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Jornal da UFRJ Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 37 • Setembro de 2008 10 e 11 Entrevista Anna Maria de Castro Transgredir para integrar 12 Edgar Morin É preciso mudar o paradigma 13a16 Por um mundo sem fomes Assim como seu pai, o médico, professor, escritor, parlamentar e cidadão do mundo Josué de Castro, Anna Maria de Castro, socióloga e professora do Instituto de Filosofia de Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ também se dedica a estudar a relação entre educação e alimentação. Ao longo de sua carreira, a Anna Maria trabalhou nos institutos de Nutrição (INJC) e de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc), além de outras unidades da UFRJ. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela defende as atuais políticas públicas de combate à fome e pontua que o pai acreditava em uma revolução que deveria “contar cabeças e não cortá-las”. Proletários do mundo uni-vos... ou eu atiro Um marco na luta contra o embrutecimento que o stalinismo conferia à realidade social no Leste europeu, a Primavera de Praga acalentou sonhos de liberdade e aspirações democráticas, mas foi duramente sufocada pela hegemonia que contestava. 4 e 5 Novos cursos de graduação começam a ser oferecidos pela UFRJ no vestibular de 2009. Tal iniciativa, que implica em uma intricada arquitetura curricular e de gestão institucional, comprova o esforço de compor novas opções na formação universitária. Em meio ao debate que a comunidade universitária vem travando acerca da implantação do Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ 2008-2012 (PRE) e a aplicação das diretrizes do Plano Diretor 2020 (PD), o Jornal da UFRJ entrevistou o sociólogo francês Edgar Morin, do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), da França, que esteve recentemente na instituição. Defensor de uma concepção transdisciplinar para a organização do ensino das ciências, artes e humanidades, Morin reiterou alguns dos efeitos, cada vez mais graves, da compartimentação do saber, tão presente na universidade. “É proibido proibir”. Assim gritava Caetano Veloso após um discurso inflamado em resposta às vaias recebidas da platéia durante sua apresentação no TUCA em São Paulo. Com o lema do Maio de 68 francês, Caetano evidenciava, a Tropicália, movimento de ruptura que se desenvolvia, desde 1967, no âmbito da cultura e da música popular brasileiras. Tropicália: efêmera e eterna 26 e 27 28 Exílio da fome Josué de Castro Médico, professor, escritor, parlamentar, fundador do Instituto de Nutrição da UFRJ, o pernambucano Josué de Castro dedicou sua vida a alertar o mundo para a necessidade de combater um dos maiores flagelos da humanidade: a fome.

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Jornal da

UFRJGabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 37 • Setembro de 2008

10 e 11

EntrevistaAnna Maria de Castro

Transgredir para integrar

12Edgar MorinÉ preciso mudar o paradigma

13a16

Por um mundo sem fomes

Assim como seu pai, o médico, professor, escritor, parlamentar e cidadão do mundo Josué de Castro, Anna Maria de Castro, socióloga e professora do Instituto de Filosofia de Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ também se dedica a estudar a relação entre educação e alimentação. Ao longo de

sua carreira, a Anna Maria trabalhou nos institutos de Nutrição (INJC) e de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc), além de outras unidades da

UFRJ. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela defende as atuais políticas públicas de combate à fome e pontua que o pai

acreditava em uma revolução que deveria “contar cabeças e não cortá-las”.

Proletários do mundo uni-vos...

ou eu atiroUm marco na luta contra

o embrutecimento que o stalinismo conferia à

realidade social no Leste europeu, a Primavera de Praga acalentou sonhos

de liberdade e aspirações democráticas, mas foi duramente sufocada pela hegemonia que

contestava.

4 e5

Novos cursos de graduação começam a

ser oferecidos pela UFRJ no vestibular de 2009. Tal iniciativa, que implica em uma intricada arquitetura

curricular e de gestão institucional, comprova o esforço de compor novas

opções na formação universitária.

Em meio ao debate que a comunidade universitária vem travando acerca da implantação do Programa de

Reestruturação e Expansão da UFRJ 2008-2012 (PRE) e a aplicação das diretrizes do Plano Diretor 2020 (PD), o Jornal

da UFRJ entrevistou o sociólogo francês Edgar Morin, do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), da

França, que esteve recentemente na instituição.Defensor de uma concepção transdisciplinar para a

organização do ensino das ciências, artes e humanidades, Morin reiterou alguns dos efeitos, cada vez mais graves, da

compartimentação do saber, tão presente na universidade.

“É proibido proibir”. Assim gritava Caetano

Veloso após um discurso inflamado em resposta às vaias recebidas da platéia

durante sua apresentação no TUCA em São Paulo.

Com o lema do Maio de 68 francês, Caetano

evidenciava, a Tropicália, movimento de ruptura

que se desenvolvia, desde 1967, no âmbito da cultura e da música

popular brasileiras.

Tropicália: efêmera e eterna

26 e27

28

Exílio da fome

Josué de CastroMédico, professor, escritor, parlamentar, fundador do Instituto de Nutrição da UFRJ, o pernambucano Josué de Castro dedicou sua vida a alertar o mundo para a necessidade de combater um dos maiores flagelos da humanidade: a fome.

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Setembro 2008UFRJJornal da

2

Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo do Nascimento Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Newstec Gráfica e Editora

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550, térreo.Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária - Ilha do FundãoCEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621 / 1622

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE)

Edição Fortunato mauro e

Antônio Carlos moreira

Pauta Antônio Carlos moreira e Fortunato mauro

Redação

Aline Durães, Bruno Franco,Camilla muniz, Coryntho Baldez, Fernando Pedro, Julia Faria, Julia Vieira, Natália Alves,

Rafaela Pereira, Rodrigo Ricardo, Seiji Nomura e Vanessa Sol

Projeto gráfico Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno e Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Ilustração Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno, marco Fernandes,

Vanesa mattos e Zope

Fotosletícia monteiro emarco Fernandes

Revisão mônica machado

Instituições interessadas em receber esta publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

UFRJJornal da

Setembro AgendaO Centro de Letras e Artes (CLA) da UFRJ, apresenta de 15 de setembro a 31 de outubro, o evento 68 Utopias nas Ruas.Um ciclo de palestras, exibição de filmes e performances teatrais, a programação cultural rememora as experiências vividas durante o emblemático ano de 1968, abordando aspectos políticos, artísticos e comportamentais.As inscrições estão abertas até 12 de setembro. Os interessados devem encaminhar e-mail com nome, categoria, e instituição para [email protected] evento, gratuito, acontece no hall dos elevadores e no salão Azul, no prédio da Reitoria, ilha da Cidade Universitária. Veja a programação.

Exposição15/9 – Abertura da exposição “68: a imaginação da liberdade” Produzida pela Coordenadoria de Comunicação da UFRJ (CoordCOM).Local: hall dos elevadores

PalestrasLocal: Salão Azul, às 14 horas.

16/9 – O sentido histórico de 68Mário Maestri, professor de História da

68 Utopias nas ruasUniversidade de Passo Fundo (RS), e Leo Soares (abertura), decano do Centro de Letras e Artes (CLA).

23/9 – As idéias nas ruas: pensadores que influenciaram a geração de 68Carlos Nelson Coutinho, diretor da Editora UFRJ; Marildo Menegat, professor de Teoria Política e Social da Escola de Serviço Social (ESS), e Gustavo Peixoto (mediador), diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU).

30/9 – Rupturas e continuidades da contraculturaSantuza Naves, professora de Sociologia e Política (PUC-RJ); Frederico Coelho, pesquisador do Núcleo de Estudos Musicais (Cândido Mendes), e Eucanaã Ferraz (mediador), professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras (FL).

7/10 – Seja herói, seja marginal: poéticas de uma arte experimental e transgressoraGlória Ferreira, crítica de arte e professora de História da Arte da Escola de Belas Artes (EBA) e crítica de arte; Carlos Zílio, artista plástico e professor de Pintura da EBA, e Angela Âncora da Luz (mediadora), diretora da EBA.

14/10 – O cinema e o teatro se insurgem: novas linguagens em cenaIvana Bentes, diretora da Escola de Comunicação (ECO); Alcione Araújo, dramaturgo e romancista, e Edwaldo Cafezeiro (mediador), professor emérito da UFRJ.

21/10 – É proibido proibir: Tropicalismo, arte sem fronteirasAndré Bueno, professor de Teoria Literária da Faculdade de Letras (FL); Fred Góes, professor de Teoria Literária (FL), e Eleonora Ziller (mediadora), professora de Literatura Comparada (FL).

29/10 – O que 68 ainda nos diz? José Paulo Netto, professor titular da Escola de Serviço Social (ESS); Ronaldo Lima Lins, diretor da Faculdade de Letras (FL), e Cristovão Fernandes Duarte, diretor adjunto de extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU).

Programação de filmesLocal: hall dos elevadores, às 13 horas.

17/9 – A insustentável leveza do ser, de Philip Kaufman. 22/9 – Barra 68, de Vladimir Carvalho, e Memórias do Movimento Estudantil,de Silvio Tendler.24/9 – Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci. 29/9 – Sem destino, de Dennis Hopper. 6/10 – Dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha. 08/10 – One Plus One, de Jean-Luc Godard. 13/10 – Bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla. 15/10 – Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. 20/10 – Corações e mentes, de Peter Davis.

Outras atividadesLocal: hall dos elevadores às 13 horas.1/10 – Leitura encenada de Rei da Vela, com o grupo Coletivo 08 (UNIRIO).21/10 – Apresentação do espetáculo Estompim!, com o grupo Metáfora (FL).22/10 – Apresentação do espetáculo 68 à Vera, com grupo de Dança (EEFD).30/10 – Feira hippie e apresentação interativa dos grupos de Teatro, Poesia e Dança.

31/10 – BosqueTock – show de rock no Bosque (Coordenação LabPP-Esc).

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Setembro 2008 UFRJJornal da

3Celebração

Rafaela PereiraMarco Fernandes

A Escola de Música (EM) da UFRJ é a mais antiga instituição musical do

Brasil. Para Maria José Chevitarese, professora e regente do coral infantil da escola, a história da instituição se confunde com a da música no Brasil. “São 160 anos, é a escola de música mais antiga e a grande formadora dos músicos brasileiros. Por aqui passaram os proeminentes, como Nepomuceno, Leopoldo Miguez e Villa-Lobos” – enumera a professora.

De acordo com André Cardo-so, professor e atual diretor da EM, poucas são as instituições brasileiras que podem comemorar 160 anos. “As antigas estão fazendo 200 anos, como a Faculdade de Medicina, por exem-plo. Temos aqui uma constelação de grandes estrelas da música popular e erudita”, afirma Cardoso.

HistóricoNo Rio de Janeiro era comum que

o ensino musical, até meados do sé-culo XIX, fosse feito através de cursos particulares por alguns professores. A relação que havia era a dos grandes mestres e seus discípulos. O mais fa-moso deles era o padre José Maurício Nunes, mestre da Capela Imperial e mais importante compositor brasileiro de seu tempo.

Em 1841, de acordo com André Cardoso, um grupo de músicos cario-cas, que formava a Sociedade de Mú-sica, começava a discutir a institucio-nalização do ensino musical no país. Era o nascimento, em 1848, do então Conservatório Imperial de Música, hoje Escola de Música. “Em 13 de agos-

Viva a Música!

to de 1848 foi feita a aula inaugural, no Museu Imperial, um prédio que ficava na região da atual praça da República”, recorda André Cardoso.

Já com a Proclamação da República, em 1889, o conservatório transformou-se no Instituto Nacional de Música e teve Leopoldo Miguez como primeiro

diretor. Era a casa da vanguarda musical brasileira.

Em 1913, sob a direção de Alberto Nepomuceno, o instituto foi transferido para a sua sede atual, na rua do Passeio. Já no século XX, virou uma das unidades que, agregadas, formavam a Universidade do Rio de Janeiro. “Quando esta deu lugar à Universidade do Brasil (UB), o nome mudou-se para Escola Nacional de Música. E nos anos 1960, com a transformação para UFRJ, a escola virou Escola de Música”, relembra André.

O patrimônio histórico da instituição é dividido em setores que reúnem coleções especiais como a Biblioteca Alberto Ne-pomuceno, o Museu Instrumental Del-gado de Carvalho, o Centro de Pesquisas Folclóricas e o Laboratório de Acústica.

A Biblioteca Alberto Nepomuceno guarda parte significativa da memória musical brasileira. De acordo com André Cardoso, o total do acervo é estimado em torno de 85 mil obras, sendo 14 mil apenas manuscritos.

No setor de obras raras encontram-se tratados teórico-musicais do século XVI ao século XIX, especialmente italianos e franceses. Por sua raridade, alguns exem-plares são únicos no Brasil e até mesmo em bibliotecas internacionais.

Para a comemoração dos 160 anos, a Escola promoveu, entre 11 e 16 de agosto, uma variada programação gratuita de concertos comemorativos. Quem foi, conferiu a apresentação da Orquestra Sinfônica da UFRJ, com regência de Ernani Aguiar, do grupo UFRJazz, com regência de José Rua, um concerto de modinhas cariocas e a homenagem prestada à Elza Lakschevitz, regente e ex-aluna da instituição.

Marco Fernandes Marco Fernandes

Em agosto deste, a Escola de Música da UFRJ comemorou 160 anos de existência, a mais antiga instituição brasileira voltada à formação de músicos e compositores.

A programação dos 160 anos da Escola de Música também contou com a apresentação da Orquestra Sinfônica da UFRJ, com regência de Ernani Aguiar.

O salão Leopoldo Miguez abriu as portas para as comemorações do aniversário da Escola de Música.

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Setembro 2008UFRJJornal da

4 História

1968

Bruno Franco

Setembro 2008

“Proletários de todo o mundo

uni-vos...OU EU ATIRO”

Um marco na lu ta con t ra o embru tecimento que o s ta lini smo confer ia à rea li -

dade social no Leste europeu, a Primavera de Praga acalentou sonhos de liberdade e

aspirações democráticas, mas foi duramente sufocada pela hegemonia que contestava.

No final dos anos 1960, a Tchecoslováquia (país formado pelas hoje independentes Eslo-

váquia e República Tcheca) tinha a melhor distribuição de renda dentre os países comunis-

tas e um fecundo processo de discussão dialética dos rumos do país, em curso não apenas

na sociedade civil, mas, também, no seio do próprio Partido Comunista (PC) tchecoslovaco.

De acordo com Marco Santana, professor e coordenador do curso de Pós-graduação em Sociologia e An-

tropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ o movimento se insurgia contra o que se

considerava como práticas burocratizantes, limitadoras da liberdade de expressão empreendidas pelo PC.

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Setembro 2008 UFRJJornal da

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1968Em outra frente, havia

uma forte crítica às di-ficuldades apresentadas

na gestão da economia. “Assim, pro-punha-se um novo formato de ação no campo da política, da cultura e da economia. A tensão partiu, em muito, de dentro do próprio Partido Comunista. Claro que espelhando as contradições presentes no seio da sociedade, que empurravam no sen-tido de mudanças. Na vida sócio-cultural e nas ruas, mesmo antes da ‘Primavera’, o país já ia vivendo forte efervescência. Até hippies e beatniks (inspirados na chamada geração beat, boêmia e inconformista, ame-ricana) auxiliavam nesse processo”, esclarece o pesquisador.

Contrário à ortodoxia stalinista, o PC tchecoslovaco empossou como secretário-geral, em janeiro de 1968, Alexander Dubcek, com a missão de empreender uma reforma política que removesse aspectos autoritários do sistema, criando o que se con-vencionou chamar de “socialismo de face humana”.

O programa reformista de Dub-cek consistia na efetiva federalização do país; na reforma constitucional; na garantia de direitos civis, dentre os quais a liberdade de imprensa e no fim do unipartidarismo, bem como a reabilitação de todos aqueles que até então tinham sido persegui-dos pelo regime. O jornal Liternáni Listy, apoiou o processo, com a publicação, em junho, do artigo “Duas mil palavras”, assinado por representantes de diversos setores da sociedade civil.

De acordo com Santana, o mo-vimento não se esgotava na figura de seu líder, que tinha uma postura política de centro. O processo foi complexo, envolvendo mesmo o ressurgimento das propostas da social-democracia, gerando dispu-tas em torno das decisões. “Creio que para muitos participantes, a idéia era, como se disse, criar um “socialismo de face humana”, cor-rigindo falhas nas formas de con-dução da economia e da sociedade. Assim, a perspectiva de renovação socialista estava presente”, acredita o sociólogo.

O aspecto mais proeminen-te da “Primavera de Praga” – no entendimento do professor - foi a democratização do regime nas suas diversas facetas, “o que, aliás, estará em tela nesse movimento, no movimento que se deflagrará alguns anos depois, espelhado na chamada Carta 77 (movimento simbolizado pela publicação de uma carta, assi-nada por 270 intelectuais e políticos pedindo a inclusão de liberdades democrát icas no programa de governo), também debelado, e na chamada Revolução de Veludo, de

1989, que pôs fim ao regime comu-nista no país”.

