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SECRETARIA DA CASA CIVIL 1 TRANSCRIÇÃO DA SESSÃO PÚBLICA REALIZADA EM 09/12/2013 LOCAL: AUDITÓRIO DA ADUFEPE DEPOENTE: SYLVIA MONTARROYOS

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TRANSCRIÇÃO DA SESSÃO PÚBLICA REALIZADA EM 09/12/2013

LOCAL: AUDITÓRIO DA ADUFEPE

DEPOENTE: SYLVIA MONTARROYOS

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Sylvia Montarroyos

DVD 1

FERNANDO COELHO – (INÍCIO CORTADO NA GRAVAÇÃO) .. E eu gostaria de chamar pra prestar seu depoimento à Comissão Estadual de Memória e Verdade Dom Helder Câmara, Sílvia Montarroyos. (aplausos). Passo a palavra à Silvia, pedindo que ela se qualifique antes de prestar seu depoimento.

SILVIA MONTARROYOS – Muito obrigada, Dr. Fernando. Bom dia e antes de tudo o meu muito obrigada pela presença, sinto-me bem, sinto-me apoiada, estou entre amigos. O meu depoimento vai ser bem informal, eu sou uma pessoa muito simples, estou bem melhor, depois se quiserem fazer perguntas sintam-se à vontade. Muita coisa eu esqueci, mas no meu livro eu contei todos os detalhes do que eu passei, mas contei também que, devido a brutalidade, há coisas que me fizeram que... (Incompreensível, muito barulho) por um mecanismo de defesa me fugiu dos arquivos da memória, eu cheguei a fazer análise, inclusive regressão, pra ver se eu conseguia lembrar de tudo, mas algumas coisas eu consegui, outras não. E hoje em dia, eu já cheguei à conclusão que se, intuitivamente, a minha mente recusa a lembrança desses fatos, é por que é de tal forma uma lembrança tão forte que é melhor para mim, para o meu próprio equilíbrio emocional, não lembrar. Acho que a natureza é sábia, por que o que lembro já é demasiado forte, já é demasiado terrível, e já chega. Já basta. Vocês verão, está também no livro, agora com esse documento divulgado, que a Comissão, (incompreensível) a história do que aconteceu comigo, com pessoas que estiveram nos porões, e eu sou uma dessas pessoas sobreviventes. E sinto-me privilegiada, protegida por

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Deus por estar aqui contando a história. Muitas pessoas não conseguiram, muitos estão desaparecidos, outros estão mortos, outros não chegaram a ultrapassar como eu consegui, e mais uma vez não foi só graças a mim, eu contei com muita ajuda pra que isso acontecesse, até eu conseguir superar, (trecho inaudível, muito barulho, gravação ruim) só mesmo pras mulheres que estiveram comigo, dizer isso. Depois de tão humilhada, eu consegui estar aqui, não só uma pessoa equilibrada, que conseguiu pegar todos os pedacinhos que ficaram espalhados pelo chão, juntá-los, formar com eles outra pessoa. Eu tive que fazer isso lá fora, por que aqui era impossível, só depois da anistia, mas a anistia foi em 79, a minha prisão foi em 64, a anistia foi muitos anos depois, não é? No entanto eu fiz a terapia lá fora, por que não podia ficar aqui dentro, parada, prejudicada, digamos assim, congelada, esperando que um dia eu pudesse voltar ás atividades e lá fora eu voltei a estudar, me envolvi em várias coisas, casei, tive meus filhos, atualmente tenho dois netos, digo isso com o maior orgulho do mundo. Pronto. A minha vida atingiu uma volta à normalidade, não foi fácil, passei por muita coisa, inclusive a clandestinidade que é um outro martírio, quem passou por ela sabe disso. Temos que ter uma outra identidade, não podemos dizer quem somos, por que tem um bocado de gente à nossa procura, nós temos que inventar uma história e nos conscientizar que somos uma pessoa que não somos, um nome novo, um nome pro pai, um nome pra mãe, uma infância que não é nossa, irmãos que não são os nossos, ou falta de irmãos, eu tenho 6 irmãos, e toda uma história que não é a nossa. “Você é de onde?” e eu ter que dizer que era do sul, por que apesar de eu estar tanto tempo lá fora, eu faço questão de não perder isso, daqui, por que eu sou daqui, eu sou recifense com muito orgulho, tanto é que mesmo na clandestinidade, com outra vida, eu não podia voltar, mas mesmo assim eu voltei, pelo menos uma vez por ano, pisar no meu chão, rever os meus pais, a minha gente, o meu povo, meus amigos. Eu nunca me desliguei disso. Sempre, pelo menos uma vez por ano eu vinha aqui. Sabia que estava me expondo a um perigo muito grande de prisão, de volta às torturas, de morte, mas vim. Pra mim o Brasil é demais. Nunca deixarei de ser brasileira, nem de ser nordestina. O que eu vou contar eu não sei por onde comece, se alguém fazendo uma pergunta ou eu começar a relatar, não sei... Eu revi hoje, com muita alegria uma prima minha que eu quase não conhecia. O destino faz isso com a gente. Quando a gente volta alguns estão mortos, (...?...), Recife não é a mesma que eu deixei quando saí. Havia uma Galeria de Arte do Recife, ali, em frente aos Correios, muita coisa deixou de existir, não está mais ali, há muita coisa também que não existia e que agora estão. As coisas mudam, nós também mudamos. Eu não posso dizer que sou a mesma que fui, o tempo passou, passou pra todos e passou pra mim também. Então essa prima, ela veio me perguntar como é que eu já tinha aos dezessete anos essas ideias, por que lá em casa o meu pai, o meu avô, ela disse - “É por que o meu pai, não deixava a gente se meter em nada.” Na minha casa, nós vivíamos numa grande casa, éramos muitos, eram sete irmãos, pai, mãe, avô, avó, bisavó, tinha duas avós, a mãe do meu pai e a mãe da minha mãe, e mais uma série de empregados por que nós tínhamos condições econômicas bem prósperas, nós vivíamos na alta sociedade, fui debutante aos 15 anos no Clube Português do Recife, que ainda existe, de modo que nunca tivemos problemas financeiros, mas como disse Simone de Beauvoir quando esteve aqui em Recife com Jean Paul Sartre, há muitos anos atrás, eu acho que ainda estava aqui nessa altura, ela disse que é interessante aqui no Brasil haver milionários de esquerda. E isso é verdade, é uma contradição, mas sempre existiu não só no

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Brasil, em outros países também do mundo. Mas aqui isso sempre foi uma tônica muito forte. Nós não éramos milionários, mas realmente havia assim na casa dos meus pais, não sei se pelo sentimento cristão, toda a família era muito religiosa, participando dos Congressos, mas havia um sentimento de solidariedade muito forte pelo mais pobre, pelo mais fraco, pelo oprimido, minha família sempre se importou com os que precisavam de ajuda, digamos assim. E minha mãe (...?...) das cozinheiras; minha mãe tinha mais de setenta afilhados, ajudavam nos aniversários, casamentos, contribuíam para os funerais. Nós éramos uma família de quem as pessoas gostavam e que nunca negou ajuda a quem precisava. Eu cresci vendo isso. Portanto pra nós esse sentimento de solidariedade, de apoio a quem precisava era uma tônica no dia a dia. Cresci estudando em colégios de freiras, fiz vestibular para a Universidade Católica para estudar Direito, e na Católica por que eu queria também fazer Teatro, na Belas Artes, mas Teatro pertencia a Universidade do Recife, à Escola Superior de Belas Artes do Recife, (...?...) então eu entrei na Católica e meus pais diziam que eu tinha que fazer uma Faculdade séria, como se teatro não fosse sério. Então eu tive que fazer o curso, eu passei num dos primeiros lugares, era muito boa aluna, sempre tinha sido, gostava muito de estudar, de escrever, desde pequenininha. Agora, meu irmão mais velho, Carlos Montarroyos, não sei se alguém aqui deve conhecê-lo, ele era já uma pessoa conhecida aqui em Pernambuco, bem mais velho do que eu, ele sempre foi de fazer política estudantil no Diretórios Acadêmicos, nos colégios mesmo que ele estudava, como depois na Faculdade. Ele até chegou a ser preso político no governo de Miguel Arraes, no primeiro mandato de Arraes, por estar mais a esquerda. Pronto, isso é uma coisa que (...?...) escreveu contra isso. Houve um confronto contra os latifundiários, em que morreram companheiros e eu sei que os meninos foram presos e muito bem tratados, (...?...) eles tinham tudo, colchões de mola, andavam livremente, tinham som, tratavam eles bem, a gente ia visitar e serviam cafezinho, era muito bom, só não podia sair de lá. E Arraes dizia, “Olhe, deixa eles aí, por que aí eles estão quietos. Não vai lhes acontecer nada”. Eu sei que depois eles foram libertados. Eu trabalhei pela libertação do meu irmão junto á Organização da qual ele fazia parte, que era o Partido Operário Revolucionário Trotskista – PORT – Seção Brasileira da 4ª Internacional, que na América Latina era dirigido por uma figura carismática chamada J. Posadas. Isso estava à esquerda do Partido Comunista, estava à esquerda do PCdoB, era uma das mais radicais. Quando eles estiveram presos, foram visitados na Casa de Detenção do Recife, hoje é Casa da Cultura graças a Deus, e então o advogado chamou os meninos de verdadeiros “mosquitos da revolução”. Eram todos estudantes, eram todos novinhos, 19,20 22 anos, nessa faixa etária. Eram muito idealistas, toda a nossa juventude foi muito idealista, a geração dos anos 60, anos 70. Eu tinha 17 anos. Eu tinha 16 anos quando já fazia política estudantil. Depois, aos 17, tentando libertar o meu irmão, participei de passeatas e tudo, mas quando eu menos esperava, acostumada a fazer tudo pra tirá-lo da Casa de Detenção do Recife, quando eu menos esperava já estava militando. Foi chegar na passeata, juntar com eles e pronto. Quando a gente sente já está de dentro. Não foi uma coisa que eu pedisse, que quero oficialmente entrar. E foi aí que eu vendo aí agora a minha prima, isso está contado no livro que eu escrevi, que na semana passada, no dia 5 foi lançado no Museu do Estado, e foi assim que meu irmão depois em um Congresso em São Paulo, eu fiquei de encontrar meu irmão depois, pois ainda tinha tarefas a fazer, e aconteceu o golpe entretanto, o golpe de estado. Eles querem chamar revolução mas não é revolução, por que revolução é

