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TRANSFERÊNCIA DE ENERGIA NÃO RADIATIVA Transferência de energia não radiativa na escala nanoscópica, envolvendo átomos e moléculas, é um processo de grande importância na natureza. Nesse processo não há emissão e absorção de fótons; a energia é transferida do doador (D) para o aceitador (A) através da interação entre as nuvens eletrônicas dessas duas espécies. Os trabalhos teóricos pioneiros de Förster [XX] e Dexter [XX] estabeleceram as bases para a compreensão desse fenômeno. Uma classe especial de sistemas atômicos e moleculares em que esse processo ocorre é constituída pelos compostos de íons lantanídeos. Nesse caso distinguem-se dois tipos de processo: transferência de energia íon-íon e transferência de energia intramolecular, que ocorre entre o íon lantanídeo e os ligantes em compostos de coordenação. Há também o caso de transferência de energia não radiativa entre íons lantanídeos e defeitos ou impurezas em sólidos, o qual não será abordado no presente texto. O foco deste capítulo é a abordagem dos mecanismos de transferência de energia entre o doador e o aceitador. A interação entre doador e aceitador O processo de transferência de energia entre um doador e um aceitador pode ser esquematicamente representado pelo diagrama na Fig.X1. O doador e o aceitador encontram-se inicialmente nos estados D e A , respectivamente. Após a transferência de energia eles encontram-se nos respectivos estados D e A . Em geral a diferença de energia entre os estados do doador ( D D E E ) não é igual à diferença de energia entre os estados do aceitador ( ) E E A A , o que, em princípio, deveria acontecer, tendo em vista o requisito da conservação da energia. Nesse caso, o excesso - ou a falta - de energia é absorvido - ou fornecida - pelas vibrações do meio em que o doador e aceitador se encontram. Isso define o que chamamos de condição de ressonância; quanto mais próxima ( D D E E ) estiver de ( ) E E A A , maior será a ressonância.

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TRANSFERÊNCIA DE ENERGIA NÃO RADIATIVA

Transferência de energia não radiativa na escala nanoscópica, envolvendo

átomos e moléculas, é um processo de grande importância na natureza. Nesse processo

não há emissão e absorção de fótons; a energia é transferida do doador (D) para o

aceitador (A) através da interação entre as nuvens eletrônicas dessas duas espécies. Os

trabalhos teóricos pioneiros de Förster [XX] e Dexter [XX] estabeleceram as bases para

a compreensão desse fenômeno.

Uma classe especial de sistemas atômicos e moleculares em que esse processo

ocorre é constituída pelos compostos de íons lantanídeos. Nesse caso distinguem-se dois

tipos de processo: transferência de energia íon-íon e transferência de energia

intramolecular, que ocorre entre o íon lantanídeo e os ligantes em compostos de

coordenação. Há também o caso de transferência de energia não radiativa entre íons

lantanídeos e defeitos ou impurezas em sólidos, o qual não será abordado no presente

texto. O foco deste capítulo é a abordagem dos mecanismos de transferência de energia

entre o doador e o aceitador.

A interação entre doador e aceitador

O processo de transferência de energia entre um doador e um aceitador pode ser

esquematicamente representado pelo diagrama na Fig.X1. O doador e o aceitador

encontram-se inicialmente nos estados D e A , respectivamente. Após a

transferência de energia eles encontram-se nos respectivos estados D e A . Em

geral a diferença de energia entre os estados do doador ( DDEE ) não é igual à

diferença de energia entre os estados do aceitador ( )EE AA , o que, em princípio,

deveria acontecer, tendo em vista o requisito da conservação da energia. Nesse caso, o

excesso - ou a falta - de energia é absorvido - ou fornecida - pelas vibrações do meio em

que o doador e aceitador se encontram. Isso define o que chamamos de condição de

ressonância; quanto mais próxima ( DDEE ) estiver de ( )EE AA

, maior será a

ressonância.

Figura X1.

O processo de transferência de energia é mediado pela interação (HDA) entre as

nuvens eletrônicas das camadas de valência do doador e aceitador. Essa interação é

separada em duas partes: a interação coulombiana direta (H1) e a interação de troca

(H2), que são comumente expressas através da expansão bipolar [XX], como veremos

mais abaixo, com base nos sistemas de coordenadas mostrados na Figura X2.

Figura X2

A interação HDA é colocada na seguinte forma:

j,i

ij

ij

2

j,i ij

2

21DA Pr

e

r

eHHH (Y1)

R

ir

jr

ijr

D

A

D

D

A

A

DOADOR ACEITADOR

As somas sobre os índices i e j se referem aos elétrons de valência do doador e

aceitador, respectivamente. O operador de troca, Pij, é dado em função dos operadores

de spin is

e js

(em unidades de ) [XX]:

jiij ss2

2

1P

(Y2)

O sinal negativo na expressão (Y2) acima é, algumas vezes, considerado explicitamente

no lado direito da Eq.(Y1), de modo que, neste caso, jiij ss22

1P

.

