tragédia em praça pública

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TEXTOS: TIÃO MAIA FOTOS: REGICLAY SAADY E les começaram a chegar aos poucos, em peque- nos grupos. No início, há cerca de um ano, o maior grupo contava cerca de 150 in- divíduos. Parecia uma questão emergencial. Hoje, a ameaça é de permanência e os grupos de recém-chegados, que não param de crescer, já contam cerca de 1.500 pessoas, incluindo mu- lheres grávidas e crianças, todos famintos, muitos portadores de doenças graves, fugindo da pobreza, da epidemia de cóle- ra e de Aids, da violência e de um país devastado pela miséria e por um terremoto de 7,0 na escala Richter, que atingiu pra- ticamente todo seu território e provocou a morte de pelo me- nos 100 mil pessoas, 300 mil feridos e mais de um milhão de desabrigados. São refugiados do Haiti, que vêm entrando no Brasil através do Acre numa fuga desesperada em busca de solidariedade e trabalho. Eles escolheram o município de Bra- sileia, na fronteira com a Bolívia e o Peru, como ponto de parada para reiniciar suas vidas, mas ali estão enfrentando situações tão adversas quanto a que vivencia- ram em seu país. Com suas tranças negras sempre a adornar um sorriso - e sorriso belo oferecido a quem quer que seja, Hanflor é uma graça de criança. Há três meses, mesmo que tenha desembarca- do em solo brasileiro de forma clandestina como todos os seus patrícios, ela é (pelo sorriso e pelos beijos que vive a disparar para quem está à sua volta), pro- vavelmente, a personagem mais popular de Brasileia, quase uma unanimidade ao ponto de várias famílias da comunidade estarem dispostas a adotá-la. Aos 2 anos de idade, Hanflor também é haitiana. E refugiada. Com seus passinhos miúdos e sempre segurando a mão de quem se dispõe a acompanhá-la, a sorridente Hanflor tem nas ca- minhadas pelas ruas de Brasileia um de seus passatempos prefe- ridos. O mesmo passatempo de seus patrícios adultos, que tam- bém não têm o que fazer, mas nenhum motivo para sorrir. De tanto caminhar pelas ruas, dia e noite, como perdi- dos, eles já foram comparados a vampiros, uma clara referên- cia preconceituosa à prática do vodu, uma crença sincrética haitiana que combina elemen- tos do catolicismo e de religi- ões tribais da África, com fortes semelhanças com o candomblé praticado no Brasil. O principal elemento da crença invoca ritos tribais nos quais um feiticeiro crava agulhas em um boneco de pano de modo a fazer com que a vítima ali representada, mes- mo a quilômetros de distância, sofra dores e doenças terríveis. “O preconceito é o grande mal da sociedade contemporânea”, filosofa o padre Rutemar Cris- pim, pároco de Brasiléea e que tem sido, a despeito de algumas críticas de fiéis católicos, um ponto de apoio às centenas de haitianos que chegam ao muni- cípio todas as semanas. A gran- de maioria dos haitianos acam- pados em Brasiléia, no entanto, está vinculada às religiões cristãs pentecostais. O problema dos haitianos no município, aliás, não é novo. Começou logo após o dia 12 de janeiro de 2010, quando ocorreu aquele que foi classificado como um dos maiores terremotos já registrados na história da huma- nidade e que, além da tragédia humana, veio chafurdar ainda mais a combalida economia de um país de dez milhões de habi- tantes historicamente espoliados por seus colonizadores (Cristó- vão Colombo já aportara por lá em 1492) e que lidera o ranking da pior economia das Américas e com muita chance de figurar en- tre as piores do mundo. De acor- do com números divulgados por agências que estudam o desen- volvimento internacional, mais de 80 por cento da população do Haiti vive hoje com menos de um dólar diário, o número míni- mo estabelecido pela Organiza- ção das Nações Unidas (ONU) para diagnosticar as sociedades e economias classificadas como as que vivem abaixo da linha da pobreza absoluta. A se confirmar esses números, o Haiti é uma tra- gédia. Uma hecatombe social. Haitianos que usam o Acre como rota de fuga da miséria em seus país, transformam Brasileia em campo de refugiados, e município está à beira do caos em praça pública Tragédia Refugiados haitinaos chegam ao Acre diariamente às centenas trazendo mulheres grávidas e crianças como Hanflor, de 2 anos Página 20 Rio Branco – Acre, TERÇA-FEIRA, 29 de novembro de 2011