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feita pelo povo para o povo e aquilo foi imposto ao povo, de cima pra baixo, pelos militares, como uma resposta ao comício histórico de João Goulart, o comício do dia 13 de março, não sei se alguém aí lembra desse comício, onde Jango esteve accessível a todas as reivindicações, legalização do Partido Comunista, estatização das empresas imperialistas, não pagamento da dívida externa, enfim, ele dizia sempre sim, ao lado de D. Maria Tereza, mais linda do que nunca, a mulher dele era belíssima, ali, representando a mulher brasileira, e ele discursou. Discursaram verdadeiros líderes carismáticos do Brasil, estavam o próprio Miguel Arraes de Alencar, Leonel Brizola, o próprio Jango, Luís Carlos Prestes, Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro, e o Francisco Julião que era o homem aqui dos camponeses. Nessa época, havia em Pernambuco uma atividade popular muito grande, no final do governo populista de Arraes, que se assemelhava, eu vim saber disso depois quando estive aqui, ao (...?...). Havia atividades aqui por todos os lados em Pernambuco. Haviam até padres que estavam muito dentro da luta popular, da luta do povo. Em Jaboatão, do lado de lá, aqui também, um líder nosso maravilhoso que já morreu, infelizmente, foi Gregório Bezerra, em Palmares. Então tudo isso provocou uma apoteose muito grande no povo brasileiro e nós sabíamos que uma resposta ia chegar por que não éramos assim ingênuos. Éramos muito novos, mas não éramos ingênuos, nós tínhamos cabeça pra pensar e pensávamos muito. E sabíamos que a direita estava se articulando para responder de uma forma muito negativa aqui, como na verdade aconteceu. O comício foi no dia 13 e no dia 31 de março houve o golpe que apareceu para o povo no dia 1º de abril, como se fosse o dia das mentiras, não é? É golpe? Não, não é verdade, é 1º de abril. Era primeiro de abril, mas era realmente um golpe de estado, amanheceu com os tanques nas ruas, eu tinha um grande amigo que era Jonas Albuquerque, que saiu às ruas, era secundarista, tinha 16 anos, saiu as ruas com bandeiras e faixas, estávamos com Lei Marcial, houve rajadas de metralhadoras e ele caiu fulminado foi morto. Foi a primeira vítima da ditadura, foi Jonas, e o outro que era universitário, que era Ivan Aguiar, que também era muito novo, tinha 19/20 anos, (...?...). Depois disso, nós passamos para a clandestinidade, não fazíamos as coisas abertamente, as coisas eram feitas com muito mais cuidado, as tarefas, pichávamos nas paredes palavras de ordem, conseguíamos visitar a célula operária que tínhamos, as células estudantis, universitária e secundarista, íamos ao campo, só que com muito mais dificuldade, por que estávamos sendo vigiados, estávamos sendo seguidos. Um dia estávamos numa reunião, eu não estava participando, por que eu era muito novinha, eu era somente uma militante de base. Aquela reunião, era uma reunião de cúpula, era uma reunião do Comitê Regional do Nordeste então estavam os dirigentes só do Comitê Regional. Eu não era dirigente, eu era militante de base. Então eu estava dormindo, eles estavam reunidos e entre eles estava o dirigente principal da seção pernambucana, seção nordestina, que era o meu noivo, era estrangeiro, Pedro Maiakóvski, eu nunca soube o nome dele, só ouvia (...?...), era meu noivo, era dirigente, e não devia fazer perguntas. Por uma questão de segurança, isso era sagrado. Então ele era dirigente, e ele estava lá, era alto, louro, de olhos verdes, muito claros e, claro, ele não tinha o tipo aqui da nossa região. Foi um dos grandes erros da organização internacional mandar uma pessoa pro Nordeste, aqui pro Brasil, que ainda por cima era uruguaio, filho de russa com polonês, mas uruguaio, e que falava espanholado, o português ele até conseguia, mas com um sotaque forte, chamavam ele Galego, como a gente chama uma pessoa estrangeira e ainda por

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cima loura, chamavam Galego. Ele estava ali e nós fomos presos, eu estava dormindo, quando eles viram, quando sentiram que a polícia tinha cercado realmente a casa eles fugiram, cada um fugiu. Eu, dormindo, não sabia de nada, mas o instinto de preservação é muito forte principalmente quando você está dormindo. Ele lembrou-se e já podia ter escapado se não tivesse mudado de rumo. Então chegou a certa altura que ele já tinha alcançado praticamente a praia, que ele poderia então ter escapado como outro companheiro nosso vindo do sul pra reunir-se com o Comitê, esse escapou, e ele encontrou um ano depois e ele contou, no Rio de Janeiro, ele disse que quando ele já tinha chegado na praia, o Gustavo, que era como nós o chamávamos, vinha de lá, voltando pra casa correndo feito um louco, ele disse que no momento olhou aquilo e não entendeu: - “Só depois que me lembrei que você tinha ficado dormindo”. Eu acordei com um deles remexendo assim em cima do guarda roupa qualquer coisa, então eu tenho o seno muito leve e acordei quando senti uma presença dentro do quarto. E era o Marquinhos, que veio pro lançamento do meu livro, que eu não via há 49 anos, eu abracei ele muito forte. E eu perguntei, “O que é que houve Marquinhos?” e ele olhou pra mim assim assustado, por que ele nem se lembrava que eu estava ali e disse: “Tatiana”, era meu nome de guerra, “é a polícia, temos que fugir”. Disse isso e agarrou um revólver, que eu nem sabia, nunca soube que estava aliem cima do guarda roupa, e foi embora. Aí eu levantei, estava de camisola, calcei os chinelinhos e fui ver. Não tinha mais ninguém em casa, na cozinha, eles tinham se reunido na mesa, estavam lá as pontas acesas de cigarro no cinzeiro, uma cadeira caída, acho que na pressa que eles tinham saído, a porta aberta; então eu saí pela porta, fui até o nosso quintalzinho, tinha um murinho com um portão. O portão não se abria, estava com defeito. Quando eu estava tentando pular o muro eu vi Gustavo que estava voltando, estendeu os braços pra mim e então me ajudou a pular o portão e então estávamos fugindo de mãos dadas, e assim que começa o livro “Íamos de mãos dadas”, quando a polícia veio e havia em torno de nós os tiros. A polícia atirava muito. E nós sabíamos que a qualquer momento podia nos atingir. Então continuamos. Eu perguntei pra ele “Pra onde nós estamos indo?” E ele respondeu “Não importa. Pra qualquer lugar”. Continuamos até que eles nos encontraram. Então nos levaram pra casa, nos algemaram, eram muitos carros da polícia que estavam lá, estava lá pessoalmente o Álvaro da Costa Lima, antes de sairmos, ao voltarmos pra casa, Gustavo pediu educadamente que eles deixassem que eu tocasse de roupa por que eu estava de camisola, e ele disse “Ela vai sentir frio assim”, eles deixaram, eu troquei de roupa, depois saímos, fomos postos num jipe e depois eu vi que todos foram encontrados e postos naqueles carros e fomos. Só o dirigente sulista que tinha alcançado a praia, dormiu na praia e no outro dia foi a casa dos meus pais e disse o que tinha se passado mas eles já tinham passado lá antes, pelo seguinte: levaram-nos pra Secretaria de Segurança, deixaram os rapazes todos numa sala, e aí deixaram Gustavo noutra salinha. Eu quis ficar com ele e eles disseram que não, que ali só os homens. Eu era uma mocinha mesmo, muito menininha, vinda de colégio de freira, naquela época uma menina de 17 anos era o que hoje é uma menina de 8 anos. Eu era ingênua, inocente mesmo, eu só saía de casa com meus pais, ou com uma de minhas irmãs, mesmo o que se chama “carregar vela”, sempre tinha alguém acompanhando, não se ia pro cinema sozinha, não se ia pro dentista sozinha, meu avô levava a gente nos colégios, na faculdade e meu pai ia buscar, era isso. Então ele disse, que parecia uma menina, por isso que o delegado auxiliar, o Álvaro da Costa Lima me descreveu como perigosa