Os elétrons 4f do íon lantanídeo são fortemente blindados pelas subcamadas

mais externas 5s e 5p preenchidas (ver Cap. CC), fazendo com que a interação entre

esses elétrons e o ambiente químico do íon seja fraca. Esse efeito de blindagem deve

ser, de alguma forma, levado em conta na interação entre as nuvens eletrônicas do

doador e aceitador (HDA). A interação HDA é também modificada pelo meio oticamente

inativo que conecta o doador e o aceitador. Para distâncias doador-aceitador para as

quais a interação coulombiana direta (H1) é dominante – em geral acima de 4Å – esse

efeito pode ser considerado através da constante dielétrica do meio (ε), simplesmente

multiplicando-se H1 por 1/ε. Num intervalo de distâncias em que a interação de troca é

dominante – abaixo de 4Å – esse efeito pode ser levado em consideração trabalhando-se

com funções de onda do íon lantanídeo apropriadamente modificadas pela fraca

interação dos elétrons 4f com o ambiente químico. Para ambos os intervalos de

distâncias, tal efeito não deve levar a mudanças de ordem de grandeza nos cálculos de

taxas de transferência de energia. Por outro lado, o efeito de blindagem produzido pelas

subcamadas 5s e 5p leva a mudanças de grande importância nesses cálculos, como

mostraremos mais adiante. A forma de levá-lo em conta depende de como as funções de

onda do par doador-aceitador são construídas. Caso essas funções de onda sejam

antissimetrizadas, os fatores de blindagem (fatores de Sternheimer), tais como definidos

nas Equações (YY) e (YYY) no capítulo (CC), não devem ser incluídos explicitamente

no hamiltoniano HDA, pois se corre o risco de contar o mesmo efeito duas vezes.

Contudo, normalmente este não é o caso, pois as funções de onda em geral são

construídas com base no modelo de sistemas independentes, ou seja, como um produto

ordinário, não antissimetrizado, de funções do doador e do aceitador.

O cálculo de elementos de matriz da interação de troca (H2) é um procedimento

de enorme complexidade [XX]. Aspectos importantes podem ser elegantemente mais

esclarecidos através de métodos de segunda quantização em conjunto com técnicas de

operadores tensoriais irredutíveis. Nesse método a interação entre as nuvens eletrônicas

do doador e aceitador (HDA) é expressa da seguinte maneira [XX]:

dar

edaad

r

edaH 21

12

2

21

,,,

21

12

2

21

,,,

DA (Y3)

Nessa expressão a+ e a são operadores de criação e de aniquilação, respectivamente, de

elétrons do aceitador, enquanto que d+ e d são operadores de criação e de aniquilação de

elétrons do doador (ver Cap.CC). As letras gregas representam funções de onda

monoeletrônicas (spin-orbitais atômicos ou moleculares). O primeiro e segundo termos

no lado direito da expressão (Y3) correspondem à interação coulombiana direta (H1) e à

interação de troca (H2), respectivamente.

O passo seguinte é escrever a interação entre dois elétrons (e2/r12) em termos de

operadores tensoriais irredutíveis de Racah, C(k)

(), utilizando a chamada expansão

bipolar [XX]:

)1)(1()(Cr)(Cr

R

)(C

Qqq

kkkk

)!k2()!k2(

)!1k2k2()1(e

r

e

21

2

2

21

1

1

21

21

21

21

1

kk2

k

q

k

21

k

q

k

1

1kk

R

kk

Q

21

21212

1

21

21

Q,q,qk,k

k2

12

2

(Y4)

Nessa expansão foi considerado que r1 e r2 são menores que R. Aqui devemos enfatizar

que os fatores de blindagem )1( k não devem ser incluídos no termo correspondente

à interação de troca H2, como já mencionado anteriormente. Além disso, no caso de

transferência de energia intramolecular (íon lantanídeo – ligantes) deve ser incluído

apenas o fator de blindagem para o íon lantanídeo, dado que esses fatores se referem

exclusivamente a esse íon.

Da teoria do campo ligante, com base no modelo simples de recobrimento,

podemos postular a seguinte relação entre os fatores de blindagem e o valor típico da

integral de recobrimento entre os orbitais 4f e as camadas de valência dos ligantes,

05.00 :

1k

0k )2()1( (Y5)

que corresponde à equação (YY) no Cap.(CC) para τ = 1. A relação (Y5) é, em última

análise, uma relação observacional, e tem se mostrado bastante útil para estimativas

numéricas dos fatores de blindagem [XX]. Outra possibilidade é utilizar na relação (Y5)

o valor médio (média aritmética) da integral de recobrimento, , para um dado

composto de íon lantanídeo. Neste caso, os fatores de blindagem poderiam variar de

composto para composto, o que é fisicamente plausível.