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Tragédia em praça pública - Espcial Jornal Página 20

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Page 1: Tragédia em praça pública

�TexTos: Tião Maia FoTos: Regiclay saady

Eles começaram a chegar aos poucos, em peque-nos grupos. No início,

há cerca de um ano, o maior grupo contava cerca de 150 in-divíduos. Parecia uma questão emergencial. Hoje, a ameaça é de permanência e os grupos de recém-chegados, que não param de crescer, já contam cerca de 1.500 pessoas, incluindo mu-lheres grávidas e crianças, todos famintos, muitos portadores de doenças graves, fugindo da pobreza, da epidemia de cóle-ra e de Aids, da violência e de um país devastado pela miséria e por um terremoto de 7,0 na escala Richter, que atingiu pra-ticamente todo seu território e provocou a morte de pelo me-nos 100 mil pessoas, 300 mil feridos e mais de um milhão de desabrigados. São refugiados do Haiti, que vêm entrando no Brasil através do Acre numa fuga desesperada em busca de solidariedade e trabalho. Eles escolheram o município de Bra-sileia, na fronteira com a Bolívia e o Peru, como ponto de parada para reiniciar suas vidas, mas ali

estão enfrentando situações tão adversas quanto a que vivencia-ram em seu país.

Com suas tranças negras sempre a adornar um sorriso - e sorriso belo oferecido a quem quer que seja, Hanflor é uma graça de criança. Há três meses, mesmo que tenha desembarca-do em solo brasileiro de forma clandestina como todos os seus patrícios, ela é (pelo sorriso e pelos beijos que vive a disparar para quem está à sua volta), pro-vavelmente, a personagem mais popular de Brasileia, quase uma unanimidade ao ponto de várias famílias da comunidade estarem dispostas a adotá-la. Aos 2 anos de idade, Hanflor também é haitiana. E refugiada.

Com seus passinhos miúdos e sempre segurando a mão de quem se dispõe a acompanhá-la, a sorridente Hanflor tem nas ca-minhadas pelas ruas de Brasileia um de seus passatempos prefe-ridos. O mesmo passatempo de seus patrícios adultos, que tam-bém não têm o que fazer, mas nenhum motivo para sorrir.

De tanto caminhar pelas ruas, dia e noite, como perdi-dos, eles já foram comparados a vampiros, uma clara referên-

cia preconceituosa à prática do vodu, uma crença sincrética haitiana que combina elemen-tos do catolicismo e de religi-ões tribais da África, com fortes semelhanças com o candomblé praticado no Brasil. O principal elemento da crença invoca ritos tribais nos quais um feiticeiro

crava agulhas em um boneco de pano de modo a fazer com que a vítima ali representada, mes-mo a quilômetros de distância, sofra dores e doenças terríveis. “O preconceito é o grande mal da sociedade contemporânea”, filosofa o padre Rutemar Cris-pim, pároco de Brasiléea e que

tem sido, a despeito de algumas críticas de fiéis católicos, um ponto de apoio às centenas de haitianos que chegam ao muni-cípio todas as semanas. A gran-de maioria dos haitianos acam-pados em Brasiléia, no entanto, está vinculada às religiões cristãs pentecostais.