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terrorista de olhos diabolicamente ingênuos. Mas não eram diabolicamente ingênuos, eram mesmo ingênuos. A foto que está no livro, nesse livro aqui, que se eu puder mostrar... Essa foi a fotografia que me foi tirada na Secretaria de Segurança Pública quando fomos presos lá, eles ficharam, colheram as nossas impressões digitais e tiraram nossas fotos. Eu fugi nessa noite. Eu fugi por que a minha grande preocupação não era nem “eu quero escapar” por que eu sabia que se eles... Se eu ficasse ali, eles não iam ter muito contra mim e iam me soltar, por que eu não tinha antecedentes criminais, eu tinha os papéis em ordem, eu estudava, a minha família era muito bem quista na sociedade, meu avô inclusive era primo do general de cavalaria João Augusto Montarroyos, que eu até falei isso pra uma repórter do jornal do Comércio no outro dia e ele disse que eu era filha do general, não era, era primo do meu avô e meu pai trabalhava na Assembleia Legislativa de Pernambuco, eu coloquei isso no livro. O general era muito amigo do meu avô além de ser primo dele, e não havia nada contra mim, ao contrário, por exemplo, de Gustavo, que estava com os papéis irregulares, ele não estava mais legalmente no país por que tinha passado o prazo dele permanecer no país. Ele vinha de longe, ele era estrangeiro, com um nome eslavo, Pedro Maiakóvisk, eu achei que eles iam pensar que ele veio da União Soviética, sei lá o que eles iam pensar, e era o chefe da organização. Ele não podia ser preso, por essas razões e depois por que ele era o chefe e sendo chefe, se o prendessem ia ser muito pior pra organização do que se prendessem a mim, por que eu era uma militante de base. Ele ia pesar muito, a minha prisão não ia. Pra além da solidariedade humana e dos meus companheiros não ia ser uma grande perda pra organização ao passo que ele sim, ele era um dirigente. Então na hora que nós estávamos fugindo eu disse isso a ele. “Deixa-me sozinha e tenta escapar tu”, mas eu tinha uns passos muito pequenininhos, eu era pequena, até hoje sou, então eu andava devagarinho, e ele tinha que ir devagar pra acompanhar o meu passo. Ele tinha umas pernas muito longas, se fosse dar aqueles passos, ia me arrastar. Então era ele sozinho que tinha que tentar escapar. Eu disse a ele e ele disse: “Eu não vou lhe deixar sozinha.” Ele já tinha vindo de longe pra me pegar, não ia me deixar sozinha. E ficou comigo até o final, fomos presos juntos, levados pra lá juntos, mas eu estava preocupada com a vida dele, não era nem a segurança. Com a vida! Os caras poderiam mesmo assassiná-lo por que não iam nem precisar dar satisfações ao Uruguai, por que ele estava ilegalmente no país. E ninguém ia poder provar que ele estava no Brasil. A situação dele era ilegal, já tinha passado o período que tinha sido concedido pra ele ficar no país. Então eles podiam fazer o que quisessem. Eu estava preocupada com isso, e foi isso que me inspirou mais a fugir e eu consegui fugir nessa noite. Pela porta da frente, amanhecendo o dia, eu saí pelo corredor, alcancei o (...?...), estávamos em cima, na Secretaria de Segurança Pública, passei pelo guarda e o guarda praticamente não me viu, e eu dizendo comigo assim: “se perguntarem o que é que estou fazendo vou dizer que estou procurando o banheiro, que eu quero ir no banheiro”. Pronto. E então consegui, já estava amanhecendo, já tinham pessoas entrando, outras saindo, eu saí por onde vi pessoas saindo, civis como eu, e fui, e saí. Cheguei na casa dos meus pais que era na Rua dos Palmares, muito nervosa, chorando, então falei o que estava acontecendo. Então meu pai e minha mãe, falaram “Você tem que se esconder”. “Onde? Onde? Daqui a pouco eles batem aqui”. Aí fui pra casa de um tio da minha mãe que era chefe de polícia aposentado, era uma casa acima de qualquer suspeita, fiquei lá uns dias, mas não me davam nenhuma informação. Essa foto, tinha sido tirada, eu tinha sido deixada na salinha

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esquecida, não é, eles achavam que eu não tinha importância, houve um momento em que (...?...) eu disse: eu quero ir também. Ele disse, “Não, você fica aí.” Eu ouvia os gritos, ouvi barulhos de estocadas, barulhos horríveis, depois eles voltavam ensanguentados. Eu disse pros guarda: “Estão batendo neles”. Ele disse: “Não, são os ladrões que estão apanhando. Aqui não se bate em preso político”. Depois eles vieram, comprovando que realmente tinham batido neles, estavam com as roupas rasgadas e ensanguentadas, mais uma razão pra eu querer fugir. Bom, essa noite cheguei em casa, fui levada pra casa do meu tio, mas essa foto saiu no outro dia em todos os jornais, com o título “Perigosa terrorista fugiu da polícia – Procura-se”, e eu não sabia por que os meus parentes escondiam de mim pra me poupar. Só que eu não ficava sabendo que estava sendo procurada. Eu tinha uma leve ideia, mas não pensei que era tão importante assim, e não era, eles me deram uma dimensão que eu não tinha. E aí assim eu fui de casa em casa até que fui reconhecida e fui presa. Aí sim, aí a barra foi muito pesada, por que eles estavam furiosos comigo por que eu tinha feito uma desfeita pra eles, era uma menina que tinha ludibriado a vigilância deles, ainda por cima as câmaras de televisão filmaram minha recaptura e o delegado Álvaro da Costa Lima disse à televisão que os pais tivessem muito cuidado com suas filhas e não se enganassem com suas caras de inocentes, por que Tatiana tinha cara de ingênua mas era diabólica. E eu cuspi na cara dele. Eu fiquei revoltada e cuspi na cara dele e tiraram do ar, puseram um comercial, mas não conseguiram evitar que aquilo aparecesse na televisão. Ele ficou furioso, ele pessoalmente me queimou em todos os lugares e mais alguns com cigarros, ponta de cigarros acesas e charutos. Pronto. Recebi muita pancada ali, também, imensas, depois veio a ordem pra eu passar da cadeia pública para o exército. Eu corri praticamente todos os quartéis do Recife. Que eu lembre, (...?...), alguns testemunhas, soldados, foram se queixar a minha irmão, que trabalhava na, hoje não existe mais, Panair do Brasil, companhia de aviação, foram até lá dizer a ela, foram à Assembleia dizer ao meu pai, foram à minha casa também, soldados de lá do quartel que ficavam revoltados com o que estava acontecendo comigo. Então eu sei que foi quartel do Derby, quartel de Tejipió, 2ª Cia. De Guardas, não sei outros mais, mas juro que foram todos por que eles tentavam que eu desse depoimento e eu tinha comigo não falar. Pra mim a palavra de ordem que eu tinha de morrer, mas sempre cumprir, nem que tivesse que dar minha vida por isso, era não falar! E não falei. Não disse nem sequer como me chamava “Quem é você”? Calada, como se fosse cega, surda e muda. Eu não falei absolutamente nada. Nada! Aí era pancadaria pra ver se eu falava, como não conseguiam ia pra outro quartel, era novamente exposta a interrogatórios. Eles achavam que outro quartel conseguiria e aí eu ia de quartel em quartel e não conseguiam. Cada vez que passava pra outro quartel as torturas eram maiores, chegou ao ponto então em que resolveram me torturar na frente de Gustavo, que também tinha ficado calado até esse momento. Ele também não falou. Mas aí o trouxeram e diante dele três homens me estupraram. Eu estava no chão, eu lembrei desse fato já muito depois. Eu estava na casa de um amigo, escondida, clandestina no Rio de Janeiro, e de repente me lembrei, por que durante muito tempo ficou soterrado, por que foi terrível. Eu estava no chão, sangrando por todos os lados, um deles colocou o cotovelo no meu estômago, assim bem forte mesmo, quase que me colando ao chão, havia também joelhos que também me enterravam no chão, eu sangrava pelo nariz, pela boca, pelos ouvidos, pelo sexo mais que qualquer coisa, eu estava toda num banho de sangue. E eu ouvi a voz dele, lembro-me que

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nesse momento eu ouvi a voz dele “Parem! Vocês estão loucos? Vocês estão a mata-la.” Então eu desmaiei e quando voltei aos sentidos eu estava deitada, imersa num banho de sangue, com a cabeça no joelho dele, ele estava sentado, eu com a cabeça na perna dele, e ele olhava pra mim e chorava. Eu nunca o tinha visto chorar, ele era sempre muito alegre, muito risonho, muito otimista e eu perguntei o que me tinham feito. Eu não lembrava e fiquei sem lembrar durante muito tempo. E ele só me disse isso “Não te fizeram nada, por mais que quisessem, não te tocaram. Nem na ponta dos teus pés. Não aconteceu nada aqui e eles não te atingiram”. Era o sentimento dele. Era o sentimento dele por que era forte demais ele reconhecer o que tinha acontecido. E eu não sabia de nada, mas eu lembrava que eu tinha lido, por que eu lia muito, que na Alemanha Nazista esterilizavam as mulheres, não é? Pra não terem filhos por conta da raça ariana, não é, então as mulheres eram esterilizadas. Eu lembrei isso e eu perguntei “Mas tu tens certeza? O que é que fizeram comigo?” E ele disse: “Não fizeram nada.” Aí a gente conversou, foi uma conversa muito triste. Eu pensava que ele estava morto; por tanto tempo, eu pensei que já tinham matado, e quando vi que realmente, primeiro a noção que eu tive, quando abri os olhos e vi que ele estava vivo, era de que nós dois estávamos mortos e era nosso primeiro encontro no céu. Então eu disse “Eles não te mataram”. E ele disse uma coisa terrível. Ele disse: “Antes o tivessem feito”. E foi aí que eu vi que alguma coisa tinha acontecido pra ele falar isso e perguntei pra ele e ele disse que não. Tivemos assim, uma conversa bonita, muito triste mas muito bonita, ele só me dava força, ele dizia que eu ia pra casa, “Tu vais pra casa, tu vais viver por nós dois, não penses mais em mim. Eu aqui vou sofrer o que tiver que sofrer por nós dois e tu vais ser entregue a tua família. Eu quero que tu voltes a estudar, se for possível que tu voltes a amar, eu quero que sejas feliz por nós dois”. Era um adeus, aquilo era um adeus. Ele achava que não íamos nos ver mais. Como ele tinha dado um depoimento de 22 páginas, quer dizer, ele contou tudo e mais alguma coisa, pra ver se assim eles paravam, por que quando ele disse “Parem, vocês estão a mata-la” e já não o ouvi mais , mas ouvi a voz como sendo de um militar, que dizia: -“Depende só de você, como é, já resolveu? ” Era pra ver se ele falava, e ele aí... Eu ouvia um soluço, que eu não sabia se era meu ou se era dele, e ele dizendo -“Tudo o que quiserem”. E foi aí que eu apaguei. E então o que é que aconteceu? Ele, nesse momento, ele contou tudo pra me libertar. E ele estava convencido que eu seria entregue a família, por que depois vieram os guardas, me levaram, eu ia ver se me levantava pra falar com ele, mas estava toda dolorida, não consegui nem me mexer sequer, e eu vi que um dos oficiais perguntou pra ele “Como é que ela está? Já voltou a si?” E ele disse que eu estava sangrando muito, que ele estava com medo que eu morresse, que chamasse um médico. Aí ele disse: - “O médico já está vindo”. E ele falou:- “Vão entrega-la pra família, não vão? Ela vai hoje mesmo pra casa?” Aí aquela voz que eu ouvia disse : -“Logo que o médico achar bem.” E eu não vi mais Gustavo, não vi mais. Não houve médico nenhum, pelo menos que eu soubesse. E fizeram exatamente o contrário do que tinham dito, por que ele falou por que tentou resgatar a minha liberdade, achou que me entregariam a família, mas não. Aí eles fizeram o pior que se pode fazer com um ser humano. Eles me puseram dentro de uma jaula que tinha 80cm x 80cm, deve ser mais ou menos isso aqui, só grades em baixo, só grades , paredes só de grades, teto só de grades. E a altura era 1,80m ou 1,70m. Isso chamava-se “Fernandinho”, que era uma paródia, só podia ser, não é? A

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Fernando de Noronha que era uma ilha paradisíaca, mas lá tinha um presídio. Agora, talvez fosse por que dali ninguém fugia, e da ilha também não, tinha que atravessar o mar a nado.