Na expansão bipolar (Y4) os termos de postos mais baixos devem ser os mais

relevantes - a expansão deve ser convergente -, em particular para k1 e k2 ≤ 2. Valores

dos postos k1 e k2 nesse intervalo são largamente suficientes para levar a elementos de

matriz não nulos, como veremos mais adiante. O termo para k1 = k2 = 0 é o chamado

termo isotrópico. Nesse caso a expansão bipolar (Y4) se reduz a um termo constante

igual a e2/R, e a contribuição para a interação HDA é:

,,,

x

0

2)0(

DA dadaSSadda)1(R

eH (Y6)

onde as quantidades Sij são as integrais de recobrimento entre as camadas de valência

do doador e do aceitador. O expoente x no fator de blindagem é igual a 2 no caso de

transferência de energia íon – íon, e é igual a 1 no caso de transferência de energia íon

– ligante. Usando-se a definição e propriedades dos operadores de criação e de

aniquilação (ver Cap. CC e Ref.[XX, Judd]), a primeira parcela na soma sobre spin-

orbitais se reduz a NDNA, onde N representa o número de elétrons na camada de

valência. A contribuição dada pela Eq.(Y6) pode então ser reescrita como:

,,,

AD

x

0

2)0(

DA addaSSNN)1(R

eH (Y7)

O primeiro termo no lado direito da Eq.(Y7), por ser constante, não pode contribuir

para o processo de transferência de energia. Portanto, apenas a interação de troca

contribui para o termo isotrópico da interação HDA, com uma dependência que vai com

o produto de integrais de recobrimento.

Para k1 (ou k2) = 0, e k2 (ou k1) ≠ 0, dado que os spin-orbitais de um mesmo

centro (D ou A na Fig. X2) são ortonormais, não é difícil mostrar, a partir da Eq.(Y3),

que a interação coulombiana direta (H1) contribui com elementos de matriz nulos,

enquanto que a interação de troca (H2) contribui com um termo linear nas integrais de

recobrimento. Essa linearidade, entretanto, é aparente, uma vez que elementos de

matriz de dois centros dos operadores com k2 (ou k1) ≠ 0, por exemplo,

2

)k(

q

k

22

2

2 Cr , de alguma forma depende do recobrimento 22 e são fortemente

dependentes da distância R. A título de ilustração, no caso de um elemento de matriz de

dois centros do tipo dipolo (k2 (ou k1) = 1) se a aproximação de Mülliken [XX, XX] for

usada, então:

222

)1(

q2 R2

1rC

2 (Y8)

De modo geral, a interação de troca pode ser colocada em termos de estruturas

do seguinte tipo:

dada),(P),(P)k(

q

)k(

q2

2

1

1 (Y9)

onde as quantidades )k(

q1

1P e

)k(

q2

2P são os momentos multipolares da região de

recobrimento, formada pelo recobrimento das nuvens eletrônicas do doador e do

aceitador.

Funções de onda

O modelo de sistemas independentes é bem adequado ao caso de transferência

de energia envolvendo íons lantanídeos, tendo em vista que a interação dos orbitais 4f

com o ambiente químico é pequena. Nesse modelo os estados inicial e final do par

doador – aceitador, e , respectivamente, são dados por (ver Fig.X1):

ADAD

e (Y10)

DAAD

De modo geral os estados do íon lantanídeo são dados no acoplamento intermediário,

conforme a definição apresentada no capítulo CC. No caso de transferência de energia

intramolecular, os estados do ligante são representados por funções de onda

moleculares mais localizadas na parte molecular do ligante envolvida na transferência

de energia. Isso vai requerer um modelo molecular para a definição da distância, R,

doador-aceitador, como veremos mais adiante.

Transferência de energia íon - íon

Elementos de matriz

Se estivermos interessados em estimativas de ordem de grandeza, a Eq.(Y7)

juntamente com a aproximação de Mülliken sugerem que:

2

AD

2

2 f4f4R

eADHDA (Y11)

Taxas de transferência de energia seriam então proporcionais à quarta potência da

integral de recobrimento radial 4f-4f. Nessa aproximação bastante crua, regras de

seleção importantes nos números quânticos ψ e J (funções de onda no acoplamento

intermediário) não aparecem. Uma alternativa seria utilizar o seguinte elemento de

matriz para a interação de troca:

ADr

e)ss2

2

1(DAf4f4ADHDA

ij

2

ji

j,i

2

AD2

(Y12)

onde os estados inicial e final, não antissimetrizados, do par doador – aceitador são

dados pelas expressões (Y10).

