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compilações doutrinais
VERBOJURIDICO ®
TRÁFICO DE SERES HUMANOS
___________
Joana Azevedo da Costa
ADVOGADA
VERBOJURIDICO TRÁFICO DE SERES HUMANOS : 2
Tráfico de Seres Humanos
———
Joana Azevedo da Costa ADVOGADA
“Os que negam liberdade aos outros não merecem liberdade.”
Abraham Lincoln
INTRODUÇÃO
O tráfico de seres humanos não é uma realidade recente. Na verdade, pode-se
mesmo afirmar que as primeiras práticas de tráfico de seres humanos remontam aos
tempos dos Descobrimentos quando se procedia a exportação de pessoas tendo como
principal fim o fornecimento de mão-de-obra escrava. Apesar de crime hediondo e
violação dos direitos humanos o tráfico de seres humanos tem sido perpetuado ao longo de
séculos afirmando-se como um fenómeno de difícil combate.
Segundo a Agência das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (ONUDC), todos
os anos, 800 mil a 2,4 milhões de pessoas são vítimas do tráfico de seres humanos no
mundo.1
Embora os dados estatísticos disponíveis se traduzam inevitavelmente em dados
falaciosos, uma vez que nos encontramos diante de um crime cuja prova é delicada,
podemos, sem qualquer relutância, afirmar que o tráfico de seres humanos, nas suas
diferentes vertentes, tem aumentado no Mundo.
Num Mundo onde se luta por uma crescente afirmação das liberdades colectivas e
individuais, da autodeterminação dos povos e pela afirmação dos direitos humanos!
Portugal encontra-se igualmente afectado pelo flagelo que se caracteriza por um
conjunto de causas e consequências: o crime organizado, a exploração sexual e laboral, as
1 Global Report on Trafficking in Persons – United Nation Office of Drugs and Crime, 2009
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assimetrias endémicas entre os países mais desenvolvidos e os mais carenciados, questões
de género e de direitos humanos, quebra de suportes familiares e comunitários.
Desde 2007 que Portugal tem o Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres
Humanos, um instrumento estratégico e global de combate a este crime. Por Resolução do
Conselho de Ministros nº94/2010, foi aprovado o II Plano Nacional contra o Tráfico de
Seres Humanos (2011-2013) que engloba vários ministérios, entidades públicas e privadas
e organizações não governamentais.
Em 2008 foi criado o Observatório do Tráfico de Seres Humanos2, que tem como
missão recolher, tratar e difundir informação sobre tráfico de pessoas e formas diversas de
violência de género.
Não obstante atenta a natureza do crime e apesar da sua consagração a nível quase
mundial, a sua definição legal é complexa e necessita de ser alvo de alguma reflexão.
Conhecer o crime de tráfico de seres humanos é entrar numa realidade cruel e
inefável onde a raça humana assume a sua natureza mais nefasta e ignóbil.
Identificar o crime de tráfico pressupõe uma serie de conhecimentos indispensáveis
para uma eficaz avaliação dos indícios e consequente diagnóstico precoce. Afigura-se
também necessário efectuar a distinção do crime de tráfico de outros crimes similares
como o auxílio à imigração ilegal. Sendo igualmente conveniente apreender os chamados
crimes subjacentes ao tráfico reconhecendo a sua utilidade na dedução da Acusação.
Nos crimes de tráfico de pessoas a Investigação e Instrução assumem uma
particular e crucial importância. Investigar o crime passa por estar familiarizado com os
respectivos, modus faciendi3, modus operandi4, modus probandi5, daí que colocar no
terreno profissionais experientes e especializados na matéria poderá ser decisivo para
garantir a eficácia da investigação.
Mas mais do que garantir a eficácia da investigação a prioridade deverá ser
assegurar a protecção da vítima, independentemente até da colaboração que esta poderá
prestar no processo e na investigação do crime. Contudo, e caso a vítima esteja em
2 www.otsh.mai.gov.pt 3 Do latim forma de fazer 4 Do latim forma de operar 5 Do latim forma de provar
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condições de colaborar torna-se imprescindível que esta beneficie de medidas de protecção
eficazes que garantam o seu depoimento livre, espontâneo e não comprometendo nunca a
sua segurança ou a dos seus amigos e familiares.
1. O Crime de Tráfico de Seres Humanos
Ao nível Internacional pode-se afirmar que a iniciativa de combate ao Tráfico de
Seres Humanos assumiu particular expressão com a Convenção Europeia dos Direitos
Humanos, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950, que o Tráfico de Pessoas
integrou a agenda do Conselho da Europa. Por conseguinte foram aprovadas várias
recomendações relacionadas com o tema.
Contudo, a complexidade do Tráfico afirma-se desde logo na própria definição de
tráfico de seres humanos desde logo geradora de acesa controvérsia.
Actualmente, encontramos a definição de Tráfico de Seres Humanos nos
instrumentos legislativos das Nações Unidas que versam a matéria: o “Protocolo Adicional
à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo
à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de pessoas, em especial de mulheres e
crianças” (Protocolo contra o Tráfico de Pessoas) e o “Protocolo contra o Tráfico Ilícito de
Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea” (Protocolo relativo ao Tráfego de
Migrantes), respectivamente.6
Não obstante, também a Organização Internacional do Trabalho tem vindo a
assumir uma posição relativamente à temática, nomeadamente através da Convenção n.º 29
relativa ao trabalho forçado, de 28 de Junho de 1930, a Convenção n.º 105.º, sobre a
abolição do trabalho forçado, de 21 de Junho de 1957, e a Convenção n.º 143.º da OTI,
relativa às migrações em condições abusivas e à promoção de igualdade de oportunidades
e de tratamento dos trabalhadores migrantes, adoptada em Genebra em 24 de Junho de
1975.