ROBERTO FRANCA – Sylvia, desculpe eu interromper, mas como seu depoimento está sendo bastante longo, eu queria voltar; você falou que passou por vários quartéis, fica difícil saber “por vários quartéis”, por que quartel do Derby é da PM, você se lembra aonde ocorreu cada um desses fatos? Por que pra gente se situar no momento é importante. No momento e no local...

SILVIA MONTARROYOS – Sim, eu sei que isso da jaula foi no quartel de Tejipió, por que tem mata lá. Primeiro, essa jaula que me puseram foi posta num subterrâneo do quartel. E esse subterrâneo era úmido, era escuro, não tinha luz absolutamente nenhuma, não tinha entrada pra mínima réstia de luz, era muito frio, muito úmido, cheirava a mofo. Eu peguei uma pneumonia dupla e um reumatismo que até hoje carrego. Para sentar, tinha que ser com as pernas encolhidas e eu devo ter ficado ali dentro dessa jaula por mais ou menos uns 15 dias. É o meu cálculo, eu sei que foi um mês, mas deve ter sido quinze dias ali e depois quinze dias ao ar livre, nas matas do quartel, deixada, esquecida, como um bicho. Portanto, tive várias alucinações, o meu alimento era só meio copo... Meio pão, metade de um pão desses de padaria, pequeno, com meio copo d’água. Era só pra que a vida não acabasse. Pra sustentar minimamente a vida. Por que mesmo depois quando eu baixei ao hospital psiquiátrico, eu pesava 23 kg, que é o peso de uma criança de 5 anos. Eu tenho uma sobrinha neta que ela pesa 23 kg, ela é magrinha, e ela tem 5 anos. E é pequenininha. Então isso era o peso de uma moça de 17 anos. Vejam como era só pele e ossos mesmo. Como aquelas fotografias horrorosas que a gente vê em Biafra, assim, e nessas regiões. Só me lembrava disso e lembro que os soldados quando chegavam pra me dar alimento eles quase que imploravam pra que eu comesse: “Mocinha, tá aqui, coma por favor.” E quando eles iam buscar o prato... Aí eu comecei a comer, por que antes eu não comia e quando eu pensava que Gustavo tinha morrido aí eu não comia, por que eu queria morrer. Realmente eu queria morrer. A vida tinha perdido o sentido. Mas aí eu voltei a comer, eu comia e bebia agua, por que eu sabia que ele estava vivo, então havia pelo menos uma pontinha de esperança em mim. Eu voltei a comer só que era o alimento mínimo. A metade de um pão, desses que a gente chama francês, era metade. Mas eu comia, não tinha fome não, mas comia. E eu bebia aquela agua. E eles sempre diziam, “coma moça, beba mocinha”, foram muito carinhosos comigo os soldados. Soldado é povo, não tenho o que dizer deles, mas quando eram os oficiais, eles iam lá torturar e uma das torturas que eles faziam era privação de sono, e eles colocavam holofotes. Eu descrevi a Marcio Moreira Alves, eu tive uma entrevista com Márcio Moreira Alves no escritório dele, ele conseguiu me levar lá através de mil e uma peripécias e ele estava sendo seguido por que sabiam que ele estava escrevendo um livro sobre esses torturados, ele também tinha medo que eu estivesse sendo seguida, eu não estava, eu estava com outra identidade, depois eu explico como foi, ele examinou pessoalmente as marcas de queimaduras no meu corpo, também as que foram aos nos quartéis do exército, por que também me queimaram muitas vezes nos quartéis do exército, e eu tenho essas marcas até hoje, bom, mais adiante eu vou voltar a relatar essa parte e o que disseram os médicos do manicômio em relação às minhas

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marcas. Mas, entretanto, nesse subterrâneo escuro, quando os oficiais iam me ver, eles não me chamavam mocinha nem pediam pra eu comer e não eram carinhosos comigo nem nada que se parecesse. Mas eles falavam comigo e era sua filha da... Vocês já sabem o que é, eu não gosto de dizer nome e pronto. Era assim que me chamavam. Depois de um certo tempo eu comecei a ter alucinações. Não sei se alguém de vocês conhece uma história da carochinha que a menina foi enterrada por que não tomava conta dos figos bem, e a madrasta então manda enterrar, e os cabelos dela crescem, que ela canta “Jardineiro de meu pai, não me corte meus cabelos...” eu pensava que eu era essa menina, e eles tinham raspado a minha cabeça e minha mãe soube, por que os soldados disseram, ela disse a D. Helder, que era confessor dela, D. Helder Câmara e ele foi contestar, com ela, junto aos quartéis e disseram que faziam aquilo pra eu não fugir. Outra coisa, um detalhe terrível, eu estava nessa jaula, nua, eu era uma menina de colégio de freira, a nudez pra nós era uma coisa muito privativa, eu nunca tinha visto nenhuma irmã nem irmão meu nu, nem minha mãe, meus pais, nada. Nós éramos criados com muito pudor e ali fizeram isso, justamente pra eu me sentir indigna. Eles fazem isso pra que nós percamos a dignidade, então a gente pensa que está tão em baixo que falar e contar o que eles querem está de acordo com a nossa condição. A gente desceu muito baixo. Só que eu não me senti lá em baixo por causa disso. Eu senti que estava num ambiente mau. Mas eu nunca senti que tinha perdido a dignidade, isso eu nunca cheguei a sentir. Mas depois pegaram essa jaula, comigo dentro, e levaram pras matas do quartel. Foi, realmente, o quartel de Tejipió, Roberto. E lá me deixaram, assim, no fundo da mata do quartel, entregue a chuva, ao sol, ao vento. Então eu tinha visitas. Vinha me visitar todos os dias ratos, lagartixas, baratas, aranhas, aranhas caranguejeiras, escaravelhos, lacraus, muriçocas imensas, maruins imensos. As muriçocas me morderam, os maruins também. Mas esses outros... cobras... nunca me morderam. Talvez por que eu não fabricasse mais adrenalina. Por que os bichos tem muita sensibilidade. Eles nos atacam por que eles sentem que nós temos medo. Eles sentem o cheiro da adrenalina do nosso medo. E eu já não tinha medo desses bichos, por que eu estava sendo torturada por bichos muito mais selvagens, que se diziam seres humanos e não eram. Eles continuavam me torturando, eu já estava muito enferma, os ossos quase que furavam a minha pele e eles continuavam me torturando. Eles iam lá quase todos os dias ainda fazendo perguntas e ainda batendo o tempo todo. Nunca deixaram disso. Apesar de eu estar com o corpo todo coberto de feridas, o corpo todo aberto em chagas, em carne viva, eles jogavam sal em cima. Então eu tive demonstração de solidariedade dos soldados, através de três atitudes. A primeira foi um rapaz que foi lá e, eu olhei assim, parecia um extraterrestre, com um capacete como de moto e uma roupa toda de plástico e eu pensei que era um marciano, na minha mente que já estava muito avariada, eu pensei que era um marciano que vinha pra me salvar. E ele tinha qualquer coisa esquisita na mão, que eu pensei que era uma arma intergaláctica que ele ia usar pra me libertar dali e me levar pra um outro lugar e eu estava contente por que tinha vindo o meu libertador, mas era um soldado que tinha recebido ordem como os outros todos, de tirar uma casa de maribondos que havia num jambeiro, tirar dali e por em cima da minha jaula e eles iam atirar pra aquilo abrir e os marimbondos virem me morder. Só que ele fez exatamente o contrário. Ele subiu na árvore, tirou, por isso que ele estava todo protegido, podia abrir aquilo pra os marimbondos saírem e ele levava também álcool e fósforo e foi queimar.