Para k1 e/ou k2 = 1 é necessário apelar para mistura de configurações eletrônicas

de paridades opostas, via a parte ímpar do campo ligante, como no mecanismo de

dipolo elétrico forçado na teoria das intensidades 4f – 4f (ver Cap. CC). Como vimos

anteriormente, essa mistura de paridades relaxa a regra de Laporte. No caso das

intensidades 4f – 4f, ocorre que o mecanismo de dipolo elétrico forçado (forças do

oscilador ~10-6

) é largamente mais relevante que o mecanismo de quadripolo elétrico

(forças do oscilador ~10-9

), que é permitido por paridade. Contudo, no caso de

transferência de energia, a mistura de paridades opostas leva a elementos de matriz que

são competitivos com aqueles permitidos por paridade em que k1 e k2 = 2. Essa

competição, como veremos mais adiante, depende fortemente da distância doador –

aceitador. Essas combinações de k1 e k2 (≤ 2) levam aos mecanismos de troca

(incluindo k1 e/ou k2 = 0), dipolo – dipolo, dipolo – quadripolo, e quadripolo –

quadripolo. As contribuições para k1 e/ou k2 ≥2 são negligenciáveis, uma vez que a

expansão bipolar converge rapidamente.

Nas contribuições de dipolo – dipolo e dipolo – quadripolo elementos de matriz

do seguinte tipo estão envolvidos (ver Cap. CC, Eq.(YY)):

fCCff4rnnrf4)1K2()1(EE

2rC )t()1(t

p,t ,K,n nf4

)1(

q

)K(t

p UKft

1f

qp

K1t (Y13)

onde representa estados do doador ou aceitador no acoplamento intermediário. Para

k1 e/ou k2 = 2 os elementos de matriz são dados por:

AA

)2(

AA

AA

AAMJ)2(2)2(

q

2 JUJMqM

J2J)1(fCff4rf4Cr AA

(Y14)

onde o teorema de Wigner-Eckart foi utilizado. A partir desses elementos de matriz a

seguinte regra de seleção é obtida: JJJJ , onde representa k1, k2 ou K.

Taxas de transferência de energia íon - íon

No modelo de sistemas independentes, de acordo com a regra de ouro de Fermi

(ver Cap. CC), a taxa de transferência de energia entre o doador e o aceitador é dada

por:

FADHDA2

W2

DAET

(Y15)

O fator F contém a condição de ressonância energética entre os estados do doador e do

aceitador, também conhecido como integral de recobrimento espectral. Essa integral

mede a interseção entre a banda de emissão do doador e a banda de absorção do

aceitador.

No cálculo das taxas de transferência com os estados no acoplamento

intermediário, faz-se a soma sobre os números quânticos M ponderada pelas

degenerescências dos estados iniciais do doador e aceitador, )1J2/(1 D e )1J2/(1 A .

Este procedimento é o mesmo utilizado na teoria das intensidades 4f – 4f, onde se

considera que os níveis Stark de um dado multipleto J têm aproximadamente a mesma

população. Com base nas equações (Y4), (Y13) e (Y14), Kushida obteve as seguintes

expressões, sem a inclusão dos fatores de blindagem, para os mecanismos dipolo –

dipolo (d-d), dipolo – quadripolo (d-q) e quadripolo – quadripolo (q-q) de transferência

de energia entre íons lantanídeos [XX]:

F)JUJ(

)JUJ(R

e

3

4

]J][J[

)1()1(W

2

AA

K

)K(

AA

A

K

2

DD

K

)K(

DD

D

K6

4

AD

2A

1

2D

1dd

(Y16)

FJUJ

fCfr)JUJ(R

e2

]J][J[

)1()1(W

2

AA

)2(

AA

2)2(2

A

22

DD

K

)K(

DD

D

K8

4

AD

2A

2

2D

1qd

(Y17)

FJUJ

JUJfCfrrR

e

5

28

]J][J[

)1()1(W

2

AA

)2(

AA

2

DD

)2(

DD

4)2(2

A

22

D

2

10

4

AD

2A

2

2D

2qq

(Y18)

Nas equações acima [J] = 2J + 1, f4rf4r 22 , e as quantidades K são a parcela

de dipolo elétrico forçado dos parâmetros de intensidades 4f – 4f (para o doador e o

aceitador), dados pelas equações (16) e (22) no Cap. CC (intensidades espectrais 4f-4f).

