um erro que vive - gustavo lemos
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8/7/2019 Um Erro Que Vive - Gustavo Lemos
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Um erro que viveDe Gustavo Lemos
Pea escrita durante a Oficina Regular
do Ncleo de Dramaturgia SESI Paran,/ Regional Maring
sob orientao de Marcelo Bourscheid,
no 2 semestre de 2010.
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B Olhar fixo no nada.
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Cena 01
A A alegria do co que persegue a carroa.
(pausa)
A O sorriso do co que persegue a carroa.
(pausa)
A O sorriso...
(interrompendo. A fala de B aumenta gradativamente)
B Raiva uma doena infecciosa que afeta os mamferos e causada
por um vrus que se instala e multiplica primeiro nos nervos perifricos e depois no
sistema nervoso central e dali para as glndulas salivares, de onde se multiplica e
propaga. A transmisso d-se do animal infectado para o sadio atravs do contato
da saliva por mordedura, lambida em feridas abertas, mucosas ou arranhes.
A A alegria do co que persegue a carroa.
B Afaste-se! No te criei para ficar no meio disso! Por acaso voc veste
trapos? Est sem banho? Por acaso no te dei educao?
A Voc j viu a alegria do co que persegue a carroa?
B - Senhor, no semeaste tu, no teu campo, boa semente? Por que tem,
ento, joio?
A Vocs veriam o sorriso.
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B - E disse: Escreve; porque estas palavras so verdadeiras e fiis. E disse
mais: Est cumprido. Quem vencer, herdar todas as coisas; Mas, quanto aos
tmidos, e aos incrdulos, e aos abominveis, e aos homicidas, e aos fornicadores,
e aos feiticeiros, e aos idlatras e a todos os mentirosos, a sua parte ser a
segunda morte.
A Se importa se eu te der um sorriso?
B no responde.
A pega um alicate.
Arranca os dentes, um a um.
Junta-os em forma de sorriso e entrega B.
A - O que vai fazer com ele?
B no se mexe.
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Cena 02
A est ajoelhado desenhando coraes no cho de areia
A - Eu engoli um ralo.
B fome.
A medo.
B De qu?
A Eu toco o tempo.
B Eu no tenho tempo.
A Eu no quero o seu tempo! (sussurrando) Constru um castelo de vento,
com vidraas e torre. Eu constru um templo em que a bailarina dana e o
trompetista simplesmente ouve. Eu constru a verdade...
B ...a verdade e a vida, ningum vem ao pai seno...
A - E a bailarina? E o trompetista?
B O nome deles no est na lista.
(pausa)
A ...mas ela matou o trompetista e agora dana no escuro. Ela chora
enquanto dana e em cada dana revive a morte da melodia que ouvia - gritos e
gemidos - no tem mais plateia, no tem mais aplausos, no tem mais sentido.
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Dana com a sutileza de uma gara. No v seus passos e suas mos, no v o
espao e morre no templo que eu mesmo constru.
B Voc precisa de ajuda.
A Eu engoli a bailarina. E o ralo.
A volta a desenhar no cho de areia
B - Reze quatro vezes ao dia. Ao levantar, quando comer, ao entardecer e
antes de repousar. Quando estiver no batente, no se distraia: o esforo dignifica
o homem e somente com equilbrio espiritual que corpo e mente entraro emharmonia.
A - Profecias.
B - (riso descontrolado)
A - Profecias sim olhe! Profecias de cegos escritas na parede do templo.
Profecias de um tempo so profecias de nuvem, de cho e de vento. So
profecias de pessoas tristes que danam como a bailarina. Profecias cegas de um
monstro nas paredes do templo, desenhadas com carinho.
B - Sozinho?
A - Caminho. As paredes do templo. Palavra.
B Monstro.
(pausa)
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A - Falo como fala quem no se ouve. Ando como anda quem no visto.
Mordo com o sorriso prometido e transo com o silncio de um papelo que mofa,
de uma solido que estanca. Eu brinco com a flor que nasce em minha testa e
rego placas que me advertiam. E me divirto. No estou no reflexo das vitrines; no
estou na lista de pagamento; na lista de promessas. Do lado de fora da catedral
sonho com um campo repleto de flores, com cores e promessas pagas com beijo.
Eu constru um templo e posso tocar o tempo. Nas paredes desse templo o
monstro desenha com carinho de me.
A leva a mo boca devagar.
A mo tapa sua boca por inteiro.
Grita desesperadamente.
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Cena 03
Os dois esto sentados e tm gua at a canela. A est corcunda.