O problema dos haitianos no município, aliás, não é novo. Começou logo após o dia 12 de janeiro de 2010, quando ocorreu aquele que foi classificado como um dos maiores terremotos já registrados na história da huma-nidade e que, além da tragédia humana, veio chafurdar ainda mais a combalida economia de um país de dez milhões de habi-tantes historicamente espoliados por seus colonizadores (Cristó-vão Colombo já aportara por lá em 1492) e que lidera o ranking da pior economia das Américas e com muita chance de figurar en-tre as piores do mundo. De acor-do com números divulgados por agências que estudam o desen-volvimento internacional, mais de 80 por cento da população do Haiti vive hoje com menos de um dólar diário, o número míni-mo estabelecido pela Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) para diagnosticar as sociedades e economias classificadas como as que vivem abaixo da linha da pobreza absoluta. A se confirmar esses números, o Haiti é uma tra-gédia. Uma hecatombe social.

Haitianos que usam o Acre como rota de fuga da miséria em seus país, transformam Brasileia em campo

de refugiados, e município está à beira do caos

em praça públicaTragédia

Refugiados haitinaos chegam ao Acre diariamente às centenas trazendo mulheres grávidas e crianças como Hanflor, de 2 anos

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Rio Branco – Acre, TERÇA-FEIRA, 29 de novembro de 2011

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Uma tragédia que se de-senrola também a milhares de quilômetros do território haitiano. O Hotel Brasileia e a Praça Hugo Poli, no centro da cidade, são o palco desse teatro de horror que começa a incomodar a sociedade local e o próprio Governo do Estado. A propósito, é o dono do Ho-tel Brasileia, Sérgio Tuma, que revela a capacidade de ocupa-ção do lugar: 30 apartamentos com possibilidade de hospedar até três pessoas por cômodo. Como na última sexta-feira 25 de novembro, havia no local 340 pessoas, o resultado não poderia ser outro: uma visão de acampamento, cenas típi-cas de campos de refugiados: homens, mulheres e crianças, muitos dos quais que sequer se conheciam anteriormen-te, dormindo amontoados, de forma improvisada, sobre e sob mesas, pelos corredores, no jardim, onde fosse possível. Banheiros escassos, promiscui-dade absoluta, visão dos cam-pos de concentração de triste memória para a humanidade e algo inconcebível para a socie-dade contemporânea. Um au-têntico cenário de guerra. De uma guerra pela sobrevivência com cenas que se espalham por

Um cenário de guerraoutras hospedarias da cidade e que se completam com mulhe-res esquálidas abanando foga-reiros improvisados nos quin-tas nos quais tentam cozinhar um pouco de comida desde que o Governo do Estado e a sociedade local, sem controle da situação, passaram a dimi-nuir a ajuda e assistência a um número de refugiados que só cresce a cada dia. “A gente não pode prever o número de re-feições diárias porque todo dia o número de pessoas cresce”, diz a dona do restaurante que fornece parte das refeições pa-gas pelo governo. “O grande problema envolve as crianças, que não comem a comida tra-dicional. Elas precisam de leite, de frutas e de alimentos me-nos sólidos”, diz dona Concei-ção Silva, dona do restaurante “Bom Sucesso”.

Um problema que, naquele dia de sábado, 26 de novem-bro, iria aumentar com a che-gada de novos 27 refugiados, entre os quais quatro crianças. Os 27 novos problemas fo-ram recebidos, como ocorre a cada chegada de novos grupos, com efusivas manifestações de apreço, com direito a gritos e danças tribais de seus patrícios. Eles chegam quase sempre da

mesma maneira: nos finais de semana, na calada da noite (quando a fiscalização da Polí-cia Federal, por falta de estru-tura, é arrefecida), em táxis bo-livianos contratados assim que desembarcam em Iñapari, em território peruano, e que per-correm a chamada “Estrada do Tráfico”, já em território boli-viano, até a chegada a Cobija e de lá para Brasileia. A Secreta-ria de Estado de Justiça e Di-reitos Humanos (Sejudh), que monitora a questão dos refu-giados, trabalha com informa-ções de que os haitianos, para chegar ao Brasil, estão sendo orientados pelos chamados “Coiotes”, mercenários que atuam na fronteira do México com os Estados Unidos, que cobram pela imigração ilegal para território norte-america-no e que estariam expandindo seus negócios com os haitia-nos tangidos para o Brasil. “Temos informações de que os mercenários cobram US$ 1.500 para retirarem os refu-