A partir da Eq.(Y5) é possível perceber que os efeitos de blindagem têm grande

influência nas taxas de transferência de energia, em particular no caso do mecanismo

dipolo – dipolo, o que mostra o caráter menos covalente de interações de mais longa

distância entre sub-camadas 4f. Outro aspecto que deve ser enfatizado é que as

quantidades K que aparecem nas equações (Y16) e (Y17) contêm exclusivamente a

parcela de dipolo elétrico forçado dos parâmetros de intensidades. Quando obtidos

experimentalmente, é bem conhecido que esses parâmetros absorvem automaticamente

ambos os mecanismos de dipolo elétrico forçado e acoplamento dinâmico. Portanto,

seria um erro conceitual utilizar valores experimentais desses parâmetros nessas duas

equações. Nota-se aqui, mais uma vez, a importância do acesso a estimativas teóricas

desses parâmetros.

O fator de recobrimento espectral F

Em geral este fator é obtido a partir do recobrimento espectral entre a banda de

emissão do doador e a banda de absorção do aceitador, como mostrado na Figura X3

abaixo.

Fig. X3

Esse procedimento empírico, dependendo de sua precisão, pode levar em conta

as características detalhadas dos estados eletrônicos do doador e do aceitador acoplados

à densidade de estados de fônons do ambiente químico em que doador e aceitador se

encontram. Entretanto, nem sempre o recobrimento espectral é bem resolvido

experimentalmente. Assim, estimativas do fator F a partir dos perfis e posições das

bandas de emissão e absorção do doador e aceitador, respectivamente, pode ser um

procedimento valioso. Perfis do tipo lorentzianas ou gaussianas podem ser utilizados.

No caso de gaussianas a seguinte expressão foi desenvolvida nas referências [XX] e

[XX] :

2

1

2

A

2

DAD

22ln

1112lnF

2ln

2ln11

2ln)(

2

4

1exp

2

D2

D

2

A

2

2

D

(Y19)

onde representa largura de banda a meia altura e Δ é a diferença entre as energias das

transições no doador e aceitador envolvidas no processo de transferência de energia.

Caso as larguras de banda e a diferença de energia Δ sejam valores obtidos

experimentalmente, efeitos de temperatura são incluídos implicitamente nas taxas de

transferência de energia. Valores típicos do fator F estão entre 1012

e 1013

erg-1

.

Transferência de energia intramolecular ligante ↔ íon lantanídeo

A luminescência típica de compostos de coordenação com íons lantanídeos

apresenta bandas finas de emissão característica de transições intraconfiguracionais 4f -

4f. Ademais, a sua alta intensidade de emissão é uma consequência da forte absorção na

região do ultravioleta por parte de um ou mais ligantes orgânicos que então transferem

esta energia de forma não-radiativa para o íon lantanídeo central. Esse processo foi

identificado originalmente por Weissman no ínício da década de 1940 [XX]. Desse

modo, o nível emissor 4f é, em geral, atingido muito mais eficientemente do que por

excitação direta dos níveis excitados 4f. Assim, a alta intensidade de luminescência das

transições 4f - 4f na região do visível é o resultado de um balanço entre [1-3]: i) forte

absorção no U.V. por parte dos ligantes; ii) taxas de transferência de energia ligante ↔

íon lantanídeo; iii) decaimentos não-radiativos e iv) taxas de emissão radiativas, como

esquematizado na Figura X4. Modelos teóricos recentes [4-6] descrevendo o

mecanismo da transferência de energia ligante ↔ íon lantanídeo e rendimentos

quânticos de emissão 4f – 4f levam ao estabelecimento de um esquema teórico que

permite a modelagem de eficientes Dispositivos Moleculares Conversores de Luz

(DMCLs) do ultravioleta para o visível.

FigureX4. Diagrama de níveis de energia ilustrando possíveis processos de transferência de energia

intramolecular em compostos de coordenação de íons lantanídeos. As setas pontilhadas representam

transferência de energia e as setas onduladas representam decaimentos não-radiativos. Para os processos

de retro-transferência as setas pontilhadas são invertidas.

Taxas de transferência de energia intramolecular

O processo de transferência de energia intramolecular envolve espécies (doador

e aceitador) com características bem diferentes. Em ligantes orgânicos, uma vez que a

interação spin-órbita é muito pequena o spin total é praticamente um bom número

quântico, e os estados eletrônicos moleculares têm multiplicidades bem definidas: são

singletos e tripletos, com o estado fundamental sendo um singleto. Assim, não é difícil

verificar que a contribuição isotrópica (k1 = k2 = 0) para os elementos de matriz da

interação coulombiana direta é nula. No caso da interação de troca, os elementos de

matriz singleto-singleto e singleto-tripleto também são nulos, o que não acontece no

caso de transferência de energia íon-íon (ver Eq.(Y7)).