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DVD 2

SILVIA MONTARROYOS - E ele me contou: “Mocinha, nós tínhamos que fazer isso, mas tiramos a sorte e coube a mim a tarefa e nós estamos do seu lado, estamos com você. Você nunca nos fez mal nenhum, eles é que são os terroristas”. Pronto, isso foi um que me prestou solidariedade durante a prisão. O outro foi numa noite em que choveu muito, dessas chuvas assim, torrenciais, uma verdadeira tempestade e eu estava ali, não estava ao abrigo, estava exposta à tempestade. Então veio um soldado me ver, e por entre as grades, me deu uma capa de chuva, a dele, a que ele estava usando, então eu vesti, mas eu não conseguia nem abotoas de tão frágil que eu estava. Ele abotoou pra mim, e esse soldado pegou, por causa desse ato, quatro dias de prisão no outro dia, quando descobriram. A terceira atitude generosa de um soldado, dos soldados, por que foram todos, um deles foi que veio e falou pra mim, mas os outros estavam fazendo a mesma coisa. Eu vi que eles estavam a cavar e a por qualquer coisa. E eram formigueiros que haviam e eles estavam colocando veneno pra exterminar as formigas, eram panelas de formigas, e veio um deles e disse pra mim, que eles tinham dita pra colocarem a jaula em cima de um daqueles formigueiros. E eles estavam fazendo o contrário. Eles estavam acabando com tudo o que era panela de formiga pra que eu não fosse vítima desses formigueiros. Está até contado no meu livro a história do Negrinho do Pastoreio que eu não sei se vocês conhecem que é uma lenda que um menino pretinho que era pastor e não conseguiu arrebanhar os carneirinhos todos, foi castigado assim, levam e colocam ele no formigueiro. Pronto. Depois fizeram fuzilamento simulado. Eu sangrava muito ali. Todo tempo eu sangrava muito e eu não sabia por quê que eu sangrava. Se seria das violências que me tinham feito ou se seria menstruação, eu já não me lembrava, eu não sabia nada. Então uma vez, um dos oficiais que foi me interrogar ele mudou o tratamento. Em vez de dizer, como sempre, filha da p..., ele disse p... somente e não filha de. Então eu tomei esse fato como a justificação de que quem estava ali antes era uma filha da p..., a filha tinha morrido e quem estava agora era a mãe dela, só que a minha mãe era um anjo de pureza, eu sempre tive a minha mãe assim. A minha mãe era a pessoa mais linda, mais imaculada, mais pura do mundo. Mas como eles chamavam filha da P e depois passaram a chamar só P, se a minha mãe fosse P e a filha estivesse ali a sofrer castigos por ela, a filha tinha morrido e quem estava agora era ela. Então eu era minha mãe. Eu não sei se vocês estão entendendo isso. Já não era a filha, era a própria. Eu era a minha mãe e a minha mãe era P. Então eu estava ciente disso. Foi outra crise de identidade, Cristiane ali, que é psicóloga, ela sabe muito bem o que é uma crise de identidade. Eu vivi uma crise de identidade com a menina enterrada viva e ali eu tive com essa história da minha mãe, filha de e depois a P. Então, uns dias depois veio um oficial e disse pra mim:-“Continua não querendo falar, não é? Você vai ver agora o que vai acontecer. Nós vamos fuzilar Carlos Alberto Montarroyos”, que era o meu irmão, que tinha fugido pra sul do país, tinha estado lá e depois ele voltou. Ficou lá foragido e não tinha como dar notícias, nós não sabíamos se estava vivo ou morto, (...?...) era tudo boato, ninguém sabia. Então, como ele disse “vamos fuzilar Carlos Alberto Montarroyos”, a minha reação foi da mãe, então eu disse: “Meu filho, soltem meu filho!” Eu era a minha mãe, então ele já não era meu irmão, ele era meu filho. Aí ele começou a rir, não é? “Você está brincando comigo? Eu não estou achando graça nenhuma. Ele está ali amarrado e a gente vai fuzilar ele”. Não, ele disse, “Nós vamos

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fuzilar o seu irmão.” E eu disse: “Eu não tenho irmão.” Por que a minha mãe é filha única. Aí eu não era filha da minha mãe, eu era a minha mãe, então sou filha única, quando na verdade eu tenho 6 irmãos, três rapazes e três moças. Aí eu disse “eu não tenho irmão” e ele disse: “Ah! Não? Carlos Alberto então é o que seu?” Aí eu disse: “Meu filho.” E ele gritava: “Pelotão! 1- Marchar!” Aí eu vi passar diante da jaula o pelotão, altamente armado e marchando. Depois disse: “2 - Apontar!” Três era: “Fogo! Atirar!” Portanto eu via aquilo, fiz tudo pra sair da jaula, antes , mas quando ele disse “Fogo” eu desmaiei. Foi uma dor demasiada, a dor de uma mãe que perde um filho, não era, mas era como se fosse, e desmaie e quando eu voltei a mim eu já estava na enfermaria do quartel, pela primeira vez vestida, por que até então não tinha estado com roupa nenhuma, só aquela capa de chuva que felizmente o soldado me deu e foi muito bom, por que quando eles iam levar sal pra jogar em mim, só batia no rosto e alcançava os pés. O resto estava tapado. Então eles não conseguiam mais me fazer mal. E nem estava exposta aos olhares deles que eram olhares terríveis de escárnio e mais alguma coisa. Bom, no entanto eu na enfermaria (...?...) eu não sabia o que estava dizendo, eu mantive os maxilares fechados pra não dizer nada. Eu me lembro que um deles chegou lá uma vez e disse que me aplicavam uma injeção de Pentatol, que é um psicotrópico que dá loquacidade ao indivíduo, que a pessoa fala tudo e mais alguma coisa. Você fica sem domínio da estabilidade mental, então, se eu tomei essa injeção eu devo ter ficado tão alerta pra que isso não tivesse efeito em mim, que meus maxilares cerraram. A minha irmã, que estava presa também, por que toda a família foi perseguida, ela também estava presa nesse quartel, que já era a 2ª Cia de Guardas, (...?...) que eu cheguei de maca, desfalecida e algumas pessoas viram e murmuraram que eu tinha morrido. Minha irmã ainda estava presa, fez um escarcéu na cela, chamou-os de assassinos de crianças, que eles me tinham matado. Mas eles disseram, “Não, ela está viva”. Levaram minha irmã, Selma, pra me ver na enfermaria, e ela disse-me depois, muito tempo depois, quando a gente se reencontrou, ela disse que ela fazia tudo pra eu abrir a boca e eu não falava. Ela falava pra mim: “O que foi que lhe fizeram?” e eu não dizia nada. Então ela disse que pensou que eles me tivessem cortado a língua e fez força pra eu abrir a boca, então foi quando ela viu que não tinham cortado, que a minha língua estava ali mesmo. Pois é. Mas eu não abria os maxilares. Eu sei o nome de três dos oficiais, que comandaram toda essa tortura, que era o Major Dinaldo, tem o nome dele no livro com todas as letras, o capitão Bismark, acho que esses todos já são mortos hoje, e o outro era o Álvaro da Costa Lima, que eu já tinha dito. Era o delegado auxiliar da Segurança Pública. Aí o capitão Bismark deu uma tesourinha pra minha irmã e pediu pra que ela cortasse a s minhas unhas. E ela perguntou: “Mas por que é que eu vou cortar as unhas dela?” Ele disse: “Por que eu não consigo fazer que eu não posso nem chegar junto dela. Isso aí é uma fera! Ela me arranha todo”. Aí ele levantou assim a manga da camisa e mostrou os braços arranhados. Aí minha irmã disse: “Eu não acredito que ela tenha agredido o senhor sem o senhor ter feito nada com ela. Minha irmã é uma mocinha muito calma, muito meiga, sempre viveu para os livros, lendo, escrevendo, é muito doce, e ela nunca iria agredir ninguém a não ser que ela se sentisse ameaçada. Então eu imagino o que os senhores devem ter feito com ela, eu estou vendo o estado dela, pra ela ter reagido dessa maneira. Eu não vou cortar as unhas dela não. Se o senhor quiser corte, mas eu não vou cortar por que eu vou tirar dela a única arma que ela ainda tem pra se defender” E ela não cortou. Pronto. Depois eu cheguei ao manicômio judiciário de PE, fui entregue praticamente já em

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estado de coma, efeito de todos os psicóticos que tomei, que quando eu cheguei lá, o Dr. Othon Bastos esteve aqui a depor e contou que eu cheguei num estado tal que ele agarrou em mim e me levou no fusquinha dele a sua clínica particular pra me socorrer da forma que eu precisava, e prestar os socorros que eu estava necessitando com urgência, depois teve que me devolver outra vez pra lá por que tinham sido os militares que me haviam posto no manicômio e ele tinha que devolver pra ali. Haviam, além de mim, mais dois presos políticos ali internados, mas na área dos homens, eram o Edval Freitas e o Rivadávia Ruas e os dois também estavam em estado lastimável. Eu cheguei dessa maneira e eles me colocaram na indigência do manicômio e a minha mãe queria que eu fosse pra pensão, tem lá vários pedidos dela dizendo que ela assumiria os gastos da pensão por que a pensão era noutro pavilhão, a pessoa fica melhor instalada. Eles disseram que não, por que eu era detenta e detento não tem direito a pensão. Depois de muito batalhar, muitos dias, é que minha mãe conseguiu a minha transferência, portanto no tempo que fiquei ali, haviam os dois diretores do Hospital que eram o Dr. Tácito Medeiros e o Dr. Amaury de Souza, o Dr. Othon Bastos lá estava, que eu não lembrava já o nome dele, no meu livro eu falo “o outro médico, que junto com os médicos residentes sempre me visitava”, ele foi muito carinhoso comigo, muito amistoso, ele sempre era muito cuidadoso comigo... eu peço ao Dr. Tácito para levantar-se... (levanta-se na plateia) um abraço grande... e o meu muito obrigada por ter, graças aos diretores do Hospital, do Manicômio, eu passei por um tratamento, e em parte, o tratamento da época também foi muito parecido com as torturas. Pelo menos os choques elétricos que eu tinha recebido lá, que as vezes era ameaçada de ser dado com água, que eles misturavam com ácido muriático e soda cáustica e (...?...), eu tive muitas ameaças lá mas mesmo assim não cheguei a falar, mas recebi ameaças de ser dado com água por que aí eu ia morrer. Mas no manicômio o tratamento psiquiátrico ainda era, ainda continha choques elétricos e eu recebi vários, que apesar de ser uma coisa violenta ajudou na minha recuperação, por que eu já mão sabia nem sequer quem eu era. Isso é relatado no laudo médico psiquiátrico, assinado por Dr. Tácito e Dr. Amaury, e eu tenho isso comigo até hoje, em que eles dizem: Tanto de tanto de tanto internamos a paciente assim, assim, assim. No princípio eu não sabia quem era, onde estava, não sabia o tempo, o dia, o mês, o ano, nada, quando chegavam lá os médicos era como se nunca os houvesse visto, muitos que estavam indo me ver diziam que era como se eu tivesse acordado de um sono profundo. Pronto. Depois, em tanto de tanto, alguns dias depois, eles vão vendo que eu vou melhorando e eles dizem: a paciente está bem melhor, já consegue falar qualquer coisa em bora laconicamente, chamamos o fotógrafo pra tirar sua fotografia, mas ela põe os braços na frente se esquivando. Esse laudo médico mostra também o teste que eu fiz de (...?...), que a Cristiane sabe o que é, mostra também o exame que foi feito, encefálico, então diz no final que eu tinha uma esquizofrenia (...?...), que é em idade jovem, responsável por grandes índices de suicídios juvenis, e diz no final que devem, esses pacientes, depois de ter tido remissão de sua psicose, voltar ao meio social uma vez que o ambiente nosocomial é nocivo à saúde desses pacientes. E no final diz assim: “No entanto, continua a ter ideias de auto referencia e algumas (...?...), não estando ainda em condições de ser ouvida por este IPM. IPM é Inquérito Policial Militar. Graças a eles, a Dr. Tácito e Dr. Amaury, que assinaram este laudo médico, eles não mentiram, eles realmente constataram e isso me livrou de ser reconduzida imediatamente aos quartéis. Eles queriam que eu voltasse aos quartéis pra dar o