giados do Haiti e trazê-los até a fronteira com o Brasil”, disse o secretário de Justiça e Direi-tos Humanos, Nilson Mourão. De acordo com o secretário, os refugiados estão deixando o Haiti de avião até a República Dominicana, de lá voam para o Panamá, passam pelo Equador e chegam ao Peru. De Lima ou de Cusco, viajam de carro até Porto Maldonado e daí a Iñapari, capital da província de Tahuamanu, de onde seguem até a fronteira com o Acre. Diante da chegada de novos

grupos de refugiados, o fun-cionário público escalado pelo governo do Estado como o as-sessor para assuntos relaciona-dos aos haitianos, Damião Pa-cífico, incubido de por alguma ordem naquele caos, pergunta, desolado, ao repórter “Quan-do isso vai parar?

Quando esta reportagem estava sendo escrita, o gover-nador Tião Viana anunciava que estava em Brasília, prestes a ser recebido pelo ministro das Relações Exteriores, para tratar do assunto.

Desesperada, refugiada haitiana improvisa a feitura da ração diária no fundo do quintal de uma pensão em Brasileia

No cenário típico de acampamento de refugiados, homens,

mulheres e crianças dormem amontoados no Hotel Brasileia

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ESPECIAL

Há todos os tipos de pro-fissionais entre os imigrantes. A grande maioria, entre os ho-mens, está na faixa etária dos 20 a 45 anos. São marceneiros, carpinteiros, pintores, pedrei-ros, músicos e até estudantes de Direito – todos no auge de sua força de trabalho. As mulheres têm profissão mais modesta, ge-ralmente vinculadas a atividades domésticas. Mas há também ca-beleireiras e até uma jogadora de futebol, Destina Anexante, de 28 anos, que chegou a jogar na seleção oficial feminina haitiana e que foi obrigada a deixar o fu-tebol por pressão de seus pais, que não admitiam uma mulher praticando um esporte atribuído no Haiti apenas aos homens, e também porque, como o terre-moto, a seleção nacional tam-bém se desintegrou. Destina espera que, no Brasil, onde che-gou no último dia 26 como inte-grante do grupo de 27 novos re-fugiados, tenha uma chance de mostrar suas habilidades como jogadora. Seu maior sonho, cla-ro, é ver de perto (e quem sabe jogar a seu lado) a alagoana de Dois Riachos Marta, pelo ter-ceiro ano consecutivo eleita pela Fifa a melhor jogadora de fute-bol do mundo.

No meio de um cenário de guerra, Hanflor e os amiguinhos de sua idade brincam alheios à desolação e à tristeza. É a alegria da menina que faz sua popula-ridade na cidade. Agentes fede-rais, funcionários da imigração, enfermeiros e todas as demais pessoas que mantêm contato com ela e são aquinhoados com seus beijos, querem colocá-la no colo, tirar fotografias, beijá-la. “Eu vou ficar muito triste quan-do ela for embora. Ela é uma graça mesmo”, disse Margarete Tuma, a irmã do dono do Hotel Brasiléia, e que mora em frente à praça onde os refugiados cos-tumam se reunir. “Praticamente toda cidade quer ficar com ela”.

A situação de Hanflor é dia-metralmente oposta a de seus patrícios. Em função do núme-ro de refugiados e da chegada cada vez freqüente de novos grupos, já há quem defenda, abertamente, a expulsão dos haitianos. É o caso do deputado estadual Astério Moreira (PRP), que vem a ser cunhado da pre-feita de Brasileia, Leila Galvão, o qual não esconde o descon-forto com a presença dos haitia-nos no município. “Isso não vai poder continuar. A cidade está à beira do caos”, denunciou o deputado, que faz parte da ban-cada evangélica na Assembleia Legislativa. Mais moderado, o vereador João Raimundo Araú-