6 Aprovados para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 32/2004 de 12 de Fevereiro e ratificados pelo Decreto do Presidente da República n.º 19/2004 de 2 de Abril, publicados no Diário da República n.º 79, I série A, de 02 de Abril de 2004.
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Nos termos do art. 3.º Protocolo contra o Tráfico de Pessoas, Artigo 3.º (a)
«Tráfico de pessoas» significa o recrutamento, transporte, transferência,
alojamento ou o de pessoas recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou de outras formas
de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, ou de situação de
vulnerabilidade, ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração.
Exploração inclui, pelo menos, a exploração de prostituição ou outras formas de
exploração sexual, de serviços ou trabalhos forçados, de escravatura ou práticas
semelhantes à escravatura, servidão ou à extracção de órgãos.
A nível nacional o Código Penal de 1982 (aprovado pelo Decreto-lei 400/82, de 23
de Setembro) estabelecia inicialmente no seu art. 217.º n.º 1 que “quem realizar tráfico de
pessoas, aliciando, seduzindo ou desviando alguma, mesmo com o seu consentimento, para
a prática, em outro país, da prostituição ou de actos contrários ao pudor ou à moralidade
sexual, será punido com pena de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias». Das diversas
alterações sofridas pelo dispositivo legal resulta o regime actualmente em vigor prevendo o
art. 160.º do C. P. sob a epigrafe Tráfico de Pessoas que:
1 — Quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa
para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência
hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando -se de incapacidade psíquica ou de situação de especial
vulnerabilidade da vítima;
ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a
vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 — A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, aliciar, transportar,
proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para
fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos.
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3 — No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios
previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é
punido com pena de prisão de três a doze anos.
4 — Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar,
solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido
com pena de prisão de um a cinco anos.
5 — Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.ºs 1 e 2, utilizar
os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena
mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
6 — Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de
viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.os 1 e 2 é punido com pena de prisão até
três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
1.2 Elementos constitutivos do crime de tráfico de pessoas
O Protocolo contra o Tráfico de Pessoas exige que o crime de tráfico seja definido
mediante uma combinação de três elementos constitutivos, não bastando a verificação
isolada de cada um deles – embora, nalguns casos, estes elementos individuais possam
constituir crimes autónomos. Por exemplo, o rapto ou a agressão constituirão
provavelmente crimes autónomos no âmbito da legislação penal de cada país.
Também na terminologia do Direito Penal, se podem identificar estes três
elementos constitutivos com o elemento objectivo/material do crime - o actus reus — e
com o seu elemento subjectivo) — a mens rea —. A ausência destes pressupostos
determina, nos sistemas penais de todo o mundo, a impossibilidade da condenação.
Requisitos de Actus reus
O actus reus (acto físico) ou elemento material do crime de tráfico de pessoas varia
de acordo com a legislação de cada país. No caso do crime de tráfico, como definido no
Protocolo contra o Tráfico, o actus reus divide-se em duas partes:
1) Acção
O crime deverá incluir um dos seguintes elementos: Recrutamento; Transporte;
Transferência; Alojamento; Acolhimento de uma pessoa.
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2) Meios
Deverá conter pelo menos um dos seguintes meios: Uso da força; Ameaça; Coação;
Sequestro; Fraude; Engano; Abuso de autoridade ou de uma situação de vulnerabilidade;
Concessão ou recepção de benefícios.
Mens rea/ Elementos Subjectivos do Tipo Penal
Os elementos subjectivos do crime referem-se à atitude subjectiva ou psicológica
do agente do crime. Apenas a pessoa que age com determinado grau de culpa pode ser
sujeita a responsabilidade criminal. Só nalgumas jurisdições e em alguns casos limitados
pode ser imputada responsabilidade penal «objectiva» (crimes de «responsabilidade
objectiva»).
O elemento subjectivo especificamente exigível no caso de tráfico de pessoas é que
o agente tenha cometido os actos materiais com o propósito de exploração da vítima (tal
como definido na legislação anti-tráfico de cada país).
O Protocolo contra o Tráfico de Pessoas não define «exploração», antes apresenta
uma lista não-exaustiva de formas de exploração:
«Exploração inclui, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras
formas de exploração sexual, de serviços ou trabalhos forçados, de escravatura, de
práticas similares à servidão ou a extracção de órgãos.»
É importante recordar que o Protocolo contra o Tráfico de Pessoas obriga à
criminalização do tráfico de pessoas, mas não exige que a legislação nacional use os
termos exactos da definição de Tráfico de Pessoas nele constante. Ao invés, a legislação
nacional deve ser elaborada de modo consistente com o quadro legal existente em cada
país, consagrando, no entanto, os elementos típicos contidos naquela definição.