As contribuições não nulas de mais baixa ordem para os elementos de matriz

vêm do termo dipolar (k1 = 1) do lado do ligante e os termos multipolares do lado do

íon lantanídeo, principalmente aqueles correspondentes a k2 = 0, 1 e 2 (k2 = 4 e 6 levam

a contribuições não nulas, porém muito pequenas). O termo com k2 = 0 contribui apenas

para os elementos de matriz da interação de troca, envolvendo o elemento de matriz do

operador de spin do íon lantanídeo (ver equações Y1 e Y2). O termo com k2 = 1

Ligante

| S1

Íon

Lantanídeo

Emissão 4f-4f

WTE

Absorção

| T1

| S0

| 4

| 3

| 2

| 1

(dipolo-dipolo) requer no íon lantanídeo mistura de configurações eletrônicas com

paridades opostas, como no caso do mecanismo de dipolo elétrico forçado das

intensidades espectrais 4f – 4f quando o grupo pontual de simetria do íon não contém

centro de inversão. A distância doador – aceitador, RL (normalmente entre 3 e 5Ǻ) , é

considerada como sendo a distância entre o núcleo do íon lantanídeo e o baricentro do

estado eletrônico do ligante envolvido na transferência de energia [XX]. As seguintes

expressões são, assim, obtidas para as taxas de transferência de energia:

FJUJe2

G]J[

SW

2

K

)K(

K

2

Lmd

(Y20)

para a contribuição dipolo – multipolo, com k1 = 1 e k2 = K = 2, 4 e 6, onde

2

K

2)K(

22K

L

2K

K )1(fCf)R(

r)1K(

(Y21)

Valores típicos das quantidades que compõem a Eq.(Y21) mostram que

246 . Para a contribuição dipolo – dipolo (k2 = 1) encontra-se

FJUJR

e4

G]J[

)1(SW

2)K(

K

.e.d

K6

L

22

1Ldd

(Y22)

Para a contribuição da interação de troca, com elementos de matriz do tipo dado pela

Eq.(Y12), é conveniente considerar o eixo z dos dois sistemas de coordenadas na

Fig.X2 na direção do vetor posição LR

. Dessa forma, na expansão bipolar apenas os

termos cilíndricos (Q = 0) em R permanecem. A contribuição mais relevante vem dos

postos k1 = 1, do lado do ligante, e k2 = 0 do lado do íon lantanídeo. Assim, encontra-se

F)j(s)j(JSJR

e

3

8

]J[

Lf4W

2

m j

mz

2

4

L

24

troca

(Y23)

onde no elemento de matriz do operador de spin total do lantanídeo foi utilizado o

teorema de Wigner-Eckart e posteriormente feita a soma sobre os números quânticos

JM e JM , ponderada pela degenerescência (2J+1 = [J]) do estado inicial do íon

lantanídeo. É importante notar, como discutido acima, que neste caso a contribuição

isotrópica é nula. Vê-se também a forte dependência da contribuição da interação de

troca com a distância RL, principalmente através da integral de recobrimento Lf4 .

Nas equações (Y20) e (Y22) SL é a força do dipolo da transição no ligante

envolvida no processo de transferência de energia:

2

j

L )j(S

(Y24)

Essa quantidade está relacionada ao tempo de vida radiativo ( r

L ) do estado excitado do

ligante através da expressão

L

33

r

L

S3

321

(Y25)

onde σ é a energia da transição em números de onda (cm-1

). Quando o estado

excitado é um singleto o tempo de vida radiativo r

L tipicamente está entre 10-9

e

10-7

s-1

(fluorescência), enquanto que se for um estado tripleto pode variar da escala de

microssegundo à escala de milissegundo (fosforescência). Ainda nas equações (Y20) e

(Y22), G é a multiplicidade do estado inicial do ligante.

Na Eq.(Y23) sm (m = -1, 0, 1) é a componente esférica do operador de spin do

elétron j no ligante, µz é a componente z do seu operador de dipolo e S é o operador de

spin total do íon lantanídeo. Nesta equação o eixo z de ambos os sistemas de

coordenadas na Fig.(X2) é considerado na direção do vetor posição LR

. O elemento de

matriz envolvendo os operadores de dipolo e de spin acoplados entre os estados e

do ligante pode calculado através de métodos de química quântica de modo bem

menos complicado do que aparenta ser (vide capítulo 7 da Ref.[XX] e capítulo 11 da

Ref. [XX]). Os estados e normalmente são representados por funções

determinantais que correspondem a configurações eletrônicas tais como [ ]a2, para o

estado singleto fundamental, e [ ]a1b

1, para os estados singleto excitado e tripleto, ou

seja, configurações que diferem pela excitação de um elétron (os colchetes representam

camada fechada), onde a e b são orbitais moleculares (funções de um elétron). De

acordo com as regras de Slater – Condon [XX, XX] mostra-se que:

2

Z

2

m j

mz ba2

1)j(s)j( (Y26)

quando o estado excitado é um singleto, e

2

Z

2

m j

mz ba)j(s)j( (Y27)

quando é um tripleto. Valores típicos desse elemento de matriz estão entre 10-34

e

10-36

ues2 cm

2. Deve-se notar que as regras de seleção usuais para as multiplicidades dos

estados inicial e final do ligante não mais se aplicam.