Políticos já defendem a expulsão

Ídolos do futebol seriam a causa da atração pelo Brasil

O futebol, aliás, parece ser o elo que liga os haitianos ao Bra-sil. Sociólogos têm dito que par-te da preferência dos refugiados pelo Brasil se deve ao contato dos haitianos com militares do Exército Brasileiro desde que os nossos soldados passaram a integrar a missão de paz das Nações Unidas no país, em abril de 2004, para restaurar a ordem após um período de insurgência e de violentos conflitos causa-dos pela deposição do então presidente Jean-Bertrand Aris-tide. As outras razões seriam a falta de fiscalização nas fron-teiras do país e o reconhecido sentimento de acolhida e solida-riedade dos brasileiros. Pode ser, mas são os próprios refugiados

que informam a principal razão de sua escolha pelo Brasil na hora de abandonar o Haiti: o fu-tebol e a sensação de algum jeito de se aproximar, física e geogra-ficamente, de ídolos como Ro-naldo “Fenômeno”, Ronaldinho e Robinho.

É o que revela o estudante de direito haitiano Esdras Hel-ton, de 30 anos. Há sete meses vivendo no Brasil, professor de inglês em Rio Branco, ele já se comunica em bom português e, aos finais de semana, vai a Brasi-leia ministrar aulas sobre a língua oficial e a cultura para seus com-patriotas. Aulas ministradas em criolo e francês, as duas línguas oficiais do Haiti. Segundo ele, nove entre dez haitianos ado-

ram a Seleção Brasileira e tem nos dois Ronaldos, mesmo que um deles tenha se aposentado, e em Robinho seus principais ídolos. “Acho que isso começou quando os haitianos vieram de perto a seleção e os jogadores brasileiros que tanto admiram”, disse Esdras, se referindo ao jogo realizado em 2004, com a seleção sob o comando Car-los Alberto Parreira, em que o Brasil, com dois gols de Roger, três de Ronaldinho Gaúcho e um de Nilmar, venceu a frágil seleção haitiana, que então ocu-pava o número 95 do ranking da Fifa. Apesar da derrota, os haitianos, que haviam feito festa para os brasileiros logo na che-gada da seleção, continuaram a festejar os brasileiros pelas ruas de Porto Príncipe mesmo após o jogo em que foram derrota-dos por seis a zero. “Nenhum haitiano esquece aquele dia de alegria e felicidade”, diz Esdras, se virando para os compatriotas, sentados em círculo, pedindo a confirmação, em crioulo, sobre o que ele havia dito. Todos, em coro, incluindo as mulheres, res-pondem que sim, com a mão para cima, como um juramento.

Envergando uma camisa da seleção brasileira, com o escudo

da CBF (Confederação Brasi-leira de Futebol) sobre o pei-to, Chery Dienne, de 31 anos, está no Brasil na companhia de mais três irmãos. O orgu-lho de envergar uma camisa da seleção de futebol de seu coração só não é maior do que o orgulho de trabalhar e ganhar o dinheiro com o qual pretende ajudar o restante da família que ficou no Hai-ti, revela o agora operário da empresa Consórcio Taraua-cá, que trabalha no programa “Ruas do Povo”, em Epita-ciolândia. Chery e seus três irmãos são elogiados por sua dedicação ao trabalho pelo responsável pela obra, o en-genheiro Abdel Derze. “Eles são ótimos como operários. Se a gente disse que será pre-ciso varar a noite trabalhando, eles não prostetam nem fa-zem cara feia como os brasi-leiros. Trabalham com dispo-sição e alegria”, disse Abdel. “E o melhor é que a gente não precisa se preocupar com o grupo. Meu canal de comu-nicação é com o mais velho, que repassa a orientação aos irmãos. Na cultura deles, o mais velho será sempre o lí-der do grupo”, avaliou Abdel.

jo de Melo, o “Joãozinho”, não defende a expulsão pura e sim-ples dos refugiados, mas acha que alguma coisa precisa ser feita. “A estrutura de Brasileia é muito pequena para atender esta demanda por serviços bá-sicos, de saúde, de assistência. Isso é algo que tem ser assumi-do pelo Governo Federal”, dis-se o vereador. A prefeita Leila Galvão confirma que está muito preocupada. “A gente não sabe como isso vai parar porque te-mos informações de que mais refugiados estão desembarcan-do na fronteira e a caminho da nossa cidade”, disse.

