tutela coletiva, mecanismos de julgamento de … paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de...

248
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIREITO Bruno Paiva Gouveia TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE DEMANDAS REPETITIVAS E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2016

Upload: vulien

Post on 15-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIREITO

Bruno Paiva Gouveia

TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE

DEMANDAS REPETITIVAS E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo 2016

Page 2: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

Bruno Paiva Gouveia

TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE DEMANDAS REPETITIVAS E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO

CIVIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Gilson Delgado Miranda.

São Paulo 2016

Page 3: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Gilson Delgado Miranda, pela orientação, pela paciência, por

todos os relevantes ensinamentos que foram fundamentais para este trabalho e

por estar à disposição para contribuir e sanar quaisquer dúvidas ou inquietações,

sempre de forma solícita e atenciosa.

A todos os professores do curso de mestrado na PUC-SP com quem tive a

oportunidade de conviver e desfrutar de momentos de profundo aprendizado,

especialmente aos professores Nelson Nery Junior, Patricia Miranda Pizzol,

Eduardo Arruda Alvim, Thereza Arruda Alvim, Marcelo Sodré, Georges Abboud e

Daniel Granado.

Aos colegas do curso de mestrado, pela convivência, pelo auxílio e por

termos compartilhado intensos debates sobre diversos temas relacionados ao

direito.

Ao Dr. Ulisses Borges de Resende pelo apoio durante toda a carreira

jurídica, e pelo incentivo, sobretudo através do exemplo, na busca pelo constante

aprimoramento acadêmico, profissional e pessoal.

A todos os amigos que são parte de minhas alegrias e grandes

incentivadores, em especial ao Paulo Tarso, que sempre me acolheu de forma

generosa na cidade de São Paulo, e as nossas conversas intermináveis fizeram

com que as dezenas de viagens a essa cidade se tornassem mais prazeroras.

À Gabriella, que, além do amor e carinho essenciais para enfrentar os

desafios do cotidiano, prestou auxílio fundamental com a bibliografia utilizada para

a elaboração deste trabalho.

Á minha família, em especial à minha mãe, Maria Cláudia, por todo o

carinho, por dividirmos os momentos de alegrias e de incertezas e,

principalmente, pelo incansável incentivo e apoio, não só durante o curso de

mestrado, mas por toda a vida.

Page 4: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

RESUMO

Foi necessária uma evolução do direito processual para adaptar-se às novas necessidades do mundo contemporâneo, a fim de assegurar a tutela efetiva de interesses que extrapolam os limites das relações interindividuais. No cenário brasileiro, demonstrando preocupação com os crescentes conflitos de massa, verificou-se a importância da tutela coletiva e criou-se um microssistema processual coletivo, contribuindo de forma significativa para a consagração do direito processual coletivo brasileiro. São três as características essências das ações coletivas: a defesa de direito coletivo (lato sensu); um sistema de legitimidade diferenciado; e um regime especial da coisa julgada. O Novo Código de Processo Civil (NCPC) optou pelo incremento das técnicas de tutela pluri-individual em detrimento das de tutela coletiva. A opção do legislador foi de desenvolver técnicas de resolução coletiva de demandas repetitivas, por meio de decisões proferidas nos denominados julgamentos por amostragem, aperfeiçoando a disciplina dos já existentes recursos especial e extraordinário repetitivos e criando o incidente de resolução de demandas repetitivas. Esses mecanismos de julgamento de demandas repetitivas, são alvo de críticas por demonstrarem maior preocupação com a redução do número de processos, independentemente da qualidade das decisões judiciais e da efetivação da garantia de acesso à justiça, o que pode trazer graves riscos ao sistema processual civil brasileiro. Palavras-chave: Tutela coletiva. Mecanismos de julgamento de demandas repetitivas. Novo Código de Processo Civil. Acesso à justiça. Segurança jurídica.

Page 5: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

ABSTRACT

An evolution of procedural law was necessary to adapt to the new needs of the contemporary world in order to ensure the effective protection of interests that go beyond the limits of interindividual relations. In the Brazilian scenario, showing concern about the increasing mass conflicts, the importance of collective tutelage was verified and a collective process microsystem was created, contributing in a significant way to the consecration of Brazilian collective procedural law. There are three essential characteristics of collective actions: the defense of collective rights (lato sensu); A system of differentiated legitimacy; And a special scheme of res judicata. The New Code of Civil Procedure (NCPC) has chosen to increase the techniques of multi-individual tutelage over collective guardianship. The legislator's option was to develop techniques for collective resolution of repetitive demands, through judgments made in the so-called sample judgments, perfecting the discipline of the already existing special and extraordinary repetitive resources and creating the incident of resolution of repetitive demands. These mechanisms for judging repetitive demands are criticized for showing greater concern about reducing the number of cases, regardless of the quality of judicial decisions and ensuring access to justice, which can pose serious risks to the civil procedural system Brazilian. Keywords: Collective guardianship. Mechanisms of judgment of repetitive demands. New Code of Civil Procedure. Access to justice. Legal certainty.

Page 6: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACP Ação Civil Pública

ADC Ato das Disposições Constitucionais

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade

AJUFE Associação de Juízes Federais do Brasil

ASIBAMA Associação dos Servidores do IBAMA

CCJC Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados

CDC Código de Defesa do Consumidor

CF Constituição Federal

CLT Consolidação das Leis Trabalhistas

CNJ Conselho Nacional de Justiça

CONDSEF Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal

CONTSEF Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal

CSMP Conselho Superior do Ministério Público

DEM Democratas

DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes

DOU Diário Oficial da União

DPVAT Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via

Terrestre

EC Emenda Constitucional

FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

GLO Global Litigation Order

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis

IBDP Instituto Brasileiro de Direito Processual

IDEC Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

IRDR Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

LAC Lei da Ação Civil

LACP Lei da Ação Civil Pública

LC Lei Complementar

Page 7: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

LINDB Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro

MP Medida Provisória

MP Ministério Público

MST Movimento dos Sem Terra

NCPC Novo Código de Processo Civil

NPU Não provido por unanimidade

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

PL Projeto de Lei

PLS Projeto de Lei do Senado

PPU Provido por unanimidade

PROCON Programa de Proteção e Defesa do Consumidor

RE Recurso Extraordinário

SFH Sistema Financeiro da Habitação

SINDSEP Sindicato dos Servidores Públicos Federais

STF Supremo Tribunal Federal

TARE Termo de Acordo de Regime Especial

TJ Tribunal de Justiça

TRF Tribunal Regional Federal

TSE Tribunal Superior Eleitoral

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UNESA Universidade Estácio de Sá

USP Universidade de São Paulo

Page 8: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

SUMÁRIO1

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 11

2 A EVOLUÇÃO DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL................................. 14

2.1 Contribuição doutrinária........................................................................... 18

2.2 Evolução legislativa no Brasil................................................................... 28

2.2.1 Ação popular......................................................................................... 34

2.2.2 Ação civil pública................................................................................... 38

2.2.3 Ações coletivas na Constituição Federal de 1988................................ 48

2.2.4 Código de Defesa do Consumidor........................................................ 54

2.2.5 Mandado de segurança coletivo e a Lei no 12.016/09.......................... 59

3 O CENÁRIO ATUAL DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL E AS

PRINCIPAIS QUESTÕES PERTINENTES....................................................

70

3.1 Microssistema processual coletivo........................................................... 71

3.2 Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.............................. 77

3.3 Legitimidade ativa.................................................................................... 83

3.3.1 Natureza jurídica da legitimidade para agir nas ações coletivas.......... 85

3.3.2 Legitimados ativos................................................................................. 91

3.3.2.1 Legitimidade ativa do indivíduo.......................................................... 96

3.3.2.2 Entidades Públicas............................................................................. 101

3.3.2.2.1 Legitimidade ativa do Ministério Público......................................... 101

3.3.2.2.2 Legitimidade da Defensoria Pública................................................ 112

3.3.2.2.3 União, estados, Distrito Federal e municípios e órgãos da

administração indireta....................................................................................

115

3.3.2.2.4 Órgãos públicos sem personalidade jurídica.................................. 118

3.3.2.3 Associações....................................................................................... 119

3.3.3 Representatividade adequada.............................................................. 123

3.3.4 Ação coletiva passiva............................................................................ 127

1 Este trabalho foi revisado de acordo com as novas regras ortográficas aprovadas pelo Acordo Ortográfico assinado entre os países que integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em vigor no Brasil desde 2009. E foi formatado de acordo com a ABNT NBR 14724 de 17.04.2014.

Page 9: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

3.4 Coisa julgada coletiva............................................................................. 130

3.4.1 Aspectos gerais da coisa julgada.......................................................... 131

3.4.2 O regime da coisa julgada no ordenamento brasileiro.......................... 135

3.4.2.1 Direitos difusos e coletivos................................................................. 136

3.4.2.2 Direitos individuais homogêneos........................................................ 140

3.4.2.3 Transporte in utilibus da coisa julgada............................................... 142

3.4.2.4 Limitação territorial da coisa julgada.................................................. 145

3.4.2.5 Declaração de inconstitucionalidade em ação coletiva...................... 149

3.4.2.6 Coisa julgada na ação coletiva passiva............................................. 153

4 A TUTELA COLETIVA E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL......... 156

4.1 Incidente de resolução de demandas repetitivas..................................... 160

4.1.1 Natureza jurídica, cabimento, requisitos e finalidade do incidente de

resolução de demandas repetitivas................................................................

162

4.1.2 Procedimento de instauração e julgamento do IRDR........................... 169

4.1.2.1 Legitimidade para o pedido de instauração e competência para

julgamento do IRDR.......................................................................................

170

4.1.2.2 Suspensão dos processos................................................................. 172

4.1.3 Efeitos das decisões proferidas em IRDR............................................. 175

4.1.4 Cabimento do IRDR nos juizados especiais......................................... 177

4.2 Recursos repetitivos................................................................................. 179

4.3 Possibilidade de conversão da ação individual em coletiva: veto

presidencial ao artigo 333 do novo CPC........................................................

189

4.4 Ações coletivas e os mecanismos de julgamento de demandas

repetitivas.......................................................................................................

194

4.4.1 A relação entre o direito processual e a multiplicidade de demandas

perante o Poder judiciário..............................................................................

194

4.4.2 Em defesa da insuficiência do processo coletivo para a solução da

litigiosidade de massa....................................................................................

201

4.4.3 Críticas aos mecanismos de julgamentos de demandas repetitivas..... 204

4.4.3.1 Diminuição do número de processos................................................. 204

4.4.3.2 Acesso à justiça................................................................................. 205

4.4.3.2.1 Danos de pequena monta............................................................... 205

Page 10: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

4.4.3.2.2 Coisa julgada e suspensão dos processos individuais................... 207

4.4.3.3 Benefício aos litigantes habituais: desequilíbrio entre as partes e

deficiência na representatividade..................................................................

209

4.4.3.4 Distinguishing e fundamentação........................................................ 213

4.4.3.5 Necessidade de interpretação das decisões repetitivas.................... 216

4.4.3.6 Independência do juiz e livre convencimento..................................... 218

4.4.3.7 Contraditório e ampla defesa: ausência de manifestação dos

interessados...................................................................................................

221

4.4.4 Ações coletivas x mecanismos de julgamento de demandas

repetitivas......................................................................................................

224

5 CONCLUSÃO............................................................................................. 229

REFERÊNCIAS.............................................................................................. 241

Page 11: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

11

1 INTRODUÇÃO

A evolução do processo coletivo está diretamente relacionada às

características da vida contemporânea, em que surgem conflitos nos quais

grandes massas estão envolvidas. Com o desenvolvimento da sociedade, apesar

da grande importância que as relações individuais continuam a ter, ganharam

destaque, em número e relevância, conflitos de interesse em que se acham

envolvidas coletividades mais ou menos amplas de pessoas.

Sendo assim, a tradição individualista do processo civil não era suficiente

para garantir a proteção adequada a interesses metaindividuais e relações

plurissubjetivas. Neste sentido, foi necessária uma evolução do direito processual

para adaptar-se às novas necessidades do mundo contemporâneo, a fim de

assegurar a tutela efetiva de interesses que extrapolam os limites das relações

interindividuais.

Por essa razão, no primeiro capítulo serão abordados os principais temas

que contribuíram para a evolução da tutela coletiva no Brasil, que, em virtude da

evolução legislativa, e também doutrinária, garantiu ao Brasil, nos dias atuais, um

dos regimes processuais coletivos mais avançados entre os países do civil law.

Na década de 1970, por influência de juristas italianos, ocupados com o

estudo das class actions nos Estados Unidos, a doutrina brasileira percebeu a

lacuna na legislação e na doutrina a respeito do assunto no país e começou a

demonstrar interesse com a defesa dos direitos coletivos e o desenvolvimento do

processo coletivo no Brasil.

Nessa época, o único instrumento que, dentro de certas limitações, estava

apto para a tutela jurisdicional dos denominados interesses difusos era a ação

popular, existente no Brasil desde a Constituição de 1934 e regulamentada pela

Lei nº 4.717/1965.

O fruto da inquietação dos processualistas brasileiros foi a Lei nº 7.347, de

1985, a Lei da Ação Civil Pública, que é o principal marco que deu início à

regulamentação das ações coletivas no Brasil e inaugurou uma nova fase do

processo, demonstrando a preocupação com os crescentes conflitos de massa.

Page 12: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

12

Todavia, o avanço no processo coletivo foi consagrado com a Constituição

de 1988, que elevou as ações coletivas a outro patamar, reconhecendo o direito

processual coletivo como ramo autônomo do direito processual e prevendo

expressamente a proteção coletiva de direitos.

Os avanços na tutela de direitos coletivos prosseguiram com a edição do

Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que além de colocar o Brasil na

vanguarda mundial da proteção dos direitos do consumidor, articulou um sistema

de tutela metaindividual, definindo os conceitos de direitos e interesses difusos,

coletivos e individuais homogêneos. E, em conjunto com a Lei da Ação Civil

Pública, criou o microssistema processual coletivo brasileiro, contribuindo de

forma significativa para a consagração do direito processual coletivo brasileiro.

No segundo capítulo serão examinados alguns dos principais aspectos que

envolvem o direito processual coletivo brasileiro, com suas peculiaridades e

diferenças em relação ao processo individual. O objetivo é propiciar uma visão

panorâmica das linhas gerais do processo coletivo no Brasil, de modo a permitir

uma avaliação ponderada sobre a relação entre o novo Código de Processo Civil

e a tutela coletiva.

São três as características essências das ações coletivas: a defesa de

direito coletivo (lato sensu); um sistema de legitimidade diferenciado; e um regime

especial da coisa julgada. Desta forma, neste capítulo será analisado o

microssistema processual coletivo, formado pela interação entre os sistemas do

Código de Defesa do Consumidor, da Lei da Ação Civil Pública e das demais leis

voltadas para a tutela de direitos coletivos, identificando as características

principais das ações coletivas, que as diferenciam das ações de cunho

estritamente individual.

Para a compreensão do direito processual coletivo, será estudado seu

objeto material, que seriam os interesses ou direitos difusos, coletivos e

individuais homogêneos, a fim de verificar-se o seu verdadeiro sentido e alcance.

A existência de um sistema de legitimidade ativa diferenciado do previsto

no processo civil tradicional é um dos requisitos essenciais que caracterizam a

tutela jurisdicional coletiva. O microssistema processual coletivo brasileiro define

os entes legitimados para a propositura das ações coletivas, indicando os

requisitos necessários para que determinado corpo intermediário atue em nome

Page 13: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

13

de uma coletividade. Portanto, foi adotado o controle da representatividade

adequada de forma prévia pelo legislador (ope legis).

Nesse cenário, serão verificados os entes legitimadas a propositura das

ações coletivas e suas principais características e peculiaridades.

Assim como a questão da legitimação para agir, a coisa julgada é um dos

institutos fundamentais do direito processual coletivo, que possibilita o alcance do

resultado útil do processo coletivo.

Nesse contexto, deve ser destacado que o microssistema processual

coletivo optou pela coisa julgada coletiva secundum eventum litis, pelo qual a

coisa julgada depende do resultado da lide. Todavia, serão abordadas diversas

questões polêmicas envolvendo o instituto da coisa julgada nas ações coletivas,

com destaque para a limitação territorial da coisa julgada prevista na atual

redação do artigo da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85).

Em virtude de um cenário de mudanças sociais e de imperfeições do

sistema processual então vigente, em março de 2015 foi aprovado o novo Código

de Processo Civil (Lei 13.105/15), elaborado a partir de anteprojeto criado por

comissão de juristas presidida pelo Ministro Luiz Fux e tendo como relatora a

professora Teresa Arruda Alvim Wambier.

Por isso, o terceiro capítulo será dedicado ao estudo do tratamento

dispensado pelo novo Código de Processo Civil ao processo coletivo.

Logo no início de seus trabalhos, a Comissão de Juristas encarregada de

elaborar Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil ressaltou que:

A ideologia norteadora dos trabalhos da comissão foi a de conferir maior celeridade à prestação da justiça. [...] [A Comissão] empenhou-se na criação de um ‘novo código’ buscando instrumentos capazes de reduzir o número de demandas e recursos que tramitam pelo Poder Judiciário2.

Entre as decisões iniciais adotadas pela Comissão de Juristas, constou a

de não disciplinar o processo coletivo no novo Código de Processo Civil, optando

pelo incremento das técnicas de tutela pluri-individual em detrimento das de tutela

coletiva. 2 Documento elaborado em janeiro de 2010 pela Comissão de Juristas encarregada de elaborar Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, instituída pelo Ato nº 379, de 30 de setembro de 2009, do Presidente do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.gov.br/ senado/novocpc/pdf/1a_e_2a_Reuniao_PARA_grafica.pdf.

Page 14: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

14

Nessa busca por imprimir mais celeridade e efetividade na prestação

jurisdicional, o Novo Código de Processo Civil (NCPC) optou por desenvolver

técnicas de resolução coletiva de demandas repetitivas, por meio de decisões

proferidas nos denominados julgamentos por amostragem. Para tanto,

aperfeiçoou a disciplina dos já existentes recursos especial e extraordinário

repetitivos e criou o incidente de resolução de demandas repetitivas, que é a

grande inovação do Novo Código de Processo Civil.

Sendo assim, foram analisados os principais instrumentos para a resolução

coletiva de demandas repetitivas trazidos no novo Código de Processo Civil, com

o escopo de permitir a verificação das implicações para o processo coletivo

dessas técnicas de julgamento por amostragem adotadas pelo NCPC.

Esses mecanismos de julgamento de demandas repetitivas, entre os quais

se destacam os recursos especial e extraordinário repetitivos e o novel incidente

de resolução de demandas repetitivas, vêm sofrendo grandes críticas de parte

significativa da doutrina, que serão tratadas no terceiro capítulo.

Por isso, a opção do novo Código de Processo Civil é alvo de críticas por

parte de importantes processualistas, que acreditam que a maior preocupação

tenha sido com a redução do número de processos, independentemente da

qualidade das decisões judiciais e da efetivação da garantia de acesso à justiça, o

que pode trazer graves riscos ao sistema processual civil brasileiro.

Por fim, serão apresentadas ponderações entre a importância do processo

coletivo no cenário brasileiro e a opção legislativa de privilegiar mecanismos de

resolução de demandas repetitivas.

Oportuno destacar que, diante da recente entrada em vigor no novo Código

de Processo Civil (18 de março de 2016), a interpretação que será conferida pelos

Tribunais a esses mecanismos de solução de demandas repetitivas será

fundamental para identificar-se, na prática, os problemas que surgirão a partir de

sua efetiva utilização no direito processual brasileiro.

Page 15: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

15

2 A EVOLUÇÃO DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL

Ao tratar das ações coletivas, inicialmente é preciso destacar que, desde o

surgimento do processo civil como ramo autônomo do Direito, no final do século

XIX, a sua estrutura sempre foi voltada para a tutela dos interesses individuais em

situação de conflito3.

Seguindo esta linha, o Código de Processo Civil de 1973 foi elaborado com

foco na tutela jurisdicional para a defesa de direitos subjetivos individuais, a partir

de demandas promovidas pelo próprio lesado4.

Portanto, a regra geral do Direito Processual Civil era que ninguém poderia

pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei (art. 6º,

CPC/1973).

Excepcionalmente, o direito brasileiro preocupava-se com algumas

relações jurídicas plurissubjetivas, que se caracterizavam pela presença de vários

sujeitos com interesses convergentes, justapostos e correlatos, em um mesmo

polo da relação jurídica5.

Essas relações jurídicas plurissubjetivas caracterizavam-se subjetivamente

pela pluralidade de sujeitos com interesses em comum no mesmo polo da relação

jurídica e, objetivamente, pela indivisibilidade do bem. Desta forma, a tutela dos

interesses de um desses sujeitos atingia necessariamente os demais sujeitos com

interesses convergentes6.

O direito material regulava poucas relações jurídicas plurissubjetivas,

como, por exemplo, as que envolviam condôminos diante de um bem comum7; os

coerdeiros em face da herança8; os sócios perante deliberações das assembleias

3 CUNHA, Alcides A. Munhoz. Evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, v. 77, p. 224, jan/1995. 4 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 6. ed. rev., atual. e amp,. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.13. 5 CUNHA, 1995, p. 224, Op Cit,. 6 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. A evolução da tutela jurisdicional coletiva no Brasil. Revista Dialética de Direito Processual, n. 131, p. 33-55, fev. 2014, p. 33. 7 Artigo 623 do Código Civil de 1916 e no Código Civil de 2002 (Lei 10.406/02): Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal ou gravá-la. 8 No Código Civil de 1.916 (Lei 3.071/16), a previsão era a seguinte: Art. 1.580. Sendo chamadas simultaneamente, a uma herança, duas ou mais pessoas, será indivisível o seu direito quanto à posse e ao domínio, até se ultimar a partilha. Parágrafo único. Qualquer dos co-herdeiros pode

Page 16: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

16

de sociedade9, etc. Nessas hipóteses, o direito processual buscava atender ao

direito material a partir de remédios que regulassem situações especiais de

litisconsórcio, de intervenção de terceiros, de legitimação extraordinária, para

permitir que todos os sujeitos da relação jurídica fossem alcançados pela coisa

julgada10.

Portanto, exceto nas raras hipóteses em que houvesse previsão legal

específica, o direito material não reconhecia a existência de relações jurídicas

plurissubjetivas ou coletivas. Apesar de sua reconhecida existência no plano

fático, não havia acolhimento no plano jurídico para os interesses de membros de

grupos ou coletividades convergentes sobre um mesmo bem11.

A única possibilidade de proteção jurídica dos interesses coletivos era a

possibilidade de ser ajuizada ação popular, porém o seu objeto era bastante

restrito12.

Assim, não existiam mecanismos específicos para a tutela dos interesses

metaindividuais. Por exemplo, em caso de circulação de algum produto

considerado nocivo à saúde pública, não poderia ser pleiteada a retirada do

produto do mercado, pois não se reconhecia a titularidade para a defesa desses

interesses metaindividuais aos consumidores ou a algum ente coletivo. Nessa

situação, o consumidor poderia individualmente ingressar em juízo, pleiteando a

reparação de dos danos pessoais sofridos com a aquisição e utilização do

produto reputado nocivo à saúde13.

Diante desse cenário, na década de 1970, os processualistas brasileiros,

influenciados por juristas italianos que estudavam as class actions norte-

reclamar a universalidade da herança ao terceiro, que indevidamente a possua, não podendo este opor-lhe, em exceção, o caráter parcial do seu direito nos bens da sucessão. Já no Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406/02) - Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio. 9 Ação prevista na Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/76) - Art. 286. A ação para anular as deliberações tomadas em assembleia-geral ou especial, irregularmente convocada ou instalada, violadoras da lei ou do estatuto, ou eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação, prescreve em dois anos, contados da deliberação. 10 CUNHA, 1995, p. 224, Op Cit,. 11 CUNHA, 1995, p. 224, Op Cit,. 12 CAVALCANTI, 2014, p. 33, Op Cit. 13 CUNHA, 1995, p. 224, Op Cit,.

Page 17: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

17

americanas, passaram a se preocupar com o desenvolvimento do processo

coletivo no Brasil14.

Apesar da possibilidade de propositura de ação popular, a concepção

moderna de ação coletiva teve início, no Brasil, com a Lei nº 6.938, de 31 de

agosto de 1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente e atribuiu ao

Ministério Público a legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e

criminal, por danos causados ao meio ambiente (art. 14, § 1º)15.

Em que pese a previsão legal da referida ação coletiva, não houve

regulamentação clara sobre o seu processamento, o regime da coisa julgada, o

destino do montante indenizatório e outras lacunas que acabaram por contribuir

para que houvesse pouca utilização e relevância na prática.

De qualquer forma, a Lei Ambiental contribuiu para intensificar o debate

doutrinário acerca da tutela coletiva, especialmente sobre a possibilidade de

propositura pelo Ministério Público de ação cível para a defesa de interesses não

individuais16.

O fruto da inquietação dos processualistas brasileiros é a Lei nº 7.347, de

1985, a Lei da Ação Civil Pública, que é o principal marco que deu início à efetiva

regulamentação das ações coletivas no Brasil17.

O legislador brasileiro, ao editar a Lei nº 7.347/85, inaugurou uma nova

fase do processo civil, em harmonia com os anseios da época, demonstrando

preocupação com os crescentes conflitos de massa, com o acesso à justiça, com

a pacificação social dos conflitos e colaborando para a própria afirmação do

conceito de cidadania18.

Todavia, o avanço no processo coletivo foi consagrado com a Constituição

de 1988, que elevou as ações coletivas a outro patamar, reconhecendo o direito

processual coletivo como ramo autônomo do direito processual e prevendo

expressamente a proteção coletiva de direitos.

14 CAVALCANTI, 2014, p. 34, Op Cit. 15 Lei 6.938/81 – Art. 14, § 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. 16 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p 46. 17 CAVALCANTI, 2014, p. 34, Op Cit. 18 CUNHA, 1995, p. 224, Op Cit,.

Page 18: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

18

Os avanços na tutela de direitos coletivos prosseguiram com a edição do

Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que, além de colocar o Brasil na

vanguarda mundial da proteção dos direitos do consumidor, articulou um sistema

de tutela metaindividual, contribuindo de forma significante para o direito

processual coletivo19.

2.1 Contribuição doutrinária Alguns autores indicam origens remotas para a origem do processo

coletivo, como Márcio Flávio Mafra Leal, ao assinalar que, no mundo ocidental, a

ação popular romana é a semente dos instrumentos processuais em favor da

coletividade20.

No entanto, a doutrina tradicional costuma salientar a experiência inglesa,

no sistema da common law, como origem dos instrumentos do processo coletivo e

da tutela coletiva de direitos21.

Ainda no século XVII, os Tribunais de equidade (Courts of Chancery), na

Inglaterra, admitiam o bill of peace. Trata-se de um modelo de demanda que

rompia com a tradição segundo a qual todos os sujeitos interessados deveriam,

obrigatoriamente, participar do processo, passando a permitir que representantes

de determinados grupos de indivíduos atuassem em nome próprio, demandando

por interesses dos representados. Ou, ainda, a possibilidade de esses

representantes serem demandados pelos mesmos interesses. Segundo a maioria

dos doutrinadores, nesse momento surgiram as class actions.22

Com o advento da Revolução Industrial no século XVIII, a sociedade

atravessou significativa mudança, com a massificação das relações sociais e a

consequente necessidade de tutela desses conflitos de massa23.

19 A doutrina aponta que essa evolução legislativa, e também doutrinária, garantiu ao Brasil, nos dias atuais, um dos regimes processuais coletivos mais avançados entre os países do civil Law. CAVALCANTI, 2014, p. 35, Op Cit; BAUMBACH, Rudinei. Sobre a tutela de direitos coletivos no contexto brasileiro : reflexões à luz das reformas projetadas. Revista de Processo, v. 38, n. 226, p. 4, dez. 2013. 20 LEAL, 2014, p. 36, Op Cit. 21 ZAVASCKI, 2014, p. 23, Op Cit,. 22 ZAVASCKI, 2014, p. 24, Op Cit,. 23 Gregório Assagra de Almeida destaca que “a Revolução Industrial do século XVIII pode ser considerada a circunstância social que veio dar origem aos movimentos sociais conflitivos em razão da denominada ascensão das massas, que se intensificou no decorrer da história, passando

Page 19: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

19

Outra consequência importante atribuída ao período da Revolução

Industrial para o direito processual coletivo foi a quebra da dicotomia entre

interesses públicos e privados24. Hugo Nigro Mazzilli defende que,

tradicionalmente, a doutrina divide os interesses em duas categorias: interesses

públicos, que envolveriam o relacionamento entre o Estado e o indivíduo, e

interesses privados, em que estão envolvidos relacionamentos entre indivíduos.

Todavia, citado autor destaca que entre essas duas categorias tradicionais de

interesses há uma categoria intermediária, que seriam os interesses

transindividuais, também denominados metaindividuais, que não são interesses

individuais, pois transcendem a esfera individual, mas não chegam a constituir

interesse do Estado ou de toda a coletividade25. Portanto, os interesses das

massas aparecem como “interesse intermediário entre o Estado e o indivíduo:

menos do que aquele, mais do que este”, como destaca Rodolfo de Camargo

Mancuso26.

Mesmo com o surgimento do Court of Judicature Act no direito inglês em

1873, que trouxe definições mais claras para o bill of peace, sua aplicação foi

modesta, em virtude da ausência de contornos bem-definidos, que traziam

dificuldades de ordem teórica e prática e dificultavam a sua utilização. Apesar de

haver alguns registros de casos ilustrativos na época, as interpretações restritivas

fixadas pela jurisprudência foram outro obstáculo para dificultar a efetiva utilização

do instituto27.

A experiência das cortes inglesas originou a class action, aprofundada e

difundida nos Estados Unidos especialmente a partir de 1938, com a edição da

Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure e da sua reforma, ocorrida em 1966,

que transformaram as class actions em algo totalmente inovador com relação aos

institutos que as antecederam28.

a exigir a tutela coletiva desses direitos massificados (ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 42). 24 VILA NOVA, Felipe d’Oliveira. Legitimidade ativa no direito processual coletivo: sua ampliação como canal de participação popular. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014, p. 32. 25 MAZZILLI, Hugo Nigro. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 7. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 27. 26 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir.8. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 34. 27 ZAVASCKI, 2014, p. 24, Op Cit,. 28 ZAVASCKI, 2014, p. 24, Op Cit,.

Page 20: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

20

A referida norma admitia a promoção de ação por um ou mais membros de

uma classe em defesa de todos os seus membros, desde que preenchidos alguns

requisitos, quais sejam: a impossibilidade de litisconsórcio ativo dos interessados;

que estivessem em discussão questões comuns a toda a classe; as pretensões e

as defesas fossem tipicamente de classe; os demandantes estivessem aptos para

a defesa eficaz dos interesses comuns. As class actions permitiam a tutela de

dois tipos de pretensões: as injuctions class actions, nas quais a pretensão era de

natureza declaratória ou de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer,

geralmente oriundas de direitos civis; e as class actions for damages, com

pretensões de natureza indenizatória pelos danos individualmente sofridos29.

Oportuno destacar que nas class actions norte-americanas o magistrado

exerce papel de destaque, sendo o responsável por aferir o exame das condições

de admissibilidade da demanda e a representatividade adequada do demandante,

assim como o controle dos pressupostos para o seu desenvolvimento e a sua

instrução30.

A preocupação com a evolução do processo civil tradicional, com a

intenção de contemplar mecanismos aptos a promover a tutela de direitos

coletivos, assim como a tutela de direitos individuais nos quais uma larga escala

de indivíduos é atingida pelo mesmo ato, ganhou grande destaque nos países do

civil law a partir da década de 1970.

Os principais temas que impulsionaram essa evolução da tutela coletiva na

década de 70 foram a preservação do meio ambiente, em virtude do aumento de

sua degradação, e a proteção de indivíduos na qualidade de consumidores,

diante de sua hipossuficiência com o crescimento do mercado de consumo31.

Como dito, a evolução do processo coletivo está relacionada às

características da vida contemporânea, em que surgem conflitos nos quais

grandes massas estão envolvidas. Nesse cenário, a preservação do meio

ambiente e a defesa do consumidor foram o ponto de partida para a reforma dos

29 ZAVASCKI, 2014, p. 26, Op Cit,. 30 ZAVASCKI, 2014, p. 26, Op Cit,. 31 Neste sentido, Teori Albino Zavascki assinala que “o fenômeno se deveu especialmente à tomada de consciência, pelos meios sociais mais esclarecidos, de ser inadiável a operacionalização de medidas destinadas: a) a preservar o meio ambiente, fortemente agredido pelo aumento cada vez maior do número de agentes poluidores; e b) a proteger os indivíduos na sua condição de consumidores, atingidos, com acentuada intensidade, pelas consequências negativas de uma economia de mercado cegamente voltada para o lucro, num ambiente caracterizado por renitentes crises inflacionárias” (ZAVASCKI, 2014, p. 27).

Page 21: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

21

sistemas jurídicos em diversos países, para a inclusão de mecanismos aptos a

promover a tutela de direitos coletivos.

As mudanças na sociedade e esse movimento reformador dos sistemas

jurídicos culminaram com a evolução das regras de direito material, a fim de

garantir consistência normativa para a tutela desses interesses transindividuais.

Com isso, foi necessária a transição da tradição individualista do processo para

uma nova fase, com a criação de mecanismos para viabilizar a defesa em juízo

desses conflitos nos quais os interesses envolvidos são de caráter

metaindividual32.

Em 1978, no clássico trabalho intitulado “Acesso à Justiça”, Mauro

Cappelletti e Bryant Garth assinalaram que a concepção tradicional do processo

não contemplava a defesa dos interesses difusos e que estava ocorrendo uma

“verdadeira revolução” no processo civil, cuja preocupação central era a efetiva

proteção desses interesses33. Os mencionados autores identificam “três ondas”

de soluções práticas para os problemas de acesso à justiça. A “primeira onda”

trata da assistência judiciária para os pobres e a “terceira onda” se refere à

representação em juízo. A que efetivamente nos interessa, nesse momento, é a

“segunda onda”, que diz respeito à representação dos interesses difusos34.

Em relação a essa “segunda onda”, os autores destacam a legitimação

ativa e a coisa julgada como pontos fundamentais para a necessária evolução do

processo civil. Quanto à legitimação ativa, deveria haver o desprendimento das

tradições individualistas, para permitir que “indivíduos ou grupos atuassem em

representação dos interesses difusos”. A noção tradicional de coisa julgada

também precisa ser modificada a fim de permitir a efetiva proteção judicial dos

interesses difusos, com a vinculação de “todos os membros do grupo, ainda que

nem todos tenham tido a oportunidade de serem ouvidos”. Com essas

ponderações, Mauro Cappelletti e Bryant Garth concluem que:

32 ZAVASCKI, 2014, p. 27/28, Op Cit,. 33 Neste aspecto, os autores ressaltam que “o processo era visto como um assunto entre as partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares” CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 49-50. 34 CARVALHO NETO, Inacio de. Manual de processo coletivo. Curitiba: Juruá, 2005, p. 41.

Page 22: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

22

A visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva. Apenas tal transformação pode assegurar a realização dos ‘direitos públicos’ relativos a interesses difusos35.

Nessa época, por influência dos estudos e conferências de juristas

italianos36, ocupados com o estudo das class actions nos Estados Unidos, a

doutrina brasileira percebe a lacuna na legislação e na doutrina a respeito do

assunto no país e começa a demonstrar interesse com a defesa dos direitos

coletivos37. São indicados como os primeiros estudos sobre os interesses difusos

e coletivos, no Brasil, os trabalhos de José Carlos Barbosa Moreira38, Ada

Pellegrini Grinover39 e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior40, que foram publicados

no final da década de 1970.

José Carlos Barbosa Moreira destaca que, na vida contemporânea, apesar

da grande importância que as relações individuais continuam a ter, vêm ganhando

destaque, em número e relevância, situações em que se acham envolvidas

coletividades mais ou menos amplas de pessoas. Essas situações podem gerar

conflitos de interesse, cuja frequência e gravidade têm aumentado diariamente.

Todavia, os mecanismos do mundo jurídico tradicional não parecem suficientes

para garantir-lhes a proteção adequada. Neste sentido, torna-se necessário um

trabalho de adaptação, para aperfeiçoar os instrumentos processuais então

existentes ou, ainda, um esforço para que sejam criadas novas técnicas para a

35 CAPPELLETTI; GARTH, p. 49-50, 1988, Op Cit. 36 Um texto que foi muito significativo e citado em diversos trabalhos de doutrinadores brasileiros foi o trabalho de Mauro Cappelletti intitulado Formações sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil, que sintetizou uma palestra proferida no IX Congresso Internacional da Academia Internacional do Direito Comparado, em junho de 1974, em Pávia, na Itália, sobre o tema “As ações para a tutela de interesses coletivos. LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 185. 37 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas e ações coletivas. Salvador, JusPODIVM, 2015, p. 122. 38 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos. Revista de Processo, v. 28, out-dez, 1982. O texto foi primeiramente publicado em 1977, In: Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, mas neste trabalho utilizamos a republicação do texto que ocorreu em 1982. 39 GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos direitos difusos. Revista de Processo, v. 14, abr-set, 1979. 40 OLIVEIRA JR., Waldemar Mariz de. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos e difusos. Revista de Processo, n. 33, jan-mar, 1984. O texto foi originariamente publicado em 1978, mas neste trabalho utilizamos a versão revisada, cuja publicação ocorreu em1984.

Page 23: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

23

tutela efetiva de interesses que extrapolam os limites das relações

interindividuais41.

Em raras situações do cotidiano nas quais exista mais de um titular no polo

ativo ou passivo da relação jurídica, o processo civil se revela apto a solucionar

esses conflitos a partir de mecanismos tradicionais, como o litisconsórcio ou a

intervenção de terceiros. Nesse contexto, os casos que efetivamente têm

chamado a atenção dos processualistas, especialmente na Itália, onde ocorrem

diversos congressos, debates e publicações sobre o tema em revistas

especializadas42, são os que cuidam da tutela jurisdicional para interesses

comuns a uma coletividade. Nesses interesses inexiste ou é extremamente

genérica uma relação jurídica base e o interesse que se pretende tutelar não é

decorrente de algum vínculo, mas sim ligado a circunstâncias de fato. São

exemplos desses interesses comuns, mas sem vínculo específico, os interesses

de habitantes de certa região, todos os consumidores de determinado produto,

indivíduos que se sujeitem às consequências de determinado empreendimento,

público ou privado, entre outros. Nestes casos, é impossível, ou extremamente

difícil, a individualização exata de todos os membros, e não há relação-base

perfeitamente caracterizada. A doutrina italiana tem denominado essas situações

de “interesses coletivos” ou “difusos”43.

O artigo elaborado por Barbosa Moreira busca demonstrar que no direito

brasileiro há um instrumento que, dentro de certos limites, pode ser utilizado para

a proteção jurisdicional dos interesses difusos. Trata-se da ação popular existente

no Brasil desde a Constituição de 1934 e então prevista no artigo 153, § 31, da

Carta Constitucional de 1969 e regulamentada pela Lei nº 4.717/1965. Por meio

da ação popular é possível a invalidação de ato lesivo ao patrimônio público, “não

só quando cause prejuízo pecuniário, mas também quando lese bens imateriais 41 MOREIRA, 1982, Op Cit. 42 O autor cita como exemplo os congressos de 1974, em Pávia, sobre o tema “le azioni a tutela di interessi collettivi”, e o de 1975, em Salerno, sobre o tema “La tutela giuridica degli interessi diffusi, con particolare riguardo alla protezione dell’ambiente e dei consumatori”. São destacadas também algumas contribuições doutrinárias, dentre as quais as de Constantino, “Brevi note sulla tutela giurisdizionale degli interessi colletivi davantial giudice civile”, in Diritto e Giurisprudenza, vl. 89, n. 6, e as intervenções de Cappelletti e de Proto Pisani, publicadas, respectivamente, sob os títulos de “Appunti sulla tutela giurisdizionale di interessi colletivi o diffusi”, in Giurisprudenza Italianá, 1975, Disp. 6., Parte IV, e “Appunti preliminar per uno studio sulla tutela giurisdizionalt; degli interessi colletivi (o piu exatamente; superindividuali) innanzi al giudice civile ordinário”, in Diritto e Giurisprudenza, v. 89, n.6, além dos relatórios coligidos no volume “La Tutela degli Interessi Diffusi nel Diritto Comparato”, Milão, 1976 (MOREIRA, 1982, Op Cit). 43 MOREIRA, 1982, Op Cit.

Page 24: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

24

ou refratários a uma avaliação em termos de moeda, como são, em regra,

aqueles que constituem objeto dos chamados ‘interesses difusos’”44. O autor

abordou, ainda, alguns aspectos processuais polêmicos da ação popular, como,

por exemplo, a extensão da coisa julgada, sendo o seu trabalho estímulo para os

demais processualistas brasileiros sobre a importância do desenvolvimento de

técnicas processuais para a efetiva tutela jurisdicional dos direitos difusos45.

Waldemar Mariz de Oliveira Júnior também se inspirou na doutrina italiana,

sobretudo no trabalho de Mauro Cappelletti, intitulado de “Formações sociais e

interesses dos grupos ante a Justiça Civil”46, para escrever, em 1978, seu artigo

sobre a tutela jurisdicional dos interesses coletivos e difusos, com atenção

especial na legitimação ativa para agir em favor dos denominados interesses

coletivos47.

O autor destaca que a sociedade contemporânea se reveste de imensa

complexidade e, como consequência, as atividades sociais e econômicas podem

prejudicar elevado número de pessoas Essas lesões podem atingir interesses

coletivos de grupos, classes ou categorias de indivíduos ou até mesmo de um

número indefinido de pessoas sem que haja ligação entre elas, os denominados

interesses difusos. Desta forma, tais interesses deixam de ter feição meramente

individual e passam a ter caráter coletivo ou difuso, gerando, em caso de

violação, danos igualmente coletivos ou difusos. Cita como exemplos dessas

situações o direito à saúde, à segurança social, ao ambiente saudável, o direito

de o consumidor não ser prejudicado por propaganda enganosa ou direito do

cidadão de não sofrer discriminação racial, social ou religiosa48.

Um aspecto preocupante é que nesses conflitos de massa, na maioria das

vezes, as pessoas lesadas encontram-se em situação inadequada para buscar a

tutela jurisdicional contra o causador do prejuízo sofrido individualmente. Portanto,

esses direitos não podem mais ser tutelados individualmente, de acordo com os

institutos tradicionais, uma vez que sua natureza jurídica é diversa, pois são eles

de caráter coletivo ou difuso. Diante desse cenário, no qual novos tipos de tutela

44 MOREIRA, 1982, Op Cit. 45 CAVALCANTI, 2015, p. 125, Op Cit. 46 CAPPELLETTI, Mauro. Formazioni sociali e interessi di grppo davanti alla giustizia civile. Rivista di Diritto Processuale, v. 30, n. 3, p. 361-402, jul/set, 1975. 47 OLIVEIRA JR., 1984, Op Cit . 48 OLIVEIRA JR., 1984, Op Cit.

Page 25: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

25

jurisdicional devem surgir, surge uma pergunta: “quem teria legitimação ativa para

agir em juízo na defesa e na salvaguarda desses interesses?”49

Para buscar uma resposta, inicialmente deve-se superar a clássica divisão

– suma divisio – entre direito público e privado. Na realidade social moderna tal

classificação encontra-se ultrapassada, na medida em que surgem novos direitos

e deveres que não são públicos, no sentido tradicional da palavra, mas são

coletivos. Portanto, não existe mais esse abismo entre público e privado,

assumindo as relações contemporâneas feições complexas, com interesses que

pertencem, ao mesmo tempo, a todos e a ninguém.50

Outro ponto que deve ser observado é que não é satisfatório atribuir a

legitimidade para agir, em defesa dos interesses difusos ou coletivos, ao indivíduo

que foi direta e pessoalmente lesado. Usualmente, o lesado não reúne condições

de propor ação competente para pleitear a reparação dos danos pessoais, quanto

mais para requerer a tutela adequada à coletividade.51

A solução proposta por Waldemar Mariz de Oliveira Júnior é atribuir a

legitimidade para agir em defesa dos interesses difusos e coletivos, de forma

concorrente, a um órgão público, aos próprios indivíduos e a grupos de indivíduos

direta ou indiretamente interessados, como ocorre em diversos países52.

Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover reitera que, com a renovação do

quadro político, econômico e social, não é suficiente a visão tradicional de um

direito exclusivamente subjetivo. Nessa sociedade renovada, surgem conflitos

49 OLIVEIRA JR., 1984, Op Cit. 50 OLIVEIRA JR., 1984, Op Cit. 51 O autor traz importantes ponderações sobre a ineficácia de se atribuir a legitimidade para agir em defesa dos interesses coletivos ou difusos ao indivíduo lesado, alertando que “de fato, muitas vezes, quem sofre um dano pessoal não se encontra em condições de pleitear, judicialmente, a sua reparação, quanto mais pretender adequada tutela contra a violação de direitos da coletividade! Imagine-se alguém que tenha sofrido determinado prejuízo com a aquisição de um produto nocivo à saúde, colocado no comércio por certa indústria alimentar, e que causou danos a centenas ou milhares de pessoas. Esse consumidor sofreu um prejuízo que, no contexto geral, é muito pequeno para animá-lo a agir contra um adversário que lhe é infinitamente superior, econômico e financeiramente. Se tentasse isoladamente, isto é, se pleiteasse o ressarcimento do dano pessoal que sofreu, a condenação da indústria em questão não teria qualquer consequência eficaz no aspecto coletivo, pois ela a suportaria tranquilamente. Em outras palavras, uma condenação assim isolada não afetaria em nada o potentado que causou o prejuízo a toda uma coletividade. Seria a picada de uma agulha em um elefante... Por outro lado, é de considerar-se que esse mesmo ofendido dificilmente sairia à liga para agir por toda uma classe, ou grupo ou comunidade, porquanto, se o fizesse, estaria expondo-se a riscos de toda sorte, inclusive correndo o perigo de sujeitar-se a pagamento de custas processuais e honorários advocatícios elevados, no caso de derrota. Na realidade, tantas seriam as dificuldades e os riscos, que o cidadão poderia expor-se facilmente ao ridículo” (OLIVEIRA JR., 1984, Op Cit). 52 OLIVEIRA JR., 1984, Op Cit.

Page 26: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

26

metaindividuais nos quais se torna fundamental a tutela de necessidades

coletivas, normalmente ligadas à “qualidade de vida”, que são os denominados

interesses difusos. Desta forma, diante de sua configuração coletiva e de massa,

é necessária a adoção de novas técnicas para a tutela jurisdicional desses

interesses difusos, permitindo a defesa adequada de interesses metaindividuais53.

A autora destaca a importância que os interesses difusos assumem na

sociedade, sendo que o reconhecimento de sua existência e a criação de

instrumentos necessários à tutela e efetiva proteção desses interesses significam

“acolher novas formas de participação, como instrumento de racionalização do

poder”54.

Nesse cenário, surge a necessidade de o Poder Judiciário ampliar o seu

raio de ação, alcançando a proteção jurisdicional dos interesses difusos, os quais

envolvem um feixe de relações jurídicas, sendo esses novos interesses

verdadeiros conflitos sociais55.

No âmbito processual, a tutela dos interesses difusos projeta significativa

alteração dos conceitos clássicos de ação, jurisdição e processo, superando os

modelos tradicionais e individualistas. Desta maneira, as técnicas processuais

antigas devem ser adaptadas à nova realidade social, inclusive com a

modificação de diversos institutos que foram criados para solucionar conflitos

individuais, fundamentados no modelo tradicional56.

A autora anota que a experiência estrangeira tem adotado uma solução

mista para a tutela dos interesses difusos, traçando os seguintes caminhos:

instituição de órgãos públicos especializados para a tutela processual e

extraprocessual de determinados direitos difusos; extensão da legitimação para

agir a sujeitos não prejudicados pessoalmente, como associações ou pessoas

físicas; ampliação dos poderes do juiz, não estando limitado a proferir sentenças

com eficácia limitada às partes57.

53 GRINOVER, 1979, Op Cit. 54 GRINOVER, 1979, Op Cit. 55 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências na tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista do Curso de Direito, Univ. Federal de Uberlândia, v. 13, n. 1,2, 1984. 56 A autora sugere que “institutos como a legitimação e o interesse de agir, a representação e a substituição processual, o contraditório, os limites subjetivos e objetivos da coisa julgada, os poderes do juiz e a função do Ministério Público (MP) foram estruturados para um modelo concebido e realizado para soluciona fundamentalmente conflitos individuais, ou, quando muito, conflitos entre Estado e indivíduo. Mas não se adaptam, em sua configuração clássica, à solução de conflitos entre coletividades (GRINOVER, 1979). 57 GRINOVER, 1979, Op Cit.

Page 27: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

27

No contexto brasileiro, o único instrumento indicado pela autora, conforme

a lição de Barbosa Moreira, que tem servido para a tutela jurisdicional dos

interesses difusos é a ação popular constitucional. Todavia, a ação popular possui

certos limites e não é suficiente para solucionar toda a conflituosidade que

envolve os interesses difusos na sociedade, apesar da criatividade e sabedoria do

legislador ao editar a Lei no 4.717/65 e adaptar as técnicas processuais

tradicionais aos objetivos do referido instrumento58.

Naquela ocasião, a autora formulou algumas sugestões para adaptar a

tutela jurisdicional dos interesses difusos aos anseios da sociedade, tais como: a)

a instituição de órgãos públicos especializados na defesa de determinados

interesses difusos; b) cumulativamente, atribuir legitimidade às associações para

agirem em defesa dos interesses de seus associados e dos grupos que

representam; c) conferir legitimidade para a pessoa física agir em defesa dos

interesses difusos, independentemente do prejuízo pessoal sofrido; d) aproveitar

a experiência da ação popular, especialmente quanto a alguns institutos como a

representação e a substituição processual, os limites da coisa julgada e sua

ocorrência secundum eventum litis, a ciência dos atos processuais e o

contraditório, as funções do Ministério Público e dos órgãos públicos e os poderes

do juiz59.

Essas contribuições doutrinárias foram fundamentais para fomentar o

debate sobre o tema da tutela de interesses difusos e coletivos e impulsionar a

evolução legislativa que veio a seguir. Com toda essa evolução doutrinária e

legislativa, é possível afirmar que o Direito Processual Coletivo se consolidou

como novo ramo do Direito Processual60.

58 GRINOVER, 1979, Op Cit. 59 GRINOVER, 1979, Op Cit. 60 Ada Pellegrini Grinover destaca que “a análise dos princípios gerais do direito processual, aplicados aos processos coletivos, demonstrou a feição própria e diversa que eles assumem, autorizando a afirmação de que o processo coletivo adapta os princípios gerais às suas finalidades. Mais vistosa ainda é a diferença entre os institutos fundamentais do processo coletivo em comparação com os do individual. Tudo isso autoriza a conclusão a respeito do surgimento e da existência de um novo ramo do Direito Processual, o Direito Processual Coletivo, contando com princípios revisitados e institutos fundamentais próprios e tendo objeto bem-definido: a tutela jurisdicional dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos” (GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, v. II, Processo Coletivo (arts. 81 a 104 e 109 a 119), 2011, p. 33). Neste mesmo sentido: NERY JR., Nelson. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, v. II, Processo Coletivo (arts. 81 a 104 e 109 a 119), 2011, p. 221.

Page 28: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

28

Diante da novidade do tema, este é um assunto que ainda comporta

intensos debates, e a doutrina permanece em constante discussão sobre os

principais aspectos que envolvem o processo coletivo, haja vista que a disciplina

das ações coletivas no Brasil é algo relativamente recente.

2.2 Evolução legislativa no Brasil

Teori Albino Zavascki defende que “foi o legislador brasileiro, na verdade,

que protagonizou, de modo muito mais profundo e mais rico do que nos demais

países da civil law, a ’revolução’ mencionada por Cappelletti e Garth, em prol da

criação de instrumentos de tutela coletiva”61.

Como visto anteriormente, até a década de 1970 o instrumento que, dentro

de certas limitações, estava apto para a tutela jurisdicional dos denominados

interesses difusos era a ação popular62, existente no Brasil desde a Constituição

de 1934, regulamentada pela Lei nº 4.717/1965 e então prevista no artigo 153, §

31, da Carta Constitucional de 1969.

Alguns autores63 citam exemplos de leis específicas que autorizavam

algumas entidades para a tutela de determinados interesses difusos ou coletivos,

como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que legitimava os sindicatos a

representarem, perante as autoridades judiciárias e administrativas, os interesses

gerais da respectiva categoria (art. 513) ou a previsão do dissídio coletivo como

forma de tutela coletiva (art. 856). Outro exemplo era a Lei no 4.215/63, que

instituiu o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e previa em seu artigo 1º,

§ único, que cabia “à Ordem representar, em juízo e fora dele, os interesses

gerais da classe dos advogados”.

A evolução legislativa brasileira teve início já na década de 1970, com a

edição da Lei nº 6.513, de 20 de dezembro de 1977, que alterou o artigo 1º, § 1º

da Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65), para ampliar as hipóteses de cabimento da

ação popular, também considerando como patrimônio público os bens e direitos

de valor turístico. A Lei nº 6.513/77 também inovou ao introduzir a previsão de

61 ZAVASCKI, 2014, p. 30, Op Cit, 62 MOREIRA, 1982, Op Cit. 63 NERY JR., 2011, p. 221, Op Cit.

Page 29: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

29

suspensão liminar do ato lesivo impugnado na ação popular, uma vez que, em

algumas situações, a invalidação do ato lesivo não é suficiente para a proteção do

patrimônio público, especialmente quando possa produzir efeitos imediatos de

ordem irreparável64.

Posteriormente, no ano de 1981, foram aprovadas duas leis relevantes

para a proteção dos interesses difusos e coletivos. A primeira foi a Lei da Política

Nacional do Meio Ambiente, Lei nº 6.938, de 31.08.1981, a qual, em seu artigo 14,

§ 1º, atribuiu legitimação ao Ministério Púbico para propor ação de

responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. Embora

a previsão contida na Lei nº 6.938 fosse um sinal da evolução que estava por vir,

sua aplicação não teve efeito prático relevante, diante do campo restrito de

aplicação e da ausência de disciplina própria65. A outra foi a Lei orgânica do

Ministério Público, Lei Complementar nº 40, de 14.12.1981, que, por meio de seu

artigo 3º, inciso III, estabeleceu ser função institucional do Ministério Público a

promoção de ação civil pública, nos termos previstos em lei.

Todavia, no contexto brasileiro, o grande divisor de águas na legislação

infraconstitucional para a efetiva tutela jurisdicional dos interesses coletivos é a

Lei da Ação Civil Pública, Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. A partir da edição

da Lei no 7.347/85 ocorreu uma transformação no direito processual, que deixou

de se preocupar exclusivamente com a tutela jurisdicional de direitos individuais

para se ocupar também de interesses coletivos e difusos. Sendo assim, a entrada

em vigor da Lei da Ação civil Pública representou um importante avanço para o

sistema processual brasileiro e foi responsável por projetar o Brasil no

“movimento mundial para a tutela dos direitos e interesses de massa”66. Oportuno

destacar que a aprovação da Lei da Ação Civil Pública ocorreu em virtude de uma

“revolução” de professores brasileiros que defendiam a necessidade de tutela de

interesses metaindividuais no Brasil, enquanto a sociedade ainda não se ocupava

deste tema67.

64 GRINOVER, 1979, Op Cit. 65 BAUMBACH, 2013, p. 3, Op Cit. 66 ALMEIDA, 2003, p. 265, Op Cit. 67 Márcio Flávio Mafra Leal anota que “a promulgação da Lei 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública, entretanto, não foi propriamente resultado de um movimento social. Na verdade, o que aconteceu no Brasil foi uma “revolução” de professores e profissionais de Direito que, estudando autores estrangeiros, principalmente italianos, passaram a reivindicar um tratamento processual no Brasil de conflitos metaindividuais, embora socialmente não houvesse manifestações e pressões visíveis para tal, por falta de consciência político-jurídica de grupos, pela debilidade organizacional da

Page 30: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

30

O segundo grande momento de prestígio da tutela coletiva de direitos na

legislação brasileira ocorreu com a promulgação da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, marcada pela tutela jurídica irrestrita, integral e

ampla de direitos individuais e coletivos, com a finalidade precípua de conferir

efetividade aos direitos fundamentais. Nesse cenário, o direito processual coletivo

se consagrou como novo ramo do direito processual brasileiro68, cujas ações

coletivas assumiram destaque jamais visto em Constituições anteriores69. São

alguns exemplos dessa expansão da tutela coletiva na Constituição de 1988: a

garantia ampla de acesso à justiça (art. 5º, XXXV); a possibilidade de impetração

de mandado de segurança coletivo (art.5º, LXX); a ampliação das hipóteses de

cabimento da ação popular (art. 5º, LXXIII); o status constitucional conferido à

ação civil pública (art. 129, III).

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, ficou evidente a

preocupação do legislador brasileiro com a proteção judicial dos interesses

coletivos, sendo aprovadas diversas leis que tratavam expressamente da

possibilidade de tutela jurisdicional de interesses coletivos, tais como: a Lei no

7.853/89, que tratou das pessoas portadoras de deficiência; a lei no 7.913/89, que

tratou da defesa dos investidores do mercado de valores mobiliários; a lei no

8.069/90, que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente e também cuidou da

tutela jurisdicional de interesses coletivos.

No entanto, foi com o advento do Código de Defesa do Consumidor – Lei

nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que a tutela jurídica dos direitos coletivos

ganhou “contornos diferentes, passando a receber o tratamento legal merecido”70.

Entre os avanços conquistados com a entrada em vigor do Código de Defesa do

Consumidor (CDC), pode-se destacar a conceituação dos direitos de massa,

sociedade civil brasileira e pela repressão política vivida no país durante pelo menos duas décadas” (LEAL, 1998, p. 184). 68 Gregório Assagra de Almeida sustenta que o direito processual coletivo brasileiro surge como novo ramo a partir da Constituição Federal (CF/88), que implantou no país uma nova ordem jurídica, de proteção jurídica ampla e irrestrita a direitos individuais e coletivos, e o define como o “ramo do direito processual que possui natureza de direito processual-constitucional-social cujo conjunto de normas e princípios a ele pertinente visa disciplinar a ação coletiva, o processo coletivo, a jurisdição coletiva, a defesa no processo coletivo e a coisa julgada coletiva, de forma a tutelar, no ‘plano abstrato’, a congruência do ordenamento jurídico em relação à Constituição e, no ‘plano concreto’, pretensões coletivas em sentido lato, decorrentes dos conflitos coletivos ocorridos no dia a dia da conflituosidade social” (ALMEIDA, 2003, p. 22). 69 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição de 1988. Revista de Processo, v. 61, jan. 1991. 70 PIZZOL, Patrícia Miranda. Liquidação nas ações coletivas. São Paulo: Lejus, 1998, p. 82.

Page 31: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

31

instituindo a categoria dos direitos individuais homogêneos, a disciplina do

fenômeno da coisa julgada coletiva, a extensão do cabimento da ação civil pública

a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Tendo em vista as grandes

contribuições à tutela dos direitos e interesses coletivos, o Código de Defesa do

Consumidor, juntamente com a Lei da Ação Civil Pública (LACP), estabeleceu o

denominado microssistema do processo coletivo.

Diante da evolução legislativa da tutela jurisdicional de interesses coletivos,

é importante destacar que o Código de Processo Civil permaneceu como um

sistema processual voltado para a solução de conflitos individuais. Por essa

razão, a sua aplicação no microssistema do processo coletivo (CDC, CF e LACP)

só ocorre de forma subsidiária limitada (art. 19 da LACP e art. 90 do CDC), ou

seja, nos casos em que exista compatibilidade formal e teleológica71.

A legislação infraconstitucional seguiu tratando da tutela coletiva, como se

observa em diversas leis específicas posteriormente editadas, tais como: a Lei nº

8.429, de 02 de junho de 1992, denominada Lei da Improbidade Administrativa; a

Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, conhecida como “Lei Antitruste”; a Lei nº

10.257, de 10 de julho de 2001, que criou o Estatuto da Cidade; a Lei nº 10.741,

de 1º de outubro de 2003, que regulamentou o Estatuto do Idoso.

Os diplomas mencionados trazem dispositivos que cuidam tanto do direito

material coletivo, como de aspectos do direito processual coletivo, demonstrando

a preocupação do legislador com esses temas, mas também tendo como

consequência uma pulverização das normas de processo coletivo. Quanto a este

aspecto, Ricardo de Barros Leonel observa que:

Essa segmentação quanto à sistematização no trato da matéria, especialmente quanto ao processo coletivo, se por um lado revelou o empenho do legislador em ampliar o acesso à justiça de interesses supraindividuais, por outro criou situações em que a sobreposição de normas em leis diferentes gera dificuldades de interpretação72.

Além dessa dificuldade interpretativa, em virtude da variedade de leis

dispondo sobre o processo coletivo, há outro aspecto que deve ser destacado, 71 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Da codificação do direito processual coletivo brasileiro: análise crítica das propostas existentes e diretrizes de uma nova proposta de codificação. Belo Horizonte, Del Rey, 2007, p. 80. 72 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 50.

Page 32: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

32

que é a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil que, como visto

anteriormente, foi criado para a tutela individual e nem sempre está apto para

solucionar adequadamente os problemas relacionados aos processos coletivos73.

Por essas razões, teve início uma movimentação acadêmica para a

elaboração de um Código de Processos Coletivos brasileiro, composto de regras

e princípios próprios, a fim de tratar, de modo unificado, do processo coletivo.

Com isso, no início da década de 2000 foram elaborados alguns anteprojetos de

Código Brasileiro de Processos Coletivos, entre os quais se destacam o

elaborado por grupo de alunos da pós-graduação e professores da Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo (USP), sob a coordenação da Professora

Ada Pellegrini Grinover74; e o elaborado por mestrandos da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estácio de Sá (UNESA), com

a supervisão e orientação do Professor Aluísio Gonçalves de Castro Mendes75.

No entanto, nenhum dos anteprojetos de Código Brasileiro de Processos

Coletivos emplacou e todos acabaram não tendo seguimento no Poder

Legislativo76.

Tendo em vista o insucesso da codificação do processo coletivo no Brasil,

optou-se pela elaboração de um projeto de nova Lei da Ação Civil Pública, como

uma espécie de Lei Geral de Processos Coletivos. Para tanto, foi apresentado

pelo Presidente da República, no ano de 2009, o Projeto de Lei nº 5.139, que fora

elaborado por uma Comissão Especial de juristas designada pelo Ministro da

Justiça77. Apesar da expectativa dos juristas, a Comissão de Constituição e

73 CAVALCANTI, 2015, p. 167, Op Cit. 74 Ao longo dos anos de 2003 e 2004, Ada Pellegrini Grinover constituiu e coordenou um grupo de alunos da Pós-Graduação em Direito da Universidade de São Paulo, para elaborar uma proposta de anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos (CAVALCANTI, 2015, p. 176). 75 Em 2005, sob a supervisão e orientação de Aluísio Gonçalves de Castro Mendes, um grupo de mestrandos da UERJ e da UNESA se reuniu para apresentar algumas sugestões ao anteprojeto já elaborado pela USP. A proposta inicial evoluiu para uma significante reestruturação do trabalho, culminando com a elaboração de anteprojeto próprio, reconhecido como o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos da UERJ/UNESA (CAVALCANTI, 2015, p. 177), 76 O Anteprojeto da Universidade de São Paulo incorporou algumas sugestões da proposta elaborada pela UERJ/UNESA, consolidando um único anteprojeto que foi encampado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), e apresentado ao Ministério da Justiça em dezembro de 2005. Todavia, apesar da ocorrência de fase de consulta e apresentação pública de sugestões, o projeto não foi apresentado ao Congresso Nacional (LEONEL, 2011, p. 51). 77 A comissão foi designada pelo Ministro da Justiça a partir da Portaria nº 2,481, de 09 de dezembro de 2008, e funcionou junto à Secretaria da Reforma do Poder Judiciário, órgão do Ministério da Justiça, nos anos de 2008 e início de 2009. Compuseram referida omissão: Rogerio Favreto, Secretário de Reforma do Judiciário, como presidente; Luiz Manoel Gomes Júnior, como relator; Ada Pellegrini Grinover; Alexandre Lipp João; Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; André da Silva Ordacgy; Anizio Pires Gavião Filho; Antônio Augusto de Aras; Antônio Carlos Oliveira

Page 33: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

33

Justiça da Câmara dos Deputados (CCJC), na Reunião Ordinária do dia

17/03/2010, de forma terminativa e em votação apertada, acolheu o Parecer

Vencedor do Deputado José Carlos Aleluia – Democratas (DEM-BA), pela

constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição do

Projeto de Lei nº 5.139/2009. Da deliberação conclusiva da CCJC foi interposto,

pelo Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia, recurso para que o referido Projeto

de Lei fosse apreciado pelo Plenário da Câmara dos Deputados, mas até o

presente momento encontra-se pendente de julgamento78.

Diante das tentativas infrutíferas de normatização em um único documento,

o processo coletivo brasileiro permanece regulado por diversas leis esparsas,

constituindo o microssistema do processo coletivo, que tem como protagonistas o

Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei

8.347/85).

Recentemente, a Lei nº 13.015, de 16 de março de 2015, instituiu o Novo

Código de Processo Civil, e, salvo raras exceções, não cuidou de regulamentar o

processo coletivo, haja vista que foi elaborado visando à tutela jurisdicional de

direitos individuais, seguindo o exemplo do Código de Processo Civil de 1973.

Ada Pellegrini Grinover reconhece a importância que a tutela jurisdicional

coletiva assume no cenário processual, afirmando que:

Os processos coletivos transformaram no Brasil todo o processo civil, hoje aderente à realidade social e política subjacente e às controvérsias que constituem seu objeto, conduzindo-o pela via da eficácia e da efetividade. E que, por intermédio dos processos coletivos, a sociedade brasileira vem podendo afirmar, de maneira mais articulada e eficaz, seus direitos de cidadania79.

Diante desta perspectiva, vejamos uma abordagem sucinta das principais

normas que regulamentam o microssistema brasileiro dos processos coletivos.

Gidi; Athos Gusmão Carneiro; Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida; Elton Venturi; Fernando da Fonseca Gajardoni; Gregório Assagra de Almeida; Haman Taosa de Moraes e Córdova; João Ricardo dos Santos Costa; José Adonis Callou de Araujo Sá; José Augusto Garcia de Souza; Luiz Philippe Vieira de Mello Filho; Luiz Rodrigues Wambier; Petrônio Calmon Filho; Ricardo de Barros Leonel; Ricardo Pippi Schmidt; Sérgio Cruz Arenhart. 78 Conforme se infere da consulta ao andamento do Projeto de Lei 5.139/2009, extraído do sítio eletrônico da Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=432485 . 79 GRINOVER et al., 2011, p. 221, Op Cit.

Page 34: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

34

2.2.1 Ação popular

Conforme destacado nos tópicos anteriores, até o advento da Lei da Ação

Civil Pública, em 1985, a doutrina considera a ação popular como o único

instrumento previsto no ordenamento jurídico brasileiro apto a tutelar os

interesses de massa.

A ação popular tem origem remota nas ações populares do direito romano,

que permitiam ao cidadão comparecer em juízo na qualidade de membro da

comunidade e na defesa do interesse comum, ainda que naquele momento não

existisse uma definição bem delineada de Estado80.

A principal característica da ação popular, desde a sua origem no direito

romano, é a possibilidade de exercício da ação por qualquer membro da

comunidade, para a tutela de interesses da coletividade. Isso traz uma relevante

consequência processual, que é a legitimidade ativa para a defesa de direitos de

titularidade diversa, além de configurar um importante instrumento de democracia

e afirmação dos direitos de cidadania, conferindo aos cidadãos um mecanismo de

participação na vida política e controle da probidade e honestidade da

administração pública81.

Nesse sentido, a ação popular ganha destaque como instrumento de

defesa dos interesses metaindividuais, como destaca Teori Albino Zavascki:

A ação popular, ao zelar pela higidez e boa administração do patrimônio pertencente às pessoas de direito público e às entidades direta ou indiretamente controladas pelo Estado, está defendendo não apenas interesses particulares dessas pessoas, mas, sobretudo, os interesses superiores da própria coletividade a que servem. Eis aí plasmada, portanto, a transindividualidade dos interesses tutelados82.

80 ALMEIDA, 2003, p. 380, Op Cit. 81 ZAVASCKI, 2014, p. 78, Op Cit, 82 ZAVASCKI, 2014, p.79-80, Op Cit,. No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles, Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes defendem que a ação popular “é um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos individuais próprios, mas, sim, interesses da comunidade. O beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo, titular do direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão a promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição da República lhe outorga (MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 179).

Page 35: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

35

Por essa razão, ainda na década de 1970, Barbosa Moreira chamou a

atenção para a importância da ação popular e destacou a sua utilização como

mecanismo de proteção jurisdicional dos interesses difusos83.