Para que se consume o crime de tráfico de pessoas, não é necessária a efectiva
exploração da vítima. Como se encontra claro no Protocolo contra o Tráfico de Pessoas,
não é necessário que exista uma acção concreta de exploração, sendo suficiente que se
verifique uma intenção de explorar a pessoa. Apenas é necessário que o agente pratique um
dos actos constitutivos do crime, empregando um dos meios enumerados para alcançar
aquele objectivo ou, por outras palavras, que tenha a intenção de que a pessoa seja
explorada.
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O elemento subjectivo pode ser provado de várias formas. Importa realçar que o
Protocolo contra o Tráfico de Pessoas requer a criminalização do tráfico de pessoas quando
este é levado a cabo de forma intencional, conforme o Artigo 5.º (1). No entanto, nada
impede que os países estabeleçam o elemento mens rea com um padrão menos exigente,
como seja mediante a imputação a título de negligência (consciente ou inconsciente,
eventualmente apenas nos casos de negligência grosseira) de acordo com os requisitos do
sistema jurídico do país em causa.
1.3– Tráfico de seres humanos e auxilio à imigração ilegal
É importante distinguir porém, o tráfico de pessoas do auxílio à imigração ilegal
(smuggling), uma vez que é frequente a confusão entre os dois crimes. Contudo a distinção
impõe-se por dois motivos fundamentais, primeiro porque os elementos constitutivos dos
diferentes crimes são diferentes, segundo porque a resposta exigida às autoridades irá
variar, dependendo do crime em causa.
A definição de auxílio à imigração ilegal (smuggling) encontra-se no “Protocolo
contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea” designadamente
no art. 3.º (a):
«O auxílio à imigração ilegal» (smuggling) ou «Introdução clandestina de
migrantes» significa facilitar a entrada ilegal de uma pessoa num Estado do qual essa
pessoa não é nacional ou residente permanente com o objectivo de obter, directa ou
indirectamente, um benefício financeiro ou outro benefício material.»
Nos termos deste artigo auxílio à imigração ilegal (smuggling) é constituído pelos
seguintes elementos: facilitação da entrada ilegal de outra pessoa; noutro Estado; com o
objectivo de obter um benefício material ou financeiro.
A alínea b) do Artigo 3.º explicita o conceito de “entrada ilegal” como passagem de
fronteiras (internacionais) sem preencher as condições necessárias para a entrada legal no
Estado de acolhimento.
O Artigo 6.º do Protocolo relativo ao Tráfico Ilícito de Migrantes requer, entre
outras coisas, a criminalização da introdução clandestina de migrantes.
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No que concerne à legislação nacional este crime encontra-se previsto no artigo
183º da Lei n.º 23/2007 de 4 de Julho, Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e
Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, sob a epígrafe de Auxílio à imigração
ilegal dispondo o seguinte:
1 – Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito
ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até 3
anos.
2 – Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou
o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é
punido com pena de prisão de 1 a 4 anos.
3 – Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão
estrangeiro em condições desumanas ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou
causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é punido com pena de
prisão de 2 a 8 anos.
4 – A tentativa é punível.
5 – As penas aplicáveis às entidades referidas no n.º 1 do artigo 182.º são as de
multa, cujos limites, mínimo e máximo são elevados ao dobro, ou de interdição do
exercício da actividade de um a cinco anos.
Na prática, distinguir entre estes dois tipos penais não é tarefa fácil e instantânea.
Na verdade, em não pouco casos, as vítimas do tráfico começam por ser migrantes
objecto de introdução clandestina. Assim sendo, ao investigar casos de tráfico de pessoas,
pode ser por vezes necessário recorrer às medidas instituídas para o combate à imigração
ilegal. É imprescindível, no entanto, que os profissionais que investigam os casos de
auxilio à imigração ilegal (re)conheçam o crime do tráfico de pessoas, sob pena de se
correr o risco de tratar um caso de tráfico como se fosse um caso de auxilio à imigração
ilegal o que pode acarretar graves consequências para a vítima.
Nalguns casos, poderá ser extremamente difícil rapidamente estabelecer, se um
caso pertence ao âmbito do auxílio à imigração ilegal ou do tráfico de pessoas. As
distinções entre estes tipos de crime são não raras vezes muito ténues, existindo mesmo
pontos coincidentes.
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Identificar se o caso é de auxílio à imigração ilegal ou tráfico pode ser muito difícil
derivado a diversos factores. Por exemplo o facto de algumas das vítimas de tráfico
poderem ter iniciado a sua viagem com o objectivo de serem introduzidas ilegalmente
noutro país, acabando posteriormente por constatar terem sido enganadas, coagidas ou
forçadas a aceitar uma situação de exploração (por exemplo, ao serem forçadas a trabalhar
por salários extremamente baixos para pagarem o seu transporte) complica bastante o
enquadramento penal da conduta.
Assim como o facto de muitas vezes os agentes do crime terem a intenção inicial
de introdução clandestina de migrantes, mas quando confrontados com a possibilidade de
lucro da prática de tráfico acabarem por se envolver nesta última, acaba por resultar numa
confusão de ilícitos. Assim como, as próprias condições a que os migrantes são sujeitos ao
longo da viagem são por vezes tão más que é difícil acreditar que alguém tenha consentido
na situação.