Embora também não defen-da a expulsão dos refugiados, do alto de seu 1m50, o secretá-

rio Humanos do Acre, Nilson Mourão, vagava, na semana pas-sada, pelos corredores do Mi-nistério das Relações Exteriores, em Brasília, tentando chamar a atenção do governo federal para o problema, que é muito mais grave do que se pode imaginar, ele dizia. De posse de um re-latório ilustrado inclusive com fotografias com as que ilustram esta reportagem, o secretário confirmou que estão chegando também imigrantes de outros países como Gana, Tanzânia, Paquistão e Cuba. O mais grave de tudo, segundo o relatório do secretário, é que “muitos haitia-nos não estão passando pelos procedimentos sanitários de pra-xe, tais como exames e vacinas

recomendas”.Isso significa que, entre os

refugiados que chegaram ao Acre, seguramente há conta-minados com o vírus da Aids, doença que atinge pelos menos cinco por cento da população haitiana, segundo a Organiza-ção Mundial de Saúde (OMS). Como os haitianos doentes têm procurado o serviço público de saúde de Brasileia, sendo co-mum serem encontrados nas filas em busca de socorro, mui-tos pacientes brasileiros, que também precisam de cuidados médicos, estariam se recusando a procurador hospitais e centro de saúde, com medo de conta-minação. “Por isso, eu sugeri, em indicação na Câmara Muni-cipal, que a secretaria municipal de saúde estabeleça um dia e um horário específico para atender só os haitianos, porque muita gente da nossa sociedade não quer se misturar com eles, mes-mo nos centros de saúde, com medo de doenças como a Aids”, disse o vereador “Joãozinho”.

Ao pedir socorro ao go-verno federal para a questão, o relatório do secretário Nilson Mourão revela que, além das dificuldades na área de saúde, o governo está encontrando dificuldades na expedição de documentação para os refu-giados. Por falta de estrutura, a Polícia Federal em Brasileia ex-

pede apenas três protocolos de imigração por dia. Sem docu-mentos brasileiros, os refugia-dos não podem trabalhar. Sem alternativa de renda, começam a ser aliciados por traficantes de drogas que infestam a região. “Isso nos preocupa”, disse o delegado de polícia em Brasi-léia, José Alves. “O que ajuda é que, ao que consta, eles não tem uma índole criminosa”, admite o delegado. Mesmo as-sim, há quem diga que algumas mulheres refugiadas estariam se prostituindo, principalmente em Cobija, na Bolívia, onde os haitianos não vem encontrando qualquer tolerância ou solida-riedade. Homens e mulheres são expulsos e reclamam que sofrem extorsões.

Destina e sonho de jogar com Marta Chery: paixão pelo futebol do Brasil

Nilson Mourão denuncia

situação em Brasília

através de relatório

ilustrado

Foto: Tião Maia

“Joaozinho” propõe segregação

em postos médicos

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ESPECIAL

A história do Haiti remonta a 7000 mil anos. Os primeiros humanos a habitar esta ilha, conhecida como Quisqueya, seriam índios arauaques (ou taí-nos) e caraíbas. Em 5 de dezem-bro de 1492, Cristóvão Colom-bo chegou a uma grande ilha, à qual deu o nome de Hispaniola. Mais tarde passou a ser cha-mada de São Domingos pelos franceses. Dividida entre dois países, a República Dominicana e o Haiti, é a segunda maior das Grandes Antilhas, com a super-fície de 76.192 km² e cerca de 9 milhões de habitantes. Com 641 quilômetros de extensão entre seus pontos extremos, a ilha tem formato semelhante à cabeça de um caimão, pequeno crocodilo abundante na região, cuja “boca” aberta parece pron-ta a devorar a pequena ilha de La Gonâve. O litoral norte abre--se para o oceano Atlântico, e o sul para o mar do Caribe (ou das Antilhas).