No panorama brasileiro, apesar de o artigo 15784 da Constituição do

Império de 1824 utilizar a expressão “ação popular”, esse dispositivo não possuía

os contornos da ação popular propriamente dita, não podendo ser considerado

instrumento de participação política, devido à sua restrição ao campo penal85,

Sendo assim, a doutrina dominante entende que a ação popular foi

introduzida efetivamente como um direito fundamental e forma de defesa pelo

cidadão de direitos transindividuais, com a Constituição Republicana de 1934, na

redação do inciso 3886, de seu artigo 11387. Desde a sua concepção, dois

aspectos permaneceram praticamente inalterados até os dias atuais: a

legitimidade ativa, que é atribuída a qualquer cidadão, e a sua finalidade, que é a

anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público88.

Todavia, a ação popular não resistiu à chegada do Estado Novo e da

ditadura que se iniciava e foi suprimida do ordenamento jurídico com a outorga da

Constituição de 1937.

Passado o período ditatorial, a previsão da ação popular retornou na

redação da Constituição de 194689 e com a ampliação de seu alcance para tutelar

também o patrimônio das entidades autárquicas e das sociedades de economia

mista. Com isso, acompanharam-se a evolução e descentralização do sistema da

administração pública, além do patrimônio da União, dos estados e dos

municípios, que já estavam previstos na Constituição de 1934.

Curioso observar que a ação popular é destacada como um instrumento de

democracia direta, mas foi durante o período da ditadura militar, mais

especificamente no dia 29 de junho de 1965, que foi promulgada a Lei da Ação

83 MOREIRA, 1982, Op Cit. 84 Art. 157. Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra elles acção popular, que poderá ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do processo estabelecida na Lei. 85 ALMEIDA, 2003, p. 383, Op Cit. 86 Art. 113, 38) Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos estados ou dos municípios. 87 LEAL, 2014, p. 170, Op Cit. 88 ZAVASCKI, 2014, p. 76, Op Cit,. 89 Art. 141, § 38 - Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos estados, dos municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista.

Page 36: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

36

Popular, Lei nº 4.717, que vigora até os dias atuais. Posteriormente, no ano de

1977, o conceito de patrimônio público foi alterado pela lei nº 6.513/77, que

modificou a redação do § 1º 90, do artigo 1º, da Lei da Ação Popular, para ampliar

suas hipóteses de cabimento, também considerando como patrimônio público os

bens e direitos de valor turístico.

A Constituição Federal de 1988, seguindo o exemplo das constituições

posteriores à de 1937, traz a ação popular como garantia constitucional

fundamental, prevista em seu artigo 5º, inciso LXXIII91. A Constituição de 1988 foi

a que garantiu mais amplitude à ação popular, pondo fim à discussão sobre o seu

cabimento em face de atos praticados por entidades paraestatais (sociedades de

economia mista, empresas públicas, serviços sociais autônomos e entes de

cooperação), além dos órgãos da administração centralizada92.

Comparando a redação do inciso LXXIII da Constituição com os termos da

Lei da Ação Popular, verifica-se que não há coincidência absoluta entre os dois

diplomas legais93. A Constituição de 1988 ampliou o âmbito de cabimento da ação

popular para incluir entre os bens tutelados o meio ambiente, o patrimônio cultural

e a moralidade administrativa. Tal ampliação guarda conformidade com o

prestígio desses bens no novo regime constitucional, tendo em vista que a

moralidade administrativa foi consagrada como um dos princípios da

administração pública (art. 37) e o meio ambiente ecologicamente equilibrado foi

garantido como direito de todos e em de uso comum do povo e essencial à sadia

qualidade de vida (art. 225)94.

90 Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos estados, dos municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos estados e dos municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos. § 1º - Consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico (redação dada pela Lei nº 6.513, de 1977). 91 Art. 5º - LXXIII - Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; 92 MEIRELLES; WALD; MENDES, 2014, p. 179, Op Cit. 93 MOREIRA, 1991, p. 4, Op Cit 94 ZAVASCKI, 2014, p. 77, Op Cit.

Page 37: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

37

Portanto, a partir da Constituição de 1988, a ação popular é cabível para

anular atos lesivos ao patrimônio público, que pode ser entendido como os bens e

direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico, turístico ou cultural,

assim como para anular atos lesivos ao meio ambiente e à moralidade

administrativa.

A Lei nº 4.717/65 foi devidamente recepcionada pela Constituição de 1988,

e os novos bens tutelados em virtude da ampliação do âmbito de cabimento da

ação popular foram imediatamente protegidos, em virtude da aplicação imediata

destas normas, prevista no parágrafo 1º, do próprio artigo 5º da Constituição

Federal95. Por essa razão, sendo a ação popular considerada um direito

fundamental, no sentido formal e material, não cabem interpretações restritivas

sobre a Lei da Ação Popular e a sua utilização, especialmente no tocante ao seu

objeto.

Ainda sobre a recepção da Lei da Ação Popular pela Constituição de 88,

mas quanto à legitimidade ativa, Gregório Assagra de Almeida defende que o

artigo 1º, § 3º96, da Lei nº 4.717/65, que exige título de eleitor para a comprovação

da cidadania, não foi recepcionado pela Constituição de 1988. Esta não

estabelece qualquer restrição à concepção de cidadão, devendo a condição de

cidadão, “para fins de ação popular, ser extraída do princípio da dignidade da

pessoa humana, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito

Brasileiro (Art. 1º, III, CF)”97. Todavia, pacificou-se o entendimento de que a

legitimidade ativa para o ajuizamento da ação é atribuída a todo cidadão

brasileiro, assim entendido como a pessoa em pleno gozo de seus direitos cívicos

e políticos, portanto, o eleitor. Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles assinala que

“somente o indivíduo (pessoa física) munido de seu título eleitoral poderá propor

ação popular, sem o que será carecedor dela”98. Ademais, a legitimidade para a

propositura da ação popular não se estende aos partidos políticos, entidades de

classe ou qualquer outra pessoa jurídica99.

95 CAVALCANTI, 2014, p. 45, Op Cit 96 § 3º A prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral ou com documento que a ele corresponda. 97 ALMEIDA, 2003, p. 439, Op Cit. 98 MEIRELLES; WALD; MENDES, 2014, p. 181, Op Cit. 99 Supremo Tribunal Federal (STF), Súmula 365: “Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular”.

Page 38: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

38

A doutrina alerta para a subutilização da ação popular que, apesar de se

configurar como um importante instrumento da democracia brasileira, é pouco

utilizada pelos cidadãos, em virtude do desconhecimento de seus direitos

fundamentais e de seu poder de participação política e fiscalização dos atos

administrativos”100. O que se percebe em muitos casos é o desvirtuamento da

ação popular e a sua utilização para fins políticos, como manobra de oposição à

administração101.

O que se conclui é que a ação popular, além de se inserir no

microssistema do direito processual coletivo, é instrumento essencial para a

legitimação e efetivação do Estado Democrático de Direito brasileiro102.

2.2.2 Ação civil pública

A Lei da Ação Civil Pública é um verdadeiro divisor de águas para a tutela

jurisdicional coletiva no Brasil. Édis Milaré destaca a importância que ela teve

para o ordenamento jurídico brasileiro ao afirmar que:

Até a edição da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, a tarefa da ordem jurídica estava voltada para harmonizar, basicamente, os conflitos interindividuais ou entre grupos bem delimitados e restritos de pessoas, próprios de uma sociedade predominantemente agrária e artesanal e, portanto, muito diversa da nossa103.

Inicialmente, a Lei Orgânica do Ministério Público, Lei Complementar nº 40,

de 14 de dezembro de 1981, em seu artigo 3º, inciso III104, estabeleceu ser função

institucional do Ministério Público a promoção de ação civil pública, nos termos

previstos em lei. Todavia, não havia no ordenamento jurídico legislação que

regulamentasse a ação civil pública.

100 ALMEIDA, 2003, p. 304, Op Cit. 101 MEIRELLES; WALD; MENDES, 2014, p. 180, Op Cit. 102 Gregório Assagra de Almeida defende que a ação popular não só faz parte do sistema processual coletivo comum, como “é a mais legítima das ações coletivas, pois o seu legitimado ativo é também titular do direito difuso tutelável via ação popular” (ALMEIDA, 2003, p. 439). 103 MILARÉ, Édis. A ação civil pública na nova ordem constitucional. São Paulo: Saraiva, 1990. 104 Art. 3º - São funções institucionais do Ministério Público: III - promover a ação civil pública, nos termos da lei.

Page 39: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

39

No ano de 1983, os professores da Faculdade de Direito da Universidade

de São Paulo, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo

Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, elaboraram anteprojeto de Lei da

Ação Civil Pública e o apresentaram à comunidade jurídica no I Congresso

Nacional de Direito Processual, realizado em Porto Alegre, no mesmo ano. Após

a apresentação de algumas sugestões por Barbosa Moreira, o anteprojeto se

transformou em Projeto de Lei (PL) do Deputado Federal paulista Flávio

Bierrenbach, sendo apresentado à Câmara dos Deputados como o PL nº

3.034/1984105.

Um grupo de membros do Ministério Público do Estado de São Paulo,

composto pelos juristas Nelson Nery Júnior, Édis Milaré e Antonio Augusto Mello

de Camargo Ferraz, debateram e discutiram o anteprojeto apresentado pelo

Professores da Universidade de São Paulo e, durante o XI Seminário Jurídico dos

Grupos de Estudo do Ministério Público de São Paulo, realizado em dezembro de

1983, na cidade de São Lourenço, Minas Gerais, apresentaram a tese

denominada Ação Civil Pública e a defesa dos interesses difusos106.

Os juristas do Ministério Público de São Paulo tomaram por base o projeto

original e elaboraram outro anteprojeto da Lei da Ação Civil Pública, com algumas

diferenças, entre as quais se destacam as seguintes: ampliação da abrangência

do objeto para incluir a defesa do consumidor e de outros interesses difusos; a

criação do inquérito civil, como instrumento investigatório a cargo do Ministério

Público; possibilidade de sanção penal para quem descumprisse as requisições

de dados pelo Ministério Público para fins de instrução da ação civil pública107.

Referido anteprojeto, por ser mais abrangente, foi aprovado pela Confederação

Nacional do Ministério Público e apresentado ao Ministro da Justiça. Após

apreciação do Presidente da República, o anteprojeto foi encaminhado à Câmara

dos Deputados, onde foi recebido como o Projeto de Lei nº 4.984/1985. Devido à

prioridade de tramitação dos projetos de iniciativa do Poder Executivo, este

Projeto de Lei foi votado e aprovado antes do projeto do Deputado Federal Flávio

105 MAZZILlI, 2014, p. 51, Op Cit. 106 CAVALCANTI, 2015, p. 130, Op Cit. 107 MAZZILLI, 2014, p. 52, Op Cit.

Page 40: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

40

Bierrenbach, convertendo-se na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, a

denominada Lei da Ação Civil Pública108.

A Lei nº 7.347/85 impactou o cenário jurídico brasileiro ao criar

expressamente a possibilidade de tutela jurisdicional de direitos coletivos e

difusos, e não apenas de direitos individuais, conforme o processo civil clássico,

de contornos individualistas109. Márcio Flávio Mafra Leal assinala que “trata-se,

inclusive, da primeira lei na práxis internacional que consagrou a expressão

interesses difusos”110. Todavia, como será visto a seguir, a expressão interesse

difuso foi vetada da proposta legislativa, vindo a ser novamente incluída em

virtude de alterações futuras na Lei nº 7.347/85.

Importante realçar que a proposta legislativa aprovada pelo Congresso

Nacional previa o cabimento da ação civil pública para a defesa dos interesses

mencionados nos incisos I a IV do artigo 1º 111. O inciso IV tratou de ampliar as

hipóteses de cabimento da ação civil pública, permitindo o ajuizamento da ação

por danos causados a qualquer outro interesse difuso. No entanto, o inciso IV do

artigo 1º, assim como outros pontos da lei que utilizavam a expressão qualquer

outro interesse difuso, foi vetado pelo então Presidente da República, José

Sarney. A mensagem com as razões de veto sustenta que a norma seria muito

ampla e imprecisa, justificando que:

As razões de interesse público dizem respeito precipuamente à insegurança jurídica, em detrimento do bem comum, que decorre da amplíssima e imprecisa abrangência da expressão ‘qualquer outro interesse difuso’. A amplitude de que se revestem as expressões ora vetadas do Projeto mostra-se, no presente momento de nossa experiência jurídica, inconveniente112.

108 CAVALCANTI, 2015, p. 131, Op Cit. 109 ALMEIDA, 2003,.p. 265, Op Cit. 110 LEAL, 2014, p. 46, Op Cit. 111 Lei nº 7.347/85 - Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos causados: l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor; III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV - a qualquer outro interesse difuso. 112 Mensagem de veto nº 359, de 24 de julho de 1985: O veto incide sobre as expressões constantes dos dispositivos a seguir indicados: - Ementa: "como a qualquer outro interesse difuso"; - Art. 1º, inciso IV: “a qualquer outro interesse difuso"; - Art. 4º: "ou a qualquer outro interesse difuso"; e - Art. 5º, inciso II: "ou a qualquer outro interesse difuso". As razões de interesse público dizem respeito precipuamente à insegurança jurídica, em detrimento do bem comum, que decorre da amplíssima e imprecisa abrangência da expressão "qualquer outro interesse difuso". A amplitude de que se revestem as expressões ora vetadas do projeto mostra-se, no presente momento de nossa experiência jurídica, inconveniente. É preciso

Page 41: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

41

Infelizmente, o veto presidencial reduziu de forma significativa o objeto da

ação civil pública, impossibilitando que outros importantes interesses difusos ou

coletivos fossem tutelados por esse instrumento. Após os vetos mencionados, a

redação final da Lei no 7.347/85 estabeleceu em seu artigo 1º um rol taxativo de

bens tuteláveis, sendo o seu cabimento restrito aos interesses ali previstos

expressamente. Contudo, as razões de veto apresentadas serviram como

estímulo para que fossem traçados contornos mais bem-delineados ao tema,

buscando uma definição legislativa do que seriam os interesses difusos, o que

veio a ocorrer alguns anos depois, com a aprovação do Código de Defesa do

Consumidor (Lei no 8.078/90)113.

No entanto, a Constituição Federal de 1988 prestigiou a tutela jurisdicional

de interesses coletivos. Assim, entre os dispositivos que se referem ao processo

coletivo, merece destaque o artigo 129, III, que estabeleceu a competência

institucional do Ministério Público para “promover o inquérito civil e a ação civil

pública, objetivando a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente

e de outros interesses difusos e coletivos”. Como se percebe, a redação do inciso

III, do artigo 129 mencionou expressamente outros interesses difusos e coletivos,

superando o veto presidencial e alargando o objeto da ação civil pública que não

mais se limitaria aos interesses delineados no artigo 1º da Lei no 7.347/85.

Gregório Assagra de Almeida defende que a Constituição, no artigo 129, III,

em consonância com o art. 5º, XXXV, consagrou o princípio da não taxatividade

da ação civil pública, segundo o qual não deve haver restrições ao campo da

ação civil pública, que tem por escopo a tutela de todos os interesses

massificados, sejam eles difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Assim,

decisões que limitem o objeto da ação civil pública estariam ferindo a

que a questão dos interesses difusos, de inegável relevância social, mereça, ainda, mais reflexão e análise. Trata-se de instituto cujos pressupostos conceituais derivam de um processo de elaboração doutrinária, a recomendar, com a publicação desta Lei, discussão abrangente em todas as esferas de nossa vida social. É importante, neste momento, que, em relação à defesa e preservação dos direitos dos consumidores, assim como do patrimônio ecológico, natural e cultural do país, a tutela jurisdicional dos interesses difusos deixe de ser uma questão meramente acadêmica para converter-se em realidade jurídico-positiva, de verdadeiro alcance e conteúdo sociais. Eventuais hipóteses rebeldes à previsão do legislador , mas ditadas pela complexidade da vida social, merecerão a oportuna disciplinação legislativa. Estas as razões de interesse público que me Ievaram ao veto parcial e que ora tenho a honra de submeter à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional. Brasília, em 24 de julho de 1985. 113 CAVALCANTI, 2015, p. 133, Op Cit.

Page 42: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

42

Constituição, “em prejuízo da própria sociedade e do Estado Democrático de

Direito”114.

Essa foi a primeira vez que houve previsão constitucional da ação civil

pública, muito em virtude de ser um instrumento processual recente no

ordenamento jurídico nacional, tendo sua regulamentação infraconstitucional

ocorrido em 1985, com base na mencionada Lei nº 7.347/85. A partir da CF/88, a

ação civil pública se firmou como “um verdadeiro remédio constitucional de tutela

dos interesses e direitos massificados”115.

A importância da ampliação do objeto da ação civil pública é ressaltada por

Barbosa Moreira ao assinalar que, “a despeito daquele veto, passa agora a cobrir

todo o terreno que o projeto tinha em vista, por força de norma constitucional, que

já não pode ser desprezada nem modificada, a não ser por uma emenda à

Constituição”116. Portanto, a Constituição Federal de 1988 alargou o objeto da

ação civil pública, afirmando a importância conferida por ela aos mecanismos de

tutela jurisdicional coletiva.

A consagração dessa ampliação do objeto da ação civil pública ocorreu

com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que, em seu

artigo 110117, acrescentou o inciso IV ao artigo 1º da Lei da Ação Civil Pública,

para permitir expressamente a defesa de qualquer outro interesse difuso ou

coletivo e não apenas daqueles taxativamente previstos na referida lei.

Por outro lado, a Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001,

incluiu o parágrafo único118 no artigo 1º da Lei nº 7.347/85 e restringiu as

hipóteses de tutela jurisdicional por meio da ação civil pública, ao proibir o uso do

processo coletivo em casos que “contrariassem os interesses do governo”,119

como nas questões envolvendo direito tributário, por exemplo120.

114 ALMEIDA, 2003, p. 307, Op Cit. 115 ALMEIDA, 2003,.p. 305, Op Cit. 116 MOREIRA, 1991, p. 5, Op Cit. 117 Lei 8.078/90 - Art. 110. Acrescente-se o seguinte inciso IV ao art. 1° da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985: "IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo". 118 Lei nº 7.347/85 - Art. 1º, Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados (incluído pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001). 119 MAZZILLI, 2014, p. 53, Op Cit. 120 Teori Albino Zavascki entende que não há inconstitucionalidade no parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/85, sustentando que “o que ali se pôs a salvo de ações coletivas são pretensões relacionadas com matérias de natureza institucional, disciplinadas por normas de caráter geral, o

Page 43: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

43

Essa redução no objeto da ação civil pública imposta pela Medida

Provisória (MP) nº 2.180-35/2001 foi criticada pela doutrina, sendo que parte dos

doutrinadores defende a sua inconstitucionalidade121. Eles argumentam que as

restrições impostas pela Medida Provisória ferem o acesso coletivo à jurisdição,

previsto no artigo 5º, XXXV, da CF/88, assim como o artigo 129, III, que ampliou o

objeto da ação civil pública, não podendo ser restringido por norma

infraconstitucional.

O Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões122, reconheceu a

constitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 7.347/85 e a vedação

da utilização da ação civil pública em matéria tributária. Recentemente, a Corte

Suprema reconheceu a repercussão geral da questão e, no mérito, reafirmou a

jurisprudência dominante sobre a matéria123.

Todavia, o próprio Supremo Tribunal Federal, em outro caso analisado sob

o ângulo da Repercussão Geral, decidiu por afastar a aplicação do parágrafo

único, do artigo 1º, da Lei nº 7.347/85, por afrontar o artigo 129, III, da

Constituição Federal. Na hipótese, o Plenário reconheceu a legitimidade do

que significa dizer que a contestação coletiva de sua legitimidade supõe, necessariamente, a contestação da validade da própria norma que a criou. Nesses limites e sob esse aspecto, a restrição pode ser considerada compatível com a Constituição (ZAVASCKI, Teori Albino. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 173 121 Gregório Assagra de Almeida defende a inconstitucionalidade da MP 2.180-35, ao acrescentar o parágrafo único no art. 1º da Lei n. 7.347/85, argumentando que “o Governo Federal, neste caso, como em outros, legislou autoritariamente em causa própria, de sorte a ferir o art. 129, III, da CF, que o consagra o princípio da não taxatividade da ação civil pública e o art. 5º, XXXV, que consagra o princípio constitucional do direito de ação, quando estabelece que ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’” (ALMEIDA, 2003, p. 307). Hugo Nigro Mazzilli também entende ser inconstitucional a redução no objeto da ação civil pública promovida pela MP 2.180-35/2001, anotando que “na CF de 88, o acesso coletivo à jurisdição passou a ser garantia fundamental (art. 5º, Xxi e LXX; 8º, III; 129, III; 232), na mesma medida em que, antes dela, já o era o acesso individual. Assim, o parágrafo único do art. 1º da LACP configura, de maneira inequívoca, uma tentativa de o administrador impedir o acesso coletivo à jurisdição, o que é inconstitucional (MAZZILLI, 2014, p. 53). 122 (RE 206781, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 06/02/2001, DJ 29- 06-2001 PP-00056 EMENT VOL-02037-04 PP-00874; (RE 559985 AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 04/12/2007, DJe-018 Divulg 31-01-2008 Public 01-02-2008 Ement Vol- 02305-12 PP-02613) 123 DIREITO CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO INTERPOSTA EM FACE DE SENTENÇA PROFERIDA EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA QUE DISCUTE MATÉRIA TRIBUTÁRIA (DIREITO DOS CONTRIBUINTES À RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS À TÍTULO DE TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA SUPOSTAMENTE INCONSTITUCIONAL). ILEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM" DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA, EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA, DEDUZIR PRETENSÃO RELATIVA À MATÉRIA TRIBUTÁRIA. REAFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA (ARE 694294 RG, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 25/04/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-093 DIVULG 16-05-2013 PUBLIC 17-05-2013).

Page 44: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

44

Ministério Público para ajuizar Ação Civil Pública com o objetivo de anular Termo

de Acordo de Regime Especial (TARE), potencialmente lesivo ao patrimônio

público, em razão de recolhimento a menor do ICMS, cuja ementa é a seguinte:

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA. MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. TERMO DE ACORDO DE REGIME ESPECIAL - TARE. POSSÍVEL LESÃO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. LIMITAÇÃO À ATUAÇÃO DO PARQUET. INADMISSIBILIDADE. AFRONTA AO ART. 129, III, DA CF. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. I - O TARE não diz respeito apenas a interesses individuais, mas alcança interesses metaindividuais, pois o ajuste pode, em tese, ser lesivo ao patrimônio público. II - A Constituição Federal estabeleceu, no art. 129, III, que é função institucional do Ministério Público, dentre outras, “promover o inquérito e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Precedentes. III - O Parquet tem legitimidade para propor ação civil pública com o objetivo de anular Termo de Acordo de Regime Especial - TARE, em face da legitimação ad causam que o texto constitucional lhe confere para defender o erário. IV - Não se aplica à hipótese o parágrafo único do artigo 1º da Lei 7.347/1985. V - Recurso extraordinário provido para que o TJ/DF decida a questão de fundo proposta na ação civil pública conforme entender. (RE 576155, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 12/08/2010, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-226 DIVULG 24-11-2010 PUBLIC 25-11-2010 REPUBLICAÇÃO: DJe-020 DIVULG 31-01-2011 PUBLIC 01-02-2011 EMENT VOL-02454-05 PP-01230)

Apesar de se tratar de matéria eminentemente tributária, a maioria dos

Ministros do STF entendeu que a restrição imposta no parágrafo único, do artigo

1º, da Lei da Ação Civil Pública, limita-se aos casos em que o Ministério Público

age em favor de “pretensões relativas à matéria tributária individualizáveis”,

conforme consta do voto do Relator, Ministro Ricardo Lewandowski. Em seu voto,

o Ministro Carlos Ayres Britto reitera que é vedado ao Ministério Público ajuizar

Ação Civil Pública “em substituição a um determinado contribuinte ou contribuinte

determinável”.

A fim de verificar a constitucionalidade e esclarecer efetivamente qual a

interpretação que deve ser conferida ao artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº

Page 45: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

45

7.347/85, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do tema,

em recente acórdão julgado em setembro de 2015. Confira-se:

Ementa: PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO PARA A VEICULAÇÃO PRETENSÃO QUE ENVOLVA O FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO (FGTS). INTERPRETAÇÃO DO ART. 1º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 7.347/85 EM FACE DA DISPOSIÇÃO DO ART. 129, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. 1. Possui repercussão geral a questão relativa à legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública que veicule pretensão envolvendo o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). 2. Repercussão geral reconhecida. (RE 643978 RG, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, julgado em 17/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-192 DIVULG 24-09-2015 PUBLIC 25-09-2015 )

O mencionado Recurso Extraordinário (RE) foi interposto de acórdão do

Plenário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que declarou a viabilidade do

manejo da ação civil pública pelo Ministério, consignando que o Ministério Público

detém legitimidade para propor ação civil pública na defesa de direitos individuais

homogêneos, mesmo que disponíveis, desde que possuam conotação social ou

tenham repercussão social. E que o parágrafo único, do art. 1º, da Lei no

7.347/85, na redação da MP no 2.180-35/2001, deve ser lido de conformidade

com a Constituição. Ainda não houve pronunciamento sobre o mérito do RE

643.978/DF124.

Com efeito, após a redução imposta pela Medida Provisória nº 2.180-

35/2001, o objeto da ação civil pública vem sendo seguidamente ampliado, como

se observa dos novos incisos acrescentados ao artigo 1º da Le nº 7.347/85, que

estenderam a ação civil pública para a defesa de outros interesses. A atual

redação do referido artigo é a seguinte:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).

124 O processo encontra-se concluso ao relator desde o dia 25.09.2015, conforme andamento processual constante na página do Supremo Tribunal Federal – www.stf.jus.br.

Page 46: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

46

l - ao meio ambiente; ll - ao consumidor; III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. (Incluído pela Lei nº 8.078 de 1990) V - por infração da ordem econômica; (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011). VI - à ordem urbanística. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001) VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos. (Incluído pela Lei nº 12.966, de 2014) VIII – ao patrimônio público e social (Incluído pela Lei nº 13.004, de 2014). Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001).

A leitura desse artigo demonstra que permanece como finalidade precípua

da ação civil pública a tutela de interesses difusos ou coletivos, assim como

previsto desde o anteprojeto que deu origem à Lei nº 7.347/85.

Quanto à legitimidade ativa para a propositura de ação civil pública, o artigo

5º da lei sofreu diversas alterações até atingir a atual redação, que estabelece a

legitimidade para a propositura da ação principal e da cautelar aos seguintes

legitimados: Ministério Público; Defensoria Pública; União, estados, Distrito

Federal e municípios; autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de

economia mista; associação que esteja constituída há pelo menos um ano e

inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e

social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre

concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao

patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

A Constituição Federal incluiu, entre as funções institucionais do Ministério

Público, a promoção da ação civil pública (art.129, III), mas também confirmou a

legitimidade concorrente para o ajuizamento da ação civil pública ou de qualquer

outra ação coletiva125, no § 1º do artigo 129126. Desta forma, todos os entes

arrolados estão aptos para a propositura de ação civil pública, 125 ALMEIDA, 2003, p. 305, Op Cit. 126 CF, Art. 129, § 1º : § 1º A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.

Page 47: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

47

independentemente do consentimento ou da presença de outro, tratando-se de

hipótese de legitimidade concorrente.

Nesse aspecto, importante destacar a ressalva feita por Nelson Nery Júnior

e Rosa Maria de Andrade Nery de que a legitimidade ativa nas ações coletivas é

a “legitimação autônoma para condução do processo”, não devendo ser utilizado

o termo “substituição processual” para ações coletivas envolvendo direitos difusos

e coletivos stricto sensu127.

Por outro lado, na hipótese de haver desistência ou abandono da causa

pela associação, o Ministério Público ou outro legitimado deverá assumir a

titularidade da ação. Além disso, quando não for parte na demanda, o Ministério

Público deverá atuar como fiscal da lei128.

A ação popular e a ação civil pública são ações coletivas concorrentes e

não excludentes, sendo possível a tutela de um mesmo direito a partir dos dois

instrumentos. Contudo, existem algumas diferenças entre essas espécies de

ação, entre as quais duas se destacam: a legitimidade ativa e o objeto. Como

visto anteriormente, na ação popular somente o cidadão terá legitimidade para

agir, e o seu objeto será restrito às hipóteses previstas no art. 5º, LXXIII, da CF,

enquanto na ação civil pública a legitimidade é atribuída a várias entidades e o

seu objeto é amplo, admitindo a tutela de outros interesses difusos e coletivos129.

Como será visto mais detalhadamente em tópico específico (2.2.4), o

Código de Defesa do Consumidor consagrou o princípio da perfeita interação130

entre o próprio código e Lei nº 7.347/85, criando junto com a Constituição Federal

de 1988 o microssistema processual coletivo brasileiro. Nesse microssistema, a

ação civil pública tem sido o principal instrumento de tutela dos direitos difusos e

coletivos no Brasil, com o Ministério Público assumindo o papel de protagonista,

fazendo jus às atribuições conferidas pela Constituição Federal de 1988131.

127 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis civis e processuais civis comentadas. 4. ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015b, p. 624. 128 Lei nº 7.347/85 – Art. 5º, §§ 1º e 3º. 129 ALMEIDA, 2003, p. 309, Op Cit. 130 PIZZOL, 1998, p. 143, Op Cit. 131 ALMEIDA, 2003, p. 310, Op Cit.

Page 48: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

48

2.2.3 Ações coletivas na Constituição Federal de 1988

Inicialmente, para analisar o tratamento dispensado pela Constituição de

1988 ao processo coletivo, é importante que se tenha a dimensão do significado

do termo ações coletivas, que é definido por Barbosa Moreira como “o litígio,

embora capaz de interessar a uma pluralidade de sujeitos, possa ser levado à

cognição judicial por iniciativa de uma única pessoa”132.

A Constituição de 1988 destacou em diversos artigos a importância dos

direitos e interesses difusos e coletivos. Por essa razão, é possível afirmar que,

com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito processual coletivo

foi elevado ao status de novo ramo do Direito Processual e a proteção coletiva de

direitos foi “constitucionalizada”133.

Hermes Zaneti Júnior destaca a importância que o processo coletivo

assume na atual Constituição, afirmando que:

Uma das revoluções propostas em 1988 foi justamente a constitucionalização dos direitos coletivos, com a inserção do título sobre os direitos e garantias fundamentais logo no início da Carta e o destaque para os direitos e deveres individuais e coletivos logo no primeiro capítulo. A retirada do adjetivo individual da regra do acesso à justiça (art. 5º, XXXV), a criação do mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), a constitucionalização da ação civil pública (art. 129, III), entre outras medidas, deixaram fora de dúvida que o constituinte quis assegurar aos direitos coletivos um papel transformador na sociedade brasileira134.

132 MOREIRA, 1991, Op Cit. 133 Gregório Assagra de Almeida defende que “o direito processual coletivo surge no Brasil como novo ramo do Direito Processual, a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988, que confere, em várias oportunidades, dignidade constitucional aos direitos ou interesses coletivos em sentido amplo, ao mesmo tempo em que assegura o acesso incondicionado e ilimitado à justiça, de sorte que a garantia constitucional não mais se restringe à tutela dos direitos individuais (art. 5º, XXXV, da CF). Além disso, agora a maioria das ações coletivas ou das ações que podem também ser utilizadas para a tutela de direitos coletivos estão consagrados na Constituição, como a ação popular (art. 5º, LXXIII), a ação civil pública (art. 129, III), o mandado de injunção (art. 5º, LXXI), o mandado de segurança (art. 5º, LXIX, LXX). Por outro lado, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ainda avançou muito no controle concentrado da constitucionalidade das leis, consoante se extrai dos seus arts. 102, 103, e 125, § 2º.” ALMEIDA, 2003, p. 139, Op Cit. 134 ZANETI JR., Hermes. Os direitos individuais homogêneos e o neoprocessualismo. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; RODRIGUES, Marcelo Abela (Coord.). O novo processo coletivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 138.

Page 49: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

49

Diante desse cenário, o primeiro ponto de destaque da Constituição de

1988, a partir da perspectiva da tutela coletiva, seria a extensão aos processos

coletivos da garantia ampla de acesso à Justiça, prevista no artigo 5º, XXXV135,

em virtude de interpretação sistemática do Capítulo em que se insere – Dos

direitos e deveres individuais e coletivos.

Ainda no rol dos direitos e garantias fundamentas, a Constituição da

República de 1988 manteve a ação popular como instrumento para a tutela dos

direitos difusos. No entanto, a Constituição em vigor foi além e garantiu mais

amplitude à ação popular, aumentando significativamente suas hipóteses de

cabimento, para incluir, entre os bens tutelados, o meio ambiente, o patrimônio

cultural e a moralidade administrativa, conforme a redação do inciso LXXIII136, do

artigo 5º. Ademais, restou confirmada a possibilidade de ser ajuizada ação

popular em face de atos praticados por entidades paraestatais, além dos órgãos

da administração centralizada137

Logo, a Constituição de 1988 avançou em relação à regulamentação

prevista em nível infraconstitucional na Lei nº 4.717/65 – Lei da Ação Popular,

tornando possível a utilização da ação popular como instrumento de defesa dos

interesses e direitos difusos e coletivos, visando à anulação de atos lesivos ao

patrimônio público. Este pode ser entendido como os bens e direitos de valor

econômico, artístico, estético, histórico, turístico ou cultural, assim como para

anulação de atos lesivos ao meio ambiente e à moralidade administrativa.

Outra importante demonstração de preocupação do constituinte com o

processo coletivo se revela no status constitucional conferido à ação civil pública,

com a competência institucional atribuída ao Ministério Público para a sua

promoção, nos termos do artigo 129, III138. O que chama a atenção na redação do

mencionado inciso III é a utilização da expressão outros interesses difusos e

135CF/88 - Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 136 Art. 5º, LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; 137 MEIRELLES; WALD; MENDES, 2014, p. 179, Op Cit. 138 CF/88 - Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Page 50: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

50

coletivos, que permite a utilização da ação civil pública para a defesa de qualquer

tipo de interesse metaindividual.

Oportuno destacar que a proposta legislativa aprovada pelo Congresso

Nacional que deu origem à Lei nº 7.347/85 permitia o ajuizamento da ação por

danos causados a qualquer outro interesse difuso, no inciso IV, do seu artigo 1º.

Todavia, referido inciso foi vetado pelo então Presidente da República139,

limitando o objeto da ação civil pública às hipóteses previstas taxativamente nos

incisos I a III do artigo 1º da Lei nº 7.347/85. Sendo assim, a redação do inciso III,

do artigo 129, da Constituição, importou em significativo avanço porque, além de

possuir natureza de norma constitucional, é mais abrangente que a redação do

inciso IV, do artigo 1º, da Lei nº 7.347/85, pois faz menção também aos interesses

coletivos, além dos direitos difusos. A Constituição de 1988, ao consignar a

expressão outros interesses difusos e coletivos, teve papel importantíssimo para a

efetiva tutela dos interesses transindividuais, pois resgatou a possibilidade de

ajuizamento de ação civil pública para a proteção de qualquer outro interesse

difuso ou coletivo, independentemente de regulamentação infraconstitucional,

superando o veto presidencial de 1985140.

Em virtude dessa ampliação das hipóteses de cabimento da ação civil

pública, é possível afirmar que a Constituição de 1988, por meio do artigo 129, III,

em conformidade com o artigo 5º, XXXV, consagrou o princípio da não

taxatividade da ação civil pública. Segundo esse princípio, seu campo de atuação

deve ser o mais amplo possível, abrangendo a tutela de todos os interesses

massificados, sejam eles difusos, coletivos ou individuais homogêneos141.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reconheceu a

ação civil pública como um instrumento constitucional de tutela jurisdicional

coletiva, alargando o seu campo de atuação para a proteção de todos os

interesses difusos e coletivos.

Ademais, a Constituição Federal, atendendo a antiga reivindicação da

doutrina142, em seu artigo 5º, LXX, reconheceu, de forma inédita no Brasil, a

possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo. A legitimidade

139 Vide tópico 2.2.2 140 NERY JR., 2011, p. 226, Op Cit. 141 ALMEIDA, 2003, p. 307, Op Cit. 142 OLIVEIRA, Lourival Gonçalves de. Interesse processual e mandado de segurança. RePro, São Paulo, 56, p. 75 et seq., 1989.

Page 51: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

51

para a impetração do mandado de segurança coletivo foi atribuída expressamente

pela Constituição aos partidos políticos com representação no Congresso

Nacional, bem como organizações sindicais, entidades de classe ou associações

legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, para

impetrarem mandado de segurança coletivo143.

O mandado de segurança coletivo atende aos mesmos requisitos de direito

material previstos para a admissibilidade do mandado de segurança individual, ou

seja, é possível a sua utilização para “proteger direito líquido e certo, não

amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela

ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica

no exercício de atribuições do Poder Público”144.

Desta forma, o inciso LXX do artigo 5º da CF/88 é norma exclusivamente

processual145, que ampliou as hipóteses de legitimação ativa para incluir a

modalidade coletiva, se aplicando quanto ao direito material o inciso LXIX, tanto

para a modalidade individual como coletiva.146

O mandado de segurança coletivo vem sendo amplamente utilizado desde

a promulgação da Constituição de 1988, em virtude da aplicação imediata do

inciso LXX, conforme previsto no §1º 147, do próprio artigo 5º, da Constituição de

1988. O procedimento do mandado de segurança coletivo somente veio a ser

regulamentado em nível infraconstitucional pela Lei nº 12.016, de 07 de agosto de

2009, a Nova Lei do Mandado de Segurança, que nos artigos 21 e 22 tratou do

mandado de segurança coletivo.

Outro aspecto importantíssimo envolvendo a tutela dos direito difusos e

coletivos na Constituição de 1988 foi o reconhecimento da defesa do consumidor

entre o rol de direitos e garantias fundamentais e princípios gerais da atividade

econômica148.

143 CF/88 – Art. 5º, LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados; 144 CF/88 – Art. 5º, LXIX. 145 NERY JR., Nelson. Parecer sobre mandado de segurança coletivo. Revista de Processo, v. 57, p. 150/158, 1990. 146 ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de segurança. 2. ed., Rio de Janeiro: GZ, 2010a. 147 CF/88 – Art. 5º, § 1º- As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 148 FILOMENO, José Geraldo Brito et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2011, p. 14.

Page 52: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

52

A Constituição Federal assegurou como direito fundamental previsto no

inciso XXXII, do artigo 5º, que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do

consumidor”. Além disso, o constituinte incluiu a defesa do consumidor entre os

princípios gerais da atividade econômica, conforme se infere do inciso V, do artigo

170.

Em outras oportunidades, o legislador constituinte insistiu em trazer

garantias constitucionais aos direitos dos consumidores, como nas limitações ao

poder de tributar149 e ao assegurar os direitos dos consumidores de serviços

públicos prestados sob o regime de concessão ou permissão150.

Com efeito, o artigo 48151 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias (ADCT) confirma a importância que a defesa do consumidor assumiu

na atual Constituição, ao estabelecer o prazo de 120 dias, contados a partir da

promulgação da Constituição, ocorrida em 5 de outubro de 1988, para que o

Congresso Nacional elaborasse o Código de Defesa do Consumidor. Ainda que o

prazo de 120 dias não tenha sido cumprido, uma vez que o Código somente foi

publicado quase dois anos após a promulgação da Constituição (Lei 8.078, de 11

de setembro de 1990), foi um grande passo para a efetivação dos direitos dos

consumidores.

Não constitui objeto deste trabalho, mas é importante destacar que, além

das figuras processuais específicas de ações coletivas, como a ação popular, o

mandado de segurança coletivo e a ação civil pública, a Constituição Federal de

1988 também autorizou a tutela coletiva em termos genéricos, ou seja, para

qualquer ação, atribuindo tal legitimidade às entidades associativas e aos

sindicatos152.

No rol dos direitos e garantias fundamentais, o artigo 5º, XXI, dispõe que

“as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade

para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”. Quanto à

legitimidade dos sindicatos, o artigo 8º, III, estabelece que ao sindicato “cabe a

defesa dos interesses coletivos ou individuais da categoria”. Com o advento da 149 CF/88 – At. 150, § 5º A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços. 150 CF/88 - Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: II - os direitos dos usuários; 151 ADCT - Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor. 152 MOREIRA, 1991, p. 4, Op Cit.

Page 53: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

53

Constituição de 1988 e a redação do artigo 8º, III, a legitimidade dos sindicatos

para promover ações coletivas não está limitada ao âmbito da Justiça do

Trabalho, sendo certo que os sindicatos podem atuar em juízo na defesa de

interesses de seus filiados perante qualquer órgão judicial. Tanto as associações,

quanto os sindicatos atuam em juízo em nome próprio, mas na defesa de direitos

e de interesses de seus filiados e, nestas hipóteses, a legitimação se restringe ao

âmbito dos fins próprios dessas entidades153.

Outro tema que não é objeto de estudo no presente momento, mas que

deve ser lembrado apenas como forma de demonstrar outras evoluções ocorridas

com a promulgação da Constituição Federal de 1988, é a possibilidade de tutela

coletiva por ações de controle concentrado de constitucionalidade. Gregório

Assagra de Almeida denomina de direito processual coletivo especial o que

ocorre a partir do controle concentrado de constitucionalidade, afirmando que “o

interesse por um sistema jurídico coeso, coerente e constitucional é de regra

difuso, pois pertence a todos aqueles que estão sob a regulamentação desse

sistema jurídico”154. Desta forma, as decisões proferidas em sede de controle

concentrado constituíram uma maneira especial de tutela coletiva, tendo em vista

a pluralidade de direitos subjetivos individuais afetados por essas decisões.

Considerando essa circunstância, e que as decisões têm eficácia ex tunc e

erga omnes, Teori Albino Zavascki conclui que:

Não há como negar que o sistema de controle concentrado de constitucionalidade constitui, mais que modo de tutelar a ordem jurídica, um poderoso instrumento para tutelar, ainda que indiretamente, direitos subjetivos individuais, tutela que acaba sendo potencializada em elevado grau, na sua dimensão instrumental, pela eficácia vinculante das decisões. É, em outras palavras, um especial modo de prestar tutela coletiva 155.

Sobre este aspecto, a Constituição de 1988 aperfeiçoou de maneira

significativa o controle concentrado de constitucionalidade e representou o maior

avanço no controle jurisdicional da constitucionalidade no Brasil156.

153 MOREIRA, 1991, p. 3, Op Cit 154 ALMEIDA, 2003, p. 158, Op Cit. 155 ZAVASCKI, 2007, p. 241, Op Cit, 156 Gregório Assagra de Almeida destaca que “não há dúvida de que a consagração do direito processual coletivo especial, como um novo ramo do direito processual brasileiro, somente ocorreu com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A Constituição

Page 54: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

54

Essas importantes garantias ao processo coletivo, sedimentadas na

Constituição Federal de 1988, são destacadas por Barbosa Moreira, ao

reconhecer que:

O fenômeno das ações coletivas assume na Carta de 1988 proporções inéditas, repito, na história das Constituições brasileiras, aparece aqui com um destaque, uma saliência, um realce que não encontra paralelo em nenhuma das Cartas anteriores no nosso País, e diria até que não encontra paralelo no Direito Constitucional comparado. Creio que o direito brasileiro hoje está mais bem equipado que qualquer outro que eu conheça em matéria de Ações Coletivas157.

2.2.4 Código de Defesa do Consumidor

Conforme destacado em tópico anterior, o artigo 48 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias estabeleceu o prazo de 120 dias contados a partir da

promulgação da Constituição, para que o Congresso Nacional elaborasse o

Código de Defesa do Consumidor. Todavia, antes mesmo da promulgação da

Constituição de 1988, havia sido constituída comissão de juristas no âmbito do

Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça

então presidido por Flávio Bierrenbach, com o objetivo de elaborar um anteprojeto

de Código de Defesa do Consumidor158.

A comissão de juristas teve como coordenadora Ada Pellegrini Grinover e

contou com a participação de notáveis juristas: Daniel Roberto Fink, José Geraldo

Brito Filomeno, Kazuo Watanabe e Zelmo Denari. A comissão contou ainda com a

valiosa contribuição de Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Eliana

Cáceres, Marcelo Gomes Sodré, Mariângela Sarrubo, Nelson Nery Júnior e Régis

Rodrigues Bonvicino, além do aproveitamento de trabalhos já realizados no

âmbito do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, com a participação dos

de 1988, além de ter mantido as conquistas anteriores sobre o controle de constitucionalidade, muito o aperfeiçoou, especialmente quanto ao controle concentrado da constitucionalidade, objeto material do direito processual coletivo especial” (ALMEIDA, 2003, p. 183). 157 MOREIRA, 1991, p. 8, Op Cit 158 GRINOVER, et al. 2011, p. 1, Op Cit.

Page 55: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

55

Professores Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, Cândido Rangel Dinamarco e

Fábio Konder Comparato159.

O anteprojeto elaborado pela comissão de juristas foi apresentado ao então

Ministro da Justiça, Paulo Brossard, e, após amplo debate em âmbito nacional,

com diversas críticas e sugestões apresentadas, foi publicada a versão final do

anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor no Diário Oficial de 04 de janeiro

de 1989160.

Enquanto isso, diversas propostas legislativas foram apresentadas ao

Congresso Nacional. Tendo em vista a relevância do tema, o Congresso Nacional

instituiu uma comissão mista de parlamentares, sob a presidência do Senador

José Agripino Maia, para a elaboração de Projeto de Lei que criasse o Código de

Defesa do Consumidor.

O relator da comissão mista, Deputado Federal Joaci Góes, atribuiu aos

juristas Ada Pellegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin e

Nelson Nery Júnior a missão de formularem a consolidação das propostas

legislativas então apresentadas. Foram realizadas audiências públicas para

colheita de sugestões visando à melhoria da proposta e na busca de consenso

entre os variados segmentos da sociedade, adotando-se posições intermediárias

que viabilizassem a aprovação da proposta legislativa161.

Ultrapassada essa fase, em maio de 1989, o Senador Jutahy Magalhães

encaminhou a proposta consolidada ao Senado Federal, sendo recebida como

Projeto de Lei nº 97/1989. O referido Projeto de Lei foi aprovado no Senado

Federal e na Câmara dos Deputados (PL nº 3.683/89) e enviado à Presidência da

República, tendo sido sancionado em 11 de setembro de 1990 como a Lei nº

8.078/1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. Oportuno salientar

que o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional contou com 42 vetos

presidenciais. Alguns foram irrelevantes, por atingirem dispositivos meramente

didáticos, e a grande maioria ineficaz, pois o assunto de que tratavam foi regulado

em outros dispositivos não vetados. Todavia, alguns vetos implicaram prejuízos

para os consumidores, como os que suprimiram as multas civis ou o que negou a

159 GRINOVER et al., 2011, p. 1, Op Cit. 160 GRINOVER et al., 2011, p. 1, Op Cit. 161 GRINOVER et al., 2011, p. 2, Op Cit.

Page 56: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

56

participação dos consumidores e dos órgãos instituídos para a sua defesa na

formulação das políticas de consumo162.

As normas processuais estão inseridas, em sua grande maioria, no Título

III, do CDC, e segundo Kazuo Watanabe demonstram “a preocupação do

legislador pela instrumentalidade substancial e maior efetividade do processo, e

também pela sua adequação à nova realidade socioeconômica que estamos

vivendo, marcada profundamente pela economia de massa”163.

Em relação ao processo coletivo especificamente, o Código de Defesa do

Consumidor teve a incumbência de adaptar a legislação já existente que regulava

a tutela jurisdicional de interesses difusos, especialmente a Lei nº 7.347/85, de

modo a evitar duplicidade de regimes ou até conflitos normativos com as

disposições processuais da Lei nº 8.078/90164.

Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor teve papel fundamental

para a consolidação do Direito Processual Coletivo Brasileiro, tendo consagrado o

princípio da perfeita interação165 entre o próprio código e a Lei da Ação Civil

Pública, criando o microssistema processual coletivo brasileiro166.

Ao editar a Lei nº 8.078/90, o legislador demonstrou preocupação com a

compatibilização entre os sistemas processuais da Lei de Ação Civil Pública e do

Código de Defesa do Consumidor, tendo o Título VI, denominado “Disposições

Finais”, a finalidade precípua de realizar essa adaptação167. Fica evidente que

não houve revogação da Lei nº 7.347/85 pelo advento do Código de Defesa do

Consumidor, como bem demonstra o artigo 90168 do Código.

Nelson Nery Júnior ressalta:

162 GRINOVER et al., 2011, p. 2-3, Op Cit. 163 WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, v. II, Processo Coletivo (arts. 81 a 104 e 109 a 119), 2011, p. 61. 164 NERY JR., 2011, p. 219, Op Cit. 165 PIZZOL, 1998, p. 143, Op Cit. 166 Ada Pellegrini Grinover destaca que a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor formam o minissistema brasileiro de processos coletivos (GRINOVER et al. 2011, p. 33). 167 NERY JR., 2011, p. 219, Op Cit. 168 CDC - Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.

Page 57: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

57

Há, por assim dizer, uma perfeita interação entre os sistemas do CDC e da LACP, que se complementam e podem ser aplicados indistintamente às ações que versem sobre direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais, observado o princípio da especialidade das ações sobre relações de consumo, às quais se aplica o Título III, do CDC, e só subsidiariamente a LACP. Esse interagir recíproco de ambos os sistemas (CDC e LACP) tornou-se possível em razão da adequada e perfeita compatibilidade que existe entre eles por força do CDC e, principalmente, de suas disposições finais, alterando e acrescentando artigos ao texto da Lei nº 7.347/85169.

Portanto, para as tutelas coletivas que envolvam relações de consumo será

aplicado o CDC e subsidiariamente a Lei nº 7.347/85, quando houver omissão do

Código. O Código de Processo Civil somente será utilizado se não for possível

suprir as lacunas do sistema especial formado pelo CDC e pela LACP, atuando

como norma geral subsidiária reguladora dos aspectos processuais170.

Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que

consagrou o direito processual coletivo como novo ramo do direito processual171,

não havia a definição legal do que seriam os interesses ou direitos difusos e

coletivos. O Código de Defesa do Consumidor supriu essa lacuna legislativa e

incluiu ainda o conceito dos denominados interesses ou direitos individuais

homogêneos. Esses conceitos estão previstos nos incisos I, II e III do artigo 81172

do Código de Defesa do Consumidor e devem ser aplicados em qualquer

discussão que envolva a conceituação dos direitos difusos, coletivos e individuais

homogêneos, ainda que ocorra na seara trabalhista, eleitoral, tributária, etc.173.

Como se percebe, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu como

requisitos dos direitos e interesses difusos a indeterminação dos titulares e a

inexistência de relação jurídica base entre eles, no aspecto subjetivo, e a

169 NERY JR., 2011, p. 221, Op Cit. 170 NERY JR., 2011, p. 220, Op Cit. 171 ALMEIDA, 2003, p. 183, Op Cit. 172 Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. 173 ALMEIDA, 2007, p. 80, Op Cit.

Page 58: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

58

indivisibilidade do bem jurídico, no aspecto objetivo174. Em contrapartida, os

direitos coletivos também se caracterizam por sua indivisibilidade, mas exigem a

existência de uma relação jurídica base preexistente à lesão ou ameaça de lesão

ao interesse coletivo.

Nelson Nery Júnior destaca a dificuldade em conceituar e distinguir os

interesses difusos e coletivos, mas conclui:

Está praticamente encaminhado um critério de discriminação entre as duas figuras, no sentido de considerar-se como difuso aquele interesse que atinge número indeterminado de pessoas, ligadas por relação meramente factual, enquanto seriam coletivos aqueloutros interesses pertencentes a grupo ou categoria de pessoas determináveis, ligadas por uma mesma relação jurídica base175.

O autor destaca que nos direitos coletivos, embora muitas vezes os

sujeitos sejam indeterminados, será sempre possível a sua determinação, em

razão da relação jurídica base.

Por sua vez, a possibilidade de ações coletivas para a tutela de interesses

ou direitos individuais homogêneos é a grande inovação do parágrafo único, do

artigo 81, do CDC176. A doutrina cita que a ação coletiva prevista no Código de

Defesa do Consumidor para a proteção dos direitos individuais homogêneos se

assemelha às class actions do direito norte-americano177, com algumas

diferenças, em virtude da necessidade de adaptação às peculiaridades da

realidade brasileira178.

Os direitos individuais homogêneos, ao contrário dos interesses difusos e

coletivos, são divisíveis e com titulares determinados, sendo admitida a tutela

coletiva desses direitos essencialmente individuais179. Sendo assim, quando se

fala em “tutela coletiva de direitos homogêneos, o que se está qualificando como

174 WATANABE, 2011, p. 71, Op Cit. 175 NERY JR., 2011, p. 227, Op Cit. 176 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira: Os requisitos de admissibilidade. Revista de Processo, v. 101, p. 11, jan/2001. 177 Neste sentido, Ada Pellegrini Grinover ressalta que “entre as ações civis públicas em defesa de direitos individuais homogêneos, a ação prevista nos arts. 91 a 100 do CDC, destinada à reparação de danos individualmente sofridos, foi denominada ‘ação de classe brasileira’, por encontrar seu precedente na class actions for damages do sistema norte-americano” (GRINOVER, 2001, p. 11, jan/2001). 178 WATANABE, 2011, p. 77, Op Cit. 179 BARROSO, Luís Roberto. A proteção coletiva dos direitos no Brasil e alguns aspectos da class action norte-americana. Revista de Processo, v. 130, p. 131-153, dez. 2005.

Page 59: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

59

coletivo não é o direito material tutelado, mas sim o modo de tutelá-lo, o

instrumento de sua defesa”180.

Importante destacar que da mesma situação podem surgir interesses

difusos, coletivos ou individuais homogêneos, sendo que o tipo de pretensão

veiculada na ação judicial é que vai qualificar o interesse como difuso, coletivo ou

individual homogêneo181. Sob essa perspectiva, a definição do tipo de interesse

ou direito discutido na ação coletiva será determinado em virtude do pedido

formulado em juízo182.

Fato é que, após a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor

e, em virtude da perfeita interação do Código com a Lei da Ação Civil Pública, foi

criado o microssistema processual coletivo brasileiro. A partir de então, tornou-se

possível, além da tutela dos direitos difusos e coletivos, já consagrados pela

legislação e pela Constituição de 1988, o ajuizamento de ação coletiva para tutela

de qualquer direito individual homogêneo183.

2.2.5 Mandado de segurança coletivo e a Lei no 12.016/09

O mandado de segurança é um instituto que existe desde a Constituição de

1934 e sempre foi utilizado como um instrumento de proteção de direitos

individuais184.

A Constituição de 1988 manteve essa tradição no artigo 5º, inciso LXIX, ao

trazer o conceito clássico de mandado de segurança, nestes termos: “conceder-

se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado

por ‘habeas-corpus’ ou ‘habeas-data’, quando o responsável pela ilegalidade ou

abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício

de atribuições do Poder Público”.

Tendo em vista a ausência de previsão normativa, até o advento

Constituição de 1988 o entendimento dominante era bastante restritivo quanto ao

180 ZAVASCKI, 2014, p. 35, Op Cit,. 181 NERY JRJR., 2011, p. 225, Op Cit. 182 LEONEL, 2011, p. 92, Op Cit. 183 CAVALCANTI, 2015, p. 149, Op Cit. 184 MOREIRA, 1991, p. 6, Op Cit.

Page 60: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

60

cabimento de mandado de segurança coletivo185, havendo apenas alguns

precedentes do Supremo Tribunal Federal que admitiam impetração de mandado

de segurança por sindicato e por órgão ou associação de classe, no interesse da

respectiva categoria186.

Diante disso, a Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, em seu

artigo 5º, LXX, reconheceu, de forma inédita no Brasil, a possibilidade de partidos

políticos com representação no Congresso Nacional, bem como organizações

sindicais, entidades de classe ou associações legalmente constituídas e em

funcionamento há pelo menos um ano, impetrarem mandado de segurança

coletivo187.

A possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo, trazida

pelo legislador constituinte de 1988, atendeu a antiga reivindicação da doutrina,

capitaneada por Celso Agrícola Barbi188.

Efetivamente, a Constituição da República de 1988 não criou um novo

mandado de segurança, apenas ampliou as hipóteses de legitimação ativa,

incluindo a modalidade coletiva, mas mantendo os mesmos requisitos já

existentes para a modalidade individual189. Isso significa que os requisitos de

direito material previstos para a admissibilidade do mandado de segurança

individual também devem estar presentes na hipótese de mandado de segurança

coletivo, aplicando-se o inciso LXIX tanto para a modalidade individual como

coletiva190. Por essa razão, Nelson Nery Júnior afirma que a regra esculpida no

inciso LXX é exclusivamente processual, uma vez que se refere à legitimação

ativa dos partidos políticos e outras entidades associativas191.

185 ALVIM, Eduardo Arruda. Aspectos do mandado de segurança coletivo à luz da Lei nº 12016/2009. In: ALVIM, Eduardo Arruda et al. (Coord.). O novo mandado de segurança: estudos sobre a Lei nº 12.016/2009. Belo Horizonte: Fórum, 2010b. 186 RTJ 54/71 e RTJ 89/397, que fora relatado pelo Min. Décio Miranda, e cujo trecho da ementa assim dispõe: “Ordem dos Advogados. Autorizada pelo Estatuto a representar em juízo e fora dele os interesses gerais da classe (Lei nº 4.215, de 27/04/63, art. 1º, § 1º) não se pode recusar à Ordem dos Advogados legitimidade para requerer mandado de segurança contra ato administrativo que considera lesivo à coletividade dos advogados”. 187 Art. 5º, LXX - O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados; 188 OLIVEIRA, 1989, Op Cit. 189 CAVALCANTI, 2014, p. 46, Op Cit. 190 ALVIM, 2010a, Op Cit. 191 NERY JR., 1990, p. 150/158, 1990, Op Cit.

Page 61: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

61

Em virtude da aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais192, o mandado de segurança coletivo poderia ser

impetrado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, não

necessitando de norma específica que o regulamentasse193.

O mandado de segurança coletivo somente veio a ser regulamentado em

nível infraconstitucional pela Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, a Nova Lei do

Mandado de Segurança, que nos artigos 21 e 22 disciplinou o cabimento do

mandado de segurança coletivo. A Lei nº 12.016/09 compilou em um único

instrumento normativo a legislação existente até o momento sobre a matéria,

além de incorporar em seu texto os enunciados de súmulas dos Tribunais

Superiores acerca do tema.

No entanto, mesmo com o advento da Lei nº 12.016/09, algumas questões

envolvendo o procedimento do mandado de segurança coletivo permaneceram

controversas, entre as quais se destacam a legitimidade para a impetração

coletiva, o cabimento para a tutela de direitos difusos e o regime da coisa julgada. Quanto ao cabimento de mandado de segurança coletivo para a tutela de

direitos difusos, cumpre salientar que a Constituição de 1988 reconheceu, no

artigo 5º, LXX, a possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo,

mas, diferentemente do que fez para a ação popular e para a ação civil pública,

não especificou quais seriam os direitos líquidos e certos que poderiam ser

tutelados por meio da impetração coletiva194.

Em virtude da ausência de regulamentação específica pela Constituição de

1988, duas correntes se formaram: a primeira, que optou por uma interpretação

restritiva de que o mandado de segurança coletivo seria cabível somente para a

tutela de direitos coletivos e individuais homogêneos, excluindo os direitos

difusos; e a segunda corrente ampliava a aplicação da segurança coletiva para

todos os direitos de natureza coletiva, inclusive os difusos.

Os que defendem a teoria restritiva sustentam que na alínea “b” do inciso

LXX a Constituição utiliza o termo “interesses” para definir os bens tuteláveis pelo

mandado de segurança coletivo, que não pode ser confundido com direito líquido

192 CF, Art. 5º, § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 193 MOREIRA, 1991, p. 6, Op Cit. 194 CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O mandado de segurança como ação coletiva apta a tutelar os direitos difusos. Revista Dialética de Direito Processual, n. 83, p. 66-79, fev. 2010.

Page 62: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

62

e certo. Por essa razão, o mandado de segurança coletivo não poderia tutelar os

direitos difusos, em virtude da impossibilidade de “comprovação documental

desses direitos, que estariam espalhados por toda a sociedade”195.

José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas de Araújo afirmam que “a

vedação da utilização do mandado de segurança para a tutela de interesses

difusos parte do pressuposto de que é incabível assegurar um direito subjetivo

líquido e certo para um grupo indeterminado de pessoas”196.

Conforme mencionado, a definição do que seriam os interesses ou direitos

difusos, coletivos e individuais homogêneos está prevista no Código de Defesa do

Consumidor197, sendo que os direitos e interesses difusos e coletivos se

caracterizam por serem transindividuais e indivisíveis, enquanto os interesses ou

direitos individuais homogêneos são divisíveis, individualizáveis e com titularidade

determinada198.

A Lei no 12.016/09, no parágrafo único do artigo 21199, definiu que os

direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser coletivos ou

individuais homogêneos. Com isso, parte da doutrina defende que o legislador

infraconstitucional teria excluído do alcance da impetração coletiva os direitos

difusos, adotando a exegese restritiva200. Seguindo esse raciocínio, a violação ou

ameaça a direitos difusos deveria ser tutelada pela ação civil pública, não

podendo ser utilizada a via do mandado de segurança coletivo201. Nessa linha, a

impossibilidade de tutela de direitos difusos pelo mandado de segurança coletivo

não deixaria a proteção de tais direitos desamparada da tutela das ações

195 CAVALCANTI, 2010, p. 72, Op Cit. 196 MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas. Mandado de segurança individual e coletivo: comentários à Lei 12.016/2009. São Paulo: RT, 2009, p. 208. 197 Lei 8.078/90 - Art. 81, I, II e III. Vide item 3.2 198 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências no direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 150. 199 Lei 12.016/09 – Art. 21, Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser: I - coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica; II - individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante. 200 THEODORO JR., Humberto. O mandado de segurança coletivo em cotejo com as ações coletivas constitucionais. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 7, n. 39, p. 5-24, Nov/dez. 2010a. 201 MEIRELLES; WALD; MENDES, 2014, Op Cit.

Page 63: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

63

constitucionais, pois a Constituição atribuiu tal função à ação civil pública, no

artigo 129, III202.

Humberto Theodoro Júnior afirma que o legislador não teria incorrido em

inconstitucionalidade ao excluir os direitos difusos das hipóteses de cabimento do

mandado de segurança coletivo. Para o autor, a Constituição previu o mandado

de segurança como remédio coletivo de tutela, mas não fez menção a qual

categoria de direitos esse instrumento se aplicaria, permitindo que o legislador

ordinário regulamentasse a matéria, “definindo os direitos coletivos merecedores

de tutela mandamental, sem que entre eles figurassem os direitos difusos”203.

No entanto, parte da doutrina204 sustenta o cabimento do mandado de

segurança coletivo para todos os interesses ou direitos de natureza coletiva,

inclusive os difusos.

Nelson Nery Júnior, pouco após a promulgação da Constituição de 1988, já

alertava para a utilização da expressão “coletiva” no inciso LXX do artigo 5º, em

sentido diverso das expressões “difusos e coletivos” previstas no artigo 129, III, da

própria CF/88. Sublinha o autor que a intenção do legislador constituinte ao

utilizar expressões distintas nestas duas passagens foi ampliar as hipóteses que

poderiam ser defendidas pelo Ministério Público por meio da ação civil pública, e

não o de limitar a utilização do mandado de segurança coletivo tão somente aos

interesses coletivos205.

O parágrafo único do artigo 21 da Lei no 12.016/2009 faz menção expressa

aos direitos coletivos e aos individuais homogêneos, mas silencia quanto ao

cabimento de mandado de segurança coletivo para a tutela de direitos difusos. A

Constituição de 1988 não trouxe essa limitação, sendo cabível a impetração de

mandado de segurança coletivo para a proteção de direitos difusos206.

Eduardo Arruda Alvim salienta que, apesar do “silêncio” do artigo 21, é

possível a impetração de mandado de segurança coletivo para a proteção de

direitos difusos. Pensar o contrário seria diminuir a importância que o legislador

constituinte conferiu à impetração coletiva, não havendo justificativa, por exemplo, 202 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; 203 THEODORO JR., 2010a, p. 17, Op Cit. 204 No sentido do cabimento de mandado de segurança coletivo para a tutela de direitos difusos: Nery Jr. (1990, p. 150/158); Alvim (2010b); Cavalcanti (2010, p. 66-79). 205 NERY JR., 1990, p. 150/158, Op Cit 206 CAVALCANTI, 2014, p. 53, Op Cit.

Page 64: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

64

para negar a possibilidade de utilização de mandado de segurança coletivo para

combater ato administrativo que provoque danos ambientais207.

Efetivamente, a omissão do artigo 21 da Lei no 12.016/09 é um silêncio

eloquente, uma vez que parece bastante clara a intenção do legislador

infraconstitucional de excluir os direitos difusos. Nelson Nery Júnior reconhece

que a Lei no 12.016/09 excluiu do objeto do mandado de segurança coletivo a

tutela de direitos difusos, mas afirma que:

Embora possa ser difícil que um direito difuso se configure como “líquido e certo” (ou seja, documentalmente comprovável), não se pode excluir, em tese, que isso venha a ocorrer. E se ocorrer, caberá o mandado de segurança coletivo, devendo aplicar-se ao caso o art. 81, parágrafo único, I, do CDC208.

Importante lembrar que não se deve interpretar a Constituição Federal com

base na legislação infraconstitucional, e sim verificar o significado do termo

coletivo utilizado no artigo 5º, LXX da CF/88, que foi empregado com um

significado lato sensu da expressão coletivo, incluindo os direitos difusos e os

coletivos stricto sensu209.

Nessa linha, o termo mandado de segurança coletivo empregado no inciso

LXX serviria tão somente para ampliar a legitimidade ativa do mandado de

segurança individual, sem o condão de limitar as hipóteses de cabimento da

impetração coletiva à proteção de direitos coletivos stricto sensu. Ou seja, é

inegável a possibilidade de utilização de mandado de segurança coletivo para a

tutela de direitos difusos, conforme interpretação do artigo 5º, LXX, da

Constituição Federal210.

Por outro lado, no que pertine à legitimidade ativa para a impetração

coletiva, a regra prevista no inciso LXX da Constituição Federal de 1988 ampliou

a legitimidade ativa para a propositura de mandado de segurança, reconhecendo

a possibilidade de partidos políticos com representação no Congresso Nacional,

bem como organizações sindicais, entidades de classe ou associações

legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, impetrarem

207 ALVIM, 2010b, Op Cit. 208 NERY JR., 2011, p. 262, Op Cit. 209 CAVALCANTI, 2010., p. 66-79, Op Cit. 210 NERY JR., 1990, p. 150/158, Op Cit.

Page 65: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

65

mandado de segurança coletivo. No âmbito infraconstitucional, o artigo 21211 da

Lei nº 12.016/2009 estabeleceu os legitimados para a propositura do mandado de

segurança coletivo.

A alínea “a” do inciso LXX do artigo 5º da Constituição atribuiu aos partidos

políticos com representação no Congresso Nacional a legitimidade ativa para a

impetração coletiva, sem fazer ressalva quanto ao objeto a ser tutelado, nem

mesmo a ressalva constante na alínea “b”, de que o mandado de segurança seja

impetrado em “defesa dos interesses de seus membros ou associados”.

Em virtude de não haver limitação imposta ao direito a ser tutelado pelos

partidos políticos, surgiram correntes que adotavam interpretações restritivas ou

ampliativas.

Os que adotam a tese ampliativa, como Hermes Zaneti Júnior212, defendem

que a legitimidade dos partidos políticos é ampla, tanto no aspecto subjetivo

quanto no objetivo, sendo o único requisito o imposto pela Constituição, qual seja,

a representação no Congresso Nacional.

Adotando linha de pensamento mais restritiva, Eduardo Arruda Alvim

salienta que o mandado de segurança coletivo impetrado por partido político deve

ter por objetivo as finalidades partidárias previstas no art. 17 da CF/88 e

delineadas pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95)213.

A Lei nº 12.016/09 adotou a tese restritiva e incluiu na redação do caput do

artigo 21 que a impetração por partido político deve ocorrer “na defesa de seus

interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária”.

211 Art. 21. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial. Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser: I - coletivos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica; II - individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante. 212 ZANETI JRJR., Hermes. Mandado de segurança coletivo: aspectos processuais controversos. Porto Alegre: Fabris, 2001. 213 ALVIM, 2010b, Op Cit.

Page 66: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

66

Já a alínea “b”214 do inciso LXX confere legitimidade aos sindicatos,

entidades associativas ou associações fundadas há mais de um ano, para a

impetração coletiva. A legitimidade atribuída aos sindicatos, entidades

associativas ou associações para a impetração de mandado de segurança

coletivo não se confunde com a competência outorgada às entidades associativas

prevista no XXI, pois naquela hipótese trata-se de representação processual, em

que a associação defende direito alheio, em nome alheio215.