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depoimento que eu não dei até hoje, graças a Deus e nunca darei. Então o que aconteceu? (trecho ininteligível)... não do que eu tinha feito, mas do que eles fizeram, por que eu não tinha cometido nenhum erro, a única coisa que eu queria era uma Pátria justa e igual pra todos os seus filhos. Então eu fui entregue a família pouco depois, não antes de eles mandarem lá no manicômio eu assinar uns papéis assim, imensos, com mais de trezentas folhas, disseram que era o meu depoimento que eu não tinha assinado e eu me neguei a assinar. Eu não assinei. Mas eles tentaram utilizar minha doença pra que eu pusesse uma assinatura nas coisas lá que eles fizeram dizendo que eu era isso, aquilo, aquilo outro, etc. Eu não assinei absolutamente nada. Então depois fui entregue à família, não estava bem, estava bem melhor, incomparavelmente melhor, uma diferença do dia pra noite de quando eu tinha chegado no Hospital, só que ainda tinha pesadelos imensos, eu acordava chorando, meu pai e minha mãe estavam sempre junto de mim quando eu gritava e acordava toda a gente, e toda a gente ali, me dando agua com açúcar, me segurando a mão, dizendo “agora você está aqui conosco, ninguém mais vai lhe fazer mal. Então aos dez dias mais ou menos de eu estar em casa com meus pais, ainda nessa situação, por que eu não estava bem ainda, eles decretaram uma nova prisão preventiva pra mim. Então meu pai levou ao meu advogado, que era o Dr. Bóris Tindade e ele disse, “Tire! Ela tem que sair imediatamente, ela não vai aguentar a barra de uma nova prisão, ela vai morrer.” Aí pronto, foi quando eu tive que deixar Pernambuco. Fui pra paraíba, fiquei com pessoas amigas, depois fui para o Rio de Janeiro, eu tirei nova identidade, não foi uma identidade falsa, eu era muito novinha, fiz duas trancinhas, fui a um Cartório, disse que nunca tinha me registrado na vida e precisava trabalhar, então me registrei com outro nome, Ana Maria Parente, filha de Antônia Parente e José Elias de Souza Parente, nascida no estado do Rio, pronto. Eu inventei uma história, que eu tinha que contar as pessoa quando perguntavam “Quem é você?” E eu criei então essa história que eu tinha que inventar. Assim eu fui para o Uruguai, fui para a Argentina, e foi toda uma vida de clandestinidade e exílio, eu atravesse a fronteira e voltei ao Brasil, fui presa novamente, mas sem que eles soubessem quem eu era, eu estava dentro de uma república com o pessoal da UNE, União Nacional dos Estudantes, eu ocupava um quarto, cada um ocupava um quarto, eu não me metia no que eles estavam fazendo, eles não sabiam exatamente quem eu era, eu não sabia nada das atividades deles nem eles sabiam do meu passado. A polícia chegou nos levou, fomos pra Ilha das Flores, eu fiquei uma semana, eles não chegaram... meus documentos eram perfeitos, não eram falsificados, eram legais, eles não chegaram a descobrir quem eu era, me soltaram e eu pensei comigo: “Isto é um aviso pra que eu não fique aqui e nem sequer na América Latina”, por que na Guatemala eu fui detida, eles estavam atrás de mim, então aí já é a CIA. Então eu fui pra Europa.

NADJA BRAYNER – como você está relatando a sua saída, a sua fuga, eu gostaria que você falasse um pouco do apoio que você teve, inclusive da Igreja, não foi?

SILVIA MONTARROYOS – Sim, sim. Eu quando saí, você fez bem em lembrar e eu agradeço muito, por que quando eu saí de Pernambuco, quando Bóris Trindade disse: “Ela tem que ir embora por que se ficar aqui vai morrer”, aí meu pai me levou ao Convento dos Franciscanos e depois eu também fiquei escondida, depois eu também fiquei escondida no Convento dos

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Dominicanos do Rio de Janeiro, aqui foi no dos franciscanos, em Olinda. Eu fui muito bem recebida, muito bem acolhida, foram extraordinários comigo, e depois eles fizeram o seguinte, com um jipe da Igreja, eles levaram o andor de Nossa Senhora pra uma procissão em João Pessoa, e eu assim, cruzei a fronteira; como eles já tinham ido me buscar, para prisão preventiva, na casa da minha mãe, dos meus pais, e eles não me encontraram, essa fotografia minha que está no livro e que eles colocaram em todos os jornais depois da fuga da primeira noite em que eu fiquei detida, essa mesma fotografia, também naquele tempo ficou nos aeroportos, aparecia na televisão. Essa fotografia ficou outra vez nas fronteiras, aeroportos, rodoviárias. Então, eu cruzei a fronteira de Pernambuco para Paraíba embaixo do andor de Nossa senhora, dentro do jipe, com dois franciscanos na frente e eu atrás. Escondidinha, ninguém suspeitava, num jipe da Igreja, os franciscanos vestidos com seu hábito de franciscanos e eu embaixo de Nossa senhora, ninguém detectou. Esse apoio da Igreja foi extraordinário mesmo. Entretanto eu tinha que sair e foi quando eu fui para a Europa, fui para Paris, e em Paris eu tive apoio de alguns amigos que eu lá tinha, tinham ido pra lá em maio de 68, período que teve um movimento muito forte na França e eles tinham ido pra lá. Eles já tinham sido avisados que eu ia, eles me receberam e disseram, “Você vai pedir asilo político, mas não é na França por que já tem muitos brasileiros aqui, já tem 500 nomes aqui e se você está perseguida pela polícia então você tem que ficar bem protegida”. Me levaram até a porta do Comissariado da ONU e eu pedi proteção ao Comissariado da ONU. Eu fui asilada política da ONU na França. Poderia ter sido asilada da ONU na Suiça, como foi Paulo Freire, mas fui na França. Então, eu já estava com um namorado que era português, que também foi político e então eu estava já perto de dar a luz, estava grávida, tive o meu filho, tinha chegado da maternidade, há uns três ou quatro dias eu tinha voltado da maternidade, estava a amamentar meu primeiro filho, meu bebezinho, pequenininho, com quatro dias de nascido, quando batem a porta do quartinho aonde eu vivia na França, (...?...) lá haviam estudantes de todas as partes do mundo. Então batem à porta, meu marido vai abrir, e era um policial a dizer que eu tenho 24 horas pra deixar a França por que tinha uma ordem de expulsão. É claro que isso era também atuação não só do DOPS, mas da CIA. Com um bebezinho, eu disse : “O que é que eu faço agora?” – “A senhora tem que ir ao Comissariado já.” Eu disse: “Não. Meu neném vai terminar de comer, eu vou trocar-lhe a fraldinha, vou deixa-lo aqui com meu marido e vou com vocês.” Aí eu fui. Fiz tudo isso, deixei a criancinha e fui. E chegando lá eu pedi um (...?...) de carte de sèjour, que era o cartão provisório de estadia, depois eles dão realmente o sèjour, que é a permanência, então ele pediu, eu entreguei, ele rasgou e jogou na caixa do lixo, me mandou de volta, já não me escoltou nem nada e disse: “Vá pra casa e vá arrumar suas malas por que amanhã essa hora já não tem que estar aqui. Se não vai presa.” Aí eu voltei, meu marido disse: “Não, não pode ser assim não, você acabou de ter um bebê, que história é essa? Você é protegida da ONU. Nós vamos lá no Comissariado das Nações Unidas, por que se a França quiser ser expulsa da ONU, ela faz isso com você, por que você é protegida da ONU na França. Você não é exilada na França. A França não pode fazer isso. Se ela passa por cima dessa autoridade ela não mais faz parte da ONU.” Então eles tiveram que me aceitar, o governo francês teve que me aceitar e eu fiquei na França, fiz meu estudos, me formei na Sorbonne e tudo o mais, com meu filho, meu marido. Pronto. Aí depois do casamento com (...?...), eu virei portuguesa e readquiri a minha identidade. Por que até então eu estava como

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Ana Maria dos Parentes e isso era um problema muito grande por que pra registrar o meu filho, ele era filho de quem? De Ana Maria dos Parentes ou de Silvia de Montarroyos? Eu readquiri minha identidade, minha nacionalidade, fiquei com dupla nacionalidade que tenho até hoje, sou luso brasileira, sou brasileira e sou portuguesa. Aqui sou brasileira, lá sou portuguesa. E minha vida prosseguiu. Estou aqui, graças a Deus, moro em Portugal, sou psicanalista, escrevo, já tenho alguns livros publicados, tenho alguns prêmios literários, fiz esse que eu quis que fosse lançado aqui por que esse livro está pronto já há muitos anos. Foi assim... ele foi feito... como eu já tinha livros publicados e prêmios literários na Europa, tanto Portugal se interessou em publicar, como na França, por que o meu caso, no número três da revista (...?...) vem relatado, num artigo de Jean (...?...) que começa exatamente assim: uma mocinha, de 17 anos, está num asilo de alienados, etc. Então eles fizeram, a editora dessa revista, quis editar a minha história e eu neguei. Eu disse: Não, até pode ser, mas primeiramente tem que ser no Brasil, por que faz parte da História do Brasil, passou-se lá e pra mim só tem sentido se eu publicar pelo menos pela primeira vez lá. E foi isso, que graças aqui a Comissão da Memória e da Verdade Dom Helder Câmara, que me proporcionou isso, que esse sonho se tornasse realidade, e com a CEPE que é a Companhia Editora de Pernambuco. Então eu tenho que agradecer muito a eles, ao apoio deles, sem o qual isto não teria sido possível, e por estar aqui dando esse depoimento pra vocês. Muito obrigada e desculpem eu me ter alongado. (Aplausos). Eu quero fazer diante de todos a entrega do segundo livro da trilogia. Este livro, se bem que a história que ele relata começa e termina no próprio livro, mas trata-se de uma trilogia. A partir do momento em que a história termina aqui, ela recomeça no outro livro que já está escrito, não está ainda publicado, está encadernado, digitado no computador, e eu espero que daqui a um ano quando eu vier ao Brasil, possa fazer o lançamento dele. O terceiro, que encerra a trilogia, ainda estou escrevendo. Então eu queria fazer a entrega oficial ao Dr. Fernando Coelho que é o coordenador da Comissão. (Aplausos)

FERNANDO COELHO – Eu quero dizer a Silvia que a história dele vai permanecer conosco na Comissão, vai permanecer na memória dos pernambucanos e dos brasileiros por que o seu exemplo de luta é de uma grande admiração por todos aqueles que agiram como você pela liberdade, pelo respeito, pelo respeito à dignidade do homem tão agredida, tão ofendida como você acabou de narrar. Eu agradeço em nome da Comissão o livro, vamos tentar também conseguir a sua impressão, eu vou procurar novamente a CEPE. No primeiro, quem estava a frente da CEPE era Leda Alves. Nós falamos com ela e ela foi de toda a gentileza, se interessou pela publicação e, ao sair, fez a recomendação à equipe que a sucedeu para que pudessem fazer o que ela se lá estivesse faria. E eles na verdade fizeram. E nós da Comissão somos também gratos a CEPE pela forma com que nos tem apoiado. Não há comentários sobre o que Silvia acabou de dizer. A revolta, faz apenas com que nós nos sintamos um pouco com a consciência do dever cumprido e com a certeza de que tendo trazido você aqui, tendo dado aos pernambucanos a oportunidade de ouvir nas suas próprias palavras o que você sofreu aqui no nosso estado, nós contribuímos um pouco para que isso nunca mais se repita. (Aplausos) Agora eu vou passar a palavra aos companheiros da Comissão. Roberto Franca.

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ROBERTO FRANCA – Silvia, é que eu fico muito feliz, nós que já a ouvimos de uma maneira mais informal, em tê-la aqui hoje numa sessão gravada, filmada, etc. Eu queria fazer umas pequenas perguntas a você, se você puder responder, você demonstrou agora na fase mais adulta que é menos cabeçuda do que era quando era jovem, mas são algumas situações que eu não ouvi bem quando você relatou, o nome do major, um dos que ...

SILVIA MONTARROYOS – Major Dinaldo.

ROBERTO FRANCA – Os presos políticos que estavam no manicômio?

SILVIA MONTARROYOS – Sim, eram Edval Freitas e Rivadávia Ruas, é possível que houvesse outros, mas eu sei bem desses dois, que são mencionados também pela Dra. Rosita Teixeira de Mendonça, e está relatado no livro Torturas e Torturados de Márcio Moreira Alves, em que ela dizia que a partir de um determinado momento tinha vindo a ser procurada por pessoas com distúrbios mentais que avisavam ter passado por torturas. Ela quis saber o que se passava nessa fábrica de loucos que eram os quartéis. Então ela foi visitar os quartéis e ela fala de mim e dos dois. Edval Freitas, as irmãs dele estavam no lançamento do livro e vieram falar comigo. O Rivadávia Ruas eu não sei mas o Edval Freitas está em São Paulo, que as irmãs dele me disseram no lançamento do livro e que ele nunca conseguiu se recuperar. Ele só dorme até hoje com tranquilizantes.

ROBERTO FRANCA – Você falou também do apoio de alguns franciscanos. Como foi esse contato?

SILVIA MONTARROYOS – Foi lindo, foi lindo por que eles me receberam, como eu era muito pequenininha, como uma meninazinha que precisavam proteger, me levaram pra capela, começaram a fazer orações, eu tinha fome, e eles me deram muitas frutas, eles tem uma alimentação frugal, não é, os franciscanos não são como nós, eles não são assim, eles comem frugalmente, mas sempre tem uma sobremesazinha, e todos eles davam a sobremesa pra mim. “Não, olhe, fique com minha laranja.” Eram assim, eram realmente maravilhosos.

ROBERTO FRANCA – O contato com os franciscanos, como foi feito? Como você chegou a eles?

SILVIA MONTARROYOS – Foi meu pai. Por que a minha mãe conhecia já alguns de lá. A minha mãe era muito religiosa, minha bisavó tinha sido da Ordem Terceira de São Francisco, ela participava das procissões, essa coisa toda.

ROBERTO FRANCA – Lembra-se do nome de alguns deles?

SILVIA MONTARROYOS – Não, infelizmente não.

ROBERTO FRANCA – Obrigado.

SILVIA MONTARROYOS – Está bem. Eu queria aproveitar só pra fazer um pequenino adendo. Eu queria só lembrar quando eu falei das feridas que cheguei no hospital, eu queria relatar o que um dos médicos disse das minhas cicatrizes. Eu tenho nesse braço aqui, é difícil ver, mas tem uma marca, que foi queimadura ou de cigarro ou de charuto, que eu não lembro até hoje.

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Eu lembro de sentir o cheiro de carne queimada, eu fui queimada várias vezes, mas não lembro exatamente esse festim por que isso foi um verdadeiro festim que me fizeram. No manicômio eu fui muito bem tratada pelos médicos diretores, o Dr. Tácito e o Dr. Amaury, e pelos três internos, que eram Fernando Farias, Fernando Costa e Djalma Santos que foi diretor do manicômio nos anos 80 e que, segundo ele, eles três ainda eram estudantes, estavam estagiando lá e foram maravilhosos comigo, por que realmente eu estava indefesa, por que estava praticamente inerte, haviam muitos guardas lá, e esses rapazes desconfiavam que eu tivesse sido posta lá justamente pra que os guardas me matassem. Por que aí não iam dizer “Morreu nos quartéis”, mas “Morreu no Hospital”. Era diferente. Chegou no hospital e depois morreu. Tinham também as outras loucas, que eram alcoólatras, furiosas, drogadas, podiam até acabar comigo, por que elas se matavam umas às outras, por que aquilo tinha capacidade pra um número e tinha quarenta vezes mais pessoas do que realmente comportava. Eles se organizavam, se revezavam, por que tinha um número de horas semanais que eles tinham que dar no trabalho, e cada um passou a dar 8 horas diárias, cada um, por que o dia tem 24 horas e havia sempre um comigo para que não me acontecesse nada de mal nessa fase. Eles foram extraordinários. Quando eu já estava perto de ir embora, já tinha recuperado muito bem a consciência, já sabia que tinha sido presa política, por que no início eu não sabia nada, então, conversando com um deles, o Fernando Farias, que foi o que mais me acompanhou, então ele disse pra mim: “Tatiana”... por que eles só me chamavam de Tatiana, todos eles me chamavam de Tatiana, “quando você chegou aqui seu corpo estava coberto de feridas, você estava praticamente em carne viva. Você não se lembra como você chegou?” E eu dizia “Não.” Ele aí me mostrou essa marca aqui, que era muito mais pronunciada naquela época, agora já passaram tantos anos, quase meio século, mas àquela altura, ele disse “Esta aqui então, era uma coisa horrível, quando você chegou, estava tão infectada que a gente teve que fazer uma cirurgia de emergência e tirar daí carne podre, que cheirava mal e até bicho tinha. Tinha pedaços de pus pedrados dentro. Você não sabe como lhe aconteceu isso?” E eu não sabia, por que não lembrava. Mas era só pra completar que eu queria falar isso. Obrigada.

FERNANDO COELHO – Nadja Brayner.

NADJA BRAYNER - Eu não vou me estender, claro, você já está muito cansada com esse depoimento difícil, mas antes de falar alguma coisa pra você, eu queria fazer um registro, Dr. Fernando, que eu considero importante, eu queria agradecer ao pessoas da Clínica do Testemunho, que tem apoiado a Comissão e elas são psicólogas, e estão nos apoiando aqui, neste momento. Eu queria dizer o seguinte. Realmente, mais uma vez, eu queria fazer uma registo da sua coragem em estar aqui se expondo e fazendo um registro tão doloroso de toda a violência que você sofreu. Eu penso que é importante e só queria fazer um registro, lembrar que isso ocorreu em 1964. Por que eu estou dizendo isso? Por que a gente sempre tem como referência dos anos mais fortes de violência, de tortura, a partir do ano de 68, depois do Ato Institucional, que a gente sabe que foi institucionalizada a tortura e a violência. No entanto, esse período foi novembro de 1964. Quer dizer, em Pernambuco, um estado que tem toda uma história fortemente marcada pelo autoritarismo, por uma repressão que foi montada bem anteriormente, a gente sabe, desde o Estado Novo, não é, essa estrutura foi montada e

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Álvaro da Costa Lima participou de todos esses momentos que Sílvia tanto destacou aqui pela perversidade dele no contato com ela. Em segundo lugar, eu só queria chamar a atenção também de Sílvia sobre a questão da violência sobre as mulheres, sobre a mulher. Quer dizer, se mostrar exatamente através da violência sexual, por que sabem que é aquilo que mais toca a mulher. Nós mulheres, mesmo sem ter passado por isso, só de imaginar, sabemos o que isso significa pra cada uma de nós. E o sadismo. Por que, pelo seu relato, eles tinham noção exata do papel que ela tinha na organização. Ela não tinha ligações, não tinha informações maiores, no entanto foram sádicos e exercitaram toda essa perversidade com ela até deixa-la no estado em que ela ficou. Quer dizer, é algo inimaginável, é a brutalidade gratuita. Por que se fosse assim, não é que eu esteja justificando, nem se ela fosse uma militante, que sabia de muita coisa e eles quisessem força-la; mas não, ela foi torturada mesmo eles sabendo que ela não tinha conhecimento nenhum. Eu queria só fazer essa observação.