A
B Carrega nos ombros o fardo da sua incompetncia.
A
B Me desculpem, por favor. (sussurrando) um perturbado.
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Cena 04
A vasculha o cho, est corcunda e suas mos atrofiadas.
A Verdade, aqui voc est?
(pausa)
A Canta para mim?
(pausa)
B No perca seu tempo.
A Tempo dura quanto?
B O suficiente.
A Pra encontrar?
B Para ser realista.
A Sou felicista, sorrisista. Sou o que mais de ista rimar com beijo.
B No te suporto.
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A E eu amo
(silncio)
A Tempo dura quanto?
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B Eternamente.
A Eternamente?
B Eternamente.
A Eternamente?
B Eternamente.
A Eternamente sem verdade, eterna a mente sem verdade, terna amente sem verdade, ter na mente cem verdades. A semente o sol e a verdade.
A alcana uma faca de aougueiro.
B - As aplices de seguro de vida, especialmente no seguro de acidentes
pessoais excluem, expressamente, de cobertura os eventos decorrentes de
suicdio ou tentativa de suicdio, voluntrio ou involuntrio do segurado.
A Flor importa se eu te der?
(B no responde)
A v sua mo desabrochar devagar como uma margarida.
Por alguns segundos admira a beleza daquela flor.
Com a faca separa brao e antebrao na altura do cotovelo e entrega B.
A Fazer o que vai com ela?
(B no se mexe)
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Cena 05
A est corcunda, ligamentos atrofiados e movimentos rgidos.
A Do alto de uma fome explode a flor de dez espinhos com um sorriso de
diamante que no lhe sobra nenhum medo.E dessa flor de dez sementes surge
um brilho em passarinho com medo de cu, de mar, de poeira. Um medo que o
templo no suporta, no suprime e no venera. desse medo que surge a
impossvel chance: um erro. Um erro que vive. Vive e sorri por detrs da covardia.
O medo da flor o sorriso do erro covarde.
B No por voc que eu fao isso.
A Se te admiras no coar com sete dedos: voc fede e chora como todo
mundo. E desse mundo de todo que a flor, o sorriso e o medo se vingam:
durante a noite.
B No por voc que eu fao isso!
A - (sussurrando) Me enviaram um total de trs ideias: crer, produzir,
ostentar e morrer. So trs porque de quatro sobra a muda. A singularidade da
mudinha. A mudinha to disforme que caminha sobre a pedra e encerra o incio de
todas as outras. Mas a flor nunca me disse que das trs a quarta fosse a mais
simptica. E quando me enviaram a quinta, entendi como entende quem se
explica: as ideias no so minhas.
B Se pagasse o que eu pago no seria to liberto. A pena que no nego
o suor que te sustenta.
A Estamos todos presos do lado de fora de um abrao.
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B Porque no te levanta e te alimenta? Porque no te corrige? No
precisa ser assim, voc sabe.
A Porque da dvida vem o peso e a tormenta vomitando palavras de
outras bocas num sentimento de educado. Por quese no houve quem as disse,
negaria tambm a morte que nasce todas as outras ideias (sussurrando) que
nascem de uma flor, lembrem-se. As paredes do templo senhoras j no so, no
carregam suas saias pelos degraus de uma verdade absoluta, (declamando) Por
que dos ventos se ouve a mais fina poesia: aquela no escutada e nunca vista.
Aquela feita por mortos para os cegos de olhos e os surdos de ouvidos: a profecia
do sorriso.
B E disse: quem cr em mim, ainda que esteja morto, viver.
A E de viver cansou a poesia. O poeta do tempo agora escuta, como
escutava o trompetista.
(silncio)
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Cena 06
A est corcunda. Ligamentos atrofiados. Msculos enrijecidos. Quase no
tem movimentos e fala com dificuldade.
A Olha, Mariadivina Salvadora Quedana aceitou J osanto Pobreza
Queouve em eternidade. Leram sentenas do nunca vivo pra acordar a morte do
pecado feliz. Vo cantar verdade em trs ideias repetindo o que. Um novo
caminho j feito pela carroa e pelo co sorrindo.
B toma-o nos braos.
A No deixa ir para. No deixa. No.
Chove devagar.
A Choram a morte da flor de. Cumprimentada em lgrimas por um ser de
nunca. Singela profecia muda da ideia quarta. Porque o nunca desse tempo j no
h. Medo de sor-ri-sos (risos).
B No chora.
(solua)
B - No chora.
(solua)
B Meu beb.
Escuro.