Estimativas numéricas

O caso íon – íon

Em materiais inorgânicos (cristais e vidros) dopados com íons lantanídeos,

quando transferência de energia não radiativa entre íons ocorre várias situações que

dependem das concentrações do doador e do aceitador surgem. Essas situações

encontram-se bem discutidas na literatura [XX]. Em geral, a cinética do processo

transferência de energia é convenientemente tratada a partir de um sistema apropriado

de equações de taxas, nas quais taxas de transferência de energia têm a seguinte forma:

0R

2

TETE dRR4)R(G)R(WW (Y27)

onde G(R) é uma função estatística das concentrações do doador e do aceitador. Assim,

o conhecimento da dependência da taxa de transferência WTE com a distância R, como

também o mecanismo de transferência, são pontos fundamentais na descrição da

cinética de transferência. Como mencionado anteriormente, no presente texto o foco é a

taxa de transferência de energia WTE(R) entre o par doador – aceitador.

Algumas estimativas numéricas são úteis para ilustrar razões entre os diferentes

mecanismos de transferência. Para o caso íon – íon reproduzimos aqui os resultados

discutidos na Ref.[XX] para um par de íons Yb3+

separados por uma distância R. A

Figura X5 mostra a integral de recobrimento radial entre os orbitais 4f como função de

R. A integral de recobrimento foi calculada a partir da seguinte relação:

,

22

AD

2

f4 Sf4f4S (Y28)

onde os subscritos ξ e ζ aqui representam o número quântico mf no spin-orbital do tipo

Slater sf mmf4 . Os cálculos foram realizados com o programa ZINDO.

Figura X5

As contribuições dos mecanismos de dipolo – dipolo, dipolo – quadripolo e

quadripolo – quadripolo foram calculadas com as equações (Y16), (Y17) e (Y18),

respectivamente. A contribuição do mecanismo de troca foi calculada no nível de

aproximação dado pela Eq.(Y11), que corresponde ao termo isotrópico. Os resultados

são mostrados na Tabela YY para R = 3.0, 3.5 e 4.0Ǻ.

Tabela YY

Pode-se notar a grande diferença com relação às taxas calculadas sem o efeito de

blindagem, cujos valores estão entre parêntesis na Tabela YY. Nota-se também que a

partir de 4Ǻ o mecanismo de troca é completamente negligenciável. Para uma distância

R = 10Ǻ encontra-se Wd-d = 3.2s-1

, Wd-q = 17s-1

e Wq-q = 160s-1

. Nessas estimativas a

condição de ressonância expressa pelo fator F, dado pela Eq.(Y19), foi considerada

100%, tendo em vista que, neste caso, doador e aceitador são iguais. Foram

considerados valores típicos das larguras de banda dos níveis 4f. Esses resultados

sugerem que, de modo geral, a contribuição quadripolo – quadripolo é dominante, o que

explica a alta eficiência de processos de transferência de energia íon – íon em cristais de

elpasolita, por exemplo, nos quais os íons lantanídeos ocupam sítios com centro de

inversão e, portanto, os parâmetros de intensidades K são nulos.

O caso ligante – íon

Este caso tem sido bastante estudado do ponto de vista teórico nessa última

década, com ênfase em compostos de coordenação de európio trivalente. O foco tem

sido na compreensão dos mecanismos que governam processos de transferência de

energia intramolecular nesses compostos a fim de descrever os seus rendimentos

quânticos de emissão 4f – 4f. Eles apresentam um grande potencial para aplicações

tecnológicas, pois servem de modo muito especial como sensores de radiação

ultravioleta e marcadores luminescentes [XX]. Estimativas de taxas de transferência de

energia intramolecular por ambos os mecanismos de interação coulombiana direta e

interação de troca foram feitas para um grande número de compostos de coordenação do

íon Eu3+

[XX, XX].