Ademais, a redação da parte final do caput do artigo 21 da Lei nº 12.016/09

acolheu o entendimento firmado pela jurisprudência216 e previu a desnecessidade

de autorização prevista no artigo 5º, XXI, da Constituição para o ajuizamento de

mandado de segurança coletivo.

Da mesma forma, a nova Lei do Mandado de Segurança incorporou em

sua redação o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal217, que

autoriza a impetração de mandado de segurança coletivo quando a pretensão

interessar apenas a uma parte da categoria. Importante destacar que, caso a

concessão da segurança traga prejuízo para outra parte dos associados ou

sindicalizados, não há legitimidade da associação ou sindicato, haja vista o

conflito de interesses na categoria218.

Conforme se infere da leitura da alínea “b” do inciso LXX, do artigo 5º, da

CF/88, é necessário que haja pertinência temática com a finalidade da associação

ou sindicato para autorizar a impetração coletiva. Da mesma forma, a Lei nº

214 Cf/88 – Art. 5º, LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados; 215 ALVIM, 2010b, Op Cit. 216 Súmula 629 STF - “A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes”. 217 Súmula 630 STF - "A entidade de classe tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse apenas a uma parte da respectiva categoria". 218 Neste sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento ocorrido após a vigência da Lei nº 12.016/09, cuja ementa assim dispõe: ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. COLETIVO IMPETRADO POR ASSOCIAÇÃO DE CLASSE. PREJUÍZO DE PARCELA DOS ASSOCIADOS. ILEGITIMIDADE ATIVA.1. Consolidou-se no STJ o entendimento segundo o qual é possível a defesa, pela respectiva entidade de classe, de direitos de apenas parte da categoria. Nesse sentido, aliás, estabelece a Súmula 630 do Supremo Tribunal Federal que "a entidade de classe tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse apenas a uma parte da respectiva categoria". 2. Contudo, in casu, se eventual concessão da ordem puder trazer prejuízo para uma parcela dos sindicalizados, não há falar em legitimidade da entidade de classe para impetrar Mandado de Segurança Coletivo, ante a existência de nítido conflito de interesses. 3. Recurso Ordinário não provido (RMS 41.395/BA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/04/2013, DJe 09/05/2013).

Page 67: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

67

12.016/09 reafirmou que os sindicatos, entidades associativas ou associações

somente podem impetrar mandado de segurança coletivo na defesa dos

interesses legítimos relativos a seus integrantes.

O requisito da pré-constituição (existência há mais de um ano), previsto

tanto na Constituição como na Lei nº 12.016/2009, tem por escopo evitar que

sejam criadas associações com o escopo de utilizar o mandado de segurança

coletivo para a impugnação de alguma situação específica219.

Por sua vez, com relação ao regime da coisa julgada para as ações

coletivas será abordado em tópico específico (item 3.4), portanto, neste tópico

serão tratadas apenas as peculiaridades da coisa julgada no âmbito do mandado

de segurança coletivo.

Inicialmente, cumpre ressaltar que a Lei nº 12.016/09 regulamentou em seu

artigo 22220 a eficácia subjetiva da coisa julgada no mandado de segurança

coletivo, afirmando que a coisa julgada vincula apenas o grupo titular do direito

coletivo objeto do mandado de segurança221.

A Lei nº 12.016/09 não fez menção à técnica de coisa julgada a ser

adotada para a impetração de mandado de segurança coletivo, sendo que essa

lacuna deve ser suprida com base no microssistema processual coletivo,

aplicando-se a coisa julgada secundum eventum litis222, que está regulamentada

no Código de Defesa do Consumidor223.

As diferenças sociais e culturais entre a realidade americana e a brasileira,

a ausência de conscientização de grande parcela da sociedade e o

desconhecimento dos canais de acesso à justiça geram entraves para a

intervenção de terceiros interessados nos processos coletivos e mais ainda para

seu comparecimento a juízo visando à exclusão da futura coisa julgada. Por essa

219 ALVIM, 2010b, Op Cit. Vide item 3.4 220 Art. 22. No mandado de segurança coletivo, a sentença fará coisa julgada limitadamente aos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante. § 1o O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva. § 2o No mandado de segurança coletivo, a liminar só poderá ser concedida após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas 221 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. O mandado de segurança coletivo e a Lei nº 12.016/2009. In: ALVIM, Eduardo Arruda et al. (coord.). O novo mandado de segurança: estudos sobre a Lei nº 12.016/2009. Belo Horizonte: Fórum, 2010. 222 ALVIM, 2010b, Op Cit. 223 Lei 8.078/90 – Art. 103.

Page 68: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

68

razão, a discricionariedade em optar pela exclusão não pode ser adotada na

íntegra no direito brasileiro224.

Sendo assim, a sentença de improcedência do mandado de segurança

coletivo levará à formação da coisa julgada apenas no plano das ações coletivas,

independentemente de o objeto tutelado se referir a direitos difusos ou coletivos.

No entanto, a sentença de improcedência por falta de provas não fará coisa

julgada nem no plano das ações coletivas, uma vez que a ausência de provas na

via estreita do mandado de segurança implica a ausência de direito líquido e

certo, que é causa de carência da ação e não obsta a propositura de nova

demanda225.

Se o mandado de segurança coletivo tutelar direitos individuais

homogêneos, deve ser aplicado o disposto no artigo 103, III, do CDC, ou seja, em

caso de procedência do mandamus a coisa julgada terá efeitos erga omnes, mas

a sentença de improcedência não prejudicará a impetração de mandado de

segurança individual, exceto se o interessado tiver atuado como litisconsorte na

impetração coletiva.

Uma peculiaridade trazida pela Lei no 12.016/09226 é a necessidade de

desistência do mandado de segurança individual para que o indivíduo se beneficie

da impetração coletiva. Todavia, Eduardo Arruda Alvim alerta que o correto seria

o impetrante individual requerer a suspensão do processo, pois havendo a

desistência, mesmo diante do insucesso do mandado de segurança coletivo,

dificilmente o impetrante conseguirá impetrar novo mandado de segurança no

prazo de 120 dias a contar da ciência do ato impugnado227.

No mesmo sentido, Fredie Didier Júnior e Hermes Zaneti Júnior sustentam

que o pedido de desistência previsto no § 1º do artigo 22 pode revelar-se

inconstitucional, se no caso concreto o indivíduo ficar impossibilitado de ajuizar

novo mandado de segurança228. Por essas razões, deveria o legislador ter

224 GRINOVER et al., 2011, Op Cit . 225 ALVIM, 2010b, Op Cit. 226 Lei 12.016/09 – Art. 22, § 1o O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva. 227 ALVIM, 2010b, Op Cit. 228 “A regra é estranha e pode revelar-se inconstitucional se, no caso concreto, a desistência implicar a perda do direito fundamental ao mandado de segurança, que deve ser exercitado em 120 dias (art. 23 da Lei nº 12.016/2009). Seria restrição irrazoável ao direito fundamental ao mandado de segurança” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2010).

Page 69: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

69

seguido o mesmo caminho adotado pelo Código de Defesa do Consumidor229,

que prevê a necessidade de ser requerida a suspensão da ação individual e não

sua desistência.

Diante do exposto, é possível notar que a Constituição Federal de 1988

reconheceu a importância do direito processual coletivo e, de forma inédita no

Brasil, reconheceu a possibilidade de impetração de mandado de segurança

coletivo. Coube à Lei nº 12.016/2009 regulamentar em nível infraconstitucional o

mandado de segurança coletivo, tendo como mérito reunir aspectos que estavam

sedimentados na doutrina e, especialmente, na jurisprudência. Contudo, algumas

questões envolvendo o mandado de segurança coletivo não foram solucionadas

satisfatoriamente pela Lei nº 12.016/09 e permanecem controvertidas.

229 CDC - Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultrapartes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.

Page 70: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

70

3 O CENÁRIO ATUAL DA TUTELA COLETIVA NO BRASIL E AS PRINCIPAIS QUESTÕES PERTINENTES

Para que se possam verificar as implicações da edição do Novo Código de

Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) nas ações coletivas, é necessário que se

verifique, ainda que de forma breve, o atual momento da tutela coletiva no Brasil.

Nesse cenário, serão abordados alguns dos principais aspectos que

envolvem o direito processual coletivo brasileiro, com suas peculiaridades e

diferenças em relação ao processo individual, privilegiando a fase de

conhecimento, em detrimento das fases de liquidação e execução.

Três requisitos essenciais são fundamentais para caracterizar as ações

coletivas: a defesa de direito coletivo; um sistema de legitimidade diferenciado; e

um regime especial da coisa julgada230. Neste capítulo serão analisadas essas

características principais das ações coletivas, que as diferenciam das ações de

cunho estritamente individual.

É notória a importância que a tutela jurisdicional coletiva assumiu no Brasil,

como destaca Ada Pellegrini Grinover:

A evolução doutrinária brasileira a respeito dos processos coletivos autoriza a elaboração de um verdadeiro Direito Processual Coletivo, como ramo do Direito Processual Civil, que tem seus próprios princípios e institutos fundamentais, diversos do Direito Processual Individual231.

Diante dessa extensão do direito processual coletivo, não se pretende

esgotar o assunto, nem aprofundar a análise de todos os institutos abordados,

mas sim propiciar uma visão panorâmica das linhas gerais do processo coletivo

no Brasil, de modo a permitir uma avaliação ponderada sobre a relação entre o

novo Código de Processo Civil, que entrara em vigor no dia 18 de março de

2016232, e a tutela coletiva.

230 GOMES JR., Luiz Manoel; CHUEIRI, Miriam Fecchio. Sistema coletivo: por que não há substituição processual nas ações coletivas. Revista de Processo, v. 221, jul. 2013. 231 GRINOVER et al., 2011, p. 35, Op Cit. 232 Após alguns questionamentos sobre a data da efetiva entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, atendendo à requisição da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Plenário do Conselho Nacional de Justiça definiu que o início da vigência novo Código de Processo Civil, Lei

Page 71: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

71

3.1 Microssistema processual coletivo Como visto no capítulo anterior, o Brasil se destaca entre os países de civil

law com seu pioneirismo na criação e implementação da tutela jurisdicional

coletiva.

Com a edição da Lei da Ação Civil Pública houve grande avanço no

processo coletivo, com os interesses transindividuais, passando a receber tutela

diferenciada a partir de princípios e regras próprias, que romperam com a

estrutura tradicional do processo civil, de cunho individualista233. Todavia, em

virtude de veto presidencial parcial ao texto aprovado pelo Congresso Nacional, a

ação civil pública teve o seu objeto limitado, restringindo seu cabimento às ações

de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a

bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

A Constituição Federal de 1988 ampliou o objeto da ação civil pública e

estendeu o seu campo de atuação para a proteção de todos os interesses difusos

e coletivos, nos termos do artigo 129, III, do texto constitucional, que permite a

utilização deste instrumento para a defesa de qualquer tipo de interesse

transindividual. Ada Pellegrini Grinover ressalta que “a Constituição de 1988 veio

universalizar a proteção coletiva dos interesses ou direitos transindividuais, sem

qualquer limitação em relação ao objeto do processo”234.

Além disso, a Constituição de 1988 garantiu dignidade constitucional aos

direitos ou interesses coletivos em sentido amplo, podendo ser considerada a sua

promulgação como o momento do surgimento do direito processual coletivo como

novo ramo do direito processual brasileiro, devido ao grande destaque conferido

pelo constituinte à tutela coletiva235.

No entanto, pode-se falar em microssistema processual coletivo somente a

partir da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078, de

11 de setembro de 1990, que contemplou o princípio da perfeita interação236 entre

o próprio Código e a Lei da Ação Civil Pública. Antes da edição do Código de 13.105/2015, ocorreria a partir do dia 18 de março de 2016. CNJ – Consulta nº 0000529-87.2016.2.00.0000. 233 GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Org.). Tutela coletiva: 20 anos da LACP e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos. São Paulo: Atlas, 2006. 234 GRINOVER, 2006, Op Cit. 235 ALMEIDA, 2003, p. 139, Op Cit. 236 PIZZOL, 1998, p. 143, Op Cit.

Page 72: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

72

Defesa do Consumidor, nos casos em que não existisse disposição específica

nas Leis da Ação Civil Pública e da Ação popular, deveriam ser aplicadas

subsidiariamente as normas previstas no Código de Processo Civil de 1973, por

força dos artigos 19237 da Lei no 7.347/85 e 22238 da Lei no 4.717/65, desde que

não houvesse conflito com as regras especiais previstas nas referidas leis239.

A partir da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, houve

alteração nesse panorama, com a perfeita interação entre o Código e a Lei nº

7.347/85, de modo que foram “incorporadas ao sistema de defesa do consumidor

as inovações introduzidas pela referida lei especial, da mesma forma que todos

os avanços do Código são também aplicáveis ao sistema de tutela de direitos

criado pela Lei nº 7.347”240.

O artigo 89241 do Código de Defesa do Consumidor, em sua versão

aprovada pelo Congresso Nacional, estabelecia que as normas processuais

previstas no Título III do CDC não se limitavam às tutelas envolvendo relações de

consumo e seriam aplicáveis a outros direitos ou interesses difusos, coletivos e

individuais homogêneos, tratados coletivamente. Todavia, tal artigo foi vetado

pelo Presidente da República, sob o argumento de que o legislador deveria

limitar-se à elaboração de Código de Defesa do Consumidor, a fim de dar

cumprimento ao disposto no artigo 48 do Ato das Constitucionais Transitórias.

Nesse sentido, a mensagem de veto afirma que a extensão das normas

processuais destinadas à proteção dos direitos do consumidor a outras situações

excederia os objetivos do CDC, pois alcançaria outras relações jurídicas não

identificadas precisamente e que dependeriam de regulação própria e adequada.

Apesar de sua justificativa se mostrar equivocada, referido veto não prejudicou a

formação do microssistema processual coletivo, com a interação entre os

237 Lei 7.347/85 - Art. 19. Aplica-se à ação civil pública, prevista nesta Lei, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, naquilo em que não contrarie suas disposições. 238 Lei 4.717/65 - Art. 22. Aplicam-se à ação popular as regras do Código de Processo Civil, naquilo em que não contrariem os dispositivos desta lei, nem a natureza específica da ação. 239 CAVALCANTI, 2015, p. 154, Op Cit. 240 WATANABE, 2011, p. 67, Op Cit. 241 Lei 8.078/90 - Art. 89 - As normas deste título aplicam-se, no que for cabível, a outros direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, tratados coletivamente. Razões do veto: “A extensão das normas específicas destinadas à proteção dos direitos do consumidor a outras situações excede dos objetivos propostos no código, alcançando outras relações jurídicas não identificadas precisamente e que reclamam regulação própria e adequada. Nos termos do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deve o legislador limitar-se a elaborar Código de Defesa do Consumidor”.

Page 73: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

73

sistemas do CDC, da LACP e das demais leis voltadas para a tutela de direitos

coletivos242.

Essa interação entre os sistemas do CDC e da LACP ocorreu por força do

artigo 90243 do Código, que determinou a aplicação das normas previstas na Lei

da Ação Civil Pública para a defesa do consumidor em juízo, naquilo que

houvesse compatibilidade com as normas especiais do CDC. De forma recíproca,

o artigo 117 do Código de Defesa do Consumidor acrescentou o artigo 21244 à Lei

da Ação Civil Pública, determinando a aplicação das normas do CDC à defesa

dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, formando, desse

modo, um sistema integrado, interativo e que se complementa reciprocamente245.

Ademais, as “Disposições Finais” do Código de Defesa do Consumidor, artigos

110 a 117, alteraram e acrescentaram artigos ao texto da Lei nº 7.347/85,

tornando perfeita e adequada a compatibilidade dos sistemas do CDC e da

LACP246.

O citado artigo 21 da Lei da Ação Civil Pública determina a aplicação dos

dispositivos previstos no Título III – Da Defesa do Consumidor em Juízo - do

CDC, para a defesa dos direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais

homogêneos. Todavia, a doutrina247 adverte que, interpretando corretamente este

artigo, devem ser aplicadas às ações coletivas todas as disposições processuais

que se encontram no Código de Defesa do Consumidor, inclusive aquelas

previstas em outros Títulos. Sendo assim, ainda que a ação coletiva não verse

sobre a defesa do consumidor, é permitida, por exemplo, a possibilidade de

inversão do ônus da prova (Título I, art. 6º, VIII), desde que presentes os

requisitos legais de verossimilhança da alegação ou hipossuficiência. Ou seja, o

242 NERY JR., 2011, p. 220, Op Cit. 243 Lei 8.078/90 - Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições. 244 Lei 7.347/85 - Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. 245 LEONEL, 2011, p. 136, Op Cit. 246 NERY JR., 2011, p. 221, Op Cit. 247 Nelson Nery JrJR. e Rosa Maria de Andrade Nery explicam que “são aplicáveis às ações ajuizadas com fundamento na LACP as disposições processuais que encerram todo o Tít. III do CDC, bem como as demais disposições processuais que se encontram pelo corpo do CDC, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova (CDC,art. 6º, VIII). Este instituto, embora se encontre topicamente no Tít. I do Código, é disposição processual e, portanto, integra ontológica e teleologicamente o Tít. III, isto é, a defesa do consumidor em juízo” (NERY JR.; NERY, 2015b, p. 251). No mesmo sentido, Leonel (2011, p. 137).

Page 74: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

74

artigo 21 da LACP, com redação conferida pelo artigo 117 do CDC, fez com o que

o veto ao artigo 89 do CDC não surtisse efeitos práticos e não afetasse o

microssistema processual coletivo, tendo em vista que a redação do artigo 21 da

Lei da Ação Civil Pública permite a aplicação das normas processuais do Código

de Defesa do Consumidor às demais ações coletivas248,249.

Destarte, quanto à sua abrangência, o microssistema processual coletivo

não se limita às ações civis públicas, atingindo também todas as demais ações

coletivas brasileiras em defesa de direitos ou interesses transindividuais, sejam

elas ações populares, ações de improbidade administrativa ou mandados de

segurança coletivos250.

Ricardo de Barros Leonel observa que o sistema integrado de tutela

coletiva, formado pela interação entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei

da Ação Civil Pública, é “extensível a todos os diplomas que tratam da tutela de

outros interesses metaindividuais (investidores do mercado de valores mobiliários,

pessoas portadoras de deficiência, criança e adolescente, probidade

administrativa, idoso, tutela dos interesses urbanísticos), pois fazem menção à

aplicação da Lei da Ação Civil Pública subsidiariamente. Por consequência, o

Código de Defesa do Consumidor também se aplica subsidiariamente àquelas

matérias”251. O autor destaca a existência de um sistema integrado destinado à

tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, no qual o CDC

e a LACP ocupam o centro desse sistema, se complementando e interagindo

reciprocamente e formando os princípios básicos, enquanto as demais normas

248 NERY JR., 2011, p. 220, Op Cit. 249 Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o cabimento de ação civil pública para a tutela de direitos individuais homogêneos não vinculados às relações de consumo: Esta Corte posicionava-se no sentido de que, para que houvesse a proposição da ação civil pública, mister estivesse a questão inserida no contexto do art. 1º, da Lei n. 7.347/85. Tal artigo deveria, ainda, ser analisado juntamente com o artigo 81 da Lei n. 8.078/90, ou Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC). Entendia-se, portanto, que o cabimento de ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos se restringia àqueles direitos que evolvessem relação de consumo. A jurisprudência atual, contudo, entende que, o artigo 21 da Lei n. 7.347/85, com redação dada pela Lei n. 8.078/90, ampliou o alcance da ação civil pública também para a defesa de interesses e direitos individuais homogêneos não relacionados às relações de consumo. Deve, portanto, ser reconhecida a legitimidade do sindicato recorrente para propor a presente ação em defesa de interesses individuais homogêneos da categoria que representa (REsp 1199611/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/10/2010, DJe 28/10/2010) 250 CAVALCANTI, 2015, p. 158, Op Cit. 251 LEONEL, 2011, p. 124, Op Cit.

Page 75: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

75

ocupam papel secundário, regulando as peculiaridades de determinadas

matérias252.

Na mesma direção, Marcos de Araújo Cavalcanti destaca que “o

microssistema processual coletivo deve ser entendido de forma ampla, não se

confundindo com uma pura e simples interação entre o CDC e a Lei da Ação Civil

Pública. O microssistema é mais do que isso. É uma reunião sistemática de todas

as leis que tratam da tutela de direitos coletivos no Brasil”253. Sendo assim,

apesar de o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública se

constituírem como diplomas básicos que estabelecem regras de superdireito

processual coletivo254, outras normas também são importantes para a formação

do microssistema processual coletivo.

Entretanto, é importante destacar que, nas ações coletivas que envolvam

relações de consumo, de acordo com o princípio da especialidade, serão

aplicadas prioritariamente as regras previstas no Código de Defesa do

Consumidor, por se tratar de legislação especial. E havendo lacuna no Código,

serão aplicados subsidiariamente os dispositivos da Lei da Ação Civil Pública e

demais leis especiais que tratam da tutela coletiva255.

O microssistema processual coletivo possui natureza de norma processual

geral para as ações coletivas. Nas ações coletivas, o Código de Processo Civil se

limita a desempenhar o papel de norma geral subsidiária reguladora dos aspectos

processuais e somente será utilizado se não for possível suprir as lacunas do

sistema especial formado pelo CDC e pela LACP256.

Assim, o CDC em seu já transcrito artigo 90 e a LACP em seu artigo 19257

preveem a aplicabilidade subsidiária do Código de Processo Civil ao direito

processual coletivo. Todavia, para a aplicação do CPC ao direito processual

coletivo é necessário que ocorra uma dupla compatibilidade, formal e material.

Será reconhecida a compatibilidade formal quando for detectada a inexistência de

252 LEONEL, 2011, p. 136, Op Cit. 253 O autor cita como exemplo da importância de outras leis, para a formação do microssistema processual coletivo, a possibilidade de efetivar-se o cumprimento de decisão proferida em qualquer processo coletivo por meio de descontos em folha de pagamento, conforme autorização contida no artigo 14, § 3, da Lei da Ação Popular (CAVALCANTI, 2015, p. 160). 254 ALMEIDA, 2003, p. 584, Op Cit. 255 PIZZOL, 1998, p. 145, Op Cit. 256 NERY JR., 2011, p. 220, Op Cit. 257 Lei 7.347/85 - Art. 19. Aplica-se à ação civil pública, prevista nesta Lei, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, naquilo em que não contrarie suas disposições.

Page 76: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

76

disposição legal sobre a matéria no microssistema processual coletivo. Para que

ocorra a compatibilidade material, é necessário verificar se a regra do Código de

Processo Civil não fere o espírito do direito processual coletivo, ou seja, não

compromete a efetivação da tutela jurisdicional adequada258.

Quanto à compatibilidade formal, é imperioso destacar que, havendo

omissão na lei específica da ação coletiva proposta, antes de ser aplicado o

Código de Processo Civil, deve ser verificada nas normas que compõem o

microssistema processual coletivo a existência de previsão legal para a solução

do impasse. Portanto, somente no caso de não ser possível eliminar a lacuna

legislativa por meio de consulta ao microssistema processual coletivo é que

devem ser aplicadas residualmente as disposições do Código de Processo Civil.

Noutro giro, para que esteja presente a compatibilidade material, é

necessário que a aplicação do Código de Processo Civil ao caso concreto atenda

ao objetivo final do direito processual coletivo, qual seja, o de fornecer de forma

adequada e efetiva a tutela jurisdicional dos direitos coletivos259.

Por último, importante anotar que, além de residual, a aplicabilidade do

Código de Processo Civil às ações coletivas é limitada. Isso ocorre porque, ainda

que o CPC seja o único diploma legal que trate de determinada matéria, suas

disposições não devem ser aplicadas se houver possibilidade de prejuízo à tutela

jurisdicional coletiva260.

Nos dias atuais, é inegável a importância do microssistema processual

coletivo no direito brasileiro, tanto é que, além da doutrina, os Tribunais

reconhecem a existência deste microssistema de proteção dos interesses

coletivos261.

258 ALMEIDA, 2003, p. 583, Op Cit. 259 CAVALCANTI, 2015, p. 165, Op Cit. 260 CAVALCANTI, 2015, p. 165, Op Cit. 261 “Os arts. 21 da Lei da Ação Civil Pública e 90 do CDC, como normas de envio, possibilitaram o surgimento do denominado microssistema ou minissistema de proteção dos interesses ou direitos coletivos amplo senso, no qual se comunicam outras normas, como o Estatuto do Idoso e o da Criança e do Adolescente, a Lei da Ação Popular, a Lei de Improbidade Administrativa e outras que visam tutelar direitos dessa natureza, de forma que os instrumentos e institutos podem ser utilizados para "propiciar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83 do CDC)” (REsp 1221254/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2012, DJe 13/06/2012).

Page 77: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

77

3.2 Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos

Para a compreensão do direito processual coletivo, é importante a

definição de seu objeto material, que seriam os interesses ou direitos difusos,

coletivos e individuais homogêneos, a fim de verificar-se o seu verdadeiro sentido

e alcance262.

Até o advento do Código de Defesa do Consumidor não existia consenso

doutrinário sobre as definições das expressões direitos ou interesses difusos e

direitos ou interesses coletivos263. Da mesma forma, não havia definição legal do

que seriam esses interesses ou direitos difusos e coletivos. O Código de Defesa

do Consumidor supriu essa lacuna legislativa, a partir das definições previstas nos

incisos I, II e III do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor, cuja redação é

a seguinte:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Como se percebe, além de trazer os conceitos dos direitos ou interesses

difusos e coletivos, o legislador criou o conceito de interesses ou direitos

individuais homogêneos, permitindo a sua tutela coletiva em juízo. O legislador

optou por definir os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, a fim de

evitar que dúvidas e discussões doutrinárias sobre o tema pudessem prejudicar a

efetividade da tutela jurisdicional coletiva264.

262 ALMEIDA, 2003, p. 480, Op Cit. 263 LEONEL, 2011, p. 90, Op Cit. 264 WATANABE, 2011, p. 70, Op Cit.

Page 78: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

78

Inicialmente, importante destacar que parcela expressiva da doutrina

ressalta a ausência de razão prática para a distinção entre os termos interesses

ou direitos no que se refere ao processo coletivo, uma vez que o próprio

legislador brasileiro não teve preocupação em efetuar essa distinção, utilizando

indistintamente tais expressões para se referir a direitos ou interesses

metaindividuais265. Kazuo Watanabe afirma que na redação do Código de Defesa

do Consumidor:

Os termos “interesses” e “direitos” foram utilizados como sinônimos, certo é que, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os “interesses” assumem o mesmo status de “direitos”, desaparecendo qualquer razão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre eles266.

Da leitura do parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do

Consumidor é possível perceber que a defesa coletiva abrange dois tipos de

interesses ou direitos. O primeiro tipo seriam os essencialmente coletivos,

também denominados de coletivos lato sensu, que abrangem os difusos, cujo

conceito se encontra no inciso I, e os coletivos propriamente ditos, também

chamados de coletivos stricto sensu, definidos no inciso II. O segundo tipo são os

interesses ou direitos que assumem natureza coletiva apenas na forma como são

tutelados, que são os individuais homogêneos, conceituados no inciso III267.

Nesse sentido, Teori Albino Zavascki alerta que “é preciso, pois, que não se

confunda defesa de direitos coletivos com defesa coletiva de direitos

(individuais)268.

265 Ricardo de Barros Leonel ressalta que não possui relevância a distinção entre interesses ou direitos, afirmando que “[...] Daí a ausência de razão prática no processo, para a referida diferenciação. Ademais, o próprio legislador brasileiro não teve maior preocupação com a diversificação de tratamento com relação a ‘direitos’ ou ‘interesses’ supraindividuais. Note-se, à guisa de exemplificação, que o art. 129, inc. III, da CF/88 confere ao Ministério Público a possibilidade de promover a tutela de ‘interesses’ difusos e coletivos, e no inc. V a defesa judicial dos ‘direitos e interesses’ das populações indígenas; o art. 1º, inc. IV, da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) refere-se à tutela de qualquer outro ‘interesse’ difuso ou coletivo; o art. 81 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) refere-se à defesa dos ‘interesses e direitos’, definindo as três categoriais supraindividuais como ‘interesses ou direitos’; e a Lei 7.835/89, tratando da tutela das pessoas portadoras de deficiência, no art. 3º faz uso da expressão ‘interesses’” (LEONEL, 2011, p. 79). 266 WATANABE, 2011, p. 70, Op Cit. 267 WATANABE, 2011, p. 70, Op Cit. 268 ZAVASCKI, 2014, p. 33, Op Cit,.

Page 79: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

79

Quanto aos interesses ou direitos difusos, convém destacar que o termo

difuso não é uma criação da doutrina moderna, tendo origem na doutrina

romanística do início do século passado, como observa Nelson Nery Júnior269. A

definição dos direitos e interesses difusos, trazida pelo Código de Defesa do

Consumidor, estabeleceu os seguintes requisitos: indeterminação dos titulares e a

inexistência de relação jurídica base entre eles, no aspecto subjetivo; a

indivisibilidade do bem jurídico, no aspecto objetivo270.

Noutro giro, os direitos coletivos também se caracterizam por sua

indivisibilidade, mas exigem a existência de uma relação jurídica base

preexistente à lesão ou ameaça de lesão ao interesse coletivo. Nesse aspecto,

Aluisio Gonçalves de Castro Mendes observa que “o vínculo de direito entre os

interessados não constitui condição sine qua non para a caracterização do

interesse ou direito como coletivo, em sentido estrito, na medida em que a relação

pode ser, tão somente, com a parte contrária”271. Ao definir os direitos ou

interesses coletivos como “transindividuais, de natureza indivisível”, o legislador

optou por excluir desta categoria os interesses individuais agrupados272.

Rodolfo de Camargo Mancuso reconhece a importância da distinção entre

os interesses coletivos e os difusos:

Conquanto os interesses coletivos e os difusos sejam espécies do gênero “interesses meta (ou super) individuais”, sendo esse, pois, o gênero próximo que os coaliza, há, todavia, pelo menos duas diferenças específicas, uma de ordem quantitativa, outra de ordem qualitativa; sob o primeiro enfoque, verifica-se que o interesse difuso concerne a um universo maior do que o interesse coletivo, visto que, enquanto aquele pode mesmo concernir até a toda humanidade, já o segundo apresenta menor amplitude, já pelo fato de estar adstrito a uma “relação-base”, a um “vínculo jurídico”, o que lhe permite aglutinar-se a grupos sociais ou a certos segmentos definidos; sob o segundo critério, vê-se que o interesse coletivo concerne ao homem em sua projeção corporativa, notadamente no que tange ao seu espaço e desenvolvimento ao interno da sociedade, ao passo que o interesse difuso toca ao homem simplesmente enquanto ser humano, independentemente de outras conotações273.

269 NERY JR., 2011, p. 227, Op Cit. 270 WATANABE, 2011, p. 71, Op Cit. 271 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 221-222. 272 WATANABE, 2011, p. 75, Op Cit. 273 MANCUSO, 2013, Op Cit..

Page 80: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

80

Sendo assim, quando o interesse afetar número indeterminado de pessoas

ligadas por relação meramente factual, será considerado difuso, enquanto os

interesses relativos a grupo ou categoria de pessoas determináveis ligadas por

uma mesma relação jurídica base caracterizam os interesses coletivos stricto

sensu. Em razão da relação jurídica base, nos direitos coletivos, embora muitas

vezes os sujeitos sejam indeterminados, será sempre possível a sua

determinação274.

No entanto, a grande inovação do parágrafo único, do artigo 81, do CDC,

foi a possibilidade expressa de ações coletivas para a tutela de interesses ou

direitos individuais homogêneos275. A expressão “direitos individuais

homogêneos” jamais havia sido utilizada no âmbito legislativo, sendo que a única

possibilidade, no sistema jurídico brasileiro, de ação coletiva para a defesa de

direitos individuais homogêneos havia sido instituída por meio da Lei nº 7.913, de

7 de dezembro de 1989. Essa lei permitia ao Ministério Público propor ação civil

pública para a tutela dos interesses de investidores no mercado de valores

mobiliários, mas possuía contornos bem diferentes dos adotados pelo Código de

Defesa do Consumidor276.

Ao contrário dos interesses difusos e coletivos, que são transindividuais e

de natureza indivisível, os direitos individuais homogêneos são essencialmente

individuais e apenas acidentalmente coletivos277. São considerados

acidentalmente coletivos, pois assumem feição coletiva tão somente no plano

processual, na medida em que seus titulares são pessoas determináveis e o

objeto nessa categoria de interesses é divisível. Desta forma, o tratamento

processual coletivo decorre da origem comum desses direitos e do interesse em

sua tutela processual a partir de uma única ação, a fim de evitar decisões

contraditórias e a proliferação de demandas individuais com a mesma causa de

274 NERY JR., 2011, p. 227, Op Cit. 275 Ada Pellegrini Grinover destaca que “é sabido que a grande novidade do Código de Defesa do Consumidor, em termos de tutela jurisdicional, foi a criação da categoria dos interesses ou direitos individuais homogêneos, que são na verdade direitos subjetivos tradicionais, passíveis, ainda hoje, de tratamento processual individual, mas também, agora, de tratamento coletivo, em razão de sua homogeneidade e de sua origem comum” (GRINOVER, 2001, p. 11). 276 WATANABE, 2011, p. 77, Op Cit. 277 MENDES, 2014, p. 230, Op Cit.

Page 81: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

81

pedir e pedido e garantir a efetividade desses direitos individuais mesmo diante

da dispersão das vítimas278.

Sobre esse aspecto, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery

relatam que os direitos individuais homogêneos:

São direitos individuais que podem ser defendidos em juízo tanto individual como coletivamente (CDC, 81, caput e par. ún. I e II). Assim, quando a lei legitima, por exemplo, o MP, abstratamente, para defender em juízo direitos individuais homogêneos (CF 127 caput e 129, IX; CDC 1º e 82, I), o Parquet age como substituto processual, porque substitui pessoas determinadas. Apenas por ficção jurídica os direitos individuais são qualificados de homogêneos, a fim de que possam, também, ser defendidos em juízo por ação coletiva. Na essência eles não perdem a sua natureza de direitos individuais, mas ficam sujeitos ao regime especial da legitimação do processo civil coletivo (CF 127 caput e 129, IX; LACP, 5º; CDC, 81 caput, par. ún., III e 82), bem como ao sistema da coisa julgada do processo coletivo (CDC, 103, III)279.

Portanto, os interesses individuais homogêneos podem ser definidos como

pertencentes a um grupo determinável de pessoas, cujo objeto é divisível, e estão

reunidos por uma relação de origem comum. Nesse aspecto, a ação coletiva para

a proteção dos direitos individuais homogêneos, prevista no Código de Defesa do

Consumidor, se assemelha às class actions do direito norte-americano280, com

algumas diferenças, em virtude da necessidade de adaptação às peculiaridades

da realidade brasileira, sobretudo em virtude das diferenças geográficas, sociais,

políticas e culturais entre os dois países281.

A partir da definição trazida pelo Código de Defesa do Consumidor, é

possível identificar as diferenças na origem dos direitos difusos, coletivos e

individuais homogêneos. Nos direitos difusos a relação entre os titulares se dá por

circunstâncias de fato, já os coletivos têm origem em uma relação jurídica base e,

por fim, o que caracteriza os direitos individuais comuns como homogêneos é sua

origem comum282.

278 ALMEIDA, 2007, p. 483, Op Cit. 279 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 255, Op Cit. 280 Neste sentido, Luís Roberto Barroso afirma que a proteção coletiva dos direitos individuais homogêneos “corresponde à class action for damages do direito norte-americano” (BARROSO, 2005, p. 131-153).. 281 WATANABE, 2011, p. 77, Op Cit. 282 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 620, Op Cit.

Page 82: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

82

Importante anotar que, em qualquer discussão que envolva a conceituação

dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, ainda que ocorra na

seara trabalhista, eleitoral, tributária, etc., deve ser adotada a conceituação

tripartite dos interesses e direitos de massa, prevista no parágrafo único do artigo

81 do Código de Defesa do Consumidor283.

Nelson Nery Júnior defende que o que caracteriza um direito como difuso,

coletivo ou individual homogêneo é o tipo de pretensão material e de tutela

jurisdicional que se pretende com a ação coletiva284. Ou seja, um mesmo fato

pode originar pretensões difusas, coletivas ou individuais homogêneas, sendo que

o tipo de pretensão veiculado na ação judicial é que vai qualificar o interesse

como difuso, coletivo ou individual homogêneo. Para ilustrar essa situação, vale

lembrar o famoso exemplo citado pelo autor:

O acidente com o Bateau Mouche IV, que teve lugar no Rio de Janeiro, pode ensejar ação de indenização individual por uma das vítimas do evento pelos prejuízos que sofreu (direito individual), ação de obrigação de fazer movida por associação das empresas de turismo que têm interesse na manutenção da boa imagem desse setor da economia (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo Ministério Público em favor da vida e da segurança das pessoas, para que seja interditada a embarcação a fim de se evitarem novos acidentes (direito difuso)285.

Reconhecendo que a mesma situação de fato pode gerar pretensões

difusas, coletivas ou individuais homogêneas, Hugo Nigro Mazzilli observa:

O mesmo fato pode gerar danos a interesses transindividuais de mais de um tipo. Assim, a explosão de uma usina atômica poderia causar não só danos ao meio ambiente (interesses difusos), mas também danos individuais determináveis aos moradores vizinhos, como a perda de seu gado (interesses individuais homogêneos)286.

Há, todavia, posições divergentes, como a de Teori Albino Zavascki, para

quem, a classificação do direito como difuso, coletivo ou individual homogêneo,

tem relação com o direito material e, portanto, é preexistente ao processo e

independe do pedido nele formulado. Para o autor, não tem razão, sob este 283 ALMEIDA, 2007, p. 80, Op Cit. 284 NERY JR., 2011, p. 220, Op Cit. 285 NERY JR., 2011, p. 225, Op Cit. 286 MAZZILLI, 2014, Op Cit.

Page 83: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

83

aspecto, a doutrina segundo a qual a correta distinção entre direitos coletivos,

difusos e individuais homogêneos depende do pedido e da causa de pedir

formulados na demanda. Ela produz um resultado absurdo: o de negar que o

direito tenha alguma natureza antes de ser objeto de litígio em juízo. Ela retira do

processo o seu caráter meramente instrumental e ancilar, de servir de meio de

proteção ao direito material (o qual, portanto, preexiste ao processo,

necessariamente)287.

Em síntese, pode-se afirmar que os direitos difusos possuem titulares

indetermináveis, cuja ligação ocorre por situações de fato e o objeto desses

direitos não pode ser dividido, como, por exemplo, o direito da população de

respirar ar puro ou dos consumidores de não ser veiculada propaganda enganosa

ou abusiva. Já os direitos coletivos podem ser entendidos como aqueles em que

os titulares são indeterminados, mas determináveis, cuja ligação ocorre por haver

uma relação jurídica entre os titulares ou entre estes e a parte contrária e o objeto

é também indivisível. O direito dos alunos de determinada escola de terem a

mesma qualidade de ensino no curso matriculado é exemplo de interesse

coletivo. Por fim, os direitos individuais homogêneos são direitos essencialmente

individuais, cujos titulares são perfeitamente identificáveis e o seu objeto é

divisível e cindível, sendo caracterizados como direitos individuais homogêneos

em decorrência de sua origem comum, que permite a sua defesa coletiva em

juízo. Todavia, a despeito dessas características principais, não se pode perder

de vista que o que irá qualificar o direito como difuso, coletivo ou individual

homogêneo será a pretensão formulada em juízo, que corresponde ao conjunto

formado pela causa de pedir e pelo pedido formulado na ação coletiva288.

3.3 Legitimidade ativa Uma vez reconhecida a proteção jurisdicional aos direitos transindividuais,

questão importante a saber é “a quem deve o direito reconhecer qualidade para

287 ZAVASCKI, 2014, p. 33, Op Cit,. 288 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 620.

Page 84: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

84

propor a ação judicial direcionada a tal tutela?”289 A existência de um sistema de

legitimidade ativa diferenciado do previsto no processo civil tradicional, voltado

para a tutela individual, é um dos requisitos essenciais que caracterizam a tutela

jurisdicional coletiva290.

Ricardo de Barros Leonel registra:

A legitimação é não somente um dos pontos sensíveis no entendimento da dinâmica do processo coletivo, mas sim pressuposto de sua implementação, da produção dos seus efeitos e do alcance dos escopos por ele objetivados: economia processual, efetividade da prestação jurisdicional e acesso efetivo à justiça e à ordem jurídica justa291.

No entanto, ainda existem várias discussões e divergências sobre o tema

que merecem ser analisadas para a melhor compreensão das ações coletivas.

Inicialmente, importante destacar a necessidade de ser ultrapassada a

concepção tradicional de que as “coisas coletivas” seriam responsabilidade

exclusiva do Estado, inexistindo corpos intermediários aptos a compartilhar dessa

responsabilidade. Nesse contexto, a ampliação da legitimação ativa para as

demandas coletivas e a defesa dos interesses metaindividuais tem caráter

relevante para a implementação da democracia participativa, refletindo na própria

concepção política do Estado292.

Ademais, a aferição da legitimidade ativa do autor da ação coletiva não

implica análise do mérito da demanda proposta, como aduz Rodolfo de Camargo

Mancuso:

Hoje, a concepção da ação como um direito abstrato (nesse sentido de ser reconhecido independentemente de o autor ter ou não razão) facilita a compreensão de que a conexão estabelecida pelo juiz entre um afirmado interesse material e o seu portador judicial (= avaliação positiva quanto à legitimidade ativa) não implica, minimamente, qualquer adiantamento quanto ao futuro pronunciamento de meritis293.

289 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas: mandado de segurança coletivo, ação coletiva de consumo, ação coletiva ambiental, ação civil pública, ação popular. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 37. 290 GOMES JR.; CHUEIRI, 2013, Op Cit. 291 LEONEL, 2011, p. 156, Op Cit. 292 LEONEL, 2011, p. 146, Op Cit. 293 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 452.

Page 85: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

85

Fixadas essas premissas, serão analisados a natureza jurídica da

legitimidade para agir nas ações coletivas e o rol de legitimados escolhidos pelo

legislador para atuar em juízo na proteção dos interesses ou direitos difusos,

coletivos ou individuais homogêneos.

3.3.1 Natureza jurídica da legitimidade para agir nas ações coletivas No processo civil tradicional, de cunho individualista, o direito de ação é

ordinariamente atribuído ao titular da situação protegida e, excepcionalmente,

pode ser conferido a quem não é titular do direito, mas promove a ação em nome

próprio para a defesa de interesse alheio294.

Estamos diante de hipóteses de legitimação ordinária e extraordinária, que

são assim definidas por Aluisio Gonçalves de Castro Mendes:

Havendo coincidência entre a situação legitimante e a causa posta em juízo, está-se diante de legitimação ordinária. Do contrário, quando a lei autoriza que alguém demande ou venha a ser demandado, em nome próprio, para defender direito que, supostamente, em parte ou no todo, não lhe pertence, a legitimação será extraordinária295.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, por sua vez, assim

conceituam as legitimações ordinária e extraordinária:

Quando há coincidência entre a legitimação de direito material e a legitimidade para estar em juízo, diz-se que há legitimação ordinária; quando aquele que tem legitimidade para estar no processo como parte não é o que se afirma titular do direito material discutido em juízo, diz-se que há legitimação extraordinária296.

Portanto, segundo as regras do processo civil clássico, somente é possível

ingressar em juízo, em nome próprio, para a defesa de direito alheio, quando

houver expressa autorização legal, conforme a regra geral de legitimação

294 LEONEL, 2011, p. 146, Op Cit. 295 MENDES, 2014, p. 252, Op Cit. 296 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 254.

Page 86: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

86

extraordinária prevista tanto no Código de Processo Civil de 1973 (art. 6º 297),

como no novo Código de Processo Civil (art. 18298), que entrou em vigor no dia 18

de março de 2016. Todavia, as ações coletivas rompem com essa regra geral do

direito processual individual, de exclusividade no manejo da ação pelo titular do

direito material tido por violado, permitindo que um ente que não seja o titular

efetivo do direito material figure como autor da demanda299.

Importante anotar que a doutrina em geral costuma não fazer distinção

entre os termos legitimação extraordinária e substituição processual, utilizando

indiscriminadamente os termos como se fossem sinônimos300. Entretanto, Nelson

Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery ressaltam que a substituição

processual é “espécie do gênero legitimação extraordinária” e pode ser definida

como o “fenômeno pelo qual alguém, autorizado por lei, atua em juízo como parte,

em nome próprio e no seu interesse, na defesa de pretensão alheia”301.

No entanto, a dicotomia legitimação ordinária e extraordinária faz sentido

no plano jurisdicional singular, onde opera o sistema de correspondência ou de

coincidência entre titularidade do direito e poder de agir (partes em sentido

material e processual), mas já não assim no plano coletivo, onde a situação

legitimante deriva do binômio relevância social do interesse-representação

adequada do portador judicial, conforme assevera Rodolfo de Camargo

Mancuso302. No mesmo sentido, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade

Nery advertem que “a dicotomia legitimação ordinária e extraordinária só tem

pertinência no direito individual, no qual existe pessoa determinada a ser

substituída. Nos direitos difusos e coletivos o problema não se coloca”303.

Sendo assim, remanesce a dúvida sobre qual seria a natureza jurídica da

legitimidade para agir nas ações coletivas movidas em defesa de interesses ou

direitos difusos e coletivos. Não há consenso doutrinário sobre o tema, podendo

ser identificadas três posições quanto à classificação da legitimação ativa

297 Lei 5.869/73 - Art. 6o Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. 298 Lei 13.105/2015 - Art. 18. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico. 299 LEAL, 2014, p. 59, Op Cit. 300 PIZZOL, 1998, p. 126, Op Cit. 301 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 254, Op Cit. 302 MANCUSO, 2012, p. 458-459, Op Cit. 303 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 254, Op Cit.

Page 87: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

87

referente à tutela coletiva: a) legitimação ordinária; b) legitimação extraordinária;

c) legitimação autônoma304.

Sustentando que nas ações coletivas para a defesa de interesses difusos

ocorre a legitimação ordinária do autor coletivo, Márcio Flávio Mafra Leal

assevera:

Se ninguém é titular de um direito difuso individualmente, obviamente que o autor coletivo não está na “representação” ou “substituição” processual de alguma pessoa concreta. Assim, ao contrário das ações coletivas em sentido estrito e para tutela de interesses individuais homogêneos, em que se enxergam os titulares do direito material posto em juízo, é equivocado falar-se em representação adequada na tutela de direito difuso. O autor coletivo, nesse caso, haure da lei diretamente o poder de agir sem ter de se referir ou representar qualquer grupo. A tese aqui defendida é a seguinte: o autor coletivo, em tema de interesses difusos, age em nome próprio para exigir processualmente o cumprimento de um dever material do réu/devedor305.

Em sentido oposto é o entendimento de Hugo Nigro Mazzilli, para quem:

Trata-se mesmo de legitimação extraordinária, por meio da qual os colegitimados ativos à ação civil pública ou coletiva substituem processualmente os indivíduos que integram o grupo lesado, ou seja, em nome próprio defendem interesses alheios. Tanto isso é verdade que a coisa julgada coletiva, em caso de procedência do pedido, produzirá imutabilidade erga omnes (contra todos, ou seja, vai além das partes formais no processo). Isso não impede que, não raro, os legitimados à ação civil pública também defendam direito próprio. Se, em parte, porém, também defendem direito próprio, predominantemente defendem interesses alheios, coletivos, de titulares dispersos na coletividade – e esse é o verdadeiro objeto das ações civis públicas ou coletivas. Isso configura a legitimação extraordinária por meio de substituição processual (v.g. art. 91 do CDC)306.

Teori Albino Zavascki compactua desse entendimento e defende que:

Tratando-se de direitos difusos ou coletivos (=sem titular determinado), a legitimação ativa é exercida, invariavelmente em regime de substituição processual: o autor da ação defende, em nome próprio, direito de que não é titular. Pode-se afirmar, por isso mesmo, que esse regime, de natureza extraordinária no

304 MENDES, 2014, p. 252, Op Cit. 305 LEAL, 2014, p. 63, Op Cit. 306 MAZZILLI, 2014, p. 35, Op Cit.

Page 88: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

88

sistema comum do processo civil, e o regime ordinário da ação civil pública307.

José dos Santos Carvalho Filho adota linha de pensamento semelhante,

assumindo que a legitimação nas ações coletivas será sempre extraordinária,

uma vez que o Ministério Público, segundo o contexto constitucional, tem como

uma de suas funções primordiais a defesa dos interesses sociais e individuais

indisponíveis (art. 127, CF). Desse modo, quando ajuíza ação civil pública atua

em nome próprio pela específica legitimação que a ordem jurídica lhe conferiu,

mas os interesses cuja proteção persegue por meio da ação pertencem a

terceiros, sejam estes determinados, determináveis ou indetermináveis, mas

sempre de terceiros. É a estes que cabe a titularidade dos interesses sob tutela.

Por essa razão, a legitimação do Ministério Público na ação civil pública é

extraordinária308.

Defendendo que as entidades possuem legitimação autônoma para a

condução das ações coletivas que discutam direitos difusos e coletivos, Nelson

Nery Júnior destaca:

A dicotomia clássica legitimação ordinária-extraordinária só tem cabimento para a explicação e fenômenos envolvendo direito individual. Quando a lei legitima alguma entidade a defender direito não individual (coletivo ou difuso), o legitimado não estará defendendo direito alheio em nome próprio, porque não se pode identificar o titular do direito. Não poderia ser admitida ação judicial proposta pelos “prejudicados pela poluição”, pelos “consumidores de energia elétrica”, enquanto classe ou grupo de pessoas. A legitimidade para a defesa dos direitos difusos e coletivos em juízo não é extraordinária (substituição processual), mas sim legitimação autônoma para a condução do processo (selbständige Prozeßführungsbefugnis): a lei elegeu alguém para a defesa de direitos porque seus titulares não podem individualmente fazê-lo309.

Rodolfo de Camargo Mancuso também reconhece essa autorização

especial para a condução do processo coletivo conferida a algumas entidades,

sustentando que no plano da jurisdição coletiva:

307 ZAVASCKI, 2014, p. 63-64, Op Cit,. 308 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 78. 309 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 624, Op Cit.

Page 89: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

89

Parece-nos que seria bastante reconhecer que esses entes colegitimados beneficiam de uma especial autorização para a condução do processo coletivo (Prozeßführungrecht, da doutrina alemã), tornando desnecessário o recurso à legitimação extraordinária para explicar o poder de agir no processo coletivo310.

Ainda nesse sentido, Ricardo de Barros Leonel conclui que “a posição que

melhor se ajusta à identificação da natureza jurídica da legitimação para a defesa

dos interesses difusos e coletivos é no sentido de que se trata de legitimação

denominada autônoma para a condução do processo”311.

No que se refere à legitimidade ativa para a tutela de direitos individuais

homogêneos, há consenso doutrinário312 de que se trata de hipótese de

substituição processual. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery

reportam que a ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos:

Trata-se de hipótese de substituição processual, porque a lei legitimou outrem para a defesa em juízo, em nome próprio, de direito alheio cujo titular é identificável e individualizável. Aplica-se a esta ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos o regime da substituição processual (CPC, art. 18), com as particularidades previstas no sistema de processo civil coletivo (CF, LACP, CDC, etc.)313.

Portanto, para a defesa dos direitos individuais homogêneos, os

legitimados atuam em juízo como substitutos processuais, com peculiaridades,

tendo em vista que a substituição processual é diferente da prevista no Código de

Processo Civil, no qual o atuar do substituto processual atinge o substituído para

beneficiá-lo e para prejudicá-lo. No microssistema processual coletivo, os

potenciais titulares de direitos individuais homogêneos não são prejudicados pelo

resultado adverso da ação coletiva, a menos que tenham intervindo como

litisconsortes314. Ademais, o legitimado que atua na condição de substituto

310 MANCUSO, 2012, p. 452, Op Cit 311 LEONEL, 2011, p. 146, Op Cit. 312 PIZZOL, 1998, p. 126, Op Cit. 313 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 624, Op Cit. 314 CDC - Art. 103, § 2º: Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: [...] III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81. [...] §

Page 90: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

90

processual não pode praticar atos de disposição do direito material como a

renúncia, a transação e o reconhecimento jurídico do pedido, tendo em vista que

a pretensão discutida em juízo envolve direito alheio. Somente com anuência

expressa do substituído que o ente legitimado poderá dispor do direito material

envolvido315.

Posição divergente e minoritária é adotada por Gregório de Assagra

Almeida, para quem a legitimação no caso dos interesses ou direitos individuais

homogêneos também é uma forma de legitimação autônoma para a condução do

processo. O autor baseia-se nas lições de Antonio Gidi para afirmar que não pode

ser considerada legitimação extraordinária a atuação das entidades legitimadas,

uma vez que é regra da substituição processual – o que justificaria a sua própria

razão de ser – suprimir a possibilidade de o substituído vir novamente a juízo,

pois será atingido pela autoridade da coisa julgada material. Isso não ocorre na

ação coletiva em defesa de direitos individuais homogêneos, em que as vítimas,

mesmo diante da improcedência da ação coletiva, poderão propor a sua ação

individual caso não tenham intervindo como litisconsortes na ação316.

Em que pesem as diversas posições divergentes, aparentemente317

prevalece, na doutrina e na jurisprudência318, o entendimento de que é

extraordinária (substituição processual) a legitimidade para a defesa em juízo dos

direitos difusos e coletivos, assim como dos direitos individuais homogêneos319.

2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. 315 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 255, Op Cit. 316 ALMEIDA, 2003, p. 42, Op Cit. 317 Ricardo de Barros Leonel refere que aparenta ser majoritário o entendimento pela legitimidade extraordinária dos entes que ocupam o polo ativo da demanda coletiva (LEONEL, 2011, p. 146). 318 Aluisio Gonçalves de Castro Mendes destaca que a corrente que defende tratar-se de hipótese de legitimação extraordinária “é a que vem prevalecendo na jurisprudência”. A título de exemplo, o autor cita o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: EMENTA: CONSTITUCIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. ART. 129, III, DA CF. Legitimação extraordinária conferida ao órgão pelo dispositivo constitucional em referência, hipótese em que age como substituto processual de toda a coletividade e, consequentemente, na defesa de autêntico interesse difuso, habilitação que, de resto, não impede a iniciativa do próprio ente público na defesa de seu patrimônio, caso em que o Ministério Público intervirá como fiscal da lei, pena de nulidade da ação (art. 17, § 4º, da Lei nº 8.429/92). Recurso não conhecido. (RE 208790, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2000, DJ 15-12-2000 PP-00105 EMENT VOL-02016-04 PP-00865 RTJ VOL-00176-02 PP-00957) (MENDES, 2014, p. 255). 319 Márcio Flávio Mafra Leal anota que “a doutrina e a jurisprudência dominantes defendem, no entanto, a tese de que se trata de uma substituição processual, especialmente porque a redação do art. 81 do CDC atribui expressamente um direito material a uma coletividade ou a um grupo, que evidentemente não pode figurar no polo ativo da ação (LEAL, 2014, p. 60-61, Op Cit).

Page 91: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

91

Nesse sentido é o recente acórdão proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal

Federal, cujo trecho da ementa assim dispõe: Ementa: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL COLETIVA. DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS (DIFUSOS E COLETIVOS) E DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISTINÇÕES. LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ARTS. 127 E 129, III, DA CF. LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS DE DIMENSÃO AMPLIADA. COMPROMETIMENTO DE INTERESSES SOCIAIS QUALIFICADOS. SEGURO [Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre] DPVAT. AFIRMAÇÃO DA LEGITIMIDADE ATIVA. 1. Os direitos difusos e coletivos são transindividuais, indivisíveis e sem titular determinado, sendo, por isso mesmo, tutelados em juízo invariavelmente em regime de substituição processual, por iniciativa dos órgãos e entidades indicados pelo sistema normativo, entre os quais o Ministério Público, que tem, nessa legitimação ativa, uma de suas relevantes funções institucionais (CF art. 129, III). 2. Já os direitos individuais homogêneos pertencem à categoria dos direitos subjetivos, são divisíveis, tem titular determinado ou determinável e em geral são de natureza disponível. Sua tutela jurisdicional pode se dar (a) por iniciativa do próprio titular, em regime processual comum, ou (b) pelo procedimento especial da ação civil coletiva, em regime de substituição processual, por iniciativa de qualquer dos órgãos ou entidades para tanto legitimados pelo sistema normativo. [...] (RE 631111, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 07/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014)

Segundo esse entendimento, não importa quais sejam os direitos tutelados

(difusos, coletivos ou individuais homogêneos), a legitimação para as ações

coletivas será sempre extraordinária e o ente legitimado atuará como substituto

processual.

3.3.2 Legitimados ativos

Antes do advento da Lei da Ação Civil Pública, havia grande resistência,

principalmente da jurisprudência, em fazer uma interpretação mais elástica e

flexível do artigo 6º do CPC de 1973 e aceitar a legitimidade ativa de

determinados corpos intermediários para realizar a defesa em juízo de interesses

metaindividuais. Sobre essa interpretação restritiva, Gregório de Assagra Almeida

opina que:

Page 92: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

92

O grande obstáculo estava em que – e isso ainda às vezes ocorre – os doutrinadores e juízes tentavam compreender o fenômeno da legitimidade ativa para a defesa dos interesses massificados por meio da concepção ortodoxa liberal individualista do processo civil, partindo da divisão clássica entre legitimidade ordinária e extraordinária, adotada pelo art. 6º do CPC320.

Ainda no ano de 1981, portanto, antes da edição da Lei da Ação Civil

Pública, José Carlos Barbosa Moreira alertava para a importância da ampliação e

definição dos legitimados para agir em defesa dos interesses difusos. Até então,

no direito brasileiro, o único instrumento que poderia ser utilizado para a tutela de

interesses difusos era a ação popular, na qual qualquer cidadão detém a

legitimação para agir. Para o autor:

Na medida em que se admita a possibilidade de postular por via judicial a preservação de semelhantes interesses, ocorre logo indagar a quem se deve reconhecer qualidade para instaurar o processo ordenado a tal fim. O anseio, hoje tão generalizado, pela proteção efetiva dos “interesses difusos” suscita renovada meditação sobre problema clássico da ciência processual: o da legitimação para agir321.

Barbosa Moreira cogitou de três soluções que não se excluem e poderiam

ser combinadas para se atribuir a legitimidade para agir em defesa dos interesses

difusos: a) legitimação concorrente e disjuntiva dos indivíduos cotitulares, para

agir, individualmente ou em litisconsórcio voluntário, em defesa do interesse

comum; b) legitimação de associações e pessoas jurídicas ou até de entidades

não dotadas de personalidade jurídica, que tenham como finalidade institucional a

defesa dos interesses difusos e reúnam condições de representar de maneira

adequada o conjunto dos interessados; c) legitimação de órgãos públicos, por

exemplo, o Ministério Público322.

Demonstrando a preocupação da doutrina sobre a questão envolvendo a

tutela jurisdicional dos interesses difusos e a legitimidade para agir em sua

defesa, Kazuo Watanabe, em conferência proferida em 2.12.1982, no “Seminário

320 ALMEIDA, 2003, p. 497-498, Op Cit. 321 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A legitimação para a defesa dos interesses difusos no direito brasileiro. Revista Forense, v. 276, out-dez, 1981. 322 MOREIRA, 1981, Op Cit.

Page 93: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

93

sobre a Tutela dos Interesses Coletivos”, desenvolveu hipótese de trabalho na

qual concluiu que “o nosso sistema jurídico, tal como existe atualmente, já permite

a tutela jurisdicional dos interesses difusos, ainda que de modo incipiente, mas de

qualquer forma uma tutela muito mais abrangente e bem mais efetiva do que

aquela que vem sendo dada pelo nosso Judiciário”. Para tanto, o autor

fundamenta que:

Desde que seja interpretado o art. 6º, do CPC, com mente mais aberta e com vistas voltadas à globalidade do ordenamento jurídico, principalmente ao sistema constitucional, afigura-se perfeitamente possível chegar-se à admissão da legitimidade ad causam das associações criadas com o fim estatutário de promover a defesa de interesses difusos323.

No âmbito dos processos coletivos, a primeira norma a tratar efetivamente

da legitimidade para agir foi a Lei nº 7.347/85324, que, em seu artigo 5º definiu os

legitimados para a propositura de ação civil pública, optando por um sistema

misto de legitimados, com entidades públicas e privadas, mas excluindo a

possibilidade de o indivíduo promover a ação civil pública. Posteriormente, o

artigo 82325 do Código de Defesa do Consumidor também tratou de enunciar os

legitimados a postular em juízo para a defesa dos interesses ou direitos difusos,

coletivos ou individuais homogêneos, adotando amplo e heterogêneo rol de

entidades, semelhante ao previsto na LACP326.

323 WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos a legitimação para agir. Revista de Processo, v. 34, abril/1984. 324 Lei nº 7.347/85, com redação dada pela Lei nº 11.448/07 - Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. 325 Lei nº 8.078/90 - Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público; II - a União, os estados, os municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear. 326 GIDI, 1995, p. 37, Op Cit.

Page 94: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

94

O modelo brasileiro de atribuição de legitimidade não possui precedentes

ou similares no direito comparado327. No microssistema processual coletivo

brasileiro, a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor

optaram por adotar um modelo de legitimação misto e heterogêneo, conferindo

legitimidade para a propositura de demandas coletivas a órgãos e entidades

públicas e privadas. Excepcionalmente, a Lei no 4.717/65 atribui ao cidadão a

legitimidade para promover a ação popular.

A legitimidade para agir nas ações coletivas está pautada no trinômio

concorrente-disjuntiva-exclusiva328. Explicando cada um desses aspectos,

Antonio Gidi comenta:

A legitimidade se diz concorrente porquanto todas as entidades são simultânea e independentemente legitimadas para agir, isto é, a legitimidade de uma delas não exclui a de outros. Concorrente, aqui, significa não exclusiva de uma só entidade. Também é chamada disjuntiva no sentido de não ser complexa, visto que qualquer uma das entidades colegitimadas poderá propor, sozinha, a ação coletiva sem necessidade de formação de litisconsórcio ou de autorização por parte dos demais colegitimados. É facultada, entretanto, a formação voluntária de litisconsórcio. Por fim, trata-se de uma legitimidade exclusiva, porque somente aquelas entidades taxativamente previstas em lei poderão propor uma ação coletiva. As pessoas físicas e as demais pessoas jurídicas, portanto, não terão legitimidade para propor uma ação coletiva, exceto nos estritos casos de ação popular (CF, art. 5º, LXXIII) em que somente a pessoa física no gozo dos seus direitos políticos tem legitimidade329.

Hugo Nigro Mazzilli corrobora essa classificação e afirma que “a

legitimação ativa para as ações civis públicas ou coletivas tem caráter duplo:

concorrente (todos os legitimados podem agir) e disjuntiva (cada legitimado ativo

pode agir, ainda que isoladamente)330.

Tendo em vista que mais de uma entidade está legitimada para a

propositura da ação coletiva, é facultado o litisconsórcio entre os colegitimados,

que poderão mover a ação em conjunto. O litisconsórcio nas ações coletivas é

facultativo e será também unitário, na medida em que o juiz não poderá decidir a

327 LEONEL, 2011, p. 148, Op Cit. 328 MANCUSO, 2012, p. 459, Op Cit. 329 GIDI, 1995, p. 37-38, Op Cit. 330 MAZZILLI, 2014, p. 86, Op Cit. No mesmo sentido, MANCUSO (2013, p. 197); LEONEL (2011, p. 154).

Page 95: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

95

lide de forma diferente para os litisconsortes ativos. Uma vez instaurada a ação

coletiva, os demais colegitimados que queiram participar do processo poderão

ingressar na qualidade de assistentes litisconsorciais, pois não é permitida a

constituição superveniente de litisconsórcio facultativo unitário331.

Noutro giro, os limites objetivos da tutela jurisdicional dos direitos difusos,

coletivos e individuais homogêneos foram ampliados pelo Código de Defesa do

Consumidor, ao permitir que as entidades legitimadas proponham todas e quais

quaisquer ações para a adequada e efetiva tutela desses direitos. Isso se extrai

do artigo 83332 do Código, que também é aplicável às ações civis públicas, por

força do artigo 21333 da LACP 334.

Para fins de interpretação da legitimidade para agir nas ações coletivas,

importante lembrar que a Constituição Federal garante como direito fundamental

que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito

(Art. 5º, XXXV), referindo-se tanto aos direitos individuais como aos interesses

coletivos em sentido amplo. Nessa linha de pensamento, Gregório Assagra de

Almeida ressalta que “seja no plano legislativo, seja no plano jurisdicional, a

legitimidade ativa no direito processual coletivo deve ser concebida de maneira

flexível e ampliativa; deve ser vedada a interpretação restritiva, uma vez que

esbarra na Lei Magna”. O autor salienta, ainda, que essa tendência a ampliar a

legitimidade ativa no direito processual coletivo:

Possibilita a participação em massa dos entes sociais interessados, legitima a atuação do Poder Judiciário e garante a efetividade dos direitos sociais fundamentais no sentido de transformar a realidade social com mais igualdade e justiça. Esse é o papel do Estado Democrático de Direito, e o direito processual coletivo é o instrumento fundamental para tanto335.

Sendo assim, deve ser feita uma análise, ainda que sucinta, dos principais

legitimados ativos escolhidos pelo legislador brasileiro para a defesa em juízo dos

interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

331 NERY JR.; NERY,2015b, p. 199, Op Cit. 332 Lei 8.078/90 - Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. 333 Lei 7.347/85 - Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (Incluída Lei nº 8.078, de 1990). 334 NERY JR. 2011, p. 222, Op Cit. 335 ALMEIDA, 2003, p. 505, Op Cit.

Page 96: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

96

3.3.2.1 Legitimidade ativa do indivíduo

Inicialmente, é mister anotar que o legislador brasileiro, “ao contrário de

países como os Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, Canadá e Austrália, não

atribuiu, de modo amplo e equiparado aos demais entes e órgãos, a legitimação

ao indivíduo para a propositura de ações coletivas”336. No Brasil, optou-se por não

incluir o indivíduo como um dos legitimados para a propositura de ação civil

pública, nos termos da Lei no 7.347/85337. Da mesma forma, o artigo 82 do Código

de Defesa do Consumidor não contemplou o indivíduo dentre os legitimados para

exercer a defesa coletiva dos interesses e direitos dos consumidores.

A respeito do rol de legitimados previstos no artigo 82 do Código de Defesa

do Consumidor, Kazuo Watanabe comenta:

Pelas regras que disciplinam as obrigações indivisíveis, seria admissível, em linha de princípio, a legitimação concorrente de todos os indivíduos para a defesa dos interesses difusos ou coletivos de natureza indivisível. Mas ponderações várias, como as pertinentes ao conteúdo político das demandas, à possibilidade de pressões quanto à propositura e ao prosseguimento destemido nas instâncias superiores e à necessidade, enfim, de um fortalecimento do autor da demanda coletiva, fizeram com que se excluísse a legitimação individual para a tutela dos consumidores em juízo338.

Todavia, apesar de o indivíduo não estar incluído no rol de legitimados para

a propositura das ações coletivas, previstos no artigo 82 do CDC e no artigo 5º da

LACP, o cidadão tem à sua disposição a ação popular, como direito fundamental

e instrumento apto para a tutela de interesses transindividuais, conforme previsto

no artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal e regulado pela Lei nº

4.717/65339. Inclusive, a experiência vivida com a ação popular, que indica, com

336 MENDES, 2014, p. 265, Op Cit. 337 O artigo 5º da Lei n. 7.347/85 não inclui o indivíduo no rol de legitimados para propor a ação civil pública. 338 WATANABE, 2011, p. 84, Op Cit. 339 MANCUSO, 2012, p. 452, Op Cit.

Page 97: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

97

alguma frequência, a má-utilização desse instrumento, sobretudo para fins

políticos e pessoais, pode ser indicada como uma das justificativas para a opção

do legislador de excluir o indivíduo dos legitimados para a propositura de

demanda coletiva340.

Barbosa Moreira lembra que outro risco da legitimação do indivíduo para a

tutela coletiva é a possibilidade da colusão entre algum dos colegitimados e a

autoridade responsável pelo ato irregular: não é inconcebível que se descubra

cidadão disposto a tomar a iniciativa da instauração do processo sem a intenção

sincera de conseguir resultado favorável, mas, ao contrário, unicamente para

provocar, mediante demanda mal-instruída e condução negligente do pleito,

pronunciamento judicial que declare legítimo – valendo por autêntico bill of

indemnity – o ato na realidade eivado de vício341.