Posto isto, podemos concluir que existem algumas diferenças essenciais entre
auxílio à imigração ilegal e o tráfico de pessoas que cumprem destacar:
Desde logo há que atender à existência ou não de consentimento por parte da
vítima. O auxílio à imigração ilegal envolve geralmente o consentimento das pessoas que
são objecto dessa introdução clandestina. As vítimas de tráfico, por seu turno, ou nunca
deram o seu consentimento ou, se deram o seu consentimento inicial, tal consentimento
tornou-se irrelevante devido aos meios usados pelos traficantes.
Um outro critério a atender é a chamada transnacionalidade pois introduzir
ilegalmente uma pessoa significa facilitar a sua passagem ilegal por uma fronteira e a sua
entrada ilegal noutro país. O tráfico de pessoas, por outro lado, não precisa de envolver a
passagem por qualquer fronteira. Nos casos em que tal acontece, a legalidade ou
ilegalidade da passagem da fronteira é irrelevante.
A relação entre o facilitador (agente do crime de auxilio à imigração ilegal) e o
imigrante, é outro elemento a considerar. O facilitador não tem intenção de explorar a
pessoa objecto de introdução clandestina após a sua chegada. O facilitador e o imigrante
são parceiros, ainda que muito diferentes, numa operação comercial em que o migrante
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entra voluntariamente. Já o traficante quer sem dúvida explorar a vítima e prolongar a
decisão existente pelo maior período de tempo que conseguir.
Também a forma como o agente do crime obtém o seu lucro é um indicador da
existência de tráfico ou de auxílio à imigração ilegal. Os facilitadores obtêm o seu
rendimento do montante cobrado para deslocar as pessoas. Os traficantes, por outro lado,
continuam a exercer controlo sobre a vítima de tráfico, com o objectivo de conseguir
lucros adicionais mediante a exploração contínua da vítima.
1.4- Tráfico de seres humanos e crimes subjacentes
Refira-se que, o crime de tráfico de pessoas pode envolver vários actos e diferentes
agentes. O crime é cometido mediante actos de recrutamento, transporte, transferência,
alojamento ou acolhimento de pessoas por meio de ameaça ou o uso da força ou de outras
formas de coação, de sequestro, de fraude, de engano, de abuso de autoridade, ou de abuso
de uma situação de vulnerabilidade, ou da entrega ou aceitação de pagamentos ou
benefícios para conseguir o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre
outra, com um objectivo de exploração.
Os casos de tráfico, justificam normalmente outros crimes, quer na própria
preparação do crime de tráfico quer na sua execução.
Aqui há que ter as devidas cautelas na análise dos crimes pois o procedimento
criminal pode ser autónomo relativamente a cada crime, ou estes podem ser objecto de
procedimento alternativo ou cumulativo, dependendo do sistema penal. Podem também ser
designados crimes subjacentes ao tráfico.
Podem ser cometidos outros crimes contra a vítima de tráfico ou outras, mas estes
não constituírem parte integrante do crime de tráfico. Estes casos deverão ser alvo de um
procedimento criminal autónomo, de acordo com a lei de cada país.
Os crimes que o Tráfico de Seres Humanos mais frequentemente envolve são a
escravatura, os trabalhos forçados, a servidão por dívidas, o casamento forçado; o aborto
forçado; extorsão; tortura; tratamento cruel, desumano ou degradante; violação; abuso
sexual; ofensas à integridade física simples e qualificada, injurias, homicídio; rapto;
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sequestro; exploração laboral; retenção dos documentos de identidade; violação da lei de
imigração; lavagem de dinheiro; corrupção; abuso de poder; auxílio à imigração ilegal etc.
O procedimento criminal pelos crimes acima mencionados pode ser particularmente
útil em situações e países em que as penas para o tráfico de pessoas não reflectem de forma
adequada a natureza do crime e não têm efeitos dissuasores; ou em casos em que as provas
existentes não são suficientes para despoletar um procedimento criminal por tráfico de
pessoas, mas são no entanto suficientes para perseguir criminalmente estes crimes.
Tal como recomenda o Manual da Nações Unidas contra o tráfico de pessoas7
quando existem provas, dever-se-á tentar perseguir criminalmente os autores do crime pelo
crime de tráfico de pessoas. Deverão ser utilizados os crimes conexos como acusações
autónomas, para aumentar as hipóteses de obter uma condenação.
Se o crime de tráfico de pessoas estiver tipificado, os crimes conexos são
particularmente úteis em situações em que não se tenham recolhido provas suficientes
para deduzir uma acusação de tráfico ou quando não se tenha recolhido prova suficiente
para a dedução de uma acusação pela prática daquele crime. A prova poderá porém ser
suficiente para proceder criminalmente contra alguns factos autónomos ou crimes
associados,
Mesmo que inicialmente se escolha proceder criminalmente contra o crime de
tráfico de pessoas, se as provas recolhidas não forem sufi cientes para sustentar uma
acusação por este crime, estas poderão, todavia, ser suficientes para obter uma
condenação pelos crimes conexos. Por conseguinte, os crimes que estão normalmente
associados ao tráfico podem também ser invocados. Alguns termos do acordo entre
traficante facilitador e vítima podem vir a ser qualificados como crimes adicionalmente
praticados ou em concurso, para demonstrar a gravidade de determinado caso de tráfico
de seres humanos.8
7 Manual contra o Tráfico de Pessoas para Profissionais do Sistema de Justiça Penal, Nações Unidas, 2009
8 Obra citada módulo 1 pag. 26 e ss.
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2 – Tráfico de Seres Humanos – Indicadores da prática do crime
A identificação das situações de Tráfico Humano não é uma tarefa fácil. Os
Traficantes são exímios em usar todo o tipo de estratégias de actuação de forma a reduzir o
risco de serem detectados. Apesar da diversidade de formas com que o crime de tráfico de
seres humanos é praticado é possível distinguir situações em que a probabilidade de
existência de Tráfico de Seres Humanos é altamente elevada.
Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada
Transnacional (UNTOC), o art. 27.º, 1, b), (i) «os Estados Partes deverão cooperar
estreitamente, em conformidade com os respectivos ordenamentos jurídicos e
administrativos, a fim de reforçar a eficácia das medidas de controlo do cumprimento da
lei destinadas a combater as infracções previstas na presente Convenção. Em concreto
cada Estado-parte deverá adoptar medidas eficazes:
a) (…)
b) Cooperar com outros Estados Partes, quando se trate de infracções
previstas na presente Convenção, na condução de investigações relativas aos seguintes
aspectos:
(i) Identidade, localização e actividades de pessoas suspeitas de implicação
nas referidas infracções, bem como localização de outras pessoas envolvidas»
Uma forma dos Estados cumprirem a obrigação implícita no ponto (i) é
promoverem a utilização de eficazes medidas de identificação do crime de tráfico.
Refira-se porém que a identificação do tráfico de pessoas é um processo moroso e
delicado. Se por vezes diante de um só incidente encontramos um forte indício da
existência de tráfico, em muitos casos existe apenas um ou dois indicadores de tráfico,
existindo muito pouca informação concreta, sendo necessário intensificar as investigações.
Note-se que todos os indícios são por si só subjectivos pelo que terá de se recorrer
aos conhecimentos adquiridos sobre o flagelo, adequando-os à situação concreta para se
possa com maior rigor aferir se se está diante de uma situação de tráfico. No fundo tratam-
se acima de tudo de critérios de probabilidade.
Um desses critérios é, por exemplo a idade da vítima. Em princípio, quanto mais
velha for a pessoa menos provável é que seja vitima de tráfico. Normalmente os traficantes
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não traficam pessoas mais idosas, uma vez que quer no tráfico para fins sexuais, quer no
tráfico para fim de exploração laboral, quanto mais nova for a vítima mais “rentável” será.
A este raciocínio exceptuam-se no entanto, os casos de tráfico para fins de mendicidade em
que aí muitas vezes até privilegiam a idade avançada da vítima.
As crianças são alvo preferencial de tráfico dada a sua inerente fragilidade, o que
faz com que sejam mais fáceis de manipular e podem ser exploradas de formas mais
variadas como na indústria do sexo, nos mercados de trabalho ilegais, para mendicidade e
furto de carteiras, como «escravos» doméstico e para remoção de órgãos.
O género por seu turno poderá configurar um outro indicio uma vez que o tráfico
sexual (detentor doa maiores números de traficados) afecta sobretudo as mulheres.
Segundo os dados das Nações Unidas há provas substanciais de tráfico para exploração
heterossexual em praticamente todos os países do mundo.
O local de origem é um indício relevante em matéria de tráfico. Muitas vítimas são
provenientes de países em vias de desenvolvimento, ou de países em transição onde as
oportunidades são limitadas, sendo por isso mais vulneráveis fáceis de aliciar e cair nas
redes de tráfico.
Um outro indicado de tráfico é a apresentação de uma pessoa de documentação de
identificação e viagem pertencente a outras, numa passagem de fronteira ou ponto de
controlo. Assim como o uso de identidade falsa ou documentação falsificada.
Também o local onde a vitima se encontrava antes de o caso chegar às autoridades
é muito relevante. Tratando-se de um bordel/ estabelecimento de diversão nocturna, uma
agência de acompanhantes, locais de exportação de trabalho como fábricas que empreguem
pessoas com baixos salários e longas horas de trabalho em condições precárias ou em
explorações agrícola podem ser indicadores de potencial exploração.
Também o transporte releva para este efeito. A forma como a pessoa foi
transportada, sem condições de higiene e conforto e sempre sob o controlo de alguém,
apresentando muitas vezes sinais de ter sido agredida constitui também um forte indício de
estar a ser vítima de tráfico de seres humanos.
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3. Investigação e prova do Tráfico de Pessoas – breves referências
práticas.
Por se tratar de um crime clandestino e altamente organizado a investigação e a
prova do crime de tráfico revelam-se de dificuldade acrescida.
Antes de mais e face ao facto de muitas vezes ser no momento de primeira reacção
policial ao crime, em que é possível recolher matéria probatória de relevo, nomeadamente
no âmbito das normas legais contidas no art. 249.º do Código de Processo Penal, ao abrigo
das providências cautelares quanto aos meios de prova, importa que desde logo os
elementos policiais procedam aos exames, apreensões, revistas, buscas e inquirições que de
outra forma inviabilizaria no futuro o sucesso de tais diligências, sem no entanto descurar a
necessidade de articulação com o(s) OPC(s) (órgãos de policia criminal) com competência
mais directa de investigação deste tipo de crime9.