SILVIA MONTARROYOS – Eu só queria dizer que muita gente perguntou pelo meu livro, mas não chegou ainda, por que meu irmão teve que ir busca-lo na Comissão e enfrentou um trânsito muito grande pra chegar aqui, mas ele está aí, eu acho que ele trouxe o livro e se alguém quiser...

NADJA BRAYNER – Os livros já estão expostos lá fora.

FERNANDO COELHO – Manoel Moraes.

MANOEL MORAES – Sílvia, mais no contexto da sua integração no PORT, você poderia falar assim, como foi a atuação do PORT aqui em Pernambuco? Quantas pessoas faziam parte, quantos militantes vocês chegaram a ter? Por que tem a morte de Jeremias... assim nesse contexto, por que da sua fala e do que tem no livro, a Comissão, claro, é grata pelo seu depoimento, mas eu gostaria que você avançasse desse outro lado. Como foi o PORT, por que o PORT foi tão massacrado? Em que ele ameaçava tanto pra ter sido tão mapeado?

SILVIA MONTARROYOS – Obrigada. É assim. O PORT, Partido Operário Revolucionário Trotskista, ao qual meu irmão pertencia e a que eu me liguei, como eu já disse ele foi preso no governo de Arraes, mas foi uma prisão, digamos assim, libertária, uma prisão que não era prisão, era uma detenção, mas ele não podia sair. Tinha uma atuação em Pernambuco importante sim, sobretudo no meio rural. Por que estava organizando os camponeses a partir das Ligas Camponesas de Julião, mas que pararam um bocado por aí, estavam um pouco desorganizadas. E os camponeses estavam muito conscientes do seu papel (...?...) e o Nordeste, principalmente Pernambuco que é a terra do açúcar e é uma economia agrária. Hoje há muitas fábricas, mas em 64 eram muito menos, portanto o grande estado industrial era São Paulo, a nossa referência, e nós éramos uma economia agrária e a reforma agrária tinha um apelo muito forte aqui. Então os grupos se organizaram muito em Pernambuco, Eu não fazia parte dessa célula camponesa, mas eu ia lá sim, por que eu gostava de ir, eu gostava de estar com os camponeses, eu sentia muito prazer mesmo de estar lá com eles, aprendi muito com eles, tudo e mais alguma coisa, aprendi a me orientar pelas estrelas, a conhecer ervinhas pra curar problemas de doenças e tal, eles me chamavam “dona menina”, não é? Por que eles chamavam dona fulana, dona sicrana, não queriam me chamar de Silvia, e me achavam muito

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novinha pra chamar dona Silvia, e chamavam dona menina. Mas o PORT tinha organizado tanto muitos sindicatos dos camponeses, sobretudo em Sirinhaém, Rio formoso, Itambé, Jaboatão e Barreiros. E em Itambé houve o assassinato de um dos rapazes do PORT que era o Jeremias, mas ele era Jeremias como eu sou Tatiana, na verdade o nome dele era Paulo Roberto Pinto. Mas eu acho que aqui é possível que haja alguém que tenha sido do PORT naquela época. Não há ninguém? Não. Pronto. Eles queriam organizar um Congresso de estudantes, operários, camponeses e soldados. Isso seria organizado em Itambé, depois do assassinato de Jeremias. Chegou aqui agora um amigo meu que é professor da Universidade, desta Universidade, que é o Felipe Galindo, e que ele fez trabalhos até a tese dele, sobre a atuação de Jeremias no campo. Ele tem mais capacidade pra falar sobre isso do que eu por que ele fez um estudo profundo. Eu o que sei é da atuação no campo que era a mais importante do PORT, mas eu não atuava lá por que eu era muito novinha, eu estava mais cingida oficialmente às células estudantis (trecho incompreensível) mas ao campo eu ia por minha própria conta e risco. Eu saía bem cedo de casa, ia pra lá sem o PORT saber, e o PORT dizia, “Não faça isso, você não tem que ir pra lá. Lá vão os homens”. Por que era muito forte a repressão. Os latifundiários recebiam à bala, foi como eles mataram Jeremias. Eles estavam fortemente armados e eles se sentiam donos do mundo, eles eram os coronéis e eles faziam assassínios e eram impunes. Inclusive quando meu avô foi reclamar de Arraes que o meu irmão não era preso político, ele disse: “Olhe, eu vou lhe dizer uma coisa, eles estão ali passando umas férias. Por que esses rapazes, eu tenho muito carinho por eles, eles me fazem lembrar a mim próprio na minha juventude. E eles ali, pelo menos estão seguros. Por que se eles saírem, pode acontecer o mesmo que aconteceu a Jeremias. E eles ali estão bem tratados. Se alguma coisa estiver faltando e você vier dizer pra mim, eu providencio logo”. Realmente, eles tinham banho quente, ventilador, colchão de mola, andavam por ali pelo presídio pra lá e pra cá, o Joca que também estava com eles, fez uma vez assim, nós fomos visitar e ele disse: “Quer um sanduíche de queijo e presunto?” Abriu a geladeira e fez o sanduiche. E o meu irmão disse: “Isto é do diretor do presídio, não é nosso.” E ele disse: “Tem preso quem pode.” E aquilo realmente não era uma prisão, era só de detenção. Houve uma manifestação dos camponeses de protesto pela prisão dos trotskistas, que eram o meu irmão, Carlos Cavalcanti que está hoje em São Paulo e o Ayberé de Sá que já morreu, e havia também o Joca, mas o Joca ele se filiou ao Partido, mas ele no início não era do Partido. O pai dele era gerente da Fábrica da Torre, e ele pichava as paredes, os muros da Torre, dizendo assim: “O povo no poder” e como ele não tinha nenhum partido assinava “JOCA”. E ele era um bocado doido. Tinham dois camponeses que eram o Júlio Santana, líder em Sirinhaém, Rio Formoso e Barreiros, estava preso também na Detenção com os meninos, e tinha o Chapéu de Couro, o nome é por que usava um chapéu de couro, que era o Antônio Medeiros, e ele mesmo dizia “Eu tenho coragem de mamar em onça”. Então era assim, como o Júlio foi preso primeiro, o Joca e o Chapéu de Couro, resolveram prender quem tinha prendido o Júlio. Quem era? Era um tenente de Polícia que estava em Itambé, numa pensão. Então ele estava lá, de cuecas, por que estava muito calor, e estava o motorista dele com ele. Eles entraram pela janela, o Joca e o Chapéu de Couro, apontaram pra ele uma arma que eu não sei aonde eles conseguiram, e disseram “Teje preso”. O tenente disse: “Eu? Eu, tenente da polícia?” Ele disse: “O senhor mesmo. O senhor prendeu Júlio Santana.” Aí o tenente abriu a janela e saiu correndo, era de noite, nesse lugar não tinha

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luz elétrica e não tinha televisão, as pessoas não tinham nenhuma distração a não ser conversar na calçada, então o tenente pula a janela e sai correndo de cuecas mesmo. O menininho ali da pensão, que estava acendendo um lampião pra iluminar a pensão, sai correndo atrás do tenente iluminando o tenente, que olhava pra ele e dizia “Sai daqui moleque safado” E ele dizia: “Minha gente, avisa aí pro povo que o mundo está se acabando.” Quando houve essa passeata de protesto, eles ficavam gritando “liberdade, liberdade!” batiam nos portões, e eles, com consentimento do diretor do presídio, eles subiram no muro do presídio, a Casa de Detenção, onde hoje é a Casa da Cultura, e dali fizeram discursos, discursos revolucionários para a audiência que eram os camponeses e toda a gente que estava ali. Eram mais de quinhentas pessoas que estavam lá. Então eles discursaram e então a gente queria abraçá-los, queria que eles saíssem. E eles deram uma explicação dizendo: “Nós não podemos sair agora. Nós não queremos sair assim.”

DVD 3

SILVIA MONTARROYOS – “Nós queremos sair com uma vitória política. Queremos conseguir sair judicialmente. Com habeas corpus e tudo. Não queremos ser fugitivos.” Aí eles disseram “Então desçam pra nós lhe abraçarmos”. Eles desceram, receberam abraços, depois voltaram todos. Meu irmão ainda estava conversando com alguns quando os portões se fecharam. Então o que é que aconteceu? Quando ele viu que os portões tinham fechado, ele disse: “Puxa, me deixaram do lado de fora.” Bateu, o guarda abriu e disse: “Quem é você?” Ele disse : “Eu sou Carlos Montarroyos.” – “E o que é que tem a ver?” – “Eu sou preso.” – O senhor é preso?” – “Sou.” – “Preso daqui?” – “É.” –“Vou ver se é você mesmo e se está faltando alguém.” Aí foi lá dentro, depois voltou e disse: “Realmente falta o Carlos Montarroyos, pode entrar. Mas só você, por que hoje já teve bagunça demais e o diretor disse que é só você. Quem quiser lhe visitar que venha amanhã”. E fechou o portão. Eu queria que o Galindo viesse por que ele pode falar melhor sobre isso.

FERNANDO COELHO – Alguém mais da Comissão deseja falar? Olhe, Silvia, eu quero muito agradecer, uma vez mais, e eu acho que ao agradecer eu estou falando por todos os presentes, por que é muito importante tudo o que você disse. Quero agradecer a todos, e comunicar que amanhã as 11horas, na sede provisória do Governo, no Centro de Convenções, será feita a entrega, pelo Governador, de documentos que esclarecem a situação de Zarattini e Ednaldo em relação ao ato terrorista no aeroporto dos Guararapes e também o documento comprobatório da retificação feita no registro de óbito do estudante Odijas de Carvalho que, inicialmente, segundo a versão oficial, era como tendo sido morte natural e que agora passa a ser consignado como realmente ocorreu, como morte decorrente de torturas dentro das dependências do próprio Estado. O Governador vai fazer a entrega desses documentos oficialmente, em nome do Estado de Pernambuco, para desagravar uns e outros pelas violências cometidas contra todos eles e contra a sociedade pernambucana durante o período militar. Muito obrigado a todos. Está encerrada a sessão.-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

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