregos nas férias de verão — num serviço de bufê em Heathrow e lidando com caixotes num armazém local. No armazém, Mercury era tão avesso ao serviço que seus colegas acabavam fazendo também o trabalho dele. sua desculpa esfarrapada era que, como músico, não podia de jeito nenhum estragar as mãos com serviço pesado.

Na Isleworth Polytechnic, um a em artes era tudo o que Mercury precisava para ingressar na escola de belas-artes. seus pais relutavam em encorajar essa ambição, já que tinham acalentado outros planos para o filho. a necessidade que Mercury tinha de ser aceito em seu novo ambiente não era compartilhada pelos pais, que tinham se aferrado a suas velhas crenças, seus costumes e sua cultura; em consequência, não demorou muito para que uma enorme diferença de perspectiva dividisse as duas gerações. Mercury, movido no início por sua necessidade de se integrar à vida britânica, des-cobria agora que a crença de seus pais exercia pouco fascínio sobre ele — e não conseguia vê-la tendo um papel importante no seu futuro. Preocupados com a possibilidade de a atmosfera boêmia da escola de artes distanciá-lo deles ainda mais, seus pais quiseram dissuadir Mercury de ir para lá. Por natureza, porém, Mercury era um bom manipulador. anos depois, Brian May confessou que o astro foi o homem com mais motivação dentro de si que ele conheceu. em 1966, seu objetivo era a escola de belas-artes — e Mercury geralmente conseguia o que queria.

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a ascensão de Mercury

em 1965, o agito já tinha realmente dominado a Grã-Bretanha. Havia uma explosão nas artes — fotografia, moda, teatro e tudo o mais —, tendo como ponta de lança a música, com a batalha principal pela supremacia nas paradas de sucessos sendo travada entre os Beatles e os rolling stones. Praticamente não houve um lugarejo no país inteiro que não fosse atingi-do pelo novo espírito de liberdade, e londres, que na época parecia ser o centro do universo, era decididamente seu eixo.

Mais do que nunca, os astros do rock eram os novos ícones; e, durante toda a década de 1960, Brian Jones, fundador dos rolling stones, a sínte-se daquela era fascinante, elevaria o vestuário a uma forma de arte. seu estilo andrógino — sobrecasacas, chapéus de abas moles e joias berberes — tornou-se o modelo para gerações de astros do pop que se seguiram a ele. lá no ambiente londrino que empolgava sua imaginação, Freddie Mercury reconhecia a importância de fazer uma afirmação visual para complementar a música. Já antes da virada da década, tendo encontrado um canal para seu talento em se sobressair, ele deixaria alarmados outros integrantes da banda com sua determinação de incentivá-los a usar roupas femininas em apresentações.

em meados dos anos 1960, o escritor norte-americano Ken Kesey trouxe uma nova dimensão a toda a empolgação e experimentação da década ao

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realizar festas para “testes com ácido”. Uma droga fabricada pelo homem, tão nova que ainda não tinha sido declarada ilegal, o lsd, mais conhecido como ácido, estava no centro de tudo. Tinha início a era psicodélica, com todas as suas cores berrantes e estampas complexas; e Freddie Mercury foi atraído por ela.

Pouco depois de seu aniversário de 20 anos, em setembro de 1966, Mercury conseguiu convencer seus pais e se matriculou na ealing Technical college and school of art [Faculdade Técnica e escola de Belas-artes de ealing] na região oeste de londres, num curso de design e artes visuais. Também se mudou logo em seguida para seu próprio apartamento no bairro londrino de Kensington. Para muitos, a opção pela escola de belas- artes era pouco mais do que uma forma disfarçada de não fazer muita coisa, uma fachada para estar com os amigos e aproveitar a atividade mais importan-te, que era bater papo sobre música, de preferência fazendo música. No entanto, àquela altura, tanto John lennon como Pete Townshend, ambos nos primeiros lugares das paradas de sucessos, também tinham saído de escolas de belas-artes. Townshend se formara na própria ealing college. a escola de belas-artes começava a ser considerada o território clássico de formação para astros do rock britânico na década de 1960; e Mercury enxergava nitidamente sua função. “as escolas de belas-artes”, disse ele, “nos ensinam a prestar mais atenção à moda, a estar sempre um passo adiante”. com sua nota a no exame de artes de encerramento do ensino médio, ele chegava à faculdade em grande estilo.

a escola do ensino médio, porém, deixara Mercury desconfiado sobre o que lhe aguardaria na faculdade; e ele foi de uma timidez total em seu primeiro ano em ealing. antigos professores lembram-se dele como al-guém despretensioso e de modo algum digno de nota, a não ser por seu hábito irritante, talvez de cunho nervoso, de dar risinhos, às vezes de modo incontrolável. Mais tarde, um ex-aluno referiu-se a Freddie com grosseria, dizendo que ele na época era um chato, sem talento algum; ao passo que outro se lembra com carinho de sua natureza atenciosa.

em 1967, com os cabelos totalmente negros já compridos, como estava na moda, Mercury usava paletós de veludo, calças justíssimas e sapatos

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de plataforma, tudo acompanhado por grandes quantidades de joias de prata. como esse era o estilo da época, ele não se destacava. Na realidade, havia outros que eram, na forma de se vestir e se comportar, muito mais exagerados que ele, o que enganou quem o conhecia naquele tempo. Muitos jamais teriam atribuído a Mercury a capacidade de realizar seu desejo de se tornar um astro do rock. da mesma forma que ninguém teria imagi-nado seu passado sexual. desde que saíra de Mumbai, parece que não havia tido outras relações homossexuais, embora também não se tivesse conhecimento de que ele saía com garotas. ele se mantinha meio arredio, mas não inacessível.

o curso de arte e design de Mercury tinha uma boa reputação, e a turma que entrou naquele ano se revelou talentosa. ele estudou uma variedade de disciplinas, o balé inclusive, que o empolgou na época e, posteriormente, quando se envolveu por um curto período com a dança. Mas foi a música que o prendeu, especialmente no verão de 1967, quando ele se deixou en-cantar pelo dinâmico guitarrista norte-americano Jimi Hendrix.