Sobre este tema, Rodolfo de Camargo Mancuso salienta:

A adoção do modelo da ação popular como instrumento para a tutela dos interesses difusos, se, por um lado, serve à nobre causa da participação popular através da justiça, apresenta, porém, alguns inconvenientes, reconhecidos pela doutrina. Em primeiro lugar, ela se apresenta como “faca de dois gumes”, porque, se não for exercida de modo responsável, poderá servir para retaliações políticas ou para ajuizamento de ação por mero espírito de emulação. Em segundo lugar, há o risco de a ação vir a ser intencionalmente mal proposta, justamente para se obter uma sentença de improcedência, que, uma vez transitada em julgado, jogará uma pá de cal sobre o assunto. Finalmente, é possível que esse tipo de ação, ao invés de configurar uma colaboração, acabe por ser fator de perturbação da ordem dos serviços, quando não é ajuizada por motivos sérios e relevantes342.

No entanto, o próprio autor descreve que o legislador brasileiro criou

mecanismos para minimizar a possibilidade de utilização da ação popular para

fins deturpados de sua vocação originária. Para tanto:

340 WATANABE, 2011, p. 84, Op Cit. 341 MOREIRA, 1981, Op Cit. 342 MANCUSO, 2013, p. 195, Op Cit.

Page 98: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

98

O Ministério Público é legitimado a prosseguir na ação em caso de desistência343, além de lhe caber zelar pela produção das provas344; nos casos de improcedência em razão de precariedade probatória, não se opera o efeito da coisa julgada materia345l, aplicando-se, aí, a teoria da coisa julgada secundum eventum litis; nos casos de ações propostas temerariamente, o autor é condenado no décuplo das custas346, sem prejuízo de responsabilidade residual civil e penal, quando for o caso347.

Com fundamento no princípio constitucional do acesso à justiça (art. 5º,

XXXV, CF), Aluisio Gonçalves de Castro Mendes defende que, muitas vezes,

situações envolvendo interesses difusos repercutem também sobre direitos

individuais, que merecem proteção ampla e não restrita, autorizando o

ajuizamento de ação pelo indivíduo. Para ilustrar essas situações, o autor

menciona:

Não é difícil imaginar, e.g., uma determinada atividade ou obra, de responsabilidade do município, provocando a poluição sonora junto a uma pequena comunidade, desprovida de associação de moradores ou de defesa do meio ambiente, cuja Promotoria esteja com o cargo de promotor vago. Estariam os moradores fadados a suportar o barulho, aguardando a designação de um novo promotor, ou teriam de formar uma associação para serem admitidos em juízo? Da mesma forma, não estaria o morador de bairro residencial legitimado para ajuizar uma ação pleiteando a cessação ou limitação do barulho, em face de determinada instituição religiosa que celebre cultos, durante os finais de semana, a partir das seis horas da manhã, impedindo a tranquilidade e o descanso de toda a família?348

343 Lei 4.717/65 - Art. 9º Se o autor desistir da ação ou der motiva à absolvição da instância, serão publicados editais nos prazos e condições previstos no art. 7º, inciso II, ficando assegurado a qualquer cidadão, bem como ao representante do Ministério Público, dentro do prazo de 90 (noventa) dias da última publicação feita, promover o prosseguimento da ação. 344 Lei 4.717/65 –Art. 6º - § 4º O Ministério Público acompanhará a ação, cabendo-lhe apressar a produção da prova e promover a responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela incidirem, sendo-lhe vedado, em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato impugnado ou dos seus autores. 345 Lei 4.717/65 - Art. 18. A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível "erga omnes", exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. 346 Lei 4.717/65 - Art. 13. A sentença que, apreciando o fundamento de direito do pedido, julgar a lide manifestamente temerária, condenará o autor ao pagamento do décuplo das custas. 347 MANCUSO, 2013, p. 196, Op Cit. 348 Situação semelhante ocorreu em Brasília no ano de 2010, gerando grande repercussão na mídia local. Na ocasião, dois moradores vizinhos de uma tradicional igreja da cidade ajuizaram ação cujo pedido formulado era para que a Paróquia São Pedro de Alcântara se abstivesse de tocar os sinos da igreja, uma vez que os ruídos dos sinos ultrapassariam o nível máximo de ruído para o local. A Paróquia argumentou que os sinos tocam há mais de 30 anos e contam com o apoio maciço da vizinhança da igreja aos toques diários dos sinos, mencionando um abaixo-assinado contendo 678 assinaturas de moradores que pleiteiam o restabelecimento das badaladas dos sinos, além de declarações da escola e do hospital vizinhos à igreja, afirmando que os sinos não importunam nem os pacientes do hospital nem os alunos da escola. No caso concreto, apesar

Page 99: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

99

[...] Os interesses acima ventilados seriam coletivos, mais precisamente difusos. Por conseguinte, a limitação infraconstitucional da legitimação, com fulcro no art. 5º da Lei no 7.347/85 ou no art. 82 da Lei 8.078/90, estaria apta para excluir os indivíduos ameaçados ou lesados do direito de ação? A resposta parece ser negativa, diante do comando constitucional, inscrito principalmente nos princípios da inafastabilidade da prestação jurisdicional e do devido processo legal349.

Diante desses fundamentos, o citado autor defende que a solução seria a

ampliação definitiva do rol de legitimados, para incluir também o indivíduo como

legitimado para propor ação que envolva a proteção de interesses difusos e

coletivos, concluindo que:

O direito moderno, de matriz constitucional ou processual, vem apontando na direção do acesso à Justiça, da ampliação da legitimidade e da instrumentalidade do processo. A limitação da legitimação do indivíduo, diante de interesses individuais homogêneos, deixa de produzir resultados positivos; economia processual e judicial; maior acesso ao Judiciário; melhoria da prestação jurisdicional, em termos de tempo e qualidade, devido à redução do número de feitos; preservação do princípio da igualdade, etc. Mas em termos de interesses de natureza indivisível, o resultado é a denegação absoluta de Justiça350.

Seguindo essa linha de pensamento, o Anteprojeto do Código Brasileiro de

Processos Coletivos, em sua versão de fevereiro/2006, estabelecia, no artigo

19351, o rol dos colegitimados à propositura de ações coletivas, sendo que o inciso

de a discussão envolver direitos difusos, não foi questionada a legitimidade ativa dos dois moradores vizinhos e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios confirmou pedido de antecipação de tutela para que a Paróquia se abstivesse de tocar os sinos, sob pena de multa de R$ 1.000,00 por cada toque dos sinos, conforme ementa a seguir: DIREITO AO SOSSEGO. ÁREA RESIDENCIAL. USO DA PROPRIEDADE VIZINHA. OFENSA. O direito ao sossego, a todos assegurado (CC, art. 1.277), impede - sobretudo nas horas de repouso noturno - que o uso da propriedade vizinha, ainda que seja no exercício da liberdade de culto, incomode e traga transtorno ao morador de área residencial. Agravo não provido (Acórdão n.461178, 20100020136189AGI, Relator: ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO, Relator Designado: JAIR SOARES, 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 27/10/2010, Publicado no DJE: 11/11/2010. Pág.: 146) 349 MENDES, 2014, p. 266, Op Cit. 350 MENDES, 2014, p. 267, Op Cit. 351 Art. 19. Legitimação. São legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa: I – qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, demonstrada por dados como: a – a credibilidade, capacidade e experiência do legitimado; b – seu histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos difusos e coletivos; c – sua conduta em eventuais processos coletivos em que tenha atuado; II – o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos coletivos, e individuais homogêneos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, nos termos do inciso I deste artigo; O anteprojeto foi entregue ao Ministério da Justiça

Page 100: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

100

I atribuía a qualquer pessoa física a legitimidade ativa para a defesa dos

interesses ou direitos difusos. Para tanto, o anteprojeto determinou que o juiz

deveria verificar a representatividade adequada do indivíduo, a partir da análise

de dados como credibilidade, capacidade e experiência do legitimado, seu

histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos

metaindividuais e sua conduta em eventuais processos coletivos em que tenha

atuado. Ademais, quanto à ação coletiva para a defesa dos interesses coletivos

ou individuais homogêneos, o anteprojeto incluía entre os legitimados o membro

do grupo, categoria ou classe, cabendo ao juiz a análise de sua

representatividade adequada. Todavia, como se sabe, o Anteprojeto do Código

Brasileiro de Processos Coletivos não foi apresentado ao Congresso Nacional352

e, portanto, o indivíduo permanece excluído do rol dos colegitimados à

propositura de ações coletivas.

Márcio Flávio Mafra Leal propõe razões pelas quais a Lei da Ação Civil

Pública e o Código de Defesa do Consumidor não incluíram o indivíduo entre o rol

dos legitimados para a tutela coletiva, esclarecendo o seguinte:

E por que o legislador não conferiu legitimidade popular para, por exemplo, ações de controle de cláusulas de consumo abusivas ou para tutela de bens considerados de tutela difusa? A restrição se justifica para que o mercado e o Judiciário não fiquem sobrecarregados com ações sem importância, bem como para evitar a ameaça velada de uma imensa litigiosidade provocada por concorrentes disfarçados de autores populares. Uma eventual ampliação da legitimação nesse caso poderia inviabilizar economicamente alguma atividade e desencadearia uma grande insegurança jurídica. Além disso, o legislador prefere autores mais bem-preparados do ponto de vista da expertise sobre o assunto e, por isso, reserva a ação para aquelas entidades temáticas previstas nos arts. 5º da LACP e 82 do CDC353.

Pode-se concluir que o cidadão é legitimado para propor ação popular a fim

de pleitear a anulação de atos lesivos ao patrimônio público, nos termos da Lei no

4.717/65 e do artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal. Por outro lado, o

legislador excluiu o indivíduo do rol de legitimados para promover as ações

em dezembro de 2005, mas acabou não sendo apresentado ao Congresso Nacional (vide item 2.2) - Versão de fevereiro/2006. Disponível em http://www.pucsp.br/tutelacoletiva/download/cpbc_ versao24_02_2006.pdf. 352 Vide item 2.2. 353 LEAL, 2014, p. 86, Op Cit.

Page 101: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

101

coletivas previstas na Lei de Ação Civil Pública e no Código de Defesa do

Consumidor.

3.3.2.2 Entidades públicas

Conforme amplamente mencionado, o legislador brasileiro optou por um

modelo de legitimação misto e heterogêneo, conferindo legitimidade 1a

propositura de demandas coletivas a órgãos e entidades públicas e privadas,

tanto na Lei da Ação Civil Pública, como no Código de Defesa do Consumidor.

Ricardo de Barros Leonel enaltece a opção do legislador por incluir

entidades públicas no rol de legitimados do processo coletivo:

A concessão de legitimação para agir a órgãos públicos apresenta maior probabilidade de êxito na implementação da tutela coletiva, em virtude da melhor estruturação destes para a promoção da respectiva defesa em juízo, e ainda da possibilidade de adoção do princípio da indisponibilidade da ação, o que é inviável com relação ao particular legitimado354.

O artigo 5º da Lei no 7.347/85 determina que as entidades públicas

legitimadas para propor a ação civil pública são as seguintes: o Ministério Público;

a Defensoria Pública; a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios; a

autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista.

A esse respeito, veja-se, ainda que de forma breve, as principais

características das entidades públicas legitimadas para agir no processo coletivo

brasileiro, com destaque para o Ministério Público, que é atualmente “o legitimado

ativo mais atuante no campo do direito processual coletivo”355.

3.3.2.2.1 Legitimidade ativa do Ministério Público

De início, curioso observar que, antes da edição da Lei da Ação Civil

Pública, Barbosa Moreira, comentando a possibilidade de se atribuir a legitimação

354 LEONEL, 2011, p. 147-148, Op Cit. 355 ALMEIDA, 2003, p. 506, Op Cit.

Page 102: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

102

para agir em defesa dos interesses difusos a órgãos estatais, ressaltou a

preocupação em tornar ineficaz a proteção desses interesses quando a ameaça

ou lesão fosse ocasionada pelo próprio Poder Público. O autor observou que o

Ministério Público desempenhava um importante papel no campo do processo

penal, mas que ao Ministério Público, em nosso país, não se asseguram de modo

cabal as condições de independência de atuação de que precisaria para

eventualmente enfrentar a administração em juízo. Basta ver que, tanto no plano

federal quanto no estadual, os seus chefes (Procurador-Geral da República e

Procuradores-gerais de Justiça dos estados, respectivamente) são nomeados e

podem ser demitidos ad nutum pelos chefes do Poder Executivo (Presidente da

República, Governadores de estados)356.

Essa preocupação sobre o possível conflito de interesses do Ministério

Público tem lugar antes da Constituição Federal de 1988, levando em

consideração que:

Na sistemática constitucional anterior, o Ministério Público Federal exercia de forma ambígua e incompatível funções conflitantes: a representação judicial da União e as funções típicas de Ministério Público. A incompatibilidade ficava patente, pois à instituição restava por vezes o encargo de acionar, e em outras de defender, as mesmas pessoas jurídicas de direito público357.

Nenhuma dessas preocupações encontra respaldo após a promulgação da

Constituição de 1988, que ampliou o campo de atuação do Ministério Público,

assegurou-lhe autonomia administrativa e funcional358, estabeleceu os seus

princípios institucionais359 e conferiu garantias aos seus membros360, a fim de

356 MOREIRA, 1981, Op Cit. 357 LEONEL, 2011, p. 188, Op Cit. 358 CF/1988 – Art. 127 - § 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento. 359 CF/1988 – Art. 127 - § 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. 360 CF/1988 – Art. 128 - § 5º Leis complementares da União e dos estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: I - as seguintes garantias: a) vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado; b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria

Page 103: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

103

assegurar o exercício independente de suas funções. Ademais, a Constituição

consagrou o Ministério Público como “instituição permanente, essencial à função

jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime

democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”361.

Entre as funções mais relevantes atribuídas pela Constituição Federal de

1988 ao Ministério Público está a competência institucional para “promover o

inquérito civil e a ação civil pública, objetivando a proteção do patrimônio público e

social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”362. O inciso III

do artigo 129 conferiu status constitucional à ação civil pública e atribuiu ao

Ministério Público a legitimidade para a defesa judicial e administrativa dos

interesses difusos e coletivos.

Ao contrário do que temia Barbosa Moreira363, nos dias atuais é

inquestionável a importância do Ministério Público para a defesa dos direitos

difusos e coletivos, como observa Luís Roberto Barroso:

Na experiência brasileira, a proteção dos direitos difusos e coletivos gerou, ao longo dos anos, um volume de ações bastante mais significativo que o de demandas voltadas à promoção dos direitos individuais homogêneos. É possível especular diferentes razões para este fenômeno. Uma delas, certamente, é a atuação do Ministério Público, que figura como principal protagonista das ações civis públicas no direito brasileiro e cuja legitimação para agir recai, sobretudo, sobre aquelas espécies de direitos365.

O mesmo autor exibe levantamento, feito por Paulo Cezar Pinheiro

Carneiro, no qual foi constatado que mais de 60% das ações civis públicas

propostas no Rio de Janeiro na década de 1990 tiveram como autor o Ministério

Público364. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes atribui participação ainda maior

ao Parquet, ao mencionar que “na prática, a atuação do Ministério Público é

predominante, para não dizer absoluta. Estudos realizados nos estados do Rio de

absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa; c) irredutibilidade de subsídio, fixado na forma do art. 39, § 4º, e ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 150, II, 153, III, 153, § 2º, I; 361 CF/1988 – Art. 127, caput. 362 CF/1988 – Art. 129, III. 363 O autor temia que pudesse ser ineficaz a proteção dos interesses difusos por entidades públicas, tais como o Ministério Público, quando a ameaça ou lesão fosse ocasionada pelo próprio Poder Público. Vide nota 349. 364 BARROSO, 2005, p. 131-153, Op Cit.

Page 104: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

104

Janeiro e São Paulo acusaram a iniciativa do Parquet em cerca de 90% dos

processos coletivos”365.

Relevante observar que, quando a ação civil pública tiver como objeto a

tutela de direitos e interesses difusos e coletivos, a legitimação do Ministério

Público deve ser garantida no sentido irrestrito e mais amplo possível, a fim de

proporcionar tutela jurisdicional completa e compatível com a natureza e a

magnitude da lesão aos bens tutelados366. Nesse sentido, Ricardo de Barros

Leonel salienta que, quando o legislador reconheceu a legitimação do Ministério

Público, presumiu seu interesse material ou pertinência temática em relação a

qualquer interesse metaindividual, considerando-o verdadeiro defensor da

sociedade. Essa presunção é absoluta em relação aos interesses difusos e

coletivos em sentido estrito, que, por serem essencialmente metaindividuais,

possuem naturalmente relevância social. “Não há necessidade de

reconhecimento caso a caso de pertinência temática entre a atuação ministerial e

o objeto do litígio coletivo, que presumivelmente guarda interesse material a ser

promovido pelo Parquet”367.

Como visto, a legitimidade do Ministério Público é ampla para a tutela dos

interesses ou direitos difusos e coletivos. Por outro lado, no tocante aos

interesses individuais homogêneos, a defesa pelo Ministério Público possui

algumas peculiaridades, que serão abordadas a seguir.

A) Legitimidade ativa do Ministério Público para a defesa de direitos individuais

homogêneos

O artigo 129, III, da Constituição de 1988, ao atribuir competência ao

Ministério Público para promover a ação civil pública, utiliza a expressão outros

interesses difusos e coletivos, não fazendo menção expressa aos direitos

individuais homogêneos. Diante da omissão do texto constitucional, questionou-se

a possibilidade de atuação do Ministério Público em defesa dos interesses ou

direitos individuais homogêneos368.

365 MENDES, 2014, p. 257, Op Cit. 366 ZAVASCKI, 2007, p. 127, Op Cit, 367 LEONEL, 2011, p. 157, Op Cit. 368 Aluisio Gonçalves de Castro Mendes cita precedente do Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região, em julgamento realizado em 23.05.1995, que afastou a legitimidade do Ministério Público

Page 105: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

105

Apesar de o artigo 129 III da Constituição não fazer menção aos direitos

individuais homogêneos, o Ministério Público possui legitimidade para defendê-los

em juízo, conforme a seguir demonstrado.

O Código de Defesa do Consumidor, de forma expressa369, atribui ao

Ministério Público a legitimidade para a defesa coletiva dos direitos previstos no

parágrafo único do artigo 81 do Código, inclusive dos interesses ou direitos

individuais homogêneos, previstos em seu inciso III. Da mesma forma, a Lei

Orgânica Nacional do Ministério Público, Lei nº 8.625/93, prevê, de forma literal,

que incumbe ao Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública

para a proteção dos interesses individuais indisponíveis e homogêneos370. Tais

previsões encontram-se em conformidade com as atribuições institucionais do

Ministério Púbico previstas no artigo 129 da Constituição, especialmente o inciso

IX, que lhe atribui o exercício de outras funções que lhe forem conferidas, desde

que compatíveis com sua finalidade. E o caput do artigo 127 da Constituição

Federal inclui, entre as funções do Ministério Público, a defesa dos interesses

sociais e individuais indisponíveis371.

Defendendo a legitimidade do Ministério Público para a tutela de direitos

individuais homogêneos de forma ampla e sem restrições, Nelson Nery Júnior e

Rosa Maria de Andrade Nery esclarecem:

para a defesa de direitos individuais homogêneos, cujo trecho da ementa assim estabeleceu: Ação Civil Pública – Ilegitimidade ativa do Ministério Público – Direitos individuais homogêneos [...] É parte ilegítima o Ministério Público para a propositura de ação civil pública quando não se visa proteger interesses difusos ou coletivos. Com estes não devem ser confundidos os que, tipicamente, possuem características individuais de um grupo de determinado setor social (ApCiv 05076860-5) (MENDES, 2014, p. 259). 369 Lei 8.078/90 – Art. 82, I. 370 Lei 8.625/93 - Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público: [...] IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei: a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos; 371 MENDES, 2014, p. 259, Op Cit.

Page 106: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

106

O Ministério Público é parte legítima para ajuizar Ação Civil Pública, não apenas na defesa dos direitos difusos e coletivos (CF 129 III), mas de outros direitos individuais. A CF 129 IX autoriza a lei infraconstitucional a cometer outras atribuições ao MP, desde que compatíveis com sua função institucional de atuar no interesse público, defendendo os direitos sociais e os individuais indisponíveis (CF 127 caput). Assim, por exemplo, é constitucional e legítima a atribuição, pelo CDC 82 I, de legitimidade ao MP para o ajuizamento de ação coletiva na defesa de direitos individuais homogêneos, já que essa defesa coletiva é sempre de interesse social (CDC 1º), ditada no interesse público.

Os autores enfatizam, ainda, que a ação coletiva para a defesa de direitos

individuais homogêneos “é deduzida no interesse público em obter-se sentença

única, homogênea, com eficácia erga omnes da coisa julgada (CDC 103 III),

evitando-se decisões conflitantes”372.

No entanto, prevaleceu na doutrina e na jurisprudência o entendimento de

que a legitimidade para a defesa de direitos individuais homogêneos pelo

Ministério Público deve estar atrelada à defesa de interesse social relevante, em

conformidade com a sua finalidade e o âmbito de suas atribuições previstas nos

artigos 127 e 129 da Constituição Federal.

Nesse sentido é a posição de Teori Zavascki, para quem:

É indispensável, pois, que haja conformação entre o objeto da demanda e os valores jurídicos previstos no artigo 127 da CF, que atribui ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses sociais. A identificação dessa espécie de interesse social compete tanto ao legislador (como ocorreu, v.g. nas Leis nos 8.078/90, 7.913/89 e 6.024/74) como ao próprio Ministério Público, caso a caso, mediante o preenchimento valorativo da cláusula constitucional à vista de situações concretas e à luz dos valores e princípios consagrados no sistema jurídico, tudo sujeito ao crivo do Poder Judiciário, a quem caberá a palavra final sobre a adequada legitimação373.

Para ilustrar essa situação, Ricardo de Barros Leonel cita que:

372 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 658, Op Cit. 373 ZAVASCKI, 2014, p. 162, Op Cit,.

Page 107: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

107

Condôminos de um mesmo edifício que se insurjam contra um aumento indevido no valor da mensalidade do condomínio possuem interesses individuais homogêneos. Associados de um clube de lazer que questionem o aumento da mensalidade social também possuem interesses individuais homogêneos. Compradores de pequeno lote de veículos importados de altíssimo valor que sejam entregues com defeito de fabricação comum a todas aquelas unidades também possuem interesses individuais homogêneos. Mas tais interesses não possuem dimensão social que permita sua defesa pelo MP374.

Por essa razão, Luis Roberto Barroso argumenta:

O Ministério Público, instituição responsável pelo ajuizamento da grande maioria de ações civis públicas em matéria de direitos difusos e coletivos, tem sua atuação limitada quando se trate de direitos individuais homogêneos, somente tendo legitimação para agir quando (i) os direitos em disputa sejam indisponíveis ou (ii) haja interesse social relevante envolvido ou (iii) relevância social na tutela coletiva375.

Kazuo Watanabe também defende que “somente a relevância social do

bem jurídico tutelando ou da própria tutela coletiva poderá justificar a legitimação

do Ministério Público para a propositura de ação coletiva em defesa de interesses

privados disponíveis”376.

Pode-se considerar que há relevância social na tutela coletiva, por

exemplo, em situações em que o proveito individual é irrisório e insuficiente para

motivar indivíduos ou entidades privadas a ajuizarem a respectiva ação, mas a

lesão ao interesse coletivo se mostra relevante e significativa. Luis Roberto

Barroso, para ilustrar essa situação, cita o exemplo de produtor de leite que

adiciona água ao produto, causando pequena lesão ao direito individual, mas

obtendo grandes lucros indevidamente e causando um dano à coletividade377.

Kazuo Watanabe confirma que, em casos “de dispersão muito grande de

consumidores lesados e de insignificância da lesão na perspectiva individual,

haverá certamente relevância social na tutela coletiva, para que o fornecedor seja

obstado no prosseguimento da prática ilícita”378.

374 LEONEL, 2011, p. 157, Op Cit. 375 BARROSO, 2005, p. 131-153, Op Cit. 376 WATANABE, 2011, p. 86, Op Cit. 377 BARROSO, 2005, p. 131-153, Op Cit. 378 WATANABE, 2011, p. 89, Op Cit.

Page 108: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

108

Em virtude da discussão sobre o tema, o Conselho Superior do Ministério

Público do Estado de São Paulo editou o enunciado de Súmula nº 07, afirmando

que o Ministério Público está legitimado à defesa de interesses ou direitos

individuais homogêneos de consumidores ou de outros, que tenham relevância

social, podendo esta decorrer, exemplificativamente, da natureza do interesse ou

direito pleiteado, da considerável dispersão de lesados, da condição dos lesados,

da necessidade de garantia de acesso à Justiça, da conveniência de se evitar

inúmeras ações individuais e/ou de outros motivos relevantes379.

Da mesma forma, em diversas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal

reconheceu a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em

defesa de interesses individuais homogêneos, quando a matéria envolva

relevância social380.

Os Tribunais, em diversas oportunidades, foram instados a se manifestar

sobre a existência de interesse social que justificasse a propositura da ação

coletiva pelo Ministério Público para a defesa de interesses individuais

homogêneos, tendo reconhecido, por exemplo, que a ilegalidade de reajuste de

mensalidades escolares381, os interesses dos mutuários do Sistema Financeiro da

379 Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo (CSMP–SP) -Súmula n.º 7 - “O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos de consumidores ou de outros, entendidos como tais os de origem comum, nos termos do art. 81º, III, c/c o art.82, I, do CDC, aplicáveis estes últimos a toda e qualquer ação civil pública, nos termos do art. 21 da Lei da Ação Civil (LAC) 7.347/85, que tenham relevância social, podendo esta decorrer, exemplificativamente, da natureza do interesse ou direito pleiteado, da considerável dispersão de lesados, da condição dos lesados, da necessidade de garantia de acesso à justiça, da conveniência de se evitar inúmeras ações individuais e/ou de outros motivos relevantes (ALTERADA A REDAÇÃO NA SESSÃO DO CSMP DE 27.11.12 – Pt. nº 51.148/10). 380 Neste sentido: Ementa: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS DISPONÍVEIS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRECEDENTES. 1. O Ministério Público possui legitimidade para propor ação civil coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos de relevante caráter social, ainda que o objeto da demanda seja referente a direitos disponíveis (RE 500.879-AgR, rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe de 26-05-2011; RE 472.489-AgR, rel. Min. Celso De Mello, Segunda Turma, DJe de 29-08-2008). 2. Agravo regimental a que se nega provimento (RE 401482 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 04/06/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 20-06-2013 PUBLIC 21-06-2013). E ainda: EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. Ação civil pública. Interesses individuais homogêneos de relevância social. Legitimidade ativa do Ministério Público para seu ajuizamento reconhecida. 1. Em ações civis públicas em que se discutem interesses individuais homogêneos, dotados de grande relevância social, reconhece-se a legitimidade ativa do Ministério Público para seu ajuizamento. 2. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pacífica, nesse sentido. 3. Agravo regimental não provido (RE 328910 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 02/08/2011, DJe-188 DIVULG 29-09-2011 PUBLIC 30-09-2011 EMENT VOL-02598-01 PP-00037) 381 STF - SÚMULA 643: O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública cujo fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades escolares.

Page 109: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

109

Habitação (SFH)382, a cobrança de tarifas abusivas em contratos bancários383,

entre outros, são assuntos nos quais há interesse social relevante envolvido e,

portanto, o Ministério Público possui legitimidade para propor a respectiva ação

coletiva.

Sendo assim, resta demonstrada a possibilidade de o Ministério Público

atuar na defesa de direitos individuais homogêneos, mas a doutrina e a

jurisprudência pacificaram o entendimento de que sua legitimidade deve ser

verificada de acordo com o caso concreto e observando o interesse social

envolvido na demanda.

B) Legitimidade do Ministério Público para impetração de Mandado de Segurança

Coletivo

O inciso LXX384, do artigo 5º da CF/1988, atribui a legitimidade ativa para

impetrar o mandado de segurança a partidos políticos com representação no

Congresso Nacional, bem como a organizações sindicais, entidades de classe ou

associações legalmente constituídas.

Todavia, há divergência se o rol previsto no inciso LXX deve ser

considerado taxativo, restringindo a legitimidade para a impetração coletiva

somente aos entes ali previstos, ou se seria meramente exemplificativo, admitindo

outros entes legitimados para a impetração de mandado de segurança coletivo,

por exemplo, o Ministério Público. A nova Lei do Mandado de Segurança (Lei nº

12.016/09) não solucionou essa controvérsia, na medida em que também foi

382 STJ – O Ministério Público tem legitimidade ad causam para propor ação civil pública com a finalidade de defender interesses coletivos e individuais homogêneos dos mutuários do Sistema Financeiro da Habitação. Precedentes (REsp 1114035/PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 23/10/2014. 383 STJ - A jurisprudência maciça desta Corte reconhece a legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública com o intuito de discutir a cobrança de tarifas/taxas supostamente abusivas, estipuladas em contratos bancários, por se cuidar de tutela de interesses individuais homogêneos do consumidores/usuários do serviço bancário (art. 81, III, da Lei nº 8.078/90). Precedentes. Inexistência de verossimilhança no concernente às alegações de ilegitimidade do Parquet e de impossibilidade jurídica do pedido (AgRg no AREsp 78.949/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/10/2013, DJe 09/10/2013). 384 CF – Art. 5º - LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;

Page 110: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

110

silente quanto à possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo

pelo Ministério Público.

Surgiram, então, duas correntes de pensamento, sendo que a primeira

defende uma interpretação restritiva do dispositivo constitucional, enquanto a

segunda entende que a norma constitucional deve ser interpretada de forma

ampliativa, admitindo outros legitimados para a impetração do mandado de

segurança coletivo, além dos previstos expressamente na Constituição e na Lei no

12.016/09.

Os que defendem a tese restritiva afirmam que o rol dos legitimados

previsto no inciso LXX do artigo 5º é taxativo e não admite a impetração coletiva

por entes diversos dos indicados. Em consonância, Humberto Theodoro Júnior

destaca que a Constituição de 1988 reconheceu a ação civil pública e o inquérito

civil como forma de tutela coletiva a cargo do Ministério Público. Portanto, o autor

defende que a tutela dos interesses sociais e coletivos pelo Ministério Público não

necessariamente deve ser realizada pela via do mandado de segurança. E

ressalta que “poderia a esses remédios processuais ser acrescido o mandado de

segurança coletivo, sem dúvida. Isto, porém, dependeria de vontade político-

legislativa, que teria liberdade de fazê-lo ou não fazê-lo, sem que tal configurasse

ofensa às funções e encargos constitucionais do Ministério Público ou do Poder

Público em geral”385. Assim, o legislador constituinte teria optado por não incluir o

Ministério Público no rol de legitimados para a impetração coletiva e a lei no

12.016/09 refletiu a intenção da Constituição na legislação infraconstitucional386.

Por outro lado, diversos autores defendem que a enumeração do artigo 5º,

inciso LXX, é apenas exemplificativa, reconhecendo a legitimidade ativa do

Ministério Público para a impetração coletiva. De fato, não parece razoável

afirmar que o rol de legitimados para a impetração do mandado de segurança é

taxativo e exclui a legitimidade do Ministério Público para a impetração coletiva,

haja vista que a própria Constituição Federal atribui ao Parquet a proteção dos

direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos387.

385 THEODORO JR., 2010a, p. 20, Op Cit. 386 AMARAL, Paulo Osternack; SILVA, Ricardo Alexandre. Mandado de segurança coletivo. Revista Dialética de Direito Processual, n. 105, p. 88-103, dez. 2011. 387 CAMBI, Eduardo; HAAS, Adriane. Legitimidade do Ministério Público para impetrar mandado de segurança coletivo. Revista de Processo, v. 203/2012, pp. 121-147, jan, 2012.

Page 111: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

111

Apesar do silêncio do artigo 5º, inciso LXX, da Constituição e do artigo 21

da Lei no 12.016/09, Cassio Scarpinella Bueno leciona que a legitimidade ativa do

Ministério Público decorre da própria Constituição e da legislação

infraconstitucional, observando que:

O silêncio do artigo 21, caput¸ da Lei no 12.016/2009 não afasta a legitimidade do Ministério Público para a impetração do mandado de segurança coletivo. Ela, embora não seja prevista expressamente pelo inciso LXX do art. 5º da CF/88, decorre imediatamente das finalidades institucionais daquele órgão tais quais definidas pelos arts. 127 e 129, III, da mesma Carta e, infraconstitucionalmente, pelo art. 6º, VI, da Lei Complementar (LC) 75/1993, para o Ministério Público da União, e no art. 32, I, da Lei no 8.625/1993 para o Ministério Público dos Estados388.

Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Júnior, por sua vez, defendem que é

inconstitucional qualquer interpretação do artigo 21 da Lei no 12.016/09 que não

reconheça a legitimidade ativa dos demais legitimados à tutela coletiva, tais como

o Ministério Público e a Defensoria Pública, para a impetração de mandado de

segurança coletivo, pois:

Partindo da premissa de que um direito fundamental pode sofrer restrições por lei infraconstitucional, desde que essa restrição encontre fundamento constitucional, pergunta-se: qual a justificativa constitucional para a restrição do direito fundamental de acesso à justiça por meio do mandado de segurança ao Ministério Público, associações civis e outros legitimados não mencionados no inciso LXX do art. 5º da CF/88? Nenhuma389.

O simples fato de o Ministério Público ser legitimado para a ação civil

pública é argumento para lhe assegurar a legitimidade para a impetração de

mandado de segurança coletivo, conforme destaca José Maria Rosa Tesheiner:

“é que o mandado de segurança coletivo não é senão uma ação coletiva com

outro rito. Dizer-se que o Ministério Público tem legitimidade para uma e não para

a outra teria a mesma lógica da afirmação da legitimidade de Tício somente para

ações de rito ordinário”390.

388 BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 127. 389 DIDIER JR.; ZANETI JR., 2010, Op Cit. 390 TESHEINER, José Maria Rosa. Mandado de Segurança Coletivo. Revista de Processo, v. 182, p. 9-16, abril, 2010.

Page 112: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

112

Se o Ministério Público pode pleitear em juízo a afirmação de um direito

coletivo por meio de um procedimento comum, também poderia fazê-lo por meio

do procedimento especial do mandado de segurança coletivo391. Não faria sentido

que ao Parquet fosse vedada a utilização de um procedimento mais ágil para a

tutela coletiva, quando suas alegações pudessem ser demonstradas de plano392.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão de relatoria do

Ministro Luiz Fux, reconheceu a legitimidade ativa do Ministério Público para a

impetração de mandado de segurança coletivo393.

Por fim, importante destacar que o mesmo raciocínio vale para a

Defensoria Pública, como ressalta Nelson Nery Júnior: “apesar do silêncio da

Constituição e da lei, não pode ser afastada a legitimação ativa do Ministério

Público e da Defensoria Pública ao mandado de segurança coletivo, por força de

seus misteres constitucionais e institucionais”394.

3.3.2.2.2 Legitimidade ativa da Defensoria Pública

A Defensoria Pública foi incluída no rol de legitimados para a propositura

da ação civil pública, em virtude da edição da Lei no 11.448395, de 15 de janeiro de

391 DIDIER JR.; ZANETI JR., 2010, Op Cit. 392 ROQUE, Andre Vasconcelos; DUARTE, Francisco Carlos. Aspectos polêmicos do mandado de segurança coletivo: Evolução ou retrocesso? Revista de Processo, v. 203/2012, p. 39-72, jan/2012. 393 [...] 1. O Ministério Público está legitimado a defender os interesses transindividuais, quais sejam, os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos. 2. É que a Carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração, com a eleição dos valores imateriais do art. 37 da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um microssistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da Administração Pública, nele encartando-se a ação popular, a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo como instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas. 3. Deveras, é mister concluir que a nova ordem constitucional erigiu um autêntico “concurso de ações” entre os instrumentos de tutela dos interesses transindividuais e, a fortiori, legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos. 4. Legitimatio ad causam do Ministério Público à luz da dicção final do disposto no art. 127 da CF, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis[...]. [...] 21. Recurso especial provido (REsp 736.524/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/03/2006, DJ 03/04/2006, p. 256). 394 NERY JR., 2011, p. 263, Op Cit. 395 Art. 1º - “Esta Lei altera o art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública, legitimando para a sua propositura a Defensoria Pública. Art. 2º - O art. 5º da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 5º - Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: [...] II - a Defensoria Pública; [...]’ Art. 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”

Page 113: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

113

2007, que alterou a redação do inciso II no artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública

(Lei no 7.347/85).

Pouco após a entrada em vigor da Lei no 11.448/07, a Associação Nacional

dos Membros do Ministério Público propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade

(ADI 3943) questionando a validade constitucional da alteração promovida no art.

5º, inc. II, da Lei no 7.347/85, em virtude do reconhecimento da legitimidade da

Defensoria Pública para a propositura de ação civil pública. A Associação

argumentou que a Defensoria Pública não poderia atuar na defesa de interesses

difusos, coletivos ou individuais homogêneos, pois teria sido criada para atender,

gratuitamente, os necessitados, que deveriam ser, pelo menos, individualizáveis

ou identificáveis, sob pena de afrontar os arts. 5º, LXXIV, e 134, ambos da

Constituição Federal.

No entanto, Ada Pellegrini Grinover, de maneira precisa, acrescenta que “o

art. 134396 da CF não coloca limites à atribuição da Defensoria Pública”, que vem

atuando de forma intensa na defesa dos interesses difusos, contribuindo para a

máxima eficácia das normas constitucionais e ampliando o acesso à justiça. E

conclui que “a exegese do texto constitucional, que adota um conceito jurídico

indeterminado autoriza o entendimento de que o termo necessitados não abrange

apenas os economicamente necessitados, mas também os necessitados do ponto

de vista organizacional, ou seja, os socialmente vulneráveis”. Assim, “ainda que a

função obrigatória e precípua da Defensoria Pública seja a defesa dos

economicamente carentes, o texto constitucional não impede que a Defensoria

Pública exerça outras funções, ligadas ao procuratório, estabelecidas em lei”397.

O Supremo Tribunal Federal, em julgamento realizado em maio de 2015,

julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.943398,

396 CF/1988 - Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014). 397 GRINOVER, Ada Pellegrini. Legitimação da Defensoria Pública à ação civil pública. In: O processo: estudos e pareceres. 2. ed. São Paulo: DPJ, 2009a, p. 615-633. 398 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO À JUSTIÇA. NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS

Page 114: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

114

reconhecendo a constitucionalidade do art. 5º, inc. II, da Lei no 7.347/85, com a

redação dada pela Lei nº 11.448/07, e a legitimidade ativa da Defensoria Pública

para ajuizar ação civil pública para a tutela dos interesses transindividuais e

individuais homogêneos.

Por essas razões, não restam dúvidas sobre a legitimidade da Defensoria

Pública para a propositura de ação civil pública, sendo que, antes mesmo do

julgamento da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Superior Tribunal

de Justiça399 vinha reconhecendo a legitimidade da Defensoria Pública para

HERMENÊUTICOS GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º, INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE (ADI 3943, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-154 DIVULG 05-08-2015 PUBLIC 06-08-2015). 399 ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO À EDUCAÇÃO. ART. 13 DO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. DEFENSORIA PÚBLICA. LEI 7.347/85. PROCESSO DE TRANSFERÊNCIA VOLUNTÁRIA EM INSTITUIÇÃO DE ENSINO. LEGITIMIDADE ATIVA. LEI 11.448/07. TUTELA DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. [...] 4. A Defensoria Pública, instituição altruísta por natureza, é essencial à função jurisdicional do Estado, nos termos do art. 134, caput, da Constituição Federal. A rigor, mormente em países de grande desigualdade social, em que a largas parcelas da população - aos pobres, sobretudo, - nega-se acesso efetivo ao Judiciário, como ocorre infelizmente no Brasil, seria impróprio falar em verdadeiro Estado de Direito sem a existência de uma Defensoria Pública nacionalmente organizada, conhecida de todos e por todos respeitada, capaz de atender aos necessitados da maneira mais profissional e eficaz possível. 5. O direito à educação legitima a propositura da Ação Civil Pública, inclusive pela Defensoria Pública, cuja intervenção, na esfera dos interesses e direitos individuais homogêneos, não se limita às relações de consumo ou à salvaguarda da criança e do idoso. Ao certo, cabe à Defensoria Pública a tutela de qualquer interesse individual homogêneo, coletivo stricto sensu ou difuso, pois sua legitimidade ad causam, no essencial, não se guia pelas características ou perfil do objeto de tutela (= critério objetivo), mas pela natureza ou status dos sujeitos protegidos, concreta ou abstratamente defendidos, os necessitados (= critério subjetivo). 6. "É imperioso reiterar, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que a legitimatio ad causam da Defensoria Pública para intentar ação civil pública na defesa de interesses transindividuais de hipossuficientes é reconhecida antes mesmo do advento da Lei 11.448/07, dada a relevância social (e jurídica) do direito que se pretende tutelar e do próprio fim do ordenamento jurídico brasileiro: assegurar a dignidade da pessoa humana, entendida como núcleo central dos direitos fundamentais" (REsp 1.106.515/MG, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 2.2.2011). 7. Recurso Especial provido para reconhecer a legitimidade ativa da Defensoria Pública para a propositura da Ação Civil Pública. (REsp 1264116/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/10/2011, DJe 13/04/2012) No mesmo sentido: PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. DEFENSORIA PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA. ART. 5º, II, DA LEI Nº 7.347/1985 (REDAÇÃO DA LEI Nº 11.448/2007). PRECEDENTE. 1. Recursos especiais contra acórdão que entendeu pela legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ação civil coletiva de interesse coletivo dos consumidores. 2. Este Superior Tribunal de Justiça vem se posicionando no sentido de que, nos termos do art. 5º, II, da Lei nº 7.347/85 (com a redação dada pela Lei nº 11.448/07), a Defensoria Pública tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar em ações civis coletivas que buscam auferir responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. 3. Recursos especiais

Page 115: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

115

propor ação coletiva, em defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e

individuais homogêneos.

3.3.2.2.3 União, estados, Distrito Federal e municípios e órgãos da administração

indireta

A Lei da Ação Civil Pública400 e o Código de Defesa do Consumidor401

conferem legitimidade à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios,

além das autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia

mista, para o ajuizamento de ação civil pública para a tutela de direitos difusos,

coletivos ou individuais homogêneos. A legitimação dos entes púbicos tem

fundamento constitucional402, haja vista que a própria Constituição prevê como

dever do Estado, por exemplo, a defesa do consumidor403 ou o zelo pelo

patrimônio histórico e público404.

Defendendo que a legitimidade dos entes públicos da administração direta

é ampla, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery asseveram:

não providos. (REsp 912.849/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 26/02/2008, DJe 28/04/2008). 400 Lei 7.347/85 - Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: III - a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; 401 Lei 8.078/90 - Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: II - a União, os estados, os municípios e o Distrito Federal; 402 WATANABE, 2011, p. 94, Op Cit. 403 CF, Art. 5º, XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; 404 CF, Art. 23. É competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios: I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; [...] III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

Page 116: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

116

Não há nenhuma exigência da lei para que os órgãos da administração direta estejam legitimados à propositura da Ação Civil Pública (ACP). O Estado federado do sul, por exemplo, pode ajuizar ACP na defesa do meio ambiente do Amazonas, porque o interesse processual na ACP é aferível em razão da qualidade do direito tutelado: difuso, coletivo ou individual homogêneo. Quando o Estado move ACP, não está ali na tutela de direito seu, individual, mas de direito que transcende a individualidade. Para a correta solução dos problemas processuais decorrentes da tutela jurisdicional dos direitos difusos e coletivos, não se pode raciocinar com o instituto de interesse processual, como se estivéssemos diante de tutela meramente individual. Assim, o estado de São Paulo, legitimado que está pela norma comentada, tem ipso facto, interesse processual em ajuizar ACP no Amazonas, para a tutela de direitos difusos405.

Noutro giro, para os entes da administração indireta (autarquias, empresas

públicas e sociedades de economia mista), Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de

Andrade Nery ressaltam que “a legitimidade desses órgãos se caracteriza desde

que, dentre os objetivos institucionais do órgão da administração indireta, se

inclua a defesa de um dos direitos tutelados pela LACP”406.

Todavia, o entendimento majoritário é pela necessidade de observância da

pertinência temática entre a atuação do legitimado e o caso concreto. Assim, a

atuação dos entes públicos, sejam da administração direta ou indireta, está

limitada aos casos em que haja pertinência com a sua finalidade institucional e

esteja dentro de seus limites de atuação407.

Quanto aos limites de atuação dos entes públicos, Hugo Nigro Mazzilli

observa que o interesse de agir das pessoas jurídicas de Direito Público deve ser

aferido diante do caso concreto, alegando que, “embora em tese tenham elas até

mesmo o dever de defender o meio ambiente, o consumidor e outros valores

transindividuais, nem sempre estará presente o interesse concreto em fazê-lo”408.

Para ilustrar essa situação, o autor menciona que um município do Rio Grande do

Sul pode não ter interesse em ajuizar ação civil pública para a defesa de um

interesse paisagístico no Rio Grande do Norte.

Ainda nesse sentido, Kazuo Watanabe acrescenta:

405 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 197, Op Cit. 406 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 197, Op Cit. 407 LEONEL, 2011, p. 159, Op Cit. 408 MAZZILLI, 2014, p. 98-99, Op Cit.

Page 117: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

117

Se nenhum nexo mantém, porque os consumidores pertencem a outro município ou a estado diverso, evidentemente a legitimação ad causam não lhes diz respeito. Todavia, se os interesses ameaçados ou lesados guardam ligação com vários municípios, qualquer deles poderá tomar a iniciativa da demanda. O mesmo ocorre com os estados, cuja atribuição mais significante é relativa aos interesses regionais, estaduais e interestaduais. Em linha de princípio, a União deverá se preocupar com os interesses de âmbito nacional, mas nada obsta a que adote a iniciativa de tutela de interesses locais ou regionais mormente na omissão dos demais colegitimados409.

Exemplo bastante ilustrativo é o trazido por Ricardo de Barros Leonel:

Exemplificando, determinado município evidentemente é habilitado a promover a defesa em juízo de interesses difusos relacionados ao meio ambiente410. É presumível seu interesse em atuar, não havendo necessidade de demonstrar pertinência entre sua legitimação e o objeto da tutela. Entretanto, somente poderá fazê-lo dentro do âmbito material e geográfico de suas competências constitucionais. Está habilitado a promover a demanda coletiva para a defesa dos atos que ocasionem danos a rios, florestas, parques situados na sua própria área territorial, mas não em outro município. Salvo se o dano não for exclusivo àquele ente (v.g., o dano material), caso em que o equacionamento do problema poderá ser diverso, dependendo de outras regras relacionadas à competência e à prevenção411.

Apesar da legitimidade atribuída aos entes públicos, parte da doutrina412

defende que tais entes não têm se utilizado com regularidade de tal instrumento,

como alerta Rodolfo de Camargo Mancuso:

É preocupante o fato de que a existência de uma democracia participativa, a par do apelo constitucional ao pluralismo na legitimação ativa para a ação civil pública (CF, ar. 129, III e § 1º), parece não ter seduzido os entes políticos, que muitas vezes passam ao largo desse poder-dever que lhes vem cometido, inclusive na legislação infraconstitucional, como, por exemplo, previsto na lei sobre atos de improbidade administrativa (Lei no 8.429/92, art. 17). Por conta disso, vem o Ministério Público assumindo a maioria absoluta das iniciativas nesse campo,

409 WATANABE, 2011, p. 94, Op Cit. 410 CF, Art. 23, VI. 411 LEONEL, 2011, p. 159, Op Cit. 412 Aluisio Gonçalves de Castro Mendes afirma que a propositura de ações coletivas por esses órgãos é “caso raro de acontecer, quase inexistente, na verdade”. MENDES, 2014, p. 257, Op Cit.

Page 118: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

118

secundado pelas associações voltadas à defesa dos interesses metaindividuais413.

3.3.2.2.4 Órgãos públicos sem personalidade jurídica

Além de ampliar a legitimação para agir, o Código de Defesa do

Consumidor atribuiu legitimidade ativa a entidades e órgãos da Administração

Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica414. Tal inclusão

se mostrou necessária para que órgãos públicos, especializados na proteção do

consumidor e atuantes no âmbito administrativo, como o Programa de Proteção e

Defesa do Consumidor (PROCON), pudessem agir em juízo na defesa dos

consumidores415.

Portanto, esses órgãos públicos, apesar de não possuírem personalidade

jurídica, passam a ter personalidade judiciária, podendo demandar em juízo

coletivamente, representados por advogado público ou outro a que o diretor do

ente despersonalizado tenha conferido poderes para propor a ação coletiva416.

Assim como ocorre com os demais entes públicos, é preciso verificar a

pertinência temática entre o ramo de atuação do órgão público sem personalidade

jurídica e o fundamento da demanda coletiva a ser proposta. Portanto, “entidade

despersonalizada de defesa do consumidor não poderia, a princípio, propor

demanda em defesa do patrimônio histórico”417.

A atuação dos órgãos públicos na defesa dos interesses difusos, coletivos

e individuais homogêneos ocorre de forma rara e discreta, sendo ressalvada a

ativa atuação dos PROCONs em defesa dos consumidores, mas que ainda ocorre

principalmente na esfera extrajudicial418.

413 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 12. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 170. 414 Lei 8.078/90 – Art. 82, III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; 415 WATANABE, 2011, p. 94, Op Cit. 416 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 624, Op Cit. 417 LEONEL, 2011, p. 161, Op Cit. 418 MENDES, 2014, p. 257, Op Cit.

Page 119: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

119

3.3.2.3 Associações

De acordo com o artigo 5º 419 da Lei da Ação Civil Pública e o art. 82420 do

Código de Defesa do Consumidor, possuem legitimidade para propor ação

coletiva as associações civis constituídas há pelo menos um ano que incluam,

entre suas finalidades institucionais, a proteção de direitos difusos e coletivos,

dispensada a autorização assemblear. Oportuno destacar que o termo

“associações”, utilizado tanto no CDC como na LACP, deve ser entendido de

forma ampla, abrangendo os sindicatos, as cooperativas e todas as demais

formas de associativismo421.

Especialmente em relação aos sindicatos, a Constituição lhes atribuiu

expressamente a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da

categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas422. Por essa razão, é

ampla a sua legitimidade para a defesa coletiva dos interesses da categoria,

fazendo com que o Tribunal Superior do Trabalho cancelasse a Súmula de nº

310, que vedava a substituição processual pelo sindicato423.

A legislação estabeleceu requisitos para o ajuizamento de ações coletivas

pelas associações, quais sejam: estar constituída há pelo menos um ano (pré-

constituição) e ter incluída entre suas finalidades institucionais a proteção de

direitos coletivos (pertinência temática)424. Portanto, pode-se dizer que no direito

brasileiro a legitimidade das associações é aferível ope legis, sendo suficiente que

a associação cumpra os requisitos estabelecidos na lei para que seja considerada

legitimada ativa para a propositura de ação coletiva. Isso vai de encontro à class

action norte-americana, na qual a legitimidade é verificada ope judicis, cabendo 419 Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: [...][...] V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. 420 Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: [...] IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear. 421 WATANABE, 2011, p. 95, Op Cit. 422 CF – Art. 8º, III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; 423 TST - Súmula nº 310 - SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. SINDICATO (cancelamento mantido) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 e republicada DJ 25.11.2003 - I - O art. 8º, inciso III, da Constituição da República não assegura a substituição processual pelo sindicato. 424 CAVALCANTI, 2015, p. 233, Op Cit.

Page 120: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

120

ao juiz verificar se a associação possui representatividade adequada dos

membros da categoria que representa425.

Ressaltando que no ordenamento jurídico brasileiro não é possível o

controle ope judicis de legitimidade, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade

Nery advertem que “não tem lugar, por ser ilegal, outra exigência ou distinção,

principalmente tendo em vista a qualidade da entidade, que restrinja a legitimação

para agir das associações, fora das hipóteses expressamente enunciadas”426.

O requisito da pré-constituição da associação há pelo menos um ano visa

evitar a criação de associações de ocasião, com a finalidade precípua de

promover ações civis públicas por razões políticas ou qualquer outra razão que

não esteja associada à defesa dos direitos coletivos427. Todavia, há casos em que

a associação é constituída ex post factum428 e, por essa razão, o requisito da pré-

constituição não é absoluto, podendo o juiz dispensá-lo, quando houver manifesto

interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano ou pela

relevância do bem jurídico a ser protegido429. Utilizando desse permissivo legal,

em algumas ocasiões o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade

de dispensa da pré-constituição da associação430.

Por outro lado, o requisito da pertinência temática exige que a associação

defenda interesses que estejam entre os fins institucionais da entidade. Para

ilustrar essa situação, Ricardo de Barros Leonel cita que “não haveria razão para

425 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 197, Op Cit. 426 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 197-198, Op Cit. 427 CAVALCANTI, 2015, p. 233, Op Cit. 428 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 198, Op Cit. 429 Lei 7.347/85 – Art. 5º, § 4.° O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido; Lei 8.078/90 – Art. 82, § 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. 430 AÇÃO COLETIVA. ASSOCIAÇÃO DE MORADORES. REQUISITOS TEMPORAL. DISPENSA. POSSIBILIDADE. DIREITO INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. INTERESSE DE AGIR. EXISTÊNCIA.1 - É dispensável o requisito temporal da associação (pré-constituição há mais de um ano) quando presente o interesse social evidenciado pela dimensão do dano e pela relevância do bem jurídico a ser protegido (REsp 706.449/PR, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 26/05/2008, DJe 09/06/2008). E ainda: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONJUNTO RESIDENCIAL. MUTUÁRIOS. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. MUDANÇA DOS MORADORES DIANTE DO RISCO DE DESABAMENTO. REQUISITO DA PRÉ-CONSTITUIÇÃO HÁ UM ANO DISPENSADO. Presente o interesse social evidenciado pela dimensão do dano e apresentando-se como relevante o bem jurídico a ser protegido, pode o juiz dispensar o requisito da pré-constituição superior a um ano da associação autora da ação. Recurso especial não conhecido (REsp 520.454/PE, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 15/04/2004, DJ 01/07/2004, p. 204).

Page 121: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

121

que, v.g., uma associação criada para a defesa do meio ambiente demandasse

em juízo com relação a problemas inerentes às relações de consumo, ou vice-

versa”431. Da mesma forma, Teori Albino Zavascki preconiza que “quem se filia à

associação destinada à pesca submarina não o faz imaginando que a entidade vá

tutelar seus direitos relacionados a questões fiscais ou às suas relações

condominiais ou de vizinhança”432.

O governo criou outros obstáculos para o acesso das associações à justiça

com a edição da Medida Provisória no 2.180-35/2001, que incluiu o artigo 2º-A na

Lei no 9.494/97. O caput do referido artigo limitou a abrangência da ação coletiva

proposta pela entidade associativa apenas aos substituídos com domicílio no

âmbito da competência territorial do órgão prolator da sentença433. Todavia,

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery acreditam que:

Para a ação coletiva, onde a associação age em nome próprio, não há necessidade de a associação fornecer lista com o nome dos associados ou das pessoas que seriam beneficiadas com a sentença coletiva. Somente no caso de representação dos associados pela associação (CF 5º, XXI), que age em nome alheio, é que essa providência se justifica434.

Quanto à necessidade de autorização assemblear para que a associação

possa ajuizar a ação coletiva, Ricardo de Barros Leonel registra:

A dispensa de autorização em assembleia para que a associação possa demandar decorre da própria essência do fenômeno. Se a entidade é constituída com o escopo de promover a defesa judicial daqueles interesses supraindividuais, não há razão para que, em cada nova demanda coletiva, seja promovida deliberação em assembleia para autorização435.

431 LEONEL, 2011, p. 162, Op Cit. 432 ZAVASCKI, 2014, p. 163, Op Cit,. 433 Lei 9.494/97 – Art. 2º-A - A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001) 434 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 198, Op Cit. 435 LEONEL, 2011, p. 162, Op Cit.

Page 122: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

122

No entanto, a Medida Provisória no 2.180-35/2001436 criou exceção a essa

regra ao exigir a autorização em assembleia para que as entidades associativas

pudessem mover ações coletivas contra a União, os estados, o Distrito Federal,

os municípios e suas autarquias e fundações, além da necessidade de incluir a

relação nominal dos filiados e indicação dos respectivos endereços.

Todavia, a doutrina defende a inconstitucionalidade desses obstáculos às

ações coletivas, criados pelo parágrafo único do artigo 2º-A, da Lei no 9.494/97,

conforme a lição de Kazuo Watanabe:

Flagrantemente inconstitucional por ferir a igualdade e obstaculizar o acesso à justiça do ponto de vista processual, o dispositivo confunde a figura da representação, para a qual a própria Constituição prevê a necessidade de autorização dos associados (art. 5º, inc. XXI), com a da legitimação às ações coletivas, introduzindo regra própria dos processos individuais, em que as associações litigam em nome próprio, representando os associados, para os processos de índole coletiva, em que as associações agem por direito próprio437.

Da mesma forma, Ricardo de Barros Leonel critica as restrições às ações

coletivas impostas pela Medida Provisória no 2.180-35/2001, afirmando:

Tais alterações foram e são inadequadas e incompreensíveis, permitindo que se avente sua real motivação: a proteção da administração pública (mormente a Federal) contra eventuais investidas judiciais com o escopo de ultimar abusos perpetrados a pretexto de reformas da previdência, da administração e tributária, em nível constitucional e infraconstitucional, que violam direitos e garantias fundamentais e não encontrarão via de acesso à justiça para o litígio simplesmente individual438.

Apesar dos sólidos argumentos em favor da inconstitucionalidade da

exigência de autorização assemblear e da apresentação do rol de associados

com seus respectivos endereços, o Supremo Tribunal Federal, em caso com

Repercussão Geral reconhecida, definiu que não basta permissão estatutária

genérica, devendo as associações apresentarem autorização individual ou ata de

436 Lei 9.494/97 – Art. 2º-A, Parágrafo único. Nas ações coletivas propostas contra a União, os estados, o Distrito Federal, os municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembleia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001). 437 WATANABE, 2011, p. 96, Op Cit. 438 LEONEL, 2011, p. 168, Op Cit.

Page 123: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

123

assembleia específica autorizando o ajuizamento da demanda coletiva, além da

lista de associados e seus respectivos endereços439.

Finalmente, importante anotar que, buscando evitar abusos na propositura

de ações coletivas por associações, o legislador previu sanções para as hipóteses

de litigância de má-fé440, estabelecendo punições tanto para as associações

como também para os diretores responsáveis pela propositura da ação441.

3.3.3 Representatividade adequada

O controle da representatividade adequada pode ocorrer de forma prévia

pelo legislador (ope legis), indicando os requisitos necessários para que

determinado corpo intermediário atue em nome de uma coletividade ou mediante

controle do juiz (ope judis) que, diante do caso concreto, deverá apurar se o autor

da ação coletiva reúne as condições para cumprir a representação

adequadamente442. O Projeto de Lei da Ação Civil Pública apresentado pelo

Deputado Federal paulista Flávio Bierrenbach, como resultado dos trabalhos de

comissão formada pelos professores da Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe

e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, incluía a via do controle da

representatividade adequada pelo juiz. Todavia, nesse aspecto, a redação final da

Lei no 7.347/85 adotou o projeto substitutivo apresentado pelo grupo de membros

do Ministério Público do Estado de São Paulo, composto pelos juristas Nelson

Nery Júnior, Édis Milaré e Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz, que previa 439 REPRESENTAÇÃO – ASSOCIADOS – ARTIGO 5º, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ALCANCE. O disposto no artigo 5º, inciso XXI, da Carta da República encerra representação específica, não alcançando previsão genérica do estatuto da associação a revelar a defesa dos interesses dos associados. TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL – ASSOCIAÇÃO – BENEFICIÁRIOS. As balizas subjetivas do título judicial, formalizado em ação proposta por associação, é definida pela representação no processo de conhecimento, presente a autorização expressa dos associados e a lista destes juntada à inicial (RE 573232, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 14/05/2014, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-182 DIVULG 18-09-2014 PUBLIC 19-09-2014 EMENT VOL-02743-01 PP-00001). 440 WATANABE, 2011, p. 95, Op Cit. 441 Lei 8.078/90 – Art. 87 - Parágrafo único. Em caso de litigância de má-fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos. 442 SCARPARO, Eduardo. Controle da representatividade adequada em processos coletivos no Brasil. Revista de Processo, v. 208, junho/2012.

Page 124: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

124

a fórmula da legitimação ope legis, sem referência expressa ao controle da

adequação da representatividade pelo juiz.

Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 e o Código de Defesa do

Consumidor não trouxeram previsão normativa do controle da representatividade

adequada pelo juiz443.

A ideia de controle da representatividade adequada pelo juiz tem inspiração

no direito norte-americano, que inclui entre os requisitos para a class action a

exigência de que “o representante das partes deverá proteger equitativa e

adequadamente os interesses da classe”444. Referindo-se às class actions do

direito norte-americano, Ricardo de Barros Leonel comenta que “naquele sistema,

a identificação da adequacy of representation é feita em cada ação pelo

magistrado, e em tese qualquer indivíduo pode propor uma ação de classe”445.

O Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América, elaborado

pelo Instituto Ibero-americano de Direito Processual Civil, reconhece

expressamente a representatividade adequada como requisito da ação

coletiva446. Da mesma forma, o Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos

Coletivos previa a possibilidade de o juiz efetuar o controle da representatividade

adequada447.

443 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas questões sobre a legitimação e a coisa julgada nas ações coletivas In: O processo: estudos e pareceres. 2. ed., São Paulo: DPJ, 2009b, p. 266-278. 444 Eduardo Scarparo aponta que tal exigência está prevista na Rule 23 of the Federal Rules of Civil Procedure, alínea “a”, item “4” (SCARPARO, 2012, Op Cit). 445 LEONEL, 2011, p. 165, Op Cit. 446 Art 2º. Requisitos da ação coletiva - São requisitos da demanda coletiva: I – a adequada representatividade do legitimado; II – a relevância social da tutela coletiva, caracterizada pela natureza do bem jurídico, pelas características da lesão ou pelo elevado número de pessoas atingidas. Parág. 1o . Para a tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos, além dos requisitos indicados nos n. I e II deste artigo, é também necessária a aferição da predominância das questões comuns sobre as individuais e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto. Parág. 2o . Na análise da representatividade adequada o juiz deverá analisar dados como: a – a credibilidade, capacidade, prestígio e experiência do legitimado; b – seu histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos dos membros do grupo, categoria ou classe; c – sua conduta em outros processos coletivos; d – a coincidência entre os interesses dos membros do grupo, categoria ou classe e o objeto da demanda; e – o tempo de instituição da associação e a representatividade desta ou da pessoa física perante o grupo, categoria ou classe. 447 Art. 19 - § 1° Na defesa dos interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, qualquer legitimado deverá demonstrar a existência do interesse social e, quando se tratar de direitos coletivos e individuais homogêneos, a coincidência entre os interesses do grupo, categoria ou classe e o objeto da demanda; § 2º No caso dos incisos I e II deste artigo, o juiz poderá voltar a analisar a existência do requisito da representatividade adequada em qualquer tempo e grau de jurisdição, aplicando, se for o caso, o disposto no parágrafo seguinte. § 3º Em caso de inexistência do requisito da representatividade adequada (incisos I e II deste artigo), o juiz notificará o Ministério Público e, na medida do possível, outros legitimados, a fim de que assumam, querendo, a titularidade da ação. Versão de fevereiro/2006. Disponível em http://www.pucsp.br/tutelacoletiva/ download/cpbc_versao24_02_2006.pdf

Page 125: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

125

De acordo com o ordenamento jurídico em vigor no Brasil, Rodolfo de

Camargo Mancuso reconhece que:

O juiz brasileiro não se encontra de todo desprovido do poder análogo ao de seu colega norte-americano para aferir no caso concreto (defining function) acerca da adequada representação do portador judicial do interesse metaindividual, embora por vezes se diga que dentre nós os quesitos da legitimação para agir estão fixados ope legis (art. 5º da Lei no 7.347/85; art. 82 da Lei no 8.078/90), por modo que não sobejasse espaço para perquirição judicial a respeito. Na verdade, além de poder decidir sobre a dispensa prévia da constituição da associação autora (art. 82, § 1º, da Lei 8.078/90), cabe ainda ao magistrado sindicar sobre a pertinência temática em vários casos, com vistas a aferir a legitimação ativa nas ações coletivas. A par disso, mesmo quando o autor da ação seja o Ministério Público, pode o juiz verificar se no caso concreto é dado ao Parquet deflagrar o processo coletivo, mormente no caso dos interesses individuais homogêneos, interessando saber, por exemplo, se tais interesses são realmente indisponíveis e de relevância para a coletividade (CF, art. 127), porque caso contrário o procuratório judicial cabe à advocacia448.

Em posição semelhante, Ada Pellegrini Grinover também defende que o

juiz realiza análise muito próxima do exame da representatividade adequada ao

dispensar a associação do requisito da pré-constituição há pelo menos um ano449

ou ao reconhecer a relevância social dos interesses individuais homogêneos

defendidos em ação coletiva promovida pelo Ministério Público. No entanto, em

virtude dessas hipóteses, a autora vai além e defende que:

O ordenamento brasileiro não é infenso ao controle da legitimação ope judicis, de modo que se pode afirmar que o modelo do direito comparado, que atribui ao juiz o controle da “representatividade adequada” (Estados Unidos da América, Código Modelo para Ibero-América, Uruguai e Argentina), pode ser tranquilamente adotado no Brasil, na ausência de norma impeditiva. Aliás, não é irrelevante lembrar que os princípios gerais do direito configuram fonte de direito, nos termos do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, sendo que a defining function do juiz nos processos coletivos é uma de suas principais características450.

448 MANCUSO, 2012, p. 466, Op Cit. 449 CDC – Lei 8.078/90 – Art. 82 - § 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido. 450 GRINOVER, 2009b, p. 266-278, Op Cit.

Page 126: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

126

Em sentido oposto, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery,

comentando o artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública, afirmam:

A legitimidade é aferível ope legis, bastando à associação preencher os requisitos contidos na lei para considerar-se legitimada ativa para a ACP, ao contrário da ação de classe (class action) norte-americana, onde essa legitimidade é aferível ope judicis, cumprindo ao juiz verificar se a associação possui adequada representatividade dos membros e da classe que representa. As limitações à legitimação das associações para a propositura da ACP são apenas e tão somente as estipuladas no texto normativo ora comentado (constituição na forma da lei há pelo menos um ano; inclusão, entre suas finalidades institucionais, da defesa de um dos direitos protegidos pela LACP). Não tem lugar, por ser ilegal, outra exigência ou distinção, principalmente tendo em vista a qualidade da entidade, que restrinja a legitimação para agir das associações, fora das hipóteses expressamente enunciadas no texto sob exame451.

Reforçando essa posição, Luis Roberto Barroso destaca:

Evitou-se conferir ao juiz da causa competência para exercer o controle sobre a representatividade adequada ao autor da ação. Criou-se, como se percebe, um sistema baseado na presunção de que determinadas entidades e instituições teriam esta capacidade, embora tal presunção possa eventualmente ser afastada no exame do caso concreto452.

O autor cita como possibilidade de ser afastada essa capacidade, no caso

de associação que não tenha entre suas finalidades institucionais a proteção ao

meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao

patrimônio artístico, estético, histórico, turístico ou paisagístico, conforme exigido

pelo artigo 5º da Lei no 7.347/85.

Com pensamento semelhante, Ricardo de Barros Leonel conclui que, ao

contrário do sistema norte-americano:

No nosso sistema, já há prévia identificação hipotética, na própria lei, dos adequados representantes, com pequena margem de aferição para o magistrado. Significa, ao menos em princípio, a não adoção do controle judicial da representatividade adequada, satisfazendo-se o requisito com a existência legal e a pré-constituição das associações

451 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 197, Op Cit. 452 BARROSO, 2005, p. 131-153, Op Cit.

Page 127: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

127

legitimadas às ações coletivas, sendo que para o Ministério Público e para os demais entes públicos legitimados esta adequação é presumida pelo próprio legislador453.

Nessa linha, o microssistema processual coletivo consagrou uma

presunção de adequada representatividade em favor dos legitimados para a

propositura das ações coletivas (ope legis), inexistindo espaço para o controle da

representativa adequada pelo juiz (ope judis).

3.3.4 Ação coletiva passiva

Questão importante envolvendo a legitimidade nas ações coletivas consiste

em saber se a coletividade poderá figurar no polo passivo de demanda coletiva.

Tal hipótese é denominada de “ação coletiva passiva”.

No direito norte-americano é permitido o ajuizamento de ação coletiva

passiva, denominada de defendant class action, em que o magistrado exerce o

controle judicial (ope judicis) da representatividade adequada da entidade que

figura no polo passivo da demanda, visando assegurar que a entidade passiva

efetue a adequada defesa dos interesses do grupo454.

Oportuno destacar que os anteprojetos de Códigos Brasileiros de

Processos Coletivos disciplinavam a ação coletiva passiva. No entanto, nenhum

dos anteprojetos foi aprovado e a ação coletiva passiva continua pendente de

normatização no cenário brasileiro. Em virtude dessa lacuna legislativa, na

realidade brasileira não há consenso sobre o cabimento da ação coletiva

passiva455.

Ada Pellegrini Grinover cita que Arruda Alvim defende posição bastante

restritiva, observando que o artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor faz

menção à defesa dos direitos dos consumidores e, por essa razão, os entes

legitimados só poderão atuar ativamente em juízo, não podendo participar como

réus em ação coletiva456.

453 LEONEL, 2011, p. 165, Op Cit. 454 CAVALCANTI, 2015, p. 248, Op Cit. 455 ROSSI, Júlio César. A ação coletiva passiva. Revista de Processo, v. 198, ago/2011. 456 GRINOVER, 2009b, p. 266-278, Op Cit.

Page 128: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

128

Da mesma forma, Ricardo de Barros Leonel defendia a impossibilidade da

ação coletiva passiva no ordenamento brasileiro. Todavia, o autor mudou o seu

entendimento para: “concordando com os argumentos que se apresentam na

experiência forense, afirmar que as ações coletivas passivas são um fenômeno

real, já existente”457.

Por sua vez, Hugo Nigro Mazzilli sustenta que a coletividade não pode

figurar no polo passivo da ação coletiva, exceto nos casos em que se pretenda

desconstituir um título executivo já estabelecido em proveito da coletividade

(embargos do devedor, embargos de terceiro ou ação rescisória de coisa julgada

obtida em ação civil pública)458. Essas hipóteses podem ser classificadas como

ações coletivas passivas derivadas, uma vez que o grupo ou classe de pessoas

se encontra no polo passivo por ter atuado como legitimado ativo no processo

principal459. Não há muitas dúvidas sobre o cabimento, no cenário brasileiro, das

ações coletivas passivas derivadas, haja vista que “quem era legitimado ativo

ocupará inevitavelmente o polo passivo da nova demanda”460.

Aspecto importante a ser considerado na ação coletiva passiva é como se

dará o regime da coisa julgada nessas demandas. Apesar da intensa discussão

sobre o tema, tem prevalecido o entendimento de que a única solução possível é

a aplicação simétrica e inversa do regime da coisa julgada previsto no

microssistema processual coletivo, especialmente o artigo 103 do Código de

Defesa do Consumidor461.

A grande questão a ser respondida é se o ordenamento brasileiro admite a

chamada ação coletiva passiva originária, em que o grupo, classe ou categoria de

pessoas figura como réu sem qualquer relação de dependência com um processo

coletivo tradicional.

Defendendo que o sistema brasileiro de processos coletivo permite que a

classe figure no polo passivo da ação, desde que observada a aferição da

representatividade adequada do ente legitimado, Ada Pellegrini Grinover

457 LEONEL, 2011, p. 207, Op Cit. 458 MAZZILLI, 2014, p. 90, Op Cit. 459 ROSSI, 2011, Op Cit. 460 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ações coletivas ibero-americanas: novas questões sobre a legitimação e a coisa julgada: Revista Forense, 301, 2002, apud WATANABE, 2011, p. 101, Op Cit. 461 LEONEL, 2011, p. 208, Op Cit.

Page 129: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

129

estabelece os seguintes fundamentos: a) o art. 5º, § 2º 462, da Lei da Ação Civil

Pública, permite que os entes legitimados habilitem-se como litisconsortes de

qualquer das partes, podendo inferir-se daí que se a intervenção pode ocorrer

como litisconsorte do autor ou do réu, é porque a ação pode ser intentada pelo

grupo ou contra ele; b) as ações judiciais decorrentes do descumprimento da

“convenção coletiva de consumo” prevista no artigo 107463 do Código de Defesa

do Consumidor, inevitavelmente, contarão com os representantes das categorias

dos consumidores e dos fornecedores no polo ativo e passivo da demanda; c) o

artigo 83464 do CDC garante a “irrestrita tutelabilidade, em juízo, das questões

inerentes às relações de consumo, consubstanciando a ideia de efetividade do

processo”465.

Marcos de Araújo Cavalcanti reforça essa posição, trazendo o argumento

de que, com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, a redação de

seu artigo 18466 esvaziará essa discussão, tendo em vista que:

O NCPC não menciona mais o vocábulo “lei”, trazendo a expressão “ordenamento jurídico”, que é bem mais ampla. Ou seja, a legitimação coletiva pode ser extraída do próprio ordenamento jurídico, entendido aqui como sistema jurídico, não precisando constar expressamente em texto legal467.

Corroborando esse posicionamento, Kazuo Watanabe assegura que “hoje,

a doutrina posiciona-se a favor do reconhecimento, ‘de lege lata’, da ação coletiva

passiva”468. Para tanto, o autor cita decisões judiciais que reconheceram o

cabimento de ação coletiva passiva, trazendo como exemplo as ações

possessórias movidas em face do Movimento dos Sem Terra (MST), em que os

462 Lei 7.347/85 – Art. 5º, § 2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes. 463 Lei 8.078/90 - Art. 107. As entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica podem regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo. 464 Lei 8.078/90 - Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. 465 GRINOVER, 2009b, p. 266-278, Op Cit. 466 Lei 13.105/15 - Art. 18. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico. 467 CAVALCANTI, 2015, p. 250, Op Cit. 468 WATANABE, 2011, p. 101, Op Cit.

Page 130: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

130

tribunais reconheceram a representatividade deste para responder pelos

militantes do grupo responsáveis pela ocupação de terras.

Outros exemplos de ações coletivas passivas são as ações civis públicas

movidas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo com o escopo de

dissolução de torcidas organizadas de times de futebol469 ou as ações movidas

contra sindicatos reivindicando o corte de ponto de servidores públicos que

participam de movimento grevista470 ou, ainda, a reintegração de posse de área

interditada em virtude de movimento paredista471.

Ou seja, apesar da discussão doutrinária acerca do cabimento no sistema

processual coletivo brasileiro da denominada ação coletiva passiva, há diversos

precedentes que reconhecem a possibilidade de figurar a coletividade no polo

passivo de ação coletiva, demonstrando que a prática forense vem admitindo o

ajuizamento de ações coletivas passivas.

3.4 Coisa julgada coletiva

Assim como a questão da legitimação para agir, a coisa julgada é um dos

institutos fundamentais do direito processual coletivo, pois “é por seu intermédio

469 Por exemplo, as ações civis públicas nº 1066132-62.2013.8.26.0100 e 0149385-96.2012.8.26.0100, em trâmite perante a 31º Vara Cível de São Paulo, pleiteando a dissolução das torcidas organizadas Mancha Alviverde e Gaviões da Fiel. 470 Cite-se como exemplo o Processo nº 2006.34.00.012933-6, que se trata de ação declaratória de ilegalidade e abusividade de greve movida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em face da Associação dos Servidores do IBAMA (ASIBAMA) no Distrito Federal, Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal (SINDSEP/DF) e da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (CONTSEF), cujos pedidos requerem o reconhecimento da abusividade e ilegalidade do movimento grevista, com o retorno de todos os servidores públicos ao trabalho, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais), além de ser determinado que se abstenham de promover qualquer restrição ao acesso às instalações da autarquia e ainda o ressarcimento de eventuais danos causados ao Erário público pela paralisação dos serviços. 471 Por exemplo, a Medida Cautelar nº 21.224/DF movida pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), em face da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (CONDSEF) e Sindicatos de Servidores Públicos Federais no Distrito Federal e demais estados, ajuizada em junho/2013, perante o Superior Tribunal de Justiça, tendo por objetivo garantir a manutenção dos serviços essenciais prestados pelo DNIT, bem como o direito de ir e vir daqueles que desejem/necessitem adentrar nas dependências do DNIT durante o movimento grevista a ter início no dia 25.06.2013.

Page 131: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

131

que se alcançará o resultado útil do processo coletivo. É por seu intermédio que

ocorrerá a pacificação social de forma potencializada”472.

3.4.1 Aspectos gerais da coisa julgada

O instituto encontra-se no rol de direitos e garantias fundamentais473 e visa

garantir segurança jurídica, evitar decisões judiciais conflitantes e trazer

estabilidade às relações sociais474. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade

Nery acrescentam que “a segurança jurídica, trazida pela coisa julgada material, é

manifestação do Estado Democrático de Direito (CF 1º, caput). [...] Descumprir-se

a coisa julgada é negar o próprio Estado Democrático de Direito, fundamento da

República brasileira”475.

Inicialmente, oportuno trazer o conceito tradicional de coisa julgada, que é

definida por Patricia Miranda Pizzol como:

A qualidade de imutabilidade, de indiscutibilidade de que se reveste a sentença, mais especificamente a parte dispositiva desta (limite objetivo) e, via de regra, em relação às partes processuais (limite subjetivo). Tal imutabilidade pode se projetar dentro do processo em que foi proferida a sentença, impedindo que ela seja revista no próprio processo (coisa julgada formal) ou fora do processo em que foi proferida a sentença, impedindo que ela seja modifica em outro processo (coisa julgada material)476.

A respeito da coisa julgada material, Teori Albino Zavascki sustenta que:

Entende-se por coisa julgada material, na definição do art. 467 do CPC/1973, “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário” Coisa julgada, portanto, é um fenômeno que se passa exclusivamente no plano do direito. É uma qualidade da sentença: a sua imutabilidade. Antes da coisa julgada e de depois dela, o conteúdo da sentença não se altera. Permanece

472 ALMEIDA, 2003, p. 554, Op Cit. 473 Art. 5º, XXXVI, CF 474 PIZZOL, Patrícia Miranda. Coisa julgada nas ações coletivas. Grupo de Pesquisa Tutela Jurisdicional dos Direitos Coletivos. [s.d.] Disponível em: www.pucsp.br/tutelacoletiva. Acesso em: julho de 2016. 475 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.192, Op Cit. 476 PIZZOL, s.d., Op Cit..

Page 132: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

132

exatamente o mesmo. O que se acrescenta, com a coisa julgada, é apenas a sua condição de já na mais poder ser reformada ou anulada por via recursal477.

O novo Código de Processo Civil trouxe a definição de coisa julgada

material no artigo 502, dispondo que “denomina-se coisa julgada material a

autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita

a recurso”478. Humberto Theodoro Júnior pondera que a opção do legislador foi de

filiar-se ao entendimento de Liebman e não considerar a coisa julgada como um

efeito da sentença, mas sim como “uma qualidade especial do julgado”, que o

torna imutável e indiscutível479.

Reforçando essa posição, Hugo Nigro Mazzilli discute que, “como

demonstrou Liebman, a coisa julgada não é efeito nem eficácia da sentença;

antes, é apenas a imutabilidade desses efeitos (coisa julgada material), qualidade

que é adquirida com o trânsito em julgado (coisa julgada formal)”480.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery acentuam o acerto do

legislador ao substituir o termo “eficácia” (art. 467 CPC/1973481) por “autoridade”

(art. 502 CPC/2015), por ser tecnicamente mais adequado, haja vista que “a

característica essencial da coisa julgada material se encontra na imutabilidade da

decisão, que não se confunde com sua eficácia”482. Os autores sublinham a

importância da distinção entre a eficácia da sentença e a autoridade da coisa

julgada, pois a eficácia é “a aptidão da sentença para produzir efeitos”483. Ou seja,

a sentença pode ter eficácia antes mesmo de estar acobertada pela coisa julgada

material, por exemplo, nos casos em que ocorre a execução provisória da

sentença484.

477 ZAVASCKI, 2014, p. 65, Op Cit,. 478 Lei 13.105/15 - Art. 502. 479 THEODORO JR., Humberto et al. Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2015a, p. 344. 480 MAZZILLI, 2014, p. 117, Op Cit. 481 Lei 5.869/73 - Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. 482 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.192, Op Cit. 483 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.198, Op Cit. 484 Lei 13.105/15 – Art. 520. O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime:

Page 133: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

133

No sistema do Código de Processo Civil de 1973485, o limite objetivo da

coisa julgada só alcançava a parte dispositiva da sentença, não atingindo a sua

fundamentação ou a questão prejudicial decidida incidentalmente no processo486.

Desta forma, no regime do CPC anterior deveria ser utilizada a ação declaratória

incidental487 como mecanismo para fazer com que a questão prejudicial de mérito,

decidida como fundamento do pedido principal, fosse atingida pela coisa julgada

material488.

Vale anotar que, no tocante à questão prejudicial decidida incidentalmente

no processo, o novo Código de Processo Civil “segue rumo diametralmente

oposto”489, estabelecendo que a coisa julgada material pode alcançar a resolução

de questão prejudicial, desde que observados os requisitos estabelecidos no

artigo 503, § 1º 490.

Sobre essa ampliação dos limites objetivos da coisa julgada, Nelson Nery

Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery concluem:

Com a controvérsia formada sobre a prejudicial de mérito, há ampliação do thema decidendum, fazendo com que os limites objetivos da coisa julgada sejam aumentados, abarcando a parte da motivação da sentença, onde se encontra resolvida, incidentemente, a questão prejudicial de mérito491.

Quanto aos limites subjetivos da coisa julgada, a regra geral adotada pelo

Código de Processo Civil de 1973, para o processo individual, era a coisa julgada

interpartes, cuja sentença somente obriga as partes entre as quais é dada, não

beneficiando, nem prejudicando terceiros (art. 472492 CPC/1973)493.

485 Lei 5.869/73 - Art. 469. Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. 486 PIZZOL, s.d., Op Cit. 487 Lei 5.869/73 – Arts. 5º, 325 e 470. 488 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.221, Op Cit. 489 THEODORO JR., 2015a, p. 355, Op Cit. 490 Lei 13.105/15 - Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida. § 1o O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se: I - dessa resolução depender o julgamento do mérito; II - a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; III - o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal. 491 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.225, Op Cit. 492 Lei 5.869/73 - Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem

Page 134: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

134

O novo Código de Processo Civil também adotou o regime da coisa julgada

interpartes, mas excluiu a referência expressa à proibição de a sentença

beneficiar terceiros (art. 506494, CPC/2015). Por essa razão, Marcos de Araújo

Cavalcanti argumenta que “o NCPC, diferentemente do sistema do CPC-1973,

permite que os efeitos da coisa julgada alcancem terceiros para beneficiá-los,

mas nunca para prejudicá-los”495.

Em sentido oposto, para Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade

Nery:

Esse fato não altera a interpretação que deva ser dada a esse dispositivo, visto que, se alguém pretender aproveitar-se da sentença proferida em determinada ação, estará prejudicando outrem, em contrapartida – o que ainda é vedado. Além disso, o dispositivo ainda é bastante claro no sentido de que a sentença faz coisa julgada apenas às partes entre as quais é dada. Não faria o menor sentido pretender-se, portanto, que este dispositivo estaria a admitir hipóteses de relativização da coisa julgada o de extensão subjetiva de seus efeitos496.

No entanto, para as ações coletivas o regime da coisa julgada conta com

peculiaridades, em relação ao regime estabelecido pelo Código de Processo Civil,

sobretudo quanto aos limites subjetivos da coisa julgada. Ada Pellegrini Grinover

assevera que essas peculiaridades ocorrem porque:

De um lado, a própria configuração das ações ideológicas – em que o bem a ser tutelado pertence a uma coletividade de pessoas – exige, pelo menos até certo ponto, a extensão da coisa julgada ultrapartes; mas, de outro lado, a limitação da coisa julgada às partes é princípio inerente ao contraditório e à defesa, na medida em que o terceiro, juridicamente prejudicado, deve poder opor-se à sentença desfavorável proferida interalios, exatamente porque não participou da relação jurídico-processual497.

De forma semelhante, Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues pondera:

A escolha do modelo a ser seguido quanto à extensão subjetiva dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas é sempre

sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros. 493 PIZZOL, s.d., Op Cit. 494 CPC - Lei 13.105/15 - Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros. 495 CAVALCANTI, 2015, p. 295, Op Cit. 496 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.238, Op Cit. 497 GRINOVER et al., 2011, p. 175, Op Cit.

Page 135: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

135

precedida de uma ponderação entre os valores da extração da máxima efetividade dos processos coletivos e da consequente racionalização da prestação jurisdicional como um todo, de um lado, em contraposição à preservação das garantias processuais fundamentais ínsitas à cláusula do due process of law498.

A partir dessas premissas, veja-se o regime da coisa julgada adotado pelo

microssistema processual coletivo brasileiro e suas principais características e

peculiaridades.

3.4.2 O regime da coisa julgada no ordenamento brasileiro

Em se tratando de ações coletivas, o regime da coisa julgada rompe com o

sistema geral previsto no processo civil tradicional, voltado para a tutela de

conflitos individuais. Ademais, as peculiaridades da coisa julgada nas ações

coletivas decorrem da própria natureza da relação jurídica de direito material

tutelada e a partir “de sua correta formulação é possível o alcance dos objetivos

que a tutela jurisdicional coletiva preconiza em essência”499.

Segundo Antonio Gidi:

A principal nota caracterizadora da coisa julgada nas ações coletivas em face da coisa julgada tradicional é a imperativa necessidade de delimitar, de maneira diferenciada, o rol de pessoas que deverão ter suas esferas jurídicas atingidas pela eficácia da coisa julgada (imutabilidade do comando da sentença)500.

O legislador brasileiro optou por não utilizar o mesmo regime da coisa

julgada previsto no sistema das class actions norte-americanas, em virtude das

diferenças sociais e culturais entre a realidade americana e a brasileira. Sobre

esse aspecto, Ada Pellegrini Grinover considera que: As circunstâncias desaconselhavam a transposição pura e simples, à realidade brasileira, do esquema norte-americano da coisa julgada nas class actions: a deficiência de informação completa e correta, a ausência de conscientização de enorme parcela da sociedade, o desconhecimento dos canais de acesso

498 RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Notas sobre a coisa julgada nas ações coletivas. Revista de Processo, v. 207, p. 43, maio/2012. 499 LEONEL, 2011, p. 276, Op Cit. 500 GIDI, 1995, p. 58, Op Cit.

Page 136: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

136

à justiça, a distância existente entre o povo e o Poder Judiciário, tudo a constituir gravíssimos entraves para a intervenção de terceiros, individualmente interessados, nos processos coletivos, e mais ainda para seu comparecimento em juízo visando à exclusão da futura coisa julgada501.

O instituto da coisa julgada nas ações coletivas é integralmente regulado

pelo Código de Defesa do Consumidor, especialmente pelos artigos 103 e 104,

inclusive para as ações ajuizadas com base na Lei da Ação Civil Pública, em

virtude do artigo 21502 da LACP. Por isso, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de

Andrade Nery afirmam que “pela superveniência do CDC houve revogação tácita

do artigo 16 da LACP/1985 pela lei posterior (CDC/1990), conforme dispõe a Lei

de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), art. 2º, § 1º ”503.

Como será visto a seguir, diferentemente do que ocorre no processo

individual, nas ações coletivas a sentença fará coisa julgada erga omnes ou

ultrapartes, variando conforme a ação coletiva tenha como objetivo a tutela de

direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos504.

3.4.2.1 Direitos difusos e coletivos

O artigo 103505 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que para

as ações coletivas que versem sobre direitos difusos, a sentença fará coisa

julgada erga omnes. Já em relação às ações coletivas que visem à tutela de

direitos coletivos stricto sensu, a coisa julgada será ultrapartes, limitadamente ao

grupo, categoria ou classe.

501 GRINOVER et al., 2011, p. 178-179, Op Cit. 502 Lei 7.347/85 - Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (Incluída Lei nº 8.078, de 1990). 503 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 647, Op Cit. 504 PIZZOL, s.d., Op Cit. 505 Lei 8.078/90 - Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II - ultrapartes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;

Page 137: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

137

O que diferencia a coisa julgada nas ações em defesa de direitos coletivos

stricto sensu das ações que protegem direitos difusos é a extensão dos efeitos da

sentença em relação a terceiros506.

No caso dos direitos difusos, os efeitos da sentença atingirão toda a

coletividade, enquanto nas ações coletivas para a tutela de direitos coletivos os

efeitos da sentença se restringem aos membros do grupo, classe ou categoria,

ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base507. Isso

justifica a utilização de expressões distintas para designar os efeitos da coisa

julgada nas hipóteses de direitos difusos ou coletivos stricto sensu – erga omnes

e ultrapartes, respectivamente508.

No entanto, vale lembrar a observação feita por Ada Pellegrini Grinover de

que “é preciso ter presente, contudo, que a indivisibilidade do objeto dos

interesses coletivos frequentemente importará na extensão dos efeitos da

sentença a pessoas estranhas ao vínculo associativo”509.

Por outro lado, a redação dos incisos I e II do artigo 103 do Código de

Defesa do Consumidor determina que para as ações que tratem de direitos

difusos ou coletivos stricto sensu, se o pedido formulado na ação coletiva for

julgado improcedente por insuficiência de provas, qualquer legitimado poderá

intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova.

Essa solução é antiga no direito brasileiro e foi introduzida pela Lei da Ação

Popular (Lei no 4.717/1965), com o intuito de evitar eventual colusão entre autor e

réu e inibir a formação de coisa julgada prejudicial à coletividade, decorrente de

vícios na instrução processual e produção de provas ocasionadas pelo cidadão

autor da demanda popular510.

Vale observar que o Código de Defesa do Consumidor autoriza que o

próprio autor da demanda, cujo pedido foi julgado improcedente por insuficiência

de provas, possa ajuizar nova ação coletiva, na medida em que a redação do

506 GRINOVER et al., 2011, p. 202, Op Cit. 507 Gregório Assagra de Almeida ressalta que o inciso II do artigo 103 “estabelece que a coisa julgada operará ultrapartes justamente porque a eficácia do julgado transcenderá as partes litigantes, atingindo grupo, categoria ou classe de pessoas, não tendo o condão, como na coisa julgada erga omnes, de atingir toda a comunidade de pessoas, como se dá em relação à coisa julgada produzida nas ações coletivas para a tutela de interesses direitos ou interesses difusos” (ALMEIDA, 2003, p. 557). 508PIZZOL, s.d., Op Cit. 509 GRINOVER et al., 2011, p. 202, Op Cit. 510 GRINOVER, 2009b, p. 266-278, Op Cit.

Page 138: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

138

inciso I do artigo 103 faz menção a qualquer legitimado. E se fosse a intenção do

legislador excluir o autor da demanda anterior, deveria constar qualquer outro

legitimado511.

Para que a sentença que julgou improcedente a ação coletiva seja

considerada hipótese de improcedência por insuficiência de prova, não é

necessário que conste expressamente na decisão que a improcedência ocorreu

em virtude da ausência de provas suficientes nos autos512. Ou seja, ainda que o

juiz não afirme expressamente que a improcedência ocorreu por insuficiência de

provas, caso a sentença tenha sido proferida sem a totalidade das provas

disponíveis, deve ser considerada como hipótese de improcedência por

insuficiência de provas, autorizando a propositura de nova demanda coletiva513.

Sobre a prova nova hábil a ensejar a propositura de nova demanda

coletiva, Antonio Gidi considera que “a apresentação de nova prova é critério de

admissibilidade para a repropositura da ação coletiva, Por isso, o autor coletivo

deve manifestar, logo na petição inicial, a prova nova que pretende produzir”514.

Para ilustrar essa situação, o autor traz o seguinte exemplo de ação coletiva em

defesa do meio ambiente:

É possível, por exemplo, que o juiz se convença, efetivamente, da não nocividade de determinado produto químico expelido por uma indústria em um rio. Após o trânsito em julgado da sentença, o desenvolvimento tecnológico permite comprovar o alto grau de nocividade do tal produto. Nesse caso, está demonstrado que a ação coletiva anterior fora julgada improcedente por insuficiência de provas, e a mesma ação coletiva poderá ser proposta por qualquer legitimado515.

Corroborando esse entendimento, Patricia Miranda Pizzol assinala que o

surgimento de nova prova técnica, que não estava disponível quando proferida a

sentença de improcedência em demanda coletiva, “leva à conclusão de que a

511 PIZZOL, s.d., Op Cit. 512 Antonio Gidi defende que não há necessidade de que conste expressamente na sentença que a improcedência ocorreu por insuficiência de provas, mas menciona a existência de posicionamento contrário a este entendimento, citando que, “de acordo com o magistério de José Afonso da Silva, para que uma improcedência seja considerada por insuficiência de prova, seria imperativo que o magistrado lançasse na própria sentença de rejeição a cláusula ‘por deficiência de provas’, ou outra similar. Se não houvesse tal afirmação ou, implicitamente, ao menos, não se pudesse dizer que a insuficiência decorre indubitavelmente da própria decisão, ter-se-ia que a demanda foi rejeitada ‘por infundada‘, fazendo coisa julgada erga omnes” (GIDI, 1995, p. 131). 513 PIZZOL, s.d., Op Cit. 514 GIDI, 1995, p. 135, Op Cit. 515GIDI, 1995, p. 134, Op Cit.

Page 139: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

139

sentença foi proferida em tal sentido exatamente em razão da insuficiência da

prova”. A autora defende que se “trata de uma interpretação em prol da defesa

dos direitos coletivos, que somente se sustenta, no nosso sentir, em razão das

características especiais da coisa julgada coletiva decorrentes da legislação

infraconstitucional”. Todavia, para que não restem dúvidas sobre a possibilidade

de nova ação coletiva nestes casos, a autora relata que o ideal seria uma

alteração legislativa, sugerindo a inclusão de um parágrafo específico sobre essa

hipótese, no artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor516.

A respeito dessa possibilidade de ser ajuizada nova ação, em virtude da

improcedência por insuficiência de provas, Ada Pellegrini Grinover opina:

A fórmula que possibilita ao legitimado ativo ajuizar nova ação, com o mesmo fundamento, quando a demanda coletiva for rejeitada em virtude da insuficiência de provas, pode ser interpretada como consagradora da coisa julgada secundum eventum probationis, permitindo a repropositura da ação, com base em novos elementos probatórios, não existentes à época do primeiro processo, ainda que o juiz não tenha, explicita ou implicitamente, se referido à improcedência por insuficiência de provas517.

Como se percebe, “a coisa julgada coletiva pelo regime do CDC utiliza o

critério secundum eventum litis, pelo qual a coisa julgada depende do resultado

da lide”518. O fato de o legislador ter optado pelo regime da coisa julgada segundo

o evento da lide (secundum eventum litis) para as ações coletivas significa que,

“dependendo do resultado do processo, poderá a sentença fazer coisa julgada

erga omnes ou ultrapartes (conforme a categoria de direito coletivo em que se

fundou a ação) ou não fazer coisa julgada”519.

Sobre a coisa julgada secundum eventum litis, vale lembrar a advertência

feita por Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery de que:

A coisa julgada determinada pelo resultado da lide (secundum eventum litis), gênero do qual é espécie a coisa julgada segundo o resultado da prova (secundum eventum probationis), constitui-se como expediente de exceção à intangibilidade da coisa julgada. Sendo assim, apenas e somente pode ser utilizado nos casos

516 PIZZOL, s.d., Op Cit. 517 GRINOVER, 2009b, p. 266-278, Op Cit. 518ALMEIDA, 2003, p. 556, Op Cit. 519 PIZZOL, s.d., Op Cit.

Page 140: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

140

arrolados taxativamente pela lei, não se admitindo interpretação extensiva ou analógica520.

Ademais, nas ações coletivas para a tutela de direitos difusos ou coletivos,

os efeitos da coisa julgada “não prejudicarão interesses e direitos individuais dos

integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe”521. Desta forma, o

Código de Defesa do Consumidor permite que os integrantes da coletividade, do

grupo, categoria ou classe promovam ações individuais, visando ao

reconhecimento de seu direito individual522.

Em síntese, caso o pedido formulado em ação coletiva para a tutela de

direitos difusos ou coletivos seja julgado improcedente, a sentença de mérito fará

coisa julgada erga omnes ou ultrapartes para todos os entes legitimados,

impedindo a propositura de nova demanda coletiva com o mesmo fundamento.

Todavia, tal sentença de improcedência não prejudicará as ações individuais para

a tutela de interesses pessoais dos membros da coletividade, nos termos do § 1º

do artigo 103 do CDC523.

Em contrapartida, se a ação coletiva for rejeitada for insuficiência de

provas, a sentença não fará coisa julgada material, permitindo que qualquer dos

legitimados, inclusive o que havia proposto a ação anterior, intente nova demanda

coletiva, com o mesmo fundamento524.

3.4.2.2 Direitos individuais homogêneos

Para as ações coletivas em defesa de direitos individuais homogêneos, o

Código de Defesa do Consumidor estabelece que a sentença fará coisa julgada

erga omnes apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as

vítimas e seus sucessores525.

520 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.199, Op Cit. 521 Lei 8.078/90 – Art. 103. § 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. 522 PIZZOL, s.d., Op Cit. 523 GRINOVER et al., 2011, p. 202, Op Cit. 524 GRINOVER et al., 2011, p. 202, Op Cit. 525 Lei 8.078/90 - Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

Page 141: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

141

Ou seja, em caso de procedência da ação coletiva, as vítimas e seus

sucessores poderão promover a liquidação e/ou execução da sentença,

independentemente do ajuizamento de ação condenatória individual, em virtude

dos limites subjetivos da coisa julgada material, que serão erga omnes526.

No caso de improcedência da ação coletiva para a tutela de direitos

individuais homogêneos, não será permitido o ajuizamento de nova demanda

coletiva, ainda que a improcedência da ação tenha ocorrido por insuficiência de

provas527. Isso ocorre porque, no caso de improcedência por insuficiência de

provas, só há previsão legal de repropositura da mesma demanda, com base em

nova prova, para as ações coletivas em defesa dos direitos difusos e coletivos528.

No entanto, a sentença de improcedência do pedido não impedirá o

ajuizamento de ação individual condenatória, desde que o indivíduo não tenha

ingressado no processo coletivo como litisconsorte ou assistente litisconsorcial529.

Caso já tenha sido ajuizada ação pelo indivíduo, este deverá requerer a

suspensão de seu processo individual, a fim de se beneficiar da sentença de

procedência proferida na ação coletiva, conforme estabelece o artigo 104 do

Código de Defesa do Consumidor530.

Oportuno destacar o que apregoa Teori Albino Zavascki:

O legislador não estimulou nem o ingresso dos interessados como litisconsortes nem o ajuizamento ou prosseguimento de ações individuais paralelas. Às duas situações impôs um risco adicional: aos litisconsortes, o de sofrerem os efeitos da sentença da improcedência da ação coletiva; e aos demandantes individuais, o risco de não se beneficiarem da sentença de procedência. O estímulo, portanto, é no sentido de aguardar o desenlace da ação coletiva, promovendo, se for o caso, a suspensão da ação individual em curso”531.

526PIZZOL, s.d., Op Cit 527 PIZZOL, s.d., Op Cit. 528 ALMEIDA, 2003, p. 558, Op Cit. 529 Lei 8.078/90 - Art. 103. § 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. 530 Lei 8.078/90 - Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultrapartes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. 531 ZAVASCKI, 2014, p. 176, Op Cit,.

Page 142: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

142

Como se percebe, tratando-se de ação para a tutela de direitos individuais

homogêneos, o legislador optou pelos efeitos erga omnes da coisa julgada tão

somente nos casos de procedência da demanda coletiva. Ada Pellegrini Grinover

defende que “é preferível o regime da coisa julgada secundum eventum litis, só

para favorecer, mas não para prejudicar as pretensões individuais: do contrário,

teríamos de cair no regime do opt out do sistema das class actions, que tem

oferecido, em sua aplicação, inúmeros problemas práticos”532.

Diate do exposto, é possível concluir que, para as ações coletivas que

visem à tutela de direitos individuais homogêneos, a sentença de procedência

fará coisa julgada erga omnes, beneficiando todos os indivíduos titulares do

direito material de origem comum. Em caso de improcedência do pedido, não é

possível o ajuizamento de nova demanda coletiva, ainda que a improcedência

tenha ocorrido por insuficiência de provas. Entretanto, a sentença que tenha

julgado improcedente a ação coletiva não prejudica o direito dos indivíduos, que

poderão ajuizar ações individuais, desde que não tenham ingressado no processo

coletivo como litisconsortes ou assistentes litisconsorciais.

3.4.2.3 Transporte in utilibus da coisa julgada

O § 3º 533 do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor autoriza o

chamado transporte in utilibus da coisa julgada resultante da sentença proferida

em ação coletiva para as ações individuais de indenização por danos

pessoalmente sofridos534.

Explicando esse instituto, Ada Pellegrini Grinover discorre:

Por economia processual, o Código prevê o aproveitamento da coisa julgada favorável oriunda da ação civil pública, possibilitando às vitimas e seus sucessores serem por ela beneficiados, sem necessidade de nova sentença condenatória, mas passando-se incontinente à liquidação e execução da

532 GRINOVER et al., 2011, p. 178, Op Cit. 533 Lei 8.078/90 – Art. 103., § 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99. 534 GRINOVER et al., 2011, p. 204, Op Cit.

Page 143: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

143

sentença, nos termos do disposto nos arts. 97 a 100 do Código535.

Vale lembrar que, sendo procedente a ação coletiva e ocorrendo o

transporte in utilibus da coisa julgada, compete ao indivíduo, na fase de liquidação

de sentença, provar o dano e o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a

responsabilidade fixada na sentença coletiva536.

Hugo Nigro Mazzilli impõe uma condição para que possa ocorrer o

transporte in utilibus da coisa julgada, alegando que:

O proveito in utilibus para os lesados individuais deve decorrer de pedido expresso. Para segurança jurídica, entende-se deva ser feito o correto pedido na ação civil pública, ou seja, o autor deve pedir na inicial a reparação não apenas dos danos a interesses difusos, mas também a interesses individuais homogêneos. À vista de pedido expresso, o réu poderá defender-se adequadamente, impugnando, se lhe convier, essa pretensão, e não se verá condenado a pagar algo que sequer foi pedido ou discutido na ação de conhecimento537.

Divergindo desse posicionamento, Patricia Miranda Pizzol argumenta que

se “pode transportar a coisa julgada emergente do processo coletivo para

obtenção de benefício individual, mesmo sem ter sido formulado pedido de

natureza individual homogênea”538. Em concordância, Ada Pellegrini Grinover

sustenta que o transporte in utilibus da coisa julgada acarreta, além da extensão

subjetiva do julgado, “a ampliação do objeto do processo, ope legis, passando o

dever de indenizar a integrar o pedido, exatamente como ocorre na reparação do

dano ex delito, em que a decisão sobre o dever de indenizar integra o julgado

penal”539.

Havia no ordenamento jurídico brasileiro previsão do transporte in utilibus

da coisa julgada no Código Penal540, que torna certa a obrigação de indenizar os

danos causados pelo crime, em caso de sentença penal condenatória. Nessa

535GRINOVER et al., 2011, p. 205, Op Cit. 536PIZZOL, s.d., Op Cit. 537 MAZZILLI, 2014, p. 120, Op Cit. 538 PIZZOL, s.d., Op Cit. 539GRINOVER et al., 2011, p. 205, Op Cit. 540 Decreto-Lei nº 2.848/1940 - Art. 91 - São efeitos da condenação: I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

Page 144: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

144

hipótese, a sentença penal é considerada título executivo judicial541, passando-se

imediatamente à fase de liquidação e execução de sentença no juízo cível. O

Código de Defesa do Consumidor, inspirando-se no princípio da economia

processual, inovou profundamente em relação aos conceitos tradicionais sobre a

coisa julgada, ao adotar este instituto para as ações coletivas542.

A fim de ilustrar a ocorrência do transporte in utilibus da coisa julgada

resultante de sentença proferida em ação coletiva, Ada Pellegrini Grinover cita o

seguinte caso:

Se, por exemplo, a ação civil pública que tenda à obrigação de retirar do mercado um produto nocivo à saúde pública for julgada procedente, reconhecendo a sentença os danos, reais ou potenciais, pelo fato do produto, poderão as vítimas, sem necessidade de novo processo de conhecimento, alcançar a reparação dos prejuízos pessoalmente sofridos, mediante liquidação e execução da sentença coletiva543.

O Superior Tribunal de Justiça reconhece a possibilidade do transporte in

utilibus da coisa julgada proferida em ação coletiva, destacando a importância

desse instituto, que evita a proliferação de demandas individuais e privilegia o

princípio da economia processual544.

Além disso, assim como no processo civil tradicional, o processo coletivo

admite, expressamente545, o transporte in utilibus da coisa julgada decorrente de

sentença penal condenatória. Cumpre salientar que, no processo coletivo, a

sentença penal condenatória pode ser transportada para beneficiar tanto os

indivíduos que tenham sofrido dano individual, como a coletividade, classe ou

grupo de pessoas546.

541 Lei 13.105/15 - Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: VI - a sentença penal condenatória transitada em julgado; 542 GRINOVER et al., 2011, p. 205, Op Cit. 543 GRINOVER et al., 2011, p. 205, Op Cit. 544 [...] A extensão dos limites da coisa julgada faculta a outrem utilizar (in utilibus) da condenação genérica oriunda da demanda coletiva para pugnar a satisfação ou reparação de seu direito individual, evitando a proliferação de ações condenatórias individuais e homenageando o princípio da economia processual e da efetividade do processo (REsp 648.054/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/10/2005, DJ 14/11/2005, p. 192). No mesmo sentido, REsp 997.614/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/11/2010, DJe 03/12/2010. 545 Lei 8.078/90 – Art. 103. § 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória. 546PIZZOL, s.d., Op Cit.

Page 145: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

145

3.4.2.4 Limitação territorial da coisa julgada

A Medida Provisória no 1.570/97, convertida na Lei no 9.494/97, alterou a

redação do artigo 16547 da Lei da Ação Civil Pública para impor que a coisa

julgada erga omnes ficará restrita “aos limites da competência territorial do órgão

julgador”.

Essa limitação territorial da coisa julgada nas ações coletivas sofreu

profundas críticas da doutrina, que enfatiza a ineficácia dessa alteração e sua

inaplicabilidade aos processos coletivos548. Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues

apurou que, no sistema brasileiro, a adoção de sistemas restritivos de extensão

subjetiva da coisa julgada acaba por retirar grande parte da eficácia das ações

coletivas.

A limitação imposta pela Lei no 9.494/97 vai na contramão da história, pois,

conforme Ada Pellegrini Grinover:

Limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e de outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente549.

Segundo Fernando Dal Bó Martins, essa tentativa de atacar a jurisdição

coletiva ocorreu porque:

O advento do processo coletivo – e o amadurecimento de seu exercício – como instrumento para a tutela de direitos transindividuais e individuais homogêneos, com representantes adequados legitimados a demandar em juízo, e com sentenças potencializadas a alcançar toda a massa de pessoas lesadas pela ofensa ao bem jurídico, logo se mostrou incômoda a interesses políticos e econômicos550.

547 Lei 7.347/85 - Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. 548 PIZZOL, s.d., Op Cit. 549 GRINOVER et al., 2011, p. 189/190, Op Cit. 550 MARTINS, Fernando Dal Bó. A eficácia da sentença no processo coletivo. Revista de Processo, v. 219, p. 43, maio/2013.

Page 146: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

146

Adotando posição intermediária, Teori Albino Zavascki defende:

Em interpretação sistemática e construtiva, pode-se afirmar, portanto, que a eficácia territorial da coisa julgada a que se refere o art. 16 da Lei no 7.347/85 diz respeito apenas às sentenças proferidas em ações coletivas para tutela de direitos individuais homogêneos, de que trata o artigo 2º-A da Lei no 9.494/97, e não, propriamente, às sentenças que tratam de típicos direitos transindividuais551.

Em sentido oposto, Ada Pellegrini Grinover anota:

O art. 16 da Lei nº 7.347/85, em sua nova redação, só se aplica ao tratamento da coisa julgada nos processos em defesa de interesses difusos e coletivos, podendo-se entender modificados apenas os incisos I e II do art. 103 do CDC. Mas nenhuma relevância tem com relação ao regime da coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos regulados exclusivamente pelo inc. III do art. 103 do CDC, que permanece inalterado552.

Isso ocorre porque as situações reguladas pelo artigo 16 da Lei da Ação

Civil Pública são totalmente diversas das previstas no inciso III do artigo 103 do

Código de Defesa do Consumidor, inclusive, sendo inaplicável a este último a

regra de ausência de coisa julgada material nos casos de improcedência por

insuficiência de provas553.

No entanto, o entendimento predominante a respeito da limitação territorial

da coisa julgada, em virtude da alteração promovida pela Lei no 9.494/97, no

artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, é de sua total inaplicabilidade ao processo

coletivo, como assevera Hugo Nigro Mazzilli:

Além de absurda, a alteração foi inócua, porque é conjugado o sistema da LACP e do CDC, a respeito da tutela coletiva de interesses transindividuais (art. 21 da LACP e 90 do CDC), e, como esse último sistema não foi alterado, valem as regras dos arts. 93, 103 e 104 do CDC, que permitem a extensão da imutabilidade do decisum, em conformidade com a abrangência

551 ZAVASCKI, 2014, p. 67, Op Cit,. 552 GRINOVER et al., 2011, p. 191, Op Cit. 553 MARTINS, 2013, p. 43, maio/2013, Op Cit.

Page 147: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

147

do dano, com o resultado do processo e com a natureza do interesse controvertido554.

Por sua vez, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery mostram

diversas razões para justificar a não aplicação do artigo 16 da Lei da Ação Civil

Pública às ações coletivas, quais sejam:

(i) “não se aplica porque tem abrangência restrita, sendo que o sistema do CDC 103 é mais completo e atende às necessidades das sentenças proferidas nas ações coletivas”; (ii) o artigo 16 da LACP é inconstitucional, “já que ofende os princípios constitucionais do direito de ação (CF 5º XXXV), da razoabilidade e da proporcionalidade”; (iii) qualquer modificação para restringir os limites subjetivos da coisa julgada a território, “deveria ter sido feita não apenas na LACP 16, mas também no CDC 103. Como isso não ocorreu, a Lei no 9.494/97 não produziu nenhum efeito”; (iv) “pela superveniência do CDC, houve revogação tácita da LACP 16 (de 1985), pela lei posterior (CDC, de 1990) conforme dispõe a LINDB 2º, § 1º. Assim, quando editada a Lei no 9.494/97, não mais vigorava o LACP 16, de modo que ela não poderia ter alterado o que já não existia555.

Conclusão semelhante é adotada por Ada Pellegrini Grinover, para quem:

a) o art. 16 da LACP não se aplica à coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos; b) aplica-se à coisa julgada nas ações em defesa de interesses difusos e coletivos, mas o acréscimo introduzido pela medida provisória (convertida na Lei no 9.494/97) é inoperante, porquanto é a própria lei especial que amplia os limites da competência territorial, nos processos coletivos, ao âmbito nacional ou regional; c) de qualquer modo, o que determina o âmbito de abrangência da coisa julgada é o pedido, e não a competência. Esta nada mais é do que uma relação de adequação entre o processo e o juiz. Sendo o pedido amplo (erga omnes), o juiz competente o será para julgar a respeito de todo o objeto do processo; d) em consequência, a nova redação do dispositivo é totalmente ineficaz556.

Um erro técnico do legislador, identificado por Fernando Dal Bó Martins, é

que seria “tecnicamente impossível limitar a coisa julgada à competência territorial 554 MAZZILLI, 2014, p. 118, Op Cit. 555 NERY JR.; NERY, 2015b, p. 647, Op Cit. 556 GRINOVER et al., 2011, p. 193, Op Cit.

Page 148: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

148

do órgão prolator, pois a coisa julgada não é um efeito, mas sim uma qualidade

da sentença judicial transitada em julgado”557. Caso contrário, “uma sentença de

divórcio proferida em Brasília poderia não valer para o Judiciário mineiro, de modo

que ali as partes pudessem ser consideradas ainda casadas”558, como

exemplifica Bruno Dantas.

Apesar dos consistentes argumentos apresentados pela doutrina, que

demonstram a ineficácia da alteração promovida no artigo 16 da Lei da Ação Civil

Pública, o Superior Tribunal de Justiça559 vinha interpretando literalmente o

referido artigo da LACP e aplicando a limitação territorial ali prevista, apesar de

alguns acórdãos em sentido contrário560.

No entanto, ao analisar o Recurso Especial 1.243.887/PR, sob o regime de

julgamentos repetitivos, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça assentou

que “os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes

geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se

em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses

metaindividuais postos em juízo"561.

557 MARTINS, 2013, p. 43, maio/2013, Op Cit. 558 DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e ao STJ (art. 543-B e 543-C do CPC). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015 p. 71. 559 EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EFICÁCIA. LIMITES. JURISDIÇÃO DO ÓRGÃO PROLATOR. 1 - Consoante entendimento consignado nesta Corte, a sentença proferida em ação civil pública fará coisa julgada erga omnes nos limites da competência do órgão prolator da decisão, nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/85, alterado pela Lei n. 9.494/97.Precedentes. 2 - Embargos de divergência acolhidos (EREsp 411.529/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/03/2010, DJe 24/03/2010). 560 Por exemplo, o Acórdão de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, proferido pela Terceira Turma, cuja ementa assim estabelece: PROCESSO CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO COLETIVA AJUIZADA POR ASSOCIAÇÃO CIVIL EM DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS DEVIDOS EM CADERNETA DE POUPANÇA EM JANEIRO DE 1989. DISTINÇÃO ENTRE EFICÁCIA DA SENTENÇA E COISA JULGADA. EFICÁCIA NACIONAL DA DECISÃO. - A Lei da Ação Civil Pública, originariamente, foi criada para regular a defesa em juízo de direitos difusos e coletivos. A figura dos direitos individuais homogêneos surgiu a partir do Código de Defesa do Consumidor, como uma terceira categoria equiparada aos primeiros, porém ontologicamente diversa. - Distinguem-se os conceitos de eficácia e de coisa julgada. A coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. O art. 16 da LACP, ao impor limitação territorial à coisa julgada, não alcança os efeitos que propriamente emanam da sentença. - Os efeitos da sentença produzem-se "erga omnes", para além dos limites da competência territorial do órgão julgador. Recurso Especial improvido (REsp 399.357/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2009, DJe 20/04/2009). Oportuno destacar que, posteriormente, a Segunda Seção deu provimento aos embargos de divergência para assentar que a sentença proferida em ação civil pública fará coisa julgada erga omnes nos limites da competência do órgão prolator da decisão, nos termos do art. 16 da Lei n. 7.347/85, alterado pela Lei n. 9.494/97 (EREsp 399.357/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/09/2009, DJe 14/12/2009). 561 (REsp 1243887/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/10/2011, DJe 12/12/2011)

Page 149: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

149

Desde então, o Superior Tribunal de Justiça passou a reconhecer a

abrangência nacional de decisões concedidas em ações coletivas562, como no

julgamento do Recurso Especial Repetitivo 1.391.198/RS563, julgado pela

Segunda Seção em agosto de 2014.

Como observa Bruno Dantas, “essa limitação legal configura clara opção

política pela obstrução da via da jurisdição coletiva para temas que, por definição,

se consubstanciam em direitos individuais homogêneos”564. Assim, mostra-se

relevante que os tribunais pacifiquem o entendimento sobre o tema,

acompanhando o posicionamento adotado pela doutrina majoritária e afastando

do ordenamento jurídico a imitação territorial imposta às ações coletivas com a

nova redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, alterada pela Lei no

9.494/97565.

3.4.2.5 Declaração de inconstitucionalidade em ação coletiva

Tendo em vista o efeito erga omnes da coisa julgada nas ações coletivas,

questionou-se a viabilidade do controle difuso de constitucionalidade no bojo de

ações civis públicas.

562 DANTAS, 2015 p. 71, Op Cit. 563 AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. SENTENÇA PROFERIDA PELO JUÍZO DA 12ª VARA CÍVEL DA CIRCUNSCRIÇÃO ESPECIAL JUDICIÁRIA DE BRASÍLIA/DF NA AÇÃO CIVIL COLETIVA N. 1998.01.1.016798-9 (IDEC X BANCO DO BRASIL). EXPURGOS INFLACIONÁRIOS OCORRIDOS EM JANEIRO DE 1989 (PLANO VERÃO). EXECUÇÃO/LIQUIDAÇÃO INDIVIDUAL. FORO COMPETENTE E ALCANCE OBJETIVO E SUBJETIVO DOS EFEITOS DA SENTENÇA COLETIVA. OBSERVÂNCIA À COISA JULGADA. 1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil: a) a sentença proferida pelo Juízo da 12ª Vara Cível da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília/DF, na ação civil coletiva n. 1998.01.1.016798-9, que condenou o Banco do Brasil ao pagamento de diferenças decorrentes de expurgos inflacionários sobre cadernetas de poupança ocorridos em janeiro de 1989 (Plano Verão), é aplicável, por força da coisa julgada, indistintamente a todos os detentores de caderneta de poupança do Banco do Brasil, independentemente de sua residência ou domicílio no Distrito Federal, reconhecendo-se ao beneficiário o direito de ajuizar o cumprimento individual da sentença coletiva no Juízo de seu domicílio ou no Distrito Federal; b) os poupadores ou seus sucessores detêm legitimidade ativa - também por força da coisa julgada -, independentemente de fazerem parte ou não dos quadros associativos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consujmidor (IDEC), de ajuizarem o cumprimento individual da sentença coletiva proferida na Ação Civil Pública n. 1998.01.1.016798-9, pelo Juízo da 12ª Vara Cível da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília/DF. 2. Recurso especial não provido (REsp 1391198/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/08/2014, DJe 02/09/2014) 564 DANTAS, 2015 p. 71, Op Cit. 565 MARTINS, 2013, p. 43, Op Cit.

Page 150: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

150

A respeito do controle difuso de constitucionalidade, Ricardo de Barros

Leonel explica que este:

É realizado por qualquer órgão judicial, sobre casos concretos em que haja uma controvérsia envolvendo partes determinadas, com uma relação jurídica de direito material, em caráter subjacente. A constitucionalidade do ato normativo envolvido na discussão das partes na demanda figura como questão prévia, prejudicial ao exame do mérito, e será necessariamente conhecida e decidida pelo magistrado incidentalmente. A decisão do juiz quanto à inconstitucionalidade da norma, formulada incidenter tantum, é pressuposto imperativo, prejudicial ao deslinde do mérito da demanda566.

A alegação para a impossibilidade de ser realizado o controle difuso de

constitucionalidade em demandas coletivas é que haveria a usurpação de

competência do Supremo Tribunal Federal, que possui competência exclusiva

para o controle abstrato de normas567, implicando a substituição da ação direta de

inconstitucionalidade pela ação civil pública.

Nessa linha de raciocínio, Teori Albino Zavascki acrescenta que, em virtude

da eficácia subjetiva erga omnes de sentenças proferidas em ações coletivas,

quando nelas se exerce o controle de constitucionalidade, pode ocorrer um efeito

semelhante ao que decorre da sentença proferida no controle abstrato,

especialmente quando são substituídos na demanda coletiva todos os possíveis

destinatários da norma cuja inconstitucionalidade serve de fundamento ao pedido: Em situações assim, ainda que não tenha havido pedido explícito de declaração de invalidade da norma em abstrato, a sentença de procedência acaba tendo, na prática, a mesma eficácia universal que decorre da sentença no controle concentrado, já que, por via transversa, ela retira da norma questionada todo o seu potencial de aplicação, que fica inteiramente esgotado, inclusive para o futuro568.

O autor conclui que esta hipótese significa “inadmissível deformação do

sistema de controle concentrado de constitucionalidade, a ser repelida”569.

566 LEONEL, 2011, p. 443, Op Cit. 567 CF/88 – Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. 568 ZAVASCKI, 2014, p. 231, Op Cit,. 569 ZAVASCKI, 2014, p. 232, Op Cit,.

Page 151: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

151

Em sentido oposto, Ricardo de Barros Leonel declara que é equivocado

concluir que, em virtude de sua eficácia erga omnes, a sentença coletiva

produziria os mesmos efeitos que a decisão proferida no controle abstrato de

normas. No controle abstrato, quando é declarada a inconstitucionalidade da

norma, é reconhecida sua invalidade absoluta, extirpando-a do ordenamento

jurídico.

Já na ação coletiva com reconhecimento incidental de inconstitucionalidade, apenas certos atos serão atingidos, aqueles submetidos à relação jurídica supraindividual discutida no feito, e a partir do momento da identificação dos efeitos lesivos tratados na impugnação. Não ocorrerá, como na ação direta de inconstitucionalidade, uma suspensão da eficácia da norma como se ela jamais houvesse produzido efeito algum, mas só a declaração de inviabilidade com relação àquela moldura fática, histórica e concreta (abrangente em virtude do caráter coletivo da demanda) delimitada pela inicial570.

Com esses fundamentos, diversas reclamações foram ajuizadas perante o

Supremo Tribunal Federal. Apesar de inicialmente terem sido deferidas algumas

liminares acolhendo este raciocínio571, o Supremo Tribunal Federal pacificou o

entendimento de que é cabível o controle incidental de constitucionalidade em

sede de ação civil pública572.

Como se verifica, a tese acolhida pelo Supremo Tribunal Federal é no

sentido de reconhecer a possibilidade do controle de constitucionalidade de

normas em sede de ação civil pública, desde que a análise da constitucionalidade

da norma qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à

resolução do litígio principal.

570 LEONEL, 2011, p. 446, Op Cit. 571 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle difuso da constitucionalidade e a coisa julgada erga omnes das ações coletivas In: O processo: estudos e pareceres. 2. ed., São Paulo: DPJ, 2009c, p. 231-236. 572 E M E N T A: RECLAMAÇÃO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE – QUESTÃO PREJUDICIAL – POSSIBILIDADE – INOCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PRECEDENTES – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal. Precedentes. Doutrina. (Rcl 1898 ED, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/06/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 05-08-2014 PUBLIC 06-08-2014)

Page 152: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

152

Sobre esse aspecto, Ada Pellegrini Grinover ressalta:

A questão da constitucionalidade, tanto numa ação coletiva como na individual, é colocada como questão prejudicial, a ser enfrentada pelo juiz antes do julgamento da causa, e não faz coisa julgada, nem mesmo entre as partes. O que faz coisa julgada é exclusivamente o julgamento da questão principal, e nenhuma diferença faz que a sentença que passa em julgado tenha eficácia interpartes ou erga omnes573.

Defendendo a possibilidade de controle incidental de constitucionalidade

nas ações coletivas, a autora cita que, assim como no processo individual:

A situação não muda num processo coletivo, em que o legitimado pede a condenação ao pagamento da diferença devida a toda a categoria dos poupadores, fundamentando-se na questão prejudicial da inconstitucionalidade dos índices fixados no referido plano. Aqui também a questão da constitucionalidade é resolvida incidenter tantum e, por isso, não se projeta fora do processo nem faz coisa julgada, podendo ser reapreciada a qualquer momento, em outros julgamentos. O que faz coisa julgada erga omnes é exclusivamente a condenação ao pagamento da diferença da correção monetária574.

No mesmo sentido, há diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça

reconhecendo a possibilidade de controle difuso de constitucionalidade no bojo de

ações civis públicas575.

Corroborando esse pensamento, Ricardo de Barros Leonel infere:

Os escopos do processo, a economia processual e a necessidade de pacificação com justiça recomendam a realização do controle incidental de normas nas demandas coletivas. É exigência do equacionamento dos conflitos de grandes dimensões, permitindo-se o acesso da coletividade envolvida à ordem jurídica justa576.

573 GRINOVER, 2009c, p. 231-236, Op Cit.. 574 GRINOVER, 2009c, p. 231-236, Op Cit.. 575 [...] o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência iterativa no sentido de que, muito embora seja possível a declaração de inconstitucionalidade de lei em sede de ação coletiva - como ação civil pública e ação popular -, não cabe falar em efeito erga omnes de sua sentença. Isso porque a inconstitucionalidade de lei, nesses casos, comparece apenas como causa de pedir, questão prejudicial ou fundamentação da decisão, diferentemente do que ocorre com ações de controle concentrado de constitucionalidade. Assim, nesse ponto, aplica-se, o art. 469 do Código de Processo Civil, quanto ao alcance da coisa julgada. 3. Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no REsp 1273955/RN, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/10/2014, DJe 07/10/2014). 576 LEONEL, 2011, p. 448, Op Cit.

Page 153: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

153

Todavia, requer-se destacar que não é admitido o ajuizamento de ação civil

pública cujo objetivo principal seja a declaração de inconstitucionalidade de

determinada norma, por se tratar de verdadeira pretensão de tutela que haveria

de ser postulada em sede de controle concentrado de constitucionalidade577.

O Supremo Tribunal Federal reconhece a usurpação de sua competência

no caso de ação civil pública que tenha como objeto a declaração de

inconstitucionalidade de lei, sem relação com o caso concreto, “mascarada” como

suposta declaração incidenter tantum de inconstitucionalidade578.

Portanto, é possível apreender que é admitido o controle de

constitucionalidade de normas nas ações coletivas, desde que apreciada

incidenter tantum, caracterizando controle difuso de constitucionalidade.

Entretanto, é vedado o controle de constitucionalidade como objetivo principal da

ação coletiva, pois caracteriza usurpação de competência do Supremo Tribunal

Federal, que possui competência exclusiva para o controle concentrado de

constitucionalidade.

3.4.2.6 Coisa julgada na ação coletiva passiva

Como visto anteriormente579, os tribunais vêm admitindo diversos

exemplos de ações coletivas passivas, surgindo a necessidade de se verificar

como será definido o regime da coisa julgada na ação coletiva passiva, em virtude

da ausência de regulamentação legal desse fenômeno580.

577 GRINOVER, 2009c, p. 231-236, Op Cit. 578 EMENTA Reclamação constitucional - Ação Civil Pública – Lei nº 9.688/98 – Cargo de censor federal - Normas de efeitos concretos – Declaração de inconstitucionalidade – Pleito principal na Ação Civil Pública – Contorno de ação direta de inconstitucionalidade – Usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal – Reclamação julgada procedente. [...]. O pleito de inconstitucionalidade deduzido pelo autor da ação civil pública atinge todo o escopo que inspirou a edição da referida lei, traduzindo-se em pedido principal da demanda, não se podendo falar, portanto, que se cuida de mero efeito incidental do que restou então postulado. 4. Voto vencido: a ação civil pública tem como pedido principal a pretensão de nulidade de atos de enquadramento de servidores públicos. A declaração de inconstitucionalidade da lei em que se embasa o ato que se pretende anular constitui fundamento jurídico do pedido, portanto, a causa petendi, motivo pelo qual não há falar em usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. 5. Reclamação julgada procedente, por maioria (Rcl 1503, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 17/11/2011, DJe-029 DIVULG 09-02-2012 PUBLIC 10-02-2012 EMENT VOL-02644-01 PP-00001). 579 Item 3.3.4. 580 LEONEL, 2011, p. 309, Op Cit.

Page 154: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

154

Reforça-se a necessidade de construção de um regime de coisa julgada

atento aos princípios do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor,

privilegiando os membros da classe e possibilitando o ajuizamento de ações

individuais, em caso de derrota no plano coletivo581.

No atual ordenamento jurídico, Ricardo de Barros Leonel defende que,

“sem prejuízo daquilo que for estabelecido no futuro (de lege ferenda), atualmente

a única solução possível será a aplicação simétrica e inversa do regime da coisa

julgada existente na ação civil pública”582.

Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover também defendia a “inversão” do

regime da coisa julgada previsto no artigo 103 do Código de Defesa do

Consumidor, afirmando que essa “inversão” pode ser feita com base nos

seguintes argumentos: “a manutenção do espírito da lei, em situações

justapostas; a defining function do juiz, própria das ações coletivas (ativas e

passivas); e o princípio da razoabilidade”583.

O Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América previu

expressamente a possibilidade de ações coletivas passivas e regulamentou a

coisa julgada nessas ações em seus artigos 33 e 34584, adotando solução simples

para o regime da coisa julgada nas ações coletivas passivas.

Em relação à coisa julgada nas ações coletivas passivas envolvendo

direitos individuais homogêneos, Ada Pellegrini Grinover modificou o seu

entendimento, para reconhecer que:

O regime da coisa julgada secundum eventum litis, na ação coletiva passiva em que se discutem direitos individuais homogêneos do grupo, categoria ou classe de pessoas que figuram no polo passivo, esvazia de resultados práticos a coisa julgada. E hoje se aceita a posição de Diogo Campos Medina Maia, que sustenta a viabilidade, neste caso, da coisa julgada pro et contra585.

581 GRINOVER et al., 2011, p. 207, Op Cit. 582 LEONEL, 2011, p. 309, Op Cit. 583 GRINOVER et al., 2011, p. 208, Op Cit. 584 Art. 33 – Coisa julgada passiva: interesses ou direitos difusos - quando se tratar de interesses ou direitos difusos, a coisa julgada atuará erga omnes, vinculando os membros do grupo, categoria ou classe. Art. 34. Coisa julgada passiva: interesses ou direitos individuais homogêneos - Quando se tratar de interesses ou direitos individuais homogêneos, a coisa julgada atuará erga omnes no plano coletivo, mas a sentença de procedência não vinculará os membros do grupo, categoria ou classe, que poderão mover ações próprias ou defender-se no processo de execução para afastar a eficácia da decisão na sua esfera jurídica individual. 585 GRINOVER et al., 2011, p. 208-209, Op Cit.

Page 155: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

155

Opinião divergente é a de Ricardo de Barros Leonel, para quem:

Pode se revelar útil a vinculação dos indivíduos, com relação ao resultado do processo coletivo. Mas isso só poderá ocorrer em virtude de alteração legislativa, não existindo fundamento, no sistema atual, para a afirmação de tal vínculo, ressalva feita ao caso em que os atos constitutivos da entidade estabeleçam, expressamente, a possibilidade de “representação” ou substituição586.

Para casos em que a ação coletiva passiva envolve coletividade

numerosa, em que é inviável identificar individualmente os seus integrantes, o

autor evidencia que, nestes casos, a solução seria “admitir que a ação seja

proposta com a indicação de alguns membros do grupo nominalmente para fins

de citação, e com requerimento de citação dos réus incertos e desconhecidos

mediante publicação de edital”587.

Oportuno registrar que o Superior Tribunal de Justiça admite a citação por

edital em caso de ações possessórias movidas contra grupo de invasores, diante

da impossibilidade de identificação de todos os ocupantes do imóvel588.

586 LEONEL, 2011, p. 309-310, Op Cit. 587 LEONEL, 2011, p. 310, Op Cit. 588 REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL INVADIDO POR TERCEIROS. IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DOS OCUPANTES. INDEFERIMENTO DA INICIAL. INADMISSIBILIDADE. – Citação pessoal dos ocupantes requerida pela autora, os quais, identificados, passarão a figurar no polo passivo da lide. Medida a ser adotada previamente no caso. – Há possibilidade de haver réus desconhecidos e incertos na causa, a serem citados por edital (art. 231, I, do CPC). Precedente: REsp n. 28.900-6/RS. Recurso especial conhecido e provido (REsp 362.365/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 03/02/2005, DJ 28/03/2005, p. 259).

Page 156: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

156

4 A TUTELA COLETIVA E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O Código de Processo Civil de 1973 (Lei no 5.869/73) foi voltado para o

processo civil clássico, concebido para conferir a prestação da tutela jurisdicional

em casos de lesões ou ameaça de lesões a direitos subjetivos individuais589.

Hugo Nigro Mazzilli lembra que, “embora na década de 1970 já se começasse na

Europa a falar em defesa de interesses metaindividuais, quando o CPC de 1973

foi aqui promulgado, o processo coletivo ainda sequer principiara a ser discutido

no Brasil”590.

Ao longo dos mais de 40 anos de vigência do Código de Processo Civil de

1973, a realidade social foi amplamente alterada, em virtude de transformações

econômicas, políticas e culturais, que acarretaram a ampliação das interações

sociais, bem como de todos os direitos que possam emergir dessas interações591.

Como consequência das mudanças na sociedade, inclusive com a

democratização e a efetivação de direitos consagrados pela Constituição de 1988,

as regras do processo civil clássico deixaram de atender satisfatoriamente aos

anseios dos jurisdicionados. Com isso, o Código de Processo Civil de 1973

passou por inúmeras reformas592, algumas sutis e outras macroestruturais, na

tentativa de adaptar-se à nova realidade social e garantir a concretização dos

direitos fundamentais consagrados pela Constituição de 1988593.

589 SOUZA, Artur César de. Conversão da demanda individual em demanda coletiva no novo CPC: algumas considerações jurídicas. Revista de Processo, v. 39, n. 236, p. 205-241, out/2014. 590 MAZZILLI, Hugo Nigro. O processo coletivo e o código de processo civil de 2015. In: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes (Coord). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016, p.190. 591 DANTAS, Bruno. Jurisdição coletiva, ideologia coletivizante e direitos fundamentais. Revista de Processo, v. 41, n. 251, p. 341-358, jan/2016. 592 Nesse contexto, o relatório final aprovado na Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados para análise do Projeto de Lei do novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010) anota que “o CPC atual passou por muitas revisões (mais de 60 leis o modificaram), tão substanciais algumas delas que terminaram por acarretar grande perda sistemática, o principal atributo que um código deve ter. Nas quatro décadas de vigência do CPC atual, o país e o mundo passaram por inúmeras transformações. Muitos paradigmas inspiradores desse diploma legal foram revistos ou superados em razão de mudanças nos planos normativo, científico, tecnológico e social (Teixeira, Paulo. [Relator da Comissão Especial]. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/proposicao/pareceres-e-relatorios/parecer-do-relator-geral-paulo-teixeira-08-05-2013). 593 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit.

Page 157: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

157

Apesar das alterações legislativas, Hugo Nigro Mazzilli reconhece que o

Código de Processo Civil de 1973, fruto do trabalho do Ministro Alfredo Buzaid,

“foi superado pelas demandas atuais da sociedade, a principal das quais é que

ele não oferece resposta adequada aos conflitos de massa, que vieram a ganhar

proporções inéditas no mundo de hoje, de economia globalizada”594.

Em virtude desse cenário de mudanças sociais e de imperfeições do

sistema processual então vigente595, em 30 de setembro de 2009 o então

Presidente do Senado Federal, Senador José Sarney, por meio do Ato 379/2009,

instituiu comissão de juristas incumbida de elaborar o anteprojeto do Novo Código

de Processo Civil, sendo presidida pelo Ministro Luiz Fux e tendo como relatora a

professora Teresa Arruda Alvim Wambier.

Logo no início de seus trabalhos, o Presidente da Comissão de Juristas

encarregada de elaborar Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil mostrou

que:

A ideologia norteadora dos trabalhos da Comissão foi a de conferir mais celeridade à prestação da justiça. [...] [A Comissão] empenhou-se na criação de um “novo código”, buscando instrumentos capazes de reduzir o número de demandas e recursos que tramitam pelo Poder Judiciário596.

Todavia, entre esses instrumentos capazes de reduzir o número de

demandas e recursos não foram contempladas as ações coletivas597. Bruno

Dantas, que foi membro da comissão de juristas responsável por elaborar o

anteprojeto do no Código de Processo Civil, lembra que:

594 MAZZILLI, 2016, p.190, Op Cit.. 595 MAZZILLI, 2016, p.190, Op Cit.. 596 Documento elaborado em janeiro de 2010 pela Comissão de Juristas encarregada de elaborar Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, instituída pelo Ato nº 379, de 30 de setembro de 2009, do Presidente do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.gov.br/ senado/novocpc/pdf/1a_e_2a_Reuniao_PARA_grafica.pdf. 597 Ada Pellegrini Grinover observa que “a escolha política dos redatores e dos parlamentares que se ocuparam do anteprojeto e projetos do novo Código de Processo Civil foi no sentido deste restringir sua disciplina ao processo individual, deixando intacto o minissistema de processos coletivos, constituído principalmente pela Lei da Ação Civil Pública e pelas disposições processuais do Código de Defesa do Consumidor ( GRINOVER, Ada Pellegrini. O projeto de novo CPC e sua influência no minissistema de processos coletivos: a coletivização dos processos individuais. In: GRINOVER; Ada Pellegrini et al., (Coord.). Processo coletivo: do surgimento à atualidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 1.431).

Page 158: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

158

Entre as decisões iniciais adotadas pela Comissão de Juristas, constou a de não disciplinar o processo coletivo no novo Código, relegando o seu tratamento à legislação extravagante. Tal posição foi orientada pelo entendimento de que seria tecnicamente inapropriado reunir em um único diploma legislativo sistemas regidos por principiologias discrepantes598.

Essa opção legislativa de não aproveitar o momento de reforma do

Processo Civil para também regulamentar o processo coletivo foi alvo de críticas

ao longo do processo legislativo, como a manifestada por Teori Albino Zavascki

durante reunião da Comissão Especial – PL 8.046/2010 – Código de Processo

Civil - da Câmara dos Deputados, realizada no dia 06/10/2011, que assim se

manifestou: Que novos mecanismos poderíamos agregar a esse Código? Eu disse, no início, que o projeto, em parte, sistematiza, mas deixou uma parte importante de fora. O sistema de processo coletivo não foi contemplado no Código. Nele, esse projeto em si está fundado numa ideia individualista das controvérsias. Então, o processo coletivo vai continuar fora do Código, vai aplicar o Código individualista subsidiariamente. Eu acho que já é tempo de imaginarmos que o sistema de coletivização da prestação jurisdicional não digo que se sobrepuje às controvérsias individuais, mas tem de estar pelo menos no mesmo nível. Se quisermos realmente fazer um Código que tenha ideias para vigorar por 10, 20, 30 ou 50 anos, temos de imaginar também o que acontecerá no futuro. Quem tem experiência no dia a dia da atividade jurisdicional percebe como é importante encontrarmos mecanismos de solução coletiva de problemas, para não repetirmos milhares de vezes as mesmas demandas. Então, eu acho importante agregarmos ao sistema o processo coletivo599.

Nesse contexto, Susana Cadore Nunes Barreto reporta: A repetida crítica sobre o fato de o sistema geral de processo ser exclusivamente fundado em direitos individuais judicializados por ações individuais e se mostrar insuficiente aos desafios trazidos pela pós-modernidade foi menosprezada pelo legislador recodificante, que manteve o mesmo norte individual e estanque em relação ao microssistema de ações coletivas já existente600.

598 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit. 599 ZAVASCKI, Teori Albino. Notas taquigráficas da sessão disponíveis em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/documentos/controle-tramitacao-e-notas-taquigraficas/nt-06.10.11-cpc 600 BARRETO, Susana Cadore Nunes. Novo Código de Processo Civil e o microssistema de processos coletivos: uma análise do art. 18. In: DIDIER, Fredie; ZANETI JR., Hermes (Coord.). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 287.

Page 159: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

159

Depois de ter sido amplamente revisado e discutido, tanto na Câmara dos

Deputados como no Senado Federal, no dia 17 de dezembro de 2014 o Projeto

de Lei do novo Código de Processo Civil foi aprovado pelo Senado Federal e

encaminhado à sanção presidencial. Após análise presidencial, em 16 de março

de 2015, o Projeto do novo CPC foi sancionado (com alguns vetos) e

transformado na Lei no 13.105/2015, publicada no Diário Oficial da União em 17

de março de 2015. Conforme estabelecido em seu artigo 1.045601, o novo Código

de Processo Civil passou a vigorar a partir do dia 18 de março de 2016602.

Por ter sido instituído e disciplinado para atuar prioritariamente na tutela

jurisdicional dos direitos individuais, salvo pouquíssimas exceções (por exemplo,

os arts. 18. 139, X; 178, III; 185; 565; 976 até 987; 1035, §5º; 1036, §1º; 1037, II),

o NCPC não possui enunciados normativos dispondo acerca do processo

coletivo603.

Bruno Dantas adverte que, para solucionar o problema das demandas de

massa no Brasil, o novo Código de Processo Civil optou “pelo incremento das

técnicas de tutela pluri-individual em detrimento das de tutela coletiva”604. Para o

autor, essa tutela pluri-individual pode ser definida como:

A atividade estatal voltada à justa composição das lides concernentes a direitos individuais homogêneos que se multiplicam em diversas demandas judiciais nas quais haja controvérsia preponderantemente sobre as mesmas questões de direito, de modo a, por um lado, racionalizar e atribuir eficiência ao funcionamento do Poder Judiciário e, por outro, assegurar a igualdade e a razoável duração do processo605.

De fato, na busca por imprimir mais celeridade e efetividade na prestação

jurisdicional606, o Novo Código de Processo Civil optou por desenvolver técnicas

601 Lei 13.105/15 - Art. 1.045. Este Código entra em vigor após decorrido 1 (um) ano da data de sua publicação oficial. 602 Em virtude de alguns questionamentos sobre a data da efetiva entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, atendendo à requisição da OAB, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça definiu que o início da vigência novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2015, ocorreria a partir do dia 18 de março de 2016. CNJ – Consulta nº 0000529-87.2016.2.00.0000. 603 CAVALCANTI, 2015, p. 167, Op Cit. 604 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit. 605 DANTAS, Bruno. Incidente de resolução de demandas repetitivas (artigos 976 ao 987 do CPC/2015). In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Org.). Breves comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 2.178. 606 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ROMANO NETO, Odilon. Análise da relação entre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas e o microssistema dos juizados especiais. Revista de Processo, v. 245/2015, p. 275-309, jul/2015.

Page 160: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

160

de resolução coletiva de demandas repetitivas, por meio de decisões proferidas

nos denominados procedimentos-modelo ou procedimentos-padrão607. Para

tanto, aperfeiçoou a disciplina dos já existentes recursos especial e extraordinário

repetitivos e criou o incidente de resolução de demandas repetitivas, que é a

grande inovação do Novo CPC e representará para o primeiro grau de jurisdição.

Essa situação é semelhante à que representam os recursos especial e

extraordinário repetitivos para os tribunais de apelação608.

Sendo assim, devem ser analisados os principais instrumentos para a

resolução coletiva de demandas repetitivas trazidos no novo Código de Processo

Civil (Lei no 13.105/15), a fim de permitir a verificação das implicações para o

processo coletivo dessas soluções para demandas repetitivas adotadas pelo novo

CPC.

4.1 Incidente de resolução de demandas repetitivas O incidente de resolução de demandas repetitivas é a grande novidade do

novo Código de Processo Civil, conforme destaca o próprio relatório final

aprovado na Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados para análise

do Projeto de Lei do novo CPC (PL 8.046/2010): “O incidente de resolução de

demandas repetitivas é a principal inovação do projeto do novo CPC. Trata-se do

instituto mais comentado em todas as audiências públicas”609.

Humberto Theodoro Júnior afirma que o incidente de resolução de

demandas repetitivas é “um instrumento processual destinado a produzir eficácia

pacificadora de múltiplos litígios, mediante estabelecimento de tese aplicável a

todas as causas em que se debata a mesma questão de direito”610.

607 CAVALCANTI, 2015, p. 325, Op Cit. 608 DANTAS, 2016, p. 341-358, jan/2016, Op Cit. 609 TEIXEIRA, Paulo. [Relator da Comissão Especial]. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/ atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/proposicao/pareceres-e-relatorios/parecer-do-relator-geral-paulo-teixeira-08-05-2013 610 THEODORO JR., Humberto. Incidente de resoluções de demandas repetitivas. In: THEODORO, Humberto JR.; OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro; REZENDE, Ester Camila Gomes (Coord.). Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2015b p. 736.

Page 161: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

161

A exposição de motivos do anteprojeto do novo Código de Processo Civil

assume que a Comissão de Juristas responsável por sua elaboração se inspirou

em instituto do direito alemão, denominado Musterverfahren611, para a criação do

incidente de resolução de demandas repetitivas612.

Durante a tramitação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei sofreu

algumas modificações no capítulo que trata do Incidente de Resolução de

Demandas Repetitivas (IRDR), mas a sua permanência foi mantida até a

aprovação do projeto no Congresso e o referido incidente foi sancionado pela

Presidente da República.

De acordo com a redação final do novo Código de Processo Civil, o

incidente será admissível quando for verificada controvérsia que acarrete efetiva

multiplicação de demandas fundadas em idêntica questão de direito, capaz de

colocar em riso a isonomia e a segurança jurídica, em virtude da possibilidade de

serem proferidas decisões conflitantes613.

De início, importante sublinhar que a semelhança do incidente de resolução

de demandas repetitivas com o procedimento-modelo alemão, Musterverfahren, é

questionada por parte da doutrina. Por exemplo, Georges Abboud e Marcos de

Araújo Cavalcanti documentam que:

O IRDR não guarda nenhuma semelhança com o referido instrumento tedesco. Talvez nem mesmo a inspiração. No que se refere ao objeto do procedimento-modelo alemão, ele é muito restrito, aplicando-se apenas às controvérsias oriundas do mercado mobiliário. No Brasil, a aplicação será ampla, abarcando qualquer matéria jurídica, inclusive para dirimir questões processuais. O que interessa é que a questão seja jurídica. Em contrapartida, o Musterverfahren aplica-se também às questões de fato614.

611 Guilherme Rizzo Amaral relata que “neste particular, prejudica o incidente de resolução de demandas repetitivas o fato de ter sido inteiramente inspirado em lei experimental e muitíssimo recente de país sem tradição no trato do processo coletivo” (AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo, v. 196, p. 237-274, jun/2011). 612 Exposição de motivos elaborada pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009, destinada a elaborar Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil: “Criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta. Disponível em: https://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf. 613 DANTAS, 2016, p. 341-358, jan/2016., Op Cit 614 ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Inconstitucionalidades do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. Revista de Processo, v. 240/2015, p. 221-242, fev. 2015.

Page 162: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

162

No mesmo sentido, Daniele Viafore acusa que:

Em que pese a confessada inspiração pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração do Anteprojeto de novo Código de Processo Civil no procedimento-modelo alemão Musterverfahren, o estudo comparativo comprova que o incidente projetado brasileiro em muito se diferencia do instrumento jurídico tedesco615.

Outro instrumento de tutela pluri-individual existente no cenário jurídico

internacional é a Group Litigation Order616, criada na Inglaterra no ano 2000.

Como ensinam Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sofia Temer:

A group Litigation order é mecanismo que permite que um caso receba tratamento coletivo, desde que haja pretensões similares fundadas na mesma questão de fato ou de direito, sendo o efeito do julgamento, a priori, vinculante às demais demandas previamente registradas617.

Fato é que, por se tratar de instituto inédito no ordenamento jurídico

brasileiro, surgiram vários questionamentos sobre os procedimentos para sua

aplicação e acerca de sua constitucionalidade, cujos principais aspectos serão

abordados a seguir.

4.1.1 Natureza jurídica, cabimento, requisitos e finalidade do incidente de resolução de demandas repetitivas

O cabimento do incidente de resolução de demandas repetitivas está

previsto no artigo 976 do novo Código de Processo Civil, que estabelece ser

cabível a instauração do incidente “quando houver, simultaneamente: I - efetiva

615 VIAFORE, Daniele. As semelhanças e as diferença entre o procedimento-modelo Musterverfahren e o “incidente de resolução de demandas repetitivas” no PL 8.046/2010. Revista de Processo, v. 217/2013, p. 257-308, mar/2013. 616 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit. 617 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 243/2015, p. 83-331, maio/2015.

Page 163: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

163

repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão

unicamente de direito; II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”618.

Inicialmente, quanto à sua natureza jurídica, pode-se considerar que o

IRDR não é recurso nem ação, mas incidente processual619, como o próprio CPC

o define, tendo natureza jurídica de incidente processual coletivo620.

Por sua vez, Bruno Dantas confirma que:

O IRDR, como o próprio nome sugere, possui natureza jurídica de incidente processual sui generis. Não dá azo, portanto, à instauração de uma nova relação processual, com todas as consequências que disso advêm. Tampouco o IRDR significa a avocação da competência para conhecer as demandas repetitivas621.

As principais características de incidente processual são preenchidas pelo

IRDR, quais sejam: a) acessoriedade: oIRDR tem acessoriedade múltipla, pois

depende da existência de diversos processos repetitivos, assim como da

existência de um desses processos repetitivos no Tribunal competente; b)

acidentalidade: desvio ao procedimento normal dos processos repetitivos, que

ficarão suspensos, devendo ser aplicada a estes a tese jurídica fixada no IRDR; c)

incidentalidade: incide sobre os processos repetitivos preexistentes e para as

causas futuras; d) procedimento incidental: o novo CPC cria um procedimento

específico para o IRDR, nos artigos 976 a 987622.

Em consequência ao reconhecimento de que o incidente de resolução de

demandas repetitivas obedece ao regime jurídico dos incidentes processuais, é

possível afirmar que: decisão proferida em seu bojo tem natureza jurídica de

decisão interlocutória e não fica sujeita à coisa julgada, mas apenas à preclusão;

o requerimento de instauração do IRDR não precisa obedecer os requisitos da

petição inicial, por exemplo, indicar o valor da causa, devendo apenas ser dirigido

ao Presidente do Tribunal com a demonstração do preenchimento dos requisitos;

as partes serão intimadas e não citadas; não haverá, em regra, condenação em

618 Lei 13.105/15 – Art. 976. 619 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann. Ações coletivas e incidente de resolução de demandas repetitivas: algumas considerações sobre a solução coletiva de conflitos. In: DIDIER, Fredie; ZANETI JR.. Hermes (Coord.). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 551. 620 CAVALCANTI, 2015, Op Cit. 621 DANTAS, 2015, p. 2.179, Op Cit. 622 CAVALCANTI, 2015, p. 505, Op Cit.

Page 164: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

164

honorários; não cabe ação rescisória contra a decisão firmada no IRDR;

comunicação da instauração do IRDR não interrompe a prescrição das

pretensões individuais623.

No tocante à prescrição, oportuno destacar que na versão do Projeto de Lei

aprovado pela Câmara dos Deputados constava expressamente que, “admitido o

incidente, suspender-se-á a prescrição das pretensões nos casos em que se

repete a questão de direito”. Todavia, essa disposição foi excluída da versão final

aprovada pelo Senado Federal624.

Por essa razão, Marcos Araújo Cavalcanti critica essa alteração, mas

defende que a comunicação da instauração do IRDR não interrompe a prescrição

das pretensões individuais, em obediência ao regime jurídico dos incidentes

processuais625.

Em sentido oposto manifestou-se o Fórum Permanente de Processualistas

Civis, que editou o Enunciado nº 206, estabelecendo o seguinte: “a prescrição

ficará suspensa até o trânsito em julgado do incidente de resolução de demandas

repetitivas”626.

Lamentando a alteração no Projeto de Lei, Aluisio Gonçalves de Castro

Mendes e Sofia Temer enumeram os benefícios que a suspensão da prescrição

das pretensões pela admissão do incidente poderia ocasionar:

i) enquanto estivesse tramitando o incidente, não haveria propositura de novas ações fundadas na mesma questão de direito; ii) após o julgamento, apenas seriam propostas ações que se alinhassem com a tese jurídica uniformizada, evitando o assoberbamento do Judiciário com demandas que seriam protocoladas e imediatamente suspensas627.

Sendo assim, apesar do enunciado aprovado pelo Fórum Permanente de

Processualistas Civis, torna-se difícil sustentar a suspensão do prazo

prescricional para as pretensões individuais fundadas na mesma questão de

623 CAVALCANTI, 2015, p. 505, Op Cit. 624 Art. 990, § 5º do PLS166/2010 (MENDES; TEMER, 2015, p. 83-331, Op Cit). 625 CAVALCANTI, 2015, p. 505, Op Cit. 626 Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf 627 MENDES; TEMER, 2015, p. 83-331, Op Cit.

Page 165: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

165

direito, em virtude da ausência de previsão legal628. De qualquer forma, será

necessário aguardar a efetiva utilização do incidente, a fim de verificar como essa

questão será decidida pelos Tribunais629.

Em relação aos requisitos necessários para a instauração do IRDR, de

acordo com a leitura do artigo 976 é possível afirmar que o novo Código de

Processo Civil estabeleceu três requisitos para autorizar a instauração do

incidente, quais sejam: a) efetiva repetição de processos; b) identidade da

questão unicamente de direito controvertida; c) risco presente de ofensa à

isonomia e à segurança jurídica630.

Enquanto tramitava no Senado Federal, o anteprojeto do novo Código de

Processo Civil631 admitia a instauração do incidente quando existisse controvérsia

com potencial de gerar relevante multiplicação de processos, denotando um

caráter preventivo do instituto. Desta forma, era possível a pacificação antecipada

de controvérsias jurídicas, sem que elas tramitassem por diversas instâncias

judiciais.

No entanto, diferentemente do que constava no art. 930 do Projeto de Lei

do Senado (PLS) 166/2010, a redação final do art. 976, I do CPC/2015 exige a

efetiva repetição de processos para a instauração do incidente, alterando os

contornos do instituto, que não poderá ser suscitado com a mera potencialidade

de repetição de demandas sobre a mesma questão de direito. Portanto, o

incidente “não foi concebido para exercer uma função preventiva, mas repressiva

de controvérsias jurisprudenciais preexistentes”632.

Tal modificação foi positiva, na visão de Eduardo Cambi e Mateus Vargas

Fogaça, haja vista que:

628 CAVALCANTI, 2015, p. 447, Op Cit. 629 MENDES; TEMER, 2015, p. 83-331, Op Cit. 630 DANTAS, 2015, p. 2.181, Op Cit. 631 Art. 930 do PLS 166/2010. Disponível em: http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/ getPDF.asp? t=83984&tp=1 632 THEODORO JR., 2015b, p. 738, Op Cit.

Page 166: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

166

Se a decisão de um incidente é tomada de forma precoce, não se elimina a hipótese de, em curto espaço de tempo, surgirem novos e eficazes questionamentos, sobre os quais não se terá refletido ou examinado. Na hipótese de tais novos argumentos serem capazes de alterar o resultado da tese jurídica definida em um incidente, o precedente por ele formado ficaria superado ou já deveria ser modificado, em prejuízo à própria efetividade do instituto633.

Interessante esclarecer que não é qualquer repetitividade de demandas

que autoriza o IRDR. Em regra, a repetição de processos que envolvam direitos

difusos ou coletivos não autorizará a instauração do IRDR634.

Em contrapartida, a expressão “questão unicamente de direito” deve ser

entendida de forma ampla635, abrangendo tanto questões de direito material como

de direito processual, conforme estabelece o parágrafo único do artigo 928636 do

novo CPC. Como se percebe, o objeto do incidente de resolução de demandas

repetitivas será restrito às questões de direito. Em sentido oposto, no

procedimento-modelo alemão (Musterverfahren) que serviu de inspiração para a

criação do incidente brasileiro, além das questões de direito, também são

decididas questões de fato637.

Quanto ao risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, Bruno Dantas

afirma que essa violação se torna ainda mais grave quando se está diante de

casos idênticos repetitivos, em que ocorre ofensa clara à isonomia quando “a

mesma situação fática, num dado momento histórico, é decidida de forma

discrepante”638. Humberto Theodoro Júnior assinala que é necessária disparidade

de entendimento para que se caracterize risco de ofensa à isonomia e à

segurança jurídica, portanto, “é mister a existência de vários processos e de

decisões conflitantes, quanto à aplicação da mesma norma”639.

Vale lembrar que, caso os tribunais superiores já tenham afetado a matéria

para julgamento em sede de recurso repetitivo, não será cabível o incidente de

633 CAMBI, Eduardo; FOGAÇA, Mateus Vargas. Incidente de resolução de demandas repetitivas no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 243/2015, p. 333-362, maio/2015. 634 CAVALCANTI, 2015, Op Cit. 635 MENDES; TEMER, 2015, p. 83-331, Op Cit. 636 Lei 13.105/15 – Art. 928. Parágrafo único. O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito material ou processual. 637 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit.. 638 DANTAS, 2015, p. 2.181, Op Cit. 639 THEODORO JR., 2015b, p. 738, Op Cit.

Page 167: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

167

resolução de demandas repetitivas640. Isso porque tanto o IRDR como os

recursos extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de

solução de casos repetitivos641 e devem ser harmonizados para manter a

coerência desse sistema, respeitando-se a hierarquia da decisão proferida pelos

tribunais superiores.

O §2º do artigo 988 do Projeto de novo CPC aprovado pela Câmara previa

expressamente a pendência de causa no Tribunal como pressuposto para a

instauração do IRDR642. Todavia, o Senado excluiu tal dispositivo e a Lei nº

13.105/2015 não menciona esse requisito.

Sendo assim, Cassio Scarpinella Bueno entende que este não é mais um

requisito para a instauração do IRDR, bastando a existência de efetiva repetição

de processos em 1ª instância, em que pese não existirem processos de

competência originária do Tribunal ou recursos que tenham chegado a ele643.

Todavia, o Fórum Permanente de Processualistas Civis sustenta que

remanesce como requisito para a instauração do IRDR a necessidade de

processo pendente de julgamento no Tribunal, com fundamento no disposto no

parágrafo único do artigo 978, conforme Enunciado nº 344, que assim versa: “a

instauração do incidente pressupõe a existência de processo pendente no

respectivo Tribunal”644.

O risco de se admitir a instauração do incidente a partir de processos em

trâmite perante o primeiro grau seria a “ausência de amadurecimento e debate da

questão para se alcançar uma padronização decisória excelente”645.

640 Lei 13.105/15 – Art. 976 - § 4o É incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva. 641 Enunciado nº 345 - O incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos formam um microssistema de solução de casos repetitivos, cujas normas de regência se complementam reciprocamente e devem ser interpretadas conjuntamente. Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf 642 PL 8.046/2010 – Art. 988. § 2º O incidente somente pode ser suscitado na pendência de qualquer causa de competência do tribunal. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/ Imagem/d/pdf/ DCD0020140327000390000.PDF#page=434 643 BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 613. 644 Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf 645 MENDES; TEMER, 2015, p. 83-331, Op Cit.

Page 168: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

168

Quanto à sua finalidade, o incidente de resolução de demandas repetitivas

tem como objetivo evitar o surgimento de decisões antagônicas, com a definição

prévia de uma tese jurídica central comum a diversas ações individuais

repetitivas, que deverá ser obrigatoriamente adotada nos demais casos646.

Outro objetivo do incidente é a redução de demandas repetitivas.

Entretanto, conforme Daniele Viafore:

O IRDR apenas alcançará a almejada redução da grande quantidade de ações repetitivas, caso a tese jurídica seja julgada desfavorável aos interesses dos consumidores. Do contrário, dificilmente este instrumento processual conseguirá atenuar a carga de trabalho da jurisdição, pois não evitará o ajuizamento de demandas para a obtenção da tutela do direito pelos interessados647.

Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Larissa Clare Pochmann da Silva

concordam que se a tese jurídica fixada for de improcedência, a tendência é que

diminua de forma significante o ingresso de novas demandas no Poder Judiciário

para discutir a mesma questão. Todavia, em caso de ser acolhida a tese jurídica

dos litigantes, os autores sugerem uma solução para este caso:

Se a tese for de procedência, em vez de aguardar o ajuizamento de novas ações individuais, com base no artigo 139, X648, do novo Código de Processo Civil, pode o juízo oficiar aos legitimados coletivos, para que verifiquem a pertinência do ajuizamento da demanda coletiva, de forma que, sem a necessidade de ingressarem mais demandas futuramente no Poder Judiciário, a ação coletiva já seja capaz de beneficiar a todos por meio de um único processo649.

646 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Reflexões sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. RePro, 211/194, 2012. 647 VIAFORE, 2013, p. 257-308, Op Cit. 648 Lei 13.105/15 - Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: X - quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, e o art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva. 649 MENDES; SILVA, 2016, p. 547, Op Cit.

Page 169: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

169

4.1.2 Procedimento de instauração e julgamento do IRDR

As críticas que surgiram a respeito do procedimento do incidente de

resolução de demandas repetitivas revelam que, além de não haver qualquer

controle sobre a qualidade dos representantes do grupo650, o novo Código de

Processo Civil também não garante que a causa-piloto pendente no tribunal seja

a mais representativa da controvérsia, o que poderia acarretar a não apreciação

de diversas teses jurídicas importantes para que ocorresse o melhor julgamento

sobre a matéria discutida no IRDR651.

Ao ser detectada a multiplicidade de demandas sobre a mesma questão de

direito, qualquer legitimado pode, de imediato, requerer a instauração do Incidente

de Resolução de Demandas Repetitivas, ainda que a demanda selecionada não

seja a que melhor representa a controvérsia.

Na tentativa de oferecer mais argumentos para a discussão da matéria que

será decidida em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas, o

Fórum Permanente de Processualistas Civis formulou o Enunciado no 89, nestes

termos: havendo apresentação de mais de um pedido de instauração do incidente

de resolução de demandas repetitivas perante o mesmo tribunal, todos deverão

ser apensados e processados conjuntamente; os que forem oferecidos

posteriormente à decisão de admissão serão apensados e sobrestados, cabendo

ao órgão julgador considerar as razões neles apresentadas652.

Conforme já manifestado pelos tribunais superiores653, as demandas

representativas da controvérsia não podem ser abandonadas ou desistidas, em

razão do interesse público na fixação da tese jurídica a ser aplicada para os

demais casos repetitivos. Por essa razão, é permitida a desistência ou abandono

do processo pela parte, mas tal fato não impede o exame do incidente de

650 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.968, Op Cit. 651 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit. 652 Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf 653 Por exemplo, “[...] É inviável o acolhimento de pedido de desistência recursal formulado quando já iniciado o procedimento de julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, na forma do art. 543-C do CPC c/c Resolução n.º 08/08 do STJ. Precedente: QO no REsp. n. 1.063.343-RS, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17.12.2008. (REsp 1111148/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/02/2010, DJe 08/03/2010).

Page 170: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

170

resolução de demandas repetitivas, cabendo ao Ministério Público assumir sua

titularidade para que seja analisado o mérito do incidente654.

Ademais, o novo Código de Processo Civil cuidou de regulamentar de

forma minuciosa a divulgação e a publicidade que devem ser conferidas ao

incidente de resolução de demandas repetitivas, desde a sua instauração. Tais

medidas de publicidade visam impedir a multiplicidade de incidentes sobre a

mesma questão de direito, além de facilitar a identificação de demandas atingidas

pela matéria decidida no incidente655. Bruno Dantas identifica outra vantagem na

ampla e específica divulgação e publicidade do IRDR:

Apresentar uma pauta de conduta a ser observada, tanto nas relações externas ao âmbito do Poder Judiciário (minimizando o potencial de massificação de demandas), como no processo (possibilitando a obediência a um entendimento estável e evitando a utilização exacerbada de meios de impugnação às decisões judiciais consequentes da instabilidade jurisprudencial)656.

4.1.2.1 Legitimidade para o pedido de instauração e competência para julgamento

do IRDR

O novo Código de Processo Civil optou por limitar a competência para

formular o requerimento de instauração do incidente de resolução de demandas

repetitivas, conferindo legitimidade ao pedido ao juiz, às partes e ao Ministério

Público e à Defensoria Pública, nos termos do artigo 977657.

Cassio Scarpinella Bueno ressalta que o artigo 977, II, do NCPC “é menos

amplo que o referido dispositivo do Projeto da Câmara, que se referia também a

pessoas jurídicas de direito público e associações civis cuja finalidade institucional

654 Lei 13.105/15 – Art. 976. § 1o A desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente. § 2o Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono. 655 THEODORO JR., 2015b, p. 742, Op Cit. 656 DANTAS, 2015, p. 2.186, Op Cit. 657 Lei 13.105/15 - Art. 977. O pedido de instauração do incidente será dirigido ao presidente de tribunal: I - pelo juiz ou relator, por ofício; II - pelas partes, por petição; III - pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição. Parágrafo único. O ofício ou a petição será instruído com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos pressupostos para a instauração do incidente.

Page 171: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

171

incluísse a defesa do interesse ou direito objeto do incidente”658.

Referindo-se ao modelo de legitimidade adotado pelo novo CPC para a

instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas, Georges Abboud

e Marcos de Araújo Cavalcanti defendem a sua inconstitucionalidade, por violação

ao princípio do contraditório, em virtude da ausência de controle judicial adequado

da representatividade, contrariando pressuposto fundamental para a eficácia

vinculante da decisão de mérito desfavorável aos processos dos litigantes que

não participaram ativamente do incidente processual coletivo659.

Por outro lado, caso o Ministério Público não seja o requerente, atuará

necessariamente no IRDR na qualidade de fiscal da ordem jurídica, nos termos do

artigo 982, III660, que prevê a intimação do MP para se manifestar nos autos do

incidente de resolução de demandas repetitivas.

Apesar de não haver menção expressa no novo Código de Processo Civil,

o pedido de instauração do incidente deverá ser protocolado diretamente no

tribunal de segundo grau e devidamente acompanhado dos documentos

necessários para comprovar a necessidade e o cabimento do IRDR661.

O incidente de resolução de demandas repetitivas somente pode ser

suscitado perante o Tribunal de Justiça (TJ) ou o Tribunal Regional Federal (TRF)

e a competência funcional para o julgamento do incidente será do órgão indicado

no regimento interno662 do respectivo tribunal663.

658 BUENO, 2016, p. 617, Op Cit. 659 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit. 660 Lei 13.105/15 - Art. 982. Admitido o incidente, o relator: III - intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias. 661 MENDES; SILVA, 2016, p. 547, Op Cit. 662 O artigo 933 do PL 8.046/2010 previa que o juízo de admissibilidade e o julgamento do incidente competiriam ao plenário do tribunal ou, onde houver, ao órgão especial. No entanto, a constitucionalidade desta solução foi questionada e a redação final do artigo prevê que o regimento interno do tribunal indicará o órgão responsável pelo incidente. Criticando a redação do artigo 933 do PL 8.046/2010, Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa assim se manifestou: “mais do que inconveniente, a previsão é inconstitucional, pois é prerrogativa constitucional dos tribunais (art. 96, I, a, da CF/1988) disciplinar a competência de seus órgãos fracionários, ressalvados os casos expressamente disciplinados pelo próprio texto constitucional (v.g., competência para declaração incidental de inconstitucionalidade, art. 97) (YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/2010. Revista de Processo, v. 206/2012, p. 243-270, abr/2012). 663 Lei 13.105/15 - Art. 978. O julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo regimento interno entre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal.

Page 172: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

172

Oportuno destacar que a decisão de admissibilidade do IRDR, prevista no

art. 981664 do novo Código de Processo Civil, e que acarreta a suspensão dos

processos pendentes que tratem da mesma questão de direito, será sempre do

órgão colegiado competente para julgar o incidente665, sendo irrecorrível a

decisão proferida no juízo de admissibilidade do IRDR, independentemente de ser

positiva ou negativa666.

4.1.2.2 Suspensão dos processos

Uma vez admitido o incidente de resolução de demandas repetitivas, o

relator deve determinar a suspensão de todos os processos, individuais ou

coletivos, que tramitam no Estado (TJ) ou na região (TRF) e contenham a mesma

questão jurídica discutida no incidente admitido667.

Apesar de a regra geral ser a suspensão tão somente dos processos no

âmbito de competência do tribunal, o §3º 668 do artigo 982 do novo CPC prevê

medida excepcional para suspender os processos em todo o território nacional,

mediante requerimento ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal

Federal. Oportuno salientar que a parte em processo tramitando fora dos limites

de competência do tribunal também poderá pleitear a suspensão do processo em

nível nacional, visando à uniformidade de entendimentos sobre a questão de

direito a ser decidida no incidente de resolução de demandas repetitivas669.

664 Lei 13.015/15 - Art. 981. Após a distribuição, o órgão colegiado competente para julgar o incidente procederá ao seu juízo de admissibilidade, considerando a presença dos pressupostos do art. 976. 665 O Enunciado nº 91 do Fórum Permanente de Processualistas Civis dispõe que: cabe ao órgão colegiado realizar o juízo de admissibilidade do incidente de resolução de demandas repetitivas, sendo vedada a decisão monocrática. Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/ wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf. No mesmo sentido, CAVALCANTI, 2015, p. 443, Op Cit. 666 DANTAS, 2015, p. 2.188, Op Cit. 667 Lei 13.105/15 - Art. 982. Admitido o incidente, o relator: I - suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no estado ou na região, conforme o caso. 668 Lei 13.105/15 – Art. 982. § 3o Visando à garantia da segurança jurídica, qualquer legitimado mencionado no art. 977, incisos II e III, poderá requerer, ao tribunal competente para conhecer do recurso extraordinário ou especial, a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente já instaurado. 669 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.974, Op Cit.

Page 173: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

173

O termo a quo para a suspensão dos processos é a decisão de

admissibilidade do IRDR670, cabendo ao relator tão somente comunicar aos

órgãos jurisdicionais competentes a admissão do incidente671 e a suspensão das

demandas repetitivas pendentes672.

Apesar de não haver menção expressa no Código de Processo Civil,

também ficarão suspensas as ações que tramitam nos juizados especiais no

limite de competência do Tribunal673, haja vista que a tese jurídica também será

aplicada a esses processos674.

O novo Código de Processo Civil não estabeleceu as regras para a

diferenciação de processo indevidamente suspenso (distinguishing) no incidente

de resolução de demandas repetitivas675.

Estava prevista no art. 990, § 4º, do PL 8.046/2010676, a possibilidade de

o interessado requerer a desafetação do seu processo quando entendesse não

ser hipótese de suspensão, por sua demanda versar sobre questão de direito

diversa da submetida ao incidente. De igual forma, havia previsão de a parte

requerer a suspensão de seu processo caso entendesse que a questão jurídica a

ser decidida está abrangida pelo incidente a ser julgado. No entanto, tal

disposição não encontrou correspondente no texto final do novo CPC, omitindo-se

sobre as regras para o distinguishing no IRDR.

Para sanar essa omissão legislativa, devem ser aplicadas as regras de

distinguishing aplicáveis para os recursos repetitivos (art. 1.037, § 8º ao § 13),

devendo ser dirigida petição ao juiz ou relator do caso repetitivo demonstrando “a

670 Lei 13.105/15 - Art. 313. Suspende-se o processo: IV- pela admissão de incidente de resolução de demandas repetitivas; 671 Lei 13.105/15 – Art. 983. § 1o A suspensão será comunicada aos órgãos jurisdicionais competentes. 672 CAVALCANTI, 2015, p. 445, Op Cit. 673 Enunciado nº 93: Admitido o incidente de resolução de demandas repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem sobre a mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os juizados especiais no mesmo estado ou região. Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf. 674 CAVALCANTI, 2015, p. 444, Op Cit. 675 DANTAS, 2015, p. 2.189, Op Cit. 676 PL 8.046/2010 – Art. 990. § 4º O interessado pode requerer o prosseguimento do seu processo, demonstrando a distinção do seu caso, nos termos do art. 521, § 5º; ou, se for a hipótese, a suspensão de seu processo, demonstrando que a questão jurídica a ser decidida está abrangida pelo incidente a ser julgado. Em qualquer dos casos, o requerimento deve ser dirigido ao juízo onde tramita o processo. A decisão que negar o requerimento é impugnável por agravo de instrumento. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra? codteor=1246935 &filename=Tramitacao-PL+8046/2010

Page 174: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

174

singularidade ou a distinção da questio iuris colocada em seu caso particular e

aquela discutida no IRDR”677

Cumpre salientar que, contra a decisão que apreciar o requerimento de

distinguishing em processo afetado pelo incidente de resolução de demandas

repetitivas, caberá agravo de instrumento, se a decisão for de juiz de primeiro

grau, ou agravo interno, caso seja decisão do relator do processo no tribunal (art.

1.037, § 13, I e II)678.

Apesar de o novo CPC determinar a suspensão de todos os processos ou

recursos que tratem da idêntica questão de direito a ser apreciada no IRDR

admitido, parte da doutrina defende a possibilidade de a parte requerer o

prosseguimento de sua demanda individual. Nesse sentido, Nelson Nery Júnior e

Rosa Maria de Andrade Nery defendem que não há interesse público que possa

contrapor-se às garantias fundamentais previstas na Constituição Federal.

Portanto:

Evidentemente que se a parte quiser que seu processo prossiga, tem o direito de assim o exigir, de acordo com a CF 5º XXXV, porquanto fere a garantia constitucional do direito de ação a determinação compulsória da paralisação do processo, em virtude da instauração do IRDR. As garantias fundamentais da CF 5º têm, ontologicamente e em sua essência, a oponibilidade contra o Estado e o direito da coletividade679.

Seguindo essa linha de pensamento, Georges Abboud e Marcos de Araújo

Cavalcanti assinalam:

Essa forma de vinculação absoluta fere o direito fundamental de ação (art. 5.º, XXXV, da CF/1988). Não há como o NCPC impedir o direito de a parte prosseguir com sua demanda isoladamente, ou seja, fora do regime jurídico do IRDR. O sistema processual deve sempre assegurar ao litigante o direito de opção. Essa possibilidade de escolha decorre do direito fundamental de ação, de sorte que o legislador não pode criar uma forma de vinculação

677 DANTAS, 2015, p. 2.189, Op Cit. No mesmo sentido é o Enunciado nº 348 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: Os interessados serão intimados da suspensão de seus processos individuais, podendo requerer o prosseguimento ao juiz ou tribunal onde tramitarem, demonstrando a distinção entre a questão a ser decidida e aquela a ser julgada no incidente de resolução de demandas repetitivas ou nos recursos repetitivos. Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf. 678 CAVALCANTI, 2015, p. 449, Op Cit. 679 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.968, Op Cit.

Page 175: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

175

absoluta pro et contra sem estabelecer mecanismos processuais que assegurem seu pleno exercício680.

Segundo essa corrente de pensamento, o novo Código de Processo Civil

deveria ter garantido às partes o direito de não serem afetadas pela decisão

proferida no julgamento coletivizado e de prosseguirem com suas demandas

isoladamente (opt-out)681.

4.1.3 Efeitos das decisões proferidas em IRDR

O novo Código determina que, julgado o mérito do incidente, a tese jurídica

firmada será aplicada a todos os processos repetitivos que tratem da mesma

questão de direito no âmbito do respectivo tribunal, inclusive aqueles que

tramitam perante os juizados especiais do estado ou região. Da mesma forma, a

decisão proferida no IRDR vinculará os casos repetitivos futuros que venham a

tratar da mesma questão de direito682.

Por se tratar de incidente processual, Marcos de Araújo Cavalcanti defende

que a decisão proferida em seu bojo tem natureza jurídica de decisão

interlocutória e não fica sujeita à coisa julgada, mas apenas à preclusão683.

Por essa razão, Bruno Dantas observa que a decisão proferida pelo

Tribunal ao apreciar o IRDR não resolve a lide, “mas meramente fixa a

interpretação da quaestio iuris que compõe a causa petendi. Desta forma, não há

que se falar em coisa julgada da questão de direito, mas sim em efeito

vinculante”684.

No mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior explica que o acórdão do

tribunal que julga o incidente não faz coisa julgada material, porém, terá força

vinculativa erga omnes, determinando que a tese de direito definida seja aplicada

a todos os demais processos repetitivos que discutam a mesma questão de 680 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit. 681 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit. 682 Lei 13.105/15 - Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I - a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo estado ou região; II - aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986. 683 CAVALCANTI, 2015, Op Cit. 684 DANTAS, 2015, p. 2.194, Op Cit.

Page 176: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

176

direito. Sendo assim, a projeção erga omnes não se refere aos efeitos da coisa

julgada, mas da razão de decidir (ratio decidendi) adotada no IRDR685.

Como regra geral, a vinculação da tese jurídica firmada no incidente é

apenas para os juízes e órgãos fracionários do próprio Tribunal. Todavia, do

acórdão que analisa o IRDR caberá recurso especial e/ou recurso

extraordinário686 e, caso seja apreciado o mérito do recurso pelo STJ ou pelo

STF, a tese jurídica será aplicada em todo o território nacional, conforme

disciplina o § 2º 687 do artigo 987 do novo CPC.

A priori, a limitação territorial gera o risco de decisões conflitantes entre

Tribunais regionais ou estaduais, mas a possibilidade de a decisão proferida pelo

Supremo Tribunal Federal (recurso extraordinário) ou pelo Superior Tribunal de

Justiça (recurso especial) vincular todo o território nacional parece uma forma de

solucionar esse impasse.

Em caso de descumprimento por parte de juízes e tribunais vinculados à

decisão proferida no incidente, a parte interessada ou o Ministério Público

poderão propor reclamação para o tribunal que apreciou o IRDR, a fim de garantir

a observância da tese jurídica firmada no julgamento do incidente (art. 985, § 1º,

c/c art. 988, IV e § 1º do CPC/2015)688.

Quanto à referida vinculação das decisões proferidas em IRDR, cumpre

salientar que parte da doutrina defende a inconstitucionalidade do efeito

vinculante previsto para o IRDR, porque tal mecanismo não poderia ser instituído

mediante legislação ordinária. A vinculação de uma decisão aos juízes de

hierarquia inferior ao órgão prolator da decisão, bem como aos particulares, deve

estar sempre prevista expressamente na Constituição da República689.

Outro aspecto que merece destaque é que o incidente de resolução de

demandas repetitivas, tal como previsto no novo Código de Processo Civil, afasta- 685 THEODORO JR., 2015b, p. 737, Op Cit. 686 Lei 13.105 - Art. 987. Do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário ou especial, conforme o caso. 687 Lei 13.105/15 – Art. 987. § 2o Apreciado o mérito do recurso, a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito. 688 Lei 13.105/15 – Art. 985. § 1o Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação. Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência; § 1o A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir. 689 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.975, Op Cit.

Page 177: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

177

se do procedimento-modelo alemão que lhe serviu de inspiração. Conforme já

mencionado, as decisões proferidas no Musterverfahren afetarão única e

exclusivamente as ações judiciais cuja propositura tiver ocorrido até a data de sua

prolação690.

Desta forma, as decisões do incidente de resolução de demandas

repetitivas previsto no novo Código de Processo Civil serão dotadas de mais

efeito e valor quando comparadas àquelas oriundas do procedimento-modelo

alemão, pois serão aplicadas também aos processos ajuizados após a sua

existência. Esta é outra razão pela qual alguns autores defendem a

inconstitucionalidade do IRDR691.

Por fim, vale lembrar que o novo Código de Processo Civil previu

expressamente a possibilidade de revisão da tese firmada no incidente de

resolução de demandas repetitivas, determinando o procedimento específico para

sua realização692. Tal revisão pode ocorrer a qualquer tempo, desde que

comprovada a sua pertinência e necessidade, não se tratando de recurso, e

ocorrendo para a “reinterpretação dos argumentos apresentados ou em função de

mudança da conjuntura econômica, política ou social que permita uma nova

análise da questão”693.

4.1.4 Cabimento do IRDR nos juizados especiais

Inicialmente, o anteprojeto do novo código, assim como o texto aprovado

na primeira fase de tramitação do projeto perante o Senado Federal, nenhuma

referência fez à extensão dos efeitos do julgamento do incidente de resolução de

demandas repetitivas ao microssistema dos Juizados Especiais694.

Todavia, durante os debates legislativos, foi sugerida a aplicação do

incidente de resolução de demandas repetitivas também aos juizados especiais

cíveis, sob o argumento de que no sistema dos juizados especiais se concentra

grande número de processos repetitivos, “que não encontram tratamento 690 ABBOUD; CAVALCANTI, /2015, p. 221-242, Op Cit. 691 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit. 692 Lei 13.105/15 - art. 986. A revisão da tese jurídica firmada no incidente far-se-á pelo mesmo tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados mencionados no art. 977, inciso III. 693 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.976, Op Cit. 694 MENDES; ROMANO NETO, 2015, p. 275-309, Op Cit.

Page 178: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

178

adequado nos mecanismos de uniformização atualmente existentes na legislação

específica dos Juizados”695.

Diante disso, a Câmara dos Deputados introduziu referida previsão no

Projeto de Lei e a redação final do novo Código de Processo Civil acolheu a

aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas aos processos que

tramitem nos juizados especiais estaduais ou federais696.

Parte da doutrina defende a inconstitucionalidade da aplicação do IRDR no

âmbito dos Juizados Especiais, sob o seguinte fundamento:

Os juízes que integram os juizados especiais não estão subordinados (para efeitos jurisdicionais) às decisões dos Tribunais de Justiça dos Estados ou dos Tribunais Regionais Federais. A suspensão e a imposição vinculativa da tese jurídica aos processos repetitivos em tramitação nos juizados especiais violam o texto constitucional697.

Georges Abboud e Marcos de Araújo Cavalcanti asseveram que: A melhor saída seria, por exemplo, o NCPC estabelecer, como faz no art. 1.059 para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, no Livro Complementar das Disposições Finais e Transitórias, que o IRDR se aplica aos processos dos juizados especiais, cabendo o julgamento do incidente às Turmas de Uniformização. O que não se pode aceitar é que uma tese jurídica fixada em incidente processado e julgado em órgão jurisdicional estranho ao microssistema dos juizados especiais (TJs e TRFs) alcance vinculativamente os processos ali em tramitação698.

Por outro lado, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Odilon Romano

Neto ressaltam:

Cabe reconhecer que a extensão da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas aos Juizados Especiais não se afigura inconstitucional, por eventual contrariedade ao disposto no art. 98, I, da CF/1988, na medida em que: (a) de um lado o dispositivo constitucional não veda que órgãos externos à estrutura dos Juizados Especiais possam em alguma medida

695 Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Odilon Romano Neto informam que “não foi por outra razão que a Comissão Permanente de Processo Civil da Associação de Juízes Federais do Brasil (AJUFE), da qual os autores deste texto têm a honra de participar, levantou a questão junto ao Relator do Projeto do novo CPC, na Câmara dos Deputados, Deputado Paulo Teixeira, em como aos juristas que o assessoravam, especialmente com Luiz Henrique Volpe, elaborando a nota. 05, expedida em junho de 2013” (MENDES; ROMANO NETO, 2015, p. 275-309). 696 Lei 13.105/15 - Art. 985, I. 697 CAVALCANTI, 2015, p. 611, Op Cit. 698 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit.

Page 179: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

179

participar dos mecanismos de uniformização próprios desse microssistema, tal como reconheceu o Supremo Tribunal Federal ao apreciar a disposição da Lei 10.259/2001 que prevê a inserção do Superior Tribunal de Justiça nos mecanismos de uniformização dos Juizados Especiais Federais; e (b) não há um deslocamento do julgamento de causas em tramitação nos Juizados Especiais para os respectivos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais, mas apenas a extensão da aplicação da tese jurídica nestes firmada, de forma a assegurar a plena realização dos valores constitucionais da segurança jurídica e da igualdade de tratamento dos jurisdicionados699.

Parece que tem prevalecido o entendimento pela constitucionalidade da

aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas para os Juizados

Especiais, conforme estabelece o Enunciado nº 93 do Fórum Permanente de

Processualistas Civis, in verbis: “admitido o incidente de resolução de demandas

repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem sobre a

mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os Juizados Especiais

no mesmo estado ou região“700.

4.2 Recursos repetitivos

Desde a reforma do Poder Judiciário, implementada pela Emenda

Constitucional 45/2004701, o ordenamento jurídico brasileiro vem apostando em

uma “padronização decisória viabilizada pela técnica recursal extraordinária”702,

na tentativa de solucionar demandas repetitivas.

699 MENDES; ROMANO NETO, 2015, p. 275-309, Op Cit. 700 Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis, extraídos da “Carta de Vitória”, de maio/2015. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf. 701 A Emenda Constitucional (EC) 45/ 2004 introduziu no Brasil o instituto da repercussão geral no art. 102, §3º, da CF/88, que assim dispõe: No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. 702 Dierle Nunes comenta que “a EC 45 abriu margem à utilização no campo recursal da técnica da ‘causa-piloto’ mediante a qual se afeta caso (recurso representativo da controvérsia) que é usado como amostragem para solução de inúmeros outros idênticos” (NUNES, Dierle. Do julgamento dos Recursos Extraordinário e Especial Repetitivos (artigos 1.036 ao 1.041 do CPC/2015). In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Org.). Breves Comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 2.320.

Page 180: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

180

Dierle Nunes opina que “o objetivo evidente é o de se otimizar o

funcionamento dos tribunais, reduzindo sua carga numérica de trabalho e

induzindo que o mesmo analise em menor número de vezes casos idênticos”703.

A Lei no 11.418/2006 regulamentou o instituto da repercussão geral e

introduziu o artigo 543-B704 no Código de Processo Civil de 1973, para tratar dos

recursos extraordinários repetitivos (quando houver multiplicidade de recursos

com fundamento em idêntica controvérsia), ultrapassando os contornos originais

do instituto, traçados no texto constitucional pela EC 45/2004705. Logo, além de

regulamentar a repercussão geral, a Lei no 11.418/06 “introduziu técnica diversa:

a possibilidade de julgamento por amostragem dos recursos extraordinários

‘fundados em idêntica controvérsia’, ditos repetitivos”706.

Assim, a repercussão geral e o julgamento de recursos repetitivos são

técnicas diversas, conforme explicam Flávio Cheim Jorge e Thiago Ferreira

Siqueira:

A repercussão geral nada mais é do que um novo requisito de admissibilidade que deve atender aos recursos extraordinários, possibilitando ao Supremo Tribunal Federal escolher quais dentre eles merecem ou não, pela transcendência e relevância da matéria discutida, serem ali julgados. A seu turno, o julgamento por amostragem é mecanismo que possibilita a apreciação conjunta de questão que se repete em um grande número de feitos. Seleciona-se, então, algum ou alguns processos paradigmas, que terão aquela questão apreciada, valendo tal orientação para todos os demais707.

703 NUNES, 2015, p. 2.320, Op Cit.. 704 Lei 5.869/73 - Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo. § 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte. § 2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos. § 3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se. § 4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada. § 5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral (Incluído pela Lei nº 11.418, de 2006). 705 DANTAS, 2015 p. 66, Op Cit. 706 CHEIM JORGE, Flávio; SIQUEIRA, Thiago Ferreira. Repercussão geral e recursos repetitivos: a atuação dos tribunais de origem. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno Dantas. Repercussão geral da questão constitucional.. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 260. 707 CHEIM JORGE; SIQUEIRA, 2014, p. 261, Op Cit.

Page 181: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

181

Pouco depois, foi a vez da Lei no 11.672/2008 introduzir o artigo 543-C708

no Código de Processo Civil de 1973 para regulamentar os recursos especiais

repetitivos, dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça. O intuito do legislador foi

“conferir maior eficiência aos tribunais, evitando a necessidade de reavaliação de

várias questões iguais, o que ensejaria entraves e gastos desnecessários”709.

Todavia, Bruno Dantas observa que “as grandes mudanças decorrentes

dos arts. 543-B e 543-C não foram precedidas de elaborações teóricas mais

aprofundadas, pois tiveram como objetivo oferecer soluções práticas para

dificuldades reais e urgentes”710.

Sendo assim, a disciplina dos recursos extraordinários e especiais

repetitivos, então prevista nos artigos 543-B e 543-C, trouxe alguns problemas de

aplicação, comprometendo a qualidade dos trabalhos dos tribunais. Dierle Nunes

reconhece que:

708 Lei 5.869/73 - Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. § 1o Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça. § 2o Não adotada a providência descrita no § 1o deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. § 3o O relator poderá solicitar informações, a serem prestadas no prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito da controvérsia. § 4o O relator, conforme dispuser o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia. § 5o Recebidas as informações e, se for o caso, após cumprido o disposto no § 4o deste artigo, terá vista o Ministério Público pelo prazo de quinze dias. § 6o Transcorrido o prazo para o Ministério Público e remetida cópia do relatório aos demais Ministros, o processo será incluído em pauta na seção ou na Corte Especial, devendo ser julgado com preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. § 7o Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça. § 8o Na hipótese prevista no inciso II do § 7o deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial. § 9o O Superior Tribunal de Justiça e os tribunais de segunda instância regulamentarão, no âmbito de suas competências, os procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso especial nos casos previstos neste artigo (Incluído pela Lei nº 11.672, de 2008). 709 OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro. Meios de impugnação das decisões judiciais. In: THEODORO JR, Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro; REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 800. 710 DANTAS, 2015 p. 109, Op Cit.

Page 182: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

182

Sob a égide do CPC/1973 Reformado a técnica não induzia uma análise panorâmica da temática objeto do recurso, não sendo incomum que os argumentos superficiais de um único recurso servissem de subsídio para um julgado (erroneamente denominado de precedente; em face da ausência de fundamento determinante – ratio decidendi – definido) que se aplicaria a milhares de casos idênticos. Ademais, não se predispunha de técnicas de distinguishing (distinção) hábeis a resolver problemas de aplicação711.

Por isso, o novo Código de Processo Civil, ao criar um “microssistema de

casos repetitivos”712, também se preocupou em ampliar e aperfeiçoar a disciplina

dos recursos especial e extraordinário repetitivos713. O novo CPC regulamentou

os recursos extraordinário e especial repetitivos nos arts. 1.036 a 1.041, cuidando

de unificar o procedimento para os RE e REsp repetitivos, tomando por base o

procedimento até então adotado para os recursos especiais repetitivos, cujas

disposições específicas se encontravam na Resolução nº 08/2008 do Superior

Tribunal de Justiça714.

Portanto, o procedimento básico dos recursos especial e extraordinário

repetitivos continua semelhante ao previsto nos artigos 543-B e 543-C do

CPC/1973: identificada a multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais

com fundamento em idêntica questão de direito, serão selecionados recursos

representativos da controvérsia, ficando suspensos os demais recursos repetitivos

até o pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal ou do Superior

Tribunal de Justiça. Julgado o caso paradigma, os recursos sobrestados na

origem terão seguimento denegado se o acórdão recorrido coincidir com a

orientação firmada pelo tribunal superior ou o tribunal de origem analisará

novamente o processo, caso o acórdão recorrido divirja da orientação firmada

pelo tribunal superior715.

Todavia, o novo Código de Processo Civil trouxe algumas novidades em

relação ao processamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos.

Inicialmente, em virtude do tratamento superficial e da ausência de abrangência

de todos os fundamentos relevantes nos julgamento ocorridos sob a égide do

CPC/1973, observa-se que o CPC/2015 demonstrou preocupação em melhorar o 711 NUNES, 2015, p. 2.320-2.321, Op Cit. 712 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit. 713 CAVALCANTI, 2015, p. 409, Op Cit. 714 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 2.207, Op Cit. 715 CAVALCANTI, 2015, p. 409-410, Op Cit.

Page 183: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

183

debate para a tomada de decisões pelos tribunais superiores, com a ampliação

objetiva do número de recursos representativos da controvérsia716 (dois ou mais

recursos; art. 1.036, § 1º e § 5º, CPC/2015717) a serem apreciados pelo Supremo

Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça. Para isso, devem ser

selecionados recursos admissíveis e que contenham abrangente argumentação e

discussão sobre a matéria (art. 1.036, § 6º, CPC/2015718).

O amplo debate sobre os argumentos trazidos pelas partes é fundamental

no julgamento dos recursos repetitivos, de acordo com Dierle Nunes:

Para o funcionamento adequado da sistemática dos recursos representativos é fundamental a correção do processo de formação do precedente, o que se dá com a ampla análise dos argumentos apresentados pelas partes e terceiros e com uma escolha adequada dos recursos representativos que permitirão, na sequência, uma aplicação mais correta dos precedentes que reduza a situação de que novos argumentos induzam uma flutuação de entendimentos com a nefasta instabilidade decisória719.

Outro problema que o novo CPC buscou corrigir foi o da aplicação da

decisão paradigma em processos que não passariam do juízo de

admissibilidade720. Para superar esta questão, o Código de Processo Civil de

2015 permite ao interessado requerer a exclusão da decisão de sobrestamento

com a consequente inadmissão do recurso intempestivo721.

Outra inovação legislativa é a decisão de afetação, que é aquela por meio

da qual o relator no Tribunal superior reconhece a existência de multiplicidade de

716 NUNES, 2015, p. 2.323, Op Cit. 717 Lei 13.105/15 - Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça. § 1o O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso. 718 Lei 13.105/15 – Art. 1.036. § 5o O relator em tribunal superior também poderá selecionar 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia para julgamento da questão de direito independentemente da iniciativa do presidente ou do vice-presidente do tribunal de origem. 719 NUNES, 2015, p. 2.324, Op Cit. 720 NUNES, 2015, p. 2.325, Op Cit. 721 Lei 13.015/15 – Art. 1.036. § 2o O interessado pode requerer, ao presidente ou ao vice-presidente, que exclua da decisão de sobrestamento e inadmita o recurso especial ou o recurso extraordinário que tenha sido interposto intempestivamente, tendo o recorrente o prazo de 5 (cinco) dias para manifestar-se sobre esse requerimento.

Page 184: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

184

recursos com fundamento em idêntica questão de direito. A decisão de afetação

deverá indicar com precisão a questão a ser submetida a julgamento722. Como

referem Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery:

A decisão de afetação é o norte para a disseminação do impacto da decisão tomada a respeito dos recursos repetitivos, uma vez que nela fica delimitada a questão que será levada a julgamento. Não se pode incluir no julgamento questão não incluída na decisão de afetação, portanto. E isso se justifica não apenas pela letra da lei, mas pelo fato de que todos os atos que precederam o julgamento visaram à solução de uma questão específica, que é justamente aquela que permeia os recursos tidos como vinculados723.

Conforme o Código de Processo Civil de 2015, uma vez determinada a

afetação, o Ministro Relator determinará a suspensão de todos os processos

pendentes em trâmite no território nacional que versem sobre a mesma

matéria724. Caberá ao juiz ou relator verificar os limites da afetação e determinar a

suspensão dos processos sob sua competência, devendo intimar as partes da

referida decisão725, em virtude da publicidade dos atos processuais e para que

possam recorrer dessa decisão ou demonstrar a distinção entre a tese defendida

no processo e a afetada no recurso paradigma726.

Um dos principais avanços do “microssistema de casos repetitivos” previsto

no novo Código de Processo Civil foi a regulamentação de mecanismos de

distinguishing (distinção), permitindo às partes demonstrar que seu caso, mesmo

aparentemente semelhante ao que será julgado pelo tribunal superior, apresenta

alguma distinção727. No sistema do CPC/1973, muitas vezes o caso sobrestado,

em outra análise posterior, revelava-se diverso daquele recurso que serviu de

paradigma ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior

722 Lei 13.105/15 - Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036, proferirá decisão de afetação, na qual: I - identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento. 723 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 2.212, Op Cit. 724 Lei 13.105/15 – Art. 1.037. II - determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional; 725 Lei 13.105/ 15 – Art. 1.037. § 8o As partes deverão ser intimadas da decisão de suspensão de seu processo, a ser proferida pelo respectivo juiz ou relator quando informado da decisão a que se refere o inciso II do caput. 726 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 2.213, Op Cit. 727 NUNES, 2015, p. 2.325, Op Cit.

Page 185: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

185

Tribunal de Justiça728. Sendo assim, o novo CPC (art. 1.037, § 9º ao § 13) previu

um procedimento detalhado para que a parte demonstre a distinção da matéria a

ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso paradigma,

requerendo o regular prosseguimento do seu processo729.

Feitas essas considerações, percebe-se que a intenção do legislador foi, a

partir das falhas detectadas no sistema do CPC/1973, aprimorar o processamento

dos recursos extraordinário e especial repetitivos, a fim de garantir a observância

do dever de fundamentação no recurso paradigma, além de assegurar a correta

escolha dos recursos atingidos pela causa-piloto. Nesse sentido é a conclusão

apresentada por Elpídio Donizetti, para quem “a ideia central das alterações é

garantir uma boa técnica de seleção por amostragem, a qual refletirá,

diretamente, na profundidade da discussão no tribunal e na qualidade do

precedente que será formado”730.

A exemplo do que ocorrera após a inclusão do artigo 543-C no Código de

Processo Civil de 1973, após a entrada em vigor do novo Código de Processo

Civil o Superior Tribunal de Justiça optou por regulamentar de forma detalhada o

procedimento de processamento, afetação e julgamento dos recursos especiais

repetitivos, trazendo diversas peculiaridades que não estão previstas na redação

da Lei n. 13.105/15.

A regulamentação foi levada a efeito no âmbito do Superior Tribunal de

Justiça através da Emenda Regimental nº 24, de 28 de setembro de 2016, que

alterou, incluiu e revogou dispositivos do Regimento Interno do Tribunal para

728 ROSSI, Júlio César. Precedente à brasileira: a jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC. São Paulo: Atlas, 2015, p. 176. 729 Lei 13.105 – Art. 1.037. § 9o Demonstrando distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado, a parte poderá requerer o prosseguimento do seu processo. § 10. O requerimento a que se refere o § 9o será dirigido: I - ao juiz, se o processo sobrestado estiver em primeiro grau; II - ao relator, se o processo sobrestado estiver no tribunal de origem; III - ao relator do acórdão recorrido, se for sobrestado recurso especial ou recurso extraordinário no tribunal de origem; IV - ao relator, no tribunal superior, de recurso especial ou de recurso extraordinário cujo processamento houver sido sobrestado. § 11. A outra parte deverá ser ouvida sobre o requerimento a que se refere o § 9o, no prazo de 5 (cinco) dias. § 12. Reconhecida a distinção no caso: I - dos incisos I, II e IV do § 10, o próprio juiz ou relator dará prosseguimento ao processo; II - do inciso III do § 10, o relator comunicará a decisão ao presidente ou ao vice-presidente que houver determinado o sobrestamento, para que o recurso especial ou o recurso extraordinário seja encaminhado ao respectivo tribunal superior, na forma do art. 1.030, parágrafo único. § 13. Da decisão que resolver o requerimento a que se refere o § 9o caberá: I - agravo de instrumento, se o processo estiver em primeiro grau; II - agravo interno, se a decisão for de relator. 730 DONIZETTI, Elpídio. Novo código de processo civil comentado (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015): análise comparativa entre o novo CPC e o CPC/73. São Paulo: Atlas, 2015, p. 805.

Page 186: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

186

adequá-lo ao novo Código de Processo Civil, além de trazer algumas inovações,

regulando os procedimentos relacionados aos recursos repetitivos a partir do

artigo 256 do Regimento Interno.

Dentre as inovações trazidas pela Emenda Regimental nº 24 do Superior

Tribunal de Justiça, algumas merecem destaque.

Foram criadas ferramentas eletrônicas com o intuito de conferir maior

publicidade ao trâmite dos recursos especiais repetitivos, com a disponibilização

de informações na página do tribunal na internet (Art. 256-D, § único, RISTJ731),

com a respectiva descrição da questão de direito e com o número sequencial

correspondente à controvérsia, permitindo o acompanhamento da tramitação

pelos interessados em todas as suas fases.

Outra inovação é a fixação de prazo máximo de 60 dias úteis para que o

ministro relator reexamine a admissibilidade do recurso representativo da

controvérsia a fim de rejeitar a indicação do recurso especial como representativo

de controvérsia por ausência dos pressupostos recursais ou propor a sua

afetação à Corte Especial ou à seção competente para julgamento sob o rito dos

repetitivos (artigo 256-E, RISTJ)732.

Como se percebe, ao contrário do que determina o novo Código de

Processo Civil (art. 1.037), as afetações não serão feitas pelo próprio relator, de

forma monocrática. Com a alteração promovida pela Emenda Regimental nº 24,

toda afetação deve ser colegiada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça

(artigo 256-I, RISTJ)733.

731 Art. 256-D. Caso o Presidente do STJ admita o recurso especial, determinará a distribuição dos autos nos seguintes termos: I - por dependência, para os recursos especiais representativos da controvérsia que contiverem a mesma questão de direito; II - de forma livre, mediante sorteio automático, para as demais hipóteses. Parágrafo único. O Superior Tribunal de Justiça manterá, em sua página na internet, em destaque, relação dos recursos especiais representativos da controvérsia aptos, com a respectiva descrição da questão de direito e com o número sequencial correspondente à controvérsia. 732 Art. 256-E. Compete ao relator do recurso especial representativo da controvérsia, no prazo máximo de sessenta dias úteis a contar da data de conclusão do processo, reexaminar a admissibilidade do recurso representativo da controvérsia a fim de: I - rejeitar, de forma fundamentada, a indicação do recurso especial como representativo da controvérsia devido à ausência dos pressupostos recursais genéricos ou específicos e ao não cumprimento dos requisitos regimentais, observado o disposto no art. 256-F deste Regimento; II - propor à Corte Especial ou à Seção a afetação do recurso especial representativo da controvérsia para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, nos termos do Código de Processo Civil e da Seção II deste Capítulo. 733 Art. 256-I. O recurso especial representativo da controvérsia apto, bem como o recurso especial distribuído cuja multiplicidade de processos com idêntica questão de direito seja reconhecida pelo relator, nos termos do art. 1.037 do Código de Processo Civil, será

Page 187: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

187

Por outro lado, a fixação de prazo para que o relator proponha a afetação

ao órgão colegiado tem como intuito evitar a suspensão indevida de processos

em todo o território nacional, tanto é que, caso o relator não se manifeste no

prazo de 60 dias, será presumido que o recurso especial teve sua indicação como

representativo da controvérsia rejeitada pelo relator e os processos suspensos em

todo o território nacional retomarão seu curso normal (artigo 256-G, RISTJ)734.

Com inspiração no sistema que já é adotado pelo Supremo Tribunal

Federal para reconhecimento da repercussão geral no Plenário Virtual, as

decisões de afetação de processos à sistemática dos recursos repetitivos serão

realizadas pelos órgãos colegiados em meio eletrônico (artigo 257, RISTJ)735.

submetido pela Seção ou pela Corte Especial, conforme o caso, ao rito dos recursos repetitivos para julgamento, observadas as regras previstas no Capítulo II-B do Título IX da Parte I do Regimento Interno. Parágrafo único. O Superior Tribunal de Justiça manterá, em sua página na internet, em destaque, relação dos recursos especiais afetados, com a respectiva descrição da questão de direito e com o número sequencial correspondente ao tema afetado. 734 Art. 256-G. Não adotadas as providências previstas nos incisos I e II do art. 256-E deste Regimento no prazo estabelecido no seu caput, presumir-se-á que o recurso especial representativo da controvérsia teve sua indicação rejeitada pelo relator. § 1º A rejeição, expressa ou presumida, do recurso especial representativo da controvérsia será comunicada aos Ministros do STJ e aos presidentes ou vice-presidentes dos Tribunais de origem. § 2º Os processos suspensos em todo o território nacional em razão de recurso especial representativo da controvérsia rejeitado retomarão seu curso normal. 735 Processos à Sistemática dos Recursos Repetitivos e da Admissão de Incidente de Assunção de Competência em Meio Eletrônico. Art. 257. É obrigatório ao relator o uso da ferramenta eletrônica de afetação do recurso especial à sistemática dos repetitivos e de admissão do incidente de assunção de competência, nos termos desse capítulo. Art. 257-A. Incluída pelo relator, em meio eletrônico, a proposta de afetação ou de admissão do processo à sistemática dos recursos repetitivos ou da assunção de competência, os demais Ministros do respectivo órgão julgador terão o prazo de sete dias corridos para se manifestar sobre a proposição. § 1º Para a afetação ou admissão eletrônica, os Ministros deverão observar, entre outros requisitos, se o processo veicula matéria de competência do STJ, se preenche os pressupostos recursais genéricos e específicos, se não possui vício grave que impeça o seu conhecimento e, no caso da afetação do recurso à sistemática dos repetitivos, se possui multiplicidade de processos com idêntica questão de direito ou potencial de multiplicidade. § 2º Caso a maioria dos Ministros integrantes do respectivo órgão julgador decidam, na sessão eletrônica, pelo não preenchimento dos requisitos previstos no § 1º, a questão não será afetada ou admitida para julgamento repetitivo ou como assunção de competência, retornando os autos ao relator para decisão. § 3º Rejeitada a proposta de afetação ou de admissão porque a questão não é de competência do STJ, a matéria discutida no processo não será objeto de nova inclusão para afetação ou admissão eletrônica. Art. 257-B. Não sendo o caso de impedimento ou suspeição, ou de licença ou afastamento que perdurem pelos cinco últimos dias de votação, a não manifestação do Ministro no prazo do art. 257-A deste Regimento acarretará a adesão à manifestação de afetação ou de admissão apresentada pelo relator. Art. 257-C. Findo o prazo de que trata o art. 257-A deste Regimento, o sistema contabilizará as manifestações e lançará, de forma automatizada, na plataforma eletrônica, suma com o resultado da deliberação colegiada sobre a afetação do processo à sistemática dos recursos repetitivos ou a admissão do incidente de assunção de competência. Parágrafo único. Será afetado para julgamento pela sistemática dos recursos repetitivos ou admitido o incidente de assunção de competência à Corte Especial ou à Seção o processo que contar com o voto da maioria simples dos Ministros. Art. 257-D. Afetado o recurso ou admitido o incidente, os dados serão incluídos no sistema informatizado do Tribunal, sendo-lhe atribuído

Page 188: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

188

A proposta de afetação do recurso especial repetitivo será submetida, em

meio eletrônico, a todos os ministros que compõem o órgão julgador competente,

os quais terão o prazo de sete dias corridos para se manifestarem (art. 257-A,

RISTJ). A ausência de manifestação do ministro, sem justificativa, acarreta

adesão à posição apresentada pelo relator (art. 257-B, RISTJ).

Pacificando outra questão que súscitava dúvidas, foi acrescentado o artigo

256-L736 ao Regimento Interno, o qual estabelece que, após a publicação da

decisão de afetação, os recursos especiais em tramitação no STJ fundados em

idêntica questão de direito serão devolvidos ao Tribunal de origem, para nele

permanecerem suspensos.

Ademais, o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça permite que o

entendimento firmado em sede de recurso especial repetitivo possa ser revisto,

devendo a revisão ser requerida por ministro integrante do respectivo órgão

julgador ou por representante do Ministério Público Federal que oficie perante o

STJ, nos próprios autos do processo julgado como repetitivo, caso ainda esteja

em tramitação, ou por meio de questão de ordem, independentemente de

processo a ela vinculado (artigo 256-S)737.

Poderá, ainda, ocorrer a revisão do entendimento firmado em recurso

especial repetitivo, por meio de questão de ordem proposta pelo Presidente do

órgão julgador, para adequação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal

em repercussão geral738, em ação de controle concentrado de

número sequencial referente ao enunciado de tema. Art. 257-E. Será publicada, no Diário da Justiça eletrônico, a decisão colegiada pela afetação do recurso ou pela admissão do incidente, acompanhada das manifestações porventura apresentadas pelos demais Ministros. 736 Art. 256-L. Publicada a decisão de afetação, os demais recursos especiais em tramitação no STJ fundados em idêntica questão de direito: I - se já distribuídos, serão devolvidos ao Tribunal de origem, para nele permanecerem suspensos, por meio de decisão fundamentada do relator; II - se ainda não distribuídos, serão devolvidos ao Tribunal de origem por decisão fundamentada do Presidente do STJ. 737 Art. 256-S. É cabível a revisão de entendimento consolidado em enunciado de tema repetitivo, por proposta de Ministro integrante do respectivo órgão julgador ou de representante do Ministério Público Federal que oficie perante o Superior Tribunal de Justiça. § 1º A revisão ocorrerá nos próprios autos do processo julgado sob o rito dos recursos repetitivos, caso ainda esteja em tramitação, ou será objeto de questão de ordem, independentemente de processo a ela vinculado. § 2º A revisão de entendimento terá como relator o Ministro integrante do órgão julgador que a propôs ou o seu Presidente nos casos de proposta formulada pelo representante do Ministério Público Federal. § 3º O acórdão proferido na questão de ordem será inserido, como peça eletrônica complementar, no(s) processo(s) relacionado(s) ao enunciado de tema repetitivo. 738 Para ilustrar esta situação, foi suscitada questão de ordem pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura, a ser decidida pela Terceira Seção, com o intuito de adequar o entendimento do STJ à recente tese acolhida pelo Plenário do STF que afastou a hediondez do tráfico privilegiado de drogas (HC 118533/MS), tendo sido autuada como a Pet nº 11.796/DF. A questão de ordem

Page 189: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

189

constitucionalidade, em enunciado de súmula vinculante e em incidente de

assunção de competência (artigo 256-V).739

Portanto, verifica-se que a regulamentação efetivada no âmbito do Superior

Tribunal de Justiça trouxe significativas alterações em relação ao procedimento

previsto no novo Código de Processo Civil, devendo ser observado o

procedimento previsto no Regimento Interno do STJ para o processamento e

julgamento dos recursos especiais repetitivos.

4.3 Possibilidade de conversão da ação individual em coletiva: veto

presidencial ao artigo 333 do novo CPC

A versão final do novo Código de Processo Civil aprovado pelo Congresso

Nacional previa em seu artigo 333 a possibilidade de conversão da ação

individual em ação coletiva740. Tratava-se de uma novidade do CPC/2015, sem

propõe a revisão do tema repetitivo 177 e determinou a suspensão de todos os processos pendentes que versem sobre a questão e tramitem no território nacional. 739 Art. 256-V. O Presidente do órgão julgador poderá propor, em questão de ordem, a revisão de entendimento consolidado em enunciado de tema repetitivo para adequação ao entendimento do Supremo Tribunal Federal em repercussão geral, em ação de controle concentrado de constitucionalidade, em enunciado de súmula vinculante e em incidente de assunção de competência. § 1º A revisão ocorrerá nos próprios autos do recurso julgado sob o rito dos repetitivos, caso ainda esteja em tramitação, ou será objeto de questão de ordem, independentemente de processo a ela vinculado. § 2º O acórdão proferido na questão de ordem será inserido, como peça eletrônica complementar, no(s) processo(s) relacionado(s) ao tema repetitivo. 740 Art. 333. Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que: I - tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim entendidos aqueles definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade; II - tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, por sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo. § 1o Além do Ministério Público e da Defensoria Pública, podem requerer a conversão os legitimados referidos no art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, e no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor). § 2o A conversão não pode implicar a formação de processo coletivo para a tutela de direitos individuais homogêneos. § 3o Não se admite a conversão, ainda, se: I - já iniciada, no processo individual, a audiência de instrução e julgamento; ou II - houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto; ou III - o juízo não tiver competência para o processo coletivo que seria formado. § 4o Determinada a

Page 190: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

190

precedente no direito anterior741, sendo que referido artigo surgiu de proposta

apresentada pelo Professor Kazuo Watanabe ao Relator-Geral do Projeto de Lei

na Câmara dos Deputados, Deputado Federal Paulo Teixeira742.

Conforme se infere da redação do artigo 333, a conversão da ação

individual em ação coletiva dependia do preenchimento de dois requisitos,

relevância social e dificuldade de formação do litisconsórcio e poderia ocorrer em

duas hipóteses: a) a ação que, por suas características, tivesse alcance coletivo,

por tratar da tutela de direito difuso ou coletivo e, simultaneamente, discutisse

ofensa a direito individual e da coletividade; b) a ação que exigisse a necessidade

de solução uniforme de conflito de interesse relativo a uma mesma relação

jurídica plurilateral743.

Ademais, a conversão não ocorreria ex officio, exigindo a iniciativa do

Ministério Público, da Defensoria Pública ou de qualquer outro legitimado para as

ações coletivas (art. 5º LACP e art. 82 CDC)744.

Todavia, o artigo 333 do novo CPC foi vetado pela então Presidente da

República, Dilma Rousseff. As razões apresentadas para o veto foram as

seguintes:

Da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação individual em ação coletiva de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena eficácia do instituto. Além disso, o novo Código já contempla mecanismos para tratar demandas repetitivas. No sentido do veto manifestou-se também a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)745.

conversão, o juiz intimará o autor do requerimento para que, no prazo fixado, adite ou emende a petição inicial, para adaptá-la à tutela coletiva. § 5o Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação do réu para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias. § 6o O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do legitimado para condução do processo coletivo. § 7o O autor originário não é responsável por nenhuma despesa processual decorrente da conversão do processo individual em coletivo. § 8o Após a conversão, observar-se-ão as regras do processo coletivo. § 9o A conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de natureza estritamente individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-se-á em autos apartados. § 10. O Ministério Público deverá ser ouvido sobre o requerimento previsto no caput, salvo quando ele próprio o houver formulado. 741 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Da conversão da ação individual em ação coletiva. In: T WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Org.). Breves comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 863. 742 BUENO, 2016, p. 315, Op Cit. 743 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 914, Op Cit. 744 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 189, Op Cit. 745 Mensagem de veto n. 56, de 16.03.2015 – Diário Oficial da União (DOU) 17.03.2015, p. 51/52). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Msg/VEP-56.htm

Page 191: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

191

Parte da doutrina já descrevia a possível inconstitucionalidade do artigo

333 do novo CPC, em virtude de violação ao princípio de acesso à jurisdição,

previsto no artigo 5º, XXXV746, da Constituição Federal de 1988.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery comentam:

Seria necessária a expressão concordância do autor individual, pois a ação – o direito de ação – é dele. Caso o autor discordasse, não haveria conversão. O autor não poderia ser obrigado a litigar da forma como querem MP ou Defensoria Pública, se o direito de ação é dele. A natureza potestativa do direito de ação (CF 5º XXXV) dá a ele, autor, o direito de obter a providência jurisdicional adequada, razão pela qual poderia discordar do direito de conversão. Feita à força, contra a vontade do autor, terá sido ferida a garantia constitucional do direito de ação747.

Observando que o sistema processual de tutela coletiva “sempre se

articulou de forma autônoma e independente, jamais se imiscuiu no âmbito das

ações individuais”, José Rogério Cruz e Tucci realça a inconstitucionalidade da

conversão de ação individual em coletiva, prevista no art. 333 do novo CPC,

concluindo:

É totalmente inoportuna e desnecessária a ingerência que seria instituída, no âmbito do processo civil individual, no afã de obter um julgamento que possa abranger maior número de interessados, em flagrante afronta ao direito do cidadão, que, confiando na Constituição Federal, procurou advogado e ajuizou demanda própria, sobre a qual sempre teve ampla disponibilidade!748.

Adotando posição intermediária, Márcio Flávio Mafra Leal observa que, a

depender da forma como seria interpretado e utilizado, o artigo 333 poderia

acarretar violação à Constituição, porque se “trata de um novum que interfere

fundo no direito individual de ação e à jurisdição (art. 5º, XXXV da CF) e deve ser

746 CF/1988 – Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [[[[ 747 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 189, Op Cit. 748 TUCCI, José Rogério Cruz e. Contra o processo autoritário. Revista de Processo, v. 40, n. 242, p. 47-65, abr. 2015.

Page 192: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

192

interpretado, portanto, de maneira restritiva, como toda limitação a direito

fundamental”749.

Há também quem critique o veto ao artigo 333 do novo CPC, como Cassio

Scarpinella Bueno, para quem:

O novel instituto foi amplamente debatido na Câmara dos Deputados e foi legitimamente reintroduzido na versão final do CPC de 2015 [...] Eventuais “conversões pouco criteriosas” poderiam – e deveriam – ser controladas, caso a caso. Para tal finalidade, o inciso XII do art. 1.015 (também vetado) previa o cabimento do recurso de agravo de instrumento da decisão que determinasse (ou que negasse) a conversão. O receio de má-compreensão ou má-utilização de novos institutos criados pelo CPC de 2015 não justificou o veto de nenhum deles. E nem era o caso de justificar. [...] O art. 333 máxime, quando lido, interpretado e aplicado ao lado do art. 139, X, teria condições plenas de completar a tutela jurisdicional de direitos e interesses metaindividuais convivendo harmonicamente com aquelas outras (e novas) técnicas e viabilizando, com isto, genuínas e plenas condições de redução de número de processos e do congestionamento do Judiciário750.

Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover defende a pertinência da conversão

da ação individual em coletiva, pois: Se se tratar de uma ação individual com efeitos coletivos ou de uma ação pseudoindividual, por sua própria natureza deverá ela ser convertida em ação coletiva em defesa de interesses difusos ou coletivos (stricto sensu). Não é possível tratá-la como individual, porque individual não é e a coletivização deve ser feita ope judicis. Claro que, nesses casos, o contraditório deverá ser preservado e deverá ser permitida a presença do autor original no polo ativo751.

Para Ada Pellegrini Grinover, o artigo vetado contemplava as duas

situações, tanto da coletivização de uma ação individual com efeitos coletivos (art.

333, I), como de ação pseudoindividual (art. 333, II). No entanto, a autora

identifica algumas falhas na redação final do artigo, entre as quais duas se

destacam:

(i) A conversão deveria se fazer ex officio e não a requerimento dos legitimados, e muito menos após ouvida dos autores

749 LEAL, 2014, p. 219, Op Cit. 750 BUENO, 2016, p. 316, Op Cit. 751 GRINOVER, 2014, p. 1.434, Op Cit.

Page 193: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

193

individuais (que podem ser milhares ou até milhões): a obrigatoriedade da conversão está na necessidade de atingir uma sentença com efeitos erga omnes (art. 333, I) ou de tratar unitariamente a relação de direito material (art. 333, II); (ii) a menção à dificuldade de litisconsórcio é totalmente inadequada no caso: as ações em defesa de direitos difusos ou coletivos não têm nada a ver com o litisconsórcio752.

Já Fredie Didier Júnior e Hermes Zaneti Júnior destacam a relevância da

conversão da ação individual em coletiva, quando se tratar de pedido individual de

alcance coletivo (art. 333, I), já que “com a conversão o indivíduo estará

propiciando o benefício para toda a coletividade, para todo o grupo, em razão da

ação individual ajuizada. Podemos dizer que o grupo vai ‘de carona’ no benefício

resultante da ação coletiva”753. Os autores citam o seguinte exemplo de pedido

individual de alcance coletivo, que possui relevância social e se configura como

hipótese de conversão da ação individual em coletiva: “Imagine que um aluno,

deficiente físico, proponha demanda contra a respectiva instituição de ensino,

com o propósito de obrigá-la a construir uma rampa de acesso. A efetivação

desse direito individual necessariamente implicará a satisfação do direito coletivo

pertencente ao grupo de deficientes”754.

Por outro lado, Fredie Didier Júnior e Hermes Zaneti Júnior criticam a

possibilidade de conversão da ação individual em ação coletiva prevista no inciso

II, do art. 333, na medida em que neste caso não se trataria de direito coletivo,

mas de direito individual com vários titulares. Sendo assim, para os autores, a

hipótese tratada no inciso II seria de litisconsórcio facultativo unitário, e não de

tutela coletiva755.

Portanto, é possível perceber que a possibilidade de conversão da ação

individual em ação coletiva não era unanimidade na doutrina, fato que contribuiu

para o veto presidencial ao artigo 333 do novo Código de Processo Civil, retirando

esse incidente de coletivização do ordenamento jurídico.

752 GRINOVER, 2014, p. 1.436, Op Cit. 753 DIDIER JR.; ZANETI JR., 2015, p. 864, Op Cit. 754 DIDIER JR.; ZANETI JR., 2015, p. 865, Op Cit. 755 DIDIER JR.; ZANETI JR., 2015, p. 867, Op Cit.

Page 194: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

194

4.4 Ações coletivas e os mecanismos de julgamento de demandas repetitivas

4.4.1 A relação entre o direito processual e a multiplicidade de demandas perante o Poder Judiciário

Inicialmente, convém destacar que o advento do Código de Processo Civil

de 1973 não representou uma mudança no modelo processual brasileiro,

remanescendo a morosidade na oferta e efetivação da tutela jurisdicional756.

A partir da década de 1970 começou a ganhar voz, tanto na doutrina

internacional como na brasileira, a preocupação com o aumento do número de

demandas judiciais e a busca por tornar a prestação jurisdicional mais célere e

efetiva.

Com a ampliação de direitos estabelecida com a promulgação da

Constituição de 1988, criou-se um “espírito de cidadania”757, em que os cidadãos

criaram a expectativa de verem cumpridas as garantias que lhes foram então

asseguradas. Isso gerou significativo aumento no número de demandas judiciais,

“agravado pela circunstância de que a constitucionalização de um conjunto tão

ousado de garantias, sem a consecução consistente de políticas públicas e

sociais correlatas, tem propiciado, sem dúvida, maior judicialização dos

conflitos”758, Sendo assim, no cenário pós-Constituição de 1988, o Poder

Judiciário é utilizado como “compensador dos déficits de funcionalidade dos

demais Poderes”759.

Bruno Dantas adverte: 756 Candido Rangel Dinamarco ressalta que, na época da elaboração do CPC de 1973, “não havia, como hoje a clara percepção do imenso valor da garantia constitucional do contraditório, não se tinha familiaridade alguma com a garantia e com o próprio conceito do devido processo legal, não se falava em direito ao processo, não era moda discorrer sobre a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional e sequer havia ingressado em nosso vocabulário jurídico de todo dia a locução acesso à Justiça. Não se tinha consciência da instrumentalidade do processo, como abertura para o reconhecimento dos escopos metajurídicos da jurisdição (especialmente seus escopos sociais) e dos compromissos do juiz com a Justiça e com as realidades sociais e políticas subjacentes aos conflitos (DINAMARCO, Candido Rangel. O novo Código de Processo Civil brasileiro e a ordem processual vigente. Revista de Processo, v. 247/2015, p. 63-103, set/2015). 757 TUCCI, 2015, p. 47-65, Op Cit. 758 TUCCI, 2015, p. 47-65, Op Cit. 759 THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação do direito brasileiro – análise da convergência entre o civil law e o common law e os problemas da padronização decisória. Mandado de Segurança Coletivo em Cotejo com as Ações Coletivas Constitucionais. Revista de Processo, v. 189, p. 9-52, nov/2010b.

Page 195: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

195

É uma simplificação exagerada e indevida falar-se pura e simplesmente em crise do Poder Judiciário ou crise do sistema processual. Decerto, tanto o Judiciário quanto o direito processual civil brasileiro carecem de muitos aprimoramentos, mas a leitura correta dos dados trazidos aponta para uma crise da atuação do Estado, que falha ao prestar e fiscalizar serviços públicos que, noutra quadra histórica, não estavam ao alcance de tantos brasileiros quanto atualmente760.

Da mesma forma, Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes e Alexandre

Bahia alertam que parte do grande número de demandas judiciais em nosso país

tem como objetivo a implementação de direito fundamentais, como consequência

de um grave problema: a crise das instituições brasileiras761.

É fato que houve aumento exponencial no número de processos em trâmite

nos tribunais brasileiros. A título de exemplo, no ano de 1990, foram distribuídos

14.087 processos no Superior Tribunal de Justiça. No mesmo Tribunal, no ano de

2007, foram distribuídos 313.364 processos. E esse aumento de demandas se

repete em todos os Tribunais, seja no Supremo Tribunal Federal, nos Tribunais de

Justiça dos Estados ou nos Tribunais Regionais Federais762.

Antes mesmo do Projeto de novo Código de Processo Civil, na tentativa de

solucionar o crescente número de demandas repetitivas no Brasil, o legislador

optou pela criação de novos mecanismos, tais como o pedido de uniformização

da interpretação de lei federal no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis Federais

(art. 14763 da Lei no 10.259/2001), a súmula vinculante (art. 103-A, CF/88764),

760 DANTAS, , 2015, p. 41-42. Op Cit. 761 . Sobre esse aspecto, os autores observam que “o deslocamento das questões políticas e de efetivação dos direitos sociais no Poder Judiciário não pode olvidar da percepção do último grande legislador processual do século XX Lorde Woolf, que na monumental reforma inglesa de 1998, afirmou que um enorme numerário financeiro era usado pelo sistema judicial para resolução de um contencioso decorrente do não cumprimento de direitos fundamentais sociais e que seria melhor direcionar esses valores no gasto e asseguramento de políticas públicas de saúde, habitação (na situação inglesa) e aos quais se poderia agregar, no Brasil, a inúmeros outros direitos fundamentais não assegurados minimamente a nossos cidadãos, geradores de milhões de ações em nosso sistema judiciário” (THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, Op Cit. 762 Dados extraídos do artigo de RODRIGUES, Marcelo Abelha. Técnicas individuais de repercussão coletiva x técnicas coletivas de repercussão individual: um golpe à tutela de direitos. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (Coord.). Repercussão geral da questão constitucional.. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 476-477. 763 Lei 10.259/2001 - Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. 764 CF/88 - Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em

Page 196: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

196

rejeição liminar do pedido (art. 285-A, CPC/1973765) e os recursos extraordinário e

especiais repetitivos (arts. 543-B e 543-C do CPC/1973).

Sendo assim, é possível perceber uma recente tendência no direito

processual civil brasileiro de substituir gradativamente técnicas coletivas de

repercussão individual por técnicas individuais de repercussão coletiva766. Essas

técnicas individuais de repercussão coletiva se referem a instrumentos

processuais que permitem que uma mesma questão de direito, discutida em um

grande número de processos, seja apreciada uma única vez, por amostragem.

Atualmente, os maiores exemplos são os recursos especial e extraordinário

repetitivos e o incidente de resolução de demandas repetitivas.

Paralelamente a esse movimento de criação de novos mecanismos para a

resolução de demandas repetitivas, parte significativa da doutrina defendia a

necessidade de fortalecimento do processo coletivo, inclusive com a edição de

um Código Brasileiro de Processo Coletivo. Todavia, o Congresso Nacional não

aprovou os projetos de Código Brasileiro de Processo Coletivo, nem a nova Lei da

Ação Civil Pública767.

relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). 765 Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada (Incluído pela Lei nº 11.277, de 2006). 766 RODRIGUES, 2014, p. 473, Op Cit.. 767 Sobre este aspecto, Bruno Dantas observa que “é significativo, aliás, o fato de a Câmara dos Deputados, por obra da primeira Comissão temática que deveria examinar a matéria – a CCJ -, ter rejeitado integralmente o mérito do PL 5.139/2009, de autoria do Poder Executivo. [...] O que chama ainda mais atenção, todavia, é que no mesmo ano de 2010 o Plenário do Senado Federal aprovava o projeto de um novo Código de Processo Civil, proposição deveras mais complexa e objeto de inúmeros e variados lobbies, e que em seu conteúdo rejeita a ideologia coletivizante e após em técnicas de tutela pluri-individual, como ocorreu na Inglaterra e na Alemanha”767. Feitas estas observações, o autor conclui que “o contraste entre os dois projetos de lei e a sorte que cada um mereceu na tramitação legislativa evidencia uma clara sinalização política de que as instâncias decisórias do país não pretendem apostar na ideologia coletivizante, mas sim prestigiar os direitos individuais, sem perder de vista a eficiência e a racionalização da atividade do Poder Judiciário” (DANTAS, 2016, p. 341-358).

Page 197: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

197

Como visto nos tópicos anteriores, enquanto o legislador constituinte de

1988 quis assegurar aos direitos coletivos um papel transformador na sociedade

brasileira768, o novo Código de Processo Civil, acompanhando a recente

tendência do direito processual civil brasileiro, optou por privilegiar instrumentos

para a solução de demandas repetitivas, em detrimento do processo coletivo769.

Sobre essa opção legislativa, Bruno Dantas reconhece que o novo Código

de Processo Civil foi projetado para “fornecer ao juiz instrumental para dar

soluções de atacado aos problemas de atacado, decorrentes da litigiosidade de

massa”770.

Não por outra razão, a Comissão de Juristas responsável pela elaboração

do Anteprojeto do novo Código de Processo Civil771 consignou na exposição de

motivos que: Levam a um processo mais célere as medidas cujo objetivo seja o julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em si mesmos considerados, que serão decididos conjuntamente; b) no que concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos “tempos mortos” (períodos em que nada acontece no processo)772.

768 ZANETI JRJR., 2009, p. 138, Op Cit. 769 André Vasconcelos Roque salienta que “a tendência, em vez de aprimorar as ações coletivas, sobretudo aquelas para defesa de direitos e interesses individuais homogêneos, será concentrar as atenções sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) do novo CPC (Lei nº 13.105/2015). Tal constatação se torna ainda mais patente quando se constata que um dos principais dispositivos do novo CPC que tratava especificamente de matéria relacionada à tutela coletiva – a conversão da ação individual em ação coletiva (art. 333) – foi objeto de veto presidencial” (ROQUE, André Vasconcelos. As ações coletivas após o novo Código de Processo Civil: para onde vamos? In: DIDIER, Fredie; ZANETI JR., Hermes (Coord.). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 178). 770 DANTAS, 2015, p. 108, Op Cit. 771 A respeito dessa busca pela celeridade processual do novo Código de Processo Civil, Alexandre Amaral Gavronski observa que “o evidente confronto da morosidade da justiça brasileira com o direito constitucional fundamental à razoável duração dos processos (art. 5º, LXXVIII) impõe a todos com algum poder de intervenção nessa realidade: legisladores, estudiosos e sujeitos do sistema da justiça brasileira em especial, a identificação e máxima utilização de meios capazes a reverter esse quadro, sem o que há o risco de ver-se afetada a credibilidade não apenas do Poder Judiciário, mas do próprio direito, nas suas funções de regulação e integração social. Foi por isso, que de forma muito apropriada a Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto do novo CPC, sob a presidência do Ministro Luiz Fux, elegeu a morosidade como uma das principais, senão a principal, deficiência a ser combatida no processo regulado pelo Código de 1973” (GAVRONSKI, Alexandre Amaral. Autocomposição no novo CPC e nas Ações Coletivas. In: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. (Coord.). Processo coletivo. Coordenador: Hermes Zaneti JR. – Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 340). 772 Exposição de motivos do Anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/160823.pdf

Page 198: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

198

Portanto, a intenção do novo Código de Processo Civil foi tentar acelerar o

trâmite das ações judiciais no Brasil773 e os principais instrumentos projetados

para atingir esse objetivo foram os recursos repetitivos e o incidente de resolução

de demandas repetitivas.

Segundo Lenio Luiz Streck, a busca pela celeridade e efetividade do

Judiciário brasileiro é o assunto da moda e, com o passar dos anos, teria

“transitado em julgado” a tese de que a solução para os problemas da justiça

brasileira passa, necessariamente, pela adoção do efeito vinculante às decisões

dos tribunais774.

O legislador brasileiro optou pelo convívio simultâneo do processo coletivo

(que permanece regulado pelo microssistema processual coletivo) com

mecanismos para resolução de demandas repetitivas, entre os quais se destacam

os recursos especial e extraordinário repetitivos e o novo instituto denominado de

incidente de resolução de demandas repetitivas775. Apenas alguns países

combinam esses dois modelos para a solução de demandas de grupo776.

Bruno Dantas afirma que essa coexistência de mecanismos de tutela

coletiva e pluri-individual é importante para o sistema, inferindo que:

Devem coabitar o sistema técnicas racionais que assegurem tanto o tratamento coletivo quanto o individual dos conflitos, de modo a eliminar definitivamente qualquer desejo de se sacrificar

773 Candido Rangel Dinamarco ressalta que “é imperioso entrever no novo Código de Processo Civil uma linha de primeira grandeza, consistente no empenho pela aceleração” (DINAMARCO, 2015, p. 63-103). 774 STRECK, Lenio Luiz. O efeito vinculante das súmulas e o mito da efetividade: uma crítica hermenêutica. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gerson Marques; BEDÊ, Fayga Silveira. Constituição e democracia: estudos em homenagem ao Prof. J. J. Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 413. 775 Fredie Didier JR. e Hermes Zaneti JR. enfatizam que “a partir do CPC/2015, no Brasil haverá, nitidamente, em operação conjunta, dois modelos para solução de situações jurídicas que envolvam o interesse e o direito de grupos: a) os processos coletivos, que se submetem ao devido processo legal do ‘microssistema do processo coletivo’; b) as causas repetitivas, tais como os recursos extraordinário e especial repetitivos e o incidente de resolução de demandas repetitivas, que pela técnica de litígios agregados (processos-piloto) procuram julgar conjuntamente uma série de demandas semelhantes” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2015, p. 863). 776 Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Larissa Clare Pochmann da Silva observam que, “além de aperfeiçoar as ações coletivas, alguns países desenvolveram os test claims ou processos modelo, nos quais se efetua a tramitação de um incidente ou de um processo individual ou de um grupo, com a previsão de que o pronunciamento judicial sobre a questão comum poderá ter repercussão ou efeito sobre os demais litígios que dependam da resolução da matéria decidida.”

776 Os autores apontam ainda que “atualmente, diversos países possuem uma legislação coletiva, mas apenas alguns países combinam o sistema de ações coletivas com o de test claims ou processos modelo” (MENDES; SILVA, 2016, p. 538, Op Cit).

Page 199: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

199

a tutela jurisdicional individual em nome da eficiência do Poder Judiciário777.

Um problema levantado por André Vasconcelos Roque é que,

recentemente, no cenário processual brasileiro, a maior preocupação tem sido

com a redução do número de processos, independentemente da qualidade das

decisões judiciais e da efetivação da garantia de acesso à Justiça. Nesse cenário:

A técnica de julgamento por amostragem tem ganhado muito mais prestígio nas últimas reformas processuais que as ações coletivas – inclusive no CPC de 1973 – por razões pragmáticas. Existe a esperança de que o incidente de resolução de demandas repetitivas possa conter a massa de processos que assola o Judiciário, ao passo que semelhante papel, por razões não muito bem-definidas, não costuma ser atribuído às ações coletivas. E, em um sistema judiciário já trabalhando muito além de sua capacidade máxima, com significativas consequências na qualidade das decisões judiciais, preocupações em torno do acesso à justiça não entram na pauta do dia778.

Na mesma linha, ponderando a respeito da multiplicidade de processos em

trâmite no Poder Judiciário brasileiro e dos riscos que as medidas adotadas pelo

direito processual para a redução do número de demandas podem trazer, Rodolfo

de Camargo Mancuso assinala: A experiência judiciária brasileira se desenvolve num ambiente de recursos financeiros escassos, tudo agravado pela demanda crescente por justiça, o que, ao fim e ao cabo, engendra terreno fértil para o recorrente discurso de combate sem trégua à crise numérica de processos, o qual, se de um lado atende à diretriz da duração razoável (CF, art. 5º, LXXVIII) e da racionalização/otimização dos trabalhos, de outro lado não pode colocar em risco o transcendente compromisso de ofertar uma resposta jurisdicional de qualidade, sob a égide da jurisdição integral, ideário que não parece alcançado quando uma Corte superior se limita a fixar uma tese, no bojo de uma decisão-quadro779.

Para Lenio Luiz Streck:

Os argumentos utilizados para justificar essa verdadeira “cruzada” na busca de mecanismos engessadores das

777 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit. 778 ROQUE, 2016, p. 180, Op Cit.. 779 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes: natureza; eficácia; operacionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 534.

Page 200: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

200

manifestações das instâncias inferiores da justiça são sempre os mesmos: desafogar (sic) as prateleiras dos tribunais superiores, que estão assoberbados de recursos dos mais variados. Ou seja, busca-se uma “efetividade (meramente) quantitativa”780.

No mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes e Alexandre

Bahia enfatizam:

Infelizmente, em face de inúmeros fatores, o sistema processual brasileiro costuma trabalhar com a eficiência quantitativa781, impondo mesmo uma visão neoliberal de alta produtividade de decisões e de uniformização superficial dos entendimentos pelos tribunais, mesmo que isso ocorra antes de um exaustivo debate em torno dos casos, com a finalidade de aumentar a estatística de casos “resolvidos”782.

A respeito desses julgamentos por amostragem, Rodolfo de Camargo

Mancuso pondera:

Resta saber se o operador do Direito, no Brasil, afeiçoado ao trato da lei e dos meios de integração que ela mesma credencia para colmatar seus vazios (costume, equidade, analogia, princípios gerais, regras da experiência comum), saberá lidar com categorias e técnicas forjadas ao longo da milenar trajetória do direito operante nos países da família common law783.

Com essas considerações, veja-se os argumentos em defesa da

insuficiência do processo coletivo para a solução da litigiosidade de massa e da

sobrecarga de processos que afeta o Judiciário brasileiro, além das críticas aos

mecanismos criados para o julgamento de demandas repetitivas que colocam em

risco o sistema processual brasileiro.

780 STRECK, 2014, p. 423, Op Cit. 781 A respeito da classificação da eficiência do sistema processual, os autores explicam o seguinte: “Conforme preleciona Taruffo, podemos buscar pelo menos dois tipos de eficiência no sistema processual e judicial. Uma primeira perspectiva de eficiência, aqui nomeada quantitativa, se definiria em termos de velocidade dos procedimentos e redução de custos, na qual quanto mais barata e rápida a resolução dos conflitos, maior eficiência seria obtida, sendo a qualidade do sistema processual e de suas decisões um fator de menor importância. Uma segunda perspectiva de eficiência (qualitativa) seria aquela na qual um dos elementos principais de sua implementação passaria a ser a qualidade de suas decisões e de sua fundamentação e que conduziria a necessidade de técnicas processuais adequadas, corretas, justas, equânimes e, completaríamos, democráticas para a aplicação do direito” (THEODORO JR.; NUNES; BAHIA. 2010b, p. 9-52). 782 Segundo os autores, no Brasil, “chega-se ao requinte do Conselho Nacional de Justiça criar metas de produtividade (a Meta 2 de 2009 e 2010, por exemplo) e colocar em seu site um ‘processômetro’ com o índice de produtividade dos Tribunais brasileiros” (THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b). 783 MANCUSO, 2014, p. 606, Op Cit.

Page 201: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

201

4.4.2 Em defesa da insuficiência do processo coletivo para a solução da litigiosidade de massa

Parte da doutrina defende que, no Brasil, as ações coletivas não

conseguiram cumprir efetivamente o papel de reduzir o número de demandas

individuais, não contribuindo para prevenir ou reduzir a litigiosidade de massa784.

Apesar de constantemente defender a importância do processo coletivo,

Ada Pellegrini Grinover reconhece que:

As estatísticas mostram que, apesar da plena operatividade do minissistema das ações coletivas e dos esforços dos que a elas são legitimados (principalmente Ministério e Defensoria Pública e, em menor medida, as associações), os processos coletivos ainda são subutilizados no Brasil, havendo grande preponderância de ações individuais em relação às ações coletivas785.

Marcos de Araújo Cavalcanti afirma que as ações coletivas não impediram

ou reduziram o ajuizamento de demandas repetitivas, o que acaba contribuindo

para a morosidade e ineficiência do Poder Judiciário brasileiro786.

Com base nisso, Bruno Dantas preleciona:

Com a estabilização do desenvolvimento da tutela coletiva, que praticamente não recebeu aperfeiçoamentos legislativos desde a edição do Código de Defesa do Consumidor, o interesse dos meios jurídicos se deslocou para as técnicas de tutela pluri-individual, notadamente aquelas que preveem o julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos mediante a escolha de um recurso-piloto, tal como ocorre na Group Litigation Order inglesa e no Musterverfahren alemão787.

784 Por exemplo, Eduardo Cambi e Mateus Vargas Fogaça sustentam que, “na sistemática atual, a tutela dos direitos coletivos pode ser realizada, por exemplo, pela ação popular, pela ação civil pública ou pelo mandado de segurança coletivo. Porém, tais ações não foram suficientes para prevenir ou para reduzir a litigiosidade de massas, nem para proteger satisfatoriamente ampla gama de situações repetitivas, seja pela falta de representatividade dos legitimados, por sua inadmissão para a defesa de determinados direitos ou mesmo em razão da restrição da eficácia subjetiva e territorial da coisa julgada nas ações coletivas” (CAMBI; FOGAÇA, 2015, p. 333-362).. 785 GRINOVER, 2014, p. 1.432, Op Cit. 786 O autor realça que “a insuficiência ou o funcionamento deficiente do processo coletivo, como acontece no Brasil, gera a multiplicação de processos repetitivos, o que aumenta a sobrecarga do Poder Judiciário e a perpetuação de litígios” (CAVALCANTI, 2015, p. 495, Op Cit.). 787 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit.

Page 202: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

202

A respeito dessa pulverização de demandas, Rodolfo de Camargo

Mancuso afirma que se “pode dizer que as ações replicadas e os recursos

repetitivos encontram-se num patamar diferenciado, não havendo excesso em aí

se reconhecer um tertium genus, a que se vem chamando tutela judicial

plurindividual788.

Afirmando o insucesso das ações coletivas para solucionarem a

litigiosidade de massa e defendendo a necessidade de criação de novos

mecanismos, Eduardo Cambi e Mateus Vargas Fogaça informam:

Com a massificação dos litígios, decorrentes de questões fáticas e jurídicas idênticas ou semelhantes, a ordem jurídica precisa dispor de mecanismos capazes de possibilitar o mais rápido, adequado e eficiente julgamento das causas repetitivas. Isso porque o CPC/1973, caracterizado pelo tratamento individualizado das demandas, não dispõe de regras processuais adequadas para resolver os conflitos repetitivos de massa. [...] Portanto, a sistemática atual das ações coletivas fracassou no intento de conter a enxurrada de ações que são ajuizadas em prol da tutela direitos originados de um mesmo contexto fático-jurídico789.

E quais seriam os motivos para esse “fracasso” do processo coletivo em

solucionar demandas que afetassem uma pluralidade de pessoas, sobretudo

referentes a direitos individuais homogêneos? Um argumento usado por

Guilherme Rizzo Amaral é que a existência das ações coletivas não impediu a

massificação dos processos, principalmente pelo fato de a sentença de

improcedência do pedido, nas ações que discutem direitos individuais

homogêneos, não fazer coisa julgada em relação aos indivíduos790. Por isso, as

788 A respeito dessa tutela plurindividual o autor assinala que “o fato das demandas seriais não terem sido – ao menos de modo sistemático e eficiente – manejadas nos moldes da ação coletiva por interesses individuais homogêneos, e, de outro lado, as incompreensões conceituais, a par das dificuldades operacionais com esse subtipo de interesses metaindividuais, foram criando ambiente propício ao desenvolvimento de uma outra vertente de acesso à justiça, equidistante, assim da jurisdição coletiva como da singular, a que se pode chamar tutela plurindividual. Por essa técnica, ao invés da ocorrência de largo espectro vir enquadrada como macroconflito envolvendo interesse metaindividual, e como tal ser judicializada através de um representante adequado (Art. 5º, Lei 7.347/85 e Art. 82, Lei 8.078/90), consente-se o ajuizamento individual de tais demandas” (MANCUSO, 2014, p.518-519). 789 CAMBI; FOGAÇA, 2015, p. 333-362, Op Cit. 790 O autor afirma que, “como mecanismo de pacificação e de efetiva inibição ou redução de litígios de massa, pouco fez a ação civil pública pelo processo civil brasileiro” (AMARAL, 2011, p. 237-274).

Page 203: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

203

ações coletivas não teriam caráter preventivo, não prevenindo ou evitando o

ajuizamento de demandas repetitivas791.

Outro argumento utilizado por Bruno Dantas como sendo um dos entraves

impostos ao desenvolvimento do processo coletivo é o fato de que, “devido à

instabilidade da jurisprudência, muitos advogados optam pela pulverização de

milhares de ações para amplificar as possibilidades de obter êxito, além de

aumentar seus próprios honorários”792.

Por sua vez, Júlio César Rossi propõe algumas possíveis justificativas para

o fato de, apesar de possuírem um completo e moderno sistema normativo capaz

de contribuir para a segurança jurídica, para a isonomia e no combate à

morosidade, as ações coletivas não terem resolvido a questão das demandas

repetitivas, quais sejam: “não há investimento em se aperfeiçoar os institutos

relacionados aos Fundos dos Direitos Difusos e Coletivos. Não existe uma

comunicação eficaz em relação aos diversos órgãos do Poder Judiciário e às

ações coletivas distribuídas. Há ausência de um efetivo banco de dados de ações

coletivas no país”793.

Em vez de buscar soluções para que o processo coletivo pudesse ser

aperfeiçoado com o fito de melhor atender a essas demandas repetitivas, o

legislador optou por criar mecanismos que permitissem o julgamento por

amostragem a fim de aprimorar a “eficiência quantitativa” do Poder Judiciário

brasileiro. Sobre essa opção legislativa, Rodolfo de Camargo Mancuso assevera:

À parte as críticas que se podem dirigir ao regime de julgamento em bloco ou por amostragem – mormente a de que por aí não se julga, propriamente, mas se fixa um entendimento sobre uma dada questão, com finalidade paradigmática massiva –, não há negar que, sob o pragmático propósito de baixar o estoque dos recursos excepcionais endereçados aos Tribunais da Federação, tal técnica se revela exitosa sob esse prisma quantitativo794.

Exatamente por essas razões, a justificativa da comissão de juristas

responsável pela elaboração do anteprojeto do novo Código de Processo Civil

791 CAVALCANTI, 2015, p. 508, Op Cit. 792 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit. 793 ROSSI, 2015, p. 201, Op Cit. 794 Como exemplo, o autor cita artigo de Vitor Toffoli, que reportou 104.137 recursos especiais registrados no ano de 2007 no STJ e, após a entrada em vigor do rito dos recursos especiais repetitivos, esse número teria reduzido para 54.598 recursos especiais distribuídos no ano de 2010 (MANCUSO, 2014, p. 540).

Page 204: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

204

para a criação do incidente de resolução de demandas repetitivas (CPC, art. 976

e segs.) foi a contribuição para mais celeridade da prestação jurisdicional, além

da tentativa de reduzir o número de processos e recursos em trâmite no Poder

Judiciário.

4.4.3 Críticas aos mecanismos de julgamentos de demandas repetitivas

Os mecanismos de julgamento de demandas repetitivas, entre os quais se

destacam os recursos especial e extraordinário repetitivos e o novel incidente de

resolução de demandas repetitivas, sofrem grandes críticas de parte significativa

da doutrina. A seguir serão destacados os principais fatores negativos imputados

a esses mecanismos.

4.4.3.1 Diminuição do número de processos

Por outro lado, não é possível garantir que os mecanismos de vinculação

da jurisprudência irão desafogar o Judiciário, tendo em vista que, desde 1990795,

as súmulas já exercem, na prática, um grande poder de influência no sistema,

mas que não serviu para agilizar a máquina judiciária796.

Georges Abboud abstrai:

O aumento do número de decisões com efeito vinculante não garante mais qualidade na fundamentação das decisões e a consequente necessária redução do número de processos. Até mesmo porque, se o efeito vinculante tivesse o condão de

795 Em 1990, o artigo 38 da Lei 8.038 conferiu poderes ao relator do recurso especial ou extraordinário para seguimento recurso que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal. Posteriormente, em 1995, a Lei 9.139 alterou a redação artigo 557 do CPC/1973 para estender esse poder ao relator de agravo ou apelação perante os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais.- Lei 8.038/90 - Art. 38 - O Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal. CPC/1973 - Art. 557 - O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior (Redação dada pela Lei nº 9.139, de 1995). 796 STRECK, 2014, p. 420-421, Op Cit.

Page 205: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

205

assegurar diminuição de processos e a segurança jurídica, de certo modo, nenhum ordenamento jurídico teria maior integridade e menor quantidade de processos que o nosso. Dado que não se tem notícia de nenhum sistema jurídico que confira à sua Corte Superior a possibilidade de proferir tantos pronunciamentos com efeito vinculante797.

A partir da análise do número de processos judiciais processados e

julgados pelo Supremo Tribunal Federal, Georges Abboud conclui que “o efeito

vinculante, também no direito brasileiro, não teve o condão de reduzir a

quantidade de processos submetidos a julgamento perante o STF”798.

Em relação aos instrumentos previstos no novo CPC, no caso de tese

fixada em julgamento de demandas repetitivas (IRDR ou RE e REsp repetitivos),

somente nos casos em que a tese firmada for de improcedência do direito

material que haverá tendência na diminuição do número de ações ajuizadas.

Portanto, caso o entendimento seja pela procedência da questão de direito

formulado, dificilmente esses mecanismos conseguirão atenuar a carga de

trabalho do Judiciário, pois não evitarão o ajuizamento de demandas para a

obtenção da tutela do direito pelos interessados799.

Uma solução para evitar a multiplicação de demandas no caso de

procedência do direito material decidido em julgamento repetitivo seria a utilização

da previsão legal contida no artigo 139, X, do novo CPC, que permite ao juízo

oficiar os legitimados coletivos para, se for o caso, promoverem a propositura da

ação coletiva respectiva800.

4.4.3.2 Acesso à justiça

4.4.3.2.1 Danos de pequena monta

797 ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 460. 798 ABBOUD, 2011, p. 467, Op Cit. 799 VIAFORE, 2013, p. 257-308, Op Cit. 800 Lei 13.105/15 - Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: X - quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, e o art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva.

Page 206: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

206

Ao contrário dos mecanismos de julgamento de demandas repetitivas801,

as ações coletivas desempenham importante papel no acesso à justiça802, pois

frequentemente os danos resultantes de lesões de massa são de pequeno valor

econômico (danos de “bagatela”), fazendo com que o ajuizamento de ações

individuais seja desestimulante e, na prática, quase inexistente 803.

André Vasconcelos Roque considera:

As ações coletivas, por outro lado, permitem a agregação de pretensões ínfimas, do ponto de vista individual, em um só processo, incrementam o acesso à justiça. Assim, as ações coletivas mostram-se capazes de romper com a força inercial dos litigantes individuais, algo que o incidente de resolução de demandas repetitivas não seria capaz, sequer em tese, de alcançar, eis que pressupõe a existência, pelo menos a potencialidade, de ações individuais que possam ser qualificadas como repetitivas. Isso sem falar que somente o processo coletivo se destina à proporcional tutela de direitos difusos e coletivos stricto sensu804.

No mesmo sentido é a lição de Hermes Zaneti Júnior:

Uma categoria como a dos direitos individuais homogêneos visa tornar justamente judicializáveis pretensões e conflitos de massa que ficariam fora dos tribunais por ausência de capacidade organizativa ou interesse econômico dos indivíduos lesados, tornando lucrativa a lesão e permitindo o enriquecimento ilícito das grandes empresas. Assim, pode-se imaginar esta categoria como uma forma de redução da litigiosidade contida e, ao mesmo tempo, garantia da efetividade e eficácia do ordenamento jurídico com a repressão dos ilícitos de massa797.

O autor atribui aos direitos individuais homogêneos:

801 Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Larissa Clare Pochmann da Silva advertem que os mecanismos de julgamento de demandas repetitivas não cumprem a função de ampliar o acesso à justiça, “na medida em que os incidentes individuais, em princípio, apenas fornecem uma solução para as pessoas que tenham demandado as suas próprias ações, não gerando, assim, um incremento na obtenção da solução para o conflito, e também por não produzir efeito a todos os interessados, para a coibição da prática dos atos ilícitos” (MENDES; SILVA, 2016, p. 545). 802 Guilherme Rizzo Amaral reconhece que “sob o ponto de vista do acesso à justiça, permitindo que direitos individuais fossem protegidos mesmo quando seus titulares não pudessem fazê-lo individualmente, pode-se dizer que a ação civil pública constituiu um grande avanço” (AMARAL, 2011, p. 237-274). 803 Neste sentido, Hugo Nigro Mazzilli destaca que “a tutela coletiva não pode ser denegada, pois às vezes é a única possível em casos de lesões de grande dispersão, mas pequena expressão individual” (MAZZILLI, 2014, p. 145). 804 ROQUE, 2016, p. 180, Op Cit.

Page 207: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

207

A função promocional de reequilibrar as relações jurídicas entre os “mass-wrongdoers” e os titulares de direitos individuais em situação homogênea que não são economicamente preparados ou organizados para fazer valer seus direitos, mesmo que esses titulares não tenham interesse econômico, face ao (sic) prejuízo social que justifica a sua defesa805.

Nestes casos, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes adverte:

Tendem a se beneficiar, em vez de serem devidamente sancionados, os fabricantes de produtos defeituosos de reduzido valor, os entes públicos que cobram tributos indevidos ou não cedem os direitos funcionais cabíveis e os fornecedores que realizam negócios abusivamente, apenas para citar alguns exemplos806.

Diante dessas hipóteses, as ações coletivas tornam-se um efetivo

instrumento de acesso à justiça807, permitindo que esses danos não fiquem sem

reparação, uma vez que o valor patrimonial, que individualmente seria irrisório,

coletivamente passa a ser relevante808.

4.4.3.2.2 Coisa julgada e suspensão dos processos individuais

No microssistema processual coletivo brasileiro adotou-se o regime da

coisa julgada secundum eventum litis, no qual os indivíduos serão atingidos pela

decisão proferida na ação coletiva apenas para beneficiá-los, nunca para

prejudicá-los809. Já na sistemática dos julgamentos de demandas ou recursos

repetitivos, a decisão proferida no processo-piloto atingirá todos os demais

processos que ficaram suspensos, seja para beneficiá-los ou prejudicá-los.

Por essa razão, a sistemática dos julgamentos de recursos repetitivos e do

incidente de resolução de demandas repetitivas violaria a garantia do contraditório

e do acesso à justiça, pois os indivíduos podem ser prejudicados “sem que

houvessem tido a menor oportunidade de influir em seu teor e, o que é pior, sem

805 ZANETI JR., 2009, p. 146-147, Op Cit. 806 MENDES, 2014, p. 221-222, Op Cit. 807 Marcos de Araújo Cavalcanti destaca que “da ótica formal do acesso à justiça, as ações coletivas que abrangem a defesa de direitos individuais homogêneos configuram um instrumento bem mais poderoso que o IRDR” (CAVALCANTI, 2015, p. 484, Op Cit). 808 MENDES; SILVA, 2016, p. 545, Op Cit. 809 CDC – Lei 8.078/90 – Art. 103.

Page 208: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

208

qualquer garantia de aqueles que os representavam podiam fazê-lo de forma

adequada”810.

Outro aspecto refere-se à suspensão das ações individuais. Enquanto no

processo coletivo o autor individual deve optar pela suspensão ou não de sua

ação individual811, no regime dos recursos repetitivos e do IRDR a suspensão de

todos os processos é obrigatória812, impedindo aquele que deseja litigar

individualmente e, por consequência, violando a garantia do amplo acesso à

justiça813.

Não parece ter acolhida o argumento de Bruno Dantas, para quem:

A eficiência do Judiciário, por si só, não pode ser motivo para a propagação de uma ideologia coletivizante que subtrai do cidadão o direito de ter “his day on court”, que nada mais é do que a expressão da garantia fundamental de acesso à Justiça. Ao pretender tratar artificialmente como massa os conflitos e angústias individuais das pessoas, essa ideologia põe em xeque mais de 200 anos de conquistas liberais814.

Ao contrário do que afirma o autor, o microssistema processual coletivo

brasileiro optou por privilegiar o direito individual de ação, sendo certo que a coisa

julgada atingirá o indivíduo apenas para beneficiá-lo e caberá ao autor da ação

optar pela suspensão ou não de seu processo individual. Em sentido oposto, na

sistemática dos julgamentos de demandas ou recursos repetitivos o processo

individual ficará suspenso obrigatoriamente815 e a decisão proferida no processo-

piloto o atingirá, inclusive para prejudicá-lo816.

810 RODRIGUES, 2014, p. 481, Op Cit. 811 Lei 8.078/90 - Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultrapartes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. 812 CAVALCANTI, 2015, p. 557, Op Cit. 813 RODRIGUES, 2014, p. 482, Op Cit. 814 DANTAS, 2016, p. 341-358, Op Cit. 815 Marcos de Araújo Cavalcanti observa que “essa forma de vinculação absoluta fere o direito fundamental de ação (art. 5º, inciso XXXV, da CF/1988). Não há como o NCPC impedir o direito de a parte prosseguir com sua demanda isoladamente, ou seja, fora do regime jurídico do IRDR. O sistema processual deve sempre assegurar ao litigante o direito de opção. Essa possibilidade de escolha decorre do direito fundamental de ação, de sorte que o legislador não pode criar uma forma de vinculação absoluta por et contra sem estabelecer mecanismos processuais que assegurem seu pleno exercício” (CAVALCANTI, 2015, p. 606-607). 816 Importante trazer as considerações de Lenio Luiz Streck e Georges Abboud sobre este tema: “A solução de diversos casos assemelhados por meio de ação coletivas tem a vantagem de não prejudicar o direito de ação dos particulares (art. 5º, XXXV, CF), que podem optar em ajuizar

Page 209: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

209

De acordo com Georges Abboud:

A simples diminuição de processos, muitas vezes, pode refletir na prática em violação ao acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF/1988), porque ela pode ser oriunda de criação de mecanismos judiciais que simplesmente impedem o acesso do administrado às Cortes Superiores, deixando seu direito material desprotegido817.

4.4.3.3 Benefício aos litigantes habituais: desequilíbrio entre as partes e

deficiência na representatividade

Ademais, as ações coletivas tendem a trazer mais equilíbrio entre as

partes, uma vez que os causadores das lesões, usualmente, são instituições de

grande porte e litigantes habituais. E por isso possuem mais recursos materiais e

humanos que os indivíduos que buscam a tutela jurisdicional. Nesse aspecto, os

legitimados coletivos terão posição mais equilibrada na demanda do que os

litigantes individuais818.

Ou seja, no processo coletivo a legitimidade ativa é concedida a poucas

entidades que, de acordo com o legislador, estariam aptas a defender em

melhores condições os interesses coletivos (lato sensu), por possuírem grande

capacidade técnica e política, como é o caso do Ministério Público. Desta forma,

os legitimados coletivos, via de regra, possuem melhores condições de enfrentar

essas instituições de grande porte, que quase sempre são responsáveis pela

violação de direitos que atinjam grande quantidade de indivíduos819.

Já no julgamento por amostragem de demandas repetitivas, dificilmente o

indivíduo cujo recurso ou processo foi escolhido como representativo da

controvérsia conseguirá enfrentar em igualdade de condições a parte que é

identificada como responsável pela prática da lesão 820.

individualmente sua ação e que, somente se voluntariamente o fizerem, terão seu processo individual sobrestado, nos termos do art. 104 do CDC. Já pela sistemática de aplicação dos arts. 543-B e 543-C (CPC/73), é retirada do particular a possibilidade de exercer seu direito de ação (art. 5º, XXXV, CF), porque seu processo é sobrestado até o julgamento do caso paradigma pelo STF ou STJ, mesmo contra sua vontade” STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto: o precedente judicial e as súmulas vinculantes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 85- 87 (apud ROSSI, 2015, p. 199, Op Cit). 817 ABBOUD, 2011, p. 468, Op Cit. 818 MENDES; SILVA, 2016, p. 548, Op Cit. 819 RODRIGUES, 2014, p. 479, Op Cit. 820 A respeito deste desequilíbrio entre as partes, Marcelo Abelha Rodrigues afirma que, “mais uma vez, saem ganhando os litigantes habituais, que têm a possibilidade de, de uma só vez, fazer

Page 210: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

210

Para ilustrar essa situação, pode-se citar o caso de múltiplas demandas

movidas por consumidores contra uma instituição bancária. No julgamento do

processo-piloto estarão em lados opostos o consumidor e a instituição bancária,

revelando a hipossuficiência do primeiro em relação ao segundo e violando

“gravemente as garantias do contraditório e da ampla defesa, que têm, na

paridade de armas, um de seus mais importantes corolários”821.

Corroborando esse entendimento é o voto vencido proferido pelo Ministro

Herman Benjamin, no julgamento do recurso especial 911.802/RS, em que se

discutia a cobrança de assinatura básica por empresa fornecedora de serviço de

telefonia, e cujo trecho assim dispôs:

Não se resiste aqui à tentação de apontar o paradoxo. Enquanto o ordenamento jurídico nacional nega ao consumidor-indivíduo, sujeito vulnerável, legitimação para a propositura de ação civil pública (Lei 7347/1985 e CDC), o STJ, pela porta dos fundos, aceita que uma demanda individual – ambiente jurídico-processual mais favorável à prevalência dos interesses do sujeito hiperpoderoso (in casu o fornecedor de serviço de telefonia) - venha a cumprir o papel de ação civil pública às avessas, pois o provimento em favor da empresa servirá para matar na origem milhares de demandas assemelhadas - individuais e coletivas. Aliás, em seus Memoriais, foi precisamente esse um dos argumentos (a avalanche de ações individuais) utilizado pela concessionária para justificar uma imediata intervenção da Seção. Finalmente, elegeu-se exatamente a demanda de uma consumidora pobre e negra (como dissemos acima, triplamente vulnerável), destituída de recursos financeiros para se fazer presente fisicamente no STJ, por meio de apresentação de memoriais, audiências com os Ministros e sustentação oral. Como juiz, mas também como cidadão, não posso deixar de lamentar que, na argumentação (?) oral perante a seção e também em visitas aos gabinetes, verdadeiro monólogo dos maiores e melhores escritórios de advocacia do País, a voz dos consumidores não se tenha feito ouvir. Não lastimo somente o silêncio de D. Camila Mendes Soares, mas, sobretudo, a ausência, em sustentação oral, de representantes dos interesses dos litigantes-sombra, todos aqueles que serão diretamente afetados pela decisão desta demanda, uma gigantesca multidão de brasileiros (mais de 30 milhões de assinantes) que, por bem ou por mal, pagam a conta bilionária da assinatura-básica (lembro que só a recorrente, Brasil Telecom, arrecada, anualmente, cerca de três bilhões e meio de reais com a cobrança dessa tarifa - cfr. www.agenciabrasil.gov.br, notícia publicada em 8.6.2007). [...]

prevalecer as teses que lhes são favoráveis, em discussões travadas com quem não tem a mínima condição de enfrentá-los” (RODRIGUES, 2014, p. 484). 821 RODRIGUES, 2014, p. 480, Op Cit.

Page 211: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

211

Em síntese, a vitória das empresas de telefonia, que hoje se prenuncia, não é exclusivamente de mérito; é, antes de tudo, o sucesso de uma estratégia judicial, legal na forma, mas que, na substância, arranha o precioso princípio do acesso à justiça, uma vez que, intencionalmente ou não, inviabiliza o debate judicial e o efetivo contraditório, rasgando a ratio essendi do sistema de processo civil coletivo em vigor (Lei 7347/85 e CDC)822.

Portanto, em que pese o argumento de que os julgamentos de recursos e

demandas repetitivas visam contribuir para a uniformização e agilidade dos

julgamentos, “isso não pode ser feito em total atropelo às garantias

constitucionais do processo, prejudicando hipossuficientes e beneficiando os

litigantes habituais”823.

Quanto aos denominados “litigantes habituais”, estudo divulgado pelo

Conselho Nacional de Justiça sobre os 100 maiores litigantes nacionais revelou

que o setor público (federal, estadual e municipal), bancos e telefonia

representam 95% do total de processos dos 100 maiores litigantes nacionais.

Desses processos, 51% têm como parte ente do setor público, 38% empresa do

setor bancário, 6% companhias do setor de telefonia e 5% de outras empresas824.

Sobre essa situação, Marcelo Abelha Rodrigues relata o seguinte:

O que fica claro, disso tudo, é a existência do que podemos chamar de litigantes habituais, responsáveis pela imensa maior parte do trabalho que se exige do Poder Judiciário brasileiro. Tais entidades, como parece claro, têm uma estrutura consentânea com o volume de demandas de que participam, em muito superior ao assessoramento jurídico e à capacidade financeira de que dispões os cidadãos comuns825.

Com base nessas informações, mostra-se pertinente a crítica de Hugo

Nigro Mazzilli sobre o grande número de demandas judiciais no Brasil, ao afirmar:

822 Trechos extraídos do voto vencido proferido pelo Ministro Herman Benjamin. (REsp 911.802/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/10/2007, DJe 01/09/2008). 823 Em virtude das características da sistemática dos julgamentos de demandas ou recursos repetitivos, Marcelo Abelha Rodrigues observa que “para os litigantes habituais, hipersuficientes, é muito mais arriscado ser réu numa ação coletiva – proposta, por exemplo, pelo Ministério Público – e ver o resultado espraiar-se erga omnes para toda a comunidade do que ser demandado por cada um dos indivíduos interessados e, no julgamento de apenas um recurso, fazer prevalecer tese que lhe é favorável, valendo tal resultado para todos os demais processos” (RODRIGUES, 2014, p. 485). 824 Conselho Nacional de Justiça (CNJ): 100 maiores litigantes. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/ images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf 825 RODRIGUES, 2014, p. 483, Op Cit.

Page 212: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

212

É totalmente falsa a ideia que se divulga por aí de um suposto demandismo como se houvesse um gosto todo brasileiro de buscar excessivamente a Justiça, numa ridícula “litigiosidade desenfreada”. Que duvidoso gosto poderia ter o brasileiro comum de procurar uma justiça nada funcional? Se esse gosto existe, não é da população em geral: é dos governantes e dos maus pagadores, que podem valer-se de um processo moroso, lento a perder de vista, geralmente na confortável posição de réus. Pois quem é que procura a Justiça brasileira hoje? Excetuados aqueles que dela se valem para postergar o cumprimento de suas obrigações, no mais ninguém quer recorrer à Justiça, a não ser em último caso, último mesmo. O lesado não a procura, a não ser que não tenha outro caminho, porque ela é lenta, é onerosa, é ineficiente [...]826.

Marcelo Abelha Rodrigues destaca, ainda, que esses litigantes habituais se

beneficiam da morosidade dos processos judiciais827, pois:

É certamente lucrativo para os bancos protelar ao máximo a entrega da tutela jurisdicional – ainda que para o final saírem derrotados -, mantendo consigo o ativo financeiro até o último momento em que possível, obtendo vantagens com sua utilização em sua atividade-fim que em muito compensam se comparadas aos juros e encargos moratórios828.

Na tentativa de minimizar esse desequilíbrio, o legislador possibilitou a

participação de pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, nos

julgamentos de incidente de resolução de demandas repetitivas829. Todavia, não

parece que essa possibilidade será suficiente para resolver essa tendência de

desequilíbrio entre as partes nos julgamentos por amostragem.

826 MAZZILLI, 2016, p. 189, Op Cit.. 827 Andre Vasconcelos Roque ressalta que “concessionárias, grandes empresas e litigantes habituais em geral raciocinam a questão sob o aspecto macroeconômico. Se a perspectiva de certo comportamento ilícito proporcionar a estimativa de um montante de condenações judiciais inferior aos custos operacionais para a correção dessa conduta, as empresas continuarão a praticar o ilícito, ensejando o ajuizamento de inúmeras demandas repetitivas. Tais agentes direcionam sua conduta não sob o código lícito/ilícito, mas de acordo com o código lucrativo/não lucrativo. Assim é que serviços não solicitados, cobranças indevidas, mau atendimento e falhas variadas na prestação de serviços e fornecimento de produtos se transformam em acontecimentos corriqueiros no Poder Judiciário brasileiro”. O autor preleciona que “talvez uma das soluções para diminuir a alta taxa de litigiosidade brasileira esteja em incrementar o papel das agências reguladoras, incentivando uma atuação mais enérgica de sua parte, inclusive mediante a aplicação de severas penalidades em âmbito administrativo contra os litigantes habituais, sempre que tal medida for necessária” (ROQUE, 2016, p. 182). 828 RODRIGUES, 2014, p. 483, Op Cit. 829 CPC - Lei 13.105/15 - Art. 983. O relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida, e, em seguida, manifestar-se-á o Ministério Público, no mesmo prazo.

Page 213: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

213

4.4.3.4 Distinguishing e fundamentação

Um dos argumentos utilizados para a criação dos mecanismos de

julgamento de demandas repetitivas é de que estes contribuiriam para a

uniformização da jurisprudência nos Tribunais, garantindo igualdade e atendendo

ao princípio da isonomia.

Todavia, importante destacar a observação feita por Humberto Theodoro

Júnior, Dierle Nunes e Alexandre Bahia: Preserva-se a igualdade quando, diante de situações idênticas, há decisões idênticas. Entretanto, viola-se o mesmo princípio quando em hipóteses de situações “semelhantes”, aplica-se, sem mais, uma “tese” anteriormente definida (sem considerações quanto às questões próprias do caso a ser decidido e o paradigma, cf. intra): aií há também violação à igualdade, nesse segundo sentido, como direito constitucional à diferença e à singularidade. Nesses termos a temática se torna mais complexa, uma vez que não é mais possível simplificar a questão almejando tão só resolver o problema de eficiência quantitativa, tendo como pressuposto uma interpretação desatualizada do que representa a atual concepção de igualdade; até porque isonomia e diferença seriam cooriginários da formação da igualdade830.

Lenio Luiz Streck lembra que os verbetes, as súmulas, os “entendimentos

jurisprudenciais dominantes” e nestes exemplos podem ser incluídos os recursos

e demandas repetitivas, “nada mais são do que tentativas metafísicas de

universalização/generalização conceitual, como se fosse possível alcançar

essências, desconsiderando, assim, o aparecer da singularidade dos casos”831.

Rodolfo de Camargo Mancuso alerta para o risco de que essas “decisões-

quadro”, proferidas em julgamentos de demandas e recursos repetitivos, venham,

“por conta de fundamentação inconsistente ou por deficiência redacional, a

contribuir para o agravamento do quadro atual de dispersão jurisprudencial

excessiva”832.

830 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, Op Cit. 831 STRECK, 2014, p. 406, Op Cit. 832 O objetivo do novo Código de Processo Civil era justamente utilizar esses mecanismos para conter a dispersão jurisprudencial excessiva, conforme se infere da exposição de motivos do anteprojeto: “Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional”. Exposição de motivos do

Page 214: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

214

Portanto, para a correta utilização dos mecanismos de solução de

demandas repetitivas, revela-se fundamental que seja devidamente

fundamentada a decisão paradigma e respeitadas a individualidade e as

peculiaridades de cada caso levado a juízo, para que sejam analisados todos os

argumentos levantados pelas partes, quando aí então se estaria diante de uma

efetiva prestação jurisdicional 833.

No entanto, a realidade dos julgamentos de demandas repetitivas

demonstra que, não raramente, os tribunais têm produzido decisões-modelo834

mesmo sem previamente discutir de modo amplo a formação do paradigma

decisório835.

Sensível a isso, Georges Abboud acrescenta:

No Brasil, ultimamente, as principais alterações legislativas objetivaram reduzir a quantidade de processos, acelerando a atividade jurisdicional. Acontece que a diminuição de processos, em detrimento da garantia dos jurisdicionados, em nada contribui para a consolidação da democracia se, concomitantemente à aceleração de justiça, não ocorrer incremento na qualidade da prestação jurisdicional a ser constatada principalmente pela melhora na motivação das decisões judiciais836.

Por isso, Rodolfo de Camargo Mancuso sugere:

Impende que a fundamentação dos acórdãos, sobretudo daqueles emblemáticos, ditos precedentes fortes, seja convincente e que a redação das ementas, assim como dos enunciados das súmulas, se faça com precisão e clareza, a fim

anteprojeto do novo Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.senado.gov.br/ senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf (MANCUSO, 2014, p. 607). 833 Humberto Theodoro JR., Dierle Nunes e Alexandre Bahia lembram que “tanto quanto a tarefa de sumular os julgados, é da máxima relevância que todo e qualquer litígio encontre justa e adequada solução em juízo. Para tanto é indiscutível e imperiosa a necessidade de que a sentença seja sensível àquilo que dá individualidade à causa e que, por isso, venham a refletir nos seus fundamentos todos os dados e argumentos que os litigantes tenham trazido para o processo. Só assim o pronunciamento jurisdicional responderá, com adequação e justiça, à demanda daqueles que esperam do Judiciário uma tutela, além de efetiva, justa. Não é pela padronização fria e estéril dos julgamentos que a tanto se chegará. Muito mais importante será, nesse rumo, a sentença bem e racionalmente fundamentada, à luz das peculiaridades do caso concreto, em contraditório, ainda quando se esteja a aplicar enunciados sumulares de precedentes judiciais” (THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52). 834 Além do problema da fundamentação insuficiente, José Rogério Cruz e Tucci pondera que “os tribunais, em várias situações, extrapolam as garantias processuais, passando a legislar em detrimento do direito material dos jurisdicionados, como ocorre, v.g., no âmbito da famigerada jurisprudência defensiva” (TUCCI, 2015, p. 47-65). 835 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, p Cit. 836 ABBOUD, 2011, p. 460, Op Cit.

Page 215: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

215

de que se alcancem os objetivos de sumarização dos ritos agilização dos julgamentos e tratamento igualitário aos casos análogos. O êxito da aplicação do direito pretoriano dentre nós fica, pois, a depender do zelo na elaboração dos produtos finais e otimizados da função jurisdicional; do contrário, pode-se antever um agravamento do atual ambiente de dispersão jurisprudencial excessiva, em detrimento da segurança jurídica, da previsibilidade, da proteção da confiança e do tratamento isonômico aos jurisdicionados837.

Demonstrando preocupação com a questão da distinção (distinguishing)

dos casos que serão atingidos pela decisão paradigma, Lenio Luiz Streck

questiona: Quem dirá (e como isso será feito?) que o caso em julgamento – suscetível da aplicação do precedente sumular ou jurisprudencial vinculativo – é similar ao outro que originou o precedente? Os processos, para que tenham um rápido tramitar, principalmente em grau de recurso, acaso serão postos em uma pilha e despachados em série, algo como não provido por unanimidade (NPU) ou provido por unanimidade (PPU), prática, aliás, já corriqueira nos tribunais?838

Essa também é uma preocupação de Rodolfo de Camargo Mancuso, para

quem não há como negar:

O risco latente de eventual denegação de justiça em face dos casos equivocadamente tomados como idênticos ou repetitivos e, bem assim, aqueles cujo âmbito da pretensão recursal abrangia pontos que ficaram sem apreciação, por desbordarem da questão central discutida, objeto da deliberação ao final tomada no recurso representativo839.

Em virtude dessas constatações e da experiência já vivida no cenário

brasileiro, Lenio Luiz Streck alerta que nessa busca pela efetividade meramente

quantitativa, a partir de mecanismos de vinculação das decisões, “o que menos

será discutido, provavelmente, é a qualidade das decisões e a legitimidade das

instâncias superiores do Judiciário para tal [...]”840.

837 MANCUSO, 2014, p. 609, Op Cit. 838 STRECK, 2014, p. 420, Op Cit. 839 MANCUSO, 2014, p. 541, Op Cit. 840 STRECK, 2014, p. 428, Op Cit.

Page 216: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

216

4.4.3.5 Necessidade de interpretação das decisões repetitivas

Assim como aconteceu com os grandes Códigos do século XIX, as

decisões-padrão não conseguem fechar o mundo nos textos, pois:

Não há lei, princípio, súmula ou jurisprudência que possam prever todas as situações de aplicação. Toda norma (ou similar) é pensada para um certo número de situações, porém a realidade é muito mais rica/diversa e colocará novas situações que desafiam o aplicador, inclusive porque causarão conflito entre aquelas normas: são os dados do caso que, “complementando” as normas, darão subsídios à decisão841.

Sobre este tema, pertinente é a lição de Georges Abboud, que assim se

manifestou: “com base em Dworkin, já concluímos pela impossibilidade de se

encontrar uma fórmula apriorística que garanta aos juízes alcançarem a mesma

solução jurídica diante de diferentes e complexos processos”842.

Não é outra a opinião de Júlio César Rossi:

Percebe-se que a mecânica positivista do recurso especial repetitivo é uma falácia na medida em que incentiva de forma absoluta o subjetivismo, o ativismo e potencializa o artificial senso de que podemos resolver questões jurídicas de forma padronizada, estandardizada por meio de fórmulas que ignoram a facticidade de cada caso concreto843.

No mesmo sentido, Lenio Luiz Streck preconiza que as decisões

consolidadas pelos tribunais também são textos e, portanto, interpretáveis. Por

exemplo, o autor cita que a súmula, “como qualquer texto jurídico, sofrerá uma

inexorável ação hermenêutica-interpretativa, fruto do processo de atribuição de

sentido (Sinngebung)”844.

Por isso, Georges Abboud acentua a necessidade de que esses

mecanismos criados visando à redução de processos reflitam “em motivações

judiciais mais alentadas, que examinem o contexto fático-jurídico da lide e não se

limitem a fundamentar com base em súmulas ou decisões dos Tribunais

841 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, Op Cit. 842 ABBOUD, 2011, p. 467, Op Cit. 843 ROSSI, 2015, p. 181, Op Cit. 844 STRECK, 2014, p. 406, Op Cit.

Page 217: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

217

Superiores, como se esses precedentes já trouxessem a norma pronta e acabada

a ser aplicada ao caso concreto”845.

Da mesma forma, Lenio Luiz Streck acredita que a saída para contornar o

problema da vinculação das decisões é o detalhado exame das circunstâncias

que conformam o problema jurídico concreto, que indicará se a decisão-quadro

deve – ou não – ser aplicada. Ou seja, as decisões devem vir “acompanhadas da

necessária justificação (motivação)846.

Sobre esse ponto, Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes e Alexandre

Bahia assim concluem:

Não é, outrossim – urge ressaltar – que pretendamos evitar de forma radical a aproximação com o direito anglo-saxônico e rejeitar por completo, o recurso à técnica da jurisprudência sumulada. Esse caminho hoje, numa justiça massificada como a nossa, é de fato irreversível, e tem virtudes inegáveis no plano da agilização e economia processuais. O que não se pode aceitar é a via da padronização da tutela jurisdicional pura e simples. Se os enunciados da lei não conseguem aplicação automática e indiscutível em todos os casos práticos submetidos à decisão judicial, por que isto aconteceria com os enunciados jurisprudenciais sumulados pelos tribunais superiores? Acaso os juízes teriam alcançado o milagre que os legisladores confessadamente se revelaram impotentes de conseguir? É óbvio que a simples literalidade de regrar hipotéticas e generalizantes, sejam elas primárias como as do legislador ou derivadas como as dos tribunais, jamais será suficiente para proporcionar aos litigantes a justa composição dos conflitos prometida pelo Estado Democrático de Direito847.

Sendo assim, não se pode esquecer que as súmulas vinculantes, os

recursos especial e extraordinário repetitivos e o incidente de resolução de

demandas repetitivas também são textos jurídicos e, como tal, também devem ser

interpretados848. O problema, alerta Lenio Luiz Streck, é que o sistema jurídico

brasileiro “busca a fórmula dos precedentes sem a correspondente

obrigatoriedade de motivação/justificação”849.

845 ABBOUD, 2011, p. 468, Op Cit. 846 STRECK, 2014, p. 430, Op Cit. 847 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, Op Cit. 848 STRECK, 2014, p. 429, Op Cit. 849 STRECK, 2014, p. 431, Op Cit.

Page 218: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

218

4.4.3.6 Independência do juiz e livre convencimento

Antes mesmo da elaboração do Anteprojeto de novo Código de Processo

Civil, José Carlos Barbosa Moreira alertava que, no rumo que as reformas

processuais vinham ampliando a eficácia vinculante das decisões dos tribunais,

virá o dia em que “teremos dificuldade de identificar algum caso em que não haja

vinculação e se conceda aos juízes e tribunais, por especial favor, a liberdade de

julgar de acordo com seu próprio convencimento”850.

A respeito da independência dos juízes e da violação ao princípio do livre

convencimento dos magistrados, Marcelo Barbi Gonçalves assevera: Um Poder Judiciário não é hoje concebível como mais um ramo da administração e, portanto, não se pode conceber sua estrutura na forma hierarquizada de um exército. Um Judiciário verticalmente851 militarizado é tão aberrante quanto um exército horizontalizado852.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery lembram que: Dentro do Poder Judiciário o juiz tem independência jurídica, devendo decidir de acordo com a Constituição e as leis do país, com fundamento na prova dos autos. Não há hierarquia jurisdicional entre órgãos do Poder Judiciário, salvo no caso de o tribunal, exercendo sua competência recursal, cassar ou reformar a decisão recorrida853.

No mesmo sentido é a crítica de Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes

e Alexandre Bahia, para os quais: Os juízes de primeiro grau e os Tribunais são relegados a um papel de autômatos do sistema em face da fixação de pautas decisórias e decisões-padrão pelos Tribunais Superiores, de modo que são compelidos a tão somente repeti-las sem possuírem a menor infraestrutura para proferir decisões maturadas e forjadas no debate processual854.

850 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Súmula, jurisprudência, precedente: uma escalada e seus Riscos. Revista Dialética de Direito Processual, n. 27, p. 49-58, jun. 2005. 851 A respeito dessa verticalização, Cassio Scarpinella Bueno indica que, “infelizmente, tem prevalecido o entendimento em direção ao esvaziamento e ao enfraquecimento dos processos individuais que têm início na primeira instância. O veto do art. 333 é prova segura e a mais recente disto, como suas próprias razões evidenciam, tanto que as ‘demandas repetitivas’ do CPC de 2015 são, de acordo com o art. 928, aquelas provenientes dos tribunais, de cima para baixo” (BUENO, 2016, p. 316). 852 GONÇALVES, Marcelo Barbi. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a magistratura deitada. Revista de Processo, v. 222, ago/2013. 853 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.965., Op Cit 854 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, Op Cit.

Page 219: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

219

Lenio Luiz Streck alerta que, ao contrário do que ocorre nos recursos

repetitivos e no incidente de resolução de demandas repetitivas: No direito norte-americano – tido e havido como modelo pelos que querem introduzir as modificações no nosso sistema –, as decisões não são proferidas para que possam servir de precedentes no futuro855, mas sim para solucionar os conflitos que chegam ao Judiciário. Por decorrência, a utilização do precedente em casos posteriores é uma decorrência incidental856.

Sobre este aspecto, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery

percebem que “o precedente, na common law vai muito além da simplificação do

julgamento que é normalmente enxergado pela doutrina nacional, de modo geral.

O precedente, ali, não funciona como uma simples ferramenta de simplificação de

julgamento”857.

Sendo assim, Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes e Alexandre Bahia

lembram que o precedente deve ser um ponto de partida que contribuirá para a

decisão do juiz e que nem mesmo “em países nos quais é tradicional o uso de

precedentes pode haver sua utilização mecânica sem a reconstrução do histórico

de aplicação decisória858 e sem se discutir sua adaptabilidade, mesmo que se

busque tal desiderato em uma lógica tacanha da aplicação da igualdade”859.

Outro ponto a ser registrado em relação à vinculação das decisões

proferidas em julgamentos de demandas ou recursos repetitivos é a ressalva feita

por Rodolfo de Camargo Mancuso:

Isso faz com que o direito pretoriano vá aumentando sua área de influência e projetando efeitos processuais cada vez mais expandidos, implicado em que, gradualmente, se evanesça a

855 Marcos de Araújo Cavalcanti ressalta que “essa vinculação para o futuro evidencia o caráter cronofóbico e anti-hermenêutico do IRDR. Quando se permite a vinculação para as causas que ainda irão surgir é como se o Tribunal, por meio do IRDR, criasse uma decisão onipresente que contivesse a antecipação do sentido de todas as demais causas a tratarem daquela quaestio iuris. Essa faceta é a mais antidemocrática do IRDR porque ela pode engessar a revisão pelo Judiciário de determinado incidente para causas futuras” (CAVALCANTI, 2015, p. 621). 856 STRECK, 2014, p. 420, Op Cit. 857 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.833, Op Cit. 858 Marcos de Araújo Cavalcanti pondera: “de forma simplificada pode-se destacar que o stare decisis aposta no caso concreto e na qualidade, enquanto o NCPC, com o IRDR, no julgamento em teses abstratas e na quantidade. O primeiro é fruto do desenvolvimento histórico de um sistema jurídico, o outro uma criação do Legislativo brasileiro. O stare decisis é um aperfeiçoamento histórico, o IRDR, infelizmente, é uma originalidade inconstitucional” (CAVALCANTI, 2015, p. 601). 859 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010, p. 9-52, Op Cit.

Page 220: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

220

diferença entre a norma legislada e a norma judicada, sobretudo no que tange ao atributo da obrigatoriedade860.

De forma semelhante, Lenio Luiz Streck faz o seguinte alerta:

Não tenho medo de afirmar que trocar a democracia e a independência dos juízes pelo desafogo dos processos – tese que começa perigosamente a ser aceita até mesmo pelos que são contrários à vinculação sumular – parece um preço exageradamente alto a ser pago por todos nós861.

Deve ser questionada, ainda, a própria constitucionalidade do incidente de

resolução de demandas repetitivas862 e dos recursos especial e extraordinário

repetitivos. Nessa linha, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery

defendem que o efeito vinculante previsto para o IRDR e para os recursos

repetitivos é inconstitucional porque tal mecanismo não pode ser instituído

mediante legislação ordinária. A vinculação de uma decisão aos juízes de

hierarquia inferior ao órgão prolator da decisão, bem como aos particulares, deve

estar sempre prevista expressamente na Constituição da República, sob pena de

violação à garantia constitucional da independência funcional dos magistrados e à

separação funcional de poderes. Os autores ressaltam que as únicas hipóteses

permitidas pela Constituição de vinculação dos juízes e tribunais são as súmulas

vinculantes863, o julgamento de mérito de ADIn e Ato das Disposições

Constitucionais (ADC)864 e os recursos providos865.

Segundo Georges Abboud e Marcos de Araújo Cavalcanti: Até mesmo os enunciados editados ou as decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade abstrato pela mais alta corte do país (o STF) precisaram de previsão constitucional expressa que lhes atribuísse efeito vinculante. Dessa forma, mais

860 MANCUSO, 2014, p. 543, Op Cit. 861 Para ilustrar esta situação, o autor afirma que ao acreditar na tese simplista de que o desafogo do Judiciário depende de providências drásticas como o aumento da vinculação das decisões dos tribunais, “os operadores do direito agem como aquele sujeito que perdeu o relógio em uma praça escura e põe-se a procurá-lo, longe dali, debaixo de uma luminária. Perguntado acerca de sua conduta destituída de qualquer racionalidade, o sujeito responde: - Ora, aqui é bem mais fácil procurar!...” (STRECK, , 2014, p. 419). 862 Marcos de Araújo Cavalcanti é categórico ao afirmar que “o efeito vinculante previsto para o IRDR é inconstitucional porque tal mecanismo não pode ser instituído mediante legislação ordinária” (CAVALCANTI, 2015, p. 588). 863 CF/88 – Art. 103-A. 864 CF/88 – Art. 102, § 2º. 865 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.975, Op Cit.

Page 221: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

221

necessário ainda é o permissivo constitucional que confira efeito vinculante às decisões proferidas no julgamento do IRDR866.

Sobre essa eficácia vinculante das decisões paradigmas, José Carlos

Barbosa Moreira faz dois alertas: o primeiro, de que é necessário conferir certa

margem de flexibilidade para o julgador, a fim de ajustar o entendimento firmado

na decisão a ser proferida às mudanças ocorridas no mundo exterior. Desta

forma:

Bloquear, de forma direta ou indireta, na produção dos órgãos situados na base da pirâmide judiciária os eventuais desvios das teses firmada em grau superior significa, em certos casos, barrar precocemente um movimento, talvez salutar, de renovação da jurisprudência. [...] Os mecanismos previstos para a revisão dos paradigmas, a nosso ver, não exorcizam suficientemente o risco, dada a notória relutância dos tribunais em recuar de posições consolidadas867.

O segundo alerta refere-se à atuação dos magistrados, comentando:

A lei do menor esforço quase fatalmente induzirá o juiz menos consciencioso a enxergar identidade onde talvez não exista mais que vaga semelhança. A tentação da facilidade será forte demais, sobretudo quando grande a carga de trabalho que estiver assoberbando o magistrado. Em não poucos casos, ante a primeira impressão do déjà vu, a própria leitura da petição inicial corre o perigo de ver-se truncada ou reduzida a mera olhadela, desatenta a argumentos porventura novos que o autor suscite868.

Os críticos da chamada “jurisprudência vinculante” lembram que em

Portugal havia os assentos portugueses, instituto tradicional do direito português,

que foi incluído como texto legal na moderna legislação no artigo 2º do Código

Civil de Portugal, estabelecendo que, “nos casos declarados na lei, podem os

tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral”869.

Como se percebe, assim como o incidente de resolução de demandas repetitivas

e os recursos especial e extraordinário repetitivos, os assentos portugueses eram

pronunciamentos judiciais com caráter vinculante870.

866 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit. 867 MOREIRA, 2005, p. 49-58, Op Cit. 868 MOREIRA, 2005, p. 49-58, Op Cit. 869 Código Civil Português. Disponível em:http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_ codigocivil.pdf. 870 NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.966, Op Cit.

Page 222: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

222

No entanto, a Corte Constitucional de Portugal declarou inconstitucional o

artigo 2º do Código Civil Português, tirando-lhe a vigência e a eficácia, por faltar

autorização constitucional expressa para que preceitos advindos do Poder

Judiciário pudessem ter força vinculante, de lei871.

No Brasil, questão semelhante foi apreciada pelo Tribunal Superior Eleitoral

(TSE) a respeito do prejulgado previsto no art. 263 do Código Eleitoral872. Nos

autos do RESPE no 9.936/RJ873, o TSE, incidentalmente, declarou a

inconstitucionalidade do instituto, constando do voto do Relator, Ministro

Sepúlveda Pertence, que o prejulgado eleitoral conflita com a Constituição porque

“dá ao precedente judicial força de lei, o que viola o princípio de separação

funcional de poderes [...] É tão violenta a força vinculante que o prejulgado

pretende, que ele é maior que a força obrigatória da lei”874.

Lenio Luiz Streck lembra que o problema das decisões vinculantes “não

reside no fato de serem ‘corretas’ ou ‘incorretas’, e sim na função que esse

mecanismo exerce no sistema jurídico e suas consequências no acesso à justiça

e na qualidade das decisões a serem proferidas pelos juízes e tribunais”875.

Por essas razões, Lenio Luiz Streck assegura que “não é temerário, porém,

afirmar que a centralização das decisões nos tribunais superiores, retirando das

instâncias inferiores a possibilidade – face to face – de dizer o direito no caso

concreto, é um dos mais sérios problemas”876.

4.4.3.7 Contraditório e ampla defesa: ausência de manifestação dos interessados

A discutível constitucionalidade da eficácia vinculante dos julgamentos de

demandas repetitivas decorre do fato de que “as partes litigantes que figuram nos

871 Nada obstante as decisões de inconstitucionalidade da Corte Constitucional de Portugal, o artigo 2º do Código Civil português foi revogado pelo Dec.-Lei 329-A, de 12.12.1995, que entrou em vigor em 15.09.1996 (NERY JR.; NERY, 2015a, p. 1.966). 872 Lei 4.737/65 - Art. 263. No julgamento de um mesmo pleito eleitoral, as decisões anteriores sôbre questões de direito constituem prejulgados para os demais casos, salvo se contra a tese votarem dois terços dos membros do Tribunal. 873 TSE, Pleno, Respe n. 9936-RJ, Rel. Min. José Paulo Sepúlveda Pertence, Acórdão n. 12.501, de 14.09.1992. 874 CAVALCANTI, 2015, p. 589, Op Cit. 875 STRECK, 2014, p. 433, Op Cit. 876 STRECK, 2014, p. 421, Op Cit.

Page 223: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

223

outros recursos não participaram e efetivamente não influíram na decisão

colegiada proferida inter alios”877.

José Rogério Cruz e Tucci reconhece a importância do problema da

multiplicação de recursos sobre matéria análoga. Todavia, o autor admite que: O entendimento de que a eficácia do precedente julgamento, em sede de recurso repetitivo, estende-se às outras impugnações manejadas por terceiros é absolutamente insustentável. A um processo civil construído sobre alicerces democráticos repugna a ideia da produção de efeitos contrários ao direito subjetivo de alguém que sequer teve oportunidade de participar do processo878.

A respeito deste tema, alerta Rodolfo de Camargo Mancuso: Sem embargo da racionalidade operacional que impregna o sistema de julgamento por amostragem, e de seu pragmático objetivo de otimizar a prestação jurisdicional nos Tribunais, não há negar que, na pendência dos trâmites voltados à fixação do entendimento do STF ou do STJ no processo paradigma, as partes atinentes aos processos sobrestados nos TJs, TRFs (ou mesmo nos TRTs), ficam na angustiante condição de impassíveis espectadoras, não só da eventual afetação de seu processo como representativo da controvérsia, como da final fixação da decisão-quadro pelo STF ou STJ, assim figurando como ‘litigante-sombra’, na expressiva locução do Mn. Hermann Benjamin, do STJ, (voto vencido no REsp 911.802/RS). Ou, se se quiser, tais recorrentes figurariam como ‘partes sem participação’ – uma contradição nos próprios termos – já que, como integrantes dos processos sobrestados, não têm como influir na decisão-quadro, a qual, todavia, depois lhes afetará diretamente879.

Georges Abboud e Marcos de Araújo Cavalcanti alertam que o problema

que já era enfrentado com os recursos especiais e extraordinários repetitivos:

Irá se agravar com o IRDR porque ele pode ser suscitado perante os tribunais locais e regionais. O NCPC, além de não prever a possibilidade de o tribunal competente controlar a representação adequada, expressamente estabelece que a decisão de mérito proferida no incidente processual deve alcançar vinculativamente todos os processos repetitivos (individuais e coletivos; pendentes e futuros), qualquer que seja o resultado do julgamento (eficácia vinculante pro et contra)880.

877 TUCCI, 2015, p. 47-65, Op Cit. 878 TUCCI, J2015, p. 47-65, Op Cit. 879 MANCUSO, 2014, p. 528, Op Cit. 880 Comparando procedimento adotado pelo IRDR no Brasil, com o procedimento do Musterverfahren no direito alemão, citados autores destacam que: “o instituto alemão proporciona

Page 224: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

224

Como se percebe, a grande questão é que, ao contrário do que ocorre com

as ações coletivas, não somente a decisão favorável, mas também a

desfavorável, alcançará com força vinculante todos os processos individuais, sem

o controle acerca da adequação da representatividade881.

Esse efeito vinculante previsto para as decisões proferidas em julgamento

de recursos ou demandas repetitivas violaria a cláusula do devido processo legal

e o princípio do contraditório, violando os incisos LIV e LV do artigo 5º 882 da

Constituição de 1988.

Georges Abboud e Marcos de Araújo Cavalcanti propõem a seguinte

solução para sanar essa inconstitucionalidade:

Para que a decisão de mérito desfavorável proveniente do IRDR seja aplicada vinculativamente aos processos repetitivos, é preciso que o sistema processual brasileiro assegure o devido processo legal e, por consequência, o princípio do contraditório aos litigantes abrangidos pelo incidente processual coletivo. E a única forma de garantir a observância desses princípios constitucionais é permitir o controle judicial da adequação da representatividade dos interesses do grupo. A adoção dessa técnica processual nada mais é do que um método de adaptação do princípio constitucional do contraditório ao devido processo legal social ou coletivo883.

4.4.4 Ações coletivas X mecanismos de julgamento de demandas repetitivas

A opção do novo Código de Processo Civil de privilegiar os julgamentos

por amostragem não substitui o importante papel desempenhado pela tutela

coletiva no Brasil. “Isso porque os objetivos perseguidos pelas ações coletivas no

mais segurança jurídica na medida em que há uma espécie de controle da representatividade do autor-principal no procedimento-modelo, através de uma eleição/escolha dos representantes” (ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242). 881 Marcos de Araújo Cavalcanti (2015, p. 601) afirma que “não somente a decisão favorável, mas também a desfavorável, alcança com força vinculante todos os processos repetitivos. Essa determinação do NCPC viola flagrantemente a cláusula do devido processo legal e o princípio do contraditório. 882 CF/1988 – Art. 5º - LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 883 ABBOUD; CAVALCANTI, 2015, p. 221-242, Op Cit.

Page 225: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

225

Brasil são mais amplos que os almejados pela resolução de casos-piloto ou

casos-teste884.

Diante do exposto, Marcelo Abelha Rodrigues conclui que mais importante

do que criar técnicas para o julgamento de demandas repetitivas885 é:

Dar real efetividade à verdadeira tutela coletiva Dos direitos, pela qual tanto militou a doutrina brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Esta, sim, é capaz não apenas de dar maior rendimento à atividade do Poder Judiciário, mas, sobretudo, possibilitar a adequada tutela dos direitos da coletividade886.

Defendendo a importância das ações coletivas, inclusive para a solução

dos litígios de massa, Rodolfo de Camargo Mancuso evidencia que:

Essa atomização do macroconflito, refletida na multiplicação de recursos isomórficos, poderia ser evitada, caso a crise de larga irradiação fosse, desde a origem, encaminhada aos quadrantes da jurisdição coletiva, nos moldes de um interesse individual homogêneo (art. 81, § único, III, CDC)887.

Como visto neste capítulo, a opção do novo Código de Processo Civil de

priorizar os mecanismos de julgamento por amostragem, entre os quais se

destacam os recursos especial e extraordinário repetitivos e o incidente de

resolução de demandas repetitivas, traz graves riscos ao sistema processual civil

brasileiro.

Nessa linha é a posição de Marcelo Abelha Rodrigues: Muito embora se proclame ser feita em nome de uma rápida e igualitária solução das demandas, tal substituição prejudica sobremaneira a efetivação das garantias inerentes ao devido processo legal, afetando diretamente os hipossuficientes, em claro prejuízo, ainda, ao livre acesso à justiça. Em contrapartida,

884 Segundo André Vasconcelos Roque, “o incidente previsto no novo CPC tem por finalidade evitar a multiplicação de processos, proporcionando isonomia e segurança jurídica. Não está entre suas finalidades, todavia, promover o acesso à justiça, nem assegurar a tutela de direitos ontologicamente coletivos” (ROQUE, 2016, p. 180). 885 Gustavo Milaré de Almeida assevera que a análise detida do IRDR “permite concluir que sua positivação teria sido desnecessária no Brasil caso se fosse dado o uso adequado à tutela coletiva, o que não tem sido feito pelo legislador pátrio” (ALMEIDA, Gustavo Milaré. O incidente de resolução de demandas repetitivas e o trato da litigiosidade coletiva. In: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. (coord). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8: Salvador: Juspodivm, 2016, p. 579). 886 RODRIGUES, 2014, p. 485, Op Cit. 887 MANCUSO, 2014, p. 540, Op Cit.

Page 226: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

226

acaba por beneficiar os litigantes habituais, de elevada capacidade técnica e econômica888.

Rodolfo de Camargo Mancuso alerta, ainda: Na ponderação entre os valores otimização da prestação jurisdicional (subjacente à técnica de julgamento por amostragem) e devido processo legal, em sua formulação substancial, por certo há que se priorizar este último, não se podendo, em nome da obsessiva sumarização dos ritos, agilização dos julgamentos e redução dos custos da estrutura judiciária, atropelar garantias processuais que a duras penas foram sendo alcançadas, cabendo aplicar-se ao caso o princípio da vedação do retrocesso879.

A respeito da tentativa de se privilegiar a celeridade e a igualdade

processual a partir de mecanismos de julgamento por amostragem, Humberto

Theodoro Júnior, Dierle Nunes e Alexandre Bahia assim se posicionam:

A defesa dessa “pseudoigualdade” para aumentar a eficácia (quantitativa), fomentar uma previsibilidade pelo engessamento dos posicionamentos (em face do modo superficial que o sistema brasileiro impõe a aplicação do direito aos juízes), favorecer uma concepção hierárquica (e não funcional da divisão das competências do Poder Judiciário – com quebra da independência interna) e desestimular o acesso à justiça (que é fruto de uma luta histórica e se tornou um problema funcional, pela ausência de uma efetiva reforma do Judiciário e de um aparato adequado, deve ser tematizada com muita cautela889.

No mesmo sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso pondera:

Não se põe em dúvida que uma Justiça lenta e tardia engendra, de per se, o risco de injustiças, mas nesse campo – como em tantos outros da experiência jurídica – impõe-se a devida ponderação entre os valores incidentes: de um lado, a segurança jurídica e a qualidade da prestação jurisdicional; de outro, a presteza nessa resposta, em simetria com a diretriz da razoável duração dos processos (CF, art. 5º, LXXVIII). A consecução deste último propósito não pode, por certo, ser feita à custa do sacrifício daqueles primeiros e transcendentes valores; do contrário, arrisca-se trocar um problema por outro a duração excessiva do processo fica trocada ou substituída pelo risco da injustiça célere890.

888 RODRIGUES, 2014, p. 474, Op Cit. 889 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, Op Cit. 890 MANCUSO, 2014, p. 525, Op Cit.

Page 227: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

227

Por outro lado, a imposição de caráter vinculante às decisões judiciais

deveria ser antecedida de ampla discussão a respeito da fundamentação das

decisões judiciais, conforme Marcos de Araújo Cavalcanti891.

Ao buscar imprimir celeridade processual a partir dos mecanismos de

julgamento de demandas repetitivas, o legislador parece se esquecer do alerta

feito por José Rogério Cruz e Tucci: “é sempre importante frisar que a celeridade

deve servir às partes e não ao Estado!”892

Com base nisso, Júlio César Rossi conclui que “o processo coletivo é

melhor e mais eficiente do que nossos precedentes”893. E acrescenta:

Ora, em verdade, o processo coletivo é ínsito a trazer isonomia a todos os jurisdicionados que experimentaram as mesmas situações jurídicas postas na lide coletiva. Desprezamo-lo para buscar nos precedentes à brasileira a solução que já temos há mais de 20 anos para o problema das ações de massa! Estamos construindo um verdadeiro ornitorrinco jurídico, pois não são nada semelhantes aos precedentes do common law, se aproximam dos assentos portugueses, não se caracterizam como genuína jurisprudência da tradição da civil law, são aplicados por silogismo e subsunção e dotados de efeito suspensivo automático para processos idênticos (ou parecidos) e ainda, devem conter a maior quantidade de causa de pedir possível para ‘vestir’ nas mais diversas situações imagináveis direta ou indiretamente do caso piloto (premissa maior)!894.

Por todos os riscos dos julgamentos por amostragem aqui expostos,

Marcos Araújo Cavalcanti defende que deve ser priorizado o processo coletivo e

aplicado o incidente de resolução de demandas repetitivas tão somente de forma

subsidiária, quando for comprovado que as ações coletivas não são o meio mais

adequado para a resolução das demandas895.

891 O autor destaca que “a qualidade decisional no Brasil não é um problema somente porque os precedentes não são observados, a atividade jurisdicional também tem diversos problemas porque a própria e lei e principalmente a Constituição não são respeitados, merecendo destaque o in. XXXV do art. 5º e o IX do art. 93.” [...] “Outrossim, é totalmente cega, para a dimensão qualitativa, qualquer proposta de criação de instrumentos vinculatórios para as decisões se não houver como pano de fundo teórico uma séria discussão acerca de resposta correta (constitucionalmente adequada) e teoria da decisão judicial” (CAVALCANTI, 2015, p. 623). 892 TUCCI, 2015, p. 47-65, Op Cit. 893 ROSSI, 2015, p. 197, Op Cit. 894 ROSSI, 2015, p. 198, Op Cit. 895 Assim se manifesta o autor: “o magistrado, ao verificar que as ações coletivas podem adequadamente resolver os litígios de massa, deve dar prioridade a essa técnica processual. Sugere-se, então, na linha das GLOs do direito inglês, que o IRDR somente seja aplicado, subsidiariamente, quando restar demonstrado que a técnica processual das ações coletivas não é

Page 228: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

228

Por fim, o que se percebe é que a discussão está muito focada em buscar

soluções para as consequências da existência de demandas seriais no cenário

brasileiro, sem se ocupar de combater a causa dessa proliferação de demandas.

Pertinente é a observação de Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes e

Alexandre Bahia de que “não é possível mais pensar somente nas consequências

(demandas em profusão), eis que do ponto de vista institucional o sistema jurídico

funcionaria bem melhor se impedíssemos as causas delas (não cumprimento de

direitos fundamentais sociais, etc.)”896.

Sendo assim, a reflexão a respeito das soluções para a proliferação de

demandas deve, necessariamente, passar pelo combate ao surgimento das

violações de direitos que dão causa ao grande volume de demandas, além de

enfrentar as consequências dos milhões de processos em trâmite perante o Poder

Judiciário brasileiro.

Por último, é pertinente a lição de José Carlos Barbosa Moreira: Se uma justiça lenta demais é decerto uma justiça má, daí não se segue que uma justiça muito rápida seja necessariamente uma justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço897.

a mais apropriada para a resolução dos conflitos. Verificada, na hipótese levada ao tribunal, essa aptidão das ações coletivas, o processamento do IRDR deve ser indeferido, por falta de interesse de agir” (CAVALCANTI, 2015, p. 621-622). 896 THEODORO JR.; NUNES; BAHIA, 2010b, p. 9-52, Op Cit. 897 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da justiça: alguns mitos. In: Temas de direito processual (oitava série), Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 5.

Page 229: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

229

5 CONCLUSÃO

A evolução do processo coletivo contraria a lógica adotada pelo processo

civil tradicional, pois, desde o seu surgimento como ramo autônomo do direito, no

final do século XIX, a sua estrutura sempre foi voltada para a tutela dos interesses

individuais.

Sendo assim, o Código de Processo Civil de 1973 foi elaborado conforme a

lógica do processo civil tradicional e com foco na tutela jurisdicional para a defesa

de direitos subjetivos individuais, adotando como regra geral que ninguém poderia

pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei (art. 6º,

CPC/1973).

Todavia, na década de 1970, os processualistas brasileiros, influenciados

por juristas italianos que estudavam as class actions norte-americanas, passaram

a se preocupar com o desenvolvimento do processo coletivo no Brasil.

Até então, o único o instrumento que, dentro de certas limitações, estava

apto para a tutela jurisdicional dos interesses difusos era a ação popular,

existente no Brasil desde a Constituição de 1934 e regulamentada pela Lei nº

4.717/1965.

No entanto, o grande divisor de águas na legislação brasileira é a Lei da

Ação Civil Pública, Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que surgiu como fruto da

inquietação dos processualistas brasileiros que defendiam a necessidade de

efetiva tutela dos interesses metaindividuais no país. E também transformou o

direito processual, que deixou de se preocupar exclusivamente com a tutela

jurisdicional de direitos individuais para se ocupar também de interesses

transindividuais, que passaram a receber tutela diferenciada, a partir de princípios

e regras próprias, que romperam com a estrutura tradicional do processo civil.

O segundo grande momento de prestígio da tutela coletiva de direitos na

legislação brasileira ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988,

marcada pela tutela jurídica irrestrita, integral e ampla de direitos individuais e

coletivos, que consagrou o direito processual coletivo como novo ramo do direito

processual brasileiro. As ações coletivas passaram a ter destaque jamais visto em

Constituições anteriores, garantindo dignidade constitucional aos direitos ou

Page 230: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

230

interesses coletivos em sentido amplo, por exemplo, ao ampliar o objeto da ação

civil pública, estendendo o seu campo de atuação para a proteção de todos os

interesses difusos e coletivos (art. 129, III).

No entanto, foi com o advento do Código de Defesa do Consumidor – Lei

nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que, além de colocar o Brasil na vanguarda

mundial da proteção dos direitos do consumidor, a tutela jurídica dos direitos

coletivos foi consolidada, tendo consagrado o princípio da perfeita interação entre

o próprio código e a Lei da Ação Civil Pública, criando o microssistema processual

coletivo brasileiro.. Entre os avanços conquistados com a entrada em vigor do

CDC, pode-se destacar, por exemplo, a conceituação dos direitos de massa,

instituindo a categoria dos direitos individuais homogêneos, a disciplina do

fenômeno da coisa julgada coletiva e a extensão do cabimento da ação civil

pública a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

Apesar da evolução legislativa da tutela jurisdicional de interesses

coletivos, é importante destacar que o Código de Processo Civil permaneceu com

um sistema processual voltado para a solução de conflitos individuais, razão pela

qual a sua aplicação no microssistema do processo coletivo (CDC, CF e LACP)

só ocorre de forma subsidiária limitada (art. 19 da LACP e art. 90 do CDC), ou

seja, nos casos em que exista compatibilidade formal e teleológica.

Com relação ao mandado de segurança coletivo, a Constituição Federal de

1988, atendendo a antiga reivindicação doutrinária, reconheceu, de forma inédita

no Brasil, a possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo (art.

5º, LXX), e a matéria foi regulada em nível infraconstitucional pela Lei nº

12.016/09. Todavia, a sensação é de que a Lei do Mandado de Segurança

poderia ter avançado em diversas matérias, pois algumas questões envolvendo o

procedimento do mandado de segurança coletivo permaneceram controversas.

Apesar do silêncio da Lei nº 12.016/2009, a própria Constituição Federal

confere ao Ministério Público legitimidade para a defesa dos direitos difusos e

coletivos, inclusive com a possibilidade de impetração de mandado de segurança

coletivo. Se o Ministério Público pode pleitear em juízo a afirmação de um direito

coletivo por meio de um procedimento comum, também pode fazê-lo por meio do

procedimento especial do mandado de segurança coletivo. Ademais, inegável a

possibilidade de utilização de mandado de segurança coletivo para a tutela de

direitos difusos, conforme interpretação do artigo 5º, LXX, da CF/88.

Page 231: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

231

Quanto aos principais aspectos que envolvem o direito processual coletivo

brasileiro, com suas peculiaridades e diferenças em relação ao processo

individual, três requisitos essenciais são fundamentais para caracterizar as ações

coletivas: a defesa de direito coletivo; um sistema de legitimidade diferenciado; e

um regime especial da coisa julgada.

Conforme o disposto no Código de Defesa do Consumidor, é possível

perceber que a defesa coletiva abrange dois tipos de interesses ou direitos. O

primeiro deles seriam os essencialmente coletivos, também denominados de

coletivos lato sensu, que abrangem os difusos e os coletivos propriamente ditos,

também chamados de coletivos stricto sensu. O segundo tipo são os interesses

ou direitos que assumem natureza coletiva apenas na forma em que são

tutelados, que são os individuais homogêneos.

Entretanto, o que caracteriza um direito como difuso, coletivo ou individual

homogêneo é o tipo de pretensão material e de tutela jurisdicional que se

pretende com a ação coletiva, conforme a corrente liderada pelo professor Nelson

Nery Júnior. Ou seja, um mesmo fato pode originar pretensões difusas, coletivas

ou individuais homogêneas, sendo que o tipo de pretensão veiculado na ação

judicial é que vai qualificar o interesse como difuso, coletivo ou individual

homogêneo.

Em qualquer discussão que envolva a conceituação dos direitos difusos,

coletivos e individuais homogêneos, ainda que ocorra na seara trabalhista,

eleitoral, tributária, etc., deve ser adotada a conceituação tripartite dos interesses

e direitos de massa, prevista no parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa

do Consumidor.

O modelo brasileiro de atribuição de legitimidade para a tutela jurisdicional

coletiva é único e não possui precedentes ou similares no direito comparado. No

microssistema processual coletivo brasileiro, a Lei da Ação Civil Pública e o

Código de Defesa do Consumidor optaram por adotar um modelo de legitimação

misto e heterogêneo, conferindo legitimidade à propositura de demandas coletivas

a órgãos e entidades públicas e privadas. Excepcionalmente, ao cidadão é

atribuída a legitimidade para promover a ação popular.

Nessa linha, o microssistema processual coletivo consagrou uma

presunção de adequada representatividade em favor dos legitimados para a

Page 232: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

232

propositura das ações coletivas (ope legis), inexistindo espaço para o controle da

representativa adequada pelo juiz (ope judis).

Em relação à natureza jurídica da legitimidade para agir nas ações

coletivas, apesar dos sólidos argumentos em favor da tese capitaneada por

Nelson Nery Júnior de que as entidades possuem legitimação autônoma para a

condução das ações coletivas que discutam direitos difusos e coletivos,

prevalece, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que é

extraordinária (substituição processual) a legitimidade para a defesa em juízo dos

direitos difusos e coletivos, assim como dos direitos individuais homogêneos.

Cumpre salientar que a legitimidade do Ministério Público é ampla para a

tutela dos interesses ou direitos difusos e coletivos. Por outro lado, no tocante aos

interesses individuais homogêneos, a doutrina e a jurisprudência pacificaram o

entendimento de que sua legitimidade deve ser verificada de acordo com o caso

concreto e observando o interesse social envolvido na demanda.

Apesar da discussão doutrinária acerca do cabimento no sistema

processual coletivo brasileiro da denominada ação coletiva passiva, há diversos

precedentes que reconhecem a possibilidade de figurar a coletividade no polo

passivo de ação coletiva, por exemplo: ações possessórias movidas em face do

Movimento dos Sem Terra (MST), ações civis públicas movidas contra torcidas

organizadas de times de futebol ou, ainda, ações movidas contra sindicatos

reivindicando o corte de ponto de servidores públicos que participam de

movimento grevista ou a reintegração de posse de área interditada em virtude de

movimento paredista.

Para as ações coletivas, o legislador brasileiro optou por não utilizar o

mesmo regime da coisa julgada previsto no sistema das class actions norte-

americanas, em virtude das diferenças sociais e culturais entre a realidade

americana e a brasileira. Sendo assim, o microssistema processual coletivo

brasileiro optou pela coisa julgada coletiva secundum eventum litis, pelo qual a

coisa julgada depende do resultado da lide e a sentença que tenha julgado

improcedente a ação coletiva não prejudica o direito dos indivíduos que poderão

ajuizar ações individuais, desde que não tenham ingressado no processo coletivo

como litisconsortes ou assistentes litisconsorciais.

A alteração na redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública promovida

pela Medida Provisória no 1.570/97, convertida na Lei no 9.494/97, para impor que

Page 233: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

233

a coisa julgada erga omnes ficará restrita aos limites da competência territorial do

órgão julgador é totalmente inaplicável ao processo coletivo, tendo em vista que

não houve alteração nas normas do Código de Defesa do Consumidor. Assim,

devem ser aplicados tais dispositivos, que permitem a extensão dos efeitos da

coisa julgada coletiva, em conformidade com a abrangência do dano, com o

resultado do processo e com a natureza do interesse controvertido. Ademais, a

própria constitucionalidade da nova redação do artigo 16 da LACP é questionável,

pois implica ofensa aos princípios constitucionais do direito de ação, da

razoabilidade e da proporcionalidade.

Após muitos julgamentos aplicando a limitação territorial prevista no artigo

16 da LACP, ao analisar o Recurso Especial 1.243.887/PR, sob o regime de

julgamentos repetitivos, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça

reconheceu que não deve ser aplicada tal limitação. Isso porque os efeitos e a

eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites

objetivos e subjetivos do que foi decidido, devendo ser ponderadas a extensão do

dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo. Desde então,

o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a abrangência nacional de

decisões concedidas em ações coletivas.

Noutro giro, importante reconhecer que é possível o controle de

constitucionalidade de norma nas ações coletivas, desde que seja apreciada

incidenter tantum, caracterizando controle difuso de constitucionalidade.

Entretanto, é vedado o controle de constitucionalidade como objetivo principal da

ação coletiva, pois caracteriza usurpação de competência do Supremo Tribunal

Federal, que possui competência exclusiva para o controle concentrado de

constitucionalidade.

A Comissão de Juristas encarregada de elaborar Anteprojeto do Novo

Código de Processo Civil deixou claro que o seu grande intuito foi conferir mais

celeridade à prestação da justiça, buscando instrumentos capazes de reduzir o

número de demandas e recursos que tramitam pelo Poder Judiciário.

Todavia, a comissão de juristas optou por não disciplinar o processo

coletivo no novo Código, relegando o seu tratamento à legislação extravagante.

De fato, na busca por imprimir mais celeridade e efetividade na prestação

jurisdicional, o Novo Código de Processo Civil optou por desenvolver técnicas de

resolução coletiva de demandas repetitivas, por meio de decisões proferidas nos

Page 234: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

234

denominados procedimentos-modelo ou procedimentos-padrão. Para tanto,

aperfeiçoou a disciplina dos já existentes recursos especial e extraordinário

repetitivos e criou o incidente de resolução de demandas repetitivas, que é a

grande inovação do Novo CPC e representará, para o primeiro grau de jurisdição,

situação semelhante ao que representam os recursos especial e extraordinário

repetitivos para os tribunais de apelação.

As principais críticas que surgiram a respeito do procedimento do incidente

de resolução de demandas repetitivas são de que, além de não haver qualquer

controle sobre a qualidade dos representantes do grupo, o novo Código de

Processo Civil também não garante que a causa-piloto pendente no tribunal seja

a mais representativa da controvérsia, o que poderia acarretar a não apreciação

de diversas teses jurídicas importantes para que ocorresse o melhor julgamento

sobre a matéria discutida no IRDR.

Por outro lado, o novo Código de Processo Civil acertou ao regulamentar

de forma minuciosa a divulgação e a publicidade que devem ser conferidas ao

incidente de resolução de demandas repetitivas, desde a sua instauração. Tais

medidas de publicidade visam impedir a multiplicidade de incidentes sobre a

mesma questão de direito, além de facilitar a identificação de demandas atingidas

pela matéria decidida no incidente.

Apesar de o novo CPC determinar a suspensão de todos os processos ou

recursos que tratem da idêntica questão de direito a ser apreciada no IRDR

admitido, parte da doutrina defende a possibilidade de a parte requerer o

prosseguimento de sua demanda individual, em homenagem ao princípio do

acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF)

Tendo em vista que o novo Código de Processo Civil não estabeleceu as

regras para a diferenciação de processo indevidamente suspenso (distinguishing)

no incidente de resolução de demandas repetitivas, devem ser aplicadas as

regras de distinguishing aplicáveis aos recursos repetitivos (art. 1.037, § 8º ao §

13). Deve ser dirigida petição ao juiz ou relator do caso repetitivo, demonstrando a

singularidade ou a distinção da questio iuris colocada em seu caso particular e

aquela discutida no IRDR.

O novo Código determina que, julgado o mérito do incidente, a tese jurídica

firmada será aplicada a todos os processos repetitivos que tratem da mesma

questão de direito no âmbito do respectivo tribunal, inclusive aqueles que

Page 235: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

235

tramitam perante os juizados especiais do estado ou região. Da mesma forma, a

decisão proferida no IRDR vinculará os casos repetitivos futuros que venham a

tratar da mesma questão de direito.

Quanto à referida vinculação das decisões proferidas em IRDR, parte da

doutrina ressalta a inconstitucionalidade do efeito vinculante previsto para o IRDR,

porque tal mecanismo não poderia ser instituído mediante legislação ordinária. A

vinculação de uma decisão aos juízes de hierarquia inferior ao órgão prolator da

decisão, bem como aos particulares, deve estar sempre prevista expressamente

na Constituição Federal.

Outro aspecto que merece destaque é que o incidente de resolução de

demandas repetitivas, tal como previsto no novo Código de Processo Civil, afasta-

se do procedimento-modelo alemão (Musterverfahren) que lhe serviu de

inspiração. Ao contrário do IRDR que prevê que a decisão proferida em sua tutela

vinculará os casos repetitivos futuros que venham a tratar da mesma questão de

direito, as decisões proferidas no Musterverfahren afetarão única e

exclusivamente as ações judiciais cuja propositura tiver ocorrido até a data de sua

prolação.

Desta forma, as decisões do Incidente de Resolução de Demandas

Repetitivas previsto no novo Código de Processo Civil serão dotadas de mais

efeito e valor quando comparadas àquelas oriundas do procedimento-modelo

alemão, pois serão aplicadas também aos processos ajuizados após a sua

existência. Essa é outra razão pela qual alguns autores defendem a

inconstitucionalidade do IRDR.

Apesar de parte da doutrina defender a inconstitucionalidade da aplicação

do IRDR no âmbito dos Juizados Especiais, na medida em que não haveria

subordinação para efeitos jurisdicionais entre os Juizados Especiais e as decisões

dos Tribunais de Justiça dos Estados ou dos Tribunais Regionais Federais,

parece ter prevalecido o entendimento pela constitucionalidade da aplicação do

incidente de resolução de demandas repetitivas para os Juizados Especiais.

O novo Código de Processo Civil ao criar um “microssistema de casos

repetitivos” também se preocupou em ampliar e aperfeiçoar a disciplina dos

recursos especial e extraordinário repetitivos.

Inicialmente, em virtude do tratamento superficial e da ausência de

abrangência de todos os fundamentos relevantes nos julgamento ocorridos sob a

Page 236: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

236

égide do CPC/1973, verifica-se que o CPC/2015 demonstrou preocupação em

melhorar o debate para a tomada de decisões pelos tribunais superiores, com a

ampliação objetiva do número de recursos representativos da controvérsia (dois

ou mais recursos; art. 1.036, § 1º e § 5º, CPC/2015) a serem apreciados pelo

Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, devendo ser

selecionados recursos admissíveis e que contenham abrangente argumentação e

discussão sobre a matéria (art. 1.036, § 6º, CPC/2015).

Um dos principais avanços do “microssistema de casos repetitivos” previsto

no novo Código de Processo Civil foi a regulamentação de mecanismos de

distinguishing (distinção), permitindo às partes demonstrarem que seu caso,

mesmo aparentemente semelhante ao que será julgado pelo Tribunal Superior,

apresenta alguma distinção. No sistema do CPC/1973, muitas vezes o caso

sobrestado, em outra análise posterior, revelava-se diverso daquele recurso que

serviu de paradigma ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo

Superior Tribunal de Justiça. Sendo assim, o novo CPC (art. 1.037, § 9º ao § 13)

previu um procedimento detalhado para que a parte demonstrasse a distinção da

matéria a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso paradigma,

requerendo o regular prosseguimento do seu processo.

Percebe-se que a intenção do legislador foi, a partir das falhas detectadas

no sistema do CPC/1973, aprimorar o processamento dos recursos extraordinário

e especial repetitivos, a fim de garantir a observância do dever de fundamentação

no recurso paradigma, além de assegurar a correta escolha dos recursos

atingidos pela causa-piloto.

Noutro giro, a versão final do novo Código de Processo Civil aprovado pelo

Congresso Nacional previa em seu artigo 333 a possibilidade de conversão da

ação individual em ação coletiva, como uma novidade do CPC/2015, sem

precedente no direito anterior.

Todavia, o artigo 333 do novo CPC foi vetado pela então Presidente da

República, Dilma Rousseff. As razões apresentadas para o veto foram de que, da

forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação individual

em ação coletiva de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do

interesse das partes.

A possibilidade de conversão da ação individual em ação coletiva não era

unanimidade na doutrina, fato que contribuiu para o veto presidencial ao artigo

Page 237: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

237

333 do novo Código de Processo Civil, retirando esse incidente de coletivização

do ordenamento jurídico.

Sendo assim, é possível perceber que, enquanto o legislador constituinte

de 1988 quis assegurar aos direitos coletivos um papel transformador na

sociedade brasileira, o novo Código de Processo Civil optou por privilegiar

instrumentos para a solução de demandas repetitivas, em detrimento do processo

coletivo.

Essa opção do novo CPC acompanha uma recente tendência no direito

processual civil brasileiro de substituir gradativamente o processo coletivo por

técnicas de julgamento por amostragem, a partir de instrumentos processuais que

permitem que uma mesma questão de direito, discutida em grande número de

processos, seja apreciada uma única vez, por meio de um processo-piloto, a fim

de aprimorar a “eficiência quantitativa” do Poder Judiciário brasileiro,

independentemente da qualidade das decisões judiciais e da efetivação da

garantia de acesso à Justiça.

Além disso, não é possível garantir que os mecanismos de vinculação da

jurisprudência irão desafogar o Judiciário, tendo em vista que, desde 1990, as

súmulas já exercem, na prática, grande poder de influência no sistema, mas que

não serviu para agilizar a máquina judiciária.

Ao contrário dos mecanismos de julgamento de demandas repetitivas, as

ações coletivas exercem importante papel no acesso à justiça, pois,

frequentemente, os danos resultantes de lesões de massa são de pequeno valor

econômico (danos de “bagatela”), fazendo com que o ajuizamento de ações

individuais seja desestimulante e, na prática, quase inexistente.

A sistemática dos julgamentos de recursos repetitivos e do incidente de

resolução de demandas repetitivas coloca em risco a garantia do contraditório e

do acesso à justiça, pois os indivíduos podem ser prejudicados sem que possam

influenciar na decisão. E também podem ser lesados sem qualquer garantia de

aqueles que os representavam poderiam fazê-lo de forma adequada, tendo em

vista que na sistemática dos julgamentos de demandas ou recursos repetitivos, a

decisão proferida no processo-piloto atingirá todos os demais processos

(individuais e coletivos; pendentes e futuros) que ficaram suspensos, seja para

beneficiá-los ou prejudicá-los (eficácia vinculante pro et contra), ao contrário do

regime da coisa julgada secundum eventum litis, adotado para as ações coletivas.

Page 238: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

238

Ademais, enquanto no processo coletivo o autor individual deve optar pela

suspensão ou não de sua ação individual, no regime dos recursos repetitivos e do

IRDR a suspensão de todos os processos é obrigatória, impedindo aquele que

deseja litigar individualmente e, por consequência, violando a garantia do amplo

acesso à justiça. Nesse panorama, os precedentes passam a ser mais

importantes do que as próprias leis.

Importante salientar que as ações coletivas tendem a trazer mais equilíbrio

entre as partes, uma vez que os causadores das lesões, usualmente, são

instituições de grande porte e litigantes habituais, e por isso possuem mais

recursos materiais e humanos que os indivíduos que buscam a tutela jurisdicional.

Assim, os legitimados coletivos terão posição mais equilibrada na demanda do

que os litigantes individuais.

Por outro lado, no julgamento por amostragem de demandas repetitivas,

dificilmente o indivíduo cujo recurso ou processo foi escolhido como

representativo da controvérsia conseguirá enfrentar em igualdade de condições a

parte que é reconhecida como responsável pela prática da lesão, beneficiando os

chamados “litigantes habituais”, que se aproveitam da morosidade dos processos

judiciais e também desse desequilíbrio existente nas ações individuais repetitivas.

Infelizmente, a realidade dos julgamentos de demandas repetitivas

demonstra que, não raramente, os tribunais têm produzido decisões-modelo

mesmo sem previamente discutir de modo amplo a formação do paradigma

decisório.

Portanto, para a correta utilização dos mecanismos de solução de

demandas repetitivas, revela-se fundamental que seja devidamente fundamenta a

decisão paradigma e respeitada a individualidade e as peculiaridades de cada

caso levado a juízo, para que sejam analisados todos os argumentos levantados

pelas partes, quando aí então se estaria diante de uma efetiva prestação

jurisdicional. Até porque não existe fórmula apriorística que garanta aos juízes

alcançarem a mesma solução jurídica diante de diferentes e complexos

processos, pois as decisões dos tribunais também são textos jurídicos e, portanto,

interpretáveis.

A força do efeito vinculante conferido aos mecanismos de julgamento de

demandas repetitivas é alvo de severas críticas, na medida em que podem ferir a

garantia constitucional da independência funcional dos juízes, que devem decidir

Page 239: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

239

de acordo com a Constituição e as leis do país, com fundamento na prova dos

autos.

Deve ser questionada, ainda, a própria constitucionalidade do incidente de

resolução de demandas repetitivas e dos recursos especial e extraordinário

repetitivos. O motivo é que a vinculação de uma decisão aos juízes de hierarquia

inferior ao órgão prolator da decisão, bem como aos particulares, deve estar

sempre prevista expressamente na Constituição da República, sob pena de

violação à garantia constitucional da independência funcional dos magistrados e à

separação funcional de poderes. As únicas hipóteses permitidas pela Constituição

de vinculação dos juízes e tribunais são as súmulas vinculantes, o julgamento de

mérito de ADIn e ADC e os recursos providos.

Outra possível inconstitucionalidade da eficácia vinculante dos julgamentos

de demandas repetitivas decorre do fato de que as partes litigantes que figuram

nos outros recursos não participaram e efetivamente não influíram na decisão que

as atingirá, afrontando o princípio do contraditório e do acesso à justiça.

Portanto, embora o discurso seja de que a adoção de mecanismos de

julgamento de demandas repetitivas seja feita em nome de uma rápida e

igualitária solução das demandas, o que se percebe é que essa opção atinge os

princípios do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa e do amplo

acesso à justiça, além de privilegiar os denominados “litigantes habituais”, que

usualmente possuem elevada capacidade técnica e econômica, trazendo graves

riscos ao sistema processual civil brasileiro.

Por tudo isso, esses mecanismos de julgamento de demandas repetitivas

não são o melhor caminho para a solução dos problemas enfrentados pelo

Juidicário brasileiro, porque, na ponderação de valores entre a celeridade e a

duração razoável do processo, de um lado, e a segurança jurídica e a qualidade

da prestação jurisdicional, de outro, não se pode, em nome da agilização dos

julgamentos, atropelar garantias processuais que foram sendo alcançadas ao

longo de vários anos.

Ou seja, não se pode substituir o problema da longa demora para a

prestação jurisdicional pelo risco de serem proferidas decisões “injustas”. A

preocupação com a celeridade e a efetividade da justiça é fundamental, mas a

cautela é primordial para que não se acelere o processo a qualquer custo,

comprometendo direitos e garantias indispensáveis aos cidadãos.

Page 240: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

240

O que se percebe é que a opção do novo Código de Processo Civil de

privilegiar os julgamentos por amostragem não substitui o importante papel

desempenhado pela tutela coletiva no Brasil que, como visto, possui objetivos

mais amplos que os perseguidos pelos julgamentos por amostragem.

Por isso, melhor seria se o legislador, em vez de privilegiar técnicas para o

julgamento de demandas repetitivas, tivesse optado por conferir mais efetividade

ao processo coletivo, que é capaz não apenas de atribuir mais celeridade e

efetividade à atividade do Poder Judiciário, mas também de garantir a qualidade

das decisões e do amplo acesso à justiça.

Por fim, o que se percebe é que a discussão está muito focada em buscar

soluções para as consequências da existência de demandas seriais no cenário

brasileiro, sem se ocupar de combater a causa dessa proliferação de demandas,

que seria o efetivo cumprimento das regras impostas pela Constituição e pelas

leis, sobretudo por parte dos litigantes habituais.

Desta forma, a reflexão a respeito das soluções para a proliferação de

demandas deve, necessariamente, passar pelo combate ao surgimento das

violações de direitos que dão causa ao grande volume de demandas, além de

enfrentar as consequências dos milhões de processos em trâmite no Poder

Judiciário brasileiro.

Fato é que o tema da tutela coletiva no Brasil permanece atual e

desafiador, sendo necessário que se aguarde como será a efetiva utilização e

interpretação pelos Tribunais do novo Código de Processo Civil e dos

instrumentos para a solução de demandas repetitivas ali previstos, para que

algumas questões aqui registradas sejam respondidas.

Page 241: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

241

REFERÊNCIAS ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Inconstitucionalidades do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os riscos ao sistema decisório. Revista de Processo, v. 240/2015, p. 221-242, fev. 2015. ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Da codificação do direito processual coletivo brasileiro: análise crítica das propostas existentes e diretrizes de uma nova proposta de codificação. Belo Horizonte, Del Rey, 2007. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. ALMEIDA, Gustavo Milaré. O incidente de resolução de demandas repetitivas e o trato da litigiosidade coletiva. In: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes (Coord.). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016. ALVIM, Eduardo Arruda. Mandado de segurança. 2. ed., Rio de Janeiro: GZ, 2010a. ALVIM, Eduardo Arruda. Aspectos do mandado de segurança coletivo à luz da Lei nº 12016/2009. In: ALVIM, Eduardo Arruda et al. (Coord.). O novo mandado de segurança: estudos sobre a Lei nº 12.016/2009. Belo Horizonte: Fórum, 2010b. AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista de Processo, v. 196, p. 237-274, jun/2011. AMARAL, Paulo Osternack; SILVA, Ricardo Alexandre. Mandado de segurança coletivo. Revista Dialética de Direito Processual, n. 105, p. 88-103, dez. 2011. BARRETO, Susana Cadore Nunes. Novo Código de Processo Civil e o microssistema de processos coletivos: uma análise do art. 18. In: DIDIER, Fredie; ZANETI JR., Hermes (Coord.). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016. BARROSO, Luís Roberto. A proteção coletiva dos direitos no Brasil e alguns aspectos da class action norte-americana. Revista de processo, v. 130, p. 131-153, dez. 2005. BAUMBACH, Rudinei. Sobre a tutela de direitos coletivos no contexto brasileiro: reflexões à luz das reformas projetadas. Revista de Processo, v. 38, n. 226, p. 233-266, dez. 2013. BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança. São Paulo: Saraiva, 2009.

Page 242: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

242

BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016. CAMBI, Eduardo; FOGAÇA, Mateus Vargas. Incidente de resolução de demandas repetitivas no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 243/2015, p. 333-362, maio 2015. CAMBI, Eduardo; HAAS, Adriane. Legitimidade do Ministério Público para impetrar mandado de segurança coletivo. Revista de Processo, v. 203/2012, pp. 121-147, jan, 2012. CAPPELLETTI, Mauro. Formazioni sociali e interessi di grppo davanti alla giustizia civile. Rivista di Diritto Processuale, v. 30, n. 3, p. 361-402, jul/set, 1975. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995. CARVALHO NETO, Inacio de. Manual de processo coletivo. Curitiba: Juruá, 2005. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. A evolução da tutela jurisdicional coletiva no Brasil. Revista Dialética de Direito Processual, n. 131, p. 33-55, fev. 2014. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Incidente de resolução de demandas repetitivas e ações coletivas. Salvador, JusPODIVM, 2015. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. O mandado de segurança como ação coletiva apta a tutelar os direitos difusos. Revista Dialética de Direito Processual, n. 83, p. 66-79, fev. 2010. CHEIM JORGE, Flávio; SIQUEIRA, Thiago Ferreira. Repercussão geral e recursos repetitivos: a atuação dos tribunais de origem. In: FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno Dantas. Repercussão geral da questão constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2014. CUNHA, Alcides A. Munhoz. Evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, v. 77, p. 224, jan/1995. DANTAS, Bruno. Incidente de resolução de demandas repetitivas (artigos 976 ao 987 do CPC/2015). In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Org.). Breves comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. DANTAS, Bruno. Jurisdição coletiva, ideologia coletivizante e direitos fundamentais. Revista de Processo, v. 41, n. 251, p. 341-358, jan/2016.

Page 243: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

243

DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e ao STJ (art. 543-B e 543-C do CPC). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Da conversão da ação individual em ação coletiva. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Org.). Breves comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. O mandado de segurança coletivo e a Lei nº 12.016/2009. In: ARRUDA ALVIM, Eduardo et al. (coord.). O novo mandado de segurança: estudos sobre a Lei nº 12.016/2009. Belo Horizonte: Fórum, 2010. DINAMARCO, Candido Rangel. O novo Código de Processo Civil brasileiro e a ordem processual vigente. Revista de Processo, v. 247/2015, p. 63-103, set/2015. DONIZETTI, Elpídio. Novo código de processo civil comentado (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015): análise comparativa entre o novo CPC e o CPC/73. São Paulo: Atlas, 2015. FILOMENO, José Geraldo Brito et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2011, p. 14. GAVRONSKI, Alexandre Amaral. Autocomposição no novo CPC e nas ações coletivas. In: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. (Coord.). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas: mandado de segurança coletivo, ação coletiva de consumo, ação coletiva ambiental, ação civil pública, ação popular. São Paulo: Saraiva, 1995. GOMES JR., Luiz Manoel; CHUEIRI, Miriam Fecchio. Sistema coletivo: por que não há substituição processual nas ações coletivas. Revista de Processo, v. 221, jul/2013. GONÇALVES, Marcelo Barbi. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a magistratura deitada. Revista de Processo, v. 222, ago/2013. GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos direitos difusos. Revista de Processo, v. 14, abr-set, 1979. GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira: Os requisitos de admissibilidade. Revista de Processo, v. 101, p. 11, jan/2001. GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Org.). Tutela coletiva: 20 anos da LACP e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos. São Paulo: Atlas, 2006, p. 302-308.

Page 244: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

244

GRINOVER, Ada Pellegrini et al.. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, v. II, Processo Coletivo (arts. 81 a 104 e 109 a 119), 2011. GRINOVER, Ada Pellegrini. Legitimação da Defensoria Pública à ação civil pública. In: O processo: estudos e pareceres. 2. ed., São Paulo: DPJ, 2009a, p. 615-633. GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas questões sobre a legitimação e a coisa julgada nas ações coletivas. In: O processo: estudos e pareceres. 2. ed., São Paulo: DPJ, 2009b, p. 266-278. GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle difuso da constitucionalidade e a coisa julgada erga omnes das ações coletivas. In: O processo: estudos e pareceres. 2. ed., São Paulo: DPJ, 2009c, p. 231-236. GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências na tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista do Curso de Direito, Univ. Federal de Uberlândia, v. 13, n. 1,2, 1984. GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências no direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. GRINOVER, Ada Pellegrini. O projeto de novo CPC e sua influência no minissistema de processos coletivos: a coletivização dos processos individuais. In: GRINOVER; Ada Pellegrini et. al, (Coord.). Processo coletivo: do surgimento à atualidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 12. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: Conceito e legitimação para agir. 8. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes: natureza; eficácia; operacionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

Page 245: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

245

MARTINS, Fernando Dal Bó. A eficácia da sentença no processo coletivo. Revista de Processo, v. 219, p. 43, maio/2013. MAZZILLI, Hugo Nigro. O processo coletivo e o Código de Processo Civil de 2015. In: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes (Coord). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016. MAZZILLI, Hugo Nigro. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 7. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas. Mandado de segurança individual e coletivo: comentários à Lei 12.016/2009. São Paulo: RT, 2009, p. 208. MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e nacional. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ROMANO NETO, Odilon. Análise da relação entre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas e o microssistema dos juizados especiais. Revista de Processo, v. 245/2015, p. 275-309, jul/2015. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Reflexões sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil. RePro, 211/194, 2012. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; SILVA, Larissa Clare Pochmann. Ações coletivas e incidente de resolução de demandas repetitivas: algumas considerações sobre a solução coletiva de conflitos. In: DIDIER, Fredie; ZANETI JR. Hermes (Coord.). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8. Salvador: Juspodivm, 2016. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; TEMER, Sofia. O incidente de resolução de demandas repetitivas do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 243/2015, p. 83-331, maio/2015. MILARÉ, Édis. A ação civil pública na nova ordem constitucional. São Paulo: Saraiva, 1990. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos. Revista de Processo, v. 28, out-dez. 1982. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição de 1988. Revista de Processo, v. 61, jan. 1991.

Page 246: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

246

MOREIRA, José Carlos Barbosa. A legitimação para a defesa dos interesses difusos no direito brasileiro. Revista Forense, v. 276, out-dez., 1981. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da justiça: alguns mitos. In: Temas de direito processual. (oitava série), Rio de Janeiro: Forense, 2004. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Súmula, jurisprudência, precedente: uma Escalada e seus Riscos. Revista Dialética de Direito Processual, n. 27, p. 49-58, jun. 2005. NERY JR, Nelson. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform., v, II, Rio de Janeiro: Forense, Processo Coletivo (arts. 81 a 104 e 109 a 119), 2011, p. 222. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015a. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis civis e processuais civis comentadas. 4ª ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015b. NERY JÚNIOR, Nelson. Parecer sobre mandado de segurança coletivo. Revista de Processo, v. 57, p. 150/158, 1990. NUNES, Dierle. Do julgamento dos Recursos extraordinário e especial repetitivos (artigos 1.036 ao 1.041 do CPC/2015). In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Org.). Breves Comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro de. Meios de impugnação das decisões judiciais. In: THEODORO JR, Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro; REZENDE, Ester Camila Gomes Norato (Coord.). Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro.. Rio de Janeiro: Forense, 2015. OLIVEIRA, Lourival Gonçalves de. Interesse processual e mandado de segurança. RePro, São Paulo, 56, p. 75 et seq., 1989. OLIVEIRA JR., Waldemar Mariz de. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos e difusos. Revista de Processo, n. 33, jan-mar, 1984. PIZZOL, Patrícia Miranda. Coisa julgada nas ações coletivas. Grupo de Pesquisa Tutela Jurisdicional dos Direitos Coletivos, [s.d.] Disponível em: www.pucsp.br/tutelacoletiva. Acesso em: julho de 2016. PIZZOL, Patrícia Miranda. Liquidação nas ações coletivas. São Paulo: Lejus, 1998. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Técnicas individuais de repercussão coletiva x técnicas coletivas de repercussão individual: um golpe à tutela de direitos. In:

Page 247: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

247

FUX, Luiz; FREIRE, Alexandre; DANTAS, Bruno (Coord.). Repercussão geral da questão constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2014. RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Notas sobre a coisa julgada nas ações coletivas. Revista de Processo, v. 207, p. 43, maio/2012. ROQUE, André Vasconcelos. As ações coletivas após o novo Código de Processo Civil: para onde vamos? In: DIDIER, Fredie; ZANETI JR., Hermes (Coord). Processo coletivo. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8, Salvador: Juspodivm, 2016, p. 178. ROQUE, Andre Vasconcelos; DUARTE, Francisco Carlos. Aspectos polêmicos do mandado de segurança coletivo: Evolução ou retrocesso? Revista de Processo, v. 203/2012, p. 39-72, jan/2012. ROSSI, Júlio César. A ação coletiva passiva. Revista de Processo, v. 198, ago/2011. ROSSI, Júlio César. Precedente à brasileira: a jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC. São Paulo: Atlas, 2015. SCARPARO, Eduardo. Controle da representatividade adequada em processos coletivos no Brasil. Revista de Processo, v. 208, junho/2012. SOUZA, Artur César de. Conversão da demanda individual em demanda coletiva no novo CPC: algumas considerações jurídicas. Revista de Processo, v. 39, n. 236, p. 205-241, out/2014. STRECK, Lenio Luiz. O efeito vinculante das súmulas e o mito da efetividade: uma crítica hermenêutica. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gerson Marques; BEDÊ, Fayga Silveira. Constituição e democracia: estudos em homenagem ao Prof. J. J. Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2014. STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto: o precedente judicial e as súmulas vinculantes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. TESHEINER, José Maria Rosa. Mandado de Segurança Coletivo. Revista de Processo, v. 182, p. 9-16, abril, 2010. THEODORO JR, Humberto. O mandado de segurança coletivo em cotejo com as ações coletivas constitucionais. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 7, n. 39, p. 5-24, Nov/dez. 2010a. THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação do direito brasileiro – análise da convergência entre o civil law e o common law e os problemas da padronização decisória. Mandado de Segurança Coletivo em Cotejo com as Ações Coletivas Constitucionais. Revista de Processo, v. 189, p. 9-52, nov/2010b.

Page 248: TUTELA COLETIVA, MECANISMOS DE JULGAMENTO DE … Paiva... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo – puc-sp programa de estudos pÓs-graduados em direito bruno paiva

248

THEODORO JR, Humberto et al. Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2015a, p. 344. THEODORO JR, Humberto. Incidente de resoluções de demandas repetitivas. In: THEODORO, Humberto JR; OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro; REZENDE, Ester Camila Gomes (Coord.). Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2015b. TUCCI, José Rogério Cruz e. Contra o processo autoritário. Revista de Processo, v. 40, n. 242, p. 47-65, abr. 2015. VIAFORE, Daniele. As semelhanças e as diferença entre o procedimento-modelo Musterverfahren e o “incidente de resolução de demandas repetitivas” no PL 8.046/2010. Revista de Processo, v. 217/2013, p. 257-308, mar/2013. VILA NOVA, Felipe d’Oliveira. Legitimidade ativa no direito processual coletivo: sua ampliação como canal de participação popular. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014. WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev. atual. e reform. Rio de Janeiro: Forense, v. II, Processo Coletivo (arts. 81 a 104 e 109 a 119), 2011, p. 101. WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos a legitimação para agir. Revista de Processo, v. 34, abril/1984. YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/2010. Revista de Processo, v. 206/2012, p. 243-270, abr/2012. ZANETI JÚNIOR, Hermes. Mandado de segurança coletivo: aspectos processuais controversos. Porto Alegre: Fabris, 2001. ZANETI JÚNIOR, Hermes. Os direitos individuais homogêneos e o neoprocessualismo. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; RODRIGUES, Marcelo Abela (Coord.). O novo processo coletivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 241, ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 6. ed. rev. atual. e amp., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.