Já no fim do século XVI, quase toda a população nativa havia desaparecido, escravizada ou morta pelos conquistadores. A parte ocidental da ilha, onde hoje fica o Haiti, foi cedida à França pela Espanha em 1697. No século XVIII, a região foi a mais próspera colónia francesa na América, graças à exportação de açúcar, cacau e café.

Após uma revolta de escra-vos, em 1794, o Haiti tornou--se o primeiro país do mundo a abolir a escravidão. Nesse mesmo ano, a França passou a dominar toda a ilha. Em 1801, o ex-escravo Toussaint Lou-verture tornou-se governador-

“Eu ama Brasil, mas um dia vai voltar para o Haiti”, diz, em português ainda claudican-te, Amos Saint Justem músico profissional (toca guitarra e pia-no), outro refugiado em busca de emprego. Ele quer saber dos repórteres que o entrevistam se há muitas casas noturnas em Rio Branco e se há espaços para músicos estrangeiros. Ele diz que ama a Música Popular Brasileira, admira Gilberto Gil e Caetano Veloso e revela que espera ganhar dinheiro no Bra-sil, mas, como diz, espera poder voltar ao Haiti um dia.

“Meu coração sempre será do Haiti”, diz o pintor de pa-redes Alex Juijkel. “Terei Brasil no coração, mas sou haitiano”, acrescenta, revelando o que pa-rece ser o sentimento da maioria de quem está, por contingências econômicas, sendo obrigado a aceitar uma segunda pátria.

Mas há também quem se divi-

O drama de quem perdeu tudo e, para sobrevier, tem que doar os filhos

haitiana rumo à América Latina. Grávida de oito meses, Fabe está separada do marido, Ronald Fi-listem, por questões grográficas. Com ajuda de Esdras Helton, o intérprete, Fabe diz que ama o marido e que também é amada,

mas que, por erro na hora do embarque no Equador, seu ma-rido foi parar em Tabatinga, no Amazonas (Estado que tem rece-bido também muitos refugiados haitianos), enquanto ela foi parar em Brasiléia. Desesperada, ela pensa em doar o filho que traz no ventre, assim que nascer. “Ela não diz que só não doará o filho

se reencontrar com o marido e se conseguir emprego”, afirma Esdras. Mesmo assim, há várias famílias interessadas na adoção. Afinal, as crianças haitianas, com suas tranças características, como é o caso de Hanflor, fazem su-cesso entre as famílias brasileiras. O sucesso almejado pelos haitia-nos adultos.

da ao meio, literalmente. É o caso de Fabe Luciana, de 30 anos. Mãe de dois filhos, um de oito anos, que ficou no Haiti, com os avós, e Isabelita, de pouco mais de um ano, que nasceu no Equador, logo após o início da diáspora

Haiti foi o primeiro país a abolir a escravidão-geral, mas, logo depois, foi de-posto e morto pelos franceses. O líder Jean Jacques Dessalines organizou o exército e derrotou os franceses em 1803. No ano seguinte, foi declarada a inde-pendência (o segundo país a se tornar independente nas Améri-cas) e Dessalines proclamou-se imperador.

Como forma de retaliação, em 1804, os escravistas euro-peus e norte-americanos man-tiveram o Haiti sob blo-queio comercial por 60 anos. Em 1815 Simon Bolívar refugiou-se no Haiti, após o fracasso de sua primeira tentativa de luta contra os espanhóis. Recebeu dinheiro, armas e pessoal militar, com a condição de que abolisse a escravidão nas terras que libertasse. Posterior-mente, para por fim ao bloqueio, o Haiti, sob o governo de Jean Pierre Boyer, cercado pela frota da ex-metrópole, con-cordou em assinar um tratado pelo qual seu país pagaria à França a quantia de 150 milhões de francos a título de indenização. A dívida depois foi reduzida para 90 milhões, mas assim mesmo isso exauriu a economia do país.

Após período de instabilida-de, o Haiti foi dividido em dois e a parte oriental - atual República Dominicana - reocupada pela Espanha. Em 1822, o presiden-te Jean-Pierre Boyer reunificou o país e conquistou toda a ilha. Em 1844, porém, nova revolta derrubou Boyer e a República

Dominicana conquistou a inde-pendência.