É igualmente indispensável proceder à articulação com outras estruturas de apoio
social, estatais ou ONGs de forma a assegurar o encaminhamento futuro da(s) vítima(s),
para lhes possa ser garantido o acesso a um conjunto de valências (p. ex. cuidados de
saúde, alojamento, encaminhamento laboral, etc.), que necessariamente as polícias não
possuem, fomentando-se uma abordagem holística da situação.10
No que concerne à investigação propriamente dita, tal como na investigação da
maioria dos crimes também no crime de tráfico a investigação do local do crime assume
particular importância. Para tal é imprescindível a sua preservação.
Preservar um local de crime significa garantir a sua integridade, para a colheita de
vestígios que fornecerão os primeiros elementos à investigação. O exame do local do crime
deverá obedecer a uma preservação rigorosa para que sejam resguardadas todas as provas,
exigindo-se para tal profissionais plenamente capacitados.
9 Cfr. Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto, art. 7.º n.º 4 al. c). 10 TRÁFICO DE PESSOAS, DA PERCEPÇÃO SOCIAL À REALIDADE POLICIAL, Marco Teixeira, in Tráfico Desumano, pag. 53 e ss , Cadernos da Administração interna, Colecção de Direitos Humanos e Cidadania, Outubro 2010
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No caso do crime de tráfico de pessoas a análise das cenas do crime revela-se
particularmente difícil pelo que deverá ser preferencialmente levada a cabo por
profissionais experientes na área, apelando-se ainda à cooperação inicial entre o
investigador e os profissionais forenses.
Os investigadores experientes deverão transmitir as informações que já adquiriram
sobre o processo de tráfico aos profissionais forenses de modo a que estes estejam
preparados para as especiais especificidades que este tipo de crime comporta.
Nos crimes de tráfico é frequente existir mais do que um local do crime. Poderão
existir locais na origem, trânsito e destino, sendo provável que em todos esses locais se
encontrem vestígios da vítima e dos traficantes. É imprescindível que todos esses locais
sejam devidamente relacionados e investigados de modo a que se possa aferir a verdadeira
dimensão do crime.
Também o exame da vítima deverá ser efectuado cautelosamente. O exame da
vitima deverá ser feito sempre com o seu consentimento, e sempre que possível dando à
vitima a possibilidade de escolher o sexo do perito médico forense que a irá examinar.
Antes do exame a vítima deverá ser devidamente informada daquilo em que consiste o
exame e por que razão é necessário efectua-lo. Deverão ser também adoptadas técnicas de
facilitação da comunicação e de empatia, alicerçadas no conhecimento das dinâmicas do
tráfico (conhecer os “actores”, as estratégias de controlo, as variáveis situacionais e
psicológicas, etc.), no sentido de permitir o estabelecimento de um canal de comunicação
fluído e de aceder a informação qualitativamente válida11
Tais procedimentos são essenciais para que o exame decorra com sucesso e seja o
mais fidedigno possível. Refira-se que nem sempre é claro quem é suspeito quem é vítima
pelo que nenhum pormenor do exame deverá ser negligenciado. Por outro lado tais exames
poderão por si só não ser suficientes ou conclusivos necessitando ser articulados com
outros meios de prova, não deixando por isso de ser importantes.
As provas documentais são também muito relevantes neste tipo de crime. A atenção
deverá estar focada em documentos de identificação falsa ou falsificada das vítimas, assim
11 TRÁFICO DE PESSOAS, DA PERCEPÇÃO SOCIAL À REALIDADE POLICIAL, Marco Teixeira, in Tráfico Desumano, pag. 57 e ss , Cadernos da Administração interna, Colecção de Direitos Humanos e Cidadania, Outubro 2010
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como extractos bancários descrevendo movimentos pecuniários múltiplos e avultados,
elementos frequentemente presentes no crime de tráfico. Os exemplos de documentos
relevantes que podem ser encontrados em investigações de casos de tráfico de pessoas
incluem assim: Registos de dinheiro obtidos em bordéis e outros negócios ilícitos,
extractos bancários e detalhes de transacções informais; registos de serviços utilizados e
consumidos, registos de renda paga, com detalhes sobre os senhorios; bilhetes, cartões de
embarque e outros documentos de viagem; detalhes de cartões de crédito dos clientes,
documentos de identidade genuínos e falsificados, dinheiro, documentos em fábricas e
outros locais de trabalho que registem as informações pessoais das pessoas que lá
trabalham, etc.
O exame de possíveis veículos afigura-se igualmente útil uma vez que os veículos
poderão proporcionar uma oportunidade de fazer a ligação entre as vítimas e o suspeito.
Alguns veículos poderão mesmo conter equipamento que permita monitorizar os seus
percursos. Assim como poderá ser possível encontrar vestígios de ADN e outros
identificativos quer no interior do veículo como no lixo lá presente como por ex. beatas de
cigarro, copos de café etc.
Em suma, para que uma investigação de tráfico seja potencialmente mais bem
sucedida será necessário atender a uma série de factores:
Desde logo é imprescindível a cooperação desde o inicio entre o investigador e os
técnicos forenses, para que todos actuem em sintonia e concertação de esforços. O local do
crime deverá ser alvo de uma especial atenção, sendo fundamental executar uma análise e
recolha rigorosa dos elementos delas constantes, examinar cuidadosamente a sua
organização e as actividades que possam decorrer no local (pessoas que lá trabalhem etc.).