Hendrix àquela altura já estava morando em londres, prosperando sob a orientação de seu empresário chas chandler. em termos musicais, a chegada de Hendrix foi importante para muitas pessoas, e Mercury estava entre elas. o rock ensurdecedor, em grande parte improvisado, de Hey Joe e Purple Haze, dominado por um veloz solo de guitarra elétrica, agradava a Mercury. Mestiço de mexicanos e índios da nação cheroqui, Hendrix, com seu exótico estilo cigano, também o fascinou. e Mercury tornou-se um fã ardoroso. cobrindo todas as suas paredes com pôsteres do ídolo, ele se vestia como Hendrix e vivia fazendo desenhos dele.

com o passar do tempo, a obsessão pelo músico permeou sua vida, incluindo seus estudos. depois de uma passada pelo bar na hora do al-moço, Mercury precisava de pouco incentivo para subir na sua carteira e fazer piruetas numa imitação impetuosa de Hendrix em plena sala de aula. Berrando a letra das músicas, ele fingia que a régua de madeira de 30 centímetros, sugestivamente fincada na virilha, era uma guitarra. ele não estava sozinho em sua paixão pela música, e àquela altura já tinha alguns amigos de pensamento semelhante ao seu. com Nigel Foster e Tim staffell,

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ele praticava, de vez em quando, harmonias de três vozes no sanitário masculino, onde havia a melhor acústica do prédio inteiro.

Tim staffell corrobora a opinião de que os tempos iniciais de Mercury em ealing não tiveram nada de extraordinário. staffell relembra:

Minha primeira impressão dele foi a de que ele era bem careta em ter-mos culturais. Quer dizer, conservador... Não cheguei a pensar sobre sua orientação sexual. ele era bastante fechado, e ninguém teria dito que era “exagerado”, como se diz. Tinha também um bom grau de humildade. Mas a persona de Freddie estava se desenvolvendo rapidamente, mesmo naquela época, unindo sua exuberância natural à segurança que ele mais tarde conquistaria com o canto. No que dizia respeito a ser um astro, na minha opinião, ele já estava em ascensão. sem dúvida ele causava impacto nas pessoas.

desesperado para ingressar em uma banda, e sabendo que staffell cos-tumava tocar em uma, Mercury ficou feliz quando finalmente conseguiu ser apresentado a ele.

No início de 1969, Tim staffell apresentou Freddie Mercury aos demais integrantes do smile. como sempre, quando se tratava de desconhecidos, Mercury a princípio mostrou-se reservado, avaliando os outros integrantes da banda por trás de uma barreira invisível que ele próprio criava para se sentir mais seguro. roger Meddows Taylor, estudante de odontologia na london Hospital Medical school, era o extrovertido baterista louro. seus pendores musicais o tinham levado primeiro ao ukulele e então à guitarra; mas em 1961 ele ganhou seu primeiro conjunto de bateria e descobriu que seu talento estava na percussão. durante a adolescência, experimentara tocar em duas ou três bandas da região oeste, e foi mais bem-sucedido com o reaction.

o guitarrista Brian May era alto, magricela, com uma atitude estudada e uma cabeleira negra e cacheada. Mercury descobriu que eles tinham sido quase vizinhos, tendo morado a poucas ruas de distância um do outro em Feltham. como Mercury, May começara a estudar piano quando criança,

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e também atingira o Nível IV. Tendo aprendido com o pai os rudimentos de como tocar o ukulele, quando completou 7 anos de idade ganhou sua primeira guitarra acústica com cordas de aço. sua primeira guitarra elétrica foi feita à mão por ele e pelo pai, e batizada com o nome de red special.

staffell e May conheciam-se havia muito tempo, visto que staffell en-trara para a banda da escola de May, como vocalista, em 1964. em 1965, quando Brian ganhou uma bolsa de estudos aberta para estudar física na Imperial college of science and Technology [Faculdade Imperial de ciência e Tecnologia] de londres, staffell também estava em londres, preparando- se para estudar design gráfico na ealing art college. Quando Brian May deixou a banda de sua escola no final de 1967, manteve-se em contato com staffell, que permaneceu um pouco mais, até que também ele deixou o grupo. Quanto mais tempo os dois passavam juntos conversando sobre música, mais se davam conta de como sentiam falta de participar de uma banda. decididos a formar um novo grupo, eles puseram um anúncio na Imperial college procurando por um “Baterista do tipo Mitch Mitchell/Ginger Baker”. Ficaram assoberbados com a quantidade de candidatos; mas, quando fizeram um teste com roger Taylor no bongô, ele ganhou a vaga quase de imediato. “Nós realizamos um segundo teste adequado com roger, armando nosso equipamento e tocando de verdade, mas já havia ficado óbvio que ele era perfeito para nós”, afirma staffell.