A integral de recobrimento radial Lf4 na contribuição do mecanismo de troca

é uma quantidade cuja estimativa, em cada caso, requer cuidado. Métodos de química

teórica podem ser utilizados. Entretanto, uma alternativa relativamente simples, mas

sem dúvida bastante criticável, é considerar uma expressão análoga àquela que tem sido

utilizada para se obter integrais de recobrimento entre orbitais 4f e orbitais de valência

de átomos (ou íons) ligantes [XX]. Esse procedimento fornece a seguinte expressão:

5.3

L

0

R

RLf4

(Y29)

onde 0 (~ 0.05) é a mesma integral de recobrimento que aparece na Eq.(Y5) e 0R é a

menor das distâncias íon – ligante na primeira esfera de coordenação.

A distância RL, definida como sendo a distância entre o núcleo do íon lantanídeo

e o baricentro da densidade eletrônica do estado doador (ou aceitador) do ligante, pode

ser calculada por diferentes métodos. Ela dependerá muito da conformação dos ligantes

no composto de coordenação. Dentre esses métodos o mais simples é [XX]:

i

2

i

i

i

2

i

Lc

Rc

R (Y30)

onde ci é o coeficiente do átomo i que entra na composição do orbital molecular do

ligante em seu estado inicial, ou seja, o orbital molecular a , na configuração eletrônica

[ ]a2, ou o orbital molecular b na configuração [ ]a

1b

1. Esta última pode corresponder a

um singleto ou tripleto excitados, sendo indistinguíveis do ponto de vista da Eq.(Y30),

exceto se entre o tripleto e o singleto excitado houver mudança significativa na

conformação dos ligantes. Ri é a distância entre o átomo i e o íon lantanídeo. Valores

de RL dados pela Eq.(Y30) situam-se normalmente entre 3.5 e 4.5Å para ligantes

orgânicos que atuam como eficientes doadores.

De acordo com o elemento de matriz reduzido do operador de spin S, a regra de

seleção no momento angular total é 0J or 1 para o mecanismo de troca, e de acordo

com os elementos de matriz reduzidos dos operadores U(K)

, JJKJJ para os

mecanismos dipolo – dipolo e dipolo – multipolo, sendo o caso 0JJ excluído em

todos esses mecanismos. Essas regras de seleção são válidas na medida em que J é

considerado um bom número quântico. Elas podem ser relaxadas pelo efeito de mistura

de J provocado pela componente de paridade par do campo ligante.

No caso de compostos de coordenação do íon Eu3+

, utilizando valores típicos das

quantidades que aparecem nas equações (Y20) – (Y23) pode-se concluir que para uma

transferência Tripleto → 5D1, por exemplo, pelo mecanismo de troca WTE situa-se na

faixa 108 – 10

7s

-1. Para uma transferência Singleto →

5L6, pelo mecanismo dipolo –

dipolo encontra-se WTE ~ 107s

-1 [XX]. Esses valores são muito superiores aos valores

das taxas de decaimentos 4f – 4f radiativos e não radiativos. Uma consequência

importante dessas regras de seleção é que, para o íon Eu3+

, transferência de energia para

o nível emissor 5D0 é consideravelmente inibida, tornando-se permitida devido à

pequena mistura do nível fundamental 7F0, majoritariamente, com o nível

7F2. Outro

caminho é através da população térmica do nível 7F1 logo acima do

7F0 (~ 300 cm

-1), o

que permitiria transferência para o 5D0 através do mecanismo de troca. Em temperatura

ambiente, de acordo com a Eq.(62) (Cap.X), essa população térmica é da ordem de 17%

[XX].

Outro aspecto relevante diz respeito à condição de ressonância através do fator

F. As larguras de banda dos estados do ligante são muito maiores que às dos estados do

íon lantanídeo. No cálculo da diferença de energia Δ na Eq. (Y19), formalmente, deve

ser considerada a transição zero – fônon no ligante, como representado na Fig. X6.

Entretanto, dada a largura de banda do estado doador do ligante e, portanto, o maior

recobrimento com os estados do íon lantanídeo, em relação ao caso de transferência íon

– íon, pode-se considerar o baricentro de sua banda de emissão (fluorescência ou

fosforescência). O baricentro é o ponto em que se determina a largura da banda a meia

altura.

Figura X6

Com relação à eficácia do processo de transferência de energia para a emissão de

fótons produzidos pelas transições 4f – 4f é importante que a condição de ressonância

não seja 100%. O estado doador do ligante deve estar energeticamente acima do estado

excitado aceitador do íon lantanídeo. Quando a ressonância é 100% a retro transferência

de energia passa a ser igualmente importante, tornando-se dominante quando o estado

doador do ligante situa-se abaixo do estado aceitador do lantanídeo. Nesse último caso a

retro transferência produz o efeito de supressão da luminescência. Esse efeito é

observado em compostos de coordenação, particularmente no caso do íon Tb3+

[XX]. O

efeito de supressão da luminescência também pode ocorrer, como no caso do íon Eu3+

,

quando há a presença de banda de transferência de carga com baixa energia [XX].