Da segunda metade do sé-culo XIX ao começo do século XX, 20 governantes sucederam--se no poder. Desses, 16 foram depostos ou assassinados. Tro-pas dos Estados Unidos ocupa-ram o Haiti entre 1915 e 1934, sob o pretexto de proteger os interesses norte-americanos no país. Em 1946, foi eleito um presidente negro, Dusmarsais

Estimé. Após a derrubada de mais duas administrações go-vernamentais, o médico Fran-çois Duvalier foi eleito presi-dente em 1957.

François Duvalier, conheci-do como Papa Doc, apoiado pe-los Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, instaurou feroz ditadura, baseada no terror poli-cial dos tontons macoutes (bichos--papões) - sua guarda pessoal -, e na exploração do vodu. Presi-dente vitalício, a partir de 1964, Duvalier exterminou a oposição

e perseguiu a Igreja Católica. Papa Doc morreu em 1971 e foi substituído por seu filho, Jean--Claude Duvalier - o Baby Doc.

Em 1986, Baby Doc decre-tou estado de sítio. Os protes-tos populares se intensificaram e ele fugiu com a família para a França, deixando em seu lu-gar o General Henri Namphy. Eleições foram convocadas e Leslie Manigat foi eleito, em pleito caracterizado por grande

abstenção. Manigat governou de fevereiro a junho de 1988, quando foi deposto por Nam-phy. Três meses depois, outro golpe pôs no poder o chefe da guarda presidencial, General Prosper Avril.

Depois de mais um período de grande conturbação política, foram realizadas eleições presi-denciais livres em dezembro de 1990, vencida pelo padre sale-siano Jean-Bertrand Aristide, ligado à teologia da libertação. Em setembro de 1991, Aristide foi deposto num golpe de Es-tado liderado pelo general Raul Cedras e se exilou nos EUA. A Organização dos Estados

Americanos (OEA), a Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) e os EUA impuseram sanções econômicas ao país para forçar os militares a permitirem a volta de Aristide ao poder.

Em julho de 1993, Cedras e Aristide assinaram pacto em Nova York, acordando o retor-no do governo constitucional e a reforma das Forças Armadas. Em outubro de 1993, porém, grupos paramilitares impedi-ram o desembarque de soldados norte-americanos, integrantes

de uma Força de Paz da ONU. O elevado número de refugia-dos haitianos que tentavam in-gressar nos EUA fez aumentar a pressão americana pela volta de Aristide. Em maio de 1994, o Conselho de Segurança da ONU decretou bloqueio total ao país. A junta militar empos-sou um civil, Émile Jonassaint, para exercer a presidência até as eleições marcadas para fevereiro de 1995. Os EUA denunciaram o ato como ilegal. Em julho, a ONU autorizou uma interven-ção militar, liderada pelos EUA. Jonaissant decretou estado de sítio em 1º de agosto.

Em setembro de 1994, for-ça multinacional, liderada pelos EUA, entrou no Haiti para re-empossar Aristide. Os chefes militares haitianos renunciaram a seus postos e foram amnistiados. Jonaissant deixou a presidência em outubro e Aristide reassumiu o País com a economia destroça-da pelo bloqueio comercial e por convulsões internas.

No período de 1994-2000, apesar de avanços como a elei-ção democrática de dois pre-sidentes, o Haiti viveu mer-gulhado em crises. Devido à instabilidade, não puderam ser implementadas reformas políti-cas profundas.

O atual presidente do Hai-ti é o cantor popular Michel Martelly, que assumiu em maio deste ano,. após um complica-do processo eleitoral. É a pri-meira vez que uma transferên-cia de poder se dá entre dois cidadãos eleitos pelo voto po-pular no Haiti.

(Fonte: Wikipedia)

Fabe, grávida, pensa em doar o bebê

Esdras (de camisa amarela) ministra aula sobre o Brasil aos patrícios refugiados

Amos procura emprego como músico