No início do outono de 1968, o smile começou a ensaiar com uma enorme dedicação, aperfeiçoando seu estilo musical, ao mesmo tempo que May e staffell também passavam a se dedicar a compor. sua nervosíssima primeira aparição em público foi como banda de abertura para o Pink Floyd na Imperial college no dia 26 de outubro. a partir daí, com os contatos de roger Taylor, eles aceitaram apresentar-se por toda a cornualha. o PJ’s em Truro e o Flamingo Ballroom em redruth tornaram-se locais frequentados assiduamente por eles, mas sua preferência era pelo circuito das faculda-des londrinas. como tinham sua base na área central de Kensington na capital, fazia mais sentido tocar em locais em londres. além do mais, as apresentações ali eram mais bem remuneradas.

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embora tivessem trabalho, May, Taylor e staffell nutriam ambições sem-pre crescentes para o smile. Já fazia quase três meses desde sua apresentação como banda de abertura para o Pink Floyd; porém, além de terem tocado antes do T-rex e do Family, mais nada acontecera. contudo, no dia 27 de fevereiro de 1969, eles participaram de um show organizado pela Imperial college no royal albert Hall. a prestigiosa programação incluía o Free e Joe cocker. o smile ficou surpreso — e encantado — por aparecer no cartaz acima do Free, e sua expectativa para o evento era incomensurável. o que realmente aconteceu foi que a apresentação se tornou mais memorável por alguns reveses embaraçosos, que envolveram o comprimento errado do cabo da guitarra para o palco e o fato de staffell, que tocava descalço, acabar com farpas nos pés. Mas a ocasião ainda os deixou impressionados e falando sobre ela por dias a fio. Foi no meio dessa euforia que staffell apresentou seu amigo da faculdade de ealing, Freddie Bulsara, aos outros integrantes da banda.

Na década de 1960, o próprio bairro de Kensington, com sua famosa feira e suas butiques — entre elas a Biba —, tinha se tornado um point. a atmosfera cosmopolita e artística era bem adequada a Mercury. ele foi apresentado aos integrantes da banda smile num bar popular chamado Kensington. daquele dia em diante, eles se tornaram amigos. e, desde o primeiro instante em que os viu, Mercury pôs na cabeça a ideia de entrar para a banda, mesmo sem nunca tê-la ouvido tocar.

Mais tarde naquela noite, ele se convidou para um dos ensaios da banda. entusiasmo era uma coisa, mas o de Mercury começou a incomodar o trio. ele adorava o som que estavam criando, mas a aparência do grupo, na opi-nião dele, deixava muito a desejar. com a possibilidade de dar conselhos, Mercury não parava de expor suas ideias a fim de dar mais vida à banda.

Nas palavras de Tim staffell: “Nós não levávamos Freddie tão a sério como cantor, de início, porque ele demorou anos para desenvolver a qua-lidade e a segurança que passou a demonstrar depois de acertar o passo.” roger Taylor achava graça, mas parecia ser imune ao bombardeio vocal de Mercury; e Brian May o tolerava com paciência, não dando atenção às suas insinuações sobre entrar para a banda.

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Mercury, no entanto, era implacável. Quando escutava o smile tocar, sua própria necessidade de voltar a se apresentar se tornava tão desesperada que, ao assistir a um show deles, às vezes se levantava bem na frente da plateia e gritava, criticando-os pelo que ele considerasse que a banda estava fazendo errado. direcionando a voz entre as mãos, ele berrava, cheio de frustração: “se eu fosse o vocalista, eu lhes mostraria como é que se faz.” Mesmo assim, nada fazia efeito. Mas Mercury era um estrategista. como estava claro que um ataque direto era por demais desgastante, decidiu tentar outra abordagem.

Mercury andava com a banda o máximo que podia, e continuou a assistir a seus ensaios. além de expor seus erros em público, ele também começou a trabalhar com cada integrante, dando atenção especial a suas fraquezas individuais. No caso de Brian May, Mercury tocou discos de Hendrix para ele, a noite inteira, num pequeno aparelho estéreo de segunda mão. Já fascinado pelo guitarrista, o cérebro analítico de May absorveu rapida-mente o extraordinário som de Jimi Hendrix em estéreo. durante toda a noite, Mercury andou solícito de um alto-falante para o outro com May, ostensivamente tentando descobrir como o grande mestre produzia efeitos daquela natureza. Na realidade, ele estava somente tentando descobrir um jeito de conquistar um aliado.

apesar de se esforçar ao máximo, um lugar para ele no smile continuava fora de seu alcance. Isso se tornou especialmente amargo quando começou a parecer que a banda ia fazer sucesso. No dia 19 de abril, eles tocaram no revolution club em londres, onde, depois do show, foram abordados por lou reizner, que na época trabalhava com a Mercury records. o selo norte-americano estava prestes a invadir o mercado britânico, e reizner tinha passado a noite inteira apreciando o smile. Quando lhes perguntou se assinariam um contrato com a Mercury, eles concordaram imediatamente.

Freddie pôde curtir de fora a empolgação da banda, quando, logo depois de terem firmado um contrato em maio de 1969, o smile teve espaço reser-vado no Trident studios, no soho, para gravar um compacto simples com o produtor John anthony. o lado a era Earth, composição de staffell, com Step on Me — que, no estilo, lembrava Barclay James Harvest — no

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lado B. Earth era a melhor das duas, com os vocais melódicos de staffell e a forte percussão de Taylor dando solidez à faixa. ainda não havia sinal do característico trabalho de guitarra de Brian May; e, se a música tinha um ponto fraco, ele estava na leve incoerência do instrumental no meio da faixa. compreensivelmente, as expectativas eram altas, tendo em vista que a Mercury fixou a data de seu lançamento para agosto.

No calor escaldante daquele verão, as esperanças de Mercury de entrar para uma banda tiveram uma reviravolta inesperada com a chegada a londres de um grupo de liverpool, o Ibex. como o smile, eles eram três: o baterista Mick “Miffer” smith, o baixo John “Tupp” Taylor e o guitarrista principal Mike Bersin. com seu empresário, Ken Testi, eles tinham vindo para o sul numa van velha e enferrujada, em busca de fama e fortuna em londres. “Minha namorada, Helen Mcconnell, tinha um apartamento em earls court com a irmã, Pat, de modo que pelo menos tínhamos um lugar para dormir”, explica Testi.

ele se lembra de terem sido apresentados a Freddie Mercury quase quando chegaram. “era aniversário de Pat, e pensamos em levá-la a al-gum lugar para comemorar. ela fez questão de que fosse em Kensington.” Naquela época, havia uma espécie de subcultura universitária na área, e era grande a presença de estudantes, um substrato em relação ao aspecto mais opulento de Kensington.

Pat vira o smile tocar na Imperial college e sabia que o Kensington era seu bar preferido. Por isso, fomos lá e, como esperado, os caras estavam no bar. Não demorou nada para as duas bandas começarem a conversar. eles estavam com um amigo que não fazia parte do smile, mas que dava a nítida impressão de acreditar que deveria fazer parte, e esse era Freddie.

Freddie estava usando uma jaqueta curta de peles e tinha o cabelo bem tratado, que batia nos ombros. Parecia um músico profissional. Imagino que a seus olhos, naquela noite, tivéssemos parecido ser uns nortistas toscos e nem um pouco sofisticados, mas isso ele não deixou transparecer. Quando acabava de conhecer alguém, Freddie costumava ser muito discreto. depois que o bar fechou, nós todos fomos parar no apartamento de Pat, onde o

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smile tocou para nós, e Fred não parava de lançar harmonias, como se não conseguisse se controlar. Naquela noite, concentrei minha atenção no jeito de tocar de Brian, e achei que estava ouvindo algo com enorme potencial. Mas percebi que Freddie estava extremamente à vontade no ambiente.

como Ken Testi, Mike Bersin, o guitarrista do Ibex, lembra-se de ter sido Brian May a pessoa que causou maior impacto naquele primeiro encontro: “eu estava louco para ouvi-lo tocando, mas a grande surpresa para mim acabou sendo o fato de ele usar uma moeda de seis centavos de libra em vez da palheta costumeira”, uma idiossincrasia que ainda fascina os guitarristas. contudo, como as duas bandas começaram a se encontrar com frequência depois daquela noite, não demorou muito para Mercury fazer notar sua presença.

aquele foi um verão inesquecível. Brian Jones morreu, e os stones realiza-ram no Hyde Park aquela enorme cerimônia em sua homenagem. o calor era sufocante! Mas o que eu mais me lembro é de todos sentados do lado de fora do Kensington nos peitoris baixos das janelas, bebendo cerveja do tipo barley wine, porque era barata. embora de início Freddie tivesse sido discreto, ele rapidamente abandonou essa atitude.

Uma noite, estávamos todos sentados do lado de fora do bar, conver-sando sobre música, como sempre, e de repente Freddie disse o que tinha a dizer: “caras, o que vocês estão precisando é de um vocalista.” olhamos uns para os outros e nos perguntamos como era possível que ele soubesse disso, porque ele nunca nos ouvira tocar. acho que era um jeito de puxar conversa, mas de qualquer maneira ele logo se ofereceu para ser nosso vocalista principal.

Ken Testi assistiu à investida de Mercury contra sua banda com um sor-riso experiente. “o Ibex não tinha um vocalista designado, embora Bersin também fizesse esse papel, mas realmente seria útil que tivéssemos um”, diz ele. “Para todos nós, estava óbvio que no íntimo Freddie ainda queria entrar para o smile; mas, como isso não ia acontecer, ele tinha voltado sua atenção para o Ibex.”

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a facilidade com que Mercury, pelo menos na aparência, transferiu seu afeto permaneceu na lembrança de Mike Bersin, que diz: “ele veio a nossos ensaios umas duas vezes, num apartamento de porão; mas, em vez de cantar, ele de fato tratou de nos convencer a deixá-lo entrar para a banda. Não tínhamos na realidade nenhuma resistência a essa ideia, e foi isso o que aconteceu. ele entrou para o Ibex.”

Garantir por fim seu lugar numa banda não foi o único sucesso de Mercury nessa época. Havia meses que ele frequentava a estilosa butique de Barbara Hulanicki, a Biba, com um motivo secreto. embora o lugar fosse um dos mais sofisticados da cidade, a principal atração lá estava na amizade incipiente de Mercury com uma das vendedoras da Biba, Mary austin. eles tinham começado a namorar; Mercury, presumivelmente, preferira reprimir suas tendências homossexuais. seus sentimentos pela lourinha, e os dela por ele, foram fortes o suficiente para que eles fossem morar juntos num minúsculo apartamento de primeiro andar, perto da feira de Kensington. era o início da dedicação de um ao outro por toda uma vida.

o envolvimento de Mercury com Mary austin haveria de compensar quaisquer dúvidas que seus amigos pudessem ter a respeito de sua sexua-lidade. “eu não fazia a menor ideia de que ele fosse gay até muito depois de me afastar”, admite Tim staffell. “Naquela época era moda adotar uma atitude afeminada, como uma espécie de passaporte social, como se essa ati-tude insinuasse que a pessoa tinha sensibilidade ou integridade artística”.