Durante a Primavera, a censura à imprensa foi reduzida e iniciou-se o processo de restauração da democracia política, que avançou rapidamente. A descentralização da planificação econômica e a liberação dos conselhos de operários estimu-laram a auto-organização de instân-cias representativas do proletariado. O que explica, segundo Santana, o forte apoio dos trabalhadores ao movimento enquanto o mesmo es-teve em curso e mesmo quando era sufocado por forças estrangeiras.

A resposta soviéticaNo entanto, no dia 20 de agosto

de 1968, as tropas do Pacto de Varsó-via (equivalente comunista à OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Nor-te – instituição de cooperação militar encabe-çada pelos Es-tados Unidos) a d e n t r a r a m Praga, a capital t c h e c o s l o v a -ca, e puseram fim a cerca de 200 dias de um projeto de fa-zer coexistirem p l a n i f i c a ç ã o econômica e a l iberdade de-mocrática, algo que, segundo Marco Santana, sempre se mos-trou problemá-tico – ainda que não impossível – nas experiên-cias socialistas.

D o p o nt o de vista tche-c o s l o v a c o , a i n v a s ã o f o i desnecessária e injustificável. No entanto, como explica Santana, na perspectiva da geopolítica soviética, o movimento poderia retirar o país da esfera do socialismo, que estava indo longe demais. A Primavera não ameaçou somente a ortodoxia, mas a substituiu de forma contra-hegemônica. “Deve-se entender a invasão também, nos marcos do processo de mudança no cenário do comunismo internacional: a ruptura entre a China e a União Soviética e o afastamento de países do Leste da influência soviética, como Albâ-nia e Romênia, fazia os soviéticos temerem a perda da hegemonia no comunismo internacional e a demolição de seu bloco”, acrescenta o professor.

Com a tomada da capital de seu país, Dubcek preferiu não enfrentar diretamente a União Soviética e ne-gociar uma saída o mais vantajosa possível para a Tchecoslováquia. Isolado e sem possibilidades concre-tas de intervir na difícil conjuntura que a correlação de forças políticas (e militares) impunha, Dubcek teve de renunciar ao cargo de secretário-geral do PC tchecoslovaco. “Ele foi preso, pressionado ao longo de todo o processo de negociação. Certo ou errado, frente à enorme superioridade de força dos sovié-ticos e de sua pouca flexibilidade, um setor expressivo das lideranças avaliou que era preciso buscar outras saídas, o que foi feito às expensas de um avanço das idéias da Primavera”, relata Santana.

R e p e r c u s s ã o internacional

A qu e d a d o g o v e r n o Dubcek foi um d u r o b a q u e para os setores que defendiam certa oxigena-ção do socialis-mo de modelo s ov i é t i c o. “A p o s i ç ã o d o s p a r t i d o s c o -munistas euro-peus de maior destaque, como o Italiano e o Fr a n c ê s , f o i , ainda que com diferenças su-tis , de crít ica e condenação ao encaminha-mento s ov ié-t i c o , o q u a l , s e g u n d o e n -t e n d i a m , e r a contrário à po-lítica proposta no processo de

‘desestalinização’, oriundo do XX Congresso do PC Soviético”, des-taca Marco Santana.

Esse processo permitia auto-nomia dos partidos comunistas nacionais e o estímulo na busca de caminhos particulares e próprios de cada país ao socialismo. “A ação soviética foi discutida e avaliada pelos PCs ao redor do mundo. Até o PCB (Partido Comunista Brasileiro) se posicionou frente ao ocorrido. Apoiou a intervenção, dizendo que por trás de bandeiras corretas, aquele movimento era dominado por posições contra-revolucionárias e anti-socialistas”, informa professor.

No momento em que a Pri-mavera de Praga complet a 40

anos, ela não parece tão popular na República Tcheca quanto é no resto do mundo. Os tchecos têm feito pouco para rememorar esse episódio marcante de sua histó-ria. Em alguns casos, exprimem desgosto por não terem sido tão tenazes na defesa das conquistas democráticas, que foram adiadas em 20 anos, até a Revolução de Veludo e a eleição do presidente Václav Havel.

Não queremos socialismo sem liberdade

No entanto, Santana acredita que os tchecos (e os eslovacos) não têm do que se envergonhar. Ao contrário, “eles fizeram o que podiam dentro daqueles limites, desenvolvendo formas interessan-tes de resistência. Muitas foram bem inventivas. Os pontos de sinalização, o nome das ruas, números de casas foram retiradas, trocados ou apaga-dos”, exemplifica o professor.

As pichações e cartazes cobri-ram Praga. “Uma delas dá bem conta do que seria a idéia central da Primavera: ‘Não queremos liberda-de sem socialismo, nem socialismo sem liberdade’. Em muitos casos a ironia prevaleceu, como no caso de ‘O circo de Moscou está de volta à Praga. Proibido dar de comer aos animais’, ou em outra que dizia ‘Ivan volta para casa… Natasha quer fazer amor’ ou ’Lênin, acorda… Brejnev enlouque-ceu’ ou ainda ‘Proletários de todos os países, uni-vos… ou eu atiro’”, relata Santana.

A resistência tchecoslovaca identi-ficava a invasão nazista de 1939 com a soviética de 1968, chamando os novos invasores de “nazistas vermelhos” e também com mensagens como a que dizia “Os alemães nos queriam por mil anos… Os russos nos querem para sempre”.

Apesar da pressão soviética e da renúncia de Alexander Dubcek, o PC tchecoslovaco e a Assembléia Nacional mantiveram-se fiéis aos princípios da Primavera de Praga e um novo governo foi formado, de ca-ráter pró-Dubcek. A Tchecoslováquia permaneceu ocupada e as atividades políticas vigiadas pelas forças do Pacto de Varsóvia.

Esse panorama se manteve até que os setores ortodoxos do PC tchecos-lovaco conseguissem levar ao poder Gustáv Husák em 17 de abril de 1969, o que logrou a normalização das relações da Tchecoslováquia com a União Soviética. A Primavera fora esmagada pelos tanques, mas o espírito que animou o país em sua luta por liberdade seguiu vivo e, 20 anos depois, os remanescentes das lutas de 1968, conduzidos ao poder, nas figuras de Dubcek e Havel, de-mocratizaram o país.

“Deve-se entender

a invasão também, nos

marcos do processo de

mudança no cenário do

comunismo internacional:

a ruptura entre a China

e a União Soviética e o

afastamento de países do

Leste da influência soviética,

como Albânia e Romênia,

fazia os soviéticos temerem

a perda da hegemonia no

comunismo internacional e

a demolição de seu bloco.”

Marco Santana

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Setembro 2008UFRJJornal da

6 Violência

Coryntho Baldez

Setembro 2008

Coryntho Baldez

Classes perigosas

O combate às raízes da violên-cia ainda sobrevive como um desafio civilizatório no

Brasil. Nesta primeira década do século XXI, o cenário é aterrador: violência generalizada, insegurança, corrupção policial, milícias armadas, criminalização das classes pobres e aumento do rigor punitivo. O número de presos no país, por exemplo, passou de 90 mil, em 1990, para 443 mil, em 2007 – um aumento de 468%. No período da chamada redemo-cratização brasileira, a ação repressiva dos aparatos públicos de segurança não arrefeceu, como se poderia pensar, mos-trando-se com mais nitidez no campo dos delitos comuns. Ao longo dos últimos 30 anos, o endurecimento das penas e o confinamento em prisões cada vez mais superpovoadas se impuseram como meio de controle da criminalidade.

A reedição de As classes perigosas: banditismo urbano e rural (Editora UFRJ, 2008), obra raríssima de Alberto Passos Guimarães, publicada em 1982, pode ajudar a compreender melhor o papel da violência na história da sociedade brasi-leira. E mais: o livro mostra que a política de repressão ao crime, naquela época, já sobrepujava as ações de caráter preventi-vo. Os órgãos policiais – dizia o autor –, “pouco fazendo para prevenir o crime, querem compensar sua ineficácia tentan-do inútil e injustificadamente eliminar o crime aumentando o grau de ferocidade da repressão”. A análise parece dirigida à política de segurança do atual governo do Rio de Janeiro, cuja polícia matou 1.330 pessoas em supostos confrontos no ano passado, mais da metade, por exemplo, do número de mortos em São Paulo pelo mesmo motivo – de acordo com dados oficiais divulgados pelos dois estados.

O “perigo” de cada épocaAo comentar a importância históri-

ca da reedição da obra, a professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, Paula Ponciani – pesquisadora da área de segurança pública – afirma que as ques-tões tratadas no livro, de alguma forma, ainda retratam a sociedade brasileira. Ela diz que a obra versa sobre a lógica recorrente de tipificar o segmento pobre da população com esse atributo de “classes

Livro raro de Alberto Passos Guimarães, relançado pela Editora UFRJ, mostra as faces da violência brasileira com chocante atualidade.

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Setembro 2008 UFRJJornal da

7ViolênciaSetembro 2008

perigosas”. Em sua ótica, as sociedades criam, em períodos históricos diferentes as suas próprias “classes perigosas”, que podem ser constituídas por negros, po-bres ou homossexuais. “Esses segmentos passam, então, a ser tratados como cida-dãos de terceira categoria”, sublinha.

Para outra estudiosa da violência ur-bana, a economista e antropóloga Leonar-da Musumeci – do Instituto de Economia (IE) da UFRJ – tudo indica que jovens excluídos do mundo do trabalho e da es-cola são mais vulneráveis à cooptação pelo crime. No geral, concorda com a idéia defendida por Alberto Passos Guimarães, em 1982, de que a elite forçou “aqueles que penetraram no inferno do pauperismo e se transformaram de reservas do mundo do trabalho em reservas do mundo do crime, em suma, a passarem de classes laboriosas para classes perigosas”.

Porém, ela adverte que não dá para fazer uma associação direta entre paupe-rização e entrada para o crime. E lembra que no Rio de Janeiro os focos mais graves de criminalidade violenta se apresentam hoje na forma de controle territorial armado em certas áreas da cidade, por parte de traficantes ou de milícias. “Esse fenômeno das milícias está ligado a agentes do Estado que têm estratégias semelhantes às estratégias dos traficantes. Por sua vez, o abastecimento de armas e drogas é viabilizado por uma vasta rede de criminalidade e corrupção que não está ligada diretamente à pobreza ou ao lumpemproletariado”, avalia.

Paula Ponciani também concorda que essas questões ligadas à violência não esta-vam presentes na conjuntura do início da década de 80. “A economia do tráfico de drogas difere muito do que Alberto Passos chama de banditismo urbano. A questão do crime e da violência se tornou mais complexa”, comenta. Para Ponciani o que mudou é a estratégia recorrente do Estado brasileiro de fazer o controle da ordem social por meio da violência policial, “no caso brasileiro, uma violência des-mesurada”, conclui a pesquisadora.

No âmbito da segurança pública, segundo Paula Ponciani, falta ao Estado brasileiro a incorporação do conceito we-beriano de monopólio da violência legíti-ma, “que retira das mãos de particulares a possibilidade de utilização da violência”, afirma. Mais importante do que isso, para ela, é que a violência exercida pela autoridade do Estado só é legítima porque está sob o amparo das leis e dos estatutos legais. “No entanto, o que temos no Brasil é uma negligência do Estado em relação à segurança pública”, critica a pesquisadora, acrescentando que a violação de direitos humanos não é exceção na história do Brasil. Ela pergunta: em que momentos houve respeito efetivo aos direitos huma-nos no país? “Essa política de segurança violenta, repleta de ações extralegais, tem mais permanências do que mudanças ao longo da história brasileira. E o segmento pobre da população é historicamente um alvo privilegiado da ação repressiva do

Estado no Brasil, com o uso de força que não respeita os estatutos legais”, enfatiza Ponciani.

O Rio violentoDe acordo com Leonarda Musumeci,

esse quadro de confronto, no caso do Rio de Janeiro, é exacerbado, embora o abuso policial e a violação de direi-tos fundamentais da população mais pobre sejam problemas endêmicos em todo o Brasil. “Evidentemente, a política de confronto explicitamente adotada pelo governo do estado do Rio se dirige, sobretudo às áreas de baixa renda”, observa. A pretexto de se travar uma “guerra” contra o crime, estimula-se o aumento da violência policial contra esses segmentos da população, na opinião de Musume-ci. “Quanto mais ineficaz se mostra essa estratégia, mais se recorre a ela, gerando uma absurda escalada da letalidade nas ações da polícia”, condena.

Numa pesquisa recente, Paula Pon-ciani constatou que o governo do estado não tem um plano estadual de segurança pública. Isso quer dizer que as ações di-rigidas à segurança pública estão sendo norteadas por pressões da mídia, do público e da política partidária de caráter eleitoreiro. “São ações fragmentadas, descontínuas e episódicas, em resposta a pressões do momento, sem se guiar por um plano de segurança”, assevera. Na atual gestão governamental, afirma que não há políticas de redução da violência e do crime que compreendam a dimen-são preventiva. “Esse incentivo para a polícia atuar como ‘força de guerra’ em comunidades pobres é uma opção política”, frisa a pesquisadora.

Em sala de aula, Ponciani costuma recomendar a leitura da obra de Al-berto Passos Guimarães – segundo ela “reeditada em boa hora” – e sempre discute o conceito de “classes perigosas” quando aborda a questão da segurança. Especialmente dessa segurança pública que, no seu entendimento, distingue entre a “polícia do doutor” e a “polícia do moleque”.

De acordo com Leonarda Musumeci, não há solução mágica ou centrada em um único aspecto para o problema da violência. Ela diz que as experiências em que houve redução acentuada dos índices de violência, como em São Paulo, Bogotá ou Nova York, mostram a necessidade de programas integrados, que atuem em várias fren-tes. Musumeci também considera que o problema da violência não é uma mera questão de repressão policial ou judicial. Para enfrentá-lo, conclui, somente com um misto de medidas que envolvam po-líticas sociais, reforma e controle externo das instituições de segurança, combate à corrupção e da criminalidade dentro do aparelho de Estado, além de ações espe-cíficas voltadas para os segmentos sociais mais vulneráveis à violência.

A segunda edição de As classes perigosas tem notável importância, já que o livro praticamente desapareceu do alcance do público nos últimos anos, analisa o professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, José Paulo Netto, autor do texto de apresentação da obra. Para ele, tanto a problemática como a metodologia de análise do livro permanecem extremamente atuais. “Quando acadêmicos, estudiosos e autoridades públicas se vêem obrigados a continuar tomando a violência como objeto de compreensão e intervenção, o trabalho de Passos Guimarães mostra-se como um referencial de conhecimento obrigatório”, elogia.

José Paulo Netto lembra que após o aparecimento de As classes perigosas produziu-se muito conhecimento relevante sobre o tema do banditismo urbano e rural. Contudo, realça que a massa crítica acumulada não invalidou nenhum dos elementos substantivos que Passos Guimarães extraiu do seu objeto - “a sua análise, pois, revela-se, ainda hoje, paradigmática”.

Porém, o que de mais significativo pode-se extrair da obra, segundo o professor da UFRJ, é a absoluta atualidade e validade do seu método, radicalmente histórico e inspirado na tradição da dialética marxista. “Por outro lado, a forma como o poder público vem propondo o confronto como política de segurança revela a inteira inépcia dos responsáveis por esta política para compreender a essência do fenômeno da violência. Tanto mais por isto, a leitura do livro de Guimarães Passos é atualíssima”, enfatiza.

Mas como, então, Alberto Passos Guimarães vê o fenômeno da violência? Como marxista de boa cepa, ele recusa-se a considerar o fenômeno da violência, urbana e rural, como resultante de duas ou três causas, avalia José Paulo Netto. “A sua análise é pluricausal e, por isso mesmo, não reduz ou esquematiza o complexo de causas, razões e motivos que estão na base do fenômeno da violência”, explica. Contudo, prossegue o professor da UFRJ, Passos Guimarães confere prioridade ontológica às razões econômico-políticas, que estão no cerne do problema e devem ser buscadas na particularidade da formação histórica brasileira, pois permanecem presentes até hoje.

José Paulo Netto observa que, desde a primeira edição de As Classes Perigosas, cresceu a massa crítica voltada para a análise do seu objeto. “Por isso, o seu livro não é suficiente para dar conta do fenômeno da violência tal como ela se apre-senta atualmente”, adverte. Mas, especialmente pelo exemplar método de análise, reitera que a obra é de consulta obrigatória tanto para os especialistas como para os leitores comuns interessados no tema.