A abordagem à vítima deverá ser efectuada com especial diligência atendendo à sua
capacidade física e psíquica tendencialmente diminuída pelos acontecimentos sofridos.
VERBOJURIDICO TRÁFICO DE SERES HUMANOS : 18
Como principais adversidades na investigação destes crimes podemos identificar12
A ausência do entendimento do tráfico na sua total dimensão, enquanto problema
social solidário, em regra e apesar de na actualidade se ir esbatendo este domínio, o Tráfico
de Seres Humanos é encarado como um problema de um conjunto reduzido de pessoas e
cujas dimensões não afectam o social, como um todo; A frequente falta de conhecimento
dos investigadores em matéria de investigação do tráfico de seres humanos e desafios
inerentes, que muitas vezes leva a uma identificação tardia do crime de tráfico e
consequentemente à já inexistência da prova;
A dificuldade em obter o depoimento das vitimas que na maior parte das vezes é
inconsistente e confuso dada a sua condição física e psicológica diminuída;
A barreira linguística, um conjunto significativo de vítimas sinalizadas não são de
nacionalidade portuguesa e os conhecimentos da língua nacional são limitados ou nulos, o
que dificulta a sua capacidade de se expressarem ou comunicar a sua situação;
Desconhecimento do ambiente social externos. O facto de terem sido deslocadas do seu
país, provoca nas vítimas uma insegurança acrescidas limitando ainda mais a sua
possibilidade de interagir com as instituições/organizações mais preparadas e ajustadas
para quebrar o ciclo de exploração a que foram submetidas.
A complexidade do local do crime que frequentemente se distribui por diferentes
espaços; A dificuldade em obter o depoimento das vitimas que na maior parte das vezes é
inconsistente e confuso dada a sua condição física e psicológica diminuída; O facto da
prova testemunhal ser muito difícil de lograr devido ao forte receio em depor contra os
traficantes de índole reconhecidamente perigosa. E finalmente a natureza do crime
altamente organizado, muitas vezes com agentes do crime infiltrados nas próprias forças
policiais, funcionários dos serviços de estrangeiros e fronteiras e restantes operadores
forenses.
12 Extraídos e adaptados de: U.S. Department of Justice (2006), Report on Activities to Combat Human Trafficking – Fiscal Years 2001-2005, Washington, DC, p. 12.; Deborah Weisel(2005), Analyzing Repeat Victimization, Problem-Oriented Guides for Police e Problem-Solving. Tools Series N.º 4, U.S. Department of Justice, Washington, DC.
JOANA AZEVEDO DA COSTA TRÁFICO DE SERES HUMANOS : 19
A protecção da vítima/testemunha
A segurança da vítima é um elemento fundamental a considerar que deverá
afigurar-se objectivo primordial.
O Tráfico de pessoas implica uma série de riscos diferentes dos riscos associados à
generalidade de outras investigações criminais. Os operadores forenses têm um claro dever
humanitário de proteger as vítimas de crimes de tráfico.
Dever esse decorrente de uma serie de fundamentos legais internacionais, incluindo
a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e o
Protocolo contra o Tráfico de Pessoas.
O Artigo 24.º da Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional
exige que os Estados Partes adoptem, dentro das suas possibilidades, uma série de
«medidas apropriadas para assegurar uma protecção eficaz contra eventuais actos de
represália ou de intimidação das testemunhas que, no âmbito de processos penais,
deponham» sobre infracções previstas naquela Convenção «e, quando necessário, aos seus
familiares ou outras pessoas que lhes sejam próximas.»
O Artigo 25.º da Convenção exige que os Estados Partes adoptem, segundo as suas
possibilidades «medidas apropriadas para prestar assistência e assegurar a protecção às
vítimas» de tráfico de pessoas, «especialmente em caso de ameaça de represálias ou de
intimidação».
A Convenção alarga a protecção de testemunhas aos seus familiares ou a pessoas
que lhes sejam próximas incluindo todas as testemunhas, não apenas as
vítimas/testemunhas. A protecção de testemunhas em casos de tráfico de pessoas requer
uma dupla abordagem, que envolve, por um lado, proteger a segurança física da
testemunha e, por outro, conceder tal protecção e apoio à medida que se revele necessário.
O objectivo global desta abordagem é maximizar as hipóteses de a testemunha cooperar e
garantir que a cooperação tem a melhor qualidade possível.
O crime de tráfico de pessoas tem uma série de características que o tornam
diferente dos outros crimes. Isto significa invariavelmente que as medidas de protecção de
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testemunhas em casos de tráfico de pessoas podem ser ligeiramente diferentes da protecção
de testemunhas noutros casos.
A segurança física de uma testemunha é a primeira preocupação do procedimento
criminal e continuará durante e para além da conclusão deste.
Assegurar a protecção física pode ser um grande desafio por várias razões,
principalmente quando é necessário assegurá-la às vítimas de tráfico e às pessoas que lhes
são próximas mas que se encontram noutras jurisdições.
A Convenção reconhece também que as vítimas necessitam de apoio e protecção
para além da sua função como testemunhas.
A necessidade de facultar apoio e protecção às vítimas não depende do facto de
serem ou não testemunhas num caso. Facultar apoio a vítimas que inicialmente não
queriam ser testemunhas poderá ajudar a encorajá-las, a determinada altura, a
testemunharem.