“Freddie tinha acabado de ir morar com Mary quando eu o conheci”, diz Mike Bersin, “o que, imagino eu, nos despistou, porque no seu compor-tamento, de qualquer outra perspectiva, ele era maravilhosamente afetado, naquele jeito inglês de uma presunção encantadora. sob muitos aspectos, Freddie quase não era real”.

o que era real para Mercury era a permanente falta de dinheiro. embora ainda fosse avesso a sujar as mãos, ele se deu conta de que, para ser inde-pendente, precisava de um emprego remunerado. contudo, além de não estar disposto a passar nenhum tempo fora da região de Kensington, ele também só sentia interesse por música e artes. sua solução foi alugar uma

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barraca na feira de Kensington. em agosto de 1968, roger Taylor já tinha saído da faculdade de medicina com apenas a primeira parte de seu curso de odontologia. Vendo uma oportunidade de ouro para fortalecer seus laços com o smile, Mercury convidou Taylor para ser seu sócio nos negócios.

eles alugaram uma barraca por dez libras por semana, numa rua à qual os comerciantes deram o apelido deprimente de “corredor da Morte”. anos mais tarde, em alguns dos primeiros releases de publicidade do Queen, o lugar seria elevado com exagero à condição de “loja de trajes masculinos”, mas, como confirma Ken Testi, sua barraca na feira era do tamanho de uma cabine telefônica. estocá-la foi fácil: os colegas de Mercury da escola de belas-artes traziam pinturas e desenhos para vender; e às vezes Mercury exibia seus próprios trabalhos. Mas o movimento de vendas era tão baixo que eles passaram a vender roupas, e logo conseguiram obter algum lucro.

Tim staffell relembra essa época:

eu tive uma barraca só minha por uns dois meses, na qual tentava vender obras de arte originais, minhas e de outros colegas de ealing. Foi em algum lugar daqueles. eu me lembro especialmente de uma calça de algodão, extremamente desconfortável, que algum trapaceiro me vendeu.

Freddie e roger trabalhavam meio expediente na barraca deles, ven-dendo artigos de moda. era forte a ênfase em adereços pessoais. era natural, suponho, já que essa era a motivação deles, usar e vender esse tipo de coisa. Porém, havia no lugar um ar de coquetismo narcisista que eu detestava. acho que isso teve muita influência na criação do sentido de afronta que Freddie cultivava. Mas eu não gostava. Tudo era um pouco artificial demais para meu gosto.

No entanto, Kensington tornou-se o “chão” para Mercury. apesar de sua feira não chegar aos pés do exotismo dos bazares de Mumbai, ele se dava bem com o movimento do lugar. À vontade também com seu novo círculo de amigos e estimulado pelo alvoroço do final da década de 1960, Mercury cada vez mais exibia um brilho que se tornou uma parte aceitavelmente surreal do dia a dia. como recorda Mike Bersin:

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Todos nós sabíamos muito bem que Freddie sempre se considerou espe-cial. em retrospectiva, reconheço a determinação de fazer sucesso que ele tinha em alto grau. ele exigia ser tratado como astro muito antes de ser um astro. seu talento era na realidade sua ambição, e as pessoas reagiam a isso de modos diferentes, mas não era algo desagradável.

sem dúvida, o impulso de Mercury para chegar ao sucesso fora re-forçado, embora indiretamente, quando ele viu a banda na qual ansiava entrar preparar-se para o lançamento de seu primeiro compacto simples. a Mercury records lançou Earth/Step on Me em agosto de 1969, mas foi negada ao smile a alegria de correr para ver o compacto à venda na loja de discos mais próxima: o trabalho foi lançado somente nos estados Unidos. semanas de expectativa transformaram-se em frustração, até sua profunda decepção se diluir quando a Mercury convidou a banda de volta ao estúdio para gravar mais faixas para um álbum.

Tim staffell relembra:

Àquela altura, Brian e eu já tínhamos composto algumas músicas e está-vamos torcendo por uma oportunidade para gravá-las direito. Nosso pro-dutor foi Fritz Freyer, e as faixas que gravamos para aquele disco incluíam Polar Bear, Earth e Step on Me, é claro, além de Blag e April Lady, na qual Brian era o vocalista principal. Mas, apesar de estarmos satisfeitos com o resultado, a Mercury não quis lançar o disco. ele acabou aparecendo anos depois no Japão.

Mais uma vez instalou-se a decepção; e, avaliando tudo aquilo, Freddie Mercury tomou a firme decisão de que esse tipo de coisa não aconteceria com ele. a chance de dar mais vida ao smile lhe fora negada, mas ele conse-guira um ponto de apoio com o Ibex e estava decidido a causar impressão. a banda se apresentava onde quer que Ken Testi conseguisse incluí-la, principalmente em locais no norte da Inglaterra. eles trabalharam muito na região próxima a liverpool, onde ele tinha muitos contatos interessantes.

Testi recorda:

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o Ibex era muito ligado ao rock progressivo, muito influenciado por bandas como Wishbone ash, Free e Jethro Tull. e então Freddie chegou e trouxe para a banda algo totalmente diferente. era exagerado, mas funcionava. Trouxe também uma injeção de cultura. ele já andava na moda. ainda não era o pavão em que veio a se transformar. é claro que o dinheiro era curto. Mas ele tinha jeito para andar bem-arrumado. o Ibex costumava usar jeans e capas em estilo militar, ao passo que Freddie era mais dado a cetim e peles.

Mike Bersin concorda:

como vocalista, naquela época ele não era muito diferente de quando se tornou famoso com o Queen, só que depois ele passou a usar roupas mais gritantes e tinha mais espaço para se exibir. Mas todos os movimentos estavam lá com o Ibex, montes de poses, muitas das quais eu agora reco-nheço que estavam lá desde o início. Quer dizer, nós éramos três caras de Widnes, todos músicos de blues, de olhos no chão, com pouquíssima presença de palco, ou movimentação, e totalmente devotados à nossa música. até que chega nosso novo vocalista, que era, para dizer o mínimo, um choque cultural. Freddie sempre se esforçou ao máximo para injetar em nós uma noção de que éramos algo a ser visto, além de ser ouvido. e, mesmo no espaço apertado disponível para bandas que tocavam em bares, ele andava garboso de um lado para o outro, brandindo a base do microfone e fingindo tocar guitarra.

Freddie estava sempre ligado no que estava acontecendo, mas jamais copiou outro artista. Freddie sempre foi Freddie, muito agressivo, muito profissional em tudo o que fazia no palco e inteiramente sua própria criação.

era também constante sua preocupação em estar com a aparência per-feita. ele nunca parecia mal-arrumado e, no entanto, ao que eu soubesse, só tinha de seu um par de botas, uma camiseta, uma calça, um cinto e uma jaqueta. ainda assim, sua aparência permanecia impecável. e quanto à pessoa ali dentro? eu diria que a vida inteira, tanto no palco quanto fora dele, Freddie estava sempre representando.

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Quando o Ibex viajava para o norte para fazer apresentações, o smile invariavelmente ia junto para dar apoio moral, se não tivesse compromissos na Imperial college. Nem sempre era fácil encontrar um meio de transporte confiável para as duas bandas e seus amigos, e às vezes eles arriscavam a vida viajando pelas rodovias em veículos pouco melhores que latas-velhas. Mas eles se divertiam — e ganhavam experiência.

as apresentações mais memoráveis de Mercury com o Ibex talvez tenham sido quando eles tocaram no octagon Theatre em Bolton, em agosto de 1969, e num festival ao ar livre no dia seguinte no Queen’s Park da cidade. Ken Testi conta:

levei junto um cara que eu conhecia chamado steve lake, que tinha um enorme interesse por fotografia e fazia experiências com iluminações e slides com filtros líquidos, que eram muito avançados para a época, e ele tirou algumas fotos maravilhosas de Freddie nesse anfiteatro no parque. os assentos eram como gomos de laranja por trás de uma piscina, e houve uma foto extraordinária de Freddie em pleno voo, atravessando o palco, totalmente à moda Queen. é uma imagem que ficou comigo desde aquela época.

as apresentações em Bolton revelaram-se um marco significativo no desenvolvimento da imagem da banda. Mike Bersin lembra-se com nitidez de quando se aprontava, na hora do almoço, para a apresentação.

Tínhamos decidido ir ao centro da cidade a caráter. eu usava uma capa de lamê dourado, que, quando chegou a hora, fez com que eu me sentisse um palerma — mas Freddie chamava atenção a um quilômetro de distância. ele tinha eriçado o cabelo comprido para realçá-lo mais, e antes de co-meçar passou horas diante do espelho repuxando os fios. Por fim, gritei com ele: “Pelo amor de deus, pare de mexer com esse cabelo, Freddie!” e ele retrucou: “Mas eu sou um astro, meu caro!” Não há muito o que se possa dizer diante disso.

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de acordo com Bersin, era difícil dizer se Mercury sofria de qualquer nervosismo antes das apresentações:

ele fazia mais piadas do que normalmente, o que talvez fosse uma forma de se manter com um astral alto, mas a sociedade masculina nas bandas naquela época era decididamente baseada em insultos; e nós costumávamos xingar uns aos outros o tempo todo. Freddie debochava loucamente das pessoas; e, por sua vez, as pessoas debochavam dele. ele adorava.

Foi mais ou menos nessa época que o Ibex concluiu que estava farto das cansativas idas e vindas entre londres e liverpool. Para sua decepção, não parecia que muita coisa fosse acontecer para eles na capital, mesmo com a chegada de seu novo e exuberante vocalista. Por isso, por votação, concordaram em permanecer um tempo em liverpool. Mercury não gostou dessa escolha, mas seu desejo de permanecer no grupo forçou-o a concordar com ela. com base lá no norte, ele conseguiu manter seus laços com o smile porque os rapazes muitas vezes iam de carona a liverpool para vê-lo se apresentar, e passavam a noite com ele no seu apartamento.

Freddie conseguira um lugar onde morar por intermédio de um de seus amigos, Geoff Higgins, cuja mãe era gerente de alimentação nos dovedale Towers Banqueting Halls, que ficava no número 60 de Penny lane. Higgins explica:

Naquele tempo, “Tupp” Taylor era vidrado no Jethro Tull e estava louco para aprender flauta a fim de integrá-la ao repertório da banda, então me perguntou se eu poderia tocar o baixo no Ibex no lugar dele por um tempo, o que eu fiz.

de início, quando cheguei, minha mãe ficou escandalizada com meu jeito de vestir, mas nada a perturbava por muito tempo. ela gostava de todos os meus amigos de londres, mas simplesmente adorava Freddie. achava seu jeito de falar tão chique; e ele a tratava com uma cortesia assombrosa. Por trás e ligeiramente à esquerda do prédio principal em dovedale, havia um apartamento enorme de dois andares, onde eu morava. e, quando Freddie quis um lugar para morar, não precisou procurar mais.

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Mercury pode ter sentido falta de Kensington e ansiado por voltar para lá, mas ele realmente gostava da companhia de Higgins: “Àquela altura, todos nós já suspeitávamos um pouco de que a sexualidade de Freddie era diferente da nossa”, relembra Higgins, “mas a verdade era que naqueles tempos os habitantes de liverpool de qualquer maneira classificavam todos os londrinos como gays, de modo que ninguém poderia se guiar por isso. Freddie morou comigo em Penny lane, mas nem uma vez ele chegou a me abordar”. Geoff Higgins admite que isso foi um alívio enorme, considerando-se sua nítida lembrança de quando se conheceram:

alguns meses antes de conhecer Freddie, eu estava em londres fazendo entrevistas em algumas faculdades nas quais tinha esperança de conseguir entrar quando Bersin me convidou para dormir na chaise longue em seu apartamento.

certo dia, eu estava dormindo quando entraram dois caras. lá fora caía uma chuvarada com rajadas de vento, e um deles correu para o espelho acima da lareira e gritou: “ai, meu deus! eu apareci em público deste jeito?” e eu pensei: “Perto desse aí eu não chego, pode ter certeza!” aquelas foram as primeiras palavras que ouvi de Freddie. estranho que depois tenhamos nos tornado tão bons amigos.

o que mais surpreendeu Higgins foi que, apesar de todos os trejeitos e posturas esquisitas de Mercury, na realidade ele era um amigo muito sensível. “Fred era também um ótimo confidente”, revela Higgins. “se eu estivesse me sentindo um lixo, ele percebia e fazia com que eu falasse sobre o que estava me perturbando... e sempre conseguia me pôr de volta nos eixos. ele era assim.”

Higgins prossegue:

era uns dois anos mais velho que eu, o que parecia fazer toda a diferença, e não era só comigo. ele se dispunha a ajudar qualquer um do grupo que precisasse que alguém o ouvisse; e, vamos falar com franqueza, não é comum entre rapazes nessa idade que um perceba o outro, muito menos

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que se importe. Mas Fred se importava, e era muito bom na ajuda que oferecia. era incrível como ele sabia ouvir.

como acontecia com grande parcela da personalidade de Mercury, esse aspecto dele permanecia escondido a maior parte do tempo, abafado em público pelas palhaçadas bizarras que ele se permitia com liberdade cada vez maior.

Mercury começou a achar que já estava no Ibex havia tempo suficiente para tentar mudar uma coisa que ele considerava importante — o nome da banda. Mike Bersin recorda como Mercury lidou com o assunto:

ele me telefonou uma noite, dizendo que os outros na banda não estavam satisfeitos com o nome Ibex e que, se eu não fizesse objeção, eles queriam mudar para Wreckage. eu disse que, se era isso o que todos os outros queriam, por mim tudo bem. dali a dois dias, nós nos encontramos para ensaiar e descobrimos que todo o nosso equipamento já estava identificado com o novo nome. descobriu-se que todos recebemos a mesma ligação naquela noite! Tendo dito isso, Wreckage foi uma boa escolha. era prová-vel que tivesse mais significado para as pessoas. Não eram muitos os que sabiam o que era uma íbex, e muito menos se importavam, acho eu. Mas Freddie sabia se um nome parecia bom.

o que era interessante a respeito das manobras de Mercury era que ele conseguia dar a ilusão de democracia enquanto ia tranquilamente conse-guindo o que queria, sem irritar ninguém com isso.

da mesma forma que o smile costumava vir a liverpool para ver o Ibex tocar — e também para tocar, já que Ken Testi de vez em quando organizava apresentações também para a banda —, Mercury e os outros voltavam a londres com igual frequência. Testi vivia ocupadíssimo tentando arrumar trabalho para o Wreckage, muitas vezes no último instante. ele lembra:

Todo esse período foi bastante frenético. Às vezes eu não sabia para que lado estava indo. Um dia nós todos estávamos em londres, e eu tinha

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ido de carona até st. Helen’s porque decidira entrar para a faculdade lá. eu mal tinha passado pela porta quando Mike me ligou para dizer que eles haviam sido avisados de que iam se apresentar no dia seguinte, e me perguntou se eu podia voltar para levá-los numa van que eles tinham conseguido emprestada. sem me abalar, fiz um lanche e comecei a pedir carona de volta para londres, e cheguei lá bem tarde naquele mesmo dia.

No dia seguinte de manhã, bem cedo, fui a pé até a Imperial college, passando no caminho para apanhar Freddie, que supostamente deveria me ajudar a carregar o equipamento. era uma faculdade de ciências, sem instalações especiais para música, mas tinha um pequeno local para ensaios no terceiro andar de uma torre escura com uma escada em caracol, e o equipamento estava empilhado lá em cima. enquanto eu descia carregando nas costas um grande amplificador de baixo e todos os outros equipamentos pesados, cada um numa descida, no total Freddie fez três percursos: um carregando as maracas; o segundo com um pandeiro; e na terceira descida ele trouxe um suporte de partitura desnecessário. Quando eu lhe disse isso, ele respondeu com um suspiro gigantesco e uma revirada do pulso: “ai, será que você não podia levá-la de volta lá para cima, então?” ele era simplesmente inútil, mas e daí? ele estava ajudando com seu apoio moral.