Uma obra para ficar

Para Paula Ponciani “a economia do tráfico difere muito do que Alberto Passos chama de banditismo urbano”.

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Setembro 2008UFRJJornal da

8 Campus

Inclusão do sonho

A história da Vila Residen-cial-UFRJ confunde-se com a própria história da

UFRJ. Antes mesmo da ilha da Cidade Universitária existir seus primeiros moradores já viviam nas nove ilhas do arquipélago, que deu origem a atual ilha da Cidade Universitária (o Fun-dão). Com a construção do campus, em 1945, a Vila se transferiu para o local onde se encontra até hoje, o extremo sudoeste da ilha – região localizada atrás do prédio da Reitoria.

Para os moradores, a Vila Residen-cial incorpora o patrimônio histórico vivo da região. Márcia Ribeiro, mora-dora há 30 anos, considera que a segu-rança e tranqüilidade do local são os seus atrativos. “Eu amo morar na Vila. Aqui eu posso criar minha filha com tranqüilidade”, afirma a moradora.

Vera Valente, funcionária técnico-administrativa da UFRJ e diretora da Associação dos Moradores e Amigos da Vila Residencial (AMAVILA), afir-ma que “a realização de toda essa obra de engenharia que é a Cidade Univer-sitária só foi possível dada à utilização de uma peça indispensável na trans-formação desse espaço: a mão-de-obra

Vanessa Sol

Para muitos moradores, viver na Vila Residencial da UFRJ é motivo de orgulho. Criada há aproximadamente 30 anos, a vila apresenta problemas típicos de comunidades de baixa renda como

a falta de infra-estrutura e de saneamento básico. Para melhorar a qualidade de vida dos moradores e diminuir problemas enfrentados por eles, foi criado o Programa de Inclusão da Vila Residencial.

operária que fincou os pilares de cada prédio aqui construído. Infelizmente, a história desses operários não ocupa as páginas das brochuras oficiais. Ela existe porque se reatualiza na memória e na luta diária das famílias residentes aqui há 30 anos, local onde, antiga-mente, era a ilha da Sapucaia. Muitos desses operários foram incorporados pela universidade nos quadros de trabalho. São pioneiros, cumpriram e ainda cumprem a função de garantir a preservação do espaço onde está a maior universidade pública do país”.

Entretanto, a Vila Residencial-UFRJ, antiga Vila-Residencial dos funcionários da UFRJ, apresenta pro-blemas de ordem social. A melhoria das condições de vida dos moradores depende de uma série de fatores. Um deles é a regularização fundiária dos terrenos ocupados, o que possibili-tará a implantação da rede de água e esgoto e a pavimentação das ruas, por exemplo.

Com o objetivo de equacionar parte destas dificuldades, em 2002 a AMAVILA encaminhou ao Reitor Carlos Lessa um documento solici-tando a discussão da regularização

fundiária da Vila, baseada na Medida Provisória 2.220, de 4 de setembro de 2001, que concede “àquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família [...] desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural” (artigo 1º da MP) o uso especial para fins de moradia.

Segundo os coordenadores gerais do Programa de Inclusão Social da Vila, Pablo Benetti e Selene Maia, o do-cumento encaminhado ao reitor apon-tava também a ausência do poder pú-blico na Vila, que apresenta problemas similares aos de outras comunidades de baixa renda da cidade. Decorrentes da falta de infra-estrutura adequada, tais como: coleta e tratamento de esgotos, sistema viário, drenagem, iluminação pública, áreas de lazer, atenção básica de saúde, dentre outros.

A idéia era romper com a lógica assistencialista. Para isso, “era impor-tante criar um programa institucional,

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9Campus

Inclusão do sonhoonde as diversas unidades acadêmicas elaborassem projetos para atender demandas da comunidade”, declara Selene, professora do Instituto de Ma-temática (IM), que na época ocupava o cargo de Assessora de Assuntos Ins-titucionais do Gabinete do Reitor.

Tanto Pablo, professor da Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), como Selene ressaltam o papel decisivo que a professora Suely Souza de Almeida, na época decana do Cen-tro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), ao inserir a área dos Direitos Humanos, sob sua coordenação, ao Programa. “Sua concepção foi de es-tabelecer nexos entre as distintas áreas temáticas do Programa, numa perspec-tiva de transversalidade e de construir uma cultura de direitos humanos e de novos espaços de sociabilidade, com sólidos investimentos na dimensão político-cultural, o que proporcionou um grau de maior consistência ao projeto”, conclui Selene.

A consolidação do Programa foi gradativa e se acentuou na medida em que foi estabelecida uma sinergia entre a comunidade e os professores envolvi-dos no projeto. Atualmente, ele conta com 10 projetos de diferentes áreas. Entretanto, a presença de docentes e pesquisadores na Vila começou em 1992, com Regina Zeitoune, professora da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), que permanece até hoje de-senvolvendo trabalhos na área de saúde com os moradores.

Entre os trabalhos realizados na Vila, está o projeto da FAU, que visa à inclusão urbana e trata da questão da regularização fundiária dos terrenos, uma das questões mais preocupantes para os moradores. Pablo Benetti, afirma que a Vila Residencial cresceu desordenadamente e sem status legal. Segundo ele, “a expansão aconteceu pela permissividade das gestões an-teriores na Reitoria que, mesmo sem terem a intenção, acabaram agindo de forma paternalista e irresponsável”, destaca o professor.

Selene ratifica e afirma que “sem resolver a questão da regularização fundiária, a comunidade não existe institucionalmente, e por conseqüência dificulta à inserção de ações do poder público das mais diversas instâncias, na comunidade”.

No entanto, hoje, com a configu-ração do atual panorama, não é pos-sível fugir dos problemas da Vila. Na sessão de 21 de dezembro de 2006 do Conselho Universitário, foi aprovado por unanimidade o parecer que deu início ao processo de regularização fundiária. De acordo com Benetti, “o momento foi um marco para a comu-nidade e sinaliza a resolução com a maior urgência possível da situação dessas famílias”. Ambos coordenadores destacam o empenho do reitor Aloísio Teixeira neste processo.

No levantamento inicial, serão checadas as metragens dos terrenos e das casas. O passo seguinte será a identificação de quem é morador, o que será feito através do documento de identidade e um comprovante de água ou telefone fixo. Após esta etapa, o poder judiciário avaliará a documen-tação e julgará o direito dos moradores receberem o título de concessão de uso especial para fins de moradia. De acor-do com Benetti, em 2007, foi firmado o Acordo de Cooperação Técnica entre a União, por intermédio do Ministério das Cidades e do Ministério do Plane-jamento, Orçamento e Gestão e a UFRJ (Apoio a Projetos de Regularização Fundiária Sustentável de Assentamen-tos Informais em Áreas Urbanas).

Selene explica que “com a parti-cipação atuante da AMAVILA”, ela e Pablo se sentiram encorajados a buscar os saberes da universidade para a im-plementação do Programa de inclusão da Vila Residencial. “Estávamos cons-cientes das dificuldades, mas só havia sentido em criar um Programa se a in-terdisciplinaridade e a transversalidade do conhecimento se constituíssem em elementos norteadores e indispensá-veis”, destaca a professora.

O Programa reúne atualmente 79 pessoas, sendo 19 docentes, 3 ser-vidores técnico-administrativos, 32 alunos bolsistas de graduação e 25 voluntários.

Além dos projetos citados, professores da Faculdade de Letras e da Faculdade de Odontologia atuam na Vila de forma voluntária.

Os projetos para a VilaVinculados ao programa de inclusão social da Vila Residencial-UFRJ

Segundo Vera Valente a Vila “existe porque se reatualiza na memória e na luta diária das famílias residentes aqui há 30 anos”.

Internet & Mídia Digital: um projeto de Comunicação Comunitária

Profª Cristina Rego MonteiroProfª Inês Maria Silva MacielProfº Amaury Fernandes

Escola de Comunicação

Brincar e Aprender na Vila Profª M. Gloria B. Botelho Faculdade de Educação

“É a Vila” – Educação Ambiental na Vila Residencial – UFRJ

Profª Maria Cristina Lemos Ramos Instituto de Biologia

sociais: o processo de regularização fundiária na Vila Residencial da UFRJ”

Profº Marco Antonio da Silva Mello

Informática para a Educação Profº Antônio Cláudio Gómez de Sousa(Coordenador Acadêmico)Rejane Lúcia Loureiro Gadelha(Coordenadora Pedagógica)Ricardo Jullian da Silva Graça(Coordenador Técnico)

Escola Politécnica

Diagnóstico e Promoção Nutricional e de Saúde dos Idosos

Profª Maria Auxiliadora Santa Cruz Coelho

Gerenciamento de Resíduos Sólidos Residenciais: minimização de desperdício de alimentos e melhoria da qualidade de vida

Profª Loscilei Granhen Tavares Colares Instituto de NutriçãoJosué de Castro

Ambulatório de Prevenção e Promoção da Saúde

Profº Lúcio Pereira de SouzaProfº Roberto de Andrade Medronho

Faculdade de Medicina

A Família como Unidade de Serviço em um Programa de Atenção à Saúde da Comunidade

Profª Regina Célia Gollner ZeitouneProfª Ana Maria Domingos

Escola de Enfermagem Anna Nery

Projeto de Inclusão Urbana da Vila Residencial da UFRJ

Profº Pablo César BenettiProfª Maria Julieta N. de Souza

Faculdade de Arquiteturae Urbanismo

T Í T U LO D O P R O J E T O C O O R D E NA D O R U N I D A D E A C A D Ê M I C A

Instituto de NutriçãoJosué de Castro

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10 Universidade

Transgredir para integrar

Tais iniciativas, que impli-caram em uma intricada arquitetura curricular e

de gestão institucional, comprovam um esforço de compor novas opções na formação universitária. Este tipo de proposta integradora e interdis-ciplinar, porém, não é nova. Muitas áreas na pós-graduação da UFRJ já percorreram esse caminho, algumas de forma pioneira.

É o caso do Eicos (Programa de Pós-graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social), do Instituto de Psicologia (IP) da UFRJ. A proposta do programa data de 1989, segundo sua fundadora, a professora Maria Inácia D’Ávila. Do grupo ini-cial, ela e Tânia Maciel, também do IP, lembram que a autorização para

o funcionamento levou anos para ser concedida. “O processo chegou a se perder e fomos encontrá-lo na gaveta de um relator, onde jazia há quase um ano. Internamente, no nível da própria unidade, não era uma idéia bem-vinda – fomos aconselhados a fazer um curso de especialização e não de pós-graduação stricto sensu e foi com muita discussão que conseguimos a aprovação do Conselho de Ensino de Pós-graduação da UFRJ (o CPEG)”, recorda Maria Inácia D’Ávila.

A seguir, vieram exigências da Capes (Coordenação de Aperfeiçoa-mento de Pessoal de Nível Superior, do Ministério da Educação), porque o curso tinha um nome híbrido para o diploma – Psicossociologia de Comu-nidades e Ecologia Social –, em uma

área “corporativa”, como a de Psico-logia. Para a instituição de fomento, o programa ampliava ainda mais a “interdisciplinaridade” sob o título de Eicos – Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social.

Em sua primeira avaliação, ainda nos anos 1990, o programa obtém da Capes a nota máxima. O conceito “A”, ao contrário de facilitar, criou uma enorme disputa e dificuldades nos comitês de avaliação. Inácia D’Ávila explica que muitas vezes os professores oriundos de diferentes disciplinas, vêm de tradições de avaliações diversas, bem como trajetórias de produção especificas de suas respectivas áreas, e que tinham que ser submetidas a um critério de única área, a Psicologia, na sua avaliação global.

Os reconhecimentos vieram, mui-tas vezes, de organismos internacio-nais, como o Unitwin Award conce-dido em 2002, pela sede da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em Paris, à Unesco Chair on Sustainable Development, criada em 1993, dentro do programa. Reforçando a interdisciplinaridade

As teses, dissertações e pesquisas do programa testemunham seu cará-ter de aproximação interdisciplinar. Marta Irving, professora e pesquisa-dora do Eicos, explica que o programa recebe alunos de diversas formações – Arquitetura, Sociologia, Medicina, Música, Filosofia, Biologia, Turismo, Comunicação Social, Educação – ao

TESTE

Novos cursos de graduação começam a ser oferecidos pela UFRJ no Vestibular de 2009. Entre eles, o Bacharelado em Ciências da Matemática e da Terra, que envolve os institutos de Química (IQ), de Física (IF), de Matemática (IM) e o de Geociências (Igeo), todos do

Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) e o curso de Relações Internacionais, inaugurando um intercâmbio de disciplinas que pertencem a dois centros distintos: o de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) e o de Filosofia e Ciências Sociais (CFCH).

Fernando Pedro e Seiji Nomura

“Prefiro formar gente com cabeça mais aberta e depois torcer para que ela entenda o lugar onde se encontra, tendo clareza da alienação pelo trabalho a que pode estar submetida”, afirma Gian Mário Giuliani .

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11Universidade

lado da Psicologia. Sendo uma das responsáveis pela linha de pesquisa Comunidades, desenvolvimento, meio ambiente e inclusão social, Marta vem estabelecendo contatos com profes-sores de outras unidades da UFRJ, a fim de ampliar o alcance de projetos comuns.

É o caso da cooperação que se estabeleceu entre o Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropolo-gia (PPGSA), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) e o Eicos. Gian Mário Giuliani, professor e sociólogo ambiental, do PPGSA e Marta, com formação em Biologia e Psicologia, passaram a oferecer, desde o ano passado, uma disciplina denominada “Sociologia e Ecologia Social”. O curso teve ótima receptividade, atraiu 15 inscritos e mais 10 ouvintes, oriundos de oito universidades diferentes.

“Da oferta dos cursos, evoluímos para a confecção de projetos conjun-tos”, destaca Marta. É o caso do Ob-servatório dos Parques, que envolve também professores da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ e do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) de Campos (RJ). Entre as finalidades do projeto está uma refle-xão crítica acerca da governança de áreas ambientalmente protegidas no estado do Rio de Janeiro, uma questão estratégica para a gestão da natureza e que visa assegurar um canal perma-nente de diálogo entre a academia, a administração pública dos parques e a sociedade.

A idéia, explica Gian Mário, “é saber como funciona o parque, sua estrutura e gestão, suas características físicas e biológicas e ver como se estabelecem as relações entre o parque e as comunida-des vizinhas”. Ele também destaca que “não se salva a natureza excluindo-se o homem, mas pelo contrário, reconhe-cendo que é preciso incluí-lo em um contexto social digno, ambientalmente correto e sustentável”.

Para viabilizar a primeira fase desse projeto, que envolve alunos de gra-duação e de pós-graduação de vá-rias áreas de conhecimento, foram liberados recursos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), da ordem de R$ 54 mil. Porém, Marta não esconde sua decepção ao ver que falta a destinação, pela universidade, de um local para adequada instalação do Observatório, o que pode comprometer a utilização de parte da verba.

DiretrizesHoje, debate-se nas diretrizes defi-

nidas no Plano Diretor 2020, da UFRJ, a transferência de diversas unidades do campus da Praia Vermelha – a Psicolo-gia é uma delas – ou isoladas – como o IFCS – para a Cidade Universitária, no Fundão. Entre os argumentos constan-tes do Programa de Reestruturação e

Expansão da UFRJ, que tem no Plano Diretor 2020 um de seus pilares, está a necessidade de “adequar as estruturas administrativa, didático-pedagógica, de pesquisa e de gestão acadêmica da universidade, de modo a induzir a transdisciplinaridade e a formação integral do estudante”.

Para Marta e Gian, a possibilidade de se instalar um pleno intercâmbio entre as disciplinas de diferentes cen-tros, no entanto, não se resume a mera convergência espacial. Os professores alertam para o fato de que existem “feudos” de saber na universidade, ciosos de seu po-der, muitas vezes, blindados por uma hierarquia que se estabelece a partir dos departamentos das unidades.

Para o próprio Eicos, o fato de re-ceber estudantes de diversas formações básicas continua sendo um ponto crítico nas avalia-ções, já que os comitês entendem muitas vezes que a formação daqueles mestres ou doutores não poderia ser outorgada por uma unidade de Psi-cologia. “Pelas normas da unidade, aliás, votadas agora em congregação,

TESTE

nenhum desses candidatos ‘alieníge-nas’ poderá concorrer a uma vaga na unidade, que faz a reserva de seus postos a psicólogos de formação básica”, revela Inácia D’Ávila.