No ordenamento jurídico nacional a Lei 93/99 de 14/06 alterada pela Lei nº
29/2008 de 04/07, e pela Lei n.º 42/2010 de 3/09 (Lei de Protecção de Testemunhas) regula
a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal quando a sua
vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor
consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a
prova dos factos que constituem objecto do processo.
Em consonância com a supra referida Convenção, estas medidas podem abranger os
familiares das testemunhas, as pessoas que com elas vivam em condições análogas às dos
cônjuges e outras pessoas que lhes sejam próximas.
A Lei de Protecção de Testemunhas prevê ainda medidas que se destinam a obter,
nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente
vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo acima
descrito.
Este diploma encontra a sua origem no normativo constante do n°2 do art.139° do
CPP, com a epígrafe Imunidades, prerrogativas e medidas especiais de protecção, que
impõe o estabelecimento de regras de protecção de testemunhas.
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A lei prevê ainda medidas pontuais de segurança como por exemplo a indicação no
processo de residência diferente da residência habitual ou que não coincida com os lugares
de domicílios previstos na lei civil; ser assegurado transporte à vitima em viatura fornecida
pelo Estado para poder intervir em acto processual, protecção policial extensível a
familiares ou a pessoa que viva com a vítima em condições análogas às dos cônjuges etc.,
sempre que ponderosas razões de segurança o justifiquem e estejam em causa crimes que
devam ser julgados em tribunal colectivo ou pelo júri ( art. 20.º).
Em casos especiais como os em que os depoimento ou as declarações digam
respeito a crimes de tráfico de pessoas, exista grave perigo para a vida, a integridade física
ou a liberdade e, em que o depoimento ou as declarações constituíam um contributo que se
presuma ou que se tenha revelado essencial para a descoberta da verdade, a testemunha, o
seu cônjuge, ascendentes, descendentes ou irmãos, a pessoa que com ela viva em
condições análogas à dos conjugues ou outras pessoas que lhe sejam próximas podem
beneficiar de um programa especial de segurança (art. 21.º)
Podem fazer parte do programa especial de segurança, entre outras, medidas como
o fornecimento de documentos emitidos oficialmente de que constem elementos de
identificação diferentes dos que antes constassem ou devessem constar dos documentos
substituídos, alteração do aspecto fisionómico ou da aparência do corpo do beneficiário,
concessão de nova habitação, no País ou no estrangeiro, pelo tempo que for determinado,
concessão de um subsídio de subsistência por um período limitado etc. (art. 22.º)
No que concerne a vítimas especialmente vulneráveis, condição aferida atenta a
diminuta ou avançada idade da vítima, do seu estado de saúde ou do facto de ter que depor
ou prestar declarações contra pessoas da própria família ou de grupo social fechado em que
esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência, a autoridade judiciária
competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas
seja garantida participação da vítima no processo de forma espontânea e sincera.
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Conclusão
A visibilidade do crime de Tráfico de Seres Humanos, nas suas diversas vertentes
tem vindo nos últimos anos a aumentar, tendo-se assumido como um dos temas centrais da
agenda política de vários governos e organizações internacionais.
No entanto, o combate a este flagelo está longe de ser efectivado, e urge apostar na
formação de prevenção, sensibilização e combate ao Tráfico de Seres Humanos de todos os
intervenientes no processo penal.
O tráfico de pessoas traduz-se numa grave violação dos direitos humanos e a sua
prevenção e repressão exigem necessariamente uma abordagem multidisciplinar e medidas
de apoio e protecção às vítimas, envolvendo entidades governamentais e da sociedade
civil, numa estratégia de acção conjunta.
O crime de Tráfico de Seres Humanos é um crime complexo que apesar de
facilmente confundível e subsumível a outros tipos de crime, encerra em si mesmo um
conjunto de especificidades essenciais ao seu diagnóstico precoce e identificação.
Conhecer o crime de tráfico de pessoas passa por valorizar os indícios, admitir a
existência desta realidade, concertar esforços para a sua erradicação, e acima de tudo não
permitir que potencial vítima alguma seja tratada como um(a). criminoso(a).
O sentimento de realização da Justiça é realmente importante para a recuperação da
vítima. A vítima merece no mínimo sentir que os órgãos de polícia criminal, advogados e
procuradores da Republica fizeram todos os esforços possíveis no sentido de melhor acusar
e chegar à prova do crime obtendo a condenação do traficante.
Escreve-se sempre pouco sobre o Tráfico de Seres Humanos, a cruel realidade não
se retrata em palavras, e as histórias das vítimas, chocantes, trágicas muitas vezes fatais,
não são contadas vezes suficientes…
No entanto, se alguma breve linha escrita tiver o condão de despertar mais uma
consciência para a existência e necessidade de combate deste crime hediondo, então estará
dado mais um passo neste longo e sinuoso caminho de defesa e efectivação dos Direitos
Humanos.
JOANA AZEVEDO DA COSTA TRÁFICO DE SERES HUMANOS : 23
Bibliografia
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TEIXEIRA, MARCO Tráfico de Pessoas, da Percepção Social à Realidade Policial, in Tráfico
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JOANA AZEVEDO DA COSTA Advogada
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