Todo esse esforço era em prol de uma apresentação no sink em Hardman street, uma boate de porão, debaixo do rumbling Tum, da qual Geoff Higgins se lembra bem:

o sink era tão pequeno e úmido que fazia o cavern parecer o empire state Building. eles não tinham autorização para vender bebidas alcoólicas, mas davam um jeito vendendo tampas de garrafas na entrada, que lá embaixo era possível trocar por cerveja. seja como for, naquela noite Freddie estava aprontando todas, pulando pra lá e pra cá. Nós sempre dizíamos a ele: “Pelo amor de deus, cara, fica parado! Não é legal ficar se requebrando no palco desse jeito!” simplesmente não se faz isso em liverpool, e nós não pará-vamos de lhe dizer que ele nos deixava constrangidos, mas Fred não dava a menor atenção. ele se interessava realmente pela aparência das coisas.

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e até foi bom que ele se concentrasse na sua imagem, porque, segun-do Higgins, o som estava muito ruim. “Gravei aquela apresentação, e o Wreckage estava tocando uma música dos Beatles, mas dando-lhe um tratamento exagerado do tipo Wishbone ash, e Fred estava perdido. estava totalmente desafinado.”

No entanto, viria a acontecer algo de significativo nessa apresentação. segundo Higgins:

o smile estivera tocando no baile do curso preparatório da liverpool art college naquela mesma noite, e depois eles todos vieram à nossa apresen-tação. Mal tinham chegado e já subiram no palco com o Wreckage, o que quer dizer que esse show, em 9 de setembro de 1969, foi a primeira vez que Freddie, Brian e roger tocaram juntos num palco.

como Ken Testi estava exausto de tanto viajar, ele não se lembra de muita coisa dessa noite, mas lembra, sim, do momento em que o smile se uniu ao Wreckage: “Freddie estava mesmo à vontade quando cantou algumas das músicas do smile. sabia de cor todo o repertório deles!” assistindo a Mercury no palco, Testi afirma que, a não ser por uma vez ou outra em que desafinava, Freddie estava se desenvolvendo rapidamente como artista: “ele já tinha todas as fortes qualidades que mais tarde levaria para o Queen: os passos largos de um lado a outro do palco à frente da banda, o uso de todos aqueles gestos exagerados, agora tão conhecidos. ele era muito bom.”

apesar de tudo isso, porém, liverpool não era o lugar em que Freddie Mercury se via fazendo sucesso. Pouco depois da apresentação no sink, ele voltou para londres com Mike Bersin e tratou de se formar na ealing art college, com um diploma em design gráfico e artístico. Também voltou à sociedade com roger Taylor na feira de Kensington. Àquela altura, Brian May já estava em seu segundo ano de pós-graduação e ainda tentando uma carreira em astrofísica, e, como parte de seu doutorado, entrara para um grupo de pesquisa que estudava a luz zodiacal. o trabalho envolvia lon-gos períodos fora de casa, na construção de um observatório em Tenerife. como Mercury passou a ficar mais tempo sozinho com roger Taylor, seu

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relacionamento com o percussionista transformou-se em uma de suas amizades mais fortes.

a divisão de apartamento de Mercury com Mary austin terminou du-rante sua estada em liverpool, apesar de ela com frequência passar fins de semana com ele em Merseyside. Quando ele retornou a Kensington, os dois não voltaram a viver juntos imediatamente; e por um tempo Mercury ficou sem ter onde morar, membro de uma galáxia inconstante de amigos sem endereço fixo. “Nessa fase, ninguém sabia de verdade onde qualquer outro estava dormindo”, diz Ken Testi. “lembro-me de estar no apartamento já lotado de um colega, quando cedo de manhã se ouviu uma batida à porta, e lá estava roger abraçado a um colchão, na esperança de encontrar um lugar para dormir.”

Não havia nada de suntuoso nas acomodações deles antes de fins de 1969. a maioria dos lugares eram alugados por períodos curtos e, geral-mente, eles atrasavam o pagamento e acabavam sendo despejados. Por fim, alguns amigos do smile, do Wreckage e de outras bandas encontraram um apartamento em Ferry road, Barnes. supostamente ele deveria acomodar apenas três pessoas e, segundo conta Mike Bersin, quando a senhoria vinha cobrar o aluguel, todo mundo se escondia no quarto até ela ir embora.

Mike Bersin recorda-se:

o apartamento era medonho. Havia poltronas descombinadas e um sofá de vinil vermelho, com as costuras estouradas e um estofamento horroroso de crina escapulindo nesses lugares. Mas nós tocávamos o primeiro álbum do led Zeppelin o dia inteiro, todos os dias, no velho toca-discos mono-fônico, até a agulha gastar. Naquela época, porém, tudo era maravilhoso. cerveja com lima era o drinque do momento, e nós costumávamos andar descalços, o que em calçadas cheias de excremento de cachorro não era das melhores ideias. Havia uma vibração espantosa no final da década de 1960. era uma fase pós-pílula e pré-aids; e a promiscuidade parecia mais compulsória do que opcional. era também um pouco romântico pular numa van em péssimo estado e viajar quilômetros para fazer apresentações praticamente de graça.

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