Outra limitação que se impõe a uma formação universitária mais abrangente, menos especialista e seg-mentada, é o fato de que o mercado de trabalho funciona ainda por profissões. Nesse sentido, Gian Mário Giuliani afirma categoricamente: “prefiro for-mar gente com cabeça mais aberta e depois torcer para que ela entenda o lugar onde se encontra, tendo clareza

da alienação pelo trabalho a que pode estar submetida”. Universidadeem transe

Em defesa de mu-danças na UFRJ, Iná-cia D´Ávila e Tânia Maciel argumentam que a universidade tem que cumprir, mais do que nunca, a missão de pesquisa

livre e autônoma, mas essa pesqui-sa deve estar a serviço do ser humano. “Não se trata de formalizar os comitês de ética e supor que o cumprimento de suas burocracias seja a garantia da uni-versidade que desejamos, ao lado do

reconhecimento de melhores salários”. Evocando Serge Moscovici, autor dos mais publicados em diversas línguas, com grandes prêmios internacionais (e interdisciplinares), as professoras reproduzem o que afirma o psicosso-ciólogo: “Eu acredito que o fordismo manual desapareceu das fábricas e foi substituído pelo fordismo intelectual nos campi de pesquisas: as pessoas não vivem mais, elas sobrevivem sob a égide do mecanismo darwinista de publicar ou perecer”. E acrescentam que Edgar Morin, sociólogo francês, companheiro intelectual de Mos-covici, tão publicado e premiado quanto o seu colega, já em 1999 prevê também a necessidade do retorno a essa cultura humanista, convergindo os saberes disciplinares ao invés de distingui-los: “A maior contribuição ao conhecimento do século XX foi o conhecimento dos limites do conhe-cimento; (…) a maior certeza que nos foi dada é que não se pode delimitar as incertezas por uma definição, porque justamente são incertezas - não somente na ação, mas no co-nhecimento. Convém fazer convergir inúmeros ensinamentos, mobilizar inúmeras ciências e disciplinas para aprender a afrontar a incerteza.”

Inácia e Tânia pensam como Mo-rin, que a universidade deve cumprir sua missão de educação, o que, por força de debates mal orientados acerca do espaço, sobre repartição de recursos, posições em rankings e critérios de avaliação ou publicação, por vezes tão darwinistas quanto per-versos, parece uma missão esquecida. “Devemos retornar a essa missão. Parece-nos bastante estranho, por exemplo, que estejamos prevendo que o campus da Praia Vermelha venha a se tornar um espaço cultural. Como tornar-se? Já não é ou sempre foi?”, indaga Tânia Maciel.

Morin aponta, numa de suas obras, que “a Universidade atual forma um número muito grande de especialis-tas de disciplinas predeterminadas, portanto, artificialmente delimitadas, enquanto grande parte das atividades sociais, como o próprio desenvolvi-mento da ciência, pede homens capa-zes de – ao mesmo tempo – um ponto de vista mais amplo e mais profundo sobre os problemas, progressos novos transgredindo as fronteiras históricas das disciplinas”.

Refletindo a partir de Morin, as professoras Inácia e Tânia acreditam que a missão da universidade seria, pois, educar para uma visão mais integradora, evitando “a ‘inadequação profunda e grave dos nossos saberes distintos, em pedaços, compartimen-tados em disciplinas’, favorecendo uma leitura renovada de nossas realidades ‘polidisciplinares, transversais, multi-dimensionais, transnacionais, globais, planetárias’”.

“Prefiro formar gente com cabeça mais aberta e depois torcer para que ela entenda o lugar onde se encontra, tendo clareza da alienação pelo trabalho a que pode estar submetida”, afirma Gian Mário Giuliani .

Segundo Marta Irving, o Eicos recebe alunos de diversas formações.

“Parece-nos bastante estranho,

prever que o campus da Praia Vermelha venha a se tornar um espaço cultural.

Como tornar-se? Já não é ou

sempre foi?”

Page 12: UFRJ Jornal daaplicação das diretrizes do Plano Diretor 2020 (PD), o Jornal da UFRJ entrevistou o sociólogo francês Edgar Morin, do Centre National de la Recherche Scientifique

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12 Universidade

Anna Maria de Castro

Edgar MorinÉ preciso mudar o paradigma

Em meio ao debate que a co-munidade universitária vem travando sobre a implantação

do Programa de Reestruturação e Expan-são da UFRJ 2008-2012 (PRE) e aplicação das diretrizes do Plano Diretor 2020 (PD), o Jornal da UFRJ entrevistou o sociólogo francês Edgar Morin, diretor emérito do Centre National de la Recherche Scienti-fique (CNRS), da França. Morin esteve recentemente na UFRJ, em visita promo-vida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), do Instituto de Psicologia (IP), em articulação como o Programa de Pós-Graduação em Sociolo-gia e Antropologia (PPGSA), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS). Defensor de uma concepção transdisci-plinar para a organização do ensino das ciências, artes e humanidades, Morin reiterou alguns dos efeitos, cada vez mais graves, da compartimentação do saber, tão presente na universidade.

Diretrizes para o enfrentamento desta fragmentação se encontram formuladas no PRE, combinadas às do Plano Diretor. Como o pensador francês assinala em seus livros, dedicados a elucidar a ciência da Complexidade, “a grande separação entre a cultura das humanidades e a cul-tura científica, iniciada no século XIX e agravada até os nossos dias, desencadeia uma série de conseqüências para ambas. A cultura humanística é uma cultura genérica, que pela via da filosofia, do en-saio, do romance, alimenta a inteligência geral, enfrenta as grandes interrogações humanas, estimula a reflexão sobre o saber e favorece a integração pessoal dos conhecimentos”. Já a cultura científica, bem diferente por natureza, separa as áre-

Fernando Pedro

as de conhecimento; acarreta admiráveis descobertas, teorias gerais, mas não uma reflexão sobre o destino humano e sobre o futuro da própria ciência.

O problema crucial de nossa época, afirma Morin em seus textos, é efetuar uma reforma do pensamento, que permita a ligação de duas culturas dissociadas. Trata-se de uma reforma não programática, mas paradigmática, concernente a nossa apti-dão para organizar o conhecimento.

Jornal da UFRJ: Segundo sua concepção de educação, como deveria ser estruturada uma universidade da contemporaneidade? Como o senhor já enunciou, a “reforma do pensamento exige a reforma da uni-versidade”.Edgar Morin: Uma Universidade de-veria comportar um ano propedêutico obrigatório para todos, assegurando o aprendizado de sete saberes,* mais o ensi-no sobre a ciência da complexidade, sobre a racionalidade e sobre o conhecimento. Um ensino obrigatório sobre o processo civilizatório para todos, sobre nossa civi-lização contemporânea, que fale das mí-dias, do entretenimento, do consumo, das férias, do automóvel, do meio ambiente. Uma faculdade do Universo, que trate de Cosmologia, que integre a vida e a huma-nidade. Uma faculdade da Terra, dedicada às Ciências da Terra, à ecologia. Uma faculdade sobre a Vida. Uma faculdade sobre a condição humana, que integrasse a literatura, a poesia, as artes.

Jornal da UFRJ: Haveria uma intencio-nalidade em alimentar esta segmentação e essa burocratização na universidade, particularmente no Brasil, a fim de pre-servar a hegemonia de um pensamento

conservador, que se “encastela” em feudos de conhecimento e de poder? Quem ganha com isso? Edgar Morin: Hegemonia de um pen-samento não somente conservador, mas compartimentado, em que os proprietá-rios de uma soberania disciplinar desejam conservar seus poderes absolutos.

Jornal da UFRJ: O senhor poderia discor-rer um pouco sobre a sua afirmação de que “o problema não é abrir as fronteiras entre as disciplinas, mas transformar o que gera essas fronteiras: os princípios organizadores do conhecimento”. É disso que trata o novo espírito científico que o senhor defende?Edgar Morin: É um novo espírito cogni-tivo que concerne às ciências e abrange todos os problemas de conhecimento. Trata-se de substituir o princípio cogni-tivo de disjunção/redução pelo princípio de relação/distinção e de integrar as fer-ramentas cognitivas que possam tratar da complexidade: a dialogia, o círculo recursivo, o princípio hologrâmico, etc.

Jornal da UFRJ: O divórcio promovido pela concepção hegemônica da ciência moderna entre o homem e a natureza, alimentando a disjunção entre o ser bio-lógico e o ser cultural levou a uma atrofia das possibilidades de compreensão da complexidade inerente à vida. Essa visão reducionista, que nos dificulta contex-tualizar e integrar saberes, estaria sendo reforçada pelo nosso ensino, que privilegia a separação em detrimento da ligação, a análise, em prejuízo da síntese? Edgar Morin: Evidentemente. Esta visão da ciência moderna tem a Bíblia por antecedente, que fez o homem segundo a imagem de Deus, e o Cristianismo,

que oferece o privilégio da imortalidade somente aos humanos. Assim, começou a disjunção entre o humano e o natural.

Jornal da UFRJ: Na sua opinião, que tipo de mobilização se faz necessária para resis-tir a esse processo de hiper-especialização, que sustenta o “expert” que perde a apti-dão de conceber o global, subtraindo do cidadão o direito ao conhecimento. Como alcançar a democracia cognitiva? Edgar Morin: Tudo deve começar por tomada de consciência e se ela se desen-volver, se articulando, então se elaborará uma força reformadora.

Jornal da UFRJ: Confesso que fiquei “as-sustado” ao ler seu argumento de que ”a continuação do processo técnico-científico atual escapa à consciência e à vontade dos próprios cientistas, levando à regressão da democracia. A “alienação” do cientista seria inevitável dentro da atual forma de conceber a produção científica? Edgar Morin: É por isso que é necessário trabalhar uma revolução paradigmática, que começou de uma forma muito dis-persa e insuficiente. Husserl demonstrou claramente que há uma zona cega no espí-rito dos cientistas, incapazes de integrar seu próprio espírito em seu processo de conhecimento.

*Em artigo dedicado aos sete saberes neces-sários à educação do futuro, Morin destaca sete “buracos negros da educação”, completamente ignorados, subestimados ou fragmentados nos programas educativos. Eles aparecem nomeados como: 1) O Conhecimento; 2) O Conhecimento Pertinente; 3) A Identidade Humana; 4) A Compreensão Humana; 5) A Incerteza; 6) A Condição Planetária, e 7) A Antropo-ética.

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13Entrevista

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Anna Maria de Castro

Setembro 2008

Edgar MorinÉ preciso mudar o paradigma

A socióloga Anna Maria de Castro começa a lecionar, em 1962, no Instituto de Filosofia de Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. Influenciada por seu pai – o médico, professor, escritor, parlamentar e cidadão do mundo Josué de Castro, que desmistificou a fome como uma vontade da natureza e a conceituou como fenômeno social –, dedicou-se a estudar a relação entre educação e alimentação. Ao longo de sua carreira, Anna Maria trabalhou nos institutos de Nutrição (INJC) e de Estudos em Saúde Coletiva (IESC), além de outras unidades da UFRJ. Nesta entrevista, ela defende as atuais políticas públicas de combate à fome e pontua que o pai acreditava em uma revolução para “contar cabeças e não cortá-las”.Os efeitos do golpe militar (1964) em sua família, as forças que emperram a reforma agrária e a esperança de que o flagelo da fome, no mundo, um dia seja erradicado também são aqui relatados e esperançados.

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14 Entrevista

Por um mundo sem fomes

Rodrigo Ricardo

Jornal da UFRJ Seu pai, Josué de Castro, faleceu inconformado com a ineficiência de políticas efetivas no combate à fome no Brasil. O programa Fome Zero atende aos ideais de ações imaginadas pelo homem que se tornaria o patrono do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nu-tricional (Consea)?

Anna Maria de Castro: Penso que sim. Lógico que nenhuma política é capaz de resolver um problema tão grave quanto é a fome no Brasil. Entretanto, trata-se do primeiro momento em que o governo elabora uma política e a considera como prioridade, colocando diversos ministé-

rios envolvidos neste projeto. Hoje, nós temos políticas diferentes, que vêm nos permitindo até ensinar a outros países formas de diminuir esta exclusão social. Estamos em um bom caminho, apesar de que Josué de Castro não acreditaria que, passado o século XX e iniciado o XXI, ainda houvesse fome, não somente no Brasil, mas em todo o planeta. Essa incapacidade de solução do problema, que passa pelo fracasso de diferentes po-líticas, fez com que a questão da miséria aflorasse novamente no mundo. Jornal da UFRJ: A Ação da Cidadania, fundada pelo sociólogo Herbert de Souza,

o Betinho, agora recolhe brinquedos e livros. Isto é sinal de que o Brasil cami-nha para saciar outras fomes?

Anna Maria de Castro: A Ação da Cidadania entende que as po-líticas públicas hoje existentes no combate à fome não precisam ser complementadas. Eles resolveram se dedicar a outro tema, do qual sempre tivemos e continuamos a ter fome: educação. Então, têm como meta saciar a fome de conhecimento em toda a sociedade, incluindo a todos na busca de um país melhor. Fornecida em dezembro, a cesta de alimentos, so-

zinha, não resolve mais o problema. E, não tem porque pensar que as pessoas apenas sentem fome neste período. Eles partiram para outro caminho que é divulgar a educação, para que o livro se transforme num alimento ainda mais importante para a construção da cidadania.

Jornal da UFRJ: “Quem tem fome, tem pressa”, dizia Betinho para rebater as crí-ticas de que distribuir comida significava assistencialismo. Superamos este precon-ceito ou ainda há risco de retrocessos por conta de setores interessados em explorar politicamente a miséria?

“A obesidade também é

uma doença decorrente da fome, pois é resultado da forma como você a sacia”, explica Anna, ressaltando que, apesar

da diminuição dos índices de exclusão,

a miséria ainda serve o seu prato

vazio a muitos brasileiros.

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15Entrevista

“Fornecida em dezembro,

a cesta de alimentos,

sozinha, não resolve mais o problema. E, não tem

porque pensar que as pessoas sentem fome apenasneste

período. “

Anna Maria de Castro: O recuo vem nas críticas que ouço muitas vezes acerca dos programas Fome Zero e Bolsa Família. Continuam admitindo que existam outras formas de incluir os excluídos de nossa sociedade que não sejam através destas políticas públicas. Não aceito estas críticas, houve avanços e o perigo está em se retornar à estaca zero, de como o Brasil estava antes. Na academia, sobretudo, durante o século passado, as políticas ditas “assistencialis-tas” sempre foram criticadas, enquanto morria-se de fome, de sarampo, de co-queluche e de outras doenças de massa, pois se achava que não tínhamos que atuar diretamente sobre o problema. Quando Betinho pontua que “quem tem fome, tem pressa”, isto acorda a so-ciedade, um momento importante para que ela comece a aceitar determinados tipos de programa. O “assistencialismo”, muitas vezes, é necessário à medida que não há outro caminho. Mas quando você começa – e, hoje, assim atua o Ministério do Desenvolvimento Social –, uma po-lítica vem se complementar à outra. Aí está a fórmula, eles fazem uma análise crítica e vão anexando outros projetos, para trabalhá-los de forma integrada. Outro dia, num encontro, alguém recla-mou que “as mães compravam biscoitos demais com os recursos do Bolsa Família e que estavam tornando os filhos obesos”, o que é um absurdo. Não se pode conce-ber que com R$ 60, uma mãe vá estragar seu filho dando biscoitos. Enfim, são críticas inconsistentes. Por outro lado, os trabalhos realizados pelos programas demonstram resultados consideráveis à sociedade.

Jornal da UFRJ: A economia brasileira continua a se desenvolver sobre a base do modelo agro-exportador. Quais os impactos deste tipo de desenvolvimento para a população?

Anna Maria de Castro: Daí vem a gran-de diferença entre sociólogos, cientistas políticos e muitos economistas que acreditam na necessidade de exportar para receber dólares e resolver os pro-blemas do país. Hoje, porém, vamos centrar a economia na agricultura familiar ou será extremamente difícil resolver o problema do consumo de alimentos no Brasil. Sempre foi assim, mas isto vem se acentuando. A gran-de propriedade, com a monocultura, não traz benefícios diretos para nossa população tanto na cidade quanto no campo. No decorrer de nossa história, o que você produzia no campo, em termos de custo, era vendido extre-mamente barato na cidade para que você pudesse pagar pouco ao operá-rio. Então, há um círculo vicioso: se produz, mas se paga pouco e com esse salário baixo você não pode consumir. Para você romper com isso, você tem que criar mecanismos como renda, emprego e terra para que, em um país

rico feito o nosso, não exista mais este número tão grande de excluídos.

Jornal da UFRJ: A senhora colocou a questão de que tipo de desenvolvimento o país deve buscar, um embate travado no próprio governo. Afinal, porque não con-seguimos priorizar medidas necessárias, por exemplo, como a reforma agrária?

Anna Maria de Castro: São séculos de colonização e, in-felizmente, existem forças poderosas na sociedade que não permitem mudan-ças e afirmam que estejam no caminho certo. Alguns acre-ditam mesmo nis-so e outros afirmam suas posições num país no qual a ter-ra sempre foi objeto escasso e pertenceu a poucos. A concen-tração de renda ainda prevalece. Apesar da camada mais pobre subir, pelos últimos dados, se tornando “classe média”, não se diminuiu a acu-mulação na faixa da riqueza. O mesmo acontece em outros países da América Latina. Josué de Castro, nos anos 1950, teve um debate com Celso Furtado que resultou no artigo Dilema brasileiro: pão ou aço? Josué não acreditava que através da industrialização, então pretendida pela SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), se so-lucionaria automaticamente a fome no Nordeste. Quando reeditou Geografia da fome, incorporou esse dilema ao subtítulo do livro. Sua opção sempre foi pelo pão e, mais adiante, ampliou este conceito para criticar as guerras reali-

zadas pelo mundo, em detrimento da solução do problema do pão.

Jornal da UFRJ: É preciso paciência histórica?

Anna Maria de Castro: A mudança para alguns é pela revolução. Para ou-tros, como Josué de Castro, é deixando nascer e crescer mais brasileiros. Ele dizia que para cada boca, dois braços, e vamos

construir. A revolu-ção dele se faria con-tando cabeças e não cortando cabeças, posicionamento con-trário a uma política malthusiana (teoria populacional que defende o controle da natalidade) que hoje volta. Agora, quando se pergun-ta para alguns dos nossos intelectuais como vamos resol-ver o problema, res-pondem que é não deixando o pobre nascer. Continua-se criminalizando o pobre que estaria nesta condição, ten-

do filhos e não se esforçando, semelhante-mente ao século passado, quando os ditos indolentes eram os que não pertenciam à raça ou a elite dirigente do país. Josué costumava se referir a Jawaharlal Nehru (primeiro-ministro indiano entre 1947 e 1964, logo após a independência ao império britânico), quando aquele refletia que o novo, em sua nação, não era a miséria, mas a consciência do povo hindu acerca das causas que a provocaram. As coisas somente irão mudar no dia em que todos tiverem a noção histórica dos motivos que geram a fome e a miséria no Brasil.

Jornal da UFRJ: Apesar de improvável, o fim dos subsídios agrícolas para os agri-cultores dos países do chamado primeiro mundo poderia acentuar ainda mais o modelo exportador, com a abertura de novos mercados para os produtos brasi-leiros?

Anna Maria de Castro: Quando a gente contesta este subsídio europeu, acabamos esquecendo que nós também fazemos isso, seja através de institutos próprios ou de financiamentos do Banco do Brasil. Recentemente, assisti a uma reportagem mostrando que a França, por exemplo, prefere pagar para deter-minados plantadores continuarem em suas áreas de trabalho. Eles fazem isso, porque já se levantou que o custo de uma possível migração, deste homem do campo à cidade, será muito mais caro ao Estado. Então, torna-se preferível pagar por esta fixação. Nas estruturas de determinados países os subsídios podem ter uma razão social para o andamento dessas sociedades. Não adianta somente o discurso, até porque a nossa economia financia, e sempre financiou, freqüente-mente, o álcool, o açúcar, a soja e outras safras. Talvez, não se faça o mesmo com a mandioca e outros produtos mais populares.

Jornal da UFRJ: O Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem Terra (MST), além de exigir a reforma agrária, aponta suas críticas ao agro-negócio que intensifica sua produção na base de agrotóxicos e transgênicos. Os efeitos destas substân-cias e da manipulação genética à saúde humana não precisam voltar à pauta da agenda pública?

Anna Maria de Castro: É um problema de segurança alimentar. O uso desses insumos prejudica a saúde, do mesmo modo que remédios que, enquanto continuam aceitos aqui, no exterior já

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16 Entrevista

foram condenados e banidos há tempos. É um tema que precisa de mais atenção e presença. O MST vem denunciando, principalmente no sul do país, o desen-volvimento destas plantations baseadas em sementes geneticamente modifica-das. Inicialmente, elas estavam proibidas, porém, já estavam introduzidas aqui no Brasil. A conseqüência é que se paga royalties e o alimento fica mais caro, pois, ao que parece, depois que se usa este tipo de semente é preciso continuar usando-a ad eternum.

Jornal da UFRJ: Qual é o impacto da regulamentação da Lei Orgânica de Se-gurança Alimentar e Nutricional?

Anna Maria de Castro: A alimentação passa a ser vista como um direito. A vantagem é que – na medida em que se transforma a alimentação como um direito de cada cidadão – não se pode mais atuar contrariamente na direção da satisfação desta necessidade que todo indivíduo precisa saciar. A lei representa uma mudança de como a sociedade pas-sa a encarar o problema da fome.

Jornal da UFRJ: Segundo a pesquisa “Repercussões do programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas”, a alimentação con-some 87% dos recursos recebidos por cerca de 12 milhões de famílias cadastradas no programa Bolsa Família (PBF). Dados

como estes, apontados pelo estudo recente do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) não deveriam ins-pirar a proteção fiscal dos produtos da cesta básica brasileira, que recentemente tiveram os preços elevados pela inflação?

Anna Maria de Castro: Os hábitos alimentares dos brasileiros não são idênticos. Então, torna-se um perigo o controle do preço da cesta básica. O salário-mínimo nacional, por exem-plo, tem um valor, porém se admite outros pisos regionais. O mais fácil seria o ensino de como se deve ali-mentar, além do aproveitamento de produtos poucos utilizados. Recordo, por exemplo, que Cecília Meirelles e Josué de Castro fizeram uma cartilha, A festa das letras (Nova Fronteira, 1996), na qual se indicava noções so-bre o valor nutricional dos alimentos. Atualmente, conheço poucas inicia-tivas neste sentido. A gente ignora e segue-se em frente, enquanto isso o número de obesos vai crescendo. A obesidade também é uma doença decorrente da fome, pois nasce na forma como você a sacia.

Jornal da UFRJ: De acordo com o mes-mo estudo do Ibase, entre as mudanças no consumo alimentar após o PBF está o aumento da ingestão de açúcar, que representa 78% dos principais alimentos consumidos pelas famílias…

Anna Maria de Castro: Para modificar o hábito é preciso educação, além de outras medidas como a informação dos males provocados pelo excesso de açúcar, de sal e a alteração do modo de produção com a menor utilização destes ingredientes. Certa vez, quando trabalhava no Labora-tório Imaginário Social e Educação (Lise) da Faculdade de Educação da UFRJ, os meninos que trabalhavam conosco ga-nharam um dinheiro com o projeto que eles participavam. A primeira coisa que fizeram foi correr para o McDonalds. A gente não pode culpá-los, pois há uma indução da publicidade para tal comportamento. Precisamos ainda realizar uma desconstrução histórica e cultural. Quando estive no Nordeste, na década de 1970, para conhecer os centros de recuperação nutricional, iniciativa barata e que, infelizmente, não teve continuidade, levaram-me para um café da manhã na casa de um usineiro, com comida que não acaba mais. Ainda persiste este processo imitativo e este desejo de exibir fartura como símbolo de ascensão. A educa-ção, no fundo é o mais importante para se saber a quantidade necessária ao seu organismo.

Jornal da UFRJ: Ainda há fome no Brasil?

Anna Maria de Castro: Sim, ainda existe. Ela diminuiu e os programas conseguiram atingir uma camada que até então escondia sua fome. Inega-velmente houve uma melhora com o PBF, porém, com o valor pago pelo benefício ainda não se garante três refeições por dia, devido aos custos dos alimentos. Recentemente, a fome passou a ser um elemento de mobi-lização da sociedade. Ninguém gosta de falar que sente fome. O próprio Lula narra que, numa segunda-feira, almoçava com outros colegas operá-rios, observando que as marmitas dos outros tinham bife, coxa de frango etc. Como ele sabia que na dele somente havia arroz e feijão, preferiu dizer que ia almoçar mais tarde.

Jornal da UFRJ: É possível afirmar que a fome sempre existiu e, diante de passado tão perverso, é possível ter esperança de que esse mal ainda será erradicado?

Anna Maria de Castro: Sim à medida que se tome consciência da importân-cia da alimentação, a melhor vacina que pode existir. Nos últimos capítulos de Geografia da fome, “Por um mundo sem fome”, Josué relata que o antibi-ótico quando surgiu, sua produção era extremamente cara. Entretanto a sociedade percebeu que solucionava uma série de doenças e se resolveu fazer isso em larga escala, o que acabou diminuindo o preço. O mesmo pode acontecer com o alimento. São infinitas

as possibilidades de produção, com a ciência e a técnica, e desde que a terra não pertença a alguns poucos. Em sua idéia da abundância, Josué condena o controle da natalidade, porque bastava o desenvolvimento para que isso se equacionasse. Foi o que de fato acon-teceu no Brasil que tem hoje uma taxa reduzida. Para ele, perigo maior estava no envelhecimento. Com menos gente nascendo e morrendo, quem vai sus-tentar o país? A decisão é, sobretudo, política, a de que a população tem o direito a se alimentar bem com quan-tidade e qualidade.

Jornal da UFRJ: Ser filha de Josué de Castro ajudou ou atrapalhou em sua carreira acadêmica?

Anna Maria de Castro: Existe o pai que eu admirava e com quem aprendi a idéia da igualdade e a ver o mundo, seja apreciando a beleza ou entendendo os horrores de que os homens são capazes de fazer com a guerra e a destruição do próximo. Entretanto, vem 1964 (ano do golpe militar), ele parte para o exterior e eu fico no Brasil. Foram momentos duros para a família. Naquela época - acho que nunca disse isso - se conhecia mais Josué na universidade, pois muitos ali eram seus contemporâneos, mas citá-lo passou a ser complicado. Eu já estava na academia e mostrei a ele um trabalho. Ele pegou, olhou e entregou de volta. Apesar das análises dele estarem presentes no material, não o coloquei na bibliografia. Havia o embate entre a minha vontade de sobreviver e permanecer no Brasil e, ao mesmo tempo, saber que ele tinha ficado sentido. A influ-ência dele é permanente em mim. Josué procurou usar a ciência para interpretar um fenômeno social, mas ao lado disso trazia propostas como a merenda escolar, a iodização do sal, entre outras. Por outro lado, ele era uma pessoa autocrítica, no nosso último encontro, queixou-se de que não tinha feito nada.

Jornal da UFRJ: E a UFRJ de hoje?

Anna Maria de Castro: Na universidade, fiz amigos e inimigos, herdando de Josué o meu amor por ela e o prazer de estar com os alunos. Tenho orgulho de dizer que a UFRJ é a minha universidade e quero vê-la crescer com seus defeitos e qualidades para levar o conhecimento para onde se precisa, como no caso da construção do campus de Macaé. Ela está procurando, como na épo-ca do reitor Horácio Macedo (1985–1989), a linguagem e a relação entre professor, alu-no e a sociedade que ainda vê a academia como um castelo – pensamento, ainda, de alguns acadêmicos por acharem que a sa-bedoria deve ficar ali, guardada. Quando, na verdade, os programas em contato com a comunidade são mais ricos. Torço para que todos tenham orgulho de ser da UFRJ, acreditando sempre que a gente é capaz de mudar um pouco a história deste país.

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17Lazer

Nos finais de semana, com a movimentação de alunos e funcionários reduzida, a ilha da Cidade Universitária se destaca como área de prática de

esportes e lazer para a população carioca.

Muito prazer,

FundãoDe segunda à sexta-feira,

milhares de estudantes e funcionários circulam pela

ilha da Cidade Universitária (ou ilha do Fundão, como muitos a chamam) envolvidos na rotina das atividades desenvolvidas na UFRJ. Contudo, nos fins de semana e feriados, quando esta rotina desaparece, a ilha é ocupada por outro público e se transforma em uma grande área de lazer, principalmente para a população das comunidades do entor-no e dos bairros da Zona da Leopoldina. Cerca de cinco mil pessoas se dirigem à ilha em busca de espaços ao ar livre para a prática de esportes ou para um simples dolce far niente.

Segundo Hélio de Mattos, prefeito da UFRJ, a utilização da ilha como área de lazer vem se consolidando como um hábito entre as famílias. “Grande parte das pessoas que hoje traz seus filhos para brincar no Fundão vinha, há alguns anos, acompanhada por seus pais e avós. Tem sido um costume que atravessa gerações”, ressalta. Para o prefeito da UFRJ esta ocu-pação do campus acabou por integrá-lo à estrutura de parques públicos da cidade, como o Aterro do Flamengo.

Corrida, ciclismo, beisebol, vela, aeromodelismo, pesca, pipa, vôlei, tênis e basquete estão entre os esportes prefe-ridos pelos visitantes. Como não poderia ser diferente, a atividade mais praticada é o futebol, que ocupa os oito campos da ilha, e até os gramados das praças. Além da demanda da população, cresce grada-tivamente a procura por atletas, projetos comunitários e até clubes de futebol. De acordo com Hélio de Mattos, isso é possibilitado graças ao livre acesso de

Camilla Muniz e Natália Alves

pessoas ao Fundão nos fins de semana. “Como o fluxo de carros é controlado nesse período, cada vez mais o espaço se firma como área de lazer”, observa o prefeito.

Depois de uma grande reforma no asfaltamento do campus, a universidade tem abrigado, semanalmente, os treinos da Federação Carioca de Ciclismo. A existência de condições favoráveis à prá-tica do esporte rendeu à Cidade Univer-sitária a sede da segunda e terceira etapas do Campeonato Estadual de Ciclismo, ocorridas em abril e julho deste ano. Para este tipo de evento, a Prefeitura Universi-tária fornece suporte de segurança, além de iluminação e sinalização.

Há 30 anos praticado no campus do Fundão, o aeromodelismo atrai amantes do esporte para a ilha, inclusive professo-res, alunos e funcionários. Fundada em 2004, a Associação de Modelismo dos Amigos da UFRJ (AMA-UFRJ) possui o título de tricampeã em aeromodelismo de escala. Para Marcos Gusmão, arqui-teto da prefeitura, que também pratica a modalidade no campus, não há lugar melhor no Rio de Janeiro para a prática do esporte. “O fato de a Ilha do Fundão se localizar na saída das linhas Amarela e Vermelha, duas das principais vias expressas da cidade, constitui um fator determinante para o aeromodelismo”, afirma. Segundo Giuseppe Maiolino, presidente executivo da AMA-UFRJ, um dos objetivos da associação é desenvolver em conjunto com a universidade uma escolinha de aeromodelismo. “A idéia é interagir com a comunidade do entorno, ensinando como montar aeromodelos e fazer simulações de vôo”, explica.

Também presente no campus, a vela reúne as comunidades da academia e dos bairros vizinhos através de aulas práticas ministradas pelos estudantes do curso de Engenharia Naval e de atividades de extensão promovidas pela Escola Politécnica (POLI). Segundo Hélio de Mattos, a prática da vela favorece a integração de alunos oriundos de diversas unidades. “É comum ver estudantes de cursos da área de Hu-manas, como Pedagogia, freqüentando as aulas. Além disso, o esporte é uma opção para os alunos que residem no Alojamento e para as crianças da Vila Residencial que participam da escoli-nha de vela”, afirma.

A ocupação dos campina década de 1980

Embora hoje a ocupação dos campi da UFRJ, pela população, nos fins de semana, não seja organizada pela universidade, na década de 1980 foram desenvolvidos projetos espe-cialmente voltados para este objetivo. Em 1987, o campus da Praia Vermelha recebia a primeira edição do Festival de Inverno, evento que congregava

shows de música e cursos gratuitos ministrados por professores para a co-munidade extra-acadêmica. Segundo Isabel Azevedo, superintendente da Pró-Reitoria de Extensão (PR-5), a concepção do evento era desenvolver uma programação cultural multidisci-plinar através da qual a universidade pudesse mostrar à população sua produção de conhecimento. O sucesso alcançado pelas oficinas possibilitou a ampliação das atividades para outros pontos da cidade, como o Palácio Capanema, a Cinelândia e a ilha do Fundão, onde o Festival foi realizado pela primeira vez em 1988. “Além disso, aconteciam na Cidade Univer-sitária a Noite de Gafieira, o Festival de Pipa e a colônia de férias para crianças”, lembra a superintendente, destacando que promover a extensão é uma das tarefas da universidade. “Quanto mais a Academia se abre, mais a população quer participar”, conclui Isabel.

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18 Clima

Deus aindaé brasileiro?Em março de 2004, um ciclone

incomum, posteriormente chamado de Catarina, atingiu

a região Sul do Brasil com ventos de 150 km/h. Ruas e estradas foram interdita-das, árvores e postes derrubados, casas destelhadas e o fornecimento de energia para algumas cidades interrompido.

Esse é apenas um exemplo da série de fenômenos naturais que o país tem verificado nos últimos anos. Abalos sísmicos que deixam vítimas, chuvas com fortes deslizamentos de terra, perí-odos extensos de secas que destroem a vegetação. Para os mais assustados pode parecer que o Brasil está deixando de ser como na canção, um paraíso “abençoado por Deus e bonito por natureza” (“País tropical”, Jorge Ben Jor, 1969). São mui-tos os que acreditam também que esses eventos, pouco característicos do clima brasileiro, exprimem o aquecimento global provocado pelo homem, através

Ciclones, tremores de terra, chuvas cada vez mais

devastadoras, secas prolongadas. Até que ponto as mudanças

climáticas podem estar afetando o país “abençoado por Deus e

bonito por natureza”?

Aline Durães

da emissão de gases nocivos lançados na atmosfera.

Que a temperatura da Terra aumen-tou ninguém duvida. Nos últimos 100 anos, ela subiu, em média, 0,74 graus. De acordo com pesquisadores da UFRJ, entretanto, não existe qualquer trabalho acadêmico que comprove a influência do homem sobre esse aquecimento. “Ainda não sabemos se o aumento da temperatu-ra percebido hoje é um processo natural nas flutuações climáticas da Terra ou se é induzido pelo homem”, esclarece Nelson Fernandes, geógrafo e professor do De-partamento de Geografia do Instituto de Geociências (Igeo) da UFRJ.

Nesse sentido, outras associações são feitas erroneamente. Nem todos os fenô-menos naturais decorrem do aumento da temperatura global. Os terremotos verificados recentemente em algumas partes do Brasil, por exemplo, não pos-suem qualquer relação com o clima. Da

mesma forma, a atividade vulcânica não sofre influência das variações climáticas. Pelo contrário, erupções de alta intensida-de lançam na atmosfera partículas de poeira que, por um período determinado de tempo, reduzem a entrada de luz solar na superfície e diminuem a temperatura local.

A sensação de calor percebida pelos habitantes das metrópoles brasileiras também não provém das alterações climáticas. “O aumento do calor nas cidades é fruto da urbanização. O aquecimento global influencia os movimentos da atmosfera e os do oce-ano; com o aumento da temperatura, mais energia é disponibilizada para os sistemas atmosférico e oceânico, am-pliando a freqüência e a intensidade dos ventos, das tempestades, dos ciclones, dos furacões, das ondas de frio e de calor. Esse aquecimento, no entanto, é imperceptível a qual-quer pessoa”, explica Isimar Santos,

professor do Departamento de Mete-orologia do Igeo.

Segundo Isimar, ainda não há in-dicadores precisos que evidenciem os impactos do aquecimento global no clima brasileiro. Existem apenas pro-jeções possíveis dessas conseqüências. O quarto relatório do Painel Intergover-namental de Mudança Climática (IPCC, sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em abril do ano passado, traçou diferentes cenários do futuro do clima diante do aumento da temperatura da Terra. O mo-delo mais pessimista aponta uma alta de 6,1 graus Celsius ao longo do século XXI e prevê o fim de grande parte da Floresta Amazônica até 2080.

Essas simulações sofrem críticas seve-ras, porém. Alguns cientistas asseguram haver falhas nos modelos do IPCC e enfatizam que fatores externos desconsi-derados poderiam alterar as conclusões

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19Clima

dos relatórios. “O aquecimento global não é algo fácil de ser medido”, admite Isimar Santos que, apesar das críticas, confia nos prognósticos do IPCC.

O que pode acontecer?Certos impactos do aquecimento

global já são consenso entre os analistas. Um deles é a elevação dos índices de precipitação. Choverá mais, o que pode acarretar uma freqüência maior dos deslizamentos de terra. Eles, entretanto, não vão acontecer de forma homogênea em toda a extensão do país. Capitais como Florianópolis, Belo Horizonte, Vitória, Recife, Salvador e Rio de Janeiro, que já enfrentam problemas de erosão e movimentos de massa, serão as mais afetadas.

De acordo com Nelson Fernandes, isso vai ocasionar um número maior de mortes e gerar conseqüências econô-micas e dificuldades estratégicas. “Um deslizamento na BR 101, em Angra, por exemplo, poderia se constituir em um problema estratégico, na medida em que dificultaria ou até mesmo impediria a fuga de pessoas depois de um acidente na usina nuclear”, ressalta o pesquisador.

Nelson lembra ainda que o acrésci-mo na pluviosidade afetará os rios. Com mais chuvas, estes receberão um volume extra de água e, conseqüentemente, precisarão alargar seus vales. Haverá erosão fluvial, e as populações que ocupam as margens serão diretamente prejudicadas.

É possível que esses impactos somente sejam sentidos em um espaço de décadas, mas, para Nelson Fernandes, as medi-das preventivas devem ser tomadas o quanto antes. “O nível de investimentos em análises de previsão de áreas de risco ainda é muito pequeno. Temos estudos corretivos realizados quando acontece alguma catástrofe, mas nos preocupamos pouco em evitar esses acidentes. Acredito que os deslizamentos terão que acontecer primeiro, os incômodos terão que ser sen-

tidos para, assim, começar o investimento na prevenção”, avalia o geógrafo.Impactos na vegetação e falta de alimentos

A desertificação também pode ser uma das conseqüências do aquecimento da Terra. As secas seriam mais duradouras e teriam efeitos diretos sobre a vegetação. Isimar Santos explica que as plantas são muito sensíveis às alterações climáticas: elas se adaptam menos às mudanças do que os animais.

Para o professor, a diminuição da vegetação afetaria a produção de ali-mentos, agravando a fome no mundo: “o maior impacto das mudanças climáticas não são, necessariamente, furacões mais destruidores ou ciclones mais freqüentes. É claro que eles acarretarão prejuízos, mas o ser humano tem uma capacidade muito grande de se adaptar a esses even-tos. O problema é a vida vegetal, porque ela implica a produção de alimentos e, considerando o tamanho da população mundial atual, uma produção de alimen-tos em menor escala poderá causar danos irreparáveis”.

Isimar prevê também que a busca por alimentos ocasionará problemas nas fronteiras dos países desenvolvidos. “O mundo não tem capacidade de produzir alimentos para todos. Basta ver o número de pessoas que passam fome para chegar a essa conclusão. Elas vão querer chegar aonde tem alimen-tos, ou seja, vão forçar a entrada nos países ricos que, com certeza, terão mais defesas para lidar com a crise”, observa o pesquisador, citando um estudo encomendado pelo Pentágono que comprovou que um dos principais problemas estratégicos a ser enfrenta-do pelos Estados Unidos da América com o aumento do aquecimento global será a imigração de contingentes hu-manos vindos do México, o que levou o país a tomar medidas para intensificar o controle de suas fronteiras.

Assim como Nelson, Isimar também é cético quanto à possibilidade de o homem adotar métodos preventivos às conse-qüências do aquecimento. A poluição da atmosfera se dá através da emissão de dois tipos distintos de gases, o gás carbônico (CO2) e o metano (CH4). O metano é libe-rado tanto pelos lixões como pela atividade bovina e pela produção de arroz. Na opinião de Isimar Santos, diante da importância dessas atividades na economia, fica difícil acreditar que os países vão se comprometer em modificar ou reduzir as emissões. “Não acredito que as taxas serão reduzidas. A postura dos EUA é clara em relação a isso. Mesmo que haja uma mudança política e os democratas cheguem ao poder, as pressões da economia continuarão fortes. Além disso, temos países emergentes com populações grandes, como a China, por exemplo, que vêm se destacando em função da produção de material industrializado. Essas nações não vão querer reduzir a produção industrial”, aponta Isimar.

Lucros do aquecimentoEngana-se quem pensa que o aqueci-

mento global será recebido da mesma forma por todas as regiões do planeta. Também está equivocado quem pensa que o aumento de temperatura da terra trará apenas tragédias naturais e prejuízos econômicos. Isso porque se vislumbra para alguns países a possibilida-de de obter lucros por conta das alterações climáticas. E o Brasil é um deles.

Por ter considerável capacidade de pro-dução de alimentos e reservas de água potá-vel, o Brasil poderá comercializar esses bens com nações que estejam com suas economias abaladas por conta do aumento da tempera-tura da Terra. “Nossas reservas naturais de água, por exemplo, nos atendem plenamente há 500 anos e poderiam atender a outros países também. Basta que encontremos meios de transportar essa água. Podemos sim lucrar com a crise mundial, já que o Brasil terá o que os outros países preci-sam”, expõe Isimar Santos.

Segundo Isimar Santos, “ainda não há indicadores precisos que evidenciem os impactos do aquecimento global no clima brasileiro”.

“Ainda não sabemos se o aumento da temperatura é induzido pelo homem”, afirma Nelson Fernandes.

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20 Imigração

Bruno Franco

Culturasem trânsito

O processo de imigra-ção de japoneses para o Brasil começa em 1908,

quando atraca no porto de Santos, no estado de São Paulo, o navio Kasato Maru, trazendo a bordo 781 pessoas. A imigração de japoneses e chineses já tinha sido autorizada e regulamentada pelo Decreto-lei nº 97, de 5 de outubro de 1892. A chegada dos novos mi-grantes somente não aconteceu antes devido à queda da cotação internacio-nal do café.

No Brasil, a expansão da lavoura cafeeira trazia a necessidade de con-tratação de mão-de-obra. Com o fim do tráfico negreiro, e posteriormente a abolição da escravatura, a solução encontrada foi o estímulo à importa-ção de trabalhadores migrantes – em um primeiro momento, europeus, sobretudo italianos –, com subsídios do Governo Federal e do estado de São Paulo.

O Japão, por sua vez, vivia uma crise demográfica. O êxodo rural satu-rava as suas cidades, que não atendiam novas demandas por emprego. A saída que o governo japonês encontrou foi o estímulo à imigração, que além do Brasil contemplou, sobremaneira, os Estados Unidos da América e o Peru, países nos quais se formaram grandes colônias nikkei, como são chamados os descendentes de japoneses, englo-bando nissei, sansei e yonsei, respec-tivamente filhos, netos e bisnetos dos imigrantes.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o alinhamento do Brasil aos aliados anglo-americanos, a imigração japonesa arrefeceu e estrangeiros oriundos das potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e seus des-cendentes, passaram a sofrer discri-minação. O Governo Federal decretou o fechamento das escolas estrangeiras. As publicações japonesas, escritas no idioma dos imigrantes, tiveram cir-

No ano do centenário da imigração japonesa no Brasil, pesquisadores apontam a contribuição dos imigrantes no desenvolvimento das sociedades hóspedes e as possibilidades de se compor e recompor identidades.

culação proibida. “Houve incidentes relacionados à Segunda Guerra, inclu-sive alguns casos de violência policial ou social; mas se deve lembrar que alemães e italianos também sofreram hostilidade e violência por parte da sociedade brasileira da época”, infor-ma Mohammed El Hajji, professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura, da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ.

Para Hajji, o percurso migra-tório da comu-nidade nipônica no Brasil, em sua essência, não foi muito diferente de outros per-cursos da mesma comunidade em outros lugares do mundo. Os japo-neses acalenta-ram o sonho de retornar à pátria-mãe, o que não é especificidade dos migrantes nipôni-cos, mas algo comum no fenômeno migratório. “Nenhum grupo migra com a vontade e o projeto declarados de deixar de vez a sua terra de origem. O que, de outro lado, implica na ma-nutenção de laços afetivos (de lealda-de, identificação e reconhecimento) para com a comunidade de origem”, afirma o professor.

Os japoneses (da mesma forma que vários outros grupos migrantes) cultivaram, durante muito tempo, a fantasia do retorno iminente à pátria mãe. Afora as grandes diferenças cul-turais que tinham em relação aos bra-sileiros, os recém-chegados encaravam as duras condições de trabalho impos-tas aos imigrantes, que lhes forçavam a extenuantes jornadas diárias, para que pudessem pagar as dívidas relativas ao custeio da viagem e à subsistência nas fazendas de café.

Identidade cultural dos descendentes

A rotulagem de imigrantes como nipo-brasileiros ou ítalo-brasileiros (ou demais variações de prefixos) faz parte do ideário multiculturalista nor-te-americano, sendo chamada na obra de autores como Jeffrey Lesser, histo-riador estadunidense, de “identidade hifenizada”. De acordo com Moham-med El Hajji, essa é uma visão de mun-

do que essencializa as diferenças e segmenta o sujeito social, ob-jetivando enquadrar as identidades sociais em grupos culturais estáticos e claramente definidos. Ainda que o conceito não seja equivocado e sugi-ra o pertencimento a duas culturas distintas, “o hífen traduziria a enunciação acabada e

definitiva da formulação identitária do grupo em questão ou a sua única con-jugação possível”.

Assim, há espaço para reformu-lação desse conceito. É o que faz El Hajji, buscando conferir ao hífen um sentido de pluripertencimento, de possibilidade de trânsito entre as di-versas camadas e regiões da paisagem cultural e identitária da arena nacional. “Procuro desenvolver uma perspectiva que fuja do determinismo categorial multiculturalista e o substitua por uma visão intercultural; a partir de um ângulo que valorize as semelhanças, ressalte o comum ao humano e indique os caminhos de troca e interpenetração entre as diferentes expressões culturais do homem. Nesse sentido, o hífen sig-nificaria não apenas a duplicidade ou multiplicidade das facetas identitárias do sujeito oriundo da imigração, mas a própria natureza dialógica da cultura humana”, esclarece o pesquisador.

EstereótiposOs nikkei são estereotipados e alvo

de preconceitos, tal como ocorre com qualquer segmento social minoritário. Em palestra proferida, no Fórum de Ci-ência e Cultura (FCC) da UFRJ, dia 4 de agosto, à ocasião do lançamento de seu livro Uma diáspora descontente: cinema, militância política e identidade étnica no Brasil (Paz e Terra, 2008), Jeffrey Lesser, professor da Emory University (Atlanta, EUA), destacou alguns lugares-comuns que observou em suas pesquisas com nipo-brasileiros que militaram politica-mente ou atuaram no cinema de porno-chanchada nos anos 1970.

A indústria cinematográfica buscava um modelo perfeito do que imaginava ser o comportamento oriental ao contratar nikkei. Nas moças, imaginavam a filha e a esposa submissa, ao mesmo passo que conservando a sensualidade de gueixa. Nos homens, via-se um caráter asse-xuado, o marido traído e a tendência à violência.

No entanto, o trabalho dos cineastas foi difícil, pois os nikkei selecionados já estavam bem integrados ao tecido social brasileiro. “Esses não se com-portavam como o esperado, não agiam como japoneses. Eles se comportavam como brasileiros”, diverte-se Lesser.

A identificação do migrante e do descendente com sua pátria originária tem a ver com o que Hajji, em suas pes-quisas, chama de “catalisador externo”. “As etnias oriundas do processo de imigração tendem a valorizar seu pertencimento de origem proporcionalmente ao valor desse referencial de origem na ‘Bolsa de Valores Simbólicos’. Sendo que essa Bolsa em questão é subtendida pelo imaginário nacional-global acerca do valor simbólico dos povos e nações do mundo”, explica o professor.

Alguns estereótipos como o do rigor metódico e da inteligência são positivos. E se baseiam em dados reais. Reportagem recente do jornal Folha de São Paulo,

“A maior riqueza da cultura humana

é, justamente, a possibilidade de

compor e recompor sua identidade, reconfigurar seu

modo de estar-no-mundo...”

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21Imigração

Culturasem trânsito

feita pelo jornalista Antônio Góis, revelou que o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da colônia de brasileiros des-cendentes de japoneses (bem como de coreanos e chineses) é semelhante ao do Japão, ou seja, muito melhor do que a média dos cidadãos brasileiros.

A mesma reportagem – na qual Marcelo Paixão, professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ revela que os judeus brasileiros também demonstram alto IDH a exemplo dos nikkei – desa-credita que isso se deva a uma hipotética superioridade étnica. A avaliação feita é de que a combinação da valorização do saber com capital social dá resultados, em maior ou menor grau, em todos os lugares, independentemente do credo, da raça e da nacionalidade.

Hajji concorda com esse entendimen-to de que o sucesso desses grupos possa ser explicado, em parte, pela tradição familiar e a valorização dos estudos: “mas se pode constatar, também, que houve uma alta do capital étnico dessas duas comunidades. Alta que se deve, em parte, ao catalisador externo. No caso, o sucesso econômico, político e até militar do Japão ou de Israel”.

Fórum de imigraçãoDa constatação da necessidade de

mapeamento das comunidades étnicas presentes no Brasil, mais especificamente no estado do Rio de Janeiro, surgiu o Fó-rum de Imigração 2008-2009, organizado pelo Programa de Educação Tutorial (PET) da ECO-UFRJ, coordenado por Mohammed El Hajji. Com o objetivo de realizar “não um mapeamento descritivo, formal, impessoal, estatístico ou quanti-tativo, mas sim uma cartografia sensível na qual o sujeito estudado toma a palavra, ele mesmo se diz na sua própria lingua-gem e seu próprio linguajar” – explica o professor.

Segundo Hajji – ele mesmo de origem estrangeira, berbere (que chamam a si próprios Imazighen, ou seja, “homens li-

vres”, são um conjunto de povos do Norte de África que falam línguas berberes, da família de línguas afro-asiáticas) – o Brasil carecia de instrumentos científicos para a compreensão da imigração, fenômeno que é um dos maiores fatores de mudança social, cultural e política no mundo.

Para ele, a humanidade sempre foi migrante e sempre o será. “Do mesmo modo que temos centenas de milhares de brasileiros fora do país, há bolivia-nos, peruanos, colombianos, argenti-nos, guianenses, coreanos, chineses, árabes, africanos e outros que migram pra cá”, afirma o pesquisador.

A despeito do que possam apregoar os xenófobos, Mohammed El Hajji afir-ma, categoricamente, que a imigração sempre foi um fator de crescimento: “no Brasil, nos Estados Unidos ou na Euro-pa, a contribuição dos imi-grantes ao desenvolvimento das sociedades hóspedes é cada vez mais quantificada”.

Para Hajji, o significado do hífen em identidades étnicas como a dos nipo-brasileiros é de que “a maior riqueza da cultura humana é, justamente, a possi-bilidade de compor e recompor sua identidade, reconfigurar seu modo de estar-no-mundo e re-elaborar seu modo de vida toda vez que é pre-ciso”.

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22 Literatura

Rodrigo Ricardo

Era uma vez...

Se o nariz crescer até o fim deste texto, não se assuste. Basta uma pitada de pirlimpimpim

para tudo voltar ao normal e alcançar o caminho do sítio, onde sabugo de milho explica ciência, ou em outro lugar da imaginação. Pode parecer conto da ca-rochinha, mas a literatura de Pinóquio, Emília, Alice e tantos clássicos persona-gens ainda luta para ser levada a sério pelo cânone acadêmico. Enquanto isso, outros textos destinados a crianças e jovens seguem ocupando seu espaço. Por ano, pelas estatísticas da Câmara Brasileira do Livro, aproximadamente cinco mil títulos são lançados nas prateleiras do Brasil e a vendagem alcança quase 20 milhões de exemplares. O negócio de gente grande tanto pode atrair novos talentos quanto cercear vôos mais criativos dos autores, por conta da tendência editorial por aventuras de maior apelo comercial. Po-rém, não se precisa ir ao centro da Terra, para a percepção de que o nó da leitura encontra-se nos primeiros encontros do leitor com o livro. Vítimas de mestres, que impõem a literatura como mais uma disciplina, os alunos acabam ente-diados e indiferentes às possibilidades e ao prazer de se viajar pelo reino mágico das palavras.

“É preciso oferecer uma formação diferente aos professores, com outra visão acerca da educação e das possibili-dades da literatura que, no fundo, integra todas as matérias. Enfim, trata-se de uma estratégia de saber, uma proposta de levar conhecimento”, defende Rosa Gens, professora de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ. A docente, que pertence a um grupo na universidade especialmente dedicado à literatura infantil e juvenil, analisa que a criança somente consegue lidar com o real ao trabalhar com a fantasia. “Ela anda em baixa, porque as religiões não têm permitido, em algumas escolas, que a fantasia se coloque de modo pleno. Este universo também vem sendo tolhido pelo politicamente correto”, reclama a professora.

A abordagem de temas como etnia e diversidade sexual costuma provocar balbúrdia e forte reação da “caretice” conservadora. Nos Estados Unidos, o livro King & King (Tricycle Press, 2002) provocou um enxame de ações judiciais, requerendo a censura da obra de duas holandesas, Linda De Haan e Stern Niland. A publicação narra as desventuras de um príncipe que rejeita o amor de inúmeras princesas até se apaixonar por outro príncipe. Sem fugir

Fatia considerável do mercado editorial, a Literatura Infantil ainda aguarda respeito acadêmico e concepção pedagógica que transforme o livro em lição de prazer.

à regra do feliz para sempre, os nobres se casam e selam a união com um beijo.

Apesar de desconhecer a específica celeuma em torno deste livro, Rosa Gens alerta que não deve haver questões proi-bidas para os educadores, que precisam ater-se à qualidade dos textos. “Qualquer assunto pode ser abordado, o ponto não é a homossexualidade, mas a possibilidade do amor e de se amar qualquer pessoa, independentemente de barreiras. Neste tempo múltiplo, os amores também são assim”, afirma Rosa, analisando que há narrativas que acabam por mexer com papéis e estruturas cristalizadas na so-ciedade: “todo o mundo gostaria de ser princesa e encontrar o príncipe, vende-se aí o conceito de beleza, além de outros”.

Segundo a Associação Norte-ameri-cana de Bibliotecas, King & King esteve entre os mais pedidos na lista das obras que os estadunidenses queriam ver retiradas das bibliotecas. Mesmo assim, somente nos EUA, 15 mil exemplares foram vendidos. Em terras tropicais, publicações que ousam deslocar ar-quétipos também sofrem resistência. Em 1999, atendendo a uma coleção polêmica da Editora Scipione, a es-critora Anna Claudia Ramos escreve sobre o relacionamento entre duas meninas: Nem sempre por perto. “Passei por uma inquisição e quase fui escorraçada. Os pais achavam que estava induzindo os filhos e a editora recebeu várias cartas afirmando que o livro era ótimo, mas que não iam adotar. Engraçado, será que Agatha Cristhie ao falar de mortes, incentiva as

pessoas a se tornarem assassinas”, indaga Anna, que relançou a obra, em 2005, pela Cortez Editora.

Autora de 38 livros de literatura in-fantil e juvenil, Anna estréia nesta senda com Pra onde vão os dias que passam (Ao Livro Técnico, 1992), título inspirado em uma pergunta inusitada de uma criança. O livro, publicado até na Bulgária, hoje se encontra sem editora no Brasil. ”Falta certa coragem editorial que ainda crê que o jovem não gosta de temáticas mais profundas e poéticas, optando por investir em aventuras de ação. Quanto ao processo de criação é algo singular. A gente não sabe direito o início e cada livro acontece de um jeito. Não comecei a escrever por conta de ter filhos, mas, claro, eles são um laboratório de idéias fantásticas”, avalia a escritora, que é mestra em Ciência da Literatura pela FL-UFRJ.

Reconhecimento internacional Mais do que quantidade, a literatura

brasileira deste gênero vem produzindo qualidade. Atravessando fronteiras, o talento verde-amarelo há tempos segue conquistan-do reconhecimento internacional. Por duas vezes o Nobel das letras infantil e juvenil veio parar no Brasil, com a premiação do Hans Christian Andersen às escritoras Lygia Bo-junga Nunes (1982) e Ana Maria Machado (2000). Esta trajetória de sucesso deve-se ao precursor Monteiro Lobato, que resgatou em sua obra figuras e enredos da mitologia indígena e negra. Desde o lançamento de O saci (1921), elementos da cultura popular passaram a ser uma marca na pena dos criadores do país.

Rosa Gens explica que este tipo de literatura está presente aqui desde 1890, mas até então se vivia uma fase de aclimatação dos textos da Europa: “era basicamente para a condução de com-portamentos. As histórias são de moral bem explícita, mostrando, por exemplo, que quem maltrata animais vai se dar mal. Enfim, são escritas do adulto para domesticar a criança. Lobato vai trabalhar e valorizar o universo infantil”.

O pai de Narizinho arrebitado (1920), mais do que deixar um legado para gera-ções de escritores, torna-se um pioneiro ao distribuir a sua cota de autor (500 exemplares) deste seu primeiro livro aos alunos de escolas paulistas. Ao perceber que a criançada havia adorado o presente, o então governador de São Paulo, Wa-shington Luís (1920–1924), municiou a rede escolar do estado com a obra sobre a neta de Dona Benta. “Mesmo não sendo tão lido como antigamente, não há crian-ça que não conheça o Sítio do Pica-pau Amarelo do discurso televisivo. A litera-tura não é somente livro e pode se lê-la no computador, nos jogos e em outros elementos narrativos”, enumera Rosa.

Parte do gigantismo dos números deste nicho editorial explica-se pelo incentivo do poder público. Atualmen-te, o governo é o maior comprador de livros pelo interesse em usá-los como incremento à educação. As compras são orientadas por comissões e rankings como o da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), que acaba de completar 40 anos. Entretanto, muitas vezes, as crianças não sentem vontade de

Para Anna Claudia Ramos, “falta certa coragem editorial que ainda crê que o jovem não gosta de temáticas mais profundas e poéticas.”

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23Literatura

pegar os livros, que ficam em um canto, escondidos numa sala de leitura, ou pior, trancados no armário do colégio para não rasgar ou sujar. ”O sonho não cabe no pacote avaliação escolar. Não adianta tratá-lo como obrigação, prova, porque aí não vai se formar leitor” critica Anna Claudia Ramos, que também preside a Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil. “Brigamos para que o Ministério da Educação viesse nos ouvir e conseguimos constituir um fórum, que recomenda que a cadeira Literatura Infantil e Juvenil seja oferecida nos cursos de Letras e Pedagogia”, informa a autora.

Na Letras, desde 1988, há um curso de especialização, com 360 horas e oito mó-dulos, em Literatura Infantil e Juvenil. O curso foi fundado pela falecida professora Glória Pondé, do Departamento de Letras Vernáculas, que hoje batiza a sala do gru-po dedicado ao tema na universidade.

Rosa Gens pontua que poucas facul-dades oferecem esta matéria na gradua-ção. “Aqui, na última reforma curricular, incluiu-se a literatura para crianças e jovens no rol das disciplinas eletivas. Há um interesse enorme dos alunos, que têm um perfil diferente do passado. Mesmo assim, ainda há certo precon-ceito na academia, sendo vista como uma literatura menor, porém, não de uma maneira tão forte quanto era há dez anos”, lembra Rosa, enfatizando que apesar de situada a um público possível, não se restringe apenas àquele: ”é possível leituras de Alice no país da maravilhas (Lewis Carrol, 1865) aos dez, 20, 30 anos”.

Em 2005, quando a escritora Anna Claudia retorna à academia para o mes-trado na UFRJ, uma docente, em sua primeira aula, lhe disse que a literatura infantil e juvenil não suportava uma reflexão teórica e que, talvez, apenas a obra de Monteiro Lobato pudesse. “Res-pondi que ela não tinha propriedade para falar aquilo e, de certa forma, quis provar na dissertação o absurdo deste pensamento”, recorda a escritora, que acabou por redigir A estética do imagi-nário, trabalho que origina o livro Nos bastidores do imaginário (DCL, 2006). “Fiz um recorte sobre quatro livros da Ana Maria Machado. No dia da defesa, ouvi da professora Rosa Gens, que, pela primeira vez, ela tinha lido uma dissertação que não começa pedindo licença para falar de literatura infantil”, lembra a autora.

Se no meio universitário, a literatura infantil e juvenil caminha para superar a síndrome de gata borralheira, uma nação de leitores, na qual livros sejam devorados e saboreados, ainda segue como horizonte a ser perseguido. “Sou otimista, o livro um dia será prioridade e parte da cesta básica da população. Os professores vão perder o medo de trabalhar com ele e todas as escolas terão bibliotecas animadas e com pessoas que amem o livro para atuarem como mediadores”, torce Anna.

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24 Setembro 2008Arte

Assim é se lhe parece...

Vanessa Sol

A ilustração é um recurso pictórico amplamente utilizado na literatura infantil e juvenil. Em determinados momentos, ela assume papel mais importante que o próprio texto. Isso acontece porque a

ilustração cria um mundo imaginário, de sonho, no qual é possível explicar, acrescentar informação, fazer pensar e refletir, além de estimular a criati-vidade. Atualmente, no mercado editorial, ela é considerada como um ele-mento de transcendência por fugir de sua função tradicional. Ela torna-se independente.

“A ilustração precisa ser inteligente para fazer os pequeninos viajarem no mundo da imaginação, e o que uma criança mais detesta é ser tratada como criança”, declara Rui de Oliveira, professor da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ e importante ilustrador de histórias infantis.

Segundo Oliveira, atualmente a relação texto e imagem mudou. No passado, privilegiava-se o texto em detrimento da imagem. Hoje, com a modificação desse panorama, já faz parte da reali-dade do mercado editorial livros somente com imagens. Outro modelo também muito utilizado é o livro legenda ou picture book, como também é conhecido, que tem grandes imagens e pequenos textos.

“O que podemos perceber é que na literatura infantil e juvenil não há concorrência entre texto e imagem. São duas sintaxes dife-rentes. Não há como compará-los. A palavra é a alma e a ilustração é o corpo. Uma não vive sem a outra. Uma criança quando lê uma imagem está exercitando a literatura também. A palavra não é a única coisa que pode ser lida. Há outros tipos de leitura”, destaca o ilustrador.

Rui de Oliveira, ao longo de sua trajetória, ilustrou mais de 100 livros e projetou mais de 400 capas para as principais editoras brasileiras de literatura infanto-juvenil. Além disso, publicou vários livros de imagens com os quais foi possível exercitar a li-teratura. Na opinião dele, o livro de imagens permite uma leitura holística, mais ampla do que a leitura de um texto. “O livro de imagens permite uma pessoalidade maior e uma individualidade de leitura diferente do que um texto unicamente literário, porque é possível fazer a própria história”, declara o artista.

“Esse é um modelo de livro mais participativo porque pode, inclusive, focar melhor a faixa etária”, acredita. Desta maneira, a criança passa a ter “um olhar mais inusitado, mais descompromissado e menos precon-ceituoso que o adulto para a imagem”, explica Oliveira.

O professor destaca também que os dados culturais, históricos e fami-liares devem ser levados em consideração quando o assunto é ilustração porque o simbolismo nem sempre é o mesmo para diferentes povos.

“O que para uma criança africana é extremamente simbólico, para um menino do litoral costeiro pode não ser”, afirma. Oliveira ressalta que as leituras das imagens dependem muito do tipo de público com o qual se trabalha, mudando de um gênero para outro e de uma faixa etária para outra. Para ele, o grande desafio da ilustração é a universalidade.

“Para trabalhar com esta questão, vale em primeiro lugar o discer-nimento do ilustrador. Não temos como saber como uma criança vai interpretar determinada imagem. Aliás, é salutar que seja assim”, afirma o artista.

Uma das questões que ele propõe em sua recente obra teórica, Pelo jardim de Boboli (Nova Fronteira, 2008), é como uma criança lê um livro, ou melhor, o objeto livro, evento que acontece de maneira amplamente

variada.

ImagemAo falar do processo de cons-

trução do pensamento, Rui afirma que este é formado por imagens, e, portanto, tudo que existe inter-na e externamente a nossa mente é uma imagem. “Nesse particular, a imagem tem uma preponderân-cia, até porque a criança vê antes de aprender a ler. Então, toda leitura do mundo que alguém tem, vem de códigos que a pessoa vai aprendendo através do olhar. Nesse aspecto, a imagem tem mais relevância na vida das pes-soas”, argumenta o ilustrador.

Oliveira destaca, no entanto, que a palavra também pode ser início de tudo e explica que todo livro que ilustra, é necessário primeiro escrever o que será feito. Mesmo acreditando no valor de seu trabalho, Oliveira vê na arte de ilustrar uma dádiva, sem que isto tenha qualquer conotação mística. Para ele, é um privilé-gio ilustrar para crianças. E esse privilégio vem da bela memória que as crianças guardam ao ter contato com suas ilustrações.

“Quando uma criança tem contato com o meu trabalho, guarda lembranças belas . As

pessoas vêm me dizer que fiz a infância delas. Se eu tive ou tenho algum papel, acho que o valor fundamental dele é formar a memória bela. Eu detesto a grosseria e a agressividade nos desenhos e na ilustração. A criança espera que o ilustrador seja um artista”, ressalta Rui.

Apesar do pouco contato com crianças, ele afirma saber do que elas gostam: os detalhes. “Existe o imaginário de um passado imemorial que a criança supostamente vive que é a imagem dos clássicos. A criança gosta muito disso. No meu livro, eu afirmo que a ilustração tem uma imantação mágica. Se a ilustração tem um ritmo poético, certamente ela terá sucesso. Ilustrador é um pintor da palavra”, finaliza Rui de Oliveira, que, atualmente, está ilustrando um livro sobre três artistas negros brasileiros do século XIX e XVII.

Inspiração Com mais de 30 anos dedicados a ilustrar para crianças, o professor afirma

que sua inspiração veio do próprio gosto pela leitura. Em sua nova fase, Rui de Oliveira pretende ilustrar somente livros com textos de sua autoria. “O que me trouxe à ilustração foi, em primeiro lugar, a paixão pelo desenho. Em segundo lugar, a leitura”, ressalta o artista, cujo trabalho é reconhecido nacional e inter-

nacionalmente, com livros publicados em diversos países.

Na visão de Oliveira, a gravura propicia ao ilustrador todos os elementos con-ceituais, artesanais, expressivos e lingüísticos que necessita. A ilustração se ori-ginou da xilogravura e, posteriormente, das iluminuras através da pintura em

têmpera. “Essas são também duas grandes fontes referenciais do ilustrador. São os dois nascedouros da ilustração. Elas são também as duas grandes influências

no meu trabalho, até porque faz parte da história da ilustração”, ressalta.

Prêmios Rui de Oliveira recebeu 18 prêmios de ilustração no Brasil e no exterior. Suas

ilustrações e adaptação da obra A Tempestade de William Shakespeare, pu-blicado pela Companhia das Letrinhas, recebeu o prêmio Lista de Honra do

Internacional Board on Books for Young People, em 2002, na Suíça, na categoria ilustrador. Rui recebeu também o prêmio Jabuti de Ilustração, Menção Honro-sa, de 2003, pelo livro Chapeuzinho Vermelho e outros contos por imagem. Além disso, o livro foi recomendado pela Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil (FNLIJ) na categoria ilustração. Em 2006, o ilustrador foi indicado pela FNLIJ ao prêmio Hans Christian Andersen de ilustração patrocinado pela In-

ternacional Board on Books for Young People. No mesmo ano, recebeu o prêmio de ilustração infanto-juvenil pela Associação Brasileira de Letras com o livro

Cartas lunares.Entre seus diversos trabalhos, Rui destaca alguns como as obras mais marcan-

tes de sua carreira. A Bela e Fera, Contos de fadas, Chapeuzinho Vermelho e outros contos de imagem, Barba Azul, Pena de Ganso, Uma ilha lá longe, Língua

de trapos e romance sem palavras, a ser lançado. Para o ilustrador, esses são livros referenciais de sua ilustração.

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A ilustração ocupa espaço importante no imaginário infantil e juvenil. Ela é capaz de levar ao mundo do sonho e da reflexão ao mesmo tempo. Entretanto, Rui de Oliveira, professor da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ, afirma que as crianças não gostam de serem menosprezadas e sempre esperam que o ilustrador seja um grande artista.

Arte

Rodrigo Ricardo

Segundo Suzana, o Ecodesign está associado à “pegada ecológica”.

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efêmera e eternaJulia Faria e Julia Vieira

É proibido proibir”. Assim gritava Caetano Veloso após um dis-curso inflamado em resposta

às vaias recebidas da platéia durante sua apresentação no Teatro da Universidade Católica em São Paulo (TUCA). Com a frase lema do revolucionário Maio de 68 francês, Caetano colocava em evidência, em setembro do mesmo ano, a Tropicália, movimento de ruptura que se desenvolvia, desde 1967, no âmbito da cultura e da música popular brasileiras.

Segundo André Bueno, professor da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, “o Tropicalismo pode ser entendido como um movimento inovador no campo da canção popular brasileira, assim como no das artes plásticas, do teatro e do ci-nema. Durou cerca de dois ou três anos, misturando CPCs (Centro Popular de Cultura organizado pela União Nacio-nal dos Estudantes), poesia concreta, música de vanguarda, música popular e música de massa. Foi parte de uma cultura de oposição, formada na sua maior parte por estudantes, e teve espaço na televisão, através dos festivais de música popular da época”.

A Tropicália reflete o turbilhão revo-lucionário característico dos anos 60. No Brasil, esta década representou a primeira fase da ditadura militar, período marcado pela inconformidade diante do golpe que assinalara o fim da democracia proposta pela constituição federal de 1946. Bueno esclarece que o Tropicalismo foi parte de um processo que, no Brasil, começa em 1945, com a redemocratização do país, atravessa toda a década de 1950 e tem seu primeiro marco em 1964, com o golpe militar, e em 1968, quando o regime endurece de vez.

Neste último ano, a situação conflitan-te no ambiente político nacional atingiu seu ponto crítico. As greves operárias e as manifestações estudantis se inten-sificaram, assim como a conseqüente repressão policial. Diante do crescimento da oposição, o general Costa e Silva, então governante máximo do país, decretou em 13 de dezembro, o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), impondo o fim das liberdades civis e de expressão.

Internacionalmente, 1968 foi o ano em que jovens de todo o mundo se enga-jaram em protestos contra as formas de poder vigentes e os valores tradicionais até então estabelecidos. Passando pelos padrões éticos e estéticos, os questiona-mentos atingiam os valores familiares, o comportamento sexual e o sistema de educação. Ernesto Che Guevara, morto no ano anterior, era cultuado por seus ideais contra a opressão. Nos Estados Unidos, os hippies lutavam pela liberdade individual. Delineava-se, portanto, um momento

histórico marcado por transformações políticas, sociais e culturais.

Divino maravilhosoNeste contexto, o Tropicalismo foi

inovador, trazendo agitação ao meio musical e cultural brasileiro entre os anos de 1967 e 1968. Contrários à dominação de tradicionais grupos de esquerda na produção cultural brasileira, artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil originaram a Tropicália.

O movimento, cujo nome foi apro-priado da homônima exposição de Hélio Oiticica, teve ainda participações de Gal Costa, Tom Zé, Nara Leão e da banda Mu-tantes, além do maestro Rogério Duprat, dos letristas José Carlos Capinan e Torqua-to Neto e do compositor e poeta Rogério Duarte — to-dos envolvi-dos no ensejo de universali-zar a lingua-gem da MPB, incorporando elementos da cultura jo-vem mundial, como o rock e a guitarra elétrica, além dos trejeitos psicodélicos.

A n d r é Bueno ex-plica que o Tropicalismo misturou, de modo origi-nal, o arcaico e o moder-no no Brasil. “Seus inte-grantes foram herdeiros do Modernismo, da Antropo-fagia e de Oswald de Andrade. As alego-rias do Tropicalismo eram essa mistura, expostas a céu aberto, com talento e certo estardalhaço”, afirma o professor.

Roupas e objetos multicoloridos e extremamente distantes dos padrões costumeiros da época deram à Tropicália um caráter psicodélico. Identificando-se com os ideais da geração hippie, os tropi-calistas também contestaram os padrões de uma dita boa aparência, a qual foi abandonada em favor de uma adesão ao uso de figurinos extravagantes e cabelos compridos.

Tal irreverência tropicalista modificou critérios pertinentes à música, política, comportamento e vestuário que vigora-vam até então na sociedade brasileira.

Heloísa Buarque de Hollanda, professo-ra da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, aponta que a Tropicália tinha uma marca comportamental muito forte. “Caetano Veloso passava batom e usava saia. A contracultura e o anseio por mudar normas de conduta eram muito fortes nos integrantes do movimento”, afirma ela.

Divino e incompreendidoO caráter irreverente, no entanto,

trouxe à Tropicália críticas de diversos segmentos da sociedade brasileira. Segun-do Heloísa Buarque de Hollanda, a socie-dade, em geral, percebia o Tropicalismo como sendo moralmente comprometido, enquanto a esquerda o entendia como um movimento completamente alienado.

“O traço moralista do governo militar fez com que os governantes assumissem uma atitude paternalis-ta, prezando pelos bons costumes e pelo que se encaixava nos padrões de moral. Os militares precisavam reprimir as atitudes tro-picalistas, pois a classe média, que dava apoio à ditadura, era contrá-ria a elas. Tudo que fosse por-

nográfico e irreverente deveria ser banido pela censura”, esclarece a professora.

Conflitando diretamente com os interesses e costumes da classe média e da entidade familiar, a postura dos ar-tistas tropicalistas fez com que o regime ditatorial brasileiro passasse a perseguir o movimento, classificando-o como sub-versivo e imoral. Além de considerada inimiga do governo, a Tropicália foi ainda apontada pelos movimentos esquerdistas como sendo alheia à situação política em que se encontrava o Brasil.

“Os anos de existência da Tropicália foram marcados na música e nas artes por canções de protesto e pela resistência política explícita. Em seus moldes, o Tropicalismo pôs um fim no populismo. Trouxe toda a anarquia, a falta de parâme-

tros comportamentais, sociais e políticos. A Tropicália mostrou que existem outras formas de fazer política, o que fez com que a esquerda mais tradicional acredi-tasse que os tropicalistas eram pessoas alienadas diante da situação política do país”, completa Heloísa.

Diante das inúmeras oposições que lhe foram impostas, a Tropicália ter-minou por ser reprimida pelo governo militar. O fim começou com a prisão de Caetano e Gil, em dezembro de 1968. A cultura brasileira, entretanto, já havia recebido uma insígnia eterna resultante da descoberta da modernidade e dos trópicos.

O legado tropicalistaQuarenta anos se passaram desde o

início da Tropicália e, como indica André Bueno, “é preciso pensar o sentido das alegorias do Tropicalismo como interpre-tação do Brasil”. As conjunturas políticas, econômicas e sociais já não são mais as mesmas. Modificaram-se a música e os costumes. E qual é, por conseguinte, o legado tropicalista?

Para Heloísa Buarque de Hollanda, o mais importante foi o fato de o Tropica-lismo ter progredido na questão política. “Assim como a Guerrilha deixou um lega-do importante no movimento comunista, a Tropicália deixou a sua marca na política brasileira. Tanto o Tropicalismo quanto a Guerrilha optaram por um formato anárquico, ligado ao elemento surpresa. Ambos encontraram formas desconcer-tantes de fazer política, usando a invenção e a criatividade”, aponta a professora.

Heloísa destaca ainda que a Tropicália foi um marco que dificilmente pode voltar a acontecer em nosso contexto atual. “Não se sabe mais fazer política como se fazia nos anos 60. A partir da década de 70 houve um esvaziamento do interesse de grande parte da sociedade quanto à vida política do país. A última grande forma de manifestação ocorreu na luta das Diretas Já e, atualmente, discursos como os da Tropicália e da Guerrilha não têm mais vez”, conclui.

Além da manifestação política por meio da intervenção cultural, a Tropicália transmitiu às gerações seguintes um estilo anárquico e liberal no próprio meio de conceber a arte. Apesar da efemeridade temporal pela qual se desenvolveu, o movimento deu à produção musical brasileira diversas influências permanen-tes. “A Tropicália deixou uma herança importante no campo da canção popular brasileira, parte de um legado coletivo em que há muitos e muitos compositores ta-lentosos e criativos, que foram dialogando e se influenciando ao longo do século XX”, conclui André Bueno.

Panis et Circenses

Em agosto de 1968, era lançado Tropicália ou Panis et Circenses. O disco, verdadeiro manifesto do movimento tropicalista, reuniu nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Nara Leão e a banda Os Mutantes.

Produzido por Manoel Berenbein e com arranjos do maestro Rogério Duprat, o álbum sintetiza os ideais de ruptura da Tropicália atra-vés de suas doze faixas inéditas e ininterruptas, refletindo uma inspiração no disco Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. As músicas de Tropicália ou Panis et Circenses inovam ainda por combinar sons excêntricos, como os de explo-sões de canhão e os da simulação de um jantar. O álbum segue, portanto, na linha tropicalista, em busca da desconstrução das formalidades.

Eleito pela edição de outubro de 2007 da revista Rolling Stone como um dos melhores discos da música brasileira, o álbum encerra em sua faixa título a crítica tropicalista quanto aos domínios dos valores tradicionais na sociedade, apontando que “as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer”.

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28 Setembro 2008Persona

Nascido em 1908, em Recife (PE), Josué de Castro ob-servou, desde menino, as

agruras que a pobreza inflige ao povo de um país rico em desigualdades, vendo as pessoas que sobreviviam da pesca do caranguejo, na periferia de sua cidade. Ao ingressar no meio acadêmico pôde fazer uma leitura mais crítica do proble-ma que o sensibilizava.

Começou sua graduação na Facul-dade de Medicina da Bahia e a concluiu na Universidade do Brasil (atual UFRJ),

Josué de Castro

Médico, professor, escritor, parlamentar, fundador do Instituto de Nutrição da UFRJ, o pernambucano Josué de Castro dedicou sua vida a alertar o mundo para a necessidade de combater um dos maiores flagelos da humanidade: a fome.

tendo o privilégio de estudar em duas prestigiosas instituições bicentenárias. Ao mesmo passo em que avançava em sua formação universitária – que ainda seria enriquecida com mestrado e doutorado em Filosofia, também na Universidade do Brasil – Josué trabalhou em uma fábrica, e percebia como muitos problemas de saúde dos trabalhadores decorriam da má alimentação e não podiam ser tratados com a Medicina convencional.

Concluindo seus estudos, dedicou boa parte de sua vida, como médico e

professor, ao combate da fome como um dos grandes flagelos da Hu-

manidade. O professor foi pioneiro em uma visão

multidisciplinar, que unia Ciências Bio-lógicas e Ciências Sociais. De acordo com Elizabeth Accioly, professora e diretora do Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC) da UFRJ, Josué “considerava isso como um problema que não era identificado como tendo uma rede de causalidades. Era determinado como uma circunstância biológica, quando tinha uma dimensão sociológica tam-bém. Não era apenas a expressão bioló-gica da falta de alimentos. Também se relacionava com o modelo econômico e não se ousava dizer isso”, explica a professora. Assim posto, conclui-se que a fome é a manifestação biológica de um problema social

Em 1946, mesmo ano em que lançava seu livro mais conceituado, Geografia da fome, o professor se tornou o primeiro diretor do recém-criado Instituto de Nutrição, originário do Instituto de Tecnologia Alimentar, e que fora incorporado à UFRJ.

Em 1996, o Conselho Universitário (Consuni) aprovou pedido feito pelo corpo docente do Instituto, que, no seu qüinquagésimo aniversário, passou a levar o nome de seu fundador. Para Ac-cioly, dirigir a instituição foi um marco referencial na vida de Josué: “foi nosso professor, teve participação em fóruns internacionais, mas ele tinha o Instituto como referência”.

Josué de Castro foi ainda pre-sidente do Conselho Consultivo de Alimentação da FAO – órgão das

Nações Unidas (ONU) que zela pela agricultura e alimentação – e

depois participou de seu comitê executivo. “Foi uma voz inter-

nacional para alertar quanto aos perigos da fome.

Foi, por duas vezes, deputado federal por Pernambuco (o mais votado de seu

estado e do Nor-deste), com atu-ação sempre vol-

tada ao combate das desigualdades

sociais e injustiças que geravam o fla-

gelo da fome”. Como reconhecimento de sua profícua contribui-

ção à tão nobre causa, Josué foi indicado três vezes ao prêmio Nobel da Paz.

Cassação e exílioNa avaliação de Elizabeth Accioly,

Josué foi uma figura emblemática por ter denunciado a fome de maneira ousada sem se sentir tolhido. Porém, ele não se ocupou somente da fome ou da total inanição, chamou a atenção da opinião pública internacional para uma forma menos perceptível de fome, na qual a falta de vitaminas e nutrientes essen-ciais na dieta habitual minam a saúde e a força de trabalho dos indivíduos, que se mantém “vivos, mas com maior probabilidade de adoecer, sobretudo de causas infecciosas”, completa a professora.

Por seu engajamento foi consi-derado desafeto do governo militar. Quando fazia parte da missão diplo-mática brasileira junto à ONU teve seu mandato parlamentar e seus direitos políticos cassados por dez anos. Im-pedido de regressar ao Brasil escolheu a França como pátria para o exílio e aguardava findar o prazo para voltar ao Brasil. Segundo Accioly, a injustiça do regime militar deixou suas mar-cas: “o semblante dele nos últimos anos de vida era muito triste. Tinha grande saudade do país e fora obri-gado a viver no exterior, embora se mantivesse atuante na luta contra a miséria e a fome”.

Um legado eternamente contemporâneo

Josué de Castro faleceu quando faltava um ano para terminar seu exílio. Mas, o seu exemplo de vida inspirou e inspira muitos. Seu legado se faz pre-sente em várias das políticas públicas postas em prática no Brasil nos últimos anos. “A Política Nacional de Segurança Alimentar tem inspiração em Josué, do qual é seu patrono. O Fome Zero, quando resgata que a alimentação ade-quada é um direito humano, também é tributário das idéias de Josué de Castro”, exemplifica Elizabeth Accioly.

Não apenas políticas de Nutrição foram inspiradas em Josué de Castro. De acordo com a professora, “Josué defendia que se produzissem alimentos para o mercado interno e não apenas commodities demandadas pelo capital internacional, pois as monoculturas prejudicam muito a qualidade do solo. Valorizava a importância do se-tor primário, pois era o que fornecia alimentos para a população. Era um defensor da reforma agrária.”

Exílio da fomeBruno Franco