um olhar vale mais que mil palavras - a histÓria de uma cortesÃ
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Ela era uma moça dedicada à família, cuidava da casa e dos quatro irmãos: Eulália, Pietro e as pequenas gêmeas ainda recém-nascidas. No entanto, em troca recebeu a traição como paga...TRANSCRIPT
Reservado a editora
Um olhar vale mais que mil palavras
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Adriana Matheus
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A Editora
IXTLAN
Apresenta...
Adriana Matheus
Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras
A história de uma cortesã
Um olhar vale mais que mil palavras
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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da autora. (Lei nº 5.988 14/12/73).
Adriana Matheus
[email protected] Ano 2014 1ª Edição
Projeto Gráfico e Impressão: Editora Ixtlan Revisão ortográfica: Pâmyla Serra www.re-visaodeaguia.com Edição de capa: Adriana Matheus Diagramação: Márcia Todeschini
CIP.
CIP. Brasil. Catalogação na Publicação. M427s - Matheus, Adriana, 1970. Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras/ Adriana Matheus - Juiz de Fora - MG. p. : il. ISBN: 978-85-65588-01-0 Ficção brasileira. Contos. CDD: B869.2
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UM OLHAR VALE MAIS QUE
MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
Adriana Matheus
Um olhar vale mais que mil palavras
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Sumário
Capítulo I - A decepção...............................................09
Capítulo II - A iniciação...............................................52
Capítulo III - Do pacto à vingança.............................109
Adriana Matheus
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Prólogo:
Ela foi massacrada por todos e pelo próprio destino, e tornou-se então a maior feiticeira da Espanha e também a rainha dos cabarés. Canta a lenda que bastava um olhar seu para colocar qualquer homem aos seus pés. Emanuelizia nunca conseguiu ficar com o seu único amor, mas também nunca desistiu de vingar-se dele e de todos os que lhe fizeram mal. Dizem que seu espírito ainda clama por vingança e que ela nunca reencarnará até que todos os culpados por sua degradação estejam debaixo de seus pés.
Tudo o que acontece em nossas vidas não acontece por acaso, na verdade são fases... E essas fases têm que ser aproveitadas devidamente. Lembrem-se de que somos eternamente responsáveis por tudo o que praticamos e cativamos. Ninguém merece sofrer e pagar pelos atos impensados de terceiros que já passaram em nossas vidas, mas também temos que nos lembrar que eles vieram para nos ensinar que não existe nada e ninguém permanecerá conosco por toda a eternidade. Na vida tudo é passageiro e viver dignamente é um dos maiores atos de coragem, pois as tentações do mundanismo e da decadência são muitas e, aparentemente, facilitam a vida do ser humano o deixando futuramente em um completo tormento de solidão. Pensem nisso!
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Dedico esta obra ao povo cigano e sua cultura
Adriana Matheus
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I – A decepção
brisa que vinha do oceano gelava os meus ossos
naquela fria manhã de início de inverno, mas
não me importava – estava muito ansiosa por encontrar meu
noivo, Maxuel. Não via a hora de estar em seus braços. Maxuel
era tão gentil! Ele fazia qualquer vontade minha. Era só eu pedir
e ele buscaria a Lua se assim eu quisesse. Mas confesso que
existiam alguns prós e contras em nossa relação...
Caminhei por muito tempo pela praia. Precisava pôr
meus pensamentos em ordem. O clima hostil que se formava
dentro da minha casa estava a cada dia mais intolerável. As
discussões entre meu pai e minha mãe na noite anterior tiraram-
me o sono e a minha cabeça parecia ter bolhas de sabão. Meus
olhos amanheceram inchados e ardendo, de tanto que chorei
durante toda aquela madrugada. Tive também que me manter
em estado de alerta por causa da minha irmã mais nova – que,
naquela noite, teve outra séria indisposição. Meus pais pareciam
não se preocupar conosco, pois estavam ocupadíssimos
engalfinhando-se o tempo todo. Às vezes, ficavam até altas
horas da madrugada discutindo – com isso, ninguém mais
conseguia dormir na casa. O que mais me preocupava era a
saúde de Eulália, minha irmã. Ela se tornava cada dia mais
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debilitada e seu semblante era pálido e deprimido. Meus pais,
porém, pareciam não dar importância a esse fato, que a cada dia
ficava mais delicado. Por isso, a responsabilidade de cuidar da
casa e dos meus irmãos caía sempre sobre as minhas costas. Não
sabia ao certo o que minha irmã Eulália tivera naquela noite –
talvez tivesse comido algum fruto do mar estragado... ou comido
em excesso, o que estava sendo uma rotina em sua vida. Ela
andava muito nervosa e descontava toda a ansiedade em
guloseimas. Eram tantos os meus problemas que nem sabia por
onde começar...
Amava minha família. Eles eram tudo para mim. Vivi
somente em função dos meus irmãos. Anulei a minha vida
pessoal por causa de todos eles. Nunca imaginaria que um dia
um deles fosse me trair. Eu e meus irmãos, quando crianças,
éramos muito unidos, embora Eulália estivesse aparentemente
revoltada nos últimos tempos. Meus pais não tinham tempo para
nós, nunca foram afetuosos. Então, com isso, assumi a
responsabilidade de mãe zelosa. Entendia a rebeldia de Eulália:
provavelmente era por causa da idade ou resultado das brigas
diárias que ela presenciava desde muito cedo. Com o passar do
tempo, fizemos uma família à parte, separada de nossos pais.
Eles não se separavam, não nos mandavam embora e tampouco
demonstravam amor por nós.
Quando éramos mais jovens, nossa única diversão era
pegar conchinhas à beira da praia. Não tínhamos brinquedos,
mas sinto saudades daquela época. Porém, durante todas as
brincadeiras, Eulália sempre foi a mais ambiciosa e dizia que
um dia iria ser rica e iria embora dali para bem longe. Tais
palavras jogavam água fria nas minhas expectativas de ter uma
família feliz e unida para sempre. Definitivamente, ela me
preocupava mais que os outros. Meu irmão provavelmente seria
um pescador como meu pai ou, por sorte, Maxuel arrumar-lhe-ia
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um emprego na fábrica de sua família. E eu?! Só queria ter uma
vida simples e ser feliz ao lado de Maxuel... Em meus planos,
nunca descartei levar minha mãe e irmãos comigo – aonde quer
que eu fosse, eles iriam. Não era que eu não amasse meu pai,
mas vê-lo maltratando minha mãe me deixava arredia com ele.
Ele era um homem muito rude e seco em demasia. Para ele, tudo
tinha que ser a tempo e a hora. Caso contrário, apanhávamos
muito. Por ser um pescador de pesca grande, ficava seis meses
em terra, seis meses em alto-mar. Por isso, via-o como um
estranho e evitava ao máximo contrariá-lo.
A onda do mar tocou em meus pés naquele momento,
fazendo-me abrir os olhos, despertando-me daquele quase transe
cheio de preocupações e tormentas. Fitei o horizonte para ver
aquela beleza de cenário à minha frente. O mar da Espanha era
mesmo lindo, de um azul inigualável. Observei algumas
conchinhas trazidas pelas ondas, o que ressaltou mais uma vez
minhas lembranças nostálgicas. Baixei-me, pegando-as, para em
seguida devolvê-las ao mar. As ondas logo as levaram para
longe... Outra coisa que muito me fascinava era ver as ondas
quebrando nas pedras. Elas passavam pelas pedras todos os dias,
pacientemente – assim, com o passar do tempo, transformavam-
nas em minúsculos grãozinhos de areia. Como algo tão sensível
como a água poderia transformar algo tão bruto como as rochas?
Isso era poético e de pura alquimia. “A natureza é perfeita”! –
pensei comigo.
Levantei-me e fiquei olhando ao longe os pescadores,
que jogavam suas redes ao mar num esforço incansável. Eram
dessas redes que aquelas pessoas simples tiravam o sustento de
suas famílias. Era uma vida muito simples, sem muitas
perspectivas. Mas, de certa forma, todos estavam felizes daquela
maneira. Não deveria ser mudado o rumo daquela história.
Afinal, quando tentamos mudar uma história, embutindo certos
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sonhos na cabeça das pessoas, elas podem perder a
grandiosidade de serem como são. Ser simples não é ser
conveniente – é ser poético e transparente! Para mim, só
existiam duas coisas terríveis: o excesso de ignorância por
teimosia ou o excesso de ambição.
Pensamento estranho esse que tive naquele dia,
principalmente vindo de uma jovem humilde como eu era.
Voltei meus pensamentos para o meu noivo, que estava
atrasadíssimo, para variar. Maxuel e eu nos conhecíamos desde
crianças. Nossas famílias eram muito amigas. Embora minha
família fosse de origem humilde, a de Maxuel nunca se
importou com nossa condição financeira. Éramos o que se podia
dizer o casal perfeito. Maxuel sempre me respeitou. Nunca
fomos além. Aliás, ele nunca sequer tentou beijar-me: dizia que
estava guardando o melhor para depois do casamento. Às vezes,
eu sentia falta de algo mais, mas não podia manifestar meus
desejos, pois tinha medo que Maxuel interpretasse mal minhas
verdadeiras intenções. Fui criada de maneira muito rígida,
embora fôssemos apenas uma família de pescadores de uma
pequena aldeia de Valença, quase divisa de Portugal com a
Espanha.
Embora fôssemos espanhóis, viemos morar nessa
pequena vila porque minha família dizia que ali a vida seria
mais farta e tranquila. Eu amava minha pequena vila. Ela era
maravilhosa e parecia ter saído de um conto de fadas. As casas
eram posicionadas uma ao lado da outra, e a arquitetura era a
mesma do outro lado da rua. Todo mundo se conhecia, todo
mundo era amigo. Mentalizei, detalhando na minha mente a
história da minha Espanha. De vez em quando, fazia isso para
memorizar o que Maxuel me ensinava. Ah, a Espanha!... É
cercada de histórias e mesclada de nomes místicos, condes,
califas, cruzadas e reis, que se iniciam desde os princípios da
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civilização e que chegam a adquirir contornos de ficção, com
toques folclóricos e de romances... Houve, sim, diversos
acontecimentos históricos que causaram a unificação da
Espanha, mas eu estava tão preocupada com o atraso de Maxuel
que, novamente, desviei meus pensamentos para a minha vida
cotidiana. Estava confusa e meus pensamentos estavam em
desordem. Minha cabeça pensava mil coisas ao mesmo tempo.
Respirei profundamente, pensando “onde estaria Maxuel”?!
Nossas famílias não só eram muito amigas, mas
mantinham um laço consanguíneo. A irmã de minha mãe casou-
se com um lorde inglês e ambos decidiram ajudar minha família.
Minha tia Ellen batizou-me assim que nasci, fazendo a estranha
promessa de casar-me com Maxuel quando eu completasse vinte
anos. Meu primo, também meu noivo, é dois anos mais jovem
que eu. Senhor Álvaro Merton, esposo de minha tia Ellen, era
um homem muito elegante: nunca o ouvi exaltar a voz para ela.
Os dois pareciam viver muito bem, embora também não
fizessem demonstrações de carinhos em público. Maxuel não foi
mimado. Seu pai, nesse ponto, teve pulso firme, fazendo-o
assumir os negócios da família desde cedo. Ele seria, por certo,
um bom esposo – claro, dentro das normas e tradições inglesas –
, exceto pela pontualidade. Eu, propriamente, nada podia
reclamar de Maxuel e muito menos da família de minha tia, que
sempre estava fazendo algo por nós. Eles tentaram de tudo para
nos ver crescer. Inclusive minha tia arrumou na fábrica de seu
esposo um ótimo emprego para meu pai. Ele seria, então, o
administrador encarregado da fábrica, mas teimosamente não
aceitou, embora minha mãe tivesse feito de tudo para que ele
deixasse a pesca. Papai era um homem muito simples e muito
rude, e o mar era a sua vida. Não conseguiria, portanto, ver-se
preso dentro de uma fábrica. Para ele, a liberdade era tudo. Mas
nós, as mulheres da família, não podíamos ter esse privilégio. Se
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algo maculasse nossa reputação, seríamos expulsas de casa
imediatamente. Sua presença dentro de casa era motivo de
pânico, pois ele nos mantinha debaixo de seus olhos e de suas
ordens constantes. Ou seja, ele era o dono e a nossa reputação
tinha que ser acima de qualquer suspeita. Ele batia em minha
mãe sempre que chegava alcoolizado em casa. Com isso, eu
estava ansiosa para me casar com Maxuel. Queria ter minha
própria família e parar de presenciar o horror em que vivia
minha mãe – que, embora com todo aquele sofrimento, aceitava
tudo o que meu pai fazia com ela. Ela baixava a cabeça com
uma devoção desprezível. Ele era o Deus dela, a voz de
comando em seu cérebro, o seu monarca, senhor e dono. Eu
nunca havia visto nada tão estranho e doentio como a vida de
minha mãe. Eu tinha dezenove anos e não era isso o que eu
queria para mim.
Minha irmã Eulália tinha quinze anos e também estava
em busca de um pretendente para sair daquela vida miserável de
amargura e prisão. Meu irmão Pietro era apenas um menino de
treze anos, mas trabalhava como louco fazendo pequenos
serviços à vizinhança para poder juntar o suficiente e ir embora
de casa. Minha mãe estava amamentando minhas duas outras
irmãs mais jovens, Maria de Lourdes e Maria da Consolação,
que estavam apenas com seis meses de nascidas. Na verdade,
não tínhamos muitas perspectivas de vida e, por isso,
agarrávamo-nos à oportunidade de um casamento feliz e
vantajoso.
O Sol começava a despontar no horizonte. Era de um
vermelho alaranjado e seus raios fundiam-se com as águas do
mar. O cheiro da maresia sempre me pareceu tão familiar! Às
vezes, tinha a sensação de sempre tê-lo conhecido. O mar e eu
sempre estivemos ligados, não sei por quê. Ali, naquele exato
momento, eu poderia jurar que escutava vozes vindas do fundo
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do oceano. Talvez fossem das sereias. Havia tantas lendas sobre
o mar! Quando era mais nova, imaginava-me sendo sequestrada
por piratas que me levavam para bem longe. Sempre fui muito
sonhadora e os corsários eram a minha fantasia favorita. Não sei
por que, mas naquele momento abri meus braços e deixei que o
vento me tocasse. Queria sentir aquela magia. As ondas
agitavam-se e pareciam que iam crescendo cada vez mais. O
mar tocou novamente meus pés; a areia úmida deslizava entre
meus dedos. Eu adorava andar descalça – o que era o desespero
de minha mãe. Mas, para mim, não tinha nada mais sublime do
que sentir a terra, a areia e o chão que eu pisava. Não me dava
ao luxo de me privar dessa liberdade. Meus cabelos soltos
agitavam-se com o vento. Pude sentir meu xale cair ao chão. De
repente, não sentia mais frio, e o mormaço daquele nascer de sol
foi o suficiente para que meu corpo não quisesse mais nada além
de...
Alguém chegou por trás e tampou meus olhos com as
mãos. Eram mãos macias, de gente que nunca havia pegado no
pesado, e estavam cheirosas. Vir-me-ei lentamente e vi um
jovem muito bem trajado. Seus olhos eram azuis como o céu e
seus cabelos muito loiros. Abrindo um largo sorriso, disse-me:
– Como está a minha querida prima nesta bela e fria
manhã? Desculpe-me pelo atraso, minha linda flor. Tive uns
compromissos inesperados. Sabe como são coisas de trabalho...
Papai incumbiu-me de resolver alguns problemas com os nossos
fornecedores.
Não sei por que, mas aquele elogio não me soou tão
sincero. Maxuel era sempre tão ponderado, tão frívolo em
questões de elogios! Porém, respondi tentando não demonstrar
que desconfiava que Maxuel tivesse outras mulheres além de
mim – o que era normal, já que nunca tivemos nada
intimamente.
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– Já aprendi a lidar com o seu atraso, meu querido primo.
Para falar a verdade, já nem ouvia as desculpas que ele
dava, pois eram sempre as mesmas. A família de Maxuel tinha
uma indústria têxtil e exportava tecidos para outros países. Por
certo, havia ficado preso com algum fornecedor. Tentei mudar
os pensamentos, para não ficar como muitas mulheres, que
vivem cobrando de seus noivos. Fiquei meio perdida em meus
pensamentos. Foi preciso que Maxuel me tirasse daquele transe.
– Emanuelizia! Onde estava, mocinha? Parecia estar
desacordada do mundo! Há minutos estou a chamá-la. –
chamou-me a voz, que parecia muito distante naquele momento.
– Desculpe-me, meu querido Maxuel. Estava somente a
pensar – senti uma lágrima rolar em minhas faces.
Ele me abraçou e me interrogou, parecendo preocupado.
– Posso saber em que pensa minha noiva? Saiba que
sinto ciúmes.
Dei-lhe um sorriso, respondendo em seguida:
– Na vida. Nas coisas que já passei e nas coisas que
presencio em minha casa.
– Não quero que se aborreça com essas coisas. Logo
estaremos casados e já lhe disse: poderá levar consigo a sua
irmã. Assim, ficará despreocupada com o destino que ela poderá
ter. Serei para Eulália como um irmão mais velho, você vai ver.
Poderemos ajudá-la no que for necessário.
Abracei-o imediatamente mediante aquelas palavras. Ele
me empurrou e beijou-me as mãos. Senti minhas faces
enrubescer diante daquela atitude tão fria vinda da parte dele.
Mediante isso, fomos caminhar à beira-mar. Falei-lhe
sobre muitas coisas, e logo acabei por esquecer aquela súbita
insegurança, seguida de um teimoso ciúme. Maxuel era muito
compreensivo e ficou a me ouvir por horas. Ele sempre tinha
uma resposta para tudo. Dávamo-nos muito bem, pelo menos
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era o que eu pensava! Fazíamos muitos planos juntos, e ajudar
minha irmã Eulália era um deles. Pensávamos em colocá-la
numa escola para moças para que tivesse boa educação. Na
verdade essa ideia veio da parte de Maxuel, eu apenas acatei. Só
aprendi a ler porque Maxuel tivera boa vontade e paciência
comigo. Ele me ensinou tudo o que aprendera em uma faculdade
da Inglaterra. Eu lhe era muito grata por tudo. Achava que o
amor era simplesmente decorrente de uma amizade como a
nossa. Talvez aquele sentimento fosse mesmo uma forma de
amor. Eu estava feliz daquela forma. Afinal, não conhecia nada
além daquela vila de pescadores à beira-mar.
Caminhamos por horas um ao lado do outro. Perdemos a
noção do tempo – já era quase meio-dia quando percebemos que
tínhamos excedido no tempo. Quando resolvemos voltar para
casa, Maxuel foi logo me prevenindo que não ficaria para
almoçar, pois estava muito atrasado para o trabalho.
Mal abrimos a porta de casa e já percebemos o clima
hostil entre minha mãe e meu pai. Ele acabara de chegar da
pesca e ainda estava todo sujo de isca. Minha mãe estava
reclamando e pedindo para que ele fosse se lavar. Porém, papai
dizia que ela fazia isso por ele ser um homem de origem
humilde. Não aguentando ver aquela discussão, interferi,
perguntando:
– O que é que está acontecendo aqui? Será que os dois
não conseguem viver sem um ter que afrontar o outro?
Meu pai olhou-me furioso. Mal cumprimentou Maxuel
com um aceno de cabeça e saiu batendo a porta. Eulália estava
chorando, com as mãos nos ouvidos. Meu irmão não estava em
casa, devia estar sentado à beira-mar, olhando para o tempo. Fui
à cozinha atrás de minha mãe, para tentar ver o que eu podia
fazer. Ela estava andando de um lado para o outro, com as
gêmeas no colo, que estavam em prantos. Tomei as meninas do
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colo de minha mãe e levei-as para o quarto, fazendo-as
adormecer em seguida. Quando voltei à sala, vi uma cena que
não era normal. Maxuel estava abraçado a Eulália e, ao me
verem, ambos tiveram uma reação adversa. Mediante aquela
situação, imediatamente indaguei-lhes:
– O que é que está havendo aqui?
– Sua irmã estava inconsolável e eu estava tentando
acalmá-la. – respondeu ele, assustado, afastando-se
abruptamente de Eulália.
Porém, minha irmã respondeu-me em tom de ironia – o
que me deixou ainda mais intrigada.
– Não precisa ficar com ciúmes, Emanuelizia. O noivo
ainda é seu. – dizendo isso, Eulália saiu exasperada da sala.
Olhei para Maxuel, procurando uma resposta plausível,
interrogando-o:
– O que ela quis dizer com isso, Maxuel? Existe algo
entre vocês?
– Não imagine coisas. Sua cabeça está confusa e já está
com problemas demais para criar mais um agora.
Ele me deu um beijo na testa, como de costume, e saiu,
deixando-me parada no meio da sala vazia. Fui ao quarto onde
minha irmã estava em prantos. Vendo aquela cena desmedida,
perguntei-lhe:
– O que é que está havendo, Eulália?
Ela virou-se para mim, abruptamente, e respondeu-me:
– O que é que está havendo? Ora, minha irmã! Você
parece que vive em outra dimensão! Nossos pais engalfinham-se
o tempo todo, vivemos nesta miséria, e você ainda vem me
perguntar o que é que está havendo?! Como você pode ficar
tranquila e aceitar essa vida que levamos? Vivemos como
animais esquecidos do resto da sociedade!
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– Não diga uma coisa dessas, Eulália! Você acha que não
me preocupo com toda essa situação? Lógico que sim. Mas o
que quer que eu faça? Quer que eu mate nossos pais?
– Seria mesmo melhor que eles estivessem mortos, ou
melhor, que eu nunca tivesse nascido.
– Pare de falar bobagens! Meu Deus, as coisas vão se
arranjar. Quando eu me casar com Maxuel, poderei ajudá-la, vai
ver.
– Quando você se casar com Maxuel... Você não pensa
em outra coisa não, é? Acha que tenho tempo para esperar que
você se case ou mude de vida para que a minha vida tome um
rumo? Você é uma egoísta e uma tola, se acha mesmo que quero
viver de suas migalhas. Por que você acha que tem que ser mais
afortunada do que eu? Por que não deram a mim ao invés de
você em casamento para Maxuel? Isso não é justo! Você sempre
tem as melhores roupas, enquanto tenho que ficar com as que
não lhe servem mais. Tudo para você é mais fácil do que para
mim. E você nem ama Maxuel.
– Meu Deus, minha irmã, pare com isso! Como pode
dizer uma sandice dessas? É claro que amo Maxuel! Senão, não
aceitaria casar-me com ele. E o jeito como você se expressa...
Parece que você me odeia e sente inveja de mim. Não tenho
culpa se nossos pais nos uniram em uma promessa ainda quando
éramos crianças. Também não entendo o porquê dessa união
prematura. Mas se esse é o meu destino, já que nossos pais
assim o escolheram, eu o aceito.
– Eu? Com inveja de você? Ora, Emanuelizia, você é
mesmo muito ingênua! Embora seja mais velha, não tem
nenhuma percepção da vida. Sou muito melhor do que você em
tudo, e vou provar-lhe isso. Fique sabendo que não vou ficar
com suas migalhas. Mereço ter tudo do bom e do melhor. Sabe
por quê? Porque sou mais esperta que você e sei agarrar as
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oportunidades quando vejo uma. E quanto ao seu destino,
aproveite-o enquanto ainda pode.
Dizendo essas palavras tão rudes e tão duras de ouvir, ela
saiu batendo a porta do quarto atrás de si, sem nada mais a dizer.
Joguei-me em uma poltrona e coloquei as mãos no rosto.
Respirei profundamente e fiquei me interrogando o porquê de
Eulália ter tanta raiva de mim. Era injusto o que ela me disse.
Logo comigo, que sempre lhe fui tão dedicada! Fui para a
cozinha ajudar minha mãe a limpar o peixe para o almoço.
Eulália havia ido caminhar à beira-mar. Ela sempre fazia isso
depois que discutíamos. Minha mãe estava taciturna e mal
dirigiu a palavra a mim. Ficamos ajeitando as coisas na cozinha
em total silêncio. No fundo, eu a compreendia. Sabia que aquele
silêncio, embora sufocante, era a forma que ela encontrara para
meditar e colocar seus pensamentos atordoados em ordem.
Estava de costas pondo a mesa para o almoço, mas percebi
quando meu pai entrou batendo a porta. Ele tirou o chapéu da
cabeça e cumprimentou-me, perguntando:
– Onde está sua mãe?
– Na cozinha, terminando o almoço.
Ele parecia ir em direção à cozinha. Mas, percebendo
aquela atitude que poderia não acabar bem, interrompi, dizendo:
– Pai, por favor, por hoje acho que já foi suficiente.
Deixe a mamãe em paz. Ela precisa ficar um pouco sozinha.
Ele, porém, saiu resmungando alguma coisa,
confirmando em atitudes que ia mesmo à cozinha somente para
colocar mais lenha naquela discussão constante e que começara
cedo naquele dia. Respirei fundo e tranquilizei os ânimos
quando ouvi a porta do quarto dos meus pais batendo – assim,
pude ter certeza de que papai não voltaria mais à cozinha. Eu
estava de costas, mas percebi quando meu irmão entrou em
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seguida. Logo ao ver-me, ele perguntou se papai estava em casa.
Vir-me-ei lentamente e respondi-lhe:
– Sim, mas o aconselho a não incomodá-lo agora, pois
parecia bem nervoso quando chegou.
– Eu não ia falar com ele. Na verdade, queria que ele
ficasse por lá para o resto da vida. Odeio a vida que levamos e
preferiria não ter nascido, pois já não aguento mais ter que vê-lo
brigando com a mamãe.
Percebendo aquele tom de revolta e desapontamento em
sua voz, deixei a mesa de lado e fui abraçá-lo.
– Não diga isso, meu irmão. Sempre estarei aqui para
defendê-los. E pense bem: o que seria de minha vida sem você?
Ele me olhou e, com os olhos cheios de lágrimas, deu-
me um beijo na face, retirando-se para o seu quarto em seguida.
Fiquei ali em pé, sentindo-me impotente, sem saber como agir
mediante aquelas circunstâncias. Naquele momento, Eulália
entrou afoita e toda faceira, interrompendo meus pensamentos.
Confesso que a minha curiosidade ao vê-la tão desaforada foi
maior e mais forte. Fiquei ansiosa para perguntar o que tinha
acontecido de bom, para que ela entrasse daquele jeito na casa.
Terminei de pôr a mesa e corri para o nosso quarto para
interrogá-la. Mal abri a porta e fui lhe perguntando, depois de
vê-la rodopiando como uma mariposa pelo quarto:
– Posso saber o que aconteceu de tão esplendoroso que
fez com que a senhorita ficasse assim tão radiante?
– Acha que lhe contaria sabendo que você morre de
inveja de mim? Se depender de mim, irá morrer de curiosidade,
minha irmã, pois nunca lhe direi. Nem mesmo que caia um raio
sobre minha cabeça, não lhe direi uma só palavra. Por mim,
quero que morra.
– Meu Deus, Eulália, por que me odeia desse jeito? O
que foi que lhe fiz?
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– O que foi que você me fez? Quer mesmo saber, minha
irmã? Vou lhe repetir então, você é a mais velha e tudo, como
lhe disse, sempre lhe foi dado como preferência, enquanto tenho
que ficar com as suas sobras. Mas garanto que as coisas irão
mudar em breve, você verá.
– Eulália, está sendo injusta comigo. Nunca a deixei ficar
com minhas sobras. Sempre dividi tudo o que ganho e que tenho
com você, sabe muito bem disso.
– Pois saiba que não quero dividir mais nada com você.
Quero o que é meu por direito. Acha que não percebo como a
mamãe trata você melhor do eu somente porque é mais bonita?
Pois vou provar a todos nesta casa que posso ser muito melhor
do que me julgam.
– Pare imediatamente com isso, Eulália! Você também é
muito bonita, e não tenho culpa de ter sido dada em casamento a
Maxuel. Já lhe disse que não entendo o motivo de nossas
famílias nos terem unido.
– Não entende e aceita porque lhe é conveniente, não é
mesmo? Você é uma sonsa. Você não o ama, nunca o amou
verdadeiramente. Só está noiva dele por puro egoísmo ou
ambição. Você é má, Emanuelizia, e fará Maxuel sofrer. Você
não o merece. Eu, sim, sou quem teria que casar com Maxuel.
Eu seria a esposa perfeita para ele. Mas em breve isso irá
mudar... Passarei a ser o centro das atenções desta casa.
Aquelas palavras deram-me calafrio. Então, peguei-a
pelos braços e perguntei-lhe:
– O que é que você está aprontando? Quer que a mamãe
morra de desgosto? Saiba que se está se envolvendo com algum
homem comprometido, deve me contar imediatamente. Você
ainda é uma menina. Quero que saiba que os homens só pegam
jovenzinhas pobres como nós para se aproveitar e depois
descartam, como uma folha de papel sem o menor valor. Meu
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Deus, Eulália, o que você anda aprontando? Está se
comportando levianamente. Não consigo acreditar; como pode?
Quem é este homem que está lhe virando os pensamentos? Tem
que me dizer agora, pois irei amanhã mesmo encontrá-lo junto
com Maxuel e o farei responder pelo que anda fazendo com
você!
– Você é mesmo muito tola, Emanuelizia. Não consegue
perceber nem mesmo o que está na frente do seu nariz.
Ela me olhava desafiadoramente. Porém, minha mãe
entrou e, percebendo que havia algo estranho conosco,
perguntou:
– O que está acontecendo aqui? Não me basta o seu pai,
agora tenho que ficar apaziguando as rixas entre duas irmãs?
Estão parecendo animais! Não estão agindo civilizadamente
mais.
– Não estamos parecendo animais, mãe, somos animais.
Caso a senhora não tenha percebido, levamos uma vida
miserável, moramos em um chiqueiro, comemos lavagem,
vivemos de restos como os cães e ainda temos que conviver com
um homem rude que trata a minha mãe como um cachorro.
Saiba que se isso não for vida de animal, nada mais será. Odeio
esta vida, odeio vocês todos. – dizendo isso, Eulália saiu,
batendo a porta.
– Meu Deus do céu, Emanuelizia, o que deu nessa
menina?
– Ainda não sei, mãe, mas prometo que vou descobrir.
Agora vamos almoçar, antes que o papai fique nervoso com o
nosso atraso.
– Sim, vamos.
Minha mãe acompanhou-me, torcendo as mãos no
avental. Ela parecia estar sem rumo e apreensiva com a atitude e
as palavras de Eulália. Eu também estava. Mas uma coisa era
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
24
certa: eu pretendia descobrir o que ou quem estava desviando
minha irmã para que ela ficasse tão mudada com a família. Por
certo, deveria ser algum homem inescrupuloso e malicioso que
ao perceber que Eulália era uma jovem bonita, ingênua e
ambiciosa, estava manipulando-a de alguma forma.
Quando chegamos à sala, Eulália já estava sentada à
mesa ao lado de Pietro. Meu pai apenas nos olhou com ar de
desaprovação pelo nosso atraso. Fizemos as orações, como de
costume, mas durante o almoço todos comemos em silêncio.
Mal trocamos uma ou duas palavras uns com os outros, para
evitar que meu pai se aborrecesse e acabasse com aquele raro e
único momento em que a família se reunia. Eulália saiu
rapidamente da mesa, interrompendo o silêncio. Meu pai pediu
para que eu fosse ver o que estava acontecendo com ela. Quando
cheguei ao nosso quarto, deparei-me com minha irmã debruçada
à janela, vomitando. Tentei sondar, indagando-a. Ela, porém,
depois de enxugar as lágrimas, respondeu-me:
– Não vê que sou muito doente e toda vez que fico
contrariada meu estômago dói? E a culpada disso sempre é
você.
Dizendo isso outra vez, ela saiu do recinto, deixando-me
a ver navios. Eu ainda estava no meio do quarto, sem saber o
que fazer em relação a ela, quando minha mãe entrou, querendo
saber o que aconteceu. Porém, respondi-lhe:
– Sei tanto quanto a senhora, mas confesso que estou a
cada instante ficando mais preocupada.
Minha mãe saiu para ajeitar as coisas e tentar verificar o
que estava acontecendo. Peguei uma vassoura e fui ajeitar o
quarto, tentando tirar Eulália dos meus pensamentos. Acabei
sentindo-me culpada pelo estado de saúde da minha irmã ter
piorado. Estava decidida a conversar com Maxuel e antecipar
nosso casamento, pois queria a qualquer custo tirar Eulália
Adriana Matheus
25
daquela vida de sacrifícios e dificuldades. Continuei a fazer
meus afazeres quando percebi que havia uma caixa de chapéus
debaixo da cama de minha irmã. Pelo formato e pela
embalagem, era uma caixa de uma loja muito cara. Eu saiba que
estava errada, mas precisava saber o que tinha naquela caixa. Ao
abri-la, fiquei extasiada, pois dentro da caixa havia diversos
bilhetes de amor não assinados, e também uma caixinha com
uma joia muito cara. Sentei-me no chão e coloquei a mão na
boca, pois percebi que as minhas suspeitas estavam corretas.
Embora tenha desconfiado e achado aquela letra bastante
familiar, não atinei para a realidade dos fatos, pois no fundo eu
queria acreditar que Eulália estava mesmo sendo seduzida por
algum crápula que, por certo, estava iludindo sua cabeça
confusa e ingênua. Ajeitei tudo para que ela não percebesse que
eu havia descoberto o seu segredo. Terminei com a arrumação e
saí para tentar achar Eulália. Ela estava no rochedo, à beira-mar.
Cheguei por trás dela e disse:
– Sei o que você está fazendo.
Ela se virou e perdi as forças, pois seus olhos eram puras
lágrimas. Tentei fazer-me de rogada, pois não poderia deixar
que Eulália percebesse minha fraqueza. Caso contrário, ela se
tornaria agressiva comigo e acabaria por me deixar falando
sozinha novamente.
– Não lhe devo satisfações de minha vida. Solte-me e
deixe-me em paz.
– Não irá adiantar maltratar-me de novo, Eulália. Está
usando dessa arrogância e presunção como uma autodefesa.
Gritar e espernear é sinal de fraqueza e saiba que não vou me
calar diante de mais uma de suas crises de rebeldia. Descobri
seus planos: está pensando em fugir com o seu amante. E como
acha que ficará sua vida caso isso aconteça? O que será de
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
26
mamãe? Papai irá espancá-la, e sabe Deus o que mais pode
ocorrer após essa sua atitude leviana e impensada.
– Você não sabe nada de mim e mesmo tendo mexido
em minhas coisas, nada me fará dizer uma palavra.
– Você não percebe, criança tola? Este homem está
usando-a, mais nada. Responda-me apenas uma coisa: ele é
comprometido ou não?
– Sim, ele é. Mas ela não o merece e ele irá largá-la para
ficar comigo em breve.
– E você ainda diz que sou ingênua? Ora, minha irmã,
este homem só está brincando com você e com seus
sentimentos. Ele nunca vai largar a mulher dele ou a família
para ficar com você. Meu Deus, minha irmã, pare com isso!
Pense um pouco: você vai ficar mal falada e nunca conseguirá
arrumar um casamento. E se papai descobrir, irá colocá-la para
fora de casa.
– Sei que é isso o que você deseja para mim. Mas antes
que isso aconteça, fugiremos para bem longe e seremos muito
felizes.
Segurei-a pelos braços com força e disse-lhe:
– Você tem que me dizer quem é este crápula.
– Você é mesmo uma tola, se acha que lhe direi alguma
coisa. Mas não se preocupe: em breve matarei a sua curiosidade.
– Não estou curiosa. Estou preocupada com você.
– Quer um conselho, minha irmã? Preocupe-se com você
mesma. E mais: aprenda a prestar mais atenção nos detalhes,
antes que tenha que chorar lágrimas de sangue.
– O que você quer dizer com isso? – falei, apertando-lhe
mais fortemente os braços.
Fitei-a e prossegui:
– Já estou cheia de suas insinuações. Você vive
insinuando alguma coisa. Acaso acha que a vida é um jogo e
Adriana Matheus
27
que com essa atitude de meretriz que está tendo, de se envolver
com um homem comprometido, terei inveja de você? Acha
mesmo que tenho a intenção de disputar alguém ou alguma
coisa com você ou com quem quer que seja? Tudo o que sempre
quis foi saber que poderia no futuro ajudar a minha família, nada
mais. Só quero poder dar-lhe um futuro melhor, com uma vida
segura e promissora, diferente desta que levamos. Mas o seu
egoísmo é tamanho que você só consegue ver o seu próprio
umbigo. Não vou mais interferir em sua vida, e isso é uma
promessa. Mas quero que saiba que se um dia você se sentir em
perigo e quiser minha ajuda, sempre estarei por aqui.
Soltei-a e fui caminhando em direção à nossa casa.
Escutei-a gritando atrás de mim.
– Nunca precisarei da sua ajuda. Você é quem vai
implorar pelo meu auxílio.
Não me importei com aquelas palavras – para mim, não
passaram de insanidades da cabeça de uma jovem revoltada com
a vida que tinha. Naquela tarde, resolvi não voltar diretamente
para casa. Fui caminhar à beira-mar. O mar havia ficado
agitado. Era como se algo estivesse para acontecer. O vento que
vinha de terras longínquas parecia querer avisar-me sobre
alguma coisa. Tudo naquela tarde estava diferente. Agachei-me,
ficando de cócoras, quase que encolhida pelo frio que vinha do
mar e também pelas águas geladas, que de vez em quando a
maré jogava em meus pés descalços. Olhando as ondas revoltas,
comecei a distrair meus pensamentos, nem me dando conta de
que as horas passavam. O mar tem esse estranho poder
entorpecente. Ele nos faz esquecer todos os problemas e tudo ao
nosso redor. E assim fiquei por horas a fio, olhando o horizonte.
As vozes começaram a falar ao meu ouvido e eu as confundia
com os chiados das ondas do mar. Comecei a sorrir comigo
mesma, pois algumas daquelas vozes pareciam estar discutindo
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
28
por algum problema corriqueiro. Eu achava que as vozes eram
coisas da minha cabeça. Achava até que eram os meus próprios
pensamentos que estavam em desordem emocional, devido aos
tantos problemas que estava passando. Assim fiquei, inerte,
naquele mundo desconhecido, absorta em meus próprios
pensamentos ou no que eu imaginava que fossem meus
pensamentos!
De repente, um sono estranho tomou conta de mim e
acabei cochilando. Despertei com uma voz feminina rouca e
baixa chamando-me. Olhei para cima e vi uma senhora com
roupas de cigana. Assustei-me com a visão, mas olhei-a
fixamente. Ela me deu um largo sorriso e disse-me:
– Assustou-se comigo, minha filha? Sou feia e velha,
mas não faço mal algum. – deu uma gargalhada que ecoou por
toda a praia.
Naquele momento, pareceu que não ventava e foi como
se toda a terra tivesse parado. Arregalei os olhos e disse,
tentando disfarçar o meu medo:
– Não, imagina, não me assusto tão fácil assim!
– Mentirinha! Não seja hipócrita: odeio hipocrisias. –
falou aquelas palavras, usando um tom de voz sério, o que me
deixou ainda mais assustada.
A mulher parecia uma bruxa vinda de um conto de
terror. Olhou-me nos olhos e estendeu-me as mãos, dizendo:
– Venha, vamos caminhar comigo. Creio que tenho
algumas respostas para lhe dar e também uma proposta a lhe
fazer.
Embora assustada, estendi a mão àquela mulher e
levantei, acompanhado-a em seguida. Caminhamos em silêncio
alguns minutos até que, por fim, ela resolveu falar:
– Tenho acompanhado a senhorita desde o berço.
Adriana Matheus
29
Admirada com aquela revelação, eu já ia perguntar-lhe
como ela me conhecia, sendo que eu nunca a havia visto. Mas
ela, percebendo minha intenção, pediu para que eu a deixasse
prosseguir:
– Sim, eu a conheço desde o ventre de sua madre, niña. –
carregou no romani, dando novamente aquela gargalhada
sinistra.
Prosseguiu com o assunto, que a cada instante mais me
intrigava:
– A cada cem anos uma de nós, do clã secreto das
serpentes, escolhe uma discípula a quem passa os ensinamentos
e os poderes. Podendo, assim, descansar o aparelho, partindo
para o descanso eterno. Durante anos procurei, no meio de todos
os mortais, uma que me fosse perfeita, assim como você. Agora
que atingiu a maior idade, poderei resgatá-la e transferir-lhe os
meus poderes.
– Não estou entendendo, senhora! Resgatar-me? Como
assim? De que poderes a senhora está falando? Saiba que, se
está brincando, a única coisa que está conseguindo é me
assustar.
– Prefiro não entrar em detalhes agora, mas lhe prometo
que em breve saberá. Agora preciso apenas saber se a senhorita
aceita os poderes que quero lhe transferir.
– Desculpe-me a sinceridade, mas acho que a senhora
não está muito bem. Creio que está em devaneios. Agora, se não
se importa, preciso ir embora. Aceite o meu conselho, senhora:
vá para casa e não fique a andar sozinha por aí. E também lhe
peço que pare com essas histórias insanas, pois se alguém além
de mim a ouvir, acabarão confundindo-a com uma louca, ou o
que é pior: com uma feiticeira.
A velha senhora olhou para mim pacientemente,
respondendo-me:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
30
– Entendo que esteja confusa, mas preste bem atenção:
quando a senhorita mais precisar de mim, é só chamar-me que
irei ao seu encontro. Onde quer que esteja, lá estarei.
– Desculpe-me, senhora, preciso voltar para casa.
Senhora, por favor, não me interprete mal, mas não tenho o
menor interesse em participar de nenhum ritual de magia, se é o
que a senhora está tentando me dizer. Sou católica e temente a
Deus e nunca mudarei minha religião.
Saí andando, não querendo prestar atenção naquela velha
louca. Onde já se viu?! Que conversa mais estranha! – pensei.
Porém, a velha, percebendo que me distanciava rapidamente,
gritou:
– A senhorita está sendo orgulhosa e presunçosa em
achar-se a dona de todas as verdades. Saiba que, neste momento,
está sendo traída dentro da sua própria casa.
Curiosa como sempre fui, voltei-me para trás
imediatamente e perguntei-lhe:
– O que a senhora está querendo insinuar? Traída por
quem? Está louca, senhora? Vá para casa. Não é bom que ande
por aí sozinha. É uma velha louca, não passa disso.
Saí andando sem olhar para trás, mas senti seus olhos
fitando-me pelas costas. Não satisfeita, ela continuou a gritar:
– Sim, sou velha sim, mas não sou louca. Saiba que
todas envelhecemos, umas mais que as outras, devido ao tempo
de existência terrena. Irá se arrepender por causa da sua
arrogância e mau uso das palavras comigo. E nesse dia estarei
esperando a senhorita vir atrás de mim a implorar-me por
socorro.
Dizendo isso, a velha ficou estática no lugar onde havia
parado de me seguir. Apenas repetiu:
– É só chamar pelo meu nome que virei a seu socorro.
Mas, até lá, que o tempo seja o seu mestre.
Adriana Matheus
31
Eu havia andado uns dez passos, mas resolvi olhar para
trás para vê-la olhando-me pelas costas. Assustei-me de
imediato ao perceber que a velha não estava mais atrás de mim,
observando-me como eu supunha. Olhei ao redor, mas só havia
a areia, os coqueiros e o mar, nada mais.
E como eu poderia achá-la, se ela nem ao menos me
disse o seu nome? Balancei a cabeça, rindo, achando se tratar
mesmo de uma senhora confusa com histórias fantasiosas. De
repente, o vento soprou o nome da velha ao meu ouvido.
Eleanor... Arrepiei-me dos pés à cabeça e corri em disparada em
direção à minha casa, pois, naquele momento, acreditei que a
velha fosse um fantasma.
Ao chegar a casa, deparei-me com uma cena nada
convencional que me deixou ainda mais apreensiva: o médico
da família já estava saindo à porta. Tentei interrogá-lo. Porém,
ele sacudiu a cabeça, dizendo-me que era assunto de família. Ao
entrar, para meu espanto, dentro da minha casa encontravam-se,
além dos membros convencionais da minha família, minha tia
aos prantos, meu tio e o vigário local. Cumprimentei os
visitantes e segui em direção à minha mãe, abraçada à minha
irmã, que parecia estar passando muito mal. Como sabia que
Eulália não me contaria, indaguei minha mãe. Ela, porém, com
um olhar de súplica, olhou para meus tios, que baixaram os
olhos. Ela, então, olhou para meu pai, que respondeu em
seguida:
– A filha é sua; conte logo a ela, mulher!
Mamãe, não conseguindo falar, caiu em prantos. Tentei
ampará-la para que não caísse ao chão. Meu irmão, porém,
percebendo o que ia acontecer, tomou-a nos braços, entregando-
a a minha tia Ellen, que parecia envergonhada com a situação.
Porém, não dizia uma só palavra e permanecia de olhos baixos
na minha presença. Irritada com aquela situação, exasperei-me,
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
32
perguntando em voz alta e batendo os pés ao chão. Todos me
olharam, mas foi meu irmão que me pegou pelo cotovelo e
levou-me para a cozinha.
Ao chegar à cozinha, ele deu um longo suspiro e
prosseguiu, falando:
– Sente-se, minha irmã, eu lhe contarei tudo. Sei que não
será nada fácil para você, mas lhe contarei tudo. Só peço que se
mantenha calma. O problema é com Eulália.
– Isso já sabia, mas o que há com nossa irmã de grave
que até o padre foi chamado aqui?
– Ela está grávida. Um homem lhe fez mal. E o pior é
que este homem é comprometido, o que agrava mais ainda a
situação dela.
– Meu Deus, só não tinha certeza da gravidez, mas sabia
que Eulália estava se envolvendo com um homem casado. Isso
para mim já era um fato.
Coloquei as mãos na boca e depois falei, novamente:
– Papai deve estar possesso com essa situação. Pobre
Eulália, o que será dela?
– Santo Deus, minha irmã, você ainda não entendeu? Ou
você é muito ingênua ou está se fazendo de ingênua para não ver
a realidade que está à sua frente. – na verdade Pietro estava
certo, eu não queria mesmo saber da verdade. Porque sabia que
ela seria muito dura para mim. Dei um longo suspiro me
fazendo de rogada respondendo em seguida:
– Sim, entendi, logicamente que sim. Eulália está em
apuros e não é por causa das nossas desavenças que a
abandonarei. Nunca a deixarei, e muito menos permitirei que
nosso pai a expulse de casa. Ela é só uma menina! Preciso ir
agora mesmo para a sala e tentar ajudá-la, mostrando-a que
estou do lado dela.
Quando eu já estava saindo, Pietro falou:
Adriana Matheus
33
– Ainda não percebeu? O homem que fez mal à nossa
irmã é Maxuel. Como pode estar preocupada com a situação de
nossa irmã se tudo o que ela fez até agora foi apunhalá-la pelas
costas? Ela a traiu, minha irmã, tomou seu noivo. E Maxuel,
este sim, é um crápula dos grandes, porque sabia que ela é sua
irmã querida.
Ao ouvir aquelas palavras, voltei para trás e deixei o
corpo cair sobre a cadeira que estava no meio da cozinha. Pietro
continuava falando e falando, mas eu não ouvia as palavras que
saíam de sua boca. Minhas mãos pareciam estar dormentes e
tudo começou a rodar à minha volta. Comecei a pensar no
quanto fui ingênua em acreditar que Maxuel me amava. Vi meus
sonhos e meus planos desfeitos, escorrendo por água abaixo.
Fiquei me perguntando quanto tempo perdi com aquele noivado
de mentiras e traições. Por certo, todos sabiam, menos eu. Senti-
me uma tola.
– Sou uma estúpida! – saíram em voz alta aquelas
palavras de revolta – Vocês todos sabiam disso, não é, Pietro?
– Não. Não sabia; talvez mamãe soubesse. Estou tão
confuso e indignado quanto você, acredite.
– Não, acredite: ninguém está tão indignada quanto eu,
ninguém está tão machucada quanto estou! Fui traída pela
minha própria família. Como você acha que estou me sentindo?
– Imagino como está se sentindo.
_ Não, meu caro irmão, você não conseguiria imaginar
como estou me sentindo.
– E o que pretende fazer? Creio que lá fora estão todos
com as mãos atadas.
– Pelo visto deixaram a batata quente para eu segurar.
Acredite: farei o que for correto, como sempre. Não é isso que
sempre esperam de mim?
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
34
Meu irmão baixou a cabeça e nada mais disse. Em
seguida, saímos da cozinha, em total silêncio.
Na sala, estavam todos murmurando e o casal de
traidores estava cada um em seu canto, com as cabeças baixas.
Ergui os ombros e olhei para todos ao meu redor. Disse em tom
de desprezo:
– Maxuel, acompanhe-me até a varanda. Quero falar a
sós com você imediatamente.
Ele, porém, arregalou os olhos e concordou com a
cabeça, parecendo surpreso. Minha mãe tentou me impedir
quando eu já estava saindo, dizendo:
– Não faça nenhuma bobagem, minha filha, da qual você
possa se arrepender mais tarde. Pense em sua irmã: ela é só uma
criança inocente.
– Já fiz a maior bobagem desta vida quando aceitei me
unir a este crápula, cujo sangue que carrega nas veias tem um
pouco do meu sangue também. E quanto à minha doce e ingênua
irmãzinha, creio que ela não foi tão inocente quando seduziu
meu noivo. Portanto, saia da minha frente que farei o que é
correto, independente do que seja a vontade de todos vocês.
Saí porta afora e fui ter com Maxuel, que estava
debruçado no beiral da varanda. Estava com a face pálida, como
se estivesse em um navio balançando. Ele parecia que estava
tendo uma vertigem. Porém, não me deixei abalar, como fazia
de costume. Ele se virou imediatamente quando percebeu a
minha presença e veio logo de braços abertos ao meu encontro,
dizendo:
– Perdoe-me, meu amor, eu a magoei. Mas tudo se
resolverá. Nós nos casaremos e quando o bebê de sua irmã
nascer, nós o acolheremos como se ele fosse nosso filho. Assim,
sua irmã poderá seguir com a vida dela naturalmente e, quem
sabe, poderá até se casar!
Adriana Matheus
35
Dei um sorriso triste e decepcionado e, depois de
repudiar o afeto dele, respondi-lhe:
– Pensou em tudo, não é? Como sempre...
– Sim, meu amor. Pedirei a meus pais que a levem para a
fazenda, onde ela terá total privacidade de gerar essa criança.
Ninguém ficará sabendo. Por isso, poderemos criar a criança
como se fosse nossa.
Dei um sorriso sarcástico e respondi imediatamente,
entre dentes:
– Essa criança, que você menciona com tamanho
desprezo, é seu filho também. E por acaso o senhor achou
mesmo que eu faria parte dessa trama inescrupulosa, na qual sou
a vítima?! Quer mesmo que eu passe de vítima a vilã? Nunca me
prestaria a um papel ridículo e tão baixo como esse de ser sua
amante e esposa. Ou acha que eu acreditaria que você e minha
irmã não vão continuar se encontrando às minhas costas?
Desprezo-o, Maxuel Alencastro. E quanto à minha irmã, ela que
fique com o resto de tudo de bom que passei ao seu lado. Não o
quero mais, não passarei o resto de minha vida ao lado de um
homem que nunca deixará de pensar na cunhada. E também não
me sujeitarei à humilhação de ter que criar o filho bastardo
daquela pessoa que, a partir de hoje, morreu para mim. A única
coisa que me deixa triste é saber que não quis ver a traição dos
dois, porque me negava a acreditar que seriam capazes disso
comigo. Só lhe direi mais uma coisa: passe o céu e passe a terra,
vocês nunca serão felizes ao lado um do outro; não terão um dia
de suas malditas vidas que não pensarão na traição que fizeram
comigo; e desse desgosto morrerá a minha irmã.
– Não, essa não pode ser você! Não acredito que me dará
para sua irmã, que não lutará pelo nosso amor. Tudo poderá ser
diferente, não percebe? Basta que aceite a minha proposta e tudo
ficará bem. Porei uma pedra em cima de suas palavras tolas,
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
36
pois sei que só está aborrecida comigo, sei que isso passará com
o tempo.
Dei uma gargalhada que fez com que minha tia chegasse
à porta. Porém, não dei importância e continuei:
– Nunca farei o que é conveniente para vocês. Farei, sim,
o que sei que é correto para mim. Jamais, enquanto eu viver,
perdoarei essa traição.
Olhei para a porta e vi que todos estavam na varanda,
escutando boquiabertos o que eu havia dito. Levantei a cabeça e
ressaltei:
– Sim, é exatamente isso que disse: não me casarei com
Maxuel! Que ele fique com essa mulher que, para mim, a partir
de hoje, está morta. E quanto a você, Eulália, reclamava tanto
das minhas migalhas e agora terá que viver com elas para o resto
de sua vida, pois o resto do homem que estou deixando para
você nunca a amará e ainda saberei que você chorará lágrimas
de sangue por causa das traições que este crápula cometerá. E
reze, mas reze muito, para que essa criança venha com saúde. E,
se nascer, reze para que Deus perdoe essa traição e que esse
rebento não lhe tire o que lhe é mais precioso.
Dizendo isso, virei as costas e saí em direção à praia.
Minha mãe estava com a mão à boca. Meu pai não demonstrou
nenhuma reação. Minha tia parecia estar passando mal, e o
padre ficou a me esconjurar devido à praga que eu havia rogado
contra Maxuel e Eulália. Porém, não dei importância nenhuma a
ninguém. Sabia que o que disse não era correto. Mas, naquele
momento, estava com tanto ódio que meu coração não respondia
a nenhuma coerência que viesse do meu cérebro. Não queria ser
sensata: queria magoá-los como me magoaram. Queria correr,
fugir, sumir de toda aquela sujeira. Sentia-me um lixo humano.
Eram seis horas da tarde. Aparentemente estava frio, mas
meu corpo não sentia absolutamente nada. Caminhei por horas a
Adriana Matheus
37
fio e nem percebi o cair da noite. Quando finalmente parei de
andar, percebi que estava sozinha. Então, ajoelhei-me de frente
para o mar e gritei o mais alto e forte que pude. Depois, deixei
as lágrimas caírem até que secasse todo aquele sentimento de
tristeza, dor e perda. Fiquei horas olhando o mar e refletindo
sobre tudo. Lembrei-me das palavras da velha quando ela disse
que eu estava sendo traída naquele dia, dentro da minha própria
casa. Refleti sobre muitas coisas. Percebi o quanto vinha me
iludindo quanto ao caráter de Maxuel e Eulália. E se a velha
tivesse razão? E se eu fosse uma bruxa? No meu estado normal,
nunca havia rogado uma praga em toda a minha vida. E se a
velha havia me enfeitiçado e agora estava eu com uma maldição
sobre os ombros?
Estava tão confusa e cansada, mas não queria voltar para
casa. Fiquei parada em frente ao mar, de joelhos sobre a areia
úmida e fria. O mar dos meus olhos misturava-se com as águas
salgadas do oceano. Sentia-me sozinha e perdida. Não sabia que
atitude tomar. Foi quando resolvi pronunciar o nome da velha
cigana em voz alta. Queria que ela viesse ao meu socorro.
Porém, nada aconteceu. Senti-me impotente e enganada, pois de
alguma forma quis acreditar que aquela velha era mesmo capaz
de me ajudar. Dentro de mim, uma mistura de sentimentos:
queria ser mesmo uma bruxa poderosa, pois, além de aquela
ideia fascinar-me, isso me daria poder para destruir aqueles que
me haviam machucado. Mas, ao mesmo tempo, sentia medo e
dor por ter perdido Maxuel. Senti revolta, impotência e
desprezo. Lembrei-me de todos os santos, mas não quis
pronunciar o nome de Deus: achava que Ele também havia me
traído. Gritei, gritei com todas as forças que havia dentro das
minhas entranhas. Gritei alto até que minha voz se calou com o
som dos ventos. Levantei-me, meio cambaleando, e resolvi, por
fim, voltar para casa. No caminho, eu ia pensando que a
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
38
primeira coisa a fazer era tirar minha irmã de dentro do meu
quarto. Não queria vê-la novamente, não queria qualquer
proximidade com aquela que foi a causadora de toda a minha
ruína.
Quando finalmente retornei a casa, já passava das dez da
noite e minha mãe esperava-me na soleira da varanda. Ela veio
ao meu encontro, demonstrando preocupação e dizendo:
– Filha, onde você estava? Não consegui dormir de
preocupação. Precisava saber notícias sobre você.
Porém, não respondi nada e recusei qualquer
demonstração de afeto vinda da parte dela. Mas uma coisa me
chamou atenção no meio de toda aquela interrogação. Foi
quando ela disse:
– Seus tios levaram Eulália para viver na casa deles.
Acharam melhor que ela ficasse lá, já que vão se casar. Assim
também evitará mexericos da parte dos vizinhos. Eu... sei que
você não aprovará, filha, mas faremos uma cerimônia bem
discreta no próximo sábado. Sua irmã diz que faz questão da sua
presença. Ela ficou muito grata por você ter entendido a situação
dela, embora ela saiba que você tenha ficado decepcionada com
ela. Filha, imagino o quanto você está magoada com sua irmã,
mas as coisas nem sempre acontecem como planejamos. Vai ver
era o destino de sua irmã casar-se com Maxuel.
Olhei para trás com tamanho desprezo que nem mesmo
me reconheci, respondendo em seguida:
– Quer dizer que além de traidores vocês são todos
coniventes com o que os dois fizeram? Não espere que de hoje
em diante eu seja a mesma pessoa, mãe.
Respirei profundamente e continuei:
– Todos vocês me desrespeitaram, traíram-me, e agora
alcovitam essa situação, tratando essa história como se Eulália
fosse a vítima. Saiba que não irei ao casamento desses dois, que
Adriana Matheus
39
estão mortos a partir de hoje para mim. E também, a partir de
hoje, não quero mais ouvir falar dessa história. Agora, por favor,
deixe-me em paz que quero dormir. Se pudesse, a partir de
agora, não acordaria mais só para não ter que vê-los novamente.
Dizendo aquelas palavras amarguradas e revoltosas,
fechei a porta do quarto, batendo-a à face de minha mãe. Mas
pude perceber que ela havia ficado chorando do lado de fora.
Pude ouvir seu choro. Sei que me portei mal e de maneira cruel
com ela. Mas, naquele momento, não me importava com os
sentimentos dos outros, somente com a minha dor – de tão
tamanha dava para rasgar o tempo, transformando-me em algo
que eu não era: uma mulher amarga e fria.
Tranquei as venezianas e coloquei alguns panos rasgados
nas arestas para não ver os raios de sol do dia seguinte. Queria
solidão absoluta, e o escuro era a forma de esconder a dor que se
encontrava na minha alma. Pelo menos eu achava que essa fosse
a solução para os meus problemas – o que não é verdade, pois
cada vez que estamos passando por um momento muito difícil,
temos a tendência de nos isolarmos, sendo que a solução para a
dor é somente o tempo. Isolar-se, como fiz, só serviu para uma
coisa: prorrogar meu sofrimento. Pois cada vez que ficamos
presos a lembranças amarguradas e tristes, permanecemos
presos no mesmo lugar. Isso não é bom, porque o tempo voa
rapidamente e a vida continua a seguir seu rumo. O preço para
quem teima em se agarrar às amarguras da vida é a solidão
eterna. Naquele momento, não ouviria ninguém, nem mesmo o
meu próprio eu.
Joguei-me na cama, agarrando-me ao travesseiro. Acho
que estava tão cansada que mal percebi se o sono chegou ou
não.
O quarto estava totalmente escuro. Não havia deixado
nenhuma fresta para que a luz do luar entrasse. De repente, algo
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
40
muito estranho e nefasto aconteceu. Barulho àquelas horas?
Levantei a cabeça para ver o que era. A porta do meu quarto
estava entreaberta, mas lembro-me de tê-la trancado pelo lado
de dentro. Isso foi o que mais me impressionou. Levantei a
cabeça para ver o que ou quem estava me olhando aos pés da
cama, pois aquela forte presença incomodava-me. Mas, devido à
penumbra, mal consegui ver meus próprios pés. Então, resolvi
sentar-me à cama. Foi quando me deparei com um homem bem
trajado, com cartola e fraque, na minha cabeceira, olhando-me.
Ele sorriu.
Era um homem de porte físico forte e, embora fosse
muito bonito, havia algo de estranho com ele. Imediatamente
indaguei-o, perguntando-lhe o que ele estava fazendo dentro dos
meus aposentos e como conseguiu entrar em minha casa sem ser
percebido. Ele me respondeu, mas seus lábios não se
movimentavam. Era algo imaginário e fora do comum aquela
presença masculina dentro do meu quarto. Ao perceber que seus
lábios não se movimentavam, mas que podia ouvi-lo, meu corpo
arrepiou-se por inteiro. Aquela voz grossa e rouca... Nunca
esquecerei! O tom daquela voz era aveludado e ele se
expressava polidamente, o que me deu a entender que ele estava
tentando não ser ouvido pelos demais da casa. Talvez não fosse
fácil, pois, embora ele fosse educadíssimo e falasse muito baixo,
a rouquidão daquela voz a deixava no ar. Havia algo de errado,
pois cada vez que pronunciava uma palavra comigo, o quarto
enchia-se de ecos, como se estivéssemos em uma caverna
profunda ou como se as almas estivessem falando junto com ele.
Aquilo começou a me assustar, pois aquele homem, com o tom
de voz que parecia ter saído do além-túmulo, falou, olhando
fixamente nos meus olhos:
Adriana Matheus
41
– Você é minha, Emanuelizia... Há muito tempo tenho
esperado por você. E agora chegou a hora de buscá-la. Acredite,
nunca mais vou deixá-la.
Estremeci tanto e senti que, de alguma maneira, minhas
forças vitais não me pertenciam mais. Cheguei a urinar de tanto
medo. Por fim, as palavras saíram depois de algum esforço.
Mas, como meus lábios permaneciam imóveis, prosseguimos
em uma conversa telepática. Perguntei-lhe:
– Quem é você?
– Sou aquele que faz as pedras chorarem, sou o dono do
fogo, o último nome no livro do apocalipse, a verdade escondida
por trás de muitas fábulas. Sou a voz que ecoa no meio da
escuridão, calando-se no silêncio dos mortos. Venho a esta casa
cobrar algo que me pertence. Uma dívida muito antiga...
– Não o entendo! O senhor é louco? Como foi que o
senhor conseguiu entrar em meus aposentos? Quem foi que lhe
deu permissão de invadir a minha casa? Vou gritar e logo meu
pai estará aqui.
– Não preciso de permissão para entrar em lugar algum,
pois os lugares são abertos a mim pelos corações de vocês, seres
humanos. A maldade, a raiva, a inveja, a vaidade e a desordem
que vocês causam no mundo são as principais portas para que eu
entre em qualquer lugar que seja. Pode gritar, minha querida:
saiba que estou aqui justamente porque ouvi seus gritos na praia.
Vim para aliviar a sua dor.
Assustada com aquelas palavras, afirmei:
– Você é o demônio.
Ele, porém, colocou as mãos na cintura e deu uma
gargalhada que estremeceu todo o ambiente, respondendo-me
em seguida:
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42
– Essa é só mais uma das minhas alcunhas, minha
querida. A cada dia que passa, um de vocês me batiza com um
nome diferente. Mas, para você, apresento-me como Zholar.
Dizendo tais palavras, ele se reverenciou a mim da
maneira que faziam os cavalheiros e os nobres.
Repudiei-o, dizendo:
– Arrede-se de mim, criatura sem nome! Não o chamei
aqui e não quero nada com você. Sou filha de um Deus vivo e
não quero nada com o rei dos mortos. Não passa de um verme.
É um imundo e quer minha alma. Pois saiba que não lhe darei.
Novamente ele deu a mesma gargalhada debochada e
prosseguiu:
– Você é tão ingênua como eu imaginava. Saiba que
você não tem escolha, minha amada. Além do mais, não estou
perguntando o que você quer de mim, – estou afirmando que
você é minha. Você é a mulher que foi prometida para ser minha
noiva por toda a eternidade.
– E quem é você para me impor alguma coisa, sua besta?
Jamais cederei às suas vontades. Nunca possuirá a minha alma
ou o meu coração, que é puro, pois nunca cometi nenhum delito
contra a moral e contra o meu Deus. Sei que você é o pai da
maldade e da perversão. Mas, sendo eu filha de Deus, digo-lhe:
arrede-se de mim em nome de Jesus, pois jamais serei sua, filho
das trevas.
Novamente a gargalhada sarcástica e debochada. Em
seguida, a criatura respondeu-me. Porém, dessa vez seus olhos
tornaram-se perversos e furiosos, brilhando como tochas no
escuro do meu quarto:
– Todos nós somos filhos Dele, minha amada. E desde
quando eu lhe disse que queria uma alma corrompida e um
corpo devasso e sujo? Acha mesmo que se eu quisesse já não
teria qualquer uma, seja nesta casa ou em qualquer outro lugar?
Adriana Matheus
43
Não posso levá-la contra a sua vontade, – o que é uma pena!
Mas em breve estarei esperando pelo seu pedido de socorro.
Então, cá estarei, pronto a lhe servir.
Reverenciou-se novamente e prosseguiu:
– Pois este a quem tanto grita e clama com veemência na
hora do seu desespero não lhe responderá como não lhe
respondeu hoje mais cedo. – dizendo isso, a besta sacudiu a
capa.
Percebi que por dentro era de veludo cor de carne. Ele
aproximou-se de mim. Então, baixei os olhos, pois não queria
fitá-lo. Foi quando vi que seus pés eram como os de um bode.
Apertei os olhos e senti que o quarto todo gelou, como se
estivesse nevando dentro dele. A besta, antes de desaparecer,
tocou em meu antebraço esquerdo com os dedos, próximo ao
pulso. Senti que suas mãos geladas queimaram minha pele com
aquele toque macabro. Sentei-me na cama, assustada e com a
respiração ofegante, procurando uma resposta plausível para
tudo o que me aconteceu. Estava com o corpo todo suado e
havia molhado a camisola de algodão azul.
Respirei, olhei ao meu redor e percebi: tudo tinha sido
apenas um pesadelo. Dei graças a Deus, sentindo-me aliviada.
Preocupada com aquele suposto pesadelo, e imaginando que o
havia tido por causa das minhas atitudes de ódio e mágoa contra
a minha família, imediatamente fiz minhas orações. Em seguida,
retirei os lençóis que havia colocado nas arestas, abri o quarto e
deixei a luz entrar, levando para longe as trevas. Olhando para
aquela manhã maravilhosa e iluminada, pedi a Deus para me
livrar dos maus pensamentos e que me ajudasse a perdoar minha
irmã e meu primo. Logo a paz e a harmonia foram tomando
lugar na minha alma. Eu não era daquela forma e, de alguma
maneira, aquele sentimento vil estava atraindo energias
negativas para junto de mim.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
44
Acabei de ajeitar a cama e arrumei-me apressadamente,
pois estava atrasada para cumprir com meus afazeres matinais.
Foi quando, na hora exata em que eu estava me vestindo,
percebi que havia uma marca de queimado no meu pulso. Meu
Deus! – pensei comigo mesma. Era verdade, eu não havia
sonhado. Fiquei tão assustada que saí do quarto às pressas.
Eu deveria estar muito pálida, pois minha mãe, ao ver-
me, foi logo dizendo:
– Emanuelizia, você está se sentindo bem? Está tão
pálida!
– Sim, mãe, mas me aconteceu um fato muito estranho
esta noite.
– E o que foi?
Depois que ela me trouxe um copo d’água, contei-lhe
tudo, em todos os detalhes. A reação dela foi muito estranha,
ultrapassou as minhas expectativas: além de ter ficado
assustada, ela empalideceu, deixando o corpo cair, jogando-o
sobre uma cadeira. Mediante aquela mulher aparentemente
aterrorizada, perguntei, curiosa:
– Mãe, o que houve? Agora quem está empalidecida é a
senhora.
Ela baixou a cabeça e depois prosseguiu, contando-me a
seguinte história:
– Foi há muito tempo e, por isso, nunca dei importância
a esse assunto, achando que não passava de uma lenda ou
invenção de seus avós, pais de seu pai. Mas eu deveria tê-la
contado antes e, principalmente, deveria ter feito alguma coisa.
Ela começou a chorar e nada me fazia conseguir consolá-
la. A cada instante, eu ficava cada vez mais assustada e curiosa.
Interroguei-a, depois que percebi que já estava mais calma.
Adriana Matheus
45
– O que, mãe, deveria ter sido feito que a senhora não
fez? O que a senhora deveria ter me contado e não contou? A
senhora agora conseguiu me deixar apreensiva e curiosa.
Seus olhos eram pura tristeza e pavor. Depois de enrolar
as mãos no avental, ela prosseguiu gaguejando:
– No dia do seu nascimento, seu pai e sua avó paterna
desejaram que você fosse um menino para que pudesse ajudá-lo
na pesca, e também para quebrar a maldição que já vinha
acompanhando a família dele havia séculos.
Ela levantou-se da cadeira e começou a andar de um lado
a outro da cozinha. Levantei-me também, fui à sua direção e
segurei-a pelos braços, dizendo:
– Tenha calma, mamãe. Sente-se novamente e respire.
Agora, diga-me: de que maldição a senhora está falando?
– Você não entende, minha filha. A culpa foi minha, pois
não fui capaz de dar um primogênito homem a seu pai. Canta a
lenda que há muitos e muitos anos uma mulher de nome
Carmélia Pontes apaixonou-se por seu tataravô. Porém, ele não
correspondeu a ela e ainda a deflorou depois de uma bebedeira,
na frente de seus amigos. Deixou a pobre mulher ao relento e à
mercê da vergonha e do acaso. Ele nunca se importou com os
sentimentos da pobre mulher e sumiu no mundo, só retornando
casado com sua tataravó Nércia. Só que a tal mulher para quem
seu tataravô havia feito mal era uma feiticeira muito poderosa e
lançou uma maldição sobre a família de seu pai. Ela jurou que
a sétima mulher a nascer primogênita, a partir daquela
geração, antes de completar o vigésimo primeiro aniversário
ainda virgem, seria uma praga sobre a terra. Sua alma seria
levada pelo Diabo em pessoa. Ela reinaria por toda a
eternidade ao seu lado como sua esposa. Quando você nasceu,
todos queriam afogá-la, mas seu pai não deixou. Sua avó ficou
durante anos sem falar com o seu pai por causa dessa atitude
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
46
dele. Pois todas as primogênitas da família eram afogadas
assim que nasciam. Seu pai, porém, foi um homem de coragem e
disse que, se notasse algum mau indício demoníaco em você, ele
mesmo o faria. Mas até hoje você nunca deu indícios de nenhum
mal sobrenatural ter possuído o seu corpo. Pelo contrário, você é
uma jovem meiga e doce. Sua avó faleceu e, de desgosto, os
aldeões quiseram nos queimar vivos, então seu pai veio para
esta vila. Desde então, ele vem bebendo como um louco. É por
isso que me calo diante de certas atitudes violentas que ele
comete, não sou omissa como pensam, sou devotada e sei o que
ele tem passado carregando nas costas esse segredo durante
todos esses anos. Somos amaldiçoados, Emanuelizia, se alguém
souber dessa história não teremos chance contra a inquisição.
Eles a levarão...
Ela baixou a cabeça e calou-se, percebendo sua tristeza
prossegui: – A senhora deveria ter me contado isso antes! Essa
história muda muito o meu conceito quanto ao caráter de meu
pai, embora não justifique que ele a maltrate tanto. Mas o
restante da história é loucura! As minhas outras tias, irmãs de
papai, tiveram filhas também. Por que a senhora acha que essa
infeliz teria que ser eu?
– Porque sua tia Feliciana teve três meninas, é certo.
Porém, ela teve uma menina antes de todas, que nasceu morta. E
a sua outra tia, Marta, só teve um menino.
– Mas como? E a Maria da Cruz? É mais velha que
Olavo.
– Sim, mas Maria da Cruz é fruto de uma desventura que
seu tio teve fora do casamento.
– Então, Maria da Cruz não é filha legítima de minha
tia? Somente de meu tio?
Adriana Matheus
47
– Sim. E como todos sabem, seu tio mais velho, irmão de
seu pai, é um solteirão. Nunca quis se casar por medo da
maldição. Dizem até que ele é um eunuco, que ele mesmo fez
isso consigo por medo da maldição.
– Mãe... O que será de mim, então? Se esta história for
verdadeira, serei uma maldição.
– Sim, pois foi por isso que nós a entregamos em
casamento para seu primo logo que ele nasceu. Mas parece que
deu tudo errado. Diga-me, Emanuelizia, Maxuel nunca foi além
com você?
– Não, mãe, claro que não.
– Pois saiba que preferiria tê-la desvirginada a saber que
poderá ser esposa do demo.
– Não entendo, mamãe, por que tenho que pagar por
tantas coisas. Por que será que o destino reservou uma sina tão
cruel como essa para mim? Parece-me que nunca serei amada de
verdade, que a minha vida será vagar pela eternidade, causada
por um destino cruel. Sinto-me um monstro! Mãe, não quero ser
esposa do demônio, sou filha de Deus. Não quero esse destino
para mim. Tem que haver algo que possa ser feito!
– Não sei o que fazer, filha. Mas, por ora, não falaremos
nada com seu pai. Você sabe como é o temperamento dele.
Precisamos pensar com calma. Logo irei ao seu quarto e, juntas,
pensaremos em alguma coisa. Mas, por ora, fique calma e não
pense mais bobagens. Vá dar uma volta pela praia para aliviar
seus pensamentos. Não quero que me ajude hoje com a casa.
Quero pôr também meus pensamentos em ordem, e a única
maneira que consigo isso é ficando sozinha com meus afazeres.
Naquele dia, caminhei por mais ou menos duas horas à
beira-mar. Depois de ter colocado meus pensamentos em ordem,
cheguei à seguinte conclusão: a solução seria encontrar
novamente a velha cigana. Porém, não sabia como fazê-lo, pois
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
48
chamei alto seu nome e nada aconteceu. Dúvidas invadiam a
minha mente, pois já não sabia se a velha era real ou apenas
mera imaginação. Pensei comigo Será que ela era sonho ou
realidade? Pois naquele dia eu havia adormecido na areia.
Retornei para casa e tranquei-me no quarto, sem querer
ouvir ou falar com ninguém. Não quis almoçar ou jantar.
Apenas fiquei sozinha com meus pensamentos, até que...
"Nesta vida, mesmo que tudo seja passageiro, é
obrigatório que sejamos honestos em nossas conquistas."
Adriana Matheus
49
II – A Iniciação
inha mãe abriu a porta de maneira silenciosa, entrando
na ponta dos pés e tentando não fazer nenhum barulho
para não me acordar. Porém, ao ver aquela cena achei
hilariante, levantei-me de costas apoiando nos cotovelos e falei-
lhe, sorrindo:
– Mãe, não precisa ser tão cautelosa para não me acordar,
pois já estou acordada. E mesmo se quisesse dormir, não
conseguiria. Na verdade, estou esperando-a para tentarmos
juntas chegarmos a uma conclusão sobre o que falamos hoje
pela manhã. Confesso que passei a tarde toda pensando em uma
maneira de tentarmos reverter a minha maldição, mas não
consegui pensar em nada.
– Filha... Sinto muito, mas não consegui pensar em nada. –
disse ela, muito decepcionada, jogando-se na cama e caindo
sentada.
Levantei-me e fui até a outra extremidade onde ela estava.
Ajoelhando-me ao chão, bem à sua frente, falei:
– Tenho que lhe contar um fato que não lhe contei hoje
cedo. Não estou dizendo que essa é a solução, mas é o único
caminho que consegui achar.
Mordi os lábios e fiquei fitando-a nos olhos, esperando
uma resposta – ou melhor, uma interrogação. Ela estava de
cabeça baixa, com as mãos em posição de oração. Por fim,
M
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
50
levantou a cabeça e fitou-me meio desconfiada, como se
soubesse que o que eu tinha a dizer não era boa coisa. Mediante
aquela atitude – que só me passou mais insegurança ainda –,
disse a ela:
– Ontem, como a senhora disse, não lhe contei tudo o que
houve comigo.
Ela levantou as sobrancelhas e falou:
– E ainda houve mais alguma coisa que você me deveria
ter dito? Santo Deus! Deixe-me preparar o espírito – disse ela,
recostando mais para trás.
Eu, no entanto, estava aflita e ansiosa. Não sabia qual seria
a reação dela, mas uma coisa era certa: eu tomaria as minhas
próprias decisões.
– Escute, mãe, é muito importante! Depois que eu e
Eulália discutimos ontem, fui atrás dela nas pedras, tentando
saber o motivo pelo qual ela andava tão nervosa e grosseira
comigo. Não adiantou muito, pois discutimos mais ainda e só
serviu para que sentíssemos mais mágoas uma da outra.
Mediante o esforço inútil, saí e fui caminhar à beira da praia.
Porém, resolvi parar e descansar. Então, sentei-me em frente ao
mar e acho que acabei adormecendo... Não tenho certeza, acho
que adormeci ou cochilei, não sei ao certo. O fato é que, ao abrir
os olhos, deparei-me com uma senhora, ou melhor, uma velha
cigana. Esta mulher disse-me que estava havia tempos me
procurando e que me conhecia desde meu nascimento. A
princípio, achei que era apenas uma velha louca, pois ela me
disse que eu era a sua escolhida e que em breve tomaria o seu
lugar. Contou-me coisas... Na hora, não atinei para os fatos, mas
agora tudo o que ela me disse está fazendo sentido. Estou
decidida a procurá-la.
– Emanuelizia, você enlouqueceu? Você não conhece essa
mulher! Ela pode ser a mulher que amaldiçoou a família de seu
Adriana Matheus
51
pai. Não posso permitir que cometa tamanha sandice. O que ela
pode fazer por você?
– Não creio que essa mulher seja a mesma que amaldiçoou
a família de meu pai; ela deve estar morta há muito tempo.
– Minha filha, raciocine um pouco. Não posso permitir
que faça isso, é muito arriscado. E se essa mulher estiver
compactuando com o demônio? E se isso tudo for uma
armadilha? Filha, temos que pensar em todas as possibilidades.
Dizem que as feiticeiras podem viver muitos anos, até mesmo
séculos. Tem alguma coisa errada nessa história toda.
– Mãe, sei que a senhora pode estar certa, mas não vejo
outra saída. Acaso a senhora conseguiu pensar em alguma
coisa?
– Não, infelizmente não. Só que estou temendo por você,
filha... Se alguém desconfiar que esteja compactuada com essa
mulher e com a magia negra, você poderá sofrer sérias
consequências.
– Ninguém irá desconfiar, a menos que a senhora conte, é
claro. Mãe, se não acharmos uma maneira de me livrar dessa
maldição, estarei perdida. Desculpe-me, mas não vejo outra
saída que não essa.
Ela baixou a cabeça pesarosamente.
– Faça o que achar que lhe seja melhor, mas que fique
bem claro que não estou de acordo com você. E é melhor
tomarmos cuidado com esse tipo de conversa: se seu pai
descobrir, ele matará nós duas.
– Não se preocupe, mãe, esse será o nosso segredo.
Ela deu-me um beijo de boa noite na testa e saiu,
retirando-se para o seu leito. Senti no seu silêncio que ela estava
receosa. Respirei fundo e deitei-me, tentando adormecer, pois
sabia que o dia seguinte seria longo.
Amanheceu. Espreguicei-me na cama e levantei-me. Calcei as
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
52
chinelas e fui abrir a janela para dar uma olhada naquela manhã,
que parecia perfeita. Fiz minhas orações, deixando que as
palavras saíssem ao vento. Queria comungar com o universo
invisível. Depois, disse em voz alta:
– Eleanor... Eleanor... Eleanor... Perdoe-me, fui ingrata.
Preciso da sua ajuda, por favor. Estou implorando, preciso
mesmo da sua ajuda.
Pareceu-me não ter surtido efeito algum. Então, vir-me-ei
para dentro e fui arrumar-me para o desjejum. De repente, uma
fria brisa vinda do mar começou a soprar... Aquele frio gélido
arrepiou todo o meu corpo já despido. Quando já estava quase
totalmente vestida, minha mãe entrou ofegante pelo quarto,
pedindo para eu me vestir rápido, pois parecia que estava vindo
uma terrível tempestade e poderia se transformar em um
furacão. Peguei meu xale e saí correndo para ajudá-los. Meu pai
e meu irmão iriam avisar os demais pescadores, enquanto minha
mãe e eu nos dividiríamos e avisaríamos a vizinhança.
Foi uma correria. Confesso que nunca vi nada como
aquela tempestade antes. Olhei para o céu: ele havia ficado da
cor de terra, com nuvens espessas e negras que se juntavam às
demais, fazendo parecer que algo ruim iria acontecer. Quando
estávamos do lado de fora, na varanda, fiquei perplexa ao ver
tamanha confusão. O vento forte havia jogado tudo de um lado a
outro, e um verdadeiro caos estava se formando. Fiquei
catatônica, imaginando como um dia tão lindo poderia, de uma
hora para outra, transformar-se em um dia catastrófico como
aquele...
Quando dei por mim, meu pai e meu irmão já estavam
bem longe e minha mãe seguia rumo ao leste. Eu, porém, estava
meio perdida com meus pensamentos e confusões mentais.
Naquele momento, meu xale foi arrancado de mim pelo vento
forte e jogado na cerca de madeira da varanda. Corri para
Adriana Matheus
53
apanhá-lo e, sem querer, acabei olhando para cima. Foi quando
vi sobre o telhado de minha casa algo nada convencional.
Cheguei a cair de costas de tão assustada que fiquei: em
cima do telhado estava a velha Eleanor, flutuando sobre as
telhas. Porém, sua aparência era mais jovem e suas vestes eram
de um linho fino, marrom e preto, com um xale de renda
também preto – o que a fazia parecer ter asas de morcego. A
visão era incrivelmente assustadora, mas me fascinou a maneira
como ela flutuava. A mulher apontava com a mão esquerda para
as cavernas, ao norte. Levei um susto com a minha mãe
chamando-me. Então, vir-me-ei, levantando para atendê-la.
– Emanuelizia, venha rápido! Preciso que venha comigo à
casa dos Carriço. Vamos, menina, eles têm muitos filhos
pequenos e vai dar trabalho juntá-los!
Ao olhar meu semblante, disse:
– O que há, menina? Está pálida como palha de milho!
– A senhora não viu aquilo?
– Aquilo o quê?
– A bruxa! Ela estava em cima do nosso telhado,
flutuando! Ela apontava para as cavernas, ao norte.
– Não vi nada e acho que você deve esquecer essa bruxa.
Pode ter tido um surto de pânico e isso lhe causou essa suposta
visão. Se seu pai souber que estou falando com você sobre esses
assuntos, poderá expulsar-me de casa. Agora me siga, temos
muitos vizinhos que precisarão de nossa ajuda.
Concordei com ela, pois ela parecia muito assustada com
o suposto furacão que estava se formando. Mas, no exato
momento em que estávamos saindo, paramos para observar algo
ainda mais estranho: o vento havia parado de soprar e a
tempestade parecia estar indo em direção ao oceano. Ficamos
sem saber para aonde ir. Olhamo-nos e entendemos que aquela
tempestade não era natural, mas sobrenatural. Meu irmão e meu
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
54
pai estavam retornando, também assustadíssimos. Então,
resolvemos esperá-los: quem sabe pudessem nos dar umas
respostas para aquele fato inédito e sinistro? Ao se
aproximarem, meu pai falou imediatamente:
– Vocês viram essa tempestade? Parece que está indo para
o mar! Ou melhor, é como se ela tivesse se transformado em um
montinho de nuvens e agora está indo mar adentro!
Apenas concordamos com a cabeça e ficamos todos
juntos, olhando aquele fenômeno. De repente, como em um
passe de mágica, a tempestade foi sugada para dentro do oceano.
No mesmo instante, um céu límpido e cristalino abriu-se, como
se nada tivesse acontecido. Nosso silêncio foi interrompido
apenas pela voz do meu irmão, que disse:
– Não sei quanto a vocês, mas acho melhor não falarmos
disso a mais ninguém.
Meu pai, além de concordar com a cabeça, ressaltou:
– Mesmo porque poderão dizer que estamos possuídos por
espíritos imundos. É melhor todos ficarmos quietos. Deixe que
eu vá verificar no vilarejo se alguém soube do indício de alguma
tempestade. Isso não foi uma coisa normal... Havia algo de
malévolo naquela tempestade e, com certeza, isso foi obra de
alguma bruxa.
Minha mãe olhou-me nos olhos, como se pedisse socorro.
Porém, achei melhor não dizer nada.
– O senhor acha que pode ter sido causado por espíritos do
mal, meu pai? – perguntou meu irmão, com os olhos
arregalados.
– Não sei o que foi. Mas, com certeza, pelos anos que
tenho em alto-mar, sei que isso não é uma coisa normal. Nunca
vi uma tempestade ser sugada para o meio do oceano,
desaparecendo tão enigmaticamente.
Adriana Matheus
55
Minha mãe olhou para mim. Parecia estar tremendo, com
medo de que meu pai desconfiasse de alguma coisa. Voltamos
para casa em total silêncio. Ajudei minha mãe nos afazeres de
casa e com o almoço. Naquele dia, nem meu pai nem meu irmão
quiseram sair de casa. Pareciam receosos. Ficaram arrumando
alguns objetos que precisavam de reparos. Almoçamos todos em
total silêncio, mas confesso que estava ansiosa para ir à caverna.
Assim que terminei o almoço, levantei-me da cadeira e saí
às pressas, antes que minha mãe me pedisse para ajudá-la e meu
pai me impedisse de sair. Corri o mais que pude até que já havia
tomado certa distância de minha casa. Ninguém mais poderia
me alcançar. No caminho, fui pensando mil coisas como, por
exemplo, o porquê de aquela velha apontara-me as cavernas?
As entradas das cavernas eram formadas por inúmeros
recifes de corais. Eles formavam nas rochas pequenos laguinhos,
onde muitos animais marinhos viviam. As pedras também eram
escorregadias e muito perigosas, pois existiam muitos corais
venenosos – se me ferissem, poderiam até me matar. Tirei os
sapatos e as meias, deixando-os em uma pedra seca. Fiquei
imaginando uma maneira de não me ferir. Até que, por fim,
abaixei-me e fui deslizando sobre as pedras, pondo meus pés nas
águas geladas. Era gostosa a sensação de liberdade que aquelas
águas transmitiam-me.
Parei para observar os pequenos animais que deslizavam
por entre meus pés: peixinhos coloridos de toda espécie. Peguei
uma estrela do mar minúscula e fiquei analisando em detalhes a
perfeição daquele pequeno ser. Coloquei-a de volta nas águas.
Os peixinhos coloridos que nadavam entre as minhas pernas
faziam-me cócegas. Eu poderia ficar ali observando a natureza
marítima por horas, mas precisava ser um pouco mais apressada.
Depois de atravessar aquele pequeno mundo de laguinhos,
musgos e minúsculas criaturas; alcancei, por fim, a areia. Andei
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
56
por alguns minutos a mais até que, finalmente, cheguei às
entradas das cavernas. Havia duas entradas, mas a minha
intuição me disse para entrar pela abertura da esquerda. A
caverna era enorme e estava coberta por estalagmites que faziam
um contorno no chão, formando um labirinto. Ao passar em
meio a elas, rasguei a bainha do meu vestido, mas não dei muita
importância a isso. Fui seguindo as estalagmites até que cheguei
a um enorme saguão de rochas, onde uma lagoa de espelhos
d’águas havia se formado. No teto, pingavam gotas vindas de
inúmeras estalactites, o que explicava aquela incrível lagoa de
água cristalina. Algumas daquelas estalactites faziam formar no
chão desenhos em forma de espirais, outros pareciam flores e
animais. Formas distorcidas que aguçavam a minha imaginação,
dando vazão à criatividade dos meus pensamentos jovens. Eu
poderia viver ali para sempre se não fosse tão frio – pensei.
De repente, uma forte luz atraiu minha atenção para o
fundo da caverna. Ao seguir adiante, percebi que o lugar estava
sendo habitado por alguém, pois estava cercado de tochas presas
nas laterais das paredes. Fui seguindo as tochas até que, mais ao
fundo, entrei em um enorme salão de rochas, onde havia um
altar todo montado com estranhos símbolos. Um caldeirão
estava aceso e um grande livro estava postado ao seu lado –
objetos desconhecidos para mim até então. Comecei
curiosamente a tocar em alguns deles. Peguei um athame de
prata, cujo cabo era de ouro maciço, cravejado de pedras
preciosas. Era esplendoroso o tal artefato. Nunca tinha visto
nada igual! Depois, fui detalhadamente observando cada objeto
que encontrei. Confesso que alguns além de desconhecidos,
eram também sombrios. Estava tão distraída que levei um
enorme susto quando uma mão gelada tocou-me os ombros,
dizendo:
Adriana Matheus
57
– Vejo que a menina já está tomando gosto pela magia...
Isso é bom!
– Nossa, a senhora me assustou! Como foi que conseguiu
trazer todos estes objetos para esta caverna? – perguntei
ofegante, colocando a mão no peito.
Ela sorriu, remexendo o caldeirão de cobre com uma
colher de madeira enorme:
– Estou aqui há muitos anos. Cada objeto aqui dentro foi
trazido a seu tempo. Agora, responda: a que devo a honra de tão
cedo tê-la me esperando? Pensei que somente amanhã iria vê-la,
mas me enganei. Pelo que vejo, estou ficando velha mesmo.
– Não tenho tanto tempo assim. Por isso, tive que vir o
quanto antes. Achei que não se importaria, depois da aparição
triunfal e quase catastrófica desta manhã... A propósito, como
foi que fez aquilo?
Ela me sorriu largamente:
– Nem mesmo precisando da minha ajuda a menina deixa
de ser arrogante, não é? A senhorita tem que aprender a ser mais
humilde. Não sou sua escrava. E quanto à aparição, somente
com o tempo você conseguirá fazer certas ilusões.
– Desculpe-me, estou aqui porque realmente preciso da
sua ajuda. Se lhe pareci arrogante, não foi minha intenção. Mas
confesso-lhe que a sua aparição foi muito realista para uma mera
ilusão. Não sei o que dizer. Se eu um dia chegar a esse nível,
serei mesmo uma bruxa muito temida.
– Vamos parar com rodeios e ir direto ao ponto crucial que
lhe trouxe até aqui. E não me bajule, pois odeio esse tipo de
coisa – disse ela, dando um sorrisinho faceiro e virando-se de
costas, para remexer outra vez o caldeirão.
– Preciso saber se a senhora vai me ajudar. Estou com um
problema muito grande. Confesso que, pela primeira vez em
minha vida, estou com medo.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
58
Ela, porém, virou-se para mim com uma calma, dessas
causadas só por Deus, e disse, pegando-me pelo pulso:
– Ele a procurou, não foi? E, pelo que vejo, deixou sua
marca em você. Com certeza a menina está muito encrencada!
– Como a senhora sabe da existência dele? E como sabe
que ele me marcou se eu nem lhe contei os fatos ainda? Quem é
a senhora, afinal? – perguntei, meio desconfiada.
Ela deu uma gargalhada que ecoou por toda a caverna.
– Sei todas as coisas que acontecem no mundo. Estou
sempre atenta aos fatos e nada me passa despercebido. E é
lógico que ele iria procurá-la, pois queremos a mesma pessoa.
Eu a quero como discípula e ele a quer por toda a eternidade
como sua companheira. Além do mais, não preciso ser uma
bruxa para ver que ele deixou a sua marca no seu antebraço.
Não sou cega, querida, e ser observadora é uma característica
peculiar das bruxas. Estamos sempre atentas aos detalhes. Vá
aprendendo para que não se engane, ou seja, para não ser pega
de surpresa no meio do caminho. Quanto a quem sou, sou
apenas uma velha bruxa cansada de viver por uma longa
eternidade. Como disse, não gosto de rodeios e vou logo direto
ao assunto: quando vi a marca em seu antebraço, vi que você era
uma marcada e soube, então, que eu e a besta queríamos a
mesma pessoa. Porém, é claro, temos propósitos diferentes em
relação a você, como já citei.
– Como a senhora sabe da existência dele e como sabe
tanto sobre essa marca? Não me respondeu ainda!
Ela deu outra sonora gargalhada.
– A menina, pelo que vejo, tem muita curiosidade sobre o
assunto. Mas não se preocupe: estarei aqui para lhe responder.
Acredite: não estaria aqui hoje se não soubesse quem ele é e do
que ele é capaz. E quanto a saber sobre a marca da besta, é
simples: já vi essa marca no pulso de outra pessoa antes.
Adriana Matheus
59
– Quer dizer que a besta já marcou outra pessoa antes? E
quem foi ela?
Levantando a manga da túnica negra que vestia, ela
mostrou:
– Eu. Quando eu tinha a sua idade, a besta procurou-me
também, só que por motivos bem diferentes do seu, creio. Ele
disse que queria os meus poderes. Por isso, havia me escolhido
como sua aliada e discípula. Claro que isso era somente um
pretexto para que ele levasse a minha alma. A besta fez de tudo
para me convencer: ofereceu-me ouro e prata e tudo o que eu
pudesse desejar... Nunca cedi. Por isso, ele me marcou. É assim
que ele faz quando não o aceitamos: ele nos marca para
sabermos que ele é o soberano. É como se fosse um animal ou
senhor de escravos que tem que marcar o seu território e suas
mercadorias.
– E como a senhora conseguiu se livrar dele? Como?
– Não me livrei. Não é possível livrar-se dele com tanta
facilidade. Muito tempo depois do nosso primeiro contato, ele
voltou a me procurar e disse que eu não teria mais serventia para
ele, pois já havia encontrado a mortal que o serviria por toda a
eternidade. Mas disse que nos encontraríamos no inferno, pois
eu havia trabalhado muito para isso. Sabe como é... não se pode
ser perfeita o tempo todo! Pelo que vejo, teremos uma longa
tarde, não é? – disse ela ironizando, mas parecendo curiosa em
saber a minha história.
Contei-lhe em pormenores exatamente como a minha mãe
havia me contado. Ela não dizia nada – apenas ouvia e colocava
fumo em seu cachimbo. Quando terminei tudo, dei um suspiro e
fiquei fitando-a, esperando uma opinião. Na verdade, queria
mesmo é que ela me oferecesse ajuda. Ela levantou-se
calmamente, voltou ao caldeirão e provou o misterioso preparo.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
60
Depois de sorver aquele líquido, pegou duas tigelas e ofereceu
uma delas a mim:
– Tome este caldo. Está frio e, como disse, teremos uma
longa tarde.
Percebendo que eu havia ficado meio receosa, ela
prosseguiu:
– Se fosse veneno, eu também não iria tomar. Creio,
minha criança, que lhe colocaram muitas crendices na cabeça
sobre as bruxas. É somente um pouco disso e daquilo... nada
demais. Experimente, vai gostar!
Ela deu a gargalhada novamente. Sua ironia assustava-me.
A velha ficou quieta, sorvendo o líquido e observando enquanto
eu remexia o caldo de um lado a outro. Finalmente, respondeu-
me:
– Sinto lhe informar que seu caso é um caso perdido.
– Isso significa que a senhora não irá me ajudar? Pensei
que fosse uma bruxa poderosa, mas vejo que não sabe nada e
terei que procurar outra pessoa, então.
– Nunca disse que não a ajudaria, só lhe disse que o seu
caso não tem solução. Você faz parte de uma maldição que não
tem mais jeito de ser desfeita, pois a mulher que a lançou já está
morta, eu mesma a conheci. Era uma mulher perversa, não
media as consequências dos seus atos. Apaixonou-se
loucamente por um homem que a humilhou publicamente. Mas
ela não o esqueceu e amaldiçoou toda uma geração de
primogênitas. Só não imaginei que a minha escolhida seria
também a escolhida de satanás e parte dessa maldição tão
maquiavélica.
Ela deu de ombros e, depois de soltar outra de suas
gargalhadas, respondeu:
– O que está feito está feito, ora!
Adriana Matheus
61
– Então, se não tem jeito de desfazer a maldição, não vejo
o porquê de continuar a visitar a senhora.
– Arrogante como sempre! Posso não poder desfazer a
maldição, mas posso lhe ensinar os poderes da magia para que
possa defender-se das artimanhas da besta. Só quero preveni-la
para que nunca cometa o mesmo erro da mulher que a
amaldiçoou.
– E qual foi? Apaixonar-se?
– Não, isso é inevitável. Mas nunca deverá colocar um
homem como o centro de sua vida. Deverá seguir a magia com
respeito e coragem, pois é um caminho muito difícil. Não é um
caminho para pessoas fracas e covardes. Os deuses da magia são
ciumentos e melindrosos. Gostam de ser tratados com respeito e
carinho. E saiba que não é só porque você vai se iniciar na
magia que vai poder deixá-la de lado e usá-la apenas quando
bem quiser. Não é assim que funciona. A magia exige muita
leitura e prática constante. Agora, deixemos de conversa e
vamos tomar um caldo. Afinal, bruxas não se alimentam de
vento.
Dizendo isso, foi se servir de mais caldo – que, embora
muito cheiroso, pareceu-me bastante suspeito.
– Desculpe, mas o que estamos tomando? – perguntei-lhe.
Ela se virou para mim, colocou as mãos na cintura e
respondeu-me, seriamente:
– Ora, não sabe? Isto é caldo de sapo com orelhas de
morcego e patinhas de lagartixa.
Cuspi o que me estava à boca na hora. Ela quase rolou ao
chão de tanto rir.
– Criança tola, é disso que eu lhe falava: na magia, tem
que apurar até mesmo seu paladar e olfato. Senão, como poderá
diferenciar uma simples canja de galinha de um caldo de frutos
do mar? E mais: deve aprender que bruxas não são seres
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
62
mitológicos. Só comemos comida normal, não voamos em
vassouras e não fazemos sacrifícios com animais e seres
humanos. Praticamos a boa magia, mas temos ciência da magia
negra, embora não a usemos quase nunca. Jamais usamos
nossos poderes ou feitiços em benefício próprio, não usamos
droga ou qualquer subterfúgio desse tipo em nossos rituais
sagrados, e nunca praticamos orgias em nossos sabás. Entendeu?
– Sim, entendi.
– Espero que sim, sinceramente. Agora tome o seu caldo
de frutos do mar e pare de imaginar coisas que nada têm a ver
com a verdadeira prática da magia sagrada.
– Gostaria de obter a receita. – tentei perguntar-lhe de
maneira educada, ainda meio receosa com o caldo.
Ela serenamente levantou-se e respondeu com aquela
calma que só poderia vir de Deus:
– Se vamos trabalhar juntas, é preciso que confie em mim.
E o que é mais importante: que aprenda a apurar o seu paladar e
o olfato. Caso contrário, teremos sérios problemas com seus
preparos. E aprenda a ter um pouco mais de bom humor, pois,
apesar de ser ainda jovem, está aparentando muito mais idade do
que eu.
– Desculpe-me, senhora, mas fica difícil entender o seu
humor. Prometo que tentarei de agora em diante.
Disse isso baixando a cabeça e tentando passar para ela o
maior respeito possível. Não queria que ela se aborrecesse
comigo, pois não seria bom para a nossa convivência. Ela,
porém, olhou-me friamente, parecendo ter percebido quais eram
as minhas reais intenções. Disse-me com um olhar matreiro:
– Estou há muitos anos sobre a Terra e não admito que me
testem. Não sou eu quem procura respostas, é você. Existem,
talvez, duas possibilidades. A primeira é que você deverá perder
sua virgindade somente por amor. A segunda é: nunca deverá,
Adriana Matheus
63
em hipótese alguma, chamar por ele. Jamais, enquanto você
viver, deverá fazer acordo com a besta, mesmo que a sua vida
dependa disso.
– Somente isso? Então, pode confiar em mim: se depender
dessas duas coisas, minha maldição foi quebrada a partir de
hoje.
– Criança tola! Ninguém é dono do destino e muito menos
das próprias vontades. Acha mesmo que se Deus quiser, não te
prova isso agora? Ele pode muito bem deixar que a besta aja em
sua vida, pondo-lhe um falso amor e quando você perceber, já
estará perdida. Deus pode mudar o seu destino quando Ele bem
quiser, pois pertence somente a Ele. Você é uma jovem
presunçosa se acha que pode controlar seus desejos carnais. As
paixões mundanas da Terra fazem-nos tolas e cegas. Cuidado
para não cair em uma dessas armadilhas do destino, minha
querida. Continua teimando comigo, e o que é pior: achando-se
capaz de lutar contra as vontades de Deus.
– Se a senhora sabe mesmo todas as coisas, deve saber que
acabei de perder meu grande amor e que nunca mais amarei
outro homem sobre a Terra. Então, desta vez creio que a senhora
está enganada. E nunca, em toda a minha vida, farei um pacto
com a besta. Isso está totalmente fora de cogitação.
Ela parou de fazer o que estava fazendo, colocou as mãos
na cintura e disse:
– É a pessoa mais arrogante e tola que já conheci! Nunca,
em toda a minha existência carnal, conheci uma pessoa tão
presunçosa como a senhorita. Você nunca amou
verdadeiramente o seu noivo. Seu casamento iria ser por
conveniências. Sua irmã, embora tenha agido de má fé, ela sim o
ama. Se quer saber, creio que nunca saberá o que é o verdadeiro
amor. Temo que sofra sérias punições por causa dessa sua
maneira de achar que é a dona do seu destino e do dos outros.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
64
Fiquei em silêncio. Quando terminei de tomar o caldo
delicioso, ela disse:
– Agora vá, por enquanto. Está na hora de nos
despedirmos.
Antes de sair, ela me entregou vários livros:
– Quero-a de volta na semana que vem. Vai precisar desse
tempo para pôr suas ideias em ordem. Até lá, vá lendo esses
livros que farão parte do seu dia a dia de hoje em diante.
– Não sei se voltarei a procurá-la novamente, mas lhe
agradeço pelos livros.
Na verdade, eu estava ansiosa para começar a trabalhar
com a magia, mas não poderia demonstrar. Caso contrário, a
velha teria razão em tudo. Gostaria de saber de onde ela tirava
tanto humor, pois minha situação não era nada engraçada... Eu a
odiava no seu jeito de agir, mas precisava dela e tinha que me
manter calada, ou ela não me ajudaria. Ciente das minhas
verdadeiras intenções, Eleanor soltou outra gargalhada,
sacudindo a cabeça.
– Minha cara e tola discípula, uma vez conhecedora da
magia, nunca mais conseguimos nos livrar dela, querida!
Eu ia responder, mas, ao virar-me para trás, ela havia
sumido. Disse a mim mesma Esse truque quero aprender!
Voltei para casa, mas dessa vez não fui caminhando
lentamente. Apressei-me, pois não queria que meu pai
desconfiasse de nada. Cheguei em casa ofegante. Minha mãe, da
janela da cozinha, fez um sinal para eu pular a janela do meu
quarto: parecia que estavam com visitas em casa. Fiz o que ela
me mandou. Minha mãe já havia deixado a ânfora no quarto
para que eu me lavasse. Embora tivesse achado estranha aquela
atitude, a água morna foi de boa serventia, pois estava mesmo
precisando me lavar. Troquei de roupas e fui para sala. Para meu
espanto, deparei-me com Maxuel e meus tios, mas minha irmã
Adriana Matheus
65
não estava com eles. Ao ver-me, Maxuel baixou o rosto e nada
disse. Minha tia veio ao meu encontro, tentando abraçar-me.
Logo me esquivei, apenas dizendo:
– Como estão passando? Espero que bem, depois de tudo
o que me fizeram. Desculpe-me, tia, mas não preciso de sua
falsa piedade comigo. Aliás, não preciso de nada que venha de
vocês. – disse, olhando para Maxuel, que evitava me encarar.
Minha tia, prestes a cair em prantos, correu para os braços
de seu marido, que a acolheu, dizendo:
– Emanuelizia, tenha mais respeito por sua madrinha. Ela
nada tem a ver com o acontecido. Ela sempre a tratou com
carinho e respeito. Exijo que faça o mesmo com ela. Não
viemos aqui para discutir mais sobre esse assunto, que está
totalmente resolvido. Viemos aqui comunicar o horário do
casamento de sua irmã: sábado, às seis e vinte e seis da manhã,
na capela de Nossa Senhora da Consolação. Não tivemos a
intenção de vir aqui para afrontá-la. Sabemos como deve estar
se sentindo. Sentimos muito, mas é só o que podemos fazer por
você.
Comecei a bater palmas e disse:
– Parabéns aos noivos, então. Desejo toda a felicidade do
mundo. Não era isso que todos esperavam que eu dissesse? Que
os noivos sejam felizes para sempre? Eu seria muito hipócrita se
concordasse com isso! E quanto à minha madrinha, ela sente
tanto respeito por mim que veio até a minha casa junto a esse
traidor dar a notícia dos preparativos desse maldito evento.
Vocês me afrontam dentro de minha própria casa e não querem
que eu me revolte? Alcovitam essa traição e acham que tenho
que estar feliz e abraçá-los como uma boa menina que sempre
fui? Vocês não me deram direito de escolha, tramaram tudo
pelas minhas costas, e acham que sou obrigada a concordar com
essa pouca vergonha? E você, minha tia, sabe muito bem por
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
66
que fui dada em casamento tão cedo! Como pode agora ficar ao
lado de Eulália? Todos vocês sabem que se eu não me casar,
posso perder a minha alma! Até quando vocês iriam esconder
isso de mim? Enquanto minha santa irmã e esse canalha se
casam e levam uma vida tranquila, terei que carregar a maldição
de meu pai nas costas, não é?
Meu pai olhou para minha mãe com os olhos fumegantes
de ódio:
– Mulher, como ousou contar à nossa filha sobre a
maldição?
– Não contei, José, juro! Ela soube de alguma outra forma.
– disse minha mãe, com os olhos arregalados e com medo de
meu pai.
Tomei imediatamente a conversa para evitar que meu pai
se tornasse agressivo.
– Não, pai, o próprio cobrador veio até mim em sonhos e
me contou tudo. O senhor achou mesmo que poderia esconder
de mim uma coisa dessas? Até quando? – disse,
desafiadoramente, olhando para ele.
Ele, porém, baixou guarda e calou-se. Prossegui:
– Como vocês puderam apunhalar-me pelas costas dessa
maneira, sabendo que eu poderia pagar inocentemente por causa
do ato de vocês?
– Achamos que seria melhor que não soubesse. Não
fizemos por mal. Quanto ao seu casamento, minha filha, fizemos
o que era certo, mas parece que o destino intrometeu-se e agora
é esperar e ver o que pode ser feito – disse meu pai.
– Destino? O senhor chama essa sujeira de destino? Acha
mesmo que tenho tempo? O senhor deve acreditar em contos de
fadas, meu pai, e achar que um príncipe encantado irá aparecer e
salvar-me da besta. Este crápula à minha frente traiu-me
sabendo de toda essa história, sem sequer se importar com meus
Adriana Matheus
67
sentimentos. Ele não me deu a chance de escolher. Odeio
Maxuel e o desprezo com todas as minhas forças. Ele não vale o
chão que piso.
Maxuel deu um salto inesperado à frente e disse, num tom
de possessividade:
– Alto lá! A senhorita não vai me ofender mais! Quis
ajeitar as coisas e todos estavam de acordo. Porém, você é
quem, como sempre, quis fazer as coisas a seu modo. Errei, sim.
Todos erramos, Emanuelizia. Já estou pagando o meu preço em
me casar com uma mulher que não amo. Fui um tolo ao deixar-
me seduzir por ela. Mas estou, mal ou bem, pagando o meu
preço. Você também está pagando o seu por não ter concordado
comigo. Dei o direito a você de escolha, sim, quando lhe pedi
para anteciparmos o nosso casamento e cuidarmos do filho de
sua irmã assim que a criança nascesse. Mas foi você que se
encheu de falsa moral... Se me amasse verdadeiramente, como
dizia, mesmo estando magoada comigo, teria aceitado o que lhe
propus. Mas não: como sempre, trocou os pés pelas mãos e
agora está a me acusar? Não vou permitir levar a culpa sozinho.
Seus pais deveriam ter vigiado mais Eulália, pois todos os dias
ela saía na hora do meu almoço e levava uma prenda para mim,
sempre com a desculpa de desabafar os problemas de sua casa...
A princípio, evitei-a, mas senti pena dela. Depois, um dia, em
minha sala, ela me beijou e seduziu-me... Ora, Emanuelizia, sou
homem e nenhum homem consegue raciocinar com uma mulher
com a mão em suas calças!
– Controle-se, Maxuel! Poupe-nos desses detalhes
sórdidos! – interrompeu-lhe o pai.
Ele baixou a cabeça, meio constrangido.
– Tudo bem, desculpe-me pelo palavreado. Isso não vai se
repetir.
Passou as mãos pelos cabelos e prosseguiu:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
68
– Como estava dizendo, tentei remediar as coisas com
você, Emanuelizia. Porém, você nunca ouve os outros. Não
deixa ninguém falar. Somente você é dona da verdade, somente
você é dona do destino.
Aquelas foram as mesmas palavras que a velha havia me
dito. Naquela hora, doeram-me como facas afiadas enfiadas no
coração.
– E como você acha que eu poderia conviver com essa
situação, sabendo que a minha irmã estaria sendo tratada como
um animal, sendo escondida de todos para encobertar a sua
vergonha? Além do mais, ela jamais se casaria com outra pessoa
depois que descobrissem o que houve com ela. Eu nunca me
sentiria bem com tal barbárie e não conseguiria aceitar criar o
filho de vocês como se fosse meu. Vocês acharam mesmo que
poderiam consertar um erro acobertando outro? Acharam
mesmo que eu faria parte dessa trama descabida, da qual Eulália
e Maxuel sairiam como santos, enquanto eu levaria a culpa de
ter me casado grávida?
Todos permaneceram de cabeça baixa, enquanto Maxuel
prosseguia, exaltado, tentando justificar sua culpa:
– Você sempre se sentiu a dona de toda a verdade, não é
mesmo, Emanuelizia? Só sabe me culpar pelo que fiz. Mas o
que você fez para salvar o nosso casamento? Se me amasse, não
teria me dispensado com tanta facilidade assim. Teria feito algo!
Talvez até tivesse, sim, aceitado a minha proposta, pois o amor
supera qualquer coisa. Mas isso só serve para quando o
sentimento for verdadeiro. Você nunca me amou de verdade. Só
queria se casar comigo para ter uma vida melhor e se livrar
dessa família de loucos. Você me jogou nos braços de sua irmã.
Enquanto ela me dava carinho, você só me trazia os problemas
que a sua família lhe causava.
Adriana Matheus
69
Minhas lágrimas rolaram de dor e culpa. Novamente me
lembrei das palavras de Eleanor de que eu só estava me casando
por conveniência. Porém, respondi a Maxuel num tom de voz
que mais parecia um sussurro:
– Se você realmente me amasse como dizia, teria resistido
a ela.
– Não houve como... Mas sempre a tratei com muito
carinho... – ele respondeu no mesmo tom.
– Você se sente no direito de me falar de carinho e duvida
do meu amor? Você é quem nunca me amou! Sempre que eu
tentava uma proximidade com você, logo se esquivava. Fui uma
tola esses anos todos, pensando que era porque você me
respeitava. Mas não: era porque você amava minha irmã. Eu o
odeio do fundo da minha alma.
– Disso você não pode me acusar, sempre a respeitei.
– Sim, tanto que se deitava pelas minhas costas com a
minha irmã, agindo como um desfrutável, traindo e magoando o
meu coração. Não entendo por que tive que merecer um destino
tão cruel! Não entendo por que você me apunhalou desta forma.
Se não me amava, era só ter dito! Iria doer menos! – disse isso
quase num sussurro entre soluços.
Maxuel saltou na minha frente e segurou-me pelos
ombros. Forçou-me a olhar para ele enquanto falava:
– Mulher, eu a amo. Perdoe-me por ter falhado! Não vê
que estou de rasto? Basta que me diga um sim e fugiremos daqui
para bem longe.
Não sei de onde tirei forças, mas violentamente o
empurrei.
– Nunca perdoarei a sua traição!
Ele, porém, ao ver minha reação, reagiu com palavras,
tentando ainda justificar suas falhas:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
70
– Pois saiba que estou cansado de tentar me justificar!
Saiba que sou eu quem não quero vê-la na minha frente
novamente! Quer saber? Ainda bem que tudo entre nós
terminou, pois agora percebo o quanto fria e sem sentimentos
você é, Emanuelizia! Nunca mais falo com você, nem mesmo se
souber que você corre grande perigo. Fiquem bem. – disse
Maxuel, saindo porta afora, cheio de dor.
Contive-me ao máximo para não correr atrás dele e dizer o
quanto eu o amava ainda. Meu pai pareceu ter percebido isso e,
assim, saltou na frente para encerrar com aquela conversa:
– Está feito, não se pode voltar atrás. Eulália vai se casar
no sábado e ponto final.
A tola aqui correu para o seu próprio quarto, onde passei o
restante da tarde chorando o resto de dignidade que ainda havia
em mim. Era muito humilhante saber que eu amava o meu ex-
noivo, que agora seria o marido da minha irmã. Nossos pais
ficaram horas conversando sobre os preparativos. Eu, porém,
não saí do quarto naquele dia. Tentei ler um romance, mas só
serviu para fazer com que eu chorasse ainda mais.
Definitivamente, histórias de amor não faziam parte da minha
vida – pelo menos era o que eu pensava até então. No meio da
noite, minha mãe foi na ponta dos pés para verificar se eu estava
mesmo dormindo. Fiz-me de rogada e fingi. Eu não queria ouvir
e nem falar com ninguém. Somente queria ficar só, com a minha
dor.
Passei o restante da semana lendo os livros que Eleanor
tinha me dado. Afundei-me em leituras e mais leituras para não
me dar conta de que o casamento de Eulália e Maxuel estava se
aproximando. Mas não adianta tentarmos fugir da verdade: ela
sempre está colada em nossos calcanhares. Fugir da verdade é
como tentar propositalmente deixar de respirar. A verdade é
uma faca afiada que corta o coração de quem tentar fugir dela.
Adriana Matheus
71
Não há um conselho a se dar para quem a teme – digo apenas
Encare-a, pois um dia, mais cedo ou mais tarde, ela vem à tona.
E como disse o próprio Cristo: Não há boca que não confesse, e
nem joelho que não se dobre. Confesso que estava de joelhos
perante a minha verdadeira realidade.
O fatídico dia custou a chegar – o que só prolongou ainda
mais a minha dor. No dia vinte e sete de dezembro de 1830,
minha irmã Eulália casou-se com Maxuel, meu ex-noivo, na
capelinha de Nossa Senhora da Consolação, às seis e vinte seis
da manhã. Lembro-me como se fosse hoje: arrumei-me como
uma lady somente para ficar ao lado de fora da capelinha, pois
não aguentei a dor de ter que vê-los unirem-se em matrimônio.
Na festa que lhes foi oferecida, no grande jardim da casa de
meus tios, também fiquei de longe, limitando-me a
cumprimentá-los. Enquanto ambos pareciam felizes e
descontraídos, tive que me conformar com a dor e a infelicidade
que esmagavam meu coração, despedaçado pela traição e pela
amargura.
Após aquele dia, minha vida seguiu-se com os meus
encontros às escondidas com Eleanor. Ela me ensinava a cada
dia mais e mais sobre os mistérios da magia. Fui ficando cada
vez mais presa àquele mundo secreto e proibido. Passaram-se
três anos depois do casamento de Eulália e Maxuel e eu já
estava bem mais conformada, dedicando-me mais às forças
ocultas. Nesse período, estudei filosofia e artes sagradas da
magia, adquiri um athame, uma varinha, um caldeirão e, é claro,
o meu próprio livro das sombras.
Até que chegou a hora de Eleanor me iniciar como
feiticeira. Os preparativos demoraram seis meses, pois ela
precisava saber qual seria o tipo de material usado na minha
iniciação – sem contar que ela deveria saber com precisão qual
seria a posição e a Lua certa. Eu seria iniciada ao luar nas areias
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
72
da praia, à meia-noite. Fiquei dias imaginando como sairia às
escondidas de casa. Minha mãe nunca desconfiou que eu
estivesse ainda me encontrando com a velha bruxa Eleanor. Para
ela, minhas saídas eram apenas para espairecer. Como passei a
ler muitos livros de magia, ela pensava que eram de algum tipo
de poesia ou coisa assim. Tornei-me, com o tempo, capaz de
fazer o fogo surgir do espaço à minha frente. A magia era a
minha vida e sabia do que eu era capaz se quisesse destruir
alguém. Mas Eleanor orientou-me sobre as consequências,
embora meus planos fossem outros para o futuro. Eu queria
mais da magia: queria ser famosa, rica, e não dava ouvido ao
que a minha mestra falava. Embora eu estivesse mais
conformada com o casamento de Eulália e Maxuel, tornei-me
muito revoltada e guardava esse sentimento vil dentro do peito,
sem sequer contar à minha mestra. Estava preocupada apenas
com uma coisa: o meu ritual de iniciação. Eleanor dizia que,
após o ritual, eu me tornaria mais forte do que nunca. Pensava
em me tornar imortal ou coisa assim. Não queria ver o que a
magia era realmente.
A Lua estava cheia e alta no céu azul e já passava da meia-
noite. Tive que sair escondida pela janela, levando comigo meus
trajes de iniciação. Confesso que fiquei com medo, pois nunca
havia andado àquelas horas pela praia. Confiei nas palavras de
Eleanor: nada iria me acontecer de mal. Era apenas necessário
que eu confiasse. Quando eu já estava próximo à praia, avistei
várias tochas enfileiradas e estacadas na areia: uma passarela
para que eu pudesse achar o caminho. Quando me aproximei,
percebi que Eleanor havia colocado um enorme altar sobre a
areia. Nele estavam os elementos sagrados da magia, com as
estatuetas do deus cornífero e da grande deusa mãe. Muitas
rosas vermelhas enfeitavam o local. Antes que eu pisasse no
solo, já consagrado para a minha iniciação, Eleanor veio ao meu
Adriana Matheus
73
encontro, pedindo-me para que eu tirasse as minhas vestes e
entrasse no mar, vestindo os trajes sagrados em seguida. Fiz
exatamente como ela me ordenou. Ao sair do mar, pus um
vestido todo de seda transparente cor de carne e coloquei uma
fina capa de seda preta por cima. Coloquei o capuz e segui até
onde Eleanor me aguardava. Ela me fez repetir as seguintes
palavras de conjuração antes que eu entrasse no círculo sagrado:
– Eu, filha do fogo, despojo-me de todos os meus bens
materiais, renunciando, assim, a tudo o que não faça parte do elo
sagrado e da magia. Abro mão de todas as minhas riquezas e
familiares, tornando-me, assim, parte do mundo e da natureza
pagãos. A partir de hoje, sou parte da natureza e ela é parte de
mim, pois estamos unidas pelo fogo sagrado do grande deus
cornífero. Que minhas irmãs ancestrais venham e me façam
companhia nesta jornada que escolhi de livre e espontânea
vontade.
Já dentro do círculo sagrado, citei o juramento sagrado em
voz alta.
– Eu, Emanuelizia Gonzáles, juro a partir de hoje nunca
acreditar e nem honrar a nenhuma deidade conhecida como
Satã, pois o demônio é uma crença da Igreja Católica e de outras
correntes do Cristianismo; nem a sacrificar animais ou humanos;
renunciar formalmente ao Deus Cristão; apenas acreditar em
outros aspectos divinos; nunca odiar os cristãos, a Bíblia ou
Jesus. Nos Sabás e Esbás, não utilizar a nenhuma droga e nem
me submeter a orgias sexuais; não praticar necessariamente
magia negra; não forçar ninguém a fazer algo que agrida seus
princípios e crenças; não profanar as Igrejas Cristãs, hóstias ou
bíblias. O respeito faz parte do universo, assim como faço parte
dele. Juro solenemente que respeitarei na mesma proporção não
só a seres humanos, mas a Terra, os animais e as plantas que
nela habitam. Realizarei os rituais sempre no interior de um
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
74
círculo mágico, pois os círculos são um espaço sagrado
inviolado, onde somente as divindades pagãs podem penetrar.
Acreditarei sempre com convicção na reencarnação, observando
e respeitando a mudança das estações do ano, com oitos sabás
solares e entre doze e treze esbás lunares – vinte e um ritos
anuais. Respeitarei a minha crença nos aspectos femininos e
masculinos do Divino. Repudiarei o proselitismo, pois pessoas
só se tornam bruxas por escolhas próprias. Respeitarei a
igualdade entre mulheres e homens, pois ambos são
complementares, apesar de sempre a mulher ser enfocada.
Servirei à mãe Terra com carinho e o respeito que ela merece.
Respeitarei todas as religiões e a liberdade religiosa. Repudiarei
toda e qualquer forma de preconceito e defenderei toda e
qualquer irmã ou irmão em relação à cidadania.
Após recitar tais palavras, ela me levou ao centro do
círculo e vendou-me com um lenço negro. Em seguida, ungiu
minha cabeça com o óleo sagrado e gotas do próprio suor.
Depois, colocou o meu athame na mão esquerda. Antes de o
círculo ser fechado, fui posta para fora, no sentido nordeste,
vendada e amarrada. O pacto de atar é feito com três cordas
vermelhas: uma com dois metros e setenta centímetros e as
outras duas com um metro e quarenta e cinco centímetros. A
corda maior é dobrada ao meio para os pulsos serem amarrados
juntos, atrás das costas. As duas pontas são trazidas para frente,
jogadas por cima dos ombros e atadas em frente ao pescoço,
com as pontas caídas a formar uma pega por onde eu pude ser
dirigida. Uma corda pequena é atada no tornozelo direito, e a
outra por cima do joelho esquerdo – cada uma com as pontas
bem escondidas para que não machuquem. Enquanto a corda
estava no tornozelo, pronunciei as seguintes palavras:
– Pés nem presos, nem livres.
Adriana Matheus
75
O círculo estava agora totalmente aberto, e o ritual de
abertura procedeu – excetuando o portal a nordeste, que ainda
não estava fechado. Depois de atrair a Lua, Eleanor deu a cruz
cabalística a mim e prosseguiu, dizendo:
– Ateh tocando na minha testa, Malkuth tocando no peito,
ve-Geburah tocando no ombro direito, ve-Gedulah tocando no
meu ombro esquerdo, Le-olam apertando as mãos à altura do
meu peito.
Depois de utilizar também as runas das feiticeiras, ela foi
buscar a espada sagrada no altar. Encarou-me ainda vendada e
declarou a exortação:
– Ó tu, que estás na fronteira entre o agradável mundo dos
homens e entre os domínios misteriosos do senhor dos espaços,
tens tu a coragem de fazer o teste? – disse isso apontando a
espada diretamente contra o meu coração.
Ela prosseguiu:
– Porque digo verdadeiramente: é melhor que avances na
minha lâmina e que pereças do que tentares seguir com medo no
teu coração.
– Tenho duas senhas: perfeito amor e perfeita confiança.
Aceita-me entre os teus e prometo honrar esse elo entre nossos
mundos. – respondi.
– Então, que assim seja! Dou-te a autorização para que
passes através deste misterioso portal.
Beijou a espada, entregando-a a mim. Fechou o portal ou
círculo com o athame, que depois recolocou no altar. Levou-me
para os dois pontos cardeais riscados fora do círculo, dizendo:
– Tomai nota, ó senhores do Este, Sul, Oeste e Norte, que
Emanuelizia Gonzáles está devidamente preparada para ser
iniciada sacerdotisa e bruxa.
Então, guiou-me para o centro do círculo em sentido
contrário, cantando:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
76
– Eko, Eko, Azarak, Eko, Eko, Zomelak, Eko, Eko,
Cernunnos, Eko, Eko, Aradia.
Repetindo sempre isso, enquanto empurrava-me para
frente e para trás, virando-me às vezes um pouco para me
desorientar. Até que, por fim, parou, tocou um sino três vezes,
virou-me na direção do altar e disse:
– Noutras religiões, você se ajoelha enquanto o sacerdote
a olha de cima. Mas, na arte mágica, somos ensinados a ser
humildes e ajoelhamo-nos para dar as boas-vindas.
Dando-me o beijo quíntuplo, disse:
– Abençoados sejam os teus pés, que te trouxeram para
estes caminhos – beijou-me o pé direito e depois o esquerdo.
Prosseguiu:
– Abençoados sejam os teus joelhos, que devem ajoelhar
perante o altar sagrado – beijou-me o joelho direito e depois o
esquerdo.
Beijou-me acima dos pelos púbicos, dizendo:
– Abençoado seja o teu ventre, sem o qual não
existiríamos. Abençoados sejam os teus seios que, formados em
beleza, te fazem forte como mulher – beijou o meu seio direito e
depois o esquerdo.
Abraçou-me e beijou-me nos lábios fraternalmente:
– Abençoados sejam os teus lábios, que irão proferir os
nomes sagrados. Agora vamos tirar as tuas medidas. Que com
essas medidas você possa seguir em paz na arte da magia, e que
nunca sejas enganada pelas ilusões do mundo mortal.
Dizendo isso, deu-me vinte e uma chicotadas de leve com
aquele pequeno cordão de minhas medidas. Novamente repeti as
palavras citadas por ela:
– Eu, Emanuelizia Gonzáles, na presença dos poderosos
deuses, de minha livre vontade e da forma mais solene, juro
manter sempre secretos os segredos da arte, exceto se for a uma
Adriana Matheus
77
pessoa adequada, devidamente preparada num círculo como este
em que estou; e nunca lhe negarei os segredos se ele ou ela
provarem ser um irmão ou uma irmã da arte. Tudo isso juro
pelas minhas esperanças numa vida futura, ciente de que a
minha medida foi tirada, e de que minhas armas vão se virar
contra mim se eu quebrar este juramento solene.
Ela me deu de beber uma bebida sagrada e ungiu
novamente minha cabeça, dizendo:
– Eu, por este meio, te marco com o sinal triplo, consagro-
te com óleo sagrado. – fez sinais diversos e consagrados em
cima dos meus pelos pubianos, no meu seio direito, no meu seio
esquerdo, e outra vez acima do pelo pubiano, completando o
triângulo invertido do primeiro grau.
Molhou a ponta do dedo no vinho, dizendo:
– Consagro-te com vinho – tocou-me nos mesmos locais
com o vinho.
Prosseguiu:
– Consagro-te com os meus lábios – beijou-me nos
mesmos locais.
Continuou:
– Sacerdotisa e Bruxa, tiro-te esta venda e desato tuas
cordas.
Deu-me boas-vindas ao mundo da magia. Apresentou-me
a cada instrumento de trabalho, levando-os de volta ao altar à
medida que os explicava:
– Primeiro, a espada mágica. Com este objeto você poderá
dar origem aos círculos mágicos, invisíveis ou visíveis, como
esse em que você está. Também poderá dominar, subjugar e
punir todos os espíritos rebeldes e demônios, e poderá até
persuadir anjos e espíritos bons. Com isto na sua mão, lidera o
círculo. A seguir, apresento-lhe o athame. Esta é a verdadeira
arma da bruxa, e tem todos os poderes da espada mágica. Agora,
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
78
a faca de cabo branco: é usada para formar todos os
instrumentos usados na arte da magia, mas só pode ser usada
dentro de um círculo mágico. Já a varinha tem a utilidade de
chamar e controlar certos anjos e gênios quando não seja
apropriado o uso da espada mágica. Há o cálice, receptáculo da
deusa, caldeirão de cerridwen, Santo Graal da imortalidade.
Nele, bebemos em camaradagem e em honra à deusa.
Apresento-lhe o pentáculo. Ele tem o objetivo de chamar os
espíritos apropriados. Agora, o incensário: é usado para
encorajar e dar as boas-vindas aos espíritos bons e banir
espíritos maus. Já este é o chicote, símbolo do poder e do
domínio. Também é purificador e iluminador. Por isso está
escrito Para aprender, deves sofrer e ser purificado. Está
disposta a sofrer para aprender?
– Sim, estou.
– Por fim, apresento-lhe as cordas. Elas são usadas para
prender os sigilos da arte e também são necessárias para o
juramento. Agora saúdo você, em nome de Aradia, nova
sacerdotisa e bruxa.
Novamente ela me beijou e finalmente disse:
– Está feito: você é uma sacerdotisa e uma bruxa. Agora
posso partir e descansar, pois sei que tenho em você uma
substituta. Espero, com toda a força da minha alma, que você
saiba usar os poderes que lhe foram passados.
Ceamos à luz da Lua os manjares que Eleanor havia
preparado para aquela ocasião especial. Daquele dia em diante,
nunca mais a encontraria novamente. Retornei para casa naquele
dia e já eram quase quatro da manhã, mas consegui chegar
despercebida.
Minha vida era monótona no decorrer dos dias, sem
muitas atividades – embora eu praticasse a magia todos os dias,
como havia prometido a Eleanor. Certa manhã, em um de meus
Adriana Matheus
79
passeios matinais à beira-mar, levei um susto ao ver um homem
bem trajado caminhando descalço. Ele parecia não se importar
com as águas que lhe molhavam as calças. Fiquei intrigada, pois
ele me pareceu um lorde – ou algo assim – pelos seus trajes. Eu
estava toda bagunçada, com a saia levantada e os cabelos soltos.
Não sei por que me preocupei com a minha aparência naquele
dia. Irritada com aquele pensamento, dei de ombros e saí
caminhado em direção àquela figura masculina, que parecia vir
também ao meu encontro. A cada instante que nos
aproximávamos, mais eu ficava encabulada por causa dos meus
trajes.
Quando, por fim, estávamos um em frente ao outro,
nossos olhares identificaram-se. Era como se eu pudesse ler a
alma dele e ele a minha. Uma luz estranha rodeou-o e pude
sentir o seu cheiro como um animal no cio, embora não
estivéssemos tão próximos. Aqueles olhos negros, que jamais
esqueci, reconhecê-los-ia em qualquer encarnação... Não
precisaria de palavras para que eu soubesse que aquele homem
estranho era o meu amor de outras vidas, a minha alma gêmea.
Foi ele quem quebrou aquele clima de hipnose, dizendo:
– Bom dia, senhorita! O que uma criatura tão bela e de
pernas tão belas faz aqui por estas bandas sozinha? – ao olhar
naqueles olhos negros, minhas pernas bambearam, meu corpo
estremeceu e minha voz sumiu. Ele era como um sonho: um
espanhol alto, de cabelos cacheados, pele morena clara e com a
camisa entreaberta, deixando à mostra o peito másculo.
Confesso que tal visão me fez ficar cega. Não consegui
controlar minhas emoções – o que não é bom para uma bruxa.
Aliás, não é bom para mulher nenhuma. Nunca devemos, logo
no primeiro encontro, passar nossas reais intenções,
principalmente quando esse primeiro encontro é uma trapaça do
destino. Ele, ao perceber que eu parecia uma estátua, perguntou:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
80
– A senhorita sabe ao menos falar? Fiz-lhe uma pergunta.
Nervosa com aquela pergunta impertinente, respondi:
– Sim, sei, é claro. É que me assustei com a sua presença,
pois nunca o vi por aqui.
– E a senhorita está acostumada a se encontrar com muitos
homens? – disse ele, olhando-me de cima abaixo.
– Ora, é claro que não! Como ousa?! – respondi,
arrumando a roupa e descendo a saia, que estava suspensa.
– Então, o que faz uma senhorita caminhando a estas horas
em uma praia deserta com as saias levantadas? – disse ele,
sorrindo ironicamente.
– Moro ali na frente. – disse isso apontando para o farol,
perto da minha casa – Meu pai e meu irmão são pescadores e
todos os dias tenho essa mania de caminhar pela praia. Nunca
imaginei encontrar alguém por estes lados. Aliás, nunca vi
ninguém, além de mim, caminhar por esta encosta. Quem é o
senhor? O que está fazendo por aqui? Não o conheço de lugar
nenhum. Não é morador da vila. Se fosse, eu o conheceria.
– Tem razão, não sou. Mudamo-nos ontem à tarde para a
vila, e vim a esta encosta para pôr os pensamentos em ordem.
– E por que os seus pensamentos estão em desordem?
– Creio que a senhorita não seja a pessoa mais indicada
para que eu conte a minha vida, até porque não nos conhecemos.
A propósito, chamo-me Henrico Gonçalo Lopes, às suas ordens.
– esticou-me as mãos para me cumprimentar.
– Emanuelizia Gonzáles. – estiquei-lhe as mãos.
Aquele toque de mãos foi como se todo o calor do mundo
estivesse nos unindo. Ficamos uns dois minutos nos observando,
até que Henrico disse:
– Já que o destino colocou-nos juntos nesta praia, dar-me-
ia a honra de lhe fazer companhia de volta para sua casa?
Adriana Matheus
81
Dei um sorriso meio encabulado, pois já estava quase o
odiando.
– Claro, por que não?
Caminhamos lado a lado conversando, até que chegamos
em frente de minha casa, onde nos despedimos. Ajudei minha
mãe com o restante dos afazeres, como já era habitual. Fiquei o
restante da tarde pensando naquele homem e relembrando as
coisas que ele havia me contado. Ele pertencia ao povo cigano.
Vieram para Valença para o casamento de uma prima e
acabaram ficando. Era por isso que ele estava tão bem trajado.
Henrico contou-me sobre o preconceito que ele e sua família
passavam por serem ciganos. A família de Henrico conhecia a
magia, o que me deixou mais à vontade de estar ao lado dele,
embora eu não houvesse lhe contado sobre a minha tradição e
escolha, pois era muito cedo para contar-lhe sobre esses fatos.
Ficamos de nos encontrar no dia seguinte. Ele disse que me
contaria sobre suas tradições.
Eu estava tão ansiosa para vê-lo de novo que mal cabia em
meu peito toda aquela alegria súbita. Aquele sentimento
repentino não era normal: era compulsivo, frenético, meio
egoísta, pois sentia ciúmes dele e sequer o conhecia direito. Eu
estava apaixonada. Não era amor, mas eu não soube diferenciar
e muito menos evitar, como havia me prevenido Eleanor.
Dormi como pedra naquela noite. O dia mal amanheceu e
eu já havia me levantado. Corri para fazer o café e os pães – não
queria dar motivos para minha mãe me interrogar. Voltei ao
quarto e coloquei um vestido de renda branco, o xale nas costas,
e pulei as janelas para não acordar os demais. Não fazia ideia de
que horas eram. Só sabia que precisava vê-lo novamente. Não
me importei com o sereno, com o vento frio, com nada. Aquele
homem, de maneira enigmática, passou a ser o ar que eu
respirava. Caminhei muitos minutos à beira-mar e nada de
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
82
Henrico aparecer. A ansiedade é uma inimiga do tempo, pois até
mesmo os segundos transformam-se em horas. Depois de muito
caminhar, parei em frente ao mar, abraçando meu corpo com
meus próprios braços. Percebi que uma lágrima rolou em minha
face. Sentia-me impotente e não sabia o que fazer. Não havia
ido às cavernas para praticar a magia, como deveria ser. Eu
estava doente do coração, nada mais me importava. Só queria
vê-lo novamente. Era uma necessidade maior que a vontade de
viver. A angústia em meu peito tornou-se uma dor insuportável
– era tão forte que dava para senti-la na pele. Eu olhava para o
mar, mas não via graça em suas ondas. Queria gritar muito alto,
na esperança de que ele pudesse me ouvir e vir ao meu encontro.
De repente, uma mão suave tocou-me nos ombros e uma voz
rouca falou aos meus ouvidos:
– Ou estou muito atrasado ou a mocinha caiu da cama!
Senti como se o mundo parasse. Um alívio imediato
tomou conta da minha alma e meu coração bateu de uma
maneira que nunca havia batido antes. Dei um sorriso largo e
vir-me-ei para o meu amado, dizendo:
– Não importa, nada mais importa.
– A senhorita está bem? – disse ele, enxugando com a
ponta dos dedos as lágrimas que ainda escorriam em minha face.
Senti-me uma tola, infantil, e senti vergonha por isso.
– Sim, estou bem.
– O que houve? Alguém a magoou? Quem foi o déspota
que a fez chorar?
Novamente sorri sem graça.
– Ninguém me fez chorar. Choro porque sou uma tola
sentimental. Acredite: agora está tudo bem. Podemos caminhar?
– Sim, podemos. Se a senhorita diz que está tudo bem,
acreditarei. Mas não se acanhe comigo. Saiba que serei seu
amigo e nunca deixarei que alguém a magoe.
Adriana Matheus
83
– Fico feliz em saber que tenho um defensor em favor da
minha honra, mas creio que preferiria ser mais que uma amiga.
– Senhorita! Deixa-me encabulado... mas, ao mesmo
tempo, feliz com essa revelação...
– Sou sincera, não gosto de hipocrisias e muito menos de
rodeios. Falo o que sinto e o que penso. Sofri demais por ter
guardado meus sentimentos, sufocando-os dentro do peito. Jurei
a mim mesma que nunca mais isso aconteceria, assim como não
permitirei que ninguém me engane ou me magoe. Sou senhora
do meu destino e dona dos meus atos.
Contei-lhe em pormenores toda minha triste história. Ele
ficou calado, ouvindo-me. Depois, apenas me disse:
– Nunca imaginei que uma jovem como a senhorita
pudesse já ter passado por tantas desventuras amorosas tão cedo.
Saiba que sou um cavalheiro e saberei respeitá-la. Você apenas
me pegou de surpresa e com uma atitude tão... repentina, agora
há pouco.
– Desculpe-me se o ofendo com meus sentimentos e com
a minha maneira de senti-los. Confesso que também fui pega de
surpresa. Mas fiz esse juramento de nunca mais guardar nada no
peito. Se o senhor preferir, nunca mais nos falaremos. Prometo-
lhe que vou para minha casa e evitarei não cruzar o seu caminho
novamente.
– Calma, a senhorita está sendo muito precipitada em
querer antecipar minha resposta. Agora, dê-me um tempo, pelo
menos até amanhã, para que lhe possa responder. Confesso que,
ao vê-la, também fiquei confuso em relação aos meus
sentimentos, mas preciso pôr as ideias em ordem e ver o que
realmente sinto pela senhorita. Creio que não precisamos ser
inimigos até lá. Podemos caminhar à beira-mar. Quero lhe falar
sobre minha família e sobre o meu povo. – disse ele,
oferecendo-me o braço com um largo sorriso nas faces.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
84
O sorriso daquele homem iluminava a minha noite escura.
Sorri-lhe também, concordando com a cabeça e colocando a
minha mão sobre aquele braço de chumbo. Ele deu um tapinha
com a mão direita na minha outra mão que já segurava seu outro
braço e fomos caminhar. Caminhamos por horas. A cada
instante eu ficava mais admirada e apaixonada por ele.
Passamos uma manhã muito agradável. Ele me contou
sobre as tradições de seu povo, suas lendas e seus costumes. Seu
povo chegou à Europa proveniente de algum lugar da Índia – o
que não significava que tinham vindo de sua terra de origem.
Todos vieram de algum lugar onde seus ancestrais viveram, ou
de outros países. Toda a hipótese que sustentava a origem indo-
europeia apoiava-se num único elemento: o idioma romanês,
que mais tarde aprendi com exatidão e passei a usá-lo no meu
dia a dia.
Eu ficava admirada com tudo aquilo e quase confessei a
ele daquela vez sobre a minha tradição, mas deixei que a razão
falasse mais alto. Eu não sabia como, mas Henrico tinha sobre
mim um grande poder de persuasão. Não era porque ele queria:
era uma coisa nata nele, era como se ele fosse um deus ou algo
assim. Embora isso me assustasse, deixei-me prender pelos seus
encantos. Não sabia ao certo se isso vinha daquele povo
misterioso ou somente daquele homem fascinante. Como pude
me apaixonar daquela forma de uma hora para outra? Talvez
Eleanor estivesse correta: não se deve desafiar o universo e nem
brincar com as duas maiores forças que o regem.
Aquela manhã passou como um sopro – nem vi e já
estávamos nos despedindo. Estávamos a certa distância da
minha casa, quando Henrico olhou-me dentro dos olhos e falou-
me seriamente:
– Emanuelizia, quero que saiba que qualquer que seja a
opinião dos anciões do meu povo, o meu sentimento para com a
Adriana Matheus
85
senhorita é recíproco. Desde o momento em que a vi caminhado
pela encosta não sei explicar o que houve. Só sei que o meu
coração bateu mais rápido e naquele exato momento em que a vi
percebi que minha vida estava para ser mudada. Só que minha
vida e minhas escolhas não dependem somente de mim. Meu
povo, como lhe contei, tem costumes muito complicados.
Nossas tradições são mantidas a fio, e durante séculos tem sido
dessa forma. Desculpe se a decepciono, mas tinha que lhe contar
sobre os meus sentimentos e sobre o que poderá ocorrer caso
amanhã eu volte e lhe responda positivamente. Sei como meu
povo pensa, e não gostaria de magoá-la. Eu seria a última pessoa
na face da Terra que teria a intenção de feri-la ou magoá-la.
Dizendo tais palavras que mais pareciam de despedida,
Henrico olhou-me nos olhos e novamente vi a luz que o cercou.
Fiquei rendida. Naquele momento, minhas forças estavam em
suas mãos. Naquele momento único, ele me beijou. E digo
agora: se o mundo acabasse, não teria percebido, pois eu parecia
que não estava ali. Era como se pássaros ou anjos tivessem me
levado para outra dimensão. Eu estava de joelhos e
completamente rendida ao amor e à paixão. Meus sentidos não
funcionavam mais. Eu estava cega, surda e muda e com outros
problemas, pois não me senti mais com os pés na terra. Ficamos
muito tempo daquele jeito. Se nos olhassem, pareceríamos um
só a olho nu.
Caminhamos de volta até minha casa, onde nos
despedimos com mais um beijo apaixonado. Mas, por mal dos
pecados, minha mãe estava espreitando da janela da cozinha.
Assim que coloquei os pés dentro de casa, ela indagou:
– Quem era aquele jovem? Acho que você perdeu seu
amor pela vida. Se fosse seu pai ao invés de mim, estaria a essa
hora com as costas retalhadas pelo chicote dele.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
86
– Acho que meu pai não faria tal barbárie sendo ele o pivô
de toda a minha desgraça. Afinal, sou eu quem tem que carregar
uma maldição nas costas. Quanto ao jovem, conheci-o em uma
de minhas caminhadas pela praia. Ainda não estamos
namorando, se é o que quer saber, pois ele é cigano e precisa
pedir permissão a seu povo para isso. Mas acredite: se ele
conseguir a permissão, saiba que irei com ele para aonde o povo
dele for.
– Está louca, só pode ser isso! Está se envolvendo com os
ciganos? Essa raça é uma raça amaldiçoada por Deus! Vivem
como errantes e nômades. Todo mundo sabe que são ladrões e
gostam de tirar a virgindade de jovens ingênuas como você. Irei
contar a seu pai! Não passarei por mais essa sozinha para que a
culpa caia em mim novamente. Está muito enganada se acha que
lhe permitiremos envolver-se com esse homem. Onde já se viu?!
Só pode estar louca!
– É isso que a senhora pensa de mim, que estou louca? A
senhora já parou para pensar nos meus sentimentos? Por que
está me negando mais uma vez o direito a escolha? Só quero ser
feliz, mãe!
Ela baixou a cabeça e prosseguiu:
– Há quanto tempo você e este homem estão se
encontrando?
– Conheci-o ontem.
– Agora sei que está louca de verdade! Como pode dizer
que está amando uma pessoa que só conhece há dois dias?
– Não sei. Isso para mim também não tem explicação, mas
não quero lutar contra o que sinto. Não quero ser sensata o
tempo todo, não quero saber se existe lógica ou razão para todos
os fatos. Só quero ser feliz. Por favor, mãe, deixe-me ao menos
tentar! Sou um ser humano e tenho o direito de errar, cair e
aprender.
Adriana Matheus
87
– Tudo bem. Mas quero que esse moço fale com seu pai.
Se ele for um homem de bem, não recusará isso. Não sei mais o
que falar com você, sempre trocando os pés pelas mãos...
Concordo que você tenha o direito de ser feliz e tentar uma nova
chance com outra pessoa, mas aquele homem... Emanuelizia,
não sei... Acho que ele não é uma boa pessoa. Há alguma coisa
nele que me diz que ele vai decepcioná-la muito.
– Ei, alto lá, dona Constância! A bruxa aqui sou eu,
lembra-se? – disse eu, sorrindo.
– Não me lembre desse fato, ou acha que não sei o que
anda lendo às escondidas?
– Só não entendo por que a senhora não controlou e nem
espionou a Eulália desse jeito também!
– Talvez seja por não tê-la espionado, como você está
dizendo, que aprendi a não deixar que nada mais me passe
despercebido. Não quero levar novamente a culpa de ter sido
uma mãe relapsa; não quero ver os olhos de acusação de seu pai
e não quero nenhum filho meu chorando pelos cantos. Aprendi
com meus erros, Emanuelizia, e não me permitirei errar de
novo. Espero que tenha aprendido com o seu erro também.
Ela saiu em direção à cozinha, sem me dizer mais
nenhuma palavra. Embora ela estivesse coberta de razão, eu
estava cega demais para ouvir ou aceitar qualquer conselho de
quem quer que fosse. Havia dois fatores muito importantes que
não posso deixar passar. Um deles era o fato de que eu havia
duvidado de Deus e, de certa forma, o tinha desafiado. O outro
era que eu estava carente afetivamente, e isso ajudou e muito
para que eu me envolvesse com um desconhecido. Uma mulher
jovem não deve ficar tanto tempo sozinha, pois acaba se
tornando alvo e presa fácil para qualquer predador. Isso não
quer dizer que temos que sair por aí, vulgarizando e expondo
nosso aparelho à vergonha do acaso. Mas também não temos
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
88
que nos isolar da humanidade, pois não somos santos ou
eremitas, e creio que nenhuma jovem nesta Terra ainda faça
votos de castidade. Viver e conviver é necessário para o
aprendizado da humanidade, embora algumas pessoas não
saibam o limite disso.
Talvez eu não seja a pessoa mais apropriada para dizer,
pois fiz coisas que me denegriram não só moralmente, mas
também levaram minha alma a viver presa em dois mundos.
Espero, porém, não ser seguida, mas ouvida, pois não desejo a
ninguém que passe pelo que fui obrigada a passar. É fácil,
talvez, aprender com os erros dos outros quando ouvimos ou
lemos uma história. O problema é aprender com os próprios
erros, pois o ser humano não admite, em hipótese alguma, que
está errado. E se o destino envia-lhe o seu pago, ele não é capaz
de entender que foi por alguma falha que cometeu. Em vez
disso, questiona Deus com suas lamúrias constantes. Ninguém é
perfeito o tempo todo. Errar, por certo, é humano – mas
persistir em errar é imperdoável.
Deitei-me cedo naquele dia e dormi o sono dos anjos.
Minha mãe nada comentou com o meu pai sobre o que falamos
– o que me deu a chance de mais um encontro com Henrico.
Acordei cedo, como de costume, e fui à cozinha preparar o
desjejum de todos. Não queria que minha mãe dissesse que eu
nada fazia em casa. Aliás, eu não queria dar motivo nenhum
para que alguém se intrometesse na minha vida. Preparei-me um
banho de ervas. Usei alecrim do campo, rosas vermelhas e
pitadas de canela. É um banho para atrair o amado. Usei uma
saia branca de renda, uma blusa preta e coloquei o corpete por
cima – queria ficar parecida com as mulheres do povo dele,
queria agradá-lo de todas as formas. Deixei meus cabelos presos
em um coque, com uma presilha de marfim que havia ganhado
da minha tia de aniversário. Arrumei uma pequena cestinha com
Adriana Matheus
89
frutas e guloseimas especiais que havia preparado para dar ao
meu amado. Comecei, a partir daquele dia, a pregar contra a
tradição e contra os princípios dela, pois comecei a usar a magia
para prendê-lo através da comida e do aroma. Eu não estava
pensando nas consequências, não queria pensar: estava cega
pela paixão. Pulei a janela, como já era habitual, e saí nas pontas
dos pés para não acordar os demais.
Quando cheguei à encosta, ele já estava lá. Caminhei
devagar para não assustá-lo, enquanto, assim, podia observá-lo.
Ele estava trajando calça preta, dobrada até os joelhos para não
molhar a barra, e blusa de seda branca. Havia amarrado os
cabelos em um rabo de cavalo. Estava parecendo um corsário,
como o dos meus sonhos. Meu coração quase parou ao vê-lo
vestido como um cigano. Ele caminhou lentamente e parei a
quinze metros de distância para observá-lo melhor. Ao ver-me,
veio em minha direção.
– Você está linda, parece uma rainha cigana. – disse ele,
ao estarmos frente a frente.
Senti meu rosto queimar-se naquele momento. Baixei a
cabeça, envergonhada.
– Não dormi bem esta noite. – disse ele.
– O que houve? Aconteceu algo?
– Nada demais, creio que posso resolver esse pequeno
contratempo sozinho. Mas sua imagem não saiu de minhas
lembranças. Eu a amo. Confesso que estou preso aos seus
encantos, não consigo mais pensar na minha vida sem você.
– Então, você conversou com os anciões? O que eles
disseram? – perguntei, animada.
– Sim, conversei. Eles disseram que se é essa é a minha
escolha, que assim seja, então.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
90
Ele mentiu para mim. Porém, eu estava tão iludida que
não percebi os sinais em seus olhos, dizendo-me o contrário.
Pulando em seus braços de tanta felicidade, disse:
– Jura? Eu sabia que você conseguiria convencê-los! E
quando você irá me levar para conhecer o seu povo,
principalmente sua família? Quero conhecê-los! Você não sabe
o quanto estou feliz! Saiba que aceito tudo para ficar com você e
prometo agir e comportar-me exatamente como mandam os seus
costumes.
Ele estava com os olhos tristes, mas não dei importância.
Sugeri para a minha mente que era por causa dos problemas
pessoais que ele disse ter. Fui uma egoísta e tola. Confesso que
deveria ter sido mais atenta àquele olhar, mais transparente do
que a água. O amor é lindo e maravilhoso. Faz-nos fortes e
capazes de qualquer coisa. Mas quando esse amor vem
acompanhado da paixão, ele nos deixa cegos e tolos. A verdade
estava lá dentro dos olhos dele e gritava para que eu a visse.
Mas eu, de forma egoísta, preferi ver o que me convinha.
Acredito que Henrico, ao ver-me tão afoita e feliz, não quis
magoar-me.
Mas os dias foram passando, e a mentira foi crescendo.
Ele nunca quis conhecer meus pais, pois sempre dizia que não
podia colocar os pés em um lugar onde sua cultura e seus
costumes não eram aceitos. Apanhei muito do meu pai por causa
de Henrico. Nosso namoro era às escondidas. Minha mãe quase
não falava comigo dentro de casa por não aceitar o meu
comportamento. Era mais forte do que eu, embora eu estivesse
sofrendo por causa disso. Meu corpo vivia cheio de hematomas
devido às muitas surras que levei, mas nada me importava: só
queria vê-lo sempre, mesmo que por poucas horas e correndo o
risco de ser flagrada por meu pai.
Adriana Matheus
91
Meu irmão foi embora para Londres, pois recebeu um
convite de Maxuel de morar com ele e Eulália. A vida de todos
estava seguindo. Porém, eu estava presa a uma louca e cega
paixão. Quase não comia e mal dormia. Henrico, por alguma
razão ainda obscura, começou a se afastar. Eu ficava horas na
varanda, olhando o horizonte, esperando alguma notícia, pois
ele sempre me enviava um baiat tínar – um jovem rapaz – para
me dar seus recados. Mas cada vez eu o esperava mais e mais e
ele não aparecia.
Os dias foram se seguindo, até que tomei, por fim, uma
decisão, e que por certo foi a causa de toda a minha degradação.
Voltei às cavernas depois de quase oito meses sem sequer me
importar com a magia. Esperei que todos adormecessem e segui
na calada da noite. Levei comigo uma tocha para iluminar o
caminho. Eu estava totalmente enlouquecida, pois não me
preocupei com nada, nem mesmo se um hot – ladrão – ou coisa
pior me abordasse no meio do caminho. Chegando à caverna,
estava tudo como eu havia deixado da última vez. Porém, a
poeira havia tomado todo o lugar. Imediatamente acendi as
tochas nas paredes e comecei uma limpeza minuciosa. Depois
de tudo arrumado e brilhando, procurei pelo velho livro de
feitiço e poções de Eleanor. Revirei o local até que o achei
debaixo de uns caixotes velhos. Mal comecei a manuseá-lo e
caiu ao chão uma espécie de bilhete. Curiosa, peguei-o para ler e
fiquei admirada ao ver que estava endereçado a mim. Era de
Eleanor e dizia:
Eu sabia que você voltaria a este lugar na hora de suas
aflições. Como eu lhe disse antes, ressalto agora: pare e não
faça o que está pensando em fazer. Não use os recursos da
magia para manipular os sentimentos de outra pessoa. Você
não tem o direito de fazer isso. Não pode praticar magia para
uso próprio. Avisei-a antes: você desafiou os senhores do
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
92
destino e agora está colhendo sua paga. Se prosseguir com essa
ideia, irá receber a maior de todas as punições: a solidão. E
acredite: ninguém consegue sobreviver sendo desprezado e
humilhado por todos os que o cercam. Emanuelizia, por favor,
eu lhe imploro: você está perto de cometer um sacrilégio contra
o universo e contra a sua alma. Não ultrapasse os limites da
razão, não perca a cabeça antes de ter certeza de que o que
você quer é exatamente isso que sente. Acredite: nenhum
homem merece isso. Sempre soube que você era fraca. Mas,
mesmo assim, confiei a você os meus poderes. Confesso que
esperava mais da senhorita...
Não quis ler o restante daquele bilhete. Rasguei-o antes de
terminá-lo. Eu sabia que Eleanor estava coberta de razão, mas
estava me sentindo abandonada e desprezada. Eu precisava dar
fim à minha dor. Acendi o caldeirão – não o caldeirão comum,
mas o de feitiços – e comecei a preparar uma poção mágica.
Depois de pronta, guardei-a dentro de um frasquinho. Fiz umas
conjurações, recitando algumas palavras em aramaico – língua
que aprendi nos livros de magia de Eleanor. De repente, no meio
das brasas que esquentavam o caldeirão, começou a aparecer
uma forte luz que quase me cegou. Afastei-me imediatamente
para não macular meus olhos. Foi quando escutei uma
gargalhada que, além de ecoar por toda a caverna, fez as paredes
estremecerem. Afastei-me cada vez mais da fogueira,
encolhendo-me em um canto. Tapei os olhos com as mãos, pois
realmente fiquei com medo. Uma voz tenebrosa falou:
– Não se assuste, minha bela dama. Vim aqui atender o
clamor. Eu lhe avisei que quando todos tivessem se afastado de
você e quando o seu Deus não lhe ouvisse mais, eu voltaria.
Abri os olhos lentamente e vi na minha frente uma figura
cuja só aparição já me gelou a alma. A besta estava de volta,
mas não na sua forma. Não era mais meio humana, como da
Adriana Matheus
93
primeira vez que julguei ter sonhado. A besta agora era um bode
negro de um metro e oitenta, com um pentagrama de ouro no
meio da testa, entre os enormes chifres. Ela me sorriu.
– Não posso buscá-la, minha donzela, contra a sua
vontade. Mas posso ajudá-la a se livrar do seu sofrimento, ou
posso torná-lo um pouco mais leve, quem sabe!
– Não quero e não preciso de nada vindo de você, seu
demônio. Afaste-se de mim! – disse isso colocando para fora da
minha camisola um crucifixo.
Ao vê-lo, a besta deu outra gargalhada.
– Acha mesmo que com tanta amargura e raiva em seu
coração conseguirá me repudiar ou me banir com o seu
amuleto? Criança tola! Sou a verdade escondida por trás de suas
mentiras. Pode enganar todo mundo com o seu jeito de boa
moça, mas conheço seus desejos mais ocultos. Vejo a noite em
seu leito e sei o que você quer.
Dizendo tais palavras, a besta avançou sobre mim,
tirando-me o crucifixo do pescoço. Ao tocá-lo, para meu
espanto, o crucifixo derreteu-se como água fervendo sobre o
fogo.
– Se eu assim o quisesse, você estaria contra a sua vontade
em minhas mãos. Sou sutil e gosto de esperar que me peçam. –
disse ele.
– Você acha mesmo que cederei às suas vontades?
Novamente a gargalhada seguida da resposta:
– Eu não acho, tenho certeza, minha cara. Além do mais,
a senhorita não tem muita escolha, pois, neste exato momento, o
seu cigano se diverte com outra mulher.
– É mentira, você está me dizendo isso para me testar e
saber até que ponto resisto. Não preciso de sua ajuda! Eu mesma
posso fazê-lo se render a meus encantos.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
94
– Como? Com essa mísera poção? – novamente a
gargalhada.
– Sim, confio no que Eleanor me ensinou. Sei que serei
capaz de prendê-lo a meu modo.
– Não confie muito na sua mestra, minha querida, pois
hoje ela é minha escrava.
– Não acredito em nada do que está me dizendo. Afaste-se
de mim!
Enfurecida, a besta pegou-me pelo pescoço e levou-me até
o caldeirão, fazendo-me ver sobre o líquido que borbulhava
onde estava Henrico e o que ele estava fazendo.
Ele estava em uma festa cigana, dançando alegremente ao
lado de uma jovem cigana de cabelos negros. Eles bailavam
como borboletas ao vento e brindavam vinho em uma taça. Seus
olhos eram pura felicidade e pareciam enamorados. Em seguida,
a besta mentalmente fez-me ver onde estava Eleanor: um lugar
escuro e sujo, cheio de pessoas maltrapilhas e sujas. Era um
lugar onde o Sol não brilhava, as plantas não cresciam. Era um
lugar onde as pessoas devoravam-se umas às outras. Nunca, em
toda a minha vida terrena, havia visto um lugar tão horripilante.
Embora atordoada e enfraquecida com aquela visão do
purgatório, soltei um grito de ódio e revolta. Não me preocupei
com a situação de Eleanor. Só via à minha frente a face de
Henrico ao lado daquela mulher. Eu queria sair dali naquele
momento e iria até onde ele estava para rasgá-lo com as minhas
unhas. No entanto, a besta ao meu lado deleitava-se com a
minha dor. Ao perceber a satisfação daquele ser, enfurecida eu
disse:
– Aposto como é mentira as coisas que me mostrou. Fez isso
somente para que eu ficasse fraca e cedesse ao que me sugere.
Novamente a besta enfureceu-se comigo e agarrou-me pelos
dois pulsos, dizendo:
Adriana Matheus
95
– Sua raça de macacos pode me acusar do que bem quiser, mas
não pode me chamar de mentiroso. Não tenho culpa se vocês
são fracos e sucumbem-se facilmente aos desejos da carne. Não
menti para você, Henrico mentiu. E ele continua mentindo! Ele
jura amor eterno e está comprometido com outra mulher. Ele
disse que nunca a magoaria e é quem mais a faz chorar. Ele
disse que a protegeria, mas agora se derrete com outra mulher.
Você é uma tola! Deixe-me ajudá-la. Eu lhe dou a minha
palavra de que ele será seu.
– Nunca farei acordos com você. Por meus próprios meios
conseguirei tê-lo de volta.
A besta deu um urro que quase abalou as estruturas da
caverna.
– Vou embora porque não quero me aborrecer ainda mais com
você, mas voltarei muito em breve, pois sei que me implorará
para fazermos o nosso acordo final.
Dizendo isso, a besta rodopiou, sumindo no espaço em minha
frente. Eu estava com medo, assustada e sem saber como agir,
mas precisava ter coragem. Uma coisa era certa: eu iria lutar
com todas as minhas forças para conseguir de volta aquele
homem que eu supunha ser o meu verdadeiro amor.
Saí da caverna com as pernas bambas pelo que presenciei. Vi o
dia já raiando. Precisava ser esperta e chegar à minha casa antes
que meus pais acordassem. Foi uma correria, mas consegui
chegar a tempo. Pulei rapidamente a janela quando percebi que
já havia movimento do lado de fora do meu quarto, tirei
rapidamente as roupas e entrei debaixo das cobertas, ficando
bem quieta para que pensassem que eu estava dormindo. Ouvi
quando minha mãe despediu-se de meu pai na porta. Depois, ela
deu café para as gêmeas. Quando pensei que estaria tudo bem,
minha mãe entrou pelo meu quarto, dizendo:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
96
– Não finja que está dormindo, pois sei que não está. Quero
que se levante e me diga onde esteve até agora.
– Fui até as cavernas. Havia muito tempo que eu não ia até lá.
– levantei-me meio ressabiada.
– Está mentindo para mim! Foi se encontrar com aquele
déspota.
– Não, estou realmente dizendo a verdade. Fui até as cavernas,
na encosta.
– E o que foi fazer lá? Perdeu o juízo saindo àquelas horas da
noite? E se a maré estivesse cheia? Poderia ter se afogado ou
ficado ilhada por lá durante semanas, e nunca iríamos adivinhar
o que lhe aconteceu! Não sei mais o que pensar ou fazer com
você, Emanuelizia. Sabe muito bem que seu pai não tem limites:
quando ele começa a bater, não consegue parar. Uma hora
dessas, ele acaba matando você de pancadas!
– A senhora torce para que isso aconteça, não é? Saiba que
seria um alívio para mim se acontecesse! Pelo menos a minha
vida deixaria de ser o inferno que é. Não fiz nada demais e
vocês me acusam o tempo todo de estar sendo promíscua, entre
tantas outras coisas horríveis. Não estou me encontrando com
Henrico. E se a senhora quer saber, há dois meses não nos
falamos; ele foi embora. Não era o que vocês queriam? Vocês
conseguiram afugentá-lo de mim! Ele não volta mais.
Caí em choro profundo. Culpava meus familiares por Henrico
ter se afastado de mim. Não queria ver a verdade: ele só quis
brincar com meus sentimentos enquanto sua noiva não chegava.
Sim, Henrico estava noivo desde o nascimento. Esse era o
grande problema que ele me disse ter no primeiro encontro
nosso. A notícia chegou até a mim pela minha mãe, que disse ter
ouvido o boato na cidade. Mas, como eu disse, estava cega, nem
ouvia ninguém. Minha família não interferiu, mesmo eu estando
namorando às escondidas com ele. Porém, meu pai é quem o
Adriana Matheus
97
colocou na parede certa vez e quis saber dele quais eram as
reais intenções comigo. Henrico zombou da minha família e
caluniou-me, dizendo que eu era uma desfrutável e que havia
muito tempo eu já não tinha nada para que fosse zelado. Meu
pai esbofeteou-o e espancou-me. Eu e Henrico continuávamos
nos encontrando às escondidas, só que ele era muito agressivo
comigo. Eu achava que Henrico estava daquela forma por meu
pai o haver humilhado e esbofeteado. Não queria ver que
Henrico estava somente esperando o momento de poder me
seduzir e depois me descartar, como tantas que ele conhecia...
Eu não queria ver que Henrico pertencia ao povo cigano e que
eu jamais me enquadraria naquele meio.
Depois da conversa que tive com minha mãe, ela me abraçou
muito enquanto eu chorava inconsolavelmente. Estava decidida
a deixar de lado aquele amor, mas permaneci durante semanas
dentro de casa. Só chorava, não comia ou bebia, não queria ver a
luz do Sol ou ter qualquer proximidade com as pessoas. Até que,
certa noite, o rapaz que sempre me trazia bilhetes de Henrico
bateu na janela de meu quarto para me trazer um recado dele. A
princípio, não quis aceitar, mas o rapaz disse que era urgente. O
bilhete dizia assim:
Espanha, 20 de março de 1833.
Minha amada Emanuelizia,
Sei que estou em falta com você e peço-lhe humildemente
perdão. Tive muitos problemas aqui com o meu povo. Fui
colocado em uma prova de fogo: arranjaram-me um casamento
de conveniências, mas jamais poderia casar-me com outra
mulher que não fosse você. Estou disposto a assumir o nosso
amor e quero que seu pai me dê a oportunidade de provar isso.
Quero estar junto aos seus em sua casa e oficializar o nosso
amor. Minha amada, se você me perdoa, encontre-me amanhã
bem cedo perto da encosta do farol.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
98
Henrico Gonçalo Lopes
Minhas pernas tremeram e eu não sabia se era de fraqueza ou
de esperança. Mas, naquele exato momento, minha mãe chegou
do lado de fora da minha janela atrás do rapaz que me trazia o
recado.
– Entregue-me esse bilhete agora, Emanuelizia!
– Leia. Não irei ao encontro dele, se é o que está pensando. –
eu estava fraca demais para retrucar.
Olhei para o rapaz e mandei-o dizer a Henrico que não iria.
Voltei para a cama. Minha mãe, porém, surpreendeu-se com a
minha atitude. Despachou o mensageiro e entrou em casa,
seguindo em direção ao meu quarto. Ela disse, admirada:
– Você não irá ao encontro daquele crápula? Será que resolveu
tomar juízo?
Nada consegui responder. Meu corpo todo doía muito e sentia
calafrios. Minha mãe, então, aproximou-se de mim, colocando a
mão em minha testa.
– Emanuelizia, minha filha, você está queimando de febre!
Meu Deus, o que você tem?
Nada conseguia dizer, apenas batia o queixo de frio.
Imediatamente, ela correu até a casa mais próxima, para pedir a
alguém que fosse chamar o doutor Helvécio. Voltou e aqueceu
uma chaleira de água, mas percebeu que eu estava desmaiada.
Não me lembro de muita coisa depois disso, só de acordar com
o doutor Helvécio ao lado da minha cama, fazendo-me
perguntas de quanto tempo eu estava daquele jeito sem me
alimentar.
– Não tenho tido fome.
– E a senhorita acha que vai aonde com esse tipo de atitude?
– Não penso em ir a lugar algum, doutor. Só não tenho mais
vontade de viver.
Adriana Matheus
99
– Ah, sim, e essa sua falta de vontade de viver creio que deve
ter um nome, não é mesmo?
Corei ao perceber a perspicácia dele.
– Isso já não importa mais. Nada mais me importa.
– Oh, mas é claro que importa! Acha que se a senhorita ficar
doente e vir a falecer vai conseguir resolver os seus problemas?
Olhe, mocinha, aceite o conselho deste velho aqui: ninguém
neste mundo vale um preço tão alto como o que a senhorita está
querendo pagar. Viver é a única coisa realmente importante
nesta vida. Se tivermos inimigos, temos que viver e lutar para
viver bem e para que eles nos vejam bem. Se tivermos um amor,
temos que viver e lutar para sermos felizes ao lado dele, mesmo
que isso nos custe um preço muito alto. Mas o que não podemos
é entregar os pontos na primeira derrota. Inimigo se vence com
sorriso; e batalha, com luta. Pense nisso e levante-se dessa
cama. Pare de agir como uma tola. Conheço-a desde criança e
você sempre foi a mais forte e sábia desta casa.
– Nossas famílias não aceitam o nosso amor.
– Conversarei com seus pais sobre isso.
– Eles não vão ouvi-lo. Henrico é um cigano.
– Hum... temos um problema, então! Mas nada que uma boa e
franca conversa não resolva. Agora, conte-me o que esse rapaz
significa para a senhorita e quais são as reais intenções dele.
Contei-lhe tudo, desde o começo, e entreguei-lhe o último
bilhete de Henrico que minha mãe, afoita por eu estar doente,
deixou cair ao chão. O doutor Helvécio leu atentamente. Depois
de me ouvir em silêncio, balançou a cabeça positivamente e saiu
do meu quarto, dizendo:
– Não quero saber de ter que vir vê-la nesse estado novamente.
Quanto ao resto, deixe comigo.
Não demorou muito, meus pais entraram para verificar como
eu estava passando. Minha mãe disse em nome dos dois:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
100
– O doutor esteve conversando com a gente e pediu-nos para
dar uma chance ao tal cigano.
Fiquei olhando para os dois, sem nada dizer, apenas esperando
uma reposta. Foi meu pai quem continuou:
– Aceito conversar com esse indivíduo, mas somente porque o
doutor pediu-me, dizendo que lhe ajudaria a melhorar. Quero,
porém, que fique bem claro: não o quero dentro de minha casa e
não aceito filha perdida. Caso isso aconteça, esqueça que
existimos para você. E isso também serve caso resolva casar-se
com esse monte de estrume.
Dizendo aquelas palavras amargas e ofensivas, meu pai saiu
sem nada mais para dizer a mim e à minha mãe. Ela olhou para
mim, sentada num canto da minha cama, com o coração em
prantos, pois não sabia se ficava feliz ou se ficava triste por meu
pai dizer tudo aquilo e daquela forma tão deprimente. Então,
depois de muito me analisar, falou:
– Seu pai mandou-me ir até a vila, procurar por aquele déspota
e pedir-lhe que venha até aqui para falar com ele. Quero que
saiba que faço a contragosto, somente porque seu pai me pediu.
Amanhã irei pela manhã. Agora vou preparar uma canja para
você e a janta do seu pai. Quando estiver melhor, quero que me
responda algumas perguntas. Agora fique aí deitada e tente
repousar.
Minha mãe saiu, jogando o xale por cima do ombro e batendo
a porta. Queria que as coisas tivessem sido diferentes. Queria
que eles tivessem aceitado Henrico com o coração aberto. Mas
ao menos eu tinha a esperança de que com o tempo e a
convivência eles pudessem mudar de opinião.
Minha mãe voltou ao meu quarto para me trazer a canja, mas
não abriu a boca para falar comigo. Fiquei observando-a
enquanto ela pegava a tigela vazia e algumas roupas sujas para
lavar no dia seguinte. Adormeci profundamente devido à
Adriana Matheus
101
medicação que o doutor havia me dado. Acordei já era alto dia e
o Sol entrava insistentemente no quarto, fazendo-me abrir os
olhos forçosamente. Escutei barulho e vozes vindas da sala.
Meu pai parecia exaltado. Levantei-me lentamente, pois ainda
estava meio fraca. Arrumei um roupão e o vesti por cima da
camisola, seguindo em direção àquelas vozes exaltadas.
Para minha surpresa, vi Henrico assim que passei pela porta.
Ele estava de frente a mim; meu pai, de costas. Ao vê-lo,
percebi que dele saíam luzes. Ficamos parados, olhando-nos.
Não precisávamos dizer nada. Nossos olhos falavam por nós e
neles havia muitas saudades e esperança. O que eu mais queria
naquele momento era abraçá-lo, mas senti minhas pernas
fraquejarem e caí. Não vi mais nada à minha frente. Sentia tudo
girar. Queria pedir ajuda, mas as palavras não me saíam à boca.
Era como se algo me impedisse de falar. Uma enorme escuridão
tomou conta das imagens, que também ficavam desconexas.
Senti frio e pânico. Era como cair em um precipício sem fim, só
que lentamente. Senti náuseas, minha cabeça girava. A sensação
era que eu estava morrendo devagar. Só me lembro de dizer Não
me deixe morrer...
– Nunca... Estarei sempre com você, mesmo após sua morte. –
a voz ao longe respondia.
Aqueles braços ampararam-me antes que eu chegasse ao chão
e levantaram-me ao alto. Pude sentir o cheiro de perfume de
jasmim que vinha daquele corpo tão próximo a mim. Henrico
colocou-me sobre a minha cama e ficou ajoelhado ao chão,
segurando minhas mãos, com súplicas no olhar. Foi quando meu
pai disse:
– Vá, mulher, chame novamente o doutor Helvécio! Diga para
vir imediatamente! Quanto a você, sou-lhe grato por ter ajudado
minha filha, mas agora que saia de minha casa! Se quiser, fique
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
102
na varanda esperando até que o doutor venha e dê notícias do
estado dela.
Meu pai estava sendo rude demais com Henrico. Queria fazer
algo, mas não tinha forças para sequer falar. Não vi muita coisa
daquele momento em diante. Mais tarde, quando despertei,
fiquei sabendo pela boca do doutor que estava com anemia por
ter ficado tanto tempo sem me alimentar. Henrico havia ficado o
tempo todo ao relento, esperando saber notícias minhas vindas
do doutor. Quando abri os olhos, o médico convenceu meus pais
a deixar o cigano entrar para me ver. Minha alegria era sem
limites. Ele me contou quais foram as condições impostas pelo
meu pai para que pudéssemos namorar. Achei um absurdo, mas
era melhor do que ficar sem o meu único amor. Ele parecia não
se importar com as tais condições. Disse-me que só queria ficar
ao meu lado. Contou-me sobre o suposto noivado que a família
dele havia lhe arrumado. Explicou-me como foi complicado
desfazer o tal compromisso. E pediu inúmeras desculpas por ter
falhado comigo, jurando-me fidelidade e prometendo-me nunca
me abandonar ou fazer-me chorar novamente. Mais uma vez
cedi, dando a Henrico um voto de confiança. Os dias passaram-
se. Até que...
“Tudo o que acontece em nossas vidas não acontece por
acaso. Na verdade, são fases... E essas fases têm que ser
aproveitadas devidamente. Lembrem-se de que somos
eternamente responsáveis por tudo o que praticamos e
cativamos. Ninguém merece sofrer e pagar pelos atos
impensados de terceiros que já passaram em nossas vidas, mas
também temos que nos lembrar que eles vieram para nos
ensinar que não existe nada e ninguém que permanecerá
conosco por toda a eternidade. Devemos, sim, aprender com os
erros dos outros, mas devemos principalmente aprender com os
Adriana Matheus
103
nossos próprios erros. Errar é humano, mas não aprender com
os erros é inadmissível. Na vida, tudo é passageiro. Viver
dignamente é um dos maiores atos de coragem, pois as
tentações mundanas e a decadência são muitas e,
aparentemente, facilitam a vida do ser humano, deixando-o
futuramente em um completo tormento de solidão. Cego não é
aquele que não quer ver, mas aquele que não quer ouvir, pois
existem várias maneiras para se enxergar, mas apenas um
modo de aprender. O que quero dizer é que posso enxergar seu
rosto com os meus dedos, mas não ouço as palavras que saem
da sua boca. Apenas escuto o som que se perde ao vento.
Pensem nisso.”
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
104
III – Do pacto à vingança
caminhando à beira-mar de braços dados com
Henrico, paramos para descansar um pouco perto
de um velho farol. Foi quando ele ficou de frente
para mim e, depois de me fitar por alguns segundos, perguntou:
– Emanuelizia, você gostaria de conhecer o meu povo e a
minha família? Gostaria de aprender os meus costumes e tornar-
se uma cigana? A rainha dos ciganos... Já que sou o filho do rei
e em breve serei o sucessor.
Arregalei os olhos. Depois daquele impacto de emoção,
perguntei, meio sem saber o que ia dizer ao certo:
– Você está falando sério? Não teme que eles possam me
rejeitar? E se eu não conseguir ser do jeito que você espera que
eu seja?
Ele sorriu, sacudindo a cabeça negativamente, como se
estivesse desaprovando aquela minha pergunta. Respondeu-me,
segurando-me pelos ombros e olhando ainda mais fixamente nos
meus olhos:
– Sim, estou falando sério, mocinha. E quanto ao meu
povo, eles jamais a rejeitaram. Não se preocupe: eles vão tratá-la
da melhor maneira possível, pois somos muito hospitaleiros com
C
Adriana Matheus
105
nossos convidados. E quanto a você, sei que se sairá muito bem.
Confio em você.
– Sendo assim, digo que aceito.
Beijamo-nos longamente. Seus beijos tiravam-me a
concentração. Sentia-me levitando. Era como se um coro de
anjos cantasse aos meus ouvidos. Eu o amava, sim, loucamente.
Naquele momento, era essa a certeza que eu tinha. Nada mais
me importava, pois eu estava tão feliz! Iria conhecer a família e
o povo de Henrico. Pensava que, com essa proximidade,
pudéssemos acabar com o preconceito que existia entre nossas
famílias. Ele surpreendeu-me ainda mais ao dar-me um cordão
feito de couro com uma pedra vermelha. Era um rubi. E ele
disse que era para selar o nosso amor. Marcamos para um
domingo, pois haveria uma grande festa entre o povo dele – a de
Santa Sarah Kali, a cigana que venceu os mares com sua fé.
Cantava a lenda que Maria Madalena, Maria Jacobé,
Maria Salomé, José de Arimatéia e Trofino, junto com Sarah –
uma cigana escrava – foram atirados ao mar, numa barca sem
remos e sem previsões. Desesperadas, as três Marias puseram-
se a orar e a chorar. Então, Sarah retira seu diklô (lenço) da
cabeça, chama por Kristesko Jesus Cristo e promete que se
todos se salvassem ela seria escrava de Jesus e jamais andaria
com a cabeça descoberta em sinal de respeito. Milagrosamente,
a barca – sem rumo – atravessou o oceano e aportou com todos
salvos em Petit-Rhône, hoje a tão querida Saintes-Maries-de-
La-Mer, no sul da França. Sarah cumpriu a promessa até o
final dos seus dias. Suas histórias e milagres a fizeram
padroeira universal do povo cigano, sendo que a festa é
celebrada todos os anos no dia vinte e quatro de maio. No dia
seguinte, comemoram-se o dia das três Marias.
Depois que Henrico me deixou em casa, comecei a
preparar-me para a festa. Queria que tudo fosse perfeito! Eu
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
106
precisava trajar-me exatamente como uma cigana. Queria ser a
mais bela entre todas elas. Queria ser motivo de orgulho para
Henrico. Difícil foi convencer minha mãe a fazer um traje típico
para tal evento. Confesso que foi complicado, pois ela não
aceitava que eu me vestisse ou muito menos que fosse a uma
festa cigana. Mas, modéstia à parte, em questão de convencer
alguém até hoje sou louvável! E quem me conhece sabe. Quanto
a ir à festa, foi mais fácil, pois meu pai estava em alto-mar e só
voltaria em duas semanas: esse pequeno detalhe favoreceu-me.
Saí com minha mãe e fomos ao armazém – sim,
armazém, pois naquela época comprávamos de tudo nos
armazéns, inclusive tecidos para roupas. Como éramos pobres,
não tínhamos dinheiro para pagar uma costureira ou ir a um
atelier. Às vezes comprávamos nossas mercadorias dos caixeiros
viajantes que passavam em nossa porta, mas isso era muito
raramente. Para nós, tais fatores eram um avanço no tempo, pois
mais atrás as pessoas compravam suas mercadorias na forma de
escambo, ou seja, na forma de troca. Era o sistema mais fácil de
adquirir o que precisávamos. Porém, não vigorava mais já em
minha época. Pena...
Graças a Deus as mulheres do meu tempo sabiam
diversas coisas, entre bordar e costurar. Minha mãe, nesse
ponto, era muito prendada. Ensinou-me tudo o que sabia – o que
nos favorecia muito, inclusive porque muitas mulheres como
nós usavam seus dotes de artesãs para ajudar nas finanças. E não
pensem que era como agora, no mundo de vocês: não havia
máquinas, era tudo feito à mão mesmo. Confesso que, apesar de
todo o sufoco e dificuldades, sinto saudades daquele tempo, pois
havia mais poesia e amor no que fazíamos. Mas, é a vida... tudo
tem que caminhar e seguir em frente.
Ficamos dias a fio costurando e bordando minha roupa.
Eu fazia a maioria dos trabalhos domésticos e cuidava das
Adriana Matheus
107
gêmeas para aliviar minha mãe e também para que ela pudesse
concentrar-se melhor no meu traje. Finalmente o domingo tão
esperado chegou. Mãe de Deus! Eu estava tão feliz e ansiosa!
Minha roupa ficou magnífica! A saia era negra, e um fino véu
negro bordado de pedras caía sobre ela. A blusa era vermelha,
toda bordada de medalhas douradas. Usei uma sandália de couro
cru que trançava nas minhas pernas até os joelhos. Minha mãe
fez uma tiara dourada para mim, e dela caía sobre a testa uma
correntinha com uma pequena pedra vermelha em forma de
gota. Usei o cordão com a pedra vermelha que Henrico havia me
dado.
Durante o período de espera para a festa, Henrico vinha
ao meu encontro todos os dias e ensinava-me a dançar como o
seu povo. Com isso, aprimorei ainda mais o meu flamenco. Por
várias vezes, peguei minha mãe olhando-nos da janela da sala,
mas ela sempre se esquivava ao perceber que a notávamos. Eu
adorava aquele povo, suas danças, seus costumes, suas
tradições. A cada dia, sentia-me mais cigana do que nunca. Era
apaixonante estar vivendo como eles. Parecia que tinha aquele
povo no meu sangue, nas minhas entranhas...
Fizemos de tudo para que minha mãe nos acompanhasse
à festa, mas ela, como sempre, mantinha-se fiel às ordens de
meu pai. Mesmo quando ele não estava por perto, conseguia
controlá-la. Era como se ele tivesse um aparelho controlador de
mente e, mesmo à distância, dominava-a. Era isso que eu
pensava antes. Hoje, porém, sei que aquele gesto de minha mãe
que me parecia absurdo era nada mais nada menos do que
respeito – o que não acontece nos casamentos atuais...
Fomos para o acampamento do povo de Henrico de
carruagem. Embora eles estivessem acampados perto da vila,
mantinham certa distância para que, assim, evitassem conflitos
com os aldeões. Não era fácil para eles ouvir as ofensas que
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
108
sofriam todos os dias. O meu apelido na vila era Gadijá, que
quer dizer “não cigana”. Eles passaram a me olhar de soslaio e
esquivavam-se quando eu passava com Henrico. Era como se
tivéssemos uma doença contagiosa. Ouvi diversos boatos
maliciosos que as pessoas inventavam a nosso respeito. Porém,
por consideração a meu pai e por conhecerem a fama de
encrenqueiro dele, os boatos findavam-se logo. Com o tempo,
aprendemos a superar esse tipo de coisa. Mas, para os mais
velhos, o nosso relacionamento era abominável: eles não
aceitavam que uma aldeã moradora da vila pudesse estar
envolvida com um homem cigano, pois eles os consideravam
sujos e ladrões. Isso não era verdade, mas o preconceito
imperava e gritava naqueles corações infelizes e amargurados.
Como citei, eu e Henrico aprendemos a conviver com essas
diferenças. Não nos importavam os mexericos e xingamentos. O
mundo era nosso e, onde passávamos, aqueles despeitados
tinham que nos engolir a duras penas.
Era o que pensava naquela época: eu era orgulhosa
demais e arrogante para perceber que as coisas não são como
queremos. Tudo e todos têm o seu tempo. Ninguém é obrigado a
nos aceitar como nós somos. Não podemos sair pelo mundo
impondo nossas vontades e desejos. As coisas só acontecem
quando têm que acontecer, e as pessoas são como têm de ser.
São esses tipos de pensamentos que causam conflitos entre pais
e filhos, pois ambos têm ideias diferentes, ambos tentam impô-
las uns aos outros. Essa guerra, que chamamos de conflito de
gerações, danifica a humanidade de forma que haverá um dia
em que não poderemos sanar estas feridas contidas na alma.
Seria muito mais fácil se uma das partes cedesse, mesmo que
momentaneamente.
A carruagem cigana parou finalmente em frente ao
acampamento. Henrico desceu, estendendo-me a mão para eu
Adriana Matheus
109
me apoiar e descer também. Assim que coloquei meus pés no
chão, o murmúrio foi geral. Eles me aclamaram como rainha dos
ciganos, dizendo para Henrico “Esta é a mulher e a cigana mais
linda que já apareceu neste acampamento”. Henrico correu e foi
buscar seu pai, que era o chefe e rei dos ciganos, para nos
apresentar. Ao me ver, ele disse:
– Agora sei por está traindo seus costumes.
Henrico sorriu largamente, respondendo:
– Meu pai, esta é Emanuelizia Gonzáles. Emanuelizia,
este é meu pai, Hermano Lopes Gonçalo, o rei dos ciganos. E
esta bela mulher é a minha mãe, Cândida Hernandes Gonçalo.
Ela me recebeu com um largo sorriso e disse:
– Seja muito bem-vinda, minha filha. Qualquer amigo
ou amiga de meu filho é muito bem-vindo aqui em nosso
humilde acampamento.
Logo depois, Henrico puxou-me em um canto.
– Quero agora que conheça uma pessoa muito
importante para mim, a minha avó.
Ao chegarmos perto dela, percebi que era uma feiticeira
e ela me reconheceu como tal. Olhou-me de cima a baixo, com
um olhar que não identifiquei.
– Você é um diabo loiro. Não gosto de você e não a
quero perto de meu neto.
Depois, disse frases em români, que não consegui
entender ainda. Fiquei perplexa e segurei na mão de Henrico
fortemente. Ele também falava com ela em români e os dois
estavam exaltados. Depois, percebendo que aquele gesto só me
deixava ainda mais assustada, ele falou em espanhol novamente:
– Vó! A senhora está sendo grosseira com a minha
convidada. Exijo que a respeite.
– Não estou não. Estou é vendo uma sombra negra em
volta desta mulher. É melhor que a leve embora daqui antes que,
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
110
no futuro, todos venhamos a nos arrepender. É um diabo loiro e
sei quem ela é: uma maldita bruxa que vai arruinar com a sua
vida.
Henrico ficou estático, sem saber o que dizer. Foi o seu
pai quem nos salvou, puxando-nos para dançar. Durante a
dança, ele disse a mim:
– Não ligue para a nossa nona. Ela está muito velha e
não diz mais coisa com coisa.
Não respondi nada, apenas me deixei levar pela música.
Eu e Henrico dançamos a noite toda sob os olhares curiosos de
muitos ciganos. Uns, já cientes do que a avó dele havia dito,
passaram a nos olhar com receio, medo ou sei lá o quê. Outros,
porém, entorpecidos pela bebida, nada mais queriam além de se
divertir. Houve certa hora que paramos com a bebida, com a
comida e com a dança para ouvirmos as palavras solenes do
ancião dos ciganos. Segundo Henrico, ele era um homem muito
sábio e o que ele dissesse seria acatado como lei. Todos se
reuniram em volta do homem – uns agachados, outros de pé –
até que um grande círculo se formou em volta da fogueira e do
velho sábio, que disse:
– Estamos aqui hoje reunidos para agradecer a mais um
dia de vida e sobrevivência.
Todos concordaram com a cabeça em silêncio, pois o
velho ancião tinha dificuldades em falar muito alto devido à
idade avançada.
– Durante muitos anos, o nosso povo tem sofrido
perseguições. Somos confundidos com bandidos,
sequestradores, mercenários, ladrões, entre tantas coisas
errôneas e injustas. Somos ofendidos e apedrejados em praças
públicas como cães sarnentos. Somos humilhados e caçados
como animais. Fomos obrigados a deixar nossos lares para viver
a vagar pelo mundo, simplesmente porque não aceitam o nosso
Adriana Matheus
111
modo de viver. Nossas cabeças são colocadas a prêmio todos os
dias e, por isso, somos obrigados a viver como errantes, tendo,
então, que armar acampamento onde nos permitem e no tempo
que nos permitem. Somos errantes e sem uma pátria, porque
assim nos foi imposto. Mas, mesmo diante de tanta tragédia e
catástrofe que já sofremos, somos gratos ao Criador de todas as
coisas por hoje estarmos aqui comemorando mais um equinócio,
sem sermos expulsos desta terra abençoada, porque os homens
considerados poderosos ainda não nos enxergaram. Que este
Deus tão maravilhoso cegue esses homens por muito tempo para
que aqui consigamos fazer nossa pátria.
Naquele instante, ele começou uma espécie de oração:
– Deus de todas as coisas, salva-nos das mãos do
opressor. Guia-nos segundo a Tua vontade e lembra-Te, meu
Pai, que, embora tratados como Judas, Tu sabes que não fomos
nós que pregamos Teu Filho na cruz, e muito menos fomos os
fabricantes dos pregos que o crucificaram, como dizem os
ignorantes sem coração. Não nos julgues, Senhor, como é
desejo de nossos inimigos, mas julga-nos por nossos
merecimentos. Aceita-nos como Teus filhos, meu Pai, e não nos
vejas como filhos de Caim. Eu agradeço mais uma vez, Pai, por
mais um dia sem perseguições e mortes.
Dizendo isso, o velho calou-se por um minuto e todos
ficaram de cabeça baixa. Depois, todos foram saindo, cada um
para seu canto, continuando com as festividades. Henrico
pegou-me pelas mãos e levou-me até o velho ancião, que me
recebeu com um sorriso sem dentes, mas muito amistoso:
– Seja bem-vinda, filha do fogo! Em que eu, um humilde
servo, posso ajudá-la?
Nada entendi e disse apenas:
– Não entendo o que o senhor me diz, mas agradeço-o
pela hospitalidade.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
112
Ele riu largamente.
– Entendeu sim, minha querida. Porém, ainda não se
aceita como é.
Henrico, querendo acabar com aquele assunto, disse:
– Leia as cartas para ela, velho, e pare de dizer tolices.
Novamente o velho sorriu:
– Eu, ler as cartas para a rainha dos ciganos? É mais
fácil ela ler para mim.
Fiquei toda encabulada e, sem continuar a entender,
respondi-lhe:
– Senhor, sou mesmo grata por todos esses elogios, mas
peço-lhe humildemente que leia as cartas para mim.
Ele concordou com a cabeça e esticou no chão um pano
negro. Ao desembrulhá-lo, havia um baralho lindíssimo de
madeira. Esticando o pano no chão, ele abriu para mim o tarô
cigano. Seus olhos arregalaram-se ao contemplar os dizeres do
baralho, que até então nada significavam para mim. Em seguida,
respondeu-nos:
– Vocês não vão ficar juntos. Vejo uma sombra negra
entre os dois. Você, meu filho, irá magoar esta mulher onde
nenhum homem deve magoar uma mulher: na alma. Isso irá
transformar esta jovem e delicada flor em um diabo sobre a
Terra. Mesmo depois de sua morte, esta mulher irá caçá-lo por
muitas gerações.
Dizendo aquelas palavras enigmáticas e absurdamente
pavorosas, o velho ficou estático e de suas narinas começaram a
sair sangue sem parar. Henrico gritou aos demais para ajudá-lo,
pois o velho estava tendo um ataque do coração. A mãe de
Henrico veio ao socorro do velho, junto ao esposo. Ela, porém,
fitou o tarô aberto ao chão e, parecendo entender o que dizia as
cartas, falou olhando para mim:
Adriana Matheus
113
– Leve-a para casa; aqui não é o lugar dela. Creio que ela já
conseguiu o que queria: arruinar as nossas vidas.
Henrico obedeceu sem dar nem uma palavra. Durante
nosso retorno para casa, dentro da carruagem, fui puxando
conversa e fiz-lhe muitas perguntas sobre o povo cigano. Ele,
porém, parecia muito distante naquele momento. Respondeu-me
entre dentes:
– O povo cigano é um povo muito sensitivo. Por certo
viram alguma coisa em você que não condiz com as nossas leis.
Talvez fosse por isso que se comportaram tão estranhamente
hoje na sua presença. Quero pedir-lhe desculpas por tudo.
– Não precisa pedir-me desculpas, meu amor. Sei que
não foi culpa minha e nem sua. As pessoas de mais idade têm
certas cismas e falam coisas desconexas.
– Não, sinto muito, mas você está errada: as pessoas
mais velhas sabem tudo da vida. Elas são muito sábias no que
dizem, e os mais idosos do meu povo têm uma percepção além
do alcance. Nós, por natureza, já nascemos com o dom de prever
as coisas, Emanuelizia. Sinceramente, o ancião e a minha avó
viram algo malévolo em você, algo que eles não souberam reter
em seus corações a ponto de serem mal educados com você. Por
favor, se você está me escondendo algo, esta é a hora de me
falar a verdade. Eu já lhe disse que não quero nenhum segredo
entre nós. Estamos há oito meses juntos e eu mal sei quem você
é. Tudo o que sei de você é que é uma jovem destemida e
determinada, que não mede as consequências para obter o que
deseja. Percebi isso quando voltei e procurei-a outra vez, e seus
pais disseram-me que você estava sem comer há semanas.
Ele sorriu e prosseguiu:
– Isso é típico de uma jovem mimada que faz pirraça,
que faz de tudo para conseguir o que quer. Não se preocupe: não
estou criticando você, muito pelo contrário, admiro muito a sua
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
114
determinação em querer a qualquer custo ficar comigo. Eu a
amo, Emanuelizia, mas há coisas em você que ainda são uma
incógnita para mim. Você nunca fala sobre religião, e sei que os
cristãos têm essa mania excessiva de falar em Cristo. É como se
eles dependessem disso para provar sua real intenção em salvar
a própria alma. Você nunca fala sobre sua família... Deduzi por
conta própria que não há um relacionamento fraternal entre você
e seus entes. E, se quer saber, parece que eles vivem em guerra!
Existe um clima de hostilidade e medo entre vocês; não há
respeito e amor.
Olhei para ele friamente e de um jeito que nunca fiz
antes.
– Você está me deixando, Henrico? Pois se está, quero
que saiba que desta vez não permitirei. Já chorei muito por você
e agora estou determinada a não deixar ninguém me fazer chorar
novamente, custe o que custar.
– É sobre isso que estou dizendo: você é impulsiva
demais e entende as coisas à sua maneira. Não estou dizendo
que vou deixá-la: só estou dizendo que temos que confiar um no
outro, sermos mais sinceros e sem segredos. É assim que
funciona entre um casal; é assim que o meu povo vive. Não
existem relacionamentos sem amor, confiança e fidelidade.
Você está sendo muito presunçosa, se acha que pode amarrar
um cigano a seus pés... Somos livres, Emanuelizia. Para ser
minha esposa, você terá que entender isso.
– Todavia, eu não havia terminado de falar e você ainda
me chama de presunçosa? Se eu nunca lhe contei sobre minha
religião é porque achei que não fosse necessário! E se não falo
de minha família é porque meu antigo noivo me acusou de
somente me aproximar dele para falar dos problemas da minha
família! Creio que devemos aprender com os nossos erros, e é
somente por isso que não comento sobre minha família. Se for
Adriana Matheus
115
para eu ter que vê-lo nos braços de outras mulheres, então
prefiro não o ter como meu esposo. Não saberei ser tão... livre
assim.
– Não estou dizendo que nós, ciganos, traímos nossas
esposas. Vejo que você não entendeu nada do que eu disse. Mas
e quanto à sua religião? Já notei que você usa uma cruz invertida
no pescoço. E essa estranha marca em seu antebraço? O que ela
significa? É disso que estou falando: há muito mistério em você,
muita coisa oculta. Não gosto de segredinhos, Emanuelizia. Para
estar ao meu lado, terá que ser extremamente sincera comigo.
Senão...
– Senão... você me abandona como já fez antes, não é?
Creio, Henrico, que você não pode me cobrar sinceridade, pois
andava comigo e estava comprometido com outra mulher. Você
é quem mentiu para mim; nunca menti para você; sempre lhe fui
sincera.
– Não, Emanuelizia, você nunca é sincera totalmente. E
quanto ao meu antigo relacionamento, terminei para ficar com
você, não foi? Além do mais, foi você quem se ofereceu a mim.
Você é quem se declarou a mim, sem se importar qual era a
minha real condição e disponibilidade. Fui um cavalheiro com
você. Se fosse outro homem, teria se aproveitado da sua
fragilidade e carência aquele dia na praia. É dessas coisas que
estou tentando lhe prevenir, mulher: você é muito impulsiva e
possessiva, sim. A vida não gira em torno de você. Cada um de
nós tem direito de ir e vir. Se terminarmos um dia, quero que
saiba que sofrerei, mas não será o fim do mundo, pois existem
outras pessoas capazes de amá-la e de me amar também. A vida
é feita de escolhas, Emanuelizia. Tenho o direito de ficar com
você, mas tenho também o direito de não querer ficar. Não estou
terminando com você, mas tem hora que o seu amor possessivo
e obsessivo sufoca-me. Se fico um dia sem parecer em sua casa,
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
116
você já acha que estou com outra mulher. Se preciso sair mais
cedo, você faz de tudo para me atrasar. Emanuelizia, sou um
cigano e, como tal, prezo a liberdade. É assim que somos: livres.
Ninguém nos prende; nada nos prende. Se vamos ficar juntos
para o resto de nossas vidas, é melhor você começar a se
comportar como uma cigana. Nossas mulheres sabem que não
podem nos prender. Às vezes viajamos sem elas e ficamos dias
longe de nossas famílias. É um comportamento normal.
– Isso quer dizer que vocês levam uma vida de solteiro,
mesmo estando casados? Acho que tem razão: não somos feitos
um para o outro. Somos muito diferentes e pensamos muito
diferente. Eu jamais aceitaria que você me abandonasse sozinha
em casa para ficar festejando sabe Deus o quê. Você está me
magoando com suas palavras. Prefiro que parta antes que me
fira na alma e faça valer as previsões do ancião do seu povo.
Quero ter lembranças agradáveis de nós dois. E não se
preocupe: não farei nada para prendê-lo.
– Você está novamente distorcendo minhas palavras
porque é mais fácil você me culpar por algo que não disse do
que contar a mim a verdade que esconde dentro do coração.
Você diz que a estou ofendendo. Saiba, também: ofende-me
com sua falta de sinceridade e confiança.
– Já lhe disse: não lhe estou escondendo absolutamente
nada. – menti.
– Quer dizer então que você vai arriscar me perder
somente porque o que esconde é maior que o seu suposto amor
por mim?!
Calei-me e nada mais disse durante o percurso. Henrico
estava usando uma forma muito baixa de chantagem para me
obrigar a contar-lhe o meu segredo. Em poucas palavras, aquele
homem conseguiu fazer uma reviravolta nos meus sentimentos e
lançou dúvidas dentro da minha alma. Eu estava confusa e sabia
Adriana Matheus
117
que estava perdendo para ele, porque supunha que os meus
sentimentos fossem a única coisa mais importante que existia no
mundo. Henrico usou dessa fragilidade para obter o que ele
queria: que eu confessasse meus segredos a ele.
Dentro de mim, eu sabia que não poderia contar a
Henrico de forma alguma sobre a tradição. Primeiro, porque ele
não era um membro dela. Segundo, porque ele não entenderia.
Mas fui tola como toda mulher e deixei-me render pela força da
paixão carnal. Estava cega de ciúmes, e deixava-me louca
somente a ideia de que Henrico, ao me deixar, estaria nos braços
de outra. Confesso: fui fraca e odeio-me por isso. Era como se
houvesse dentro de mim um mundo à parte, algo surreal, onde
me tornei alguém capaz de amar loucamente e de maneira
prejudicial. Eu mesma não me reconhecia. Precisava me livrar
daquela doença chamada paixão.
Os homens sabem disso... Eles sabem quando nos
tornamos suas escravas. E, depois de conquistarem seus
objetivos, ainda fazem de tudo para conquistar a última coisa
digna em nós: eles dão finalmente o golpe de misericórdia,
descartando-nos em seguida como um monte de sucata sem
utilidade. Eu até acredito que a besta tenha usado de sua
influência espiritual sobre Henrico, mas a escolha foi minha. Eu
tinha nas mãos o poder de não contar. Foi de meu livre arbítrio
quebrar o meu juramento cerimonial. Toda mulher tem nas mãos
a chave de como prender um homem. Porém, somos fracas
quando se trata da paixão carnal. Cedemos muito fácil, sendo
que se um homem estiver mesmo apaixonado, ele nunca fará
uma proposta ou troca com a sua amada. O amor não é troca
de favores ou troca de merecimentos. O amor é algo que
simplesmente nos deixa aceitar uma pessoa do jeito que ela é e
do estado em que ela se encontra. Não se barganha o amor, não
se chantageia no amor. O amor é um sentimento e não um
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
118
objeto descartável. É difícil se explicar o que é o amor, porque
esse sentimento é muito individual. Quando isso acontecer a
você, sinta-o e não se preocupe com outras coisas.
As paixões carnais só nos servem para nos afundar em
um abismo de desconsolo e sofrimentos desnecessários, em que
tudo termina em um vazio de amarguras que, por mais curtas
que sejam, deixam marcas tão profundas que nos fazem
futuramente sermos duros como as pedras – cegando, assim, o
nosso coração para a verdade imediata.
Eu deveria ter entendido que Henrico nunca me amou de
verdade. Ele só estava usando o sentimento que eu tinha por ele
para futuramente fazer de mim sua concubina, e não sua esposa.
Enrubesci de ódio com aquelas palavras. Por certo ele estava,
sim, terminando comigo, mas queria que eu cedesse e contasse a
ele o meu segredo. E eu, por medo de perdê-lo, contei. A
sensação da perda é algo com que o ser humano não saberá
nunca lidar. Sentia ódio de mim mesma e houve uma hora em
que, olhando para fora da carruagem, senti uma lágrima
escorrer-me por saber que estava sendo usada e nada poderia
fazer para me livrar daquela sensação que me consumia por
dentro. Passei o dedo nos olhos, engolindo seco aquele misto de
sentimentos.
Ao chegarmos em frente de minha casa, saí da
carruagem batendo a porta. Não queria vê-lo nunca mais na
minha frente. Ele não me chamou ou disse uma palavra sequer.
Mas Henrico parecia saber que eu voltaria, pois ficou com a
carruagem ainda na frente da minha casa até que eu, ao colocar
as mãos na maçaneta, não sei explicar... Foi como se algo maior
do que eu mesma me levasse a voltar e entrar naquela
carruagem de novo. Uma espécie de voz dentro de mim dizia
que eu iria perder o meu amor para sempre somente por causa
Adriana Matheus
119
de um segredo tolo. Saí correndo como uma louca, pulando a
cerca da varanda. Quando cheguei à frente da carruagem, disse:
– Eu conto a você. Mas juro por Deus que depois que lhe
contar, se você me trair, vou persegui-lo até mesmo em outra
vida.
Ele sorriu largamente, não levando a sério a minha jura.
Para ele foram meras palavras de uma jovem imatura... Ele
desceu da carruagem e fomos caminhar à beira-mar. Contei tudo
nos mínimos detalhes, até que, finalmente, cheguei à parte em
que lhe revelei ser uma bruxa. Naquele instante, ele afastou-se
de mim como se eu tivesse uma doença contagiosa e, depois de
respirar profundamente, falou:
– Como foi que você conseguiu esconder de mim esse
segredo durante todos esses meses que estamos juntos?
Emanuelizia, pensei diversas coisas a seu respeito. Confesso que
cheguei a duvidar da sua pureza, mas nunca imaginaria algo tão
melindroso assim.
– Isso quer dizer que eu estava correta quando supus que
você me abandonaria quando soubesse do meu segredo. Fui uma
tola em revelar a você tamanho segredo.
Senti desespero. Eu estava perdendo por falar a verdade.
Ele estava me olhando como se eu fosse uma espécie de
monstro. Comecei a chorar espontaneamente. As lágrimas
saíram numa proporção que eu não as controlava mais. Henrico,
ao ver que eu chorava compulsivamente, prosseguiu:
– Por favor, Emanuelizia, acalme-se. Seus pais, ao vê-la
assim, pensarão que lhe fiz alguma coisa.
– É só com isso que você se preocupa, com que os outros
pensam da minha reputação? E você não se importa com os
meus sentimentos? Olhe para mim, Henrico! Estou morrendo
por dentro! Acabei de trair a minha crença e as minhas
promessas, estou perdendo você e é só com a minha reputação
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
120
que você se importa? Quer dizer que além de me chantagear
para que eu lhe revelasse o meu segredo, você esperava que eu
lhe dissesse que não sou mais virgem? Pensava, então, em tirar
vantagem disso?
– O que você quer que eu pense de você? Olha como
você se veste! Sempre com decotes, e com as saias suspensas,
deixando as pernas à mostra.
– Você me julga pelos meus trajes? E quanto ao meu
caráter, nada significa? Saiba que jamais o julguei por ser um
cigano, ou pelo modo como você e o seu povo se vestem. Não
julgo alguém dessa forma. Primeiro, tento conhecer, e aí, sim,
com a convivência e o tempo, vou saber dizer. Mas vejo que o
tempo não contou para que eu o conhecesse, pois o seu caráter
você esconde bem. Não é a roupa ou a falta dela que faz o
caráter de uma mulher, mas sim a maneira como ela se
comporta e respeita seu homem. Infelizmente, custei a ver o seu
caráter porque o amor que sinto é muito maior e isso acabou
cegando-me. Mas agora já chega: é a terceira vez esta noite que
você põe em dúvida a minha virtude! Saiba que vou sofrer, mas
nunca mais vou permitir que você me humilhe dessa forma.
Agora vá! Você está livre para fazer o que bem quiser de sua
vida, mas me deixe em paz.
Dizendo isso, fui saindo, deixando-o parado, chamando
por mim. Naquele momento, eu estava muito magoada e ferida,
mas confesso: não pensei em me vingar ou em fazer um
sortilégio para que ele voltasse para mim. Eu estava mesmo
disposta a seguir com a minha vida.
Tentei entrar em casa silenciosamente, mas minha mãe
estava acordada e seguiu-me até o meu quarto.
– Isso são horas de chegar em casa? Já passam da uma da
manhã.
Adriana Matheus
121
Engraçado como os pais só se preocupam com a
reputação dos filhos, e nunca veem que os filhos são pessoas
individuais, que crescem e que também têm seus problemas...
Caí sobre a cama, de bruços e aos prantos. Foi aí que,
finalmente, ela percebeu que eu estava chorando e veio com
aquela fatídica pergunta novamente:
– O que houve, minha filha? Por que você está
chorando? Aquele animal abusou de você?
Mal consegui falar, mas me sentei na cama e respondi-
lhe, exasperadamente:
– Por que todos estão tão preocupados com a minha
honra? Por que vocês só pensam na minha maldita virtude? Pelo
amor de Deus, mãe, deixe-me em paz! A senhora também? Por
hoje já chega! Quero ficar sozinha, não percebe que estou
arrasada? Mãe, sinto dor... É uma dor que não tem cura... E a
senhora só pensa se alguém tirou a minha virtude? Saiba que
não: ainda sou a mesma pura e santa Emanuelizia que saiu por
esta porta hoje à tarde.
– Graças a Deus! – disse ela, benzendo-se.
Aquelas palavras e sua atitude só serviram para me irritar
ainda mais. Ainda aos prantos, olhei para ela e disse:
– Por favor, mãe, deixe-me ficar sozinha. Amanhã lhe
conto o que aconteceu, mas vá embora daqui agora!
Finalmente ela se retirou e pude colocar os meus
pensamentos em ordem. Eu não sabia o que iria ser da minha
vida daquele momento em diante, mas uma coisa era certa: eu
não voltaria para Henrico. Não poderia ficar com uma pessoa
que duvidava de mim e colocava o tempo todo os meus
sentimentos à prova. Não era justo comigo, depois de tudo o que
eu já tinha passado, arriscar a me envolver com um homem que
poderia ser futuramente a cópia do meu pai? Pois Henrico
demonstrou com aquela atitude que se nos casássemos, ele
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
122
duvidaria da minha virtude o tempo inteiro... Seria como meu
pai, que todas as vezes que brigava com a minha mãe, cobrava-
lhe por não ter visto a prova de sua honra e virtude exposta no
lençol de núpcias. Aquela atitude masculina e machista era
muito humilhante, e eu não pretendia passar por aquilo.
A semana passou tranquila. Meu pai retornou da pesca
mais cedo, e minha mãe, graças a Deus, teve o bom senso de
não lhe contar o que ocorreu comigo, mesmo depois de ter
sabido de tudo que se passou. Passei a me dedicar mais aos
afazeres domésticos e a prendas domiciliares. Aquilo era bom
para mim, pois mantinha a minha mente ocupada. Praticamente
me tornei uma obsessiva em manter a casa limpa. Era uma
espécie de fuga. Continuei caminhando à beira-mar, mas fazia
isso após o almoço e na companhia das gêmeas, para evitar
qualquer proximidade com Henrico. Eu sabia que ele conhecia
os meus itinerários e, por isso, modifiquei-os. Minha vida estava
uma verdadeira desordem emocional, mas eu tinha fé que iria
superar tudo aquilo.
Duas semanas passaram-se e, então, começaram as
chuvas de bilhetes e cartas de Henrico, pedindo-me para voltar.
Confesso que era tentador, pois a saudade que sentia por ele era
muita, mas me mantive forte. Certa manhã, meu pai pegou-o
dormindo na varanda na esperança que eu, ao vê-lo, ficasse com
dó e voltasse. Ele não parava com as chantagens, entre choros e
lamentos. Até serenata ele fez para mim. Meu pai o expulsava e
jurava que o mataria se ele não parasse de nos importunar, mas
nada adiantou: Henrico mantinha-se firme na psicose de que eu
voltaria para ele. Cercava-me de todas as formas possíveis, a
ponto de não poder mais caminhar à beira-mar hora alguma,
pois aonde quer que eu fosse havia um de seus amigos vigiando-
me. Embora eu o amasse muito, estava ficando com medo e
temia por minha segurança. Ainda para piorar a minha vida, que
Adriana Matheus
123
já não estava nada fácil, minha irmã havia chegado da Europa e
exigia a presença da minha mãe perto dela quase o tempo todo.
Com isso, eu ficava muitas vezes sozinha com as gêmeas. Era
nesse momento que Henrico aproveitava-se para ficar do lado de
fora da porta, batendo e clamando para que eu o deixasse entrar.
Isso nunca contei a meus pais, pois temia que meu pai fizesse
algo de ruim com Henrico. Mas essa atitude foi prejudicial a
mim no futuro, pois deu a impressão que eu estava conivente
com ele.
Alguns dias depois, meu pai havia ido levar minha mãe
até a casa de Eulália. Só para variar, eu fiquei em casa... Foi
quando uma voz chamou-me do lado de fora. E não era a voz de
Henrico; era Maxuel, que tinha vindo me ver. Confesso que o
que senti foi um misto de sentimentos. Foi como se meu
passado fosse uma sombra e estivesse batendo à minha porta.
Ansiosa e nostálgica, abri a porta imediatamente, sem pensar
duas vezes. Porém, eu não havia percebido que o perigo estava
do lado de fora, vigiando-me. Convidei-o para entrar e tomamos
um chá. Eu e Maxuel conversamos sobre tantas coisas
saudosas... Aquela raiva que havia sentido por ele tinha passado
por completo. Só sobrou um sentimento fraternal. Ele me
convidou para caminharmos à beira-mar. Como já havia algum
tempo que eu não fazia isso, aceitei de imediato, pois aquela
figura masculina passou-me segurança e proteção. Ele me
contou que não era feliz com Eulália, que ambos dormiam em
quartos separados, e o único sentimento que prendia ele a minha
irmã era o afeto que ele aprendeu a ter pela filha, Cristine.
Baixei a cabeça e respondi:
– Sinto por você, mas creio que ambos estamos pagando
pelas consequências de nossos atos impensados e de nossos
impulsos carnais.
– O que você quer dizer com isso, minha prima?
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
124
Contei-lhe, então, nos mínimos detalhes tudo o que
estava acontecendo. Ele, compadecido por me ver chorar,
abraçou-me fraternalmente. Ele parecia querer me falar alguma
coisa, mas foi naquele momento que Henrico chegou como um
louco e deu um soco em Maxuel, que revidou dando uma surra
em Henrico. Tentei impedir aquela barbárie, mas Henrico
provocava Maxuel com palavras chulas. Depois de muito
apanhar, Henrico virou-se para mim e disse:
– Agora sei por que me rejeita: você é amante deste
desgraçado. Acreditei em você e jogou os meus sentimentos no
lixo! Desprezou-me e fez de mim um cachorro! Mas isso não
vai ficar assim: vou me vingar de você.
Maxuel tomou novamente a frente e disse:
– Saia imediatamente daqui, se não quiser tomar outra
surra, seu bastardo bêbado!
Segurei Maxuel pelos braços e Henrico foi-se embora,
cambaleando. Ele realmente estava alcoolizado. Nem parecia o
homem pelo qual eu havia me apaixonado. Estava sujo,
maltrapilho e barbudo. Pedi a Maxuel mil desculpas e pedi-lhe
para não contar a meus pais. Mas, infelizmente, ele se recusou,
dizendo inclusive que daria parte de Henrico à milícia. Eu o
implorei, mas ele estava irredutível.
– Este homem é um bárbaro! Se não fizermos algo para
contê-lo, ele por certo vai matá-la.
Não poderia dizer nada porque temia que ele estivesse
certo. Apenas o levei para casa e fui tratar dos ferimentos em
seu rosto e mãos. Quando meus pais chegaram, ao ver aquela
cena de proximidade entre nós, ficaram espantados, mas Maxuel
explicou-lhes o que acontecera. Meu pai ficou furioso e queria
resolver o problema a qualquer custo, mas minha mãe o
convenceu, alegando que ele não voltaria mais depois da surra
que Maxuel lhe deu. Meu pai foi banhar-se para acalmar os
Adriana Matheus
125
nervos. Maxuel despediu-se de mim e tive a sensação de que
não o veria mais. Minha mãe acompanhou Maxuel até a varanda
e os dois ficaram por muito tempo conversando. Fui para o meu
quarto. Estava com medo e precisava orar a Deus e pedi-lo para
proteger a mim e a minha família. Sentia que algo ruim estava
para acontecer. Mas, como estava distante dos meus caminhos,
não pude entender o que poderia ser. Achei que fosse pela
fatídica tarde que passei.
Os dias foram passando e, como não soube de mais
nenhum sinal de Henrico, comecei a acreditar que ele não iria
mais me procurar. Embora os meus instintos de bruxa
estivessem um tanto aguçados, eu não dava importância a isso.
Continuei com a minha vida normalmente. Voltei a caminhar
pela praia. A princípio, só ia por perto. Mas, aos poucos, fui me
afastando cada vez mais da minha casa, até que me senti
totalmente segura para caminhar até as cavernas. Eu ficava
horas por lá, lendo os livros que Eleanor havia me deixado.
Ocupava a minha mente tentando não pensar mais em Henrico.
O amor é o sentimento mais belo do planeta. Mas
quando não dá certo, é melhor não persistirmos no erro. O meu
amor por Henrico foi um grande e grave erro, e eu pretendia não
cometê-lo novamente. Nenhum ser humano, por mais que ame o
outro, merece sofrer por ele ou ser humilhado. É engraçado
como um homem consegue fazer com que uma mulher, em uma
fração de segundos, passe de rainha dos ciganos a uma mera
meretriz, ou simplesmente a transforma em seu capacho
pessoal... É com esse tipo de situação que venho lutando através
dos tempos. Por isso, chamam-me de justiceira das mulheres.
Eu jamais, enquanto Deus me der permissão, permitirei que um
homem maltrate uma mulher. Mas, para isso, é preciso que as
mulheres atuais tomem certa postura de firmeza e honradez. Não
existe homem esperto, existe mulher ingênua. Não existe mulher
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
126
incapaz, existem homens obsessivos e arrogantes, que embutem
em algumas mulheres sentimentos de culpa e até de baixa
autoestima. Mas é lógico que para tudo tem uma exceção:
existem também mulheres capazes de coisas terríveis, mas a
maioria dos crimes hediondos foi cometida por pessoas do sexo
masculino. Vejo a meu modo que a humanidade, embora
caminhe para um enorme precipício sem fim, ainda poderá ter
salvação se parar no meio do caminho percorrido, refletindo
sem olhar para trás e começar outro caminho de novo. Difícil
vai ser fazer a humanidade perceber os seus erros, pois o
homem é orgulhoso demais para tal feito, e o diabo sempre terá
a seu favor a vaidade e a luxúria.
Bom, como eu estava contando antes... Os dias pareciam
normais. Consegui pôr mais ou menos as ideias e os
pensamentos em ordem, porque quando amamos alguém, não é
de uma hora para outra que esquecemos essa pessoa. Afinal,
somos seres humanos, e não animais irracionais. Durante muito
tempo, eu sabia que Henrico permaneceria em minha vida.
Certa manhã, acordei muito feliz. Estava me sentindo
disposta a fazer uma caminhada bem cedo, e queria poder pôr
em prática as magias que aprendera em um dos livros sagrados
que Eleanor havia me deixado. Logo que saí da cama, fui à
janela agradecer a Deus por todas as coisas que ele havia me
concedido de bom, e também pelo aprendizado que ele havia me
ensinado através do sofrimento do amor. Senti o vento agitado e
as vozes começaram a gritar dentro da minha cabeça. Sabe
aquelas vozes que gritam dentro de nós e que muitas vezes
chamamos de consciência? Essas mesmo. Alguma coisa no ar
daquele dia não estava correta. A natureza estava agitada, mas
eu, como uma jovem eufórica que era, não dei muita
importância aos meus sentidos de bruxa. Eu achava que embora
a magia fizesse parte da minha vida, não deveria ficar sempre
Adriana Matheus
127
tão cismada com os detalhes. E isso é um enorme engano... Uma
vez dentro da magia, ela estará sempre determinada a nos
mostrar tudo o que vai nos acontecer, inclusive ela sempre
tentará nos prevenir contra algum perigo. A magia está e faz
parte de tudo à nossa volta; basta termos a paciência de observar
– o que eu não tinha. Sempre fui eufórica, como já disse, e
preferi dar ouvidos aos meus impulsos de jovem, esquecendo-
me de que Deus mora nas palavras, mas o diabo mora nos
detalhes. Naquele dia, apenas ouvi as palavras que saíam da
minha boca em forma de oração, esquecendo-me de olhar os
detalhes que estavam presentes na natureza. O vento chegava a
soprar dentro dos meus ouvidos. Seus silvos pareciam vozes
clamando para que eu não saísse naquele dia. Era como uma
súplica. Até mesmo o meu corpo já estava dando sinais: meu
estômago tremia e eu estava ficando enjoada. Mas, mesmo
assim, teimei contra meus instintos.
Arrumei-me e fui fazer o café para que minha mãe não
tivesse muito trabalho ao levantar-se. Dei às gêmeas o desjejum
delas e coloquei-as no cercadinho de madeira, para que ficassem
um pouco livres e não incomodassem meus pais, que ainda
dormiam. Ajeitei toda a casa e quando estava saindo à porta, um
prego rasgou a minha saia. Voltei para o meu quarto para trocá-
la e resolvi colocar meu vestido de renda branco. Permaneci
descalça, pois queria sentir as areias em meus pés.
Quando abri a porta, um enorme cachorro negro estava
sentado em frente à porta da sala. Quando me viu, investiu
contra mim, sem nenhuma explicação. Dei um grito e recuei,
fechando a porta de imediato. Meu pai e minha mãe, ao
escutarem, correram e vieram ver do que se tratava. Contei-lhes
que havia um enorme cachorro que não me deixava sair. Porém,
quando meu pai abriu a porta, não havia nenhum cachorro.
Minha mãe, ainda assustada com meus gritos, disse-me:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
128
– Filha, aonde vai a esta hora?
– Caminhar, como faço todos os dias, ora!
– Mas é muito cedo ainda. Volte para a cama e deixe
esse passeio para mais tarde; quem sabe até para amanhã.
– De jeito nenhum! O dia está maravilhoso demais para
ser desperdiçado. Não se preocupe: sei me cuidar sozinha.
– Sim, eu sei, mas há algo de errado. Meu coração está
dizendo para pedir a você que não saia.
– Ouça sua mãe, Emanuelizia. Ela sempre tem razão.
Além do mais, não vejo nenhuma sangria desatada para que
você saia tão cedo de casa. Talvez esse suposto cachorro que
você diz ter visto seja um aviso, ou vai ver é um animal com
raiva que fugiu de alguma fazenda da redondeza. Volte para
cama e deixe suas andanças para mais tarde.
Coloquei cada uma de minhas mãos sobre aqueles rostos
preocupados e falei:
– Meus queridos e amados pais, agradeço pela
preocupação dos dois. Sério mesmo. Mas sempre saio antes,
mesmo que o senhor acorde, meu pai. Gosto de caminhar a esta
hora da manhã, fico em paz com o meu coração e ponho as
ideias em ordem. Desculpe, minha mãe, mas a senhora está
sendo protetora demais. Não se preocupe comigo, pois nada irá
me acontecer.
Dizendo isso, saí, deixando minha mãe com o semblante
preocupado e meu pai dando de ombros, voltando novamente
em direção à sua cama. Eu os amava, mas nem mesmo eles
conseguiam colocar-me rédeas – o que é um erro, pois os pais,
por mais inconvenientes que sejam, sempre sabem o que é
melhor para nós. E acreditem: toda mãe tem mesmo um sexto
sentido aguçado quando se trata dos filhos.
Aprendi isso com o tempo, assim como todos os jovens
aprenderão que há tempo para tudo nesta vida e não adianta
Adriana Matheus
129
correr querendo antecipar as coisas, pois tudo acontece na hora
e no momento em que tem que ser. Se eu tivesse ouvido o
conselho de minha mãe, ficando em casa naquele dia, nada
teria ocorrido de ruim a mim. Mas não, eu quis correr para
resolver coisas que poderiam muito bem esperar para serem
resolvidas em outra ocasião. A juventude tem o sério problema
de antecipar as situações, correndo contra o tempo que não sai
do lugar. Tolice ou fome de viver intensamente, não sei bem o
que é – mas, com certeza, é um erro.
A manhã estava linda. Gaivotas sobrevoavam o mar em
busca de peixe, dando voos rasantes e certeiros. Observei-as por
momentos a fio, pois aqueles movimentos davam-me enorme
sensação de liberdade. Ao longe, pescadores jogavam suas
redes. Levantei a saia para colocar meus pés sobre as águas
geladas. O mar ia e vinha, trazendo uma grande quantidade de
conchinhas coloridas, deslizando por entre meus dedos. Fiquei
de braços cruzados com as sandálias nas mãos, admirando o
esplendor do nascer do sol daquela manhã de primavera. Seus
raios surtiam um efeito furta-cor, misturando-se com o verde das
montanhas, ao longe. Devia ser cinco e meia da manhã, pois o
sol ainda estava muito longe de despontar totalmente no
horizonte. Nunca poderia imaginar que uma paisagem
harmônica e de magistral beleza pudesse ser o cenário para a
minha degradação como mulher e ser humano. Confesso que
havia horas em que eu sentia como se alguém estivesse me
observando, mas não dei, mais uma vez, valor às minhas
intuições, achando que poderia ser uma autossugestão da minha
mente infantil e ainda assustada pela sombra de Henrico.
Caminhei até bem perto das cavernas, afastando-me cada
vez mais de minha casa e ficando em local deserto,
desprotegida. Sentei-me em um rochedo e deixei que o sol
tocasse meu corpo. Suspendi a saia do meu vestido até as coxas,
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
130
para que o sol também as tocasse. Eu gostava de ter esse contato
com a natureza. Suspendi os braços para cima e fechei os olhos.
Pensava em adormecer um pouco. O silêncio era quase total,
mas ouvia-se ao longe o som das ondas quebrando as pedras,
embalando-me como uma cantiga de ninar. Senti-me leve e em
paz com o mundo. De vez em quando, uma leve brisa tocava o
meu corpo quase desnudo, fazendo-me arrepiar. Isso seria mais
um sinal de alerta, se eu não estivesse tão absorta dentro de mim
mesma! Eu não tinha nenhuma maldade em mente. Não pensava
absolutamente em nada. Só queria viver aquele momento de paz
e solidão, esquecer-me dos meus problemas e descarregar as
energias negativas, jogando-as na natureza e refazendo o meu
xacra. Repor as energias era tudo o que eu precisava, pois minha
vida espiritual e sentimental estava em desordem.
De repente, senti uma mão grossa e áspera tocar em um
dos meus tornozelos. Abri os olhos espontaneamente,
encolhendo as pernas por debaixo das saias, num ato de defesa.
Havia na minha frente um homem completamente
desconhecido. Ele estava sujo e bêbado e, ao ver-me despertar,
falou:
– Que belo par de tornozelos tem a Gadijá. Vou adorar
saborear uma ovelhinha assim tão fresca pela manhã... Acho que
nem vou esperar que meu amo venha e desfrute primeiro.
Assustada, pedi que ele fosse embora. Porém, ele
respondeu sorrindo, com a boca que mais parecia um fóssil, pois
nunca vi em toda a minha vida hálito tão fétido:
– Embora para onde, ovelhinha? Não tenho que ir a lugar
nenhum, Gadijá, agora que estou bem aqui, admirando a beleza
e a formosura da pequena ovelhinha que vou ter o prazer de ter
como prato principal hoje pela manhã... Não tenho a menor
intenção de ir a lugar nenhum.
Adriana Matheus
131
– Se o senhor não for embora, vou gritar e logo virão os
pecadores para me salvar.
– Ninguém poderá ouvi-la, Gadijá! Estamos no meio de
uma encosta deserta. – dizendo isso, ele começou a gritar para
mostrar-me que ninguém podia ouvir-nos.
O homem era horrível: sem dentes, barbudo, camisa
aberta e calças arregaçadas. Fiquei aterrorizada e levantei-me,
tentando fugir daquele homem que tinha nos olhos duas caveiras
em vez do brilho tradicional. Ele era a morte e eu sabia disso.
Deslizei sobre as pedras. Já havia escapado dos rochedos
quando mais dois outros homens cercaram-me.
– Aonde a menina pensa que está indo? – disse um deles,
cujo hálito parecia a maresia do oceano em estado de ressaca.
Eles estavam todos embriagados. Nenhum deles via água
há muito tempo. O mau cheiro de seus corpos dava-me a
impressão de que havia morrido um animal por perto.
Desesperada, perguntei também aos outros dois que tinham
acabado de chegar:
– Por favor, o que vocês querem? Meu pai é conhecido
por toda a vila e logo estará aqui à minha procura. Vão embora
ou deixem-me passar! Eu nada lhes fiz! – disse isso com as
lágrimas presas na garganta.
Um dos homens, que mascava uma espécie de fumo ou
coisa assim, respondeu-me muito mal-humorado:
– Sabemos quem é o senhor seu pai, Gadijá. E também
sabemos que ele acabou de sair para o alto-mar e só vai voltar
daqui seis meses. Também sabemos que a Gadijá gosta de andar
pelas encostas, exibindo e oferecendo-se como uma mundana.
Quando dei por mim, estava cercada pelo homem
barbudo e dois outros. Não sei de onde surgiram mais três
outros. Creio que surgiram do inferno, que é de onde devem ter
saído todos. Era um negro, um que escondia o rosto debaixo de
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
132
uma touca velha e encardida, e um que parecia que havia tido as
faces esfoladas ou algo assim. Seu apelido era Cicatriz. Ele
parecia ser o mais velho de todos. Além das cicatrizes que tinha
nas faces, seu corpo era coberto por inúmeras úlceras.
Eu estava em pânico, encurralada entre as pedras e os
seis homens. Minha voz estava saindo como um fio, pois a
minha garganta estava seca. Eu lhes implorei para me deixarem
ir. Cheguei a ajoelhar na areia, mas de nada adiantou. Apenas
parecia que os excitava ainda mais. Foi quando um deles pegou-
me pelos cabelos e arrastou-me sem mais nem menos pelas
areias. Eu gritava e esperneava, mas não adiantava: estávamos
no meio do nada, muito além da encosta e da população.
Rasgaram-me as vestes de cima e fiquei seminua, exposta a todo
o tipo de barbárie e deboche. Eles fizeram um círculo em volta
de mim e ficaram zombando de mim: horas diziam que era
muito magra, horas diziam que eu estava pronta. Cuspiram em
mim, chutaram-me, jogaram bebida em cima de mim, atiram-me
areia. Debocharam da minha religião, dizendo que uma bruxa
tinha que ser iniciada dentro de um círculo. Foi quando o mais
velho de todos, o que tinha o corpo coberto por úlceras,
aproximou de mim, fazendo-me beber aguardente. Cuspi longe;
não estava acostumada a beber. Ele, porém, fez-me engolir o
líquido de uma só vez, tampando o meu nariz com aquelas mãos
imundas. De repente, minha cabeça começou a girar e me senti
muito mal. Tudo e todos à minha volta começaram a girar e a
minha visão ficou nublada. O homem mais e mais me fazia
beber aquele líquido. Foi quando percebi uma presença amiga e
levantei-me, indo na direção de Henrico. Eu o abracei, dizendo:
– Graças a Deus, meu amor, você está aqui. Salve-me
desses homens; diga-lhes que sou boa pessoa e que não fiz nada
para provocá-los.
Adriana Matheus
133
Todos à minha volta riram das minhas palavras, que
saíram balbuciadas e desconexas por causa da bebida. Henrico
também estava alcoolizado, pois pude sentir em seu hálito. Ele
me pegou pelos ombros brutamente, afastou-me de seu rosto e
disse, sacudindo-me como um saco de estopa:
– Como você quer que eu acredite em você, se está
totalmente nua, andando por uma praia deserta em roupas
íntimas?! Eu a avisei sobre este seu comportamento inadequado
a uma dama. Como você quer que eu proceda mediante a cena
que acabo de presenciar?
Embora estivesse tonta, não conseguia acreditar no que
ele estava dizendo. Afastei-me dele e respondi:
– Eu devia saber que isso era coisa sua! Você está
tentando me humilhar por causa da surra que o meu primo deu
em você. Você não passa de um covarde, Henrico! Esperou o
momento certo para se vingar de mim. Esperou até que eu me
encontrasse indefesa e desprevenida para mostrar suas garras.
Eu o odeio e o desprezo a cada segundo! Você não é um
homem; é um verme.
Enfurecido, Henrico esbofeteou-me, fazendo com que eu
caísse na areia. Enquanto desabotoava a braguilha, ele ia
dizendo:
– Seu primo ou seu amante? Sei muito bem que você me
desprezou porque aquele homem é seu amante. Você gosta mais
dele porque ele é rico e eu sou... apenas um cigano sujo, não é?
Percebendo o que ele iria fazer, supliquei, desesperada:
– Henrico, pense no que você vai fazer. Todos vão caçá-
lo na vila como um animal. Por favor, Henrico, não faça isso...
Você está bêbado! Não acredite no que esses homens colocaram
em sua cabeça! Eles estão errados sobre mim. Eu o amo e foi
você quem me humilhou, Henrico. Por favor, eu suplico em
nome de Deus, não faça isso comigo! Não contarei a ninguém
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
134
sobre o acontecido hoje, mas, por favor, deixe-me ir embora, por
favor!
Nada do que eu disse a Henrico adiantou. Ele estava fora
de si. Talvez eu não devesse tê-lo ofendido ainda mais no estado
em que ele se encontrava. O fato é que Henrico violentou-me na
frente daqueles seis homens, que seguravam os meus braços e
pernas para que eu não me debatesse ou fugisse. Eu nada pude
fazer. O quanto pude lutar, lutei, mas meus arranhões não
surtiam efeitos. Minha boca, certa hora, foi amordaçada, para
que eles próprios não ouvissem meus gritos. Eu vi o rosto de
cada um de meus algozes e jamais me esqueci deles. Enquanto
não me vinguei de um por um, não descansei em paz. Houve
certo momento em que minha mente inconsciente desligou-se do
mundo e dos fatos que estavam ocorrendo. Eu, porém, não perdi
a consciência de imediato: permaneci acordada, mas era como
se aquelas pessoas estivessem muito longe, pois suas vozes às
vezes tinham som de ecos! Quando Henrico acabou de saciar
sua loucura, jogou-me para o lado como um objeto sem nenhum
valor dizendo:
– A vaca era mesmo virgem.
Aí foi a vez dos outros seis marginais que se deleitaram
com meu corpo, até que eu realmente perdesse a consciência. E
assim foi sucessivamente, um por um, até que todos estivessem
saciados. Fui estuprada brutalmente, de todas as formas
possíveis e impossíveis. Alguns deles mordiam meus seios e
membros, chegando a rasgar minhas carnes, como animais
vorazes e famintos. Henrico assistiu a tudo e nada fez. Sete
homens cometeram comigo o mais hediondo de todos os crimes
cometidos contra o ser humano. Eles só pararam quando
pensaram que eu estava morta. Senti minha alma deixar o corpo
e assisti a tudo o que ocorreu comigo. Vi quando um deles
chutou-me para ver se eu reagia. E como isso não aconteceu, ele
Adriana Matheus
135
disse a Henrico que eu estava morta. Ele foi tomado por uma
espécie de pânico. Os demais, porém, puxaram Henrico, tirando-
o para fora daquele local. Meu corpo permaneceu ali, jogado ao
vento, e foi despojado como um objeto sem valor. Ninguém viu
o fato ocorrido, porque estávamos em praia deserta. Tive apenas
o sol como testemunha daquela barbárie. Meu espírito estava
demasiadamente apavorado e com medo de voltar para o meu
corpo. Minha alma caminhou sozinha por horas pela praia
deserta, até que vi a besta parada, sorrindo-me:
– Você tem duas opções: ou vem agora como está para
mim, ou vinga-se de seus algozes, chamando-me para que eu a
sirva, minha rainha.
Fiquei desesperada, mas sentia uma fraqueza anormal.
Percebendo o meu estado, a besta disse:
– Não poderá ficar muito tempo fora do seu aparelho,
minha rainha. Faça sua escolha.
Olhei-o nos olhos e respondi:
– Vou me vingar de meus algozes. Espere que voltarei a
chamá-lo. Aí, se realmente ajudar-me em tudo o que eu lhe
pedir, poderá levar para o seu reinado corpo e alma.
A besta deu uma gargalhada que estremeceu o inferno e
desapareceu, dizendo:
– Que assim seja!
Senti meu corpo cansado. De repente, meu espírito foi
puxado de volta para o meu aparelho, estirado como morto ao
chão. Senti as ondas batendo em minhas faces, despertando-me
daquele sono de quase morte. Levantei assustada, meu corpo
todo doía e ardia por causa das águas salgadas do mar que
tocavam nas diversas feridas que tinham em meu corpo. Por
várias vezes, tentei levantar, mas foram inúteis minhas
tentativas, pois estava muito machucada e havia perdido muito
sangue. Pude verificar o meu estado deplorável, olhando-me no
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
136
espelho das águas que se empoçavam entre as pedras. Dei-me
conta de ser outro dia quando o sol tocou fortemente em meus
olhos. Então, pude perceber que eu não havia sonhado: eu havia
feito um acordo com a besta. Ele havia vencido finalmente! Eu
não voltaria atrás e sabia quais seriam as consequências. Estava
disposta a tudo. Tentei levantar-me novamente e vomitei toda a
bebida que estava dentro de mim. Junto a ela saiu sangue.
Chorei desesperada de dor e revolta até que finalmente consegui
forças para ficar de pé. Entrei no mar para lavar aquela vergonha
e o cheiro daqueles malditos que ainda estava impregnado no
meu corpo. Gritei de ódio tão alto quanto pude: queria vingança.
Meu choro e meus gritos se misturavam com o barulho das
ondas do mar. Ele parecia querer absorver a minha cólera.
Voltei para a areia muitas horas depois. Peguei minhas
roupas rasgadas que estavam espalhadas por toda a praia e,
depois de me vestir, caminhei quase me arrastando até a minha
casa. Devo ter demorado umas três horas, até que consegui
chegar lá, finalmente. Minha mãe estava preocupada comigo e
estava me esperando na varanda. Ao ver-me, ela foi correndo ao
meu encontro. Pela primeira vez, não me interrogou, apenas me
socorreu. Levou-me para o meu quarto, tirou minhas roupas e
banhou-me. Cuidou de mim sem uma palavra a dizer. Depois,
quando eu estava mais calma, contei a ela o que me aconteceu.
Ela chorou junto comigo. Jurou-me que nunca iria contar ao
meu pai.
Depois, ela saiu e foi buscar o médico. Ele ficou
horrorizado ao ver-me toda machucada. Doutor Helvécio fez
minha mãe dar parte à milícia. Henrico e seu povo foram
caçados, mas não foram localizados, porque haviam levantado
acampamento dias antes. Ele tinha feito tudo de caso pensado.
Doutor Helvécio, induzido por minha mãe, apenas disse que
fora um ataque e não um estupro. Ela fez isso para evitar que
Adriana Matheus
137
meu pai soubesse, pois sabia o quanto os homens eram
machistas e não acreditariam que fui violentada. Diria que eu é
quem era a culpada, e isso poderia me causar transtornos,
porque por certo me acusariam de prostituição. O doutor
continuou indo à minha casa, até que a febre baixou. Em alguns
ferimentos foi preciso dar pontos. Inúmeras cicatrizes ficaram
no meu corpo, mas a da alma era a maior de todas.
Conversando com o doutor Helvécio, ele disse,
percebendo que eu estava envergonhada por ele estar vendo
minhas cicatrizes:
– Não se preocupe, minha filha. Logo elas sumirão,
assim como todos esquecerão esse fato lastimável que ocorreu
com você. Vai ver: o tempo sana até as cicatrizes mais
profundas.
Olhei-o bem fundo nos olhos.
– Engana-se, doutor. Quem bate esquece, mas quem
apanha tem que conviver com as cicatrizes. Ele simplesmente
baixou a cabeça e disse:
– A senhorita está muito amargurada e revoltada. Eu a
entendo, mas tente esquecer, pois o ódio nos cega para as
verdades da vida. Não deixe de viver por causa daqueles
malfeitores. Abra seu coração, que ainda é muito jovem, e verá
que um novo amor aparecerá.
– Não, o senhor não me entende. Nenhum homem pode
entender o que uma mulher sente mediante a situação por que
passei. Acredite, doutor: nem que eu viva por toda a eternidade
não perdoarei aqueles homens.
– Minha filha, eu sei, mas acredite: é melhor para você
mesma tentar superar isso. Eles são homens fora da lei. Deixe
que a justiça se faça e os procure. O que uma jovem frágil como
a senhorita poderá fazer contra tantos homens? É melhor se
acalmar.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
138
Olhei friamente e sorri entre lábios. Percebendo que não
me convenceria facilmente, ele saiu, deixando-me sozinha. Ouvi
quando ele falou atrás da porta com a minha mãe que eu não
estava bem e que as minhas palavras frias e revoltosas o
preocupavam. Na verdade, ele era como os demais homens –
machista –, pois queria que eu me passasse por uma mulher que
sofria dos nervos. Ele até sugeriu que eu fosse internada em um
hospital para loucos. Como eu queria me vingar de todos
aqueles que me fizeram mal, resolvi, então, agir de forma
cautelosa e conveniente à sociedade machista que me cercava.
Planejei cada detalhe, cada situação. Estudei mais a fio a magia
negra e comecei a colocar em prática os feitiços que ia
aprendendo. Cheguei ao ponto de poder conseguir hipnotizar os
animais e adquiri uns para o meu controle pessoal. Aprendi a
usar o fogo como um aliado. Ele me ouvia e recebia minhas
ordens.
Os dias foram se passando e fui me tornando cada vez
mais e mais uma pessoa possessiva e obstinada. Porém, alguma
coisa em meu corpo estava errada e minha mãe também
começou a notar: eu estava grávida. E precisava esconder aquela
criança antes que meu pai descobrisse. Caso contrário, seria o
fim de tudo, de todos os meus planos de vingança. Durante
algum tempo, minha mãe apertou-me em um espartilho
sufocante. Era horrível ter que andar com aquele instrumento de
tortura usado como uma forma de vaidade. Os enjoos eram mais
preocupantes, pois não eu tinha como escondê-los. Seis meses
se passaram e, finalmente, meu pai chegou do mar. Meu corpo
estava bastante mudado. Ele, logo que chegou, comentou ao ver-
me:
– Parece que alguém andou comendo além da conta
nesta casa. Houve alguma novidade enquanto eu estive fora?
Adriana Matheus
139
– Não, José, lógico que não. O que poderia ter
acontecido neste lugar esquecido por Deus? – respondeu minha
mãe, tentando mudar o rumo daquela conversa.
– Não diga tolices, mulher. Nenhum lugar é esquecido
por Deus. Agora, se houve alguma coisa enquanto estive fora, é
melhor que me contem, pois não quero ser o último a saber. Não
gosto de surpresas.
– Ora, pai, o senhor está com cismas, como sempre!
Vamos, levo suas coisas para o quarto.
– Pode ser, mas há algo no ar que não combina com o
cotidiano dessa família. – disse ele, meio desconfiado e dando
continuidade a novidades que chegaram junto com ele.
– Seu irmão Pietro está vindo nos visitar e disse que
Eulália virá e trará a pequenina com ela.
– Que felicidade! Estou morrendo de saudades dos meus
filhos, e estou louca para rever a minha netinha. Quando virão?
Prepararei um almoço de boas-vindas para Pietro – disse minha
mãe, parecendo entusiasmadíssima.
Tratei logo de sair à francesa antes que a atenção se
voltasse para mim novamente. Levei as malas para os aposentos
de meus pais, fugindo também daquela conversa que nada me
interessava. O fato é que eu estava com seis meses de gestação e
não daria muito mais para esconder a barriga, que só crescia. O
quanto mais longe dos olhos de meu pai eu ficasse, melhor seria.
Já que eu não podia mais usar o espartilho, minha mãe usava
faixas muito apertadas em mim. Porém, ficava muito difícil para
eu respirar – o que me causava diversos enjoos, tonturas e muito
mal estar.
Naquele dia, fui para o meu quarto e fiquei olhando a
minha barriga no espelho de metal. Eu estava amando a ideia de
ser mãe, embora estivesse com um ódio de tudo o que ocorrera
comigo. Não queria passar para aquele pequeno inocente nada
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
140
de negativo. Então, resolvi dar uma trégua naquele sentimento
vil.
Passei aqueles seis meses tecendo e costurando
roupinhas para o meu bebê, que seria muito amado ao nascer.
Fiz diversas coisas, entre mantas, camisas e sapatinhos. Eu tinha
certeza que seria uma menina e se chamaria Elizia. Eu faria de
tudo para que aquela criança não passasse peles horrores por que
passei. Estava disposta a protegê-la com a minha vida, se assim
fosse preciso.
Os dias não seguiram tranquilamente, pois eu e minha
mãe tínhamos que falar as coisas escondidas para que meu pai
não nos ouvisse. Ficávamos alerta o tempo todo, com receio de
que, de uma hora para outra, ele descobrisse tudo.
No sábado pela manhã, ele saiu e foi até a cidade buscar
minha irmã, a filha dela e o meu irmão. Eu e minha mãe fomos
para o meu quarto. Ela estava me ajudando a desenrolar a faixa,
pois estava me estrangulando a cintura. E, no exato momento
em que falávamos e apalpávamos a minha barriga, minha irmã
entrou sem pedir licença quarto adentro e, ao ver a cena, ela
parou diante de mim com a filha nos braços e disse,
cinicamente:
– Então não sou mais a única desfrutável da família?!
Pelo menos me casei com o homem que amo. E você? De quem
é esse bastardinho que carrega no ventre? Quem sabe é do meu
marido? Pois fiquei sabendo que ele veio visitá-la... Diga-me,
anda: quem é a suja da família agora?
Indignada com aquela atitude, respondi:
– É muito bom saber que você é feliz à custa da minha
desgraça. Quero que saiba que Maxuel nada tem a ver com o
que aconteceu comigo. Saia do meu quarto, antes que eu a
degole com as próprias mãos, que é o que já deveria ter feito,
sua peste!
Adriana Matheus
141
– Creio que não deveria falar desse jeito comigo, minha
irmã. Afinal, aposto que papai não sabe que carrega no ventre
um bastardinho. E quanto ao meu marido, acredito em você,
pois sei o quanto ele me ama e me é fiel. E você, ora, não teria a
capacidade de seduzir homens de classe como o meu marido...
Aposto que esse bastardinho deve ser de algum pobretão sujo
com quem você se misturou.
Passei a mão em um bibelô em forma de dama e na hora
em que eu ia atirar nela, minha mãe me conteve, dizendo:
– Parem já com isso! Eulália, vai me prometer que não
vai contar nada a seu pai. E você, Emanuelizia, que desgraceira!
Poderia ter acertado a pobre criança, que nada tem a ver com a
guerra fria de vocês duas! Então, Eulália? Creio que deva isso a
sua irmã. A única coisa que lhe peço é que fique em silêncio.
Acho que é melhor sair daqui agora. Converso com você lá fora.
– Mas, mãe, não é justo com o papai!
– Você está preocupada com o seu pai? Ora, não gosta de
ninguém, Eulália! E só pensa em si mesma! Saia daqui agora e
espere-me lá fora, que nos falaremos já.
Era a primeira vez que via minha mãe ficar nervosa com
Eulália, que se retirou do quarto, resmungando. Ao menos tive
tempo de respirar aliviada novamente, mesmo que por instantes.
Parecendo perceber a minha preocupação, minha mãe falou:
– Não se preocupe: vou conseguir reverter essa história e
conter Eulália. Ela tem mais a perder do que imagina. Caso fale
alguma coisa, saberei como devo prosseguir.
– Tomara que sim, minha mãe, pois agora estamos as
duas nas mãos dessa cobra que a senhora chama de filha.
– Saberei como agir. Confie em mim pelo menos desta
vez, está bem?
– Está bem.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
142
Disse isso lhe dando um abraço e colocando ponto final
naquela conversa, que me deixou intrigada, pois fiquei
imaginando como minha mãe poderia ter algo que pudesse
conter a intriga de minha irmã. Ela saiu e fiquei no quarto. Por
certo meu pai pensaria que era devido à presença de Eulália na
casa e, por não querer vê-la, tranquei-me no quarto. Se ele
soubesse... colocar-me-ia para fora de casa como um cão
sarnento. Senti-me impotente mediante a minha frágil situação.
Tive saudades de Maxuel. Ele era a única pessoa que me ouvia.
Senti, naquele momento, certo arrependimento de não tê-lo
aceitado. Talvez a velha bruxa Eleanor estivesse certa: eu nunca
soube o que era o amor, talvez ele estivesse estado ao meu lado
o tempo todo e eu não o enxerguei porque só pensei na minha
família. Arrependia-me amargamente por ter insistido em ter
Henrico. Por trás daquela bela aparência, ele era um monstro.
Eu o odiava, e somente a lembrança de um dia ter sido tocada
por aquelas mãos causava-me náusea. Eu não via a hora de ter o
meu bebê em meus braços. Assim que aquele inocente tivesse a
salvo, eu me vingaria de meus algozes, um a um. Estava presa a
uma mistura de sentimentos entre a nostálgica lembrança de
Maxuel e os horrores que me causaram Henrico e seus
comparsas.
Nunca devemos deixar que as emoções tomem conta da
gente, pois elas nos fazem perder a razão e cegam os nossos
sentidos. As emoções são como cavalos selvagens. Por minha
vez, estava muito longe de saber o que era certo e errado. O ódio
e a cólera estavam impregnando em minhas entranhas e estavam
se espalhando com um vento forte, derrubando todas as coisas
boas que havia dentro de mim. Mesmo que todas as pessoas do
mundo falassem em minha cabeça, mesmo que o céu caísse, eu
não ouviria ninguém e nada. Porque o ódio é assim: ele chega e
abre caminhos em nossa alma e vai crescendo como uma
Adriana Matheus
143
pequena semente, e depois se espalha como fel pelo sangue.
Parei com aqueles pensamentos negativos, pois meu bebê havia
chutado e me fez esboçar um largo sorriso de prazer e
satisfação. Aquele pequeno ser era a única coisa de bom que a
vida tinha me reservado. Eu não me importava com quem era o
pai. Apenas sabia que queria amá-la mais que tudo. Aquela
criança, mesmo sem saber, trazia-me esperança e felicidade.
Talvez por ela eu até fosse capaz de esquecer tudo e todos que
me prejudicaram.
Enfaixei novamente a barriga, pois não queria ser pega
de surpresa. Estava com muita fome e minha mãe ainda não
havia trazido a minha refeição no quarto. Então, decidi sair e
almoçar no meio de todos. Quando eu já estava pronta para
pegar na maçaneta, minha mãe entrou, trazendo o almoço para
mim.
– Pensei que havia se esquecido de mim! Estou faminta.
Comeria um leão.
– Estava esperando seu pai ir lá para fora com Maxuel.
Ele foi mostrar o novo barco que está ancorado no cais para
Eulália e Maxuel. Imagine: se desencontraram no meio do
caminho porque Eulália quis vir na frente, antes do marido.
– E Pietro, por que não veio me ver? Aquele ingrato não
se lembra mais de que tem outra irmã? Ficou bem de vida e
esqueceu-me, por certo que é isso.
– Não diga sandices. Seu irmão Pietro só chega no trem
de amanhã. – disse ela, colocando minha refeição sobre a minha
mesinha de cabeceira, parecendo não dar muita importância às
minhas lamúrias.
– Sério? Em que horário o trem dele chega?
– Sim, chega no trem de meio-dia.
– Fico tão feliz por saber que ele vem amanhã! Por que
não veio hoje? Aconteceu alguma coisa?
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
144
– Parece que ele vai trazer a noiva com ele. Como ela
mora em Londres, ele foi buscá-la antes. Os pais dela tinham
que dar uma autorização para que ela viesse junto com ele.
Parece que são de uma família muito rica e tradicional de
Londres. Pietro sempre foi um bom moço. Merece ser feliz.
– Quer dizer que está noivo? Meu Deus, o tempo passou
e não percebi. Sinto tantas saudades do meu irmão!
– Sim, o tempo passou para todos nós, Emanuelizia. Mas
você só se preocupou em sentir ódio em seu coração. É por isso
que não percebeu isso ainda. – disse ela, enquanto ajeitava
minha cama.
Sentei-me em um banquinho que ficava ao lado da
mesinha de cabeceira e comecei a comer. Não retruquei com
minha mãe, pois ela estava certa, como sempre. Enquanto
degustava a comida, fiz-lhe uma pergunta que não queria calar
dentro de mim:
– Mãe, por que a senhora hoje mais cedo disse que sabia
de uma coisa que faria Eulália se calar? Isso é sobre mim?
Porque, ser for, quero que me conte.
– Não é nada demais; apenas uma coisa que pode fazer
Eulália ficar mais preocupada com o casamento dela do que com
o seu... Estado delicado, digamos assim.
– E o que eu tenho a ver com essa história? Porque
percebo que tenho muito a ver com isso.
– Eu não deveria contá-la... – disse ela, parando de
recolher a roupa suja.
Sentou-se calmamente à beira da minha cama e
prosseguiu:
– Percebo que se não lhe contar, não vai me dar sossego
nesta vida, não é? Da última vez em que Maxuel veio visitá-la,
quando ele foi embora, ele ficou uma boa parte do tempo na
varanda comigo. Naquele dia ele me confessou que o casamento
Adriana Matheus
145
dele com Eulália não andava bem, que dormem em quartos
separados desde o dia da lua de mel. Ele trata sua irmã apenas
como a progenitora de sua filha e nada mais. Ele me contou que
Eulália, por sua vez, persegue-o com inúmeras acusações e
ciúmes. A vida de Maxuel tornou-se um inferno. Ele diz que
vira e mexe ela toca em seu nome, acusando-a de ser você a
causa de a vida deles não dar certo. Ela a culpa por causa da
praga que lançou naquele fatídico dia, mas essa não é a forma
que usei para conter Eulália.
– E o que a senhora usou para contê-la?
– Maxuel confessou que ainda a ama e que na hora que
você quiser, ele foge com você. Ele veio até a mim para pedir a
minha bênção. Ele disse que iria lhe propor isso. Ele não lhe
comentou nada?
– Não... Acho que sei o porquê: ele me convidou para
caminharmos pela praia. Parecia mesmo estar querendo falar-me
algo, mas eu, como sempre, com essa mania de sempre querer
antecipar as coisas, achando que o que ele queria falar comigo
era sobre ele e Eulália, acabei contando-lhe sobre o meu mau
relacionamento com Henrico e, nesse momento, ele me abraçou,
tentando consolar-me. Foi quando Henrico chegou, ofendendo-
me sem mais e nem menos. Foi aí que Maxuel investiu para
cima dele. O resto a senhora já sabe. Depois desse dia, Maxuel
veio poucas vezes aqui em casa. Mas sempre na sua presença,
ele mal falou comigo novamente e depois sumiu. Achei que ele
não voltou mais porque não queria mais nenhum envolvimento
com aquela história que se passou comigo. Ele comentou
comigo que o casamento dele ia mal. Eu o achei triste, mas
nunca pensei que ele estava disposto a voltar e a fugir comigo!
– Foi melhor assim. Ele tem que tirar da cabeça essa
ideia de querer você só para ele. O que passou e o que está feito,
está feito. O fato é que usei o amor dele por você para conter
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
146
Eulália. Eu disse a ela que se ela não se preocupasse mais com o
casamento dela e com o sentimento que ainda existia entre
vocês, que ela acabaria perdendo o marido. Confesso que ela
ficou furiosa. Queria saber se eu sabia de alguma coisa entre
vocês. Respondi que não havia nada, mas que se ela não parasse
com toda aquela loucura de querer se vingar de você, o
casamento dela acabaria porque ela só estava colocando mais
lenha na fogueira. Eu disse que se ela contasse ao seu pai, você
aceitaria a proposta que Maxuel lhe fizera, pois ele estava
disposto até a assumir o seu filho. Lógico que ele ainda não sabe
disso, mas ela não precisa saber desse pequeno detalhe.
– Mãe, a senhora é cheia de artimanhas... Nunca
imaginaria uma história como esta para me defender de Eulália!
E depois a bruxa sou eu?
– Não sou uma bruxa, mas também não poderia permitir
que sua irmã cometesse mais uma injustiça com você. Ela já
conseguiu o que queria; já é o bastante. Sei que você não é a
filha que sonhei, porque agora carrega esse pecado consigo. –
disse ela, apontado para o meu ventre – Mas não poderia
permitir que seu pai a pusesse para fora de casa por causa das
intrigas de sua irmã. Você ainda é minha filha e não importa
quantos erros tenha cometido. Não vou julgá-la, porque isso só
cabe a Deus, e sei que lhe ensinei tudo corretamente. Tenho
minha consciência tranquila; sei que você não mentiu para mim
quando disse que foi atacada por aquele bandido e seus amigos.
O que temos de fazer agora é tentar esconder ao máximo de seu
pai, porque aí, sim, ficaremos as duas muito encrencadas.
– Obrigada por tudo, mãe, mas tenho que pensar como
faremos quando o bebê nascer. Não consigo dormir direito mais.
Essa situação está me tirando do sério.
– O melhor a fazer é rezar e pedir muito a Deus que faça
seu pai viajar o quanto antes. Fiquei sabendo que tem uma
Adriana Matheus
147
viagem atrasada e que ficarão em terra muito pouco tempo esse
semestre, talvez menos de dois meses. Se isso acontecer,
poderemos dizer que alguém abandonou essa criança em nossa
porta. O fato de ele aceitar ou não já será outra história. Agora,
deite-se um pouco e repouse. Vou levar este prato para a
cozinha e fazer a sala para Maxuel e sua irmã, ou corremos o
risco de seu pai entrar sorrateiramente e ouvir o que falamos.
Encerramos aquela conversa. Deixou-me admirada saber
a esperteza da minha mãe – que, para mim, era até então apenas
uma mulher humilde e submissa, sem voz ativa. Aprendi minha
primeira lição: dar a todos o seu ouvido e a poucos suas
palavras – ou seja, falar somente o que é necessário, quando
assim for necessário.
No dia seguinte, meu irmão Pietro chegou de viagem e
veio nos ver, trazendo consigo a noiva Joaquina. Era uma jovem
muito branca, de olhos azuis e cabelos muito negros, miúda e de
aparência bem frágil. Muito gentil e simpática, ficamos logo
amigas. Não contei a Pietro sobre minha gravidez. Não queria
aborrecê-lo, pois só ficariam uma semana e depois voltariam
para Londres. Aproveitei ao máximo a estadia de Pietro e
conversamos muitas coisas. Ele estava tão feliz! Estava na
faculdade de medicina e estava trabalhando em uma das fábricas
de Maxuel como administrador. No sábado, eu e minha mãe
fomos levá-los à estação de trem. Minha mãe chorou muito ao
vê-los partindo. Meu pai ficou na cidade, enquanto eu e minha
mãe voltamos para casa de charrete. Estava louca para chegar
em casa. O movimento da charrete estava me fazendo muito
mal.
Ao chegarmos em frente de casa, quis ser a primeira a
descer e arrisquei dar um pulinho no chão. Foi quando senti uma
pequena dorzinha ao lado da barriga e percebi que um pingo de
sangue caiu ao chão. Minha mãe correu para dentro comigo,
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
148
sentou-me à poltrona e foi, em seguida, para a cidade, buscar o
médico. Ele chegou meia hora depois com ela. Eu estava
chorando de tanta dor que senti. Imediatamente, ele disse ao ver-
me:
– A senhorita está grávida e como ousa usar essas
faixas? Está prejudicando a criança.
Ele me levou para o meu quarto, fez-me desenrolar as
faixas e fez toques para saber se o bebê estava bem. Tirou o
estetoscópio do ouvido e disse:
– Sua situação é muito delicada e não poderá mais usar
esta faixa amarrando a barriga.
– Mas, doutor, se meu pai souber, vai me matar! Ou o
que é pior: vai me expulsar de casa, serei banida do meio da
minha família, e o que farei? Sem um teto para morar, com uma
criança nos braços, ninguém vai me dar guarida. Serei
considerada uma mundana, e meu pobre filho será mal visto
também. Desculpe, doutor, não consigo ver outra maneira a não
ser continuar enfaixando a minha barriga para que o meu pai
não descubra que estou grávida. Não posso arriscar ser pega de
surpresa antes que meu pai viaje. Eu e minha mãe temos um
plano. Mas, até lá, essa é a única coisa a ser feita.
– Só tenho a dizer que se você não obedecer às minhas
ordens, matará o seu bebê. Quanto ao seu pai, creio que já
deveria tê-lo contado antes. A pior coisa para um homem é a
sensação de ter sido enganado dentro de sua própria casa.
Talvez se a senhorita tivesse lhe contado, teria evitado danos
futuros. Desculpe-me, mas está sendo egoísta com o seu próprio
filho pensando desta forma. Se a senhorita colocar a faixa
novamente, vai perder este bebê. Pense um pouco em seu filho,
senhorita, porque para mim só está preocupada com a reação do
seu pai. A mim não interessam as reações dele em relação à
senhorita. O que me preocupa neste momento é que a senhorita
Adriana Matheus
149
está perdendo muito líquido. Pense um pouco, senhorita: esse é
o preço que terá que pagar por seu erro. Mas o que me importa
agora é a sua saúde e a da criança.
Naquele momento em que eu pensava em qual decisão
teria que tomar, meu pai retornou entrando sorrateiramente no
meu quarto. Ao ver-nos, ele saltou em cima da minha mãe como
um animal enfurecido e raivoso, arrancando-a de perto de mim e
jogando-a ao chão. Ao ver minha mãe ser jogada ao chão como
uma trouxa de roupa suja, arregalei os olhos, porque sabia que
ele viria para cima de mim também. Antes, porém, ele gritou em
alto tom que, por certo, toda a Valença ouviu:
– O que está acontecendo aqui? Eu sabia que havia algo
de errado!
Olhou para a minha barriga, que estava quase desnuda e
prosseguiu:
– Sua infeliz, eu sabia que você me daria essa decepção!
Sua filha do diabo, ele, no mínimo, é o pai desse bastardo que
está carregando aí no ventre.
Ao ver que meu pai partiria para cima de mim, o doutor
segurou-o fortemente, pedindo que eu fugisse do quarto,
enquanto ele tentava conter a fúria do meu pai. Eu ainda sentia
fortes dores abdominais e quase não consegui me levantar.
Mesmo assim, consegui chegar até o corredor. De repente, uma
mão me empurrou pelas costas e caí ao chão, batendo com a
barriga. Não me lembro de muita coisa, só de ver minha mãe
tentando me levantar e o doutor pegando-me ao colo e pondo-
me novamente na cama.
Acordei horas depois e muitas pessoas estavam à minha
volta. Entre elas a parteira, duas escravas da fazenda da senhora
Constância – que vieram ajudar a parteira Serafina –, minha
mãe, o doutor, Maxuel e Eulália. Quando despertei, senti-me
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
150
vazia e apalpei minha barriga. De imediato perguntei, vendo que
aquelas mulheres olhavam-me aterrorizadas:
– O que aconteceu? Onde está o meu bebê?
Todas se entreolharam e minha mãe deixou cair dos
olhos uma lágrima. Mediante aquela situação suspeita, tornei a
repetir a pergunta:
– Onde está o meu bebê? O que aconteceu comigo?
Todas aquelas mulheres saíram uma a uma
sorrateiramente. Inclusive a parteira e o doutor, deixando-me
sozinha com minha mãe. Olhei-a fixamente nos olhos e disse:
– Mãe, há algo de errado aqui e quero saber o que é.
– Filha, você ainda é jovem, linda, e logo terá outra
oportunidade de conhecer um belo rapaz que a fará muito feliz.
Ela começou a chorar, não conseguindo prosseguir com
a conversa. Eu, vendo que algo muito errado estava
acontecendo, chamei aos gritos o doutor, que entrou quase que
imediatamente no meu quarto.
– Quero ver o meu bebê agora! – disse, ao vê-lo.
Ele, porém, aproximou-se de mim e passou a mão sobre
a minha testa, dizendo:
– Sinto muito, minha filha, eu deveria ter dado ouvidos a
você.
– Quero o meu filho aqui perto de mim! O que fizeram
com o meu filho?!
Novamente ele passou a mão em mim. Só que, dessa
vez, nos meus cabelos, dizendo:
– Sinto muito mesmo, mas é impossível que você possa
vê-la. Você tinha razão, era uma menina.
– Por que era? O que houve com o meu bebê? Para
aonde vocês a levaram? Quero que me digam, pois irei buscá-la
imediatamente.
Adriana Matheus
151
Ele, porém, olhou para minha mãe com um olhar de
cumplicidade e disse:
– Não poderá buscá-la, não se lembra do acidente?
– Que acidente? Não sofri nenhum acidente.
– Sim, você sofreu. Tropeçou e caiu com a barriga ao
chão. O seu bebê, infelizmente, não resistiu à queda. Ela teve
uma fratura no crânio.
– Isso é mentira! Não sofri acidente nenhum.
Insisti. Minha mãe enxugou as lágrimas que desciam
pelas suas faces e deu continuidade àquela conversa.
– Você ainda é jovem, filha, e poderá se casar com o
senhor Dantas. Ele é mais velho e não se importará com esse
infortúnio que houve em sua vida.
Minha cabeça começou a girar e comecei a me lembrar
do que realmente houve comigo.
Quando saí do meu quarto, deixei o doutor segurando o
meu pai. Então, quando já estava no corredor, ele me alcançou,
puxando-me pelo vestido. Então, consegui escapar e ele veio em
cima de mim, empurrando-me ao chão. Minha cabeça girava e,
no meio daquele monte de tormentas de imagens e sensações, eu
ouvia de longe o doutor dizendo: “Sinto muito, mas nunca mais
poderá ter outro filho...”. E no meio, junto com a voz do doutor,
a voz da minha mãe também falava comigo “Case-se com o
senhor Dantas; ele não se preocupará com o seu infortúnio...”.
Senti que o meu mundo tinha acabado. As pessoas começaram a
entrar no quarto. Eu as via como formas destorcidas, até vi um
túnel escuro se formar à minha frente e, dentro dele, milhares
de pontinhos de luz brilhavam. Fui caindo... caindo... e não ouvi
e vi mais nada.
No dia seguinte, acordei tremendo de frio, com minha
mãe sentada ao meu lado. Assim que percebeu que me
movimentei na cama, ela disse:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
152
– Que bom que acordou! Estávamos preocupados com
você, minha filha.
– A senhora pode ser que sim, mas o restante... não tenho
certeza.
– Não diga bobagens! Maxuel até se propôs a dormir
aqui. Só não o fez porque sua irmã interveio e o obrigou a ir
para casa, ameaçando-o e proibindo-o de ver a filha.
– E ela deve ter ficado muito feliz ao saber da minha
infelicidade, não é?
– Não, Emanuelizia. Ela sente muito ciúmes de você,
mas se compadeceu com a sua situação. Agora deite mais um
pouco, que irei trazer-lhe algo para comer. Precisa se alimentar
bem. São ordens do doutor, porque perdeu muito sangue.
– Não quero descansar. Quero ver o corpo da minha
filha.
– Deixei por conta do doutor. Ele a levou para que assim
fosse enterrada. Ele não irá contar ao padre que foi um aborto.
Caso contrário, o vigário não irá enterrá-la em solo sagrado. O
doutor irá dizer que a criança nasceu morta e que é de uma de
suas pacientes. Assim, ninguém irá acusá-la de adultério e a
Igreja não vai excomungá-la. Logo você estará melhor e
poderemos conversar sobre o seu futuro. Quero que pense com
carinho na sua união com o senhor Dantas.
– Mãe, não vou me casar com um homem que tem idade
para ser meu avô. Não quero homens de espécie nenhuma em
minha vida. Eu os odeio um a um.
– Não fale assim, filha. Tem que se casar, ou o seu pai
não irá permitir que fique aqui.
– Então, que seja feita a vontade daquele assassino, pois
quero que fique bem claro: não vou me casar contra a minha
vontade.
Naquele exato momento, meu pai entrou, dizendo:
Adriana Matheus
153
– Não quero uma mundana em minha casa. Pegue suas
trouxas e saia daqui imediatamente. Se não o fizer por bem, eu
mesmo jogo suas tralhas no meio da rua.
– Não será preciso. Faço isso com muito gosto, pois não
tenho a menor vontade de permanecer ao lado do assassino do
meu bebê.
– Deveria me agradecer de ter lhe poupado o desgosto de
criar o filho da besta.
– O meu filho nunca foi filho da besta. Era filho de um
homem tão inescrupuloso como o senhor é!
Ele avançou para cima de mim para me agredir, mas foi
detido por minha mãe. Eu o olhei nos olhos e falei:
– Deixe que ele venha, minha mãe, pois não tenho mais
medo dele ou de qualquer outra pessoa. Saiba, meu pai: se o
senhor me encostar a mão, terá que me matar. Caso contrário,
mato o senhor.
Ele arregalou os olhos e respondeu, friamente:
– Não sou mais seu pai! E saia da minha casa do jeito
que está, com a roupa do corpo. Eu a amaldiçoo e a renego
como filha.
– Já sou amaldiçoada porque sou a mulher escolhida para
quebrar a maldição da sua raça maldita. E agora, por sua causa,
sou uma árvore seca. Não precisa me amaldiçoar mais, porque
você me tirou o direito de ser mãe para sempre. Não existe
maldição maior do que essa. Mas escreva uma coisa: mesmo
que nunca mais volte a esta cidade, saberei do seu fim onde quer
que eu esteja. Quero que o senhor morