tribuna livre - edição i ano i

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>> Balanço das Comissões da Verdade, p.5 >> O assassinato de JK e a versão da Ditadura: a quem interessa?, p.3 Tribuna Livre Uma publicação do Centro Acadêmico XI de Agosto >> O XI no Golpe de 64, p.14 50 anos do Golpe Edição Especial: repressão ontem e hoje Patrocínio: >> Entrevista com Amelinha Teles, p.8 >>E ainda: O entulho autoritário e a desmilitarização, p. 15 u u por Renan Quinalha Ano I, Edição I

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Page 1: Tribuna Livre - Edição I Ano I

>> Balanço das Comissões da Verdade, p.5>> O assassinato de JK e a versão da Ditadura: a quem interessa?, p.3

Tribuna Livre Uma publicação do Centro Acadêmico XI de Agosto

>> O XI no Golpe de 64, p.14

50 anos

do Golpe

Edição Especial: repressão ontem e hoje

Patr

ocín

io:

>> Entrevista com Amelinha Teles, p.8

>>E ainda: O entulho autoritário e a desmilitarização, p. 15

u u

por Renan Quinalha

Ano I, Edição I

Page 2: Tribuna Livre - Edição I Ano I

2ª quinzena de março de 20xi | O Onze de Agosto

Editorial: Para não esquecer que continua acontecendoNo último dia 1º de abril completou--se o cinquentenário do golpe civil--militar de 1964, que inaugurou uma sangrenta ditadura de mais de duas décadas no Brasil, marcada por perse-guições políticas e intensa repressão. Se lembrar é resistir, recordar as in-justiças cometidas durante os anos de chumbo é essencial; porém, reconhe-cer a persistência de muitas de tais mazelas nos dias de hoje é fundamen-tal para que possamos construir uma sociedade democrática livre dos entu-lhos autoritários daquele período. Nesse sentido, o Centro Aca-dêmico XI de Agosto – Coletivo Con-traponto realizou na Faculdade de Di-reito do Largo de São Francisco o ato político-cultural “50 Anos do Golpe: Repressão Ontem e Hoje”, e construiu junto a outras entidades o “Ato Uni-ficado Ditadura Nunca Mais: 50 Anos do Golpe Militar”, da Comissão Esta-dual da Verdade Rubens Paiva (SP), e o “Ato Contra a Repressão Policial e Pelo Direito à Manifestação”, da cam-panha “Por Que O Senhor Atirou Em Mim?”. Em meio a essas “descomemo-rações” do cinquentenário do golpe, o Congresso Nacional vem propondo leis antiterrorismo que criminalizam as manifestações populares, expres-são consagrada da democracia. Ao mesmo tempo, em ano de Copa do Mundo no Brasil, constitui--se um verdadeiro tribunal de exceção no país, contando com o Exército nas ruas para reprimir os protestos contra as injustiças dos preparativos dos megaeventos – quais se-jam as remoções de famílias residentes nas proximidades dos estádios, as violações de direitos trabalhistas dos operários das gran-des obras, a conivência à exploração do turismo sexual etc. Essas ações são incompatíveis com a democracia que o Brasil pretende consolidar; sendo assim, o XI de Agosto lhes manifesta absoluto repúdio. A repressão policial, ade-

mais, ainda compõe o cotidiano da população das periferias das grandes cidades, da juventude negra e dos movimen-tos sociais. A atuação da Polícia Militar nesses contextos repete a vio-lação sistemática de di-reitos humanos vigente na ditadura, abnegando a condição de cidadania de grande parte do povo brasileiro. O Centro Acadêmico XI de Agosto defende, pois, a desmi-litarização das polícias do Brasil, o que signi-ficaria subverter a lógica do combate ao inimigo e implantar uma rede de segurança pública que, acima de tudo, atue de forma cidadã, respeitando os direitos e a dignidade humana de toda a população. Além disso, outras heranças malditas do regime civil-militar preci-sam ser combatidas. A primeira delas é o sistema político contemporâneo, essencialmente o mesmo elaborado pelo General Golbery do Couto e Silva – ministro da Casa Civil de Geisel. É necessário romper o vínculo entre po-der político e poder econômico, cujas raízes se encontram no financiamento privado de campanhas; valorizar o de-bate político de projetos e ideias, em

contraposição a discursos per-sonalistas, por meio do voto em lista preordenada; ampliar a participação feminina nas decisões políticas nacionais, mediante paridade de gênero nas listas etc. Tais conquistas somente serão possíveis a par-tir de uma Constituinte exclu-

siva do sistema político, com intensa participação popular. Urge, também, de-mocratizarmos os meios de comu-nicação. Nosso sistema de mídias atual, herança da ditadura, constitui--se de oligarquias, o que faz com que algumas poucas empresas tenham o controle de todas as informações

veiculadas e, assim, sejam capazes de manipular a opinião pública. É preci-so transformar essa realidade, dando espaço ao contraponto de vozes da sociedade civil e à pluralidade cultural do povo brasileiro. De toda forma, é impossível pensar em justiça de transição en-quanto não for revista a Lei da Anistia de 1979, que livrou do devido julga-mento todos os crimes de lesa huma-nidade cometidos por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura. Sob essa lei, torturadores, sequestra-dores, estupradores e assassinos per-manecem impunes, ao mesmo tempo em que suas vítimas e familiares con-vivem com o agravo do indulto estatal a seus carrascos. Todas essas reivindicações fo-ram reunidas numa carta-manifesto redigida pelo XI de Agosto, que está coletando subscrições de entidades e setores da sociedade civil para enca-minhá-la à presidenta da República, Dilma Rousseff, e ao ministro da Jus-tiça, José Eduardo Cardozo. A luta contra a ditadura ain-da não findou, e persistirá enquanto não houver a justiça de transição pela qual clama nossa democracia; pois jamais esqueceremos que continua acontecendo.u

Placa colocada pelo CA em memória aos 50 anos do Golpe de Estado que abalou a democracia brasileira

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Os textos da seção mural são de responsabiliadade exclusiva de seus autores e não refletem a opinião do centro acadêmico. Para enviar tex-tos, escreva para endereço:[email protected]

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Tribuna Livre?A Tribuna Livre, situada no Ter-ritório Livre das Arcadas, é símbolo de liberdade de expressão e manifestação dxs estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Inaugurada em 1960, já foi palco de discursos me-moráveis em conjunturas das mais diversas enfrentadas pelo Brasil. O Centro Acadêmico XI de Agosto – Coletivo Contra-ponto buscou no significado sim-bólico desse parlatório os ideais que nortearão sua ferramenta mais qualificada de comunicação e deba-te com a comunidade acadêmica e com toda a sociedade. Dessa ma-neira, anuncia a criação da “Tri-buna Livre”, o novo periódico do XI de Agosto, construído em con-junto com xs estudantes, além de movimentos sociais e personalida-des da sociedade civil. No ano em que se comple-ta o cinquentenário do golpe civil--militar, mostra-se absolutamente apropriado um espaço livre de ma-nifestação e expressão construído por todas e todos. A Tribuna Livre se mantém, pois, como instrumen-to imensurável de conclamação à luta política.u

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JK e a versão da ditadura: cui prodest? A quem interessa?*

Como divulgado pela Comissão Municipal da Verdade Vladimir Her-zog (CMV Vladimir Herzog), existem 103 fatos e testemunhos que levam à conclusão que o Presidente Juscelino Kubitschek foi morto pelo regime de exceção brasileiro, que desenvolveu uma política sistemática e organizada de perseguição e eliminação de seus adversários, com a sua consequência lógica em relação às provas: adulterá--las, forjá-las, eliminá-las.

Foram analisados pela CNV Vladimir Herzog inúmeros documen-tos, relatos e depoimentos de pesso-

as que presenciaram o fato e tinham informações sobre as suas circunstân-cias. Tudo isso foi feito levando-se em conta o contexto que circunda a análi-se desse acontecimento: entre outros, a Carta da Operação Condor, enviada pelo Coronel chileno Contreras Sepul-veda a J. B. Figueiredo (integrante das forças de repressão, então chefe do SNI), em 28 de agosto de 1975, sobre o perigo que JK representava no con-texto da abertura política dos Estados latino-americanos; a parada do carro do ex-Presidente minutos antes da colisão, em hotel de amigo próximo

de Figueiredo; o fato de que JK tinha agendada nos próximos dias reunião com militares para discutir os cami-nhos da abertura brasileira; a falsa notícia veiculada por rádio e jornais de que JK teria sido vítima de aciden-te de trânsito na Via Dutra, dias antes do verdadeiro “acidente”.

A reconstituição da Memó-ria do nosso país exige, por parte do Estado, a consideração dos fatos his-tóricos, lidos à luz dos princípios que sustentam o Estado de Direito, con-sagrados em nossa Constituição. Esse passo como civilização exige a revela-

ção integral dos fatos e documentos obscuros do passado, como feito por diversos países, que tornaram públi-cos todos os documentos de Estado de seus regimes ditatoriais. Os EUA es-tão liberando inúmeros documentos, como as determinações de Kennedy em apoio ao golpe, o que torna ainda menos razoável que nosso Estado te-nha uma postura tão obscurantista.

O procedimento adotado pela CNV para avaliar o Caso JK teve inú-meras contradições, falhas e fragilida-des, que não tornam suas conclusões legítimas para que ensinemos aos nossos filhos, netos, bisnetos, o que aconteceu no período. Sua tentativa de estancar o debate e as investiga-ções, inclusive, só demonstram seus limites.

Sob a aparência de suposta “técnica”, chega a conclusões insus-tentáveis, que não serviriam sequer para uma decisão judicial em que se postula indenização securitária por acidente de trânsito. Incabível que tais fragilidades argumentativas possam significar “a verdade absoluta” – como nervosa e apressadamente querem seus defensores – sobre uma política de Estado que se articulava transna-cionalmente, financiando a repressão, incluindo os órgãos “de prova” e exa-mes periciais.

Buscando legitimar-se sob o argumento do trabalho “estritamente técnico”, a CNV do Estado de Direito adotou (a) a versão oficial do Regime Militar, (b) seus “documentos” e “in-formações”, (c) com um critério pro-batório em que as “verdades” criadas pelo Estado de Exceção são presumi-das verdades, cabendo às vítimas de sua política de exceção, já no regime do Estado de Direito, décadas após a ocorrência dos fatos, provarem o con-trário, o que é praticamente impossí-vel. Se, em nosso Estado de Direito, consumidores possuem o direito de inversão do ônus da prova, o que se dirá das vítimas da repressão ditato-

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rial? É cristalino que a “técnica” invo-cada é, na verdade, uma lamentável opção política.

Assim, “tecnicamente”, a Co-missão passou a replicar documentos sobre os fatos produzidos durante e pelo próprio regime ditatorial para chegar, “por coincidência”, às mes-mas conclusões: tudo foi produto do “destino”, porque “Deus quis” (como lamentavelmente afirmado pelo Sr. José Paulo Cavalcanti Filho na Folha de São Paulo, dia 28 de abril de 2014).

Ao longo de seu trabalho, a CNV desconsiderou a perseguição sofrida por JK (a exemplo dos inúme-ros Inquéritos Policiais Militares que respondeu); as articulações do regi-me para a “abertura lenta e gradual” e suas tensões internas entre grupos ainda mais duros do que a face pública da ditadura; as ameaças a essa aber-tura controlada representadas pelas figuras de JK, Jango e Lacerda; além da imensa quantidade e qualidade de fatos que constam do Relatório da CMV Vladimir Herzog.

Assim, “tecnicamente”, os “documentos” do regime profissiona-lizado em adulteração de documentos são classificados como “boa prova”, e o resto é considerado “conspiração”. As “provas” deixadas pelo regime espe-cializado em forjar provas são toma-das como “sólidas”, e o resto é “o coro dos descontentes”. Assim, a força da repressão perpassa as décadas, captu-rando nosso direito à verdade e modu-lando um país de mentiras.

A CNV sequer se dispôs a dis-cutir o caso com os membros desta Comissão, ignorando testemunhos vi-vos das circunstâncias da época, como

o depoimento do motorista da Viação Cometa, Josias Nunes de Oliveira, a quem foi oferecida uma mala de di-nheiro para assumir a culpa pelo “aci-dente”. Não contou também que ele foi judicialmente absolvido, em defi-nitivo, por inexistir qualquer prova de que teria causado o tal “acidente”.

São tantas as fragilidades dos procedimentos e conclusões dessa Co-missão, que darão, certamente, um

estudo de caso sobre como não se pro-ceder no futuro.

Causa perplexidade que o Estado de Direito, por meio de uma Comissão da Verdade que deveria re-velar e questionar tudo o que se disse, fez-se e registrou-se pelo Estado de Exceção, simultaneamente: (1) sufra-gue a veracidade dos “documentos” forjados pela máquina de mentiras do Estado de exceção; (2) impute às suas vitimas o ônus da prova, obrigando-as a desconstituir, décadas depois, todas as “provas” forjadas e adulteradas pela máquina da repressão; (3) com base nessas duas premissas inaceitáveis, faça afirmações peremptórias sobre “a verdade” e, (4) buscando a desmo-ralização pública dos que não aceitam a versão da ditadura ou sua aceita-ção inconstitucional pelo Estado de Direito, evoque o “destino”, como se não houvesse instituições, homens, Estados estrangeiros, financiadores, operando para que o “destino” fosse exatamente o que eles quisessem, por meio da força.

Mas, certamente, para além das perplexidades, resta a clássica pergunta, formulada pela sabedoria dos jurisconsultos romanos quando queriam aproximar-se da verdade dos fatos: Cui prodest? A quem interes-sa? A quem interessa que o Estado de Direito tenha esse grau de submissão ao Estado de exceção? Só a comple-ta abertura dos arquivos – sobre JK, Jango, Lacerda e tantos outros bra-sileiros, famosos ou não, vítimas do “destino” e das “coincidências” que os Fleurys, Malhães e outros servidores da Ditadura lhes prepararam – poderá responder.

É dever da Comissão Nacional reabrir o caso, estabelecendo diálogo com a sociedade e com o trabalho da CMV Vladimir Herzog. O Brasil não aceita mais o “destino” imposto pe-los ditadores. O povo brasileiro quer a verdade, ampla, geral e irrestrita sobre a sua história. Esse é o país que queremos entregar aos nossos filhos e netos. Este é um país digno.u

*Colaboração da mestranda Lea Vidigal Medeiros

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Comissões da Verdade no Brasil: balanço e perspectivas

A busca da verdade em contex-to pós-autoritário

No momento em que se rememoram os 50 anos do golpe militar que deu início à mais recente ditadura brasi-leira (1964 -1985), as declarações do coronel reformado do Exército Paulo Malhães, em audiência pública da Co-missão Nacional da Verdade (CNV) ocorrida há um mês, bem como seu assassinato em estranhas circunstân-cias na semana passada, chocaram o Brasil. "Matei tantas pessoas quan-to foram necessárias", disse ele, refe-rindo-se a sua atuação como agente do aparelho de repressão. Durante a ditadura, uma ampla estrutura de violência foi utilizada para a perse-guição de dissidentes políticos. Pelos levantamentos até hoje conhecidos, conforme apuração que consta no “Dossiê” publicado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desapareci-dos Políticos, as violências atingiram cifras muito elevadas no Brasil: mais de 50 mil presos nos primeiros meses depois do golpe, 437 mortos e desa-parecidos políticos,10.034 pessoas submetidas a inquérito e 7.376 indi-ciadas por crimes políticos, 130 bani-dos, 4.862 cassados, 6.952 militares atingidos, 1.188 camponeses assassi-nados, 4 condenados à pena de morte e milhares de exilados. Apesar de elevados, esses nú-meros não oferecem a real dimensão das violências que foram praticadas pela ditadura militar brasileira. Pri-meiro, porque é impossível medir, em números, a gravidade e a herança de violências de um regime autoritário. Segundo, o próprio caráter arbitrário das ditaduras esconde o número real das violações de direitos humanos, pois muitos casos anônimos, sequer conhecidos, não se encontram regis-trados nas listas existentes sobre esse tema. Desde a transição democráti-

ca, os familiares de desaparecidos po-líticos e as ex-vítimas da ditadura rei-vindicaram a verdade e a justiça face às violências de Estado cometidas no passado recente. No entanto, somente há pou-cos anos é que essas reivindicações ganharam mais espaço na agenda po-lítica brasileira. Do ponto de vista das políticas públicas de reparação, me-recem destaque a Lei 9.140, de 1995, por meio da qual foi reconhecida a responsabilidade oficial do Estado em alguns casos de mortos e desapareci-dos. Em 2002, por medida provisória depois convertida na Lei 10.559, de 2003, foi criada a Comissão de Anistia com o objetivo de prover a reparação pecuniária e simbólica às vítimas da ditadura. Mais recentemente, no en-tanto, um marco fundamental foi a edição da Lei 12.528, de 2011, que criou a CNV com o objetivo de exami-nar e esclarecer as graves violações de direitos humanos no Brasil no perío-do que vai de 1946 até 1988, com foco na ditadura.

Funções das Comissões da Ver-dade

A Comissão da Verdade é um dos ins-trumentos utilizados na investigação de um passado de violações de direi-tos humanos, para que se realizem as reparações adequadas às vítimas e para que as violências não se repitam. Há uma série de obrigações internacionais que devem ser cum-pridas pelos Estados para lidar com o legado de violências de regimes auto-ritários. É possível agrupá-las, de for-ma didática, em cinco grandes eixos: verdade, memória, reparação, justiça e reforma das instituições. No que se refere à busca e à revelação da verdade em torno das violações de direitos humanos, há di-versos mecanismos dos quais os go-

vernos podem se valer para efetivar políticas públicas adequadas nessa área. Esses mecanismos, no entanto, devem estar orientados no sentido de garantir o direito à verdade das víti-mas, de suas famílias e da sociedade como um todo. Para garantir o direito à ver-dade, é preciso que haja a abertura mais ampla possível dos acervos de documentos oficiais da ditadura, di-vulgando os dados produzidos pelos órgãos de informação e pela burocra-cia estatal. Além disso, um mecanismo que vem sendo utilizado em inúmeros países são as Comissões da Verdade. De forma geral, as Comissões da Verdade são órgãos oficiais ou ex-tra-oficiais, instituídos com a função de construir uma narrativa de um pe-ríodo de graves violações de direitos humanos, apontando os crimes que foram cometidos, as circunstâncias dessas violências e as pessoas envol-vidas. Normalmente são compostas com pessoas comprometidas com a defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos. A depender das particularidades de cada nação, a Co-missão pode assumir formatos e fun-ções diferentes. Os principais objetivos das Comissões de Verdade são: construir uma memória coletiva dos fatos ocor-ridos no passado; superar a negação oficial das atrocidades cometidas e reconhecendo-as publicamente; iden-

tificar as vítimas das violações de di-reitos humanos para promover polí-ticas de reparação efetivas; conhecer as circunstâncias em que ocorreram; identificar os autores das violências, responsabilizando-os socialmente e, se possível, colhendo elementos que permitam também a responsabiliza-ção penal; criar uma narrativa his-tórica comum para um novo futuro; garantir a dignidade das vítimas e dos seus familiares;romper com o ciclo de violências e promover a estabilidade do novo regime; educar a população sobre o ocorrido e recomendar cami-nhos para coibir a repetição dessas práticas.

O caso brasileiro: desafios a serem enfrentados

Nessa linha, a CNV é um órgão de Es-tado, sem poderes jurisdicionais, mas investida de prerrogativas importan-tes para investigar as “graves viola-ções de direitos humanos” conforme definição legal. Pela primeira vez em nosso lento e conturbado processo de justi-ça de transição, uma lei consagrou o direito à verdade em nosso país, dan-do poderes para que a Comissão possa convocar agentes públicos para pres-tar depoimentos, requisitar documen-tos e, o que é bastante importante, apontar os autores das violências co-metidas, reconstituindo as cadeias>>

por Renan Honório Quinalha1

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Page 6: Tribuna Livre - Edição I Ano I

de comando da máquina repressiva estruturada pela ditadura. Sob o impulso inicial da CNV, diversas Comissões da Verdade foram criadas em nível regional e mesmo setorial. Entes federativos, assem-bleias legislativas, sindicatos, univer-sidades, entidades da sociedade civil, enfim, uma ampla rede nacional de apoio foi formada. Inúmeras têm sido as audi-ências públicas realizadas por todo o país. Somente na Comissão da Ver-dade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, foram mais de 120 audiências abertas aos interessados e com trans-missão ao vivo, com ampla participa-ção de vítimas e de familiares. Muitas informações têm sido sistematizadas a partir desses espaços de escuta ofi-ciais abertos pela primeira vez pelo Estado brasileiro. No entanto, passados quase dois anos do começo do funciona-mento da CNV, nota-se que seu traba-lho investigativo está, de certo modo, bloqueado. As Comissões têm privi-

legiado a reconstrução da memória das vítimas e o acolhimento de seus sofrimentos, tarefas sem dúvida fun-damentais e necessárias. No entan-to, com raras exceções, pouco se tem avançado efetivamente na descoberta de novos fatos. Isso se deve a diversos fatores que marcaram o antes, o durante e o depois do processo de criação das Co-missões. No entanto, a falta de apoio político de outros órgãos de governo, em especial da Presidência da Repú-blica, tem causado um isolamento daCNV, que se manifesta na incapaci-dade desta de levar adiante os emba-tes necessários com os setores milita-res e civis herdeiros da ditadura, como Forças Armadas e empresariado, que ainda mantêm um poder residual im-portante no sistema político brasilei-ro. Cada vez mais fica claro que não houve, até o momento e a conten-to, a submissão do poder militar ao controle civil em nossa democracia. As Comissões da Verdade não podem

ser cobradas para realizar algo que, em quase 30 anos, os governos demo-cráticos não puderam ou não quise-ram levar a cabo e que são obrigações do Estado brasileiro. Muitos arquivos já se encon-tram disponíveis para consulta e al-guns estão até mesmo digitalizados. No entanto, é preciso que haja, para o sucesso das Comissões da Verdade no Brasil nesse tempo restante, o pleno e integral acesso aos arquivos milita-res ainda não vistos, que certamente não foram destruídos como já alegado pela cúpula das Forças Armadas quan-do requisitados.

Além disso, as Forças Armadas, en-quanto instituição, precisam contri-buir efetivamente para levar adiante esse processo de apuração de respon-sabilidades, assumindo o que alguns de seus integrantes fizeram e pedindo perdão à Nação. As Forças Armadas não podem silenciar alegando nada te a declarar diante de confissões de cul-pa por crimes tão graves como aqueles

cometidos por um de seus agentes, Paulo Malhães, conforme seu depoi-mento à CNV. Resta aguardar o resul-tado das sindicâncias internas que as Forças Armadas se comprometeram a realizar para apurar o envolvimento de seus agentes com as violações de direitos. Cabe ao governo brasileiro, nessa encruzilhada decisiva da nossa história, valer-se da legitimidade po-lítica da qual está investido para usar sua força de comando sobre as corpo-rações militares a fim de garantir o restabelecimento da verdade e o res-peito aos direitos humanos. u ______________1Graduado e Mestre em Direito pela USP. Doutorando em Relações Interna-cionais (IRI/USP) e advogado da Comis-são da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Autor do livro “Justiça de Transição: contornos do conceito” (Expressão Popular, 2013).

Escola de Samba Águia de OuroAv. Presidente Castelo Branco, 7683 (Marg. Tietê)

g4 - A festa

Se beber não dirija.

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Page 7: Tribuna Livre - Edição I Ano I

Jango e as Reformas de BaseA renúncia de Jânio Quadros é um

dos fatos mais determinantes para a história brasileira. Essa marca o início da polarização de forças conservado-ras e progressistas/desenvolvimentis-tas. As evidências desse processo vêm se tornando expressivas já bem antes, Carlos Lacerda, da UDN, e setores mi-litares já preconizavam abertamente o regime de exceção.

Em um primeiro momento tentaram impedir a posse do presi-dente Kubitschek, no entanto a ação foi duramente reprimida pelo general Henrique Teixeira Lott. Em meados de 1958, já no governo Kubitschek, iniciaram-se discussões sobre mu-danças estruturais pelas quais o Brasil necessitava há tempos. Os setores da aeronáutica tentaram derrubar o pre-sidente em dois momentos: 1956, na Revolta de Jacareacanga, e em 1959, na Revolta de Aragarças; isso nos mos-tra já uma prévia do que estava por vir.

Com Juscelino temos o Plano de Metas, que visava melhorar a infra-estrutura para beneficiar a indústria de transformação, embora o ônus des-se processo tenha sido uma alta infla-ção no final do projeto. Nas eleições para o sucessor de Kubitschek temos o maior fenômeno político desde en-tão: a eleição de Jânio Quadros e seu governo de apenas 8 meses.

Com isso, quem assume é seu vice, Jango. Após as disputas para de-cidir o presidencialismo ou o parla-mentarismo, as pautas estruturais to-maram maior delineamento. O então ministro de planejamento, Celso Fur-tado, cria os planos trienais em busca de um maior crescimento do PIB. São lançadas as Reformas de Base, meio de superar o subdesenvolvimento eco-nômico e social, que reivindicavam as reformas nas estruturas agrária, fiscal, urbana, bancária, educacional e eleito-ral.

Reforma Tributária:• Aumentaria impostos diretos, es-

pecificamente sobre patrimônio e a renda, para que os mais ricos e os mais pobres paguem proporcionalmente;

• Reduziria os impostos indiretos,

evitando que as camadas com menor renda sejam mais afetadas;

• Estatizaria bancos estrangeiros de depósitos, de seguradoras e as ativi-dades ligadas à Eletrobras, o petróleo (em benefício do monopólio da Petro-bras), as ferrovias e a mineração;

Reforma Urbana:• Facilitaria as desapropriações, per-

mitindo assim maior acessibilidade das camadas mais pobres a cidade, e não segregando-as nas periferias ape-nas;

• Criaria uma política de transportes coletivos, para que aqueles que moram em regiões mais distantes dos centros possam a ele chegar;

Reforma Bancária:• Limitaria a remessa de lucros para

o exterior, o que forçaria as multina-cionais investirem parte de seus lucros em nosso país.

• Canalizaria recursos da poupança popular para ampliação dos créditos para os outros programas das Refor-mas e para os produtores;

• Ampliaria a atuação do Banco do Brasil;

Reforma Educacional:• Acabaria com a seleção pelo méto-

do do vestibular, uma vez que a uni-versidade e o ensino superior é um direito de todos;

• Aumentaria a participação de fun-cionários e alunos nas decisões das universidades, uma vez que estes são partes tão fundamentais quanto os professores neste sistema;

• Valorizaria o ensino público e o magistério em todos os níveis;

• Combateria o analfabetismo com a ampliação do método Paulo Freire;

Reforma Eleitoral:• Estenderia o direito ao voto aos

analfabetos e aos militares de baixa patente;

• Tiraria da ilegalidade o Partido Co-munista Brasileiro (PCB), estando na ilegalidade desde 1947 no governo do então presidente Eurico Gaspar Dutra;

• Começaria a rever a relação do po-

der econômico com as eleições, ou seja, a formação de lobbys no Congresso;

Reforma Agrária:• Decreto Supra - desapropriaria os

latifúndios improdutivos (que fun-cionassem contrariamente à função social da terra) com mais de 1000 hec-tares ao longo de 100 quilômetros de cada margem das rodovias federais com a indenização em títulos da dívi-da pública;

• Estenderia ao campo os principais direitos dos trabalhadores urbanos por meio do Estatuto do Trabalhador Rural, visto que o sindicalismo rural só fora regulamentado em 1962.

A reforma agrária foi, sem sombra de dúvida, o estopim para a reação das forças conservadoras, re-sultando no golpe de 1 de Abril. Os ruralistas eram muito fortes e não queriam perder seus poderes de co-ronéis. Nossa história esta calcada na colonização, e esta balizou-se na es-trutura latifundiária e escravista. Por medo de uma “segunda Cuba”, os EUA e as elites encaravam qualquer proje-to de distribuição de terras como uma ameaça gravíssima, assim foi por toda América Latina, tanto na Guatemala de Guzmán, quanto no Chile de Allen-de, quanto no Brasil de Jango.

Até hoje nós vemos os reflexos dessa formação em nossa sociedade: o Brasil é o segundo país do mundo que mais concentra terras e temos uma das

maiores desigualdades sociais tam-bém, este último tendo íntima ligação com o processo de abolição da escravi-dão. Estes problemas acarretarão ou-tros, como o êxodo rural, macrocefalia urbana, aumento da criminalidade, fome, entre vários outros.

A proposta de Goulart era ten-tar sanar, ou ao menos diminuir esses problemas. Em um projeto desenvol-vimentista e longe de ser comunista, como alarmavam absurdamente a mí-dia, acusando o presidente de tentar impor uma república sindicalista. Po-rém, os interesses financeiros da elite civil e os projetos norte-americanos que a alta cúpula das Forças Armadas defendiam, unidos a uma boa dose de ideologia conservadora, foram o suficiente para matar essa proposta, para não dizermos que também o pró-prio Jango na Operação Condor (que também teria sido a responsável pela morte de mais dois líderes da Frente Ampla contra a ditadura: Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda).

Ao olharmos o Brasil hoje, ve-mos a urgência e a atualidade dessas reformas que discutíamos há 50 anos. Os pontos estruturais que esse progra-ma reformista previa continuam into-cados, o que nos mostra um grande atraso de nosso sistema político como um todo. As Reformas de Jango são ainda necessárias e não apenas elas, como muitas outras mais. u

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Page 8: Tribuna Livre - Edição I Ano I

Entrevista: Maria Amélia de Almeida Teles: a militante Amelinha

Maria Amélia Teles, ou Amelinha, como é conhecida, é uma das grandes referências nacionais na luta pelos deireitos de Memória e Verdade e pela Justiça de Transição. Comunista e fe-minista, militava na imprensa clandes-tina quando foi presa junto com seu companheiro, sua irmã grávida e os fi-lhos pequenos – Janaína e Edson Teles, com 5 e 4 anos na época –, pela Opera-ção Bandeirantes (OBAN) em São Pau-lo. Amelinha é fundadora da Comissão de Familiares de Mortos e Desapareci-dos Políticos e, recentemente, integra a Comissão Estadual da Verdade de SP. Após acompanhar uma reunião da Comissão da Verdade Estadual, o XI de Agosto passou uma tarde conversando com Amelinha, e o resultado foi incrí-vel entrevista que se segue.

PERGUNTA: Amelinha, a nossa entrevista é porque vamos lançar um jornal temático da mulher, por conta do oito de marco. Queríamos falar sobre sua trajetória política, desde o inicio.

RESPOSTA: Na adolescência eu procurei uma organização que meu pai já militava, o partido comunista. Por necessidade da organização eu sempre fui muito ligada ao trabalho, no sindicato, na associação de morado-res ou na imprensa, ou melhor, distri-buindo material em porta de fábrica, nos bairros populares. Eu fui um pouco estudante... Pouco, mas fui. E naquela época os livros não eram descartáveis, os livros eram raridades, então fazía-mos trocas de livros. Juntávamos um caminhão, um aparelho de som e a gente juntava as pessoas para uma tro-ca de livros.

Trabalhei na companhia si-derúrgica Mannesmann. Trabalhei lá até ser demitida depois do golpe mi-litar. Pois na ocasião o primeiro a ser sequestrado em minha casa foi meu pai. Logo em seguida fomos eu e mi-nha irmã. Eu tinha dezenove anos e ela

dezesseis, porque a gente ia procurar meu pai, desaparecido. E nos íamos para os quartéis buscar meu pai, ten-tar obter informação. Eu lembro que eram filas imensas, que dobravam o quarteirão, debaixo do sol quente, e você ficava ali horas e horas. Eles pe-gavam o seu RG, levavam lá pra dentro e você tinha que esperar devolverem a sua carteira de identidade para depois te dizerem se havia informação ou não. Sempre falavam que não tinha nenhu-ma informação. Então você ficava ali, fichada. E chegou uma hora que leva-ram a gente. Aí fui demitida porque a empresa falava que “se você for indiciada, nós te demitimos. Por enquanto você é só acusada de ser subversiva”. E na verdade já tinham te condenado. Porque quando botam seu nome no jornal “indi-ciada no IPM - Inquérito Policial Militar tal”, você já está con-denada. A empresa me mandou embo-ra e então fui para a clandestinidade. Fiquei muito tempo na imprensa por conta dessa história.

Você usava outro nome? Ah sim, sempre, codinome.

Ninguém pode saber seu nome. Nun-ca ninguém pode saber quem é você de fato. A clandestinidade é um período muito difícil da vida. Principalmente para mim, a clandestinidade, porque fui viver dos vinte anos de idade até quando voltei a ser sequestrada e fiquei um ano na cadeia, em 1972 e 1973, com 28 anos. Você não poder falar da sua ideia, não poder se expressar, não poder se encontrar com seus amigos. Na clandestinidade meus amigos eram mortos. E você não podia nem chorar a morte deles. Você olha no jornal que fulano morreu, “terrorista morto em tiroteio”, e você na rua não pode nem chorar porque seu amigo foi morto.

E esses anos eu vivi com meu

companheiro, que até hoje está comi-go. Nós fomos sequestrados juntos, nossos filhos foram sequestrados... Tenho dois filhos, e na época os dois eram crianças pequenas. Muitos dos meus companheiros, minha geração da política, que compartilhava comigo dos mesmos ideais e as mesmas estratégias de luta, esse pessoal todo morreu. So-mos considerados sobreviventes.

E nesse período da sua vida na clandestinidade, já existiam mulhe-res organizadas...

A questão das mulheres é a seguinte. Se for pegar dos anos vinte aos trinta, nas organizações das mulhe-res, temos as operarias, que se organizam em sindicatos pra reivindicar melhores condições de trabalho, e nisso vamos encontrar as mulheres

mais intelectualizadas lutando pelo di-reito de voto. Porque o voto nos vamos conseguir só em 1932. E essas organi-zações acabam se dispersando depois do direito de voto. Mas os comunistas começam a reorganizar as mulheres, era uma proposta do movimento co-munista internacional organizar as mulheres. Durante a ditadura Vargas nós vamos encontrar também mulhe-res organizadas lutando pela Anistia, pela Constituinte, e isso vai se fechar em 1945, 1946.

Nessa época, o PC faz uma Fe-deração das Mulheres do Brasil, com-posta por mulheres comunistas, ou sob a influência dos comunistas. São as mulheres que vão fazer os trabalhos nas periferias e que vão organizar os movimentos populares. A Igreja Ca-tólica era radicalmente contra o movi-mento comunista nesse período todo. E pedem a Juscelino para fecharem a Federação, porque as mulheres estra-vam atrapalhando seus trabalhos. Elas queriam ir na favela para ficar rezan-

do, e as comunistas queriam ir lá para lutar contra o custo de vida, para lutar por alfabetização, por escola, saúde. Elas queriam um movimento político, enquanto as outras queriam fazer um movimento mais religioso, de dou-trinação. E essas mulheres da Igreja Católica são muito influentes, então vão lá falar com Juscelino para fechar e proibir a Federação de Mulheres do Brasil. E Juscelino fez isso. Ninguém sabe dessa história, por isso gosto de contar. Fecharam a Federação e os co-munistas, os homens, os dirigentes, fi-caram todos quietinhos porque faziam política de alianças por debaixo dos pa-nos. Como isso não era legal para um comunista, tinha de ser velado. Mas fa-ziam articulação. Vocês acham que não tinha comunista no governo? Tinha... Então ficaram quietos e deixaram as mulheres pra lá!

E quando nós da esquerda, junto com o Jango, fizemos aquele co-mício lá no 13 de março, na Central do Brasil, e que tinha umas 300mil pesso-as. (Naquela época foi o maior comício do mundo). O que a direita fez? Tinha que botar povo na rua. Botou quem? A mulher. A Marcha com Deus pela fa-mília e pela liberdade. Isso foi no dia 19 de março. Eram as mulheres bran-cas, da classe média tudo na frente. E o resto era tudo mulher negra, mulher favelada, mulher pobre. Eram as mu-lheres com as quais lutávamos pra ter moradia, pra ter reforma agrária! Lutá-

Você olha no jornal que fulano

morreu, “terrorista morto em tiroteio”, e na rua não pode nem

chorar porque seu amigo foi morto.

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vamos junto delas. Então alguma coisa estava errada nisso. Estávamos fazen-do alguma política errada, que estáva-mos deixando a mulherada toda ser guiada por essas forças conservadoras enquanto as forças progressistas esta-vam nem aí pra mulher. Então se há uma data para eu me tornar feminista, é o dia 19 de março de 1964. Tinham 250 mil mulheres. São quilômetros de mulheres, vocês não têm ideia.

Como que era isso no PCB? No PCB era um horror. Teve

um congresso das mulheres na URSS. Vocês acham que faziam uma reunião das mulheres pra escolher quem iria fa-lar? Não! Os homens é que escolhiam. “Nós vamos escolher fulana porque ela é muito diplomata, ela sabe lidar, ela conhece idiomas...” Entendem? Era um critério técnico, e não político! Não tinha um critério de atuação, de com-promisso, de defender uma ideia. E não faziam uma discussão das questões das mulheres. Imaginem se alguém discu-tiria aborto, por exemplo. Eu morava numa vila operária, e tinha aborto de monte, as mulheres ficavam gravidas, ainda mais naquela época, que não ha-via ainda muitos métodos anticontra-ceptivos. Elas ficavam gravidas, preci-savam fazer um aborto e a gente que levava na parteira. Isso não se discutia, tinha coisa mais séria. Nada que dizia respeito às mulheres era pra ser dis-cutido dentro de um espaço político. Era essa a realidade. Eu, por exemplo, gostava de militar, gostava de fazer discussão política com o povo todo. E eu ia só com homens. Se eu pergun-tasse para alguma mulher “vamos lá comigo?” Respondiam “ah eu acho que meu pai não vai deixar, ah meu irmão

não vai deixar”. Isso porque o pai era comunista, o irmão era comunista, o namorado... Mas ela não podia, tinha que pedir ao namorado, ao irmão e ao pai. Não ficava bem pra eles.

Fale sobre a transição para tática da luta armada e da sua expulsão do PCdoB.

Eu deixei o PCB para ir para o PCdoB por causa da luta armada. Em 1959, com a vitória da revolução cuba-na, ficou muito evidente para nós. Isso não era eu ou uma outra pessoa. Isso era uma discussão que corria no meio todo nosso: uns achavam que tínhamos de fazer a revolução pacifica, outros, que a revolução era armada. Eu vivi o pré--Golpe. E havia muito conflito, muita luta, pois as pessoas que eram contra a reforma agrária vinham com pedaços de pau deste tamanho (1,5m) pra ba-ter na gente. E a polícia via baterem na gente e não fazia nada! Quando a po-lícia tá prendendo, não pensem que é vândalo, é porque no mínimo estão achando que são pró-esquerda. Porque quando é pró-direita, não prendem. Eu lem-bro disso. A gente apa-nhando e eles ficavam lá impassíveis. E saí do PCB porque adotavam a linha da revolução pacifica.

Embora houvesse as etapas em nosso discurso, nós ficamos com a revolução armada. E no PCdoB não havia mulheres organizadas, como eu falei. Depois da Marcha com Deus e do Golpe só fui atuar com mulheres. E muitas mulheres que eu conheci logo foram para a guerrilha do Araguaia. Nessa época eu continuei na imprensa,

mas já queria colocar artigos sobre a mu-lher, e se fizesse um texto enorme, só pu-blicavam três linhas. Diziam que tinha coisa mais impor-tante. Eu achava que devia ter mesmo, mas queria um espa-ço maior, sendo essa uma discussão que fiz muito no PCdoB. Depois o partido foi ficando com uma po-

sição política que eu não concordava e acabaram me expulsando. Mas me expulsam bem depois da prisão, em 1987.

Na prisão você conhece outras companheiras também, né?

Na prisão eu vou ter um cole-tivo de mulheres. São 23 mulheres que eu vou cumprir pena. Sendo que essas mulheres são de várias organizações, não são feministas, mas são mulheres que estão rompendo com muitos este-reótipos. Estão na vanguarda revolu-cionária, numa posição bem de frente. Eu fiquei com uma feminista, que ate hoje é ministra, a Eleonora Menecutti. De qualquer forma a experiência com mulheres lá me fortaleceu muito no fe-minismo. Fiquei um tempo presa, ou-tra outro tempo em outro lugar e assim por diante. Já em liberdade juntamos aí umas 30 mulheres das mais variadas organizações. Não nos conhecíamos

de antes. Foi uma ex-periência de esquerda que nunca vi tão inte-ressante. Porque tinha VPR, eu do PCdoB, ti-nha PCB, tinha a AP e suas várias tendências, tinha a ALN, BPR, ti-nha o MR-8, o MEP

(Movimento de Emancipação do Pro-letariado). Fazíamos reuniões com di-vergências políticas e trabalhávamos sobre o consenso para fazer o jornal Brasil Mulher. Um jornal voltado para a mulher operária, pobre, da periferia, então era um desafio muito grande.

Como você vê as organizações de donas-de-casa que se desenvolve-ram nesse período? Há algumas que até hoje estão ativas.

As mais fortes eram daqui de SP. E eram de esquerda né, tinha uma Associação das Donas-de-Casa da Zona Leste, e uma outra que era a As-sociação das Donas-de-Casa de Santo André. A Igreja que apoiou o golpe se desenvolveu em duas tendências, uma conservadora e outra progressista. As donas-de-casa temos que ver com vá-rios olhares. Você vai ver dona-de-casa que se vangloria de ser dona-de-casa e é altamente conservadora, e você vai ver dona-de-casa que é uma lutadora, entende? Foi um movimento de uma

diversidade ideológica que não pode-mos olhar com preconceito. As macha-deiras se vangloriavam de ser donas de casa. Preservavam a família, enquanto nós falávamos que éramos contra a fa-mília, contra a condição de ser dona--de-casa…

Mais pra frente você estava no ini-cio da manifestação do 8 de março no MASP.

A primeira manifestação. O 8 de março era comemorado antes do golpe pelos sindicatos. Porque é assim: em ditadura mulher é assunto proibi-do. Em 1967 tem a revista Realidade inteirinha censurada porque falava do parto, de mães solteiras, de freiras. Eu trabalhei no jornal Movimento. Em 1976, a edição 45 era só sobre mulher, e foi todinho censurado, até aquelas ta-belinhas básicas, com dados do IBGE. Não se falava em 8 de março.

Foi em 1976 que houve o pri-meiro 8 de março num auditório do MASP. Qualquer encontro tinha mui-ta polícia, se tinha 10 pessoas, tinha 20 policiais, quase 2 policiais pra cada pessoa. Mas fizemos. E isso foi interes-sante porque uma mulher negra apa-receu lá querendo falar. E essa moça apareceu lá dizendo que era negra e lésbica. E nem essa palavra lésbica não se falava. Eu nem lembro se eu sabia o que era lésbica. Isso não existia. E essa moça falou, e que era uma brasileira que vivia no EUA sendo negra e lésbi-ca. Todo mundo que eu olhava me dizia para tirar ela de lá, mandar ela parar de falar, o pessoal da coordenação, a po-lícia olhando pra nós, e olhavam pra essa mulher. Mas ela falou. Depois eu até escrevo sobre isso. Digo que as fe-ministas daquela época tinham mais medo das feministas que apareciam e falavam que eram lésbicas do que da polícia que tava lá. Existia um precon-ceito enorme. Como a maioria de nós ali da esquerda que participávamos da-quele ato, fomos torturadas… [pausa] Tortura é estupro, é violência sexual, é ser puta para os torturadores, é você ser amante de todos os homens da organização... Para vocês terem uma ideia na tortura o tempo todo você está nua, eles arrancam sua roupa, rasgam a sua roupa. Então tudo que falava de sexo, éramos neuróticas, ficávamos com medo... E se você falava que era

Isso porque o pai era comunista, o irmão era comunista, o namora-

do... Mas ela não podia [fazer política], tinha

que pedir ao namorado, ao irmão e ao pai. Não

ficava bem pra eles.

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2ª quinzena de março de 20xi | O Onze de Agosto

É só ir numa banca. Eu trabalhei na im-prensa clandestina, mas parece que hoje ainda se censura in-formações mais rele-vantes para o povo

E se você falava que era feminista diziam que você

era o quê? Sapatão!

feminista diziam que você era o que? Sapatão. Estranhavam eu ter um com-panheiro! Me perguntavam como se fosse um absurdo isso. >>

Você estava falando sobre os res-quícios da violência polícia na ca-deia. Hoje, você avalia que esses res-quícios se mantêm, sobre o corpo da mulher, na violência policial?

Hoje? Acredito. Porque a tor-tura continua no Brasil. Ela não foi er-radicada. E a tortura é o seguinte, com os homens às vezes faziam tortura sexual, mas com mulher era muito mais comum. Acham que se a mulher está no lugar, te veem como terrorista ou ban-dida, então o seu corpo não e seu, é meu, eu faço o que eu quiser com o seu corpo. Na época isso era tanto pra presos comuns quanto pra presos políticos. Hoje isso é praticamente só com o preso comum. E ninguém fala nada. Eu já conversei com muita mulher presa que é tortu-rada, e diz que não vai falar nada por-que iria ser mais torturada ainda. En-tão nem te permitem que fale. Agora nós, presos políticos, denunciávamos, mas isso não quer dizer que só nós que apanhávamos. Era com todo mundo e continua acontecendo.

E hoje, sobre a questão dos parti-dos políticos. Hoje até vemos mulhe-res organizadas, vemos coletivos de mulheres. Mas por outro lado ainda existe uma sub-representarão na política muito grande de mulheres. O que você acha que falta, o que pre-cisa? Quais são os próximos passos?

O Brasil e um dos países que tem menos participação das mulheres. É 8% no geral. Nós nunca saímos des-ses 8-10%. E o que é interessante é que na ditadura você vê que nós saímos do zero, porque a mulherada que foi pra rua foi para pedir o golpe. Nós que fo-mos lutar contra o golpe éramos uma minoria. Acho que falta uma consci-ência feminista dentro dos partidos. Principalmente os partidos de esquer-da tinham que pensar nisso, porque a direita eu nem peço, nem vou me preocupar... Porque as mulheres que querem transformar suas vidas vão ter que adotar um programa de esquerda,

para transformarmos realmente a es-trutura da sociedade. E falta essa cons-ciência, essa responsabilidade política de assumir a causa das mulheres como uma causa prioritária. Não vai haver uma grande transformação no Brasil se não houver a participação das mu-lheres. O Brasil é muito grande, mui-to disperso, e as mulheres têm mui-to mais o pé no chão. Pelas próprias condições de vida. A sociedade impõe muito mais responsabilidades para as mulheres do que para os homens. Isso te põe muito antenada com as coisas

do cotidiano. E a mulher tem que estar presente em uma atuação política, tem que transformar essa vida aí que leva do dia a dia, e trazer ela pra polí-tica e elaborar um progra-

ma político sobre essa vidinha. Porque senão você muda só no faz-de-conta, a vida real você não mudou. Temos que ter a política de cotas, mas tem que ser acompanhada de condições objetivas, porque as mulheres hoje são laranjas dos partidos. A mulher ainda é usada. Continua o mesmo estereótipo que se tinha da mulher lá quando eu era ado-lescente, e já foram mais de cinquenta anos!

E olhem que se houve um seguimento da população que teve mudanças radicais na vida foram as mulheres, porque nós fomos para o mercado de trabalho, nós entramos na universidade, o que era coisa raríssima antes. Agora as mulheres estão estu-dando mais do que os homens. No en-tanto ainda têm um salário mais baixo. Quer dizer, na hora de reconhecer o va-lor econômico das mulheres... O nosso valor é social, afetivo, emocional. Mas não colocam a gente no mesmo pata-mar na hora de valorar politicamente e economicamente. A gente não entrava no mercado de trabalho com a aquele objetivo de ser permanente. Hoje há mais direito de escolha. Se a gente quer ou não ser mãe, temos métodos con-traceptivos. Mas a mentalidade é mui-to tacanha ainda, não propicia uma participação efetiva das mulheres. E é uma vergonha porque você vê que o principal problema para as mulheres é a violência. Porque você é mulher todo mundo acha que pode te atacar. A vio-lência é muito forte no Brasil, é um dos

maiores do mundo nos números de fe-minicídio, um dos maiores estupro...

Em violência domestica... E é em tudo quanto é lugar.

No trabalho é assedio sexual, é assedio moral, em casa é violência domestica, isso eu coloco porque tudo isso afeta a nossa participação política! E olha que nós temos uma mulher na presidência, né? Uma mulher. Eu falo isso em tudo quanto é lugar, que não é uma mulher qualquer, que não está lá por causa de homem não, porque é uma mulher que participou da guerrilha, participou da luta armada, foi presa política, foi tor-turada…

Mesmo assim, a luta da mulher está muito aquém. Nós falamos de di-reitos iguais entre mulheres e homens. Mas também queremos direitos iguais entre as próprias mulheres, porque tem mulher que tem todos os direitos e outras que não tem nada. A Dilma pediu para ir na região de Ma-rajó para fazer um diag-nóstico sobre a situação das mulheres, e fiz um relatório de 111 paginas com mais outras duas companheiras da Se-cretaria de Políticas para as Mulheres. E você tem mulher que recebe Bolsa--família, as mulheres são titulares des-se direito. O homem bate nela, pega todo o dinheiro dela, porque às vezes não tem nem agência bancária para ela ir lá tirar o dinheiro, então quem admi-nistra o cartão e a senha dela é o ho-mem. Se ela tem que receber 350 reais, e ele dá 100 reais pra ela falando que só tinha isso no banco. Ela fica na dúvida,

e vai perguntar pra outra mulher, que diz que não. E fica aquela confusão. Aí ela vê que o homem tá tirando dinheiro dela e resolve se separar. E ele fala que se separar ela vai ter que dar metade do Bolsa-família pra ele. E ela acredita! Não sabe que tem a titularidade! Eu es-tou mostrando uma situação extrema mas que é muito comum ainda. Então se não temos essa igualdade de direi-tos, como vamos entrar num partido político, para exercer a cidadania?

Você trabalhou na imprensa du-rante um bom tempo, você falou que foi muito da imprensa. Como é que você vê a imprensa hoje e a questão da mulher na imprensa hoje em dia?

Engraçado, eu vivi o tempo todo na imprensa censurada, traba-lhei na imprensa clandestina, a censu-ra acabou repercutindo na imprensa clandestina, porque você tinha tanta dificuldade de acesso à informação e à reprodução daquela informação, so-frendo bloqueios… Na imprensa alter-nativa eu trabalhei o tempo todo sob censura, e toda semana você tinha que levar na polícia federal para a censura. E agora que nós não temos censura eu fico impressionada como a imprensa é vazia. Parece que continua sob censu-ra! Dia 25 veio um torturador aqui fa-lar, na comissão. Ele disse que recebia visitas do empresário que era chefe da General Motors do Brasil. Empresários

importantes visitando as casas de tortura. E a imprensa não dá nem um pio sobre isso. Não falam nada sobre o nos-so trabalho das Comis-sões da Verdade. Quan-do sai algo fico até com receio de ler para ver o

que escrevem. E a questão das mulhe-res é uma tristeza. Não falam de femi-nismo. Ninguém fala que é feminista na mídia hoje. É justamente o inverso. É tudo de uma pobreza imensa. Se sai alguma coisa é aquela abordagem da “feminista, mas sensual”, que acaba com toda a nossa construção. É só ir numa banca. Eu trabalhei na imprensa clandestina, mas parece que hoje ainda se censura informações mais relevan-tes para o povo, e para as mulheres es-pecialmente. u

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As mulheres brasileiras na Ditadura Civil-Militar de 1964

Na história de lutas e de resistência contra a Ditadura, como em qualquer outro período histórico, a importância da participação das mulheres é miti-gada pela forma como os eventos são estudados através da perspectiva do gê-nero masculino. É importante colocar, desse modo, que a reconstrução da nar-rativa história deve ser feita com com a desmistificação de diversos aconteci-mentos e com a colocação da mulher em sua devida posição histórica. E no caso de nossa história recente: inserida em diversas lutas contra a ditadura militar no Brasil. Dentro desse re-corte, vale dizer que a luta feminina teve um caráter duplo contra a repressão: além da resistência ao lado dos homens e contra o regi-me instaurado, as mulheres lutavam contra a opressão de gênero, a posição refratá-ria de suas famílias, de seus companheiros e da própria sociedade. A mulher que se impunha abria mão de seu papel social e de sua aceita-ção. Colocava-se no espaço público apesar de todas as dificuldades que enfrenta-va. Por isso a história da mulher brasileira contra a ditadura é bem mais que uma luta contra a re-pressão: é uma luta, também, contra a opressão de gênero, contra o papel de submissão historicamente designado a elas. De acordo com o projeto “Brasil Nunca mais”, desenvolvido no período, 695 processos instaurados pela dita-dura foram analisados, e constatou-se que 7.367 cidadãos e cidadãs foram denunciados por atuação contra o re-gime. Desse total, 12% são mulheres, nos levando à marca de 884 militan-tes do sexo feminino. Esses dados nos mostram que, apesar de poucas, as mu-lheres tomaram parte nessa luta. Nos dias de hoje, infelizmente, o número de

mulheres parlamentares, por exemplo, é proporcionalmente o mesmo do ob-servado nos processos (pouco mais de 10% no Congresso Nacional). Essas mulheres, guerrilheiras, militantes, transgressoras, sofriam com a repressão e com o machismo vin-do de todos os lados – e nem mesmo as organizações de combate ao regime eram espaços abertos à participação

feminina. Na época, era muito comum que as militantes fossem taxadas de “mulher-macho” ou, se muito “femini-nas” para os padrões, dizia-se que esta-vam na luta em busca de homens. Não havia para onde correr, exceto para os espaços exclusivamente femininos, que despontaram na época e que deram (e dão) imensa contribuição ao aprofun-damento da pauta feminista nos espa-ços políticos brasileiros os quais, dentro da esquerda, atinham-se quase que so-mente às questões de classe. Os relatos das mulheres que sobreviveram bravamente à ditadura a respeito de suas experiências pesso-ais e de companheiras que tombaram são dos mais chocantes possíveis. As

torturas contra as mulheres envolviam complexas questões de dominação de gênero e de violência sexual. É sim-plesmente impossível desvincularmos tortura de estupro, por exemplo, quan-do nos remetemos aos atos praticados contra as mulheres. No livro “Mulheres que fo-ram à luta armada”, do jornalista Luiz Maklouf de Carvalho, encontramos

histórias como a da companheira Dul-ce Maia, à época da VPR: “O sargento metia a cabeça entre as minhas pernas e gritava: ´Você vai parir eletricidade´”. Ou também a história de Sônia Angel Jones, à época do MR-8, que teve os dois seios arrancados durante a tortura que a levou à morte. “Assim, o primórdio de um movimento feminista brasileiro vai surgindo como uma forma das mulhe-res se posicionarem contra o regime em questão”, conforme propôs Helen Safa, latino-americanista, professora eméri-ta do Departamento de Antropologia da Universidade da Florida, em 1990. Ainda, sobre o fortalecimen-to do feminismo no período, podemos destacar que em meados dos anos 1970

(quando a ONU declara 1975 como o ano internacional da mulher) duas re-vistas feministas são lançadas – “Brasil Mulher” e “Nós Mulheres” – e debates antes muito tímidos passaram a tomar maiores proporções. Soma-se a isso a volta, em 1979, das exiladas, que pro-porcionou o contato das militantes que ficaram no Brasil com aquelas que tiveram experiências com os feminis-

mos norte-americanos e europeus, por exemplo. A caminhada de lutas e de re-sistência das mulheres bra-sileiras na ditadura jamais será esquecida. Nós, feministas, de-vemos relembrar sempre que possível que entre 1964 e 1984 tombaram com-panheiras que romperam barreiras históricas em um dos países mais machistas e opressores do mundo. O papel desempenhado por essas mulheres deve nos servir de inspiração na construção de um país mais democrático, mais feminis-ta e menos repressor.

“A tortura é a regressão do homem ao não-humano. A tortura é a negação do huma-no – e essa é a chave da sua

eficácia. A prática da tortura contamina o torturador, destrói seu equilíbrio. O tortu-rador está a todo o momento exercitando aquilo que há de pior nele. Com o tempo ele reforça sua não-humanidade, entroni-za como valor seu lado mais podre. Não é possível mais pensar num burocrata que no fim do expediente volta para casa para encontrar sua mulher e seus filhos. Depois de certo tempo o torturador é torturador o tempo todo.” Renato Tapajós, ala verme-lha do PcdoB

Maria Ângela Ribeiro, Iara Iavelberg, Marilene Vilas-Boas Pinto, Nilda Car-valho Cunha e muitas outras mulheres, companheiras, transgressoras e mili-tantes que tombaram: presente! u

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2ª quinzena de março de 20xi | O Onze de Agosto

O XI de Agosto e o Golpe de 1964O Centro Acadêmico XI de Agosto é co-nhecido pela sua história de mais de 100 anos e por seu papel de destaque em im-portantes momentos da história nacio-nal, tais como as campanhas ‘O Petróleo é Nosso’, ‘Diretas Já’ e ‘Fora Collor’. En-tretanto, algumas de suas mais admirá-veis atuações não são muito conhecidas. Nesse sentido, no ano em que comple-tamos 50 Anos do Golpe Civil- Militar de 1964, entendemos ser importante contarmos o papel cumprido pelo XI de Agosto nesta época. Assim como se observava nos anos anteriores ao golpe uma intensa polarização ideológica tomava conta da sociedade bra-sileira, no microcosmos do mo-vimento estudantil não foi dife-rente; e o Centro Acadêmico XI de Agosto, tal qual fez ao longo de sua história, não se omitiu e tomou partido pelas chamadas reformas de base propostas por João Goulart. Cronologicamente falan-do, já no ano de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as e os estudantes do Largo São Fran-cisco se posicionaram pela posse do vice-presidente João Goulart – que estava na China -, acusando de golpista os militares que se ar-ticulavam contrariamente à posse de Jango. Na pessoa do então pre-sidente, Antônio José Luciano, o XI escreve ao Ministro da Guerra que ‘’o dever dos militares é de-fender a Constituição, e não enxovalhar a farda com tramas golpistas’’ – o que consequentemente quase fez com que Antônio fosse preso -, e organiza uma passeata ao Palácio dos Campos Elíseos pela posse de Jango, prontamente repri-mida pela polícia. Não a toa, em 1963, na posse da diretoria eleita para o Centro Acadêmico XI de Agosto, temos a primeira e única cerimônia prestigiada por um presidente da República, no caso João Goulart. Em seu discurso, Oscarlino Marçal - presi-dente eleito pelo Partido Acadêmico Re-novador – apoia fortemente às Reformas de Base, sendo seguido por João Gou-lart, que reafirma seu compromisso com mudanças estruturais no Brasil. A Sala d@s Estudantes, inclusive, seria palco, ao

longo de todo ano de 1963, de intensos debates a cerca destas reformas. Porém, apesar do apoio a Jan-go, o XI se posiciona contrariamente à proposta feita pelo presidente de decre-tação do estado de sítio, defendendo as liberdades democráticas. O próprio João Goulart, arrependido da proposta, a reti-ra três dias depois de fazê-la. A maior radicalização política na sociedade em 1963/1964 reverbera no Largo São Francisco e leva a uma aliança entre os setores progressistas da Facul-dade. A chapa ‘Unidade’ é eleita para o

ano de 1964; o presidente, João Miguel, é figura importante no ano do golpe. A posse da nova gestão ocorre no dia 12 de Março - dia anterior ao Co-mício da Central do Brasil, no qual João Goulart anuncia decreto pela Reforma Agrária – e, já no dia 16 de Março, o pre-sidente da Superintendência da Reforma Agrária (Supra), Pinheiro Neto, é convi-dado para falar na Faculdade. O Comando de Caça aos Comu-nistas (CCC), organização de extrema-di-reita da época, se faz presente e já antes do evento observa-se um clima de gran-de tensão e enfrentamento. João Miguel procura o coman-dante do II Exército, Amauri Kruel, para que se garanta a segurança no local. Não o encontra, e, ao voltar para o Largo São

Francisco, encontra a Faculdade tranca-da e metralhada. Um aluno levara um tiro de raspão e outros estudantes ha-viam sido espancados. Quando Pinheiro Neto chega para a palestra, um foguete é lançado contra seu carro. Percebendo o clima de confronto, o presidente do Supra se re-tira; João Miguel vai atrás, buscando convencê-lo de voltar à Faculdade. Não obtém êxito. No dia seguinte, 17 de março, é a vez do Ministro da Justiça, Abelardo Jurema, proferir palestra no Salão No-

bre a convite do XI de Agosto. A palestra vira um ato de desagravo a João Pinheiro Neto, e, toda vez que João Goulart é cita-do, as e os estudantes vibram, eufóricos. Nessa esteira de intensa mobili-zação, uma Assembleia do XI de Agosto delibera, como resposta à impunidade da polícia para com o CCC, o enterro simbó-lico do então governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e de seu secretario da Segurança Pública. Apesar das amea-ças proferidas pelo governador de proi-bir a manifestação, João Miguel decla-ra: ‘Criticamos as autoridades que nos atacam com bombas, cassetetes e tiros, ridicularizando-as. É a democracia. Fare-mos, sim, a passeata, mesmo proibida’’. A manifestação ocorre sem grandes pro-blemas.

A Congregação da Faculdade, que num primeiro momento ficou ao lado d@s estudantes, repudia os atos de violência contra Pinheiro Neto, suspen-dendo as aulas até o dia 30 de março. Ao mesmo tempo, o XI, em Assembleia, delibera a ocupação da Faculdade, em re-púdio a Adhemar de Barros. A ocupação dura vários dias e obtém o apoio de vá-rias unidades da USP, da UEE, e, segundo fontes da época, é aderida por dez mil estudantes do estado de São Paulo. O golpe se aproxima. No final de março, João Miguel vai ao Rio de Janei-

ro visitar João Goulart e alerta o presidente da articulação golpis-ta; Jango acredita que consegue barrar qualquer tentativa de gol-pe. No fatídico dia 31 de março o presidente do XI está em Bra-sília com Darcy Ribeiro, então Ministro-chefe da Casa Civil, que pede para que João Miguel dis-curse no rádio e na televisão em defesa de Jango. Ademais, recebe um cheque para reformas da es-trutura do Porão, que, ao tentar ser descontado neste mesmo dia por João Miguel, é recusado pelo Banco, que alega que o cheque era de um governo deposto. Em nome do XI, João Miguel participa de inúmeros atos, reu-niões e shows em apoio ao gover-no. Quando o golpe se confirma, contudo, João Miguel percebe que não poderia mais ficar ali. Por

essa razão, se esconde na casa de um co-nhecido em Minas, onde fica por cerca de um mês. No final de abril, se apresenta ao Deops e é preso. Enquanto isso, no Centro Aca-dêmico, a oposição derrotada nas elei-ções para o XI solta manifesto contra a ‘comunização’ do XI. Em seguida, no dia 6 de abril, com presidente e vice ausen-tes, o primeiro-secretário assume a pre-sidência, após ser assim deliberado em Assembleia realizada no dia anterior, na Universidade Presbiteriana Mackenzie. E não demora muito para que a gestão ‘eleita’ solte um comunicado defenden-do a ditadura instaurada: ‘Fica o Centro Acadêmico XI de Agosto na posição de que, nas Arcadas, encontramos no novo governo um estandarte, uma bandeira,

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um viva voz, que se dispõe definitiva-mente a colaborar para que o Presidente Castelo Branco proporcione, como tem procurado fazer, a tranquilidade da famí-lia brasileira’’. Na sequência, no dia 24 de abril, estudantes ocupam o XI, nomeiam um novo presidente e declaram nula todas as decisões tomadas pela gestão imedia-tamente anterior. Em meio a tamanha desordem, a própria Faculdade se envol-ve na disputa, e a Congregação, que antes havia ficado ao lado d@s estudantes, no-meia um interventor para o XI de Agos-to: José Luis Anhaia Melo, ex-presidente do XI em 1949. Anhaia Melo visita João Miguel no Deops, visando convencê-lo a renunciar ao cargo de presidente. Este se recusa e fica cerca de mais um mês preso. Mesmo após, em setembro, o promotor Joaquim Stein emitir parecer favorável à volta ao cargo legítimo de presidente do XI, a Justiça não concede o mandado para que João Miguel retorne. A Congre-gação, mostrando novamente que já se adaptara ao novo regime, suspende João Miguel da Faculdade por dois anos por ‘indisciplina’. As situação só se acalma quando as eleições para 1965 se realizam e Hé-lio Navarro, outro progressista, é eleito para a presidência da entidade. Dali em diante, seriam 11 anos consecutivos de presidentes de esquerda gerindo o Cen-tro Acadêmico. A luta de João Miguel e de seus companheiros e companheiras contra a ditadura consolidaram o Largo São Fran-cisco e o XI de Agosto como importan-

te foco de resistência à Ditadura Civil--Militar. Eventos como a ocupação da Faculdade em 23 de Junho de 1968 pela Reforma do Ensino da Faculdade, o en-terro da Constituição em 1976, a leitura da Carta aos Brasileiros em 1977, a cam-panha pelas ‘Diretas Já’, dentre outros memoráveis acontecimentos – que serão devidamente tratados nas próximas edi-ções da Tribuna Livre – não só compro-vam isso, como demonstram a necessi-dade de conhecermos melhor a história da nossa própria Faculdade. Nesse sentido, se queremos, de fato, consolidar um senso-comum cole-tivo democrático é preciso que o traba-lho de Memória e Verdade seja efetivo e consiga contar aquilo que até hoje bus-cam esconder. E, por essa razão, o Centro Acadêmico XI de Agosto – Gestão Cole-tivo Contraponto defende a reinstalação da Comissão da Verdade da São Francis-co – cujos trabalhos foram paralisados em meados de 2013 por problemas in-ternos – e apoia as iniciativas de cunho semelhante em outras Faculdades e Uni-versidades, assim como está em diálogo com a Secretária Municipal de Direitos Humanos e Cidadania com o intuito de reforçar a interlocução junto à Câmara dos Vereadores de São Paulo para que se aprove o PL 65/2014, que cria a Comis-são Municipal da Verdade. Todo e qualquer país que queira aprofundar sua democracia deve ter uma forte memória coletiva dos períodos au-toritários passados. Para que não se es-queça, para que nunca mais aconteça!u

A Mídia na Ditadura?

Não mudou muito desde então.

Receitas de bolos,

a gente ainda vê por aqui.

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2ª quinzena de março de 20xi | O Onze de Agosto

Em 1º de abril de 1964, o Brasil mer-gulhava em um de seus períodos mais obscuros: o golpe civil-militar acabava com o Estado de direito, depondo um presidente eleito democraticamente; tratou-se da última carta das forças conservadoras. Com esse aconteci-mento, os movimentos que naquele momento se arquitetavam foram to-talmente desmantelados ou duramen-te perseguidos. O PCB, que já estava na ilega-lidade desde 1947, foi um dos movi-mentos mais atingidos com o golpe. Vários militantes foram mortos pelas mãos dos militares, entre eles Carlos Marighella, Vladimir Herzog, Mário Alves et alli. Houve, inclusive, uma di-visão no partido entre os que concor-davam com o combate político – que permaneceram com Prestes – e os que discordavam – que partiram para a luta armada e a clandestinidade. As Ligas Camponesas, lidera-das por Francisco Julião, eram ainda embrionárias e apenas iniciavam seu histórico de lutas por uma melhora no campo. Com o fatídico golpe, o movimento rural foi esmagado e re-primido, resultando em milhares de mortes. Apesar de o governo Castelo Branco ter criado o Estatuto da Terra, que era uma medida relativamente progressista para o regime vigente, o Estado aproveitou para resolver duas

Repressão ontem e hojequestões de uma vez: acabar com o incômodo dos sem-terra e colonizar o norte por razões estratégicas. Com a política “homens sem-terra para terras sem homens” o governo civil--militar não promoveu uma reforma agrária – mas, sim, uma colonização de terras públicas desabitadas em re-giões inóspitas. Os sindicatos foram duramente re-primidos. O Comando Geral dos Trabalhado-res (CGT), que havia se formado em 1961, foi intensamente atacado por ser tido como or-ganização subversiva. As trabalhadoras e os trabalhadores sofre-ram uma severa políti-ca de arrocho salarial que visava a segurar a economia “milagrosa” dos milita-res. Greves, assembleias e passeatas eram expressamente proibidas pelo governo, e quem o descumprisse se sujeitava à Lei de Segurança Nacional. Lastimável exemplo é o caso do meta-lúrgico Santo Dias, assassinado com um tiro nas costas por um policial mi-litar na porta de uma fábrica em 1979. Toda a movimentação socio-política que ocorria no Brasil conhe-ceu, de fato, as mazelas que o regime

ditatorial civil-militar implantou no país. Hoje em dia, após mais de 20 anos de regime “democrático”, lasti-mavelmente somos acometidos pelo mesmo tipo de discurso sendo uti-lizado contra movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos etc. A repressão policial a manifestações ou

ocupações é constan-te e abominavelmente violenta. No país ainda impera uma lógica de criminalização da luta política – uma ideolo-gia firmada e consoli-dada em nossos anos de chumbo. A infame frase do ex-presidente Washington Luis, “a questão social é uma questão de polícia”, mostra-nos o quanto essa cultura é antiga.

Faz-se necessário pontuar o quão objetivamente a ditadura con-tribuiu para esse tipo de criminali-zação, com a reforma da polícia feita no regime. Destacando uma policia militarizada para a competência os-tensiva, o governo ditatorial mostra-va claramente sua intenção para com as organizações populares. Ao se ob-servar a atual estrutura das polícias, o que vemos é pouquíssimas diferenças em relação àquele modelo. Ademais,

o que vem ocorrendo diuturnamente é um constante embate entre Polícia Militar e movimentos sociais, como se fosse esse o tratamento endereçado à luta política em uma democracia. Outros estratos da sociedade continuam seguindo claramente esse raciocínio; por uma via, a mídia tradi-cional – consolidada durante os anos de chumbo – cotidianamente lança a imagem dos movimentos sociais en-quanto organizações violentas, sub-versivas. Por outra via, o Poder Legis-lativo caminha no mesmo sentido. A discussão recente no Congresso Na-cional acerca das leis antiterrorismo é um bom exemplo de como os repre-sentantes do povo ainda observam a questão das manifestações populares sob a óptica da repressão. A lei, ao buscar tipificar o terrorismo de modo bastante genérico, serve ao propósito de criminalizar a própria luta política. Se em um regime de exceção esse tipo de resposta do Estado era esperada, não há como tolerá-la em um Estado de direito que se propõe democrático. Neste, a atividade polí-tica em prol do interesse público e de benefícios para o povo é respeitada e estimulada. u

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Participe enviando seu texto para [email protected]!

O Estado Brasileiro teve suas bases constituídas por sistemas socioe-conômicos paradoxais e desiguais, oriundos de séculos de exploração colonial predatória e ciclos escravis-tas que amalgamaram diversos po-vos sob o julgo do trabalho forçado e desumano implementado através da força privada, principalmente, e estatal, subsidiariamente. Assim sendo, a constituição do sistema policial brasileiro está intimamente ligada à desigualdade social mantida através da violência oficial e com aval legal. As origens da polícia militar são o coronelismo constituindo policias locais, forças patrocinadas pelos grandes senho-res da terra que, à época da Repú-blica não se submeteram ao repu-blicanismo, estruturando forças de segurança e repressão a níveis esta-duais. Todo esse quadro de uma força de segurança e uso de vio-lência a nível privado-local evoluiu para a estrutura de defesa civil trei-nada para a guerra. E a guerra, nes-

A revisão do entulho autoritário e a desmilitarização das polícias

se caso, é voltada para o cidadão in-frator que, na esmagadora maioria dos casos, é o morador pobre e ne-gro da periferia, o herdeiro direto de séculos e mais séculos de escravi-dão e dominação através da repres-são violenta, da intimidação e do medo. Durante a Ditadura Militar, essa polícia se consolidou como um

braço do exército, se constituindo na atual Polícia Militar. Desde que ingressa na cor-poração militar, os policiais são

treinados, logo cedo, para obede-cerem à patente de forma acrítica e total, através de métodos violentos, com humilhações, ofensas morais, penas físicas e até mesmo prisões. A atuação violenta e autoritária da PM não é nada mais do que o reflexo dessa formação violenta e autoritá-ria: tal como o policial foi treinado,

ele irá assim agir. Na lógica do mi-litarismo, obedece-se a autoridade, do coronel ao soldado. E o soldado, o posto mais baixo da patente mili-

tar, se constitui em autoridade pe-rante o civil, a quem trata sempre como inferior, de maneira trucu-lenta e opressiva, da mesma forma que é tratado pelos seus superiores. E abaixo do civil, está o infrator, o ‘criminoso’, o inimigo da polícia, desprovido de direitos e contra o qual é utilizada a força violenta ao sabor da discricionariedade militar. Tal estrutura militar, por óbvio, ocasiona um distanciamento enorme entre a instituição e o res-tante da sociedade, agravado pelo seu fechamento ao controle social, com um enorme corporativismo e proteção interna, extra e também oficialmente, contando os militares com até mesmo uma Justiça pró-pria, a Justiça Militar.No resto do mundo, tal estrutura serve para fiscalizar atividades dos militares e patrulhamento de fron-teiras. Porém, paradoxalmente no Brasil esta estrutura é a que realiza o policiamento ostensivo civil, ope-rando, no entanto, através da lógica militar, o que reflete na brutalidade

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com que a polícia atua. Nossa guar-da militarizada se trata praticamen-te de um caso sui generis das forças ostensivas de segurança civil, pois é exercida sob a lógica do militarismo, que os casos de violência repetidas vezes nos mostram como é ineficaz para promover a paz e a sensação de proteção que uma guarda cidadã tem o dever de proporcionar. Os números atuais não men-tem: a polícia militar é extremamen-te violenta. Segundo os dados da Ouvidoria da Polícia, a PM de São Paulo em 5 anos, matou mais do que todas as forças policiais dos Estados Unidos inteira no mesmo período, no período de 2005 a 2009. Esse nú-mero absurdo é o resultado da ma-nutenção de um sistema economi-

camente opressor, constituído em intensas desigualdades sociais que o capitalismo de país subdesenvol-vido adaptou de forma convenien-te aos interesses do empresariado, através de forças de repressão bru-tais. A polícia transformando nosso conflito de classes em uma verdadei-ra guerra civil. Com esse quadro de segre-gação social, fica compreensível, mas não menos aceitável, como a polícia opera de forma seletiva no país. Recente pesquisa feita pela UFSCAR descobriu que em São Pau-lo, nos anos de 2010 e 2011, entre as vítimas de mortes cometidas por policiais, 58% são negras, enquan-to que na população residente do estado o percentual de negros é de 34%. Para cada grupo de 100 mil

habitantes negros, foi morto 1,4; ao passo que, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos, foi morto 0,5. Estes números mostram como a atual política de segurança pública, militarizada, vitimiza ainda mais a população negra e que culmina nas altas taxas de mortalidade por ho-micídio neste grupo. Assim, 50 anos após o golpe civil-militar de 1964, a herança de uma sociedade de bases extrema-mente desiguais, cristalizada nos anos de chumbo, encontra sua ma-nutenção nas forças de repressão que operam com a mesma violência e segregação racial e socioeconômi-ca, servindo de mantenedoras da desigualdade social e opressão. As-sim, para a efetiva superação dessa

sociedade injusta, devemos também superar o caráter militar das nossas forças de policiamento.Atualmente, contamos com a PEC 51/2013, voltada para a desmilita-rização da polícia, visando modi-ficar o artigo 144 da Constituição Federal, que prevê a divisão do po-liciamento entre o civil e o militar. Esse projeto visa unificar a polícia em um ciclo completo e estabelecer uma ouvidoria externa, autônoma, em adição ao controle do Ministério Público, de modo a aumentar o con-trole social sobre a atuação policial. Importante salientar que a desmilitarização não significa a extinção da polícia, como afirmam os conservadores ao querer manter o modelo militarizado, violento e discriminatório. Desmilitarizar sig-nifica, ao contrário, aumentar a efi-ciência e eficácia da polícia. O mo-delo atual se mostra insuficiente pra atender as necessidades e anseios da sociedade: em 2011, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que, em ne-nhuma região do País,  mais de 6% da população diz “confiar muito” no trabalho das polícias. Na região Su-deste, o índice fica em 3% A desmilitarização permitirá a unificação do trabalho da polícia e, ao mesmo tempo, a sua descentra-lização da mão do alto oficialato, o que dará mais possibilidade do tra-balho policial se adequar às necessi-dades locais e comunitárias específi-cas de cada região. Com a dissolução da hierarquização militar da polícia e sua desvinculação da estrutura do Exército, os policiais não serão mais submetidos à ordem alienante do militarismo. Com isso, o distancia-mento entre a polícia e a sociedade tenderá a diminuir, não mais estan-do o policial como um ser fora dela. Nesse sentido, nos espe-lhando nos ideais de uma socie-dade verdadeiramente justa e de-mocrática, que permita às pessoas exercerem suas potencialidades de maneira isonômica e plena, nos po-sicionamos a favor da desmilitariza-ção das polícias, para que possamos superar o modelo de opressão social que tanto vitima e atravanca a ver-dadeira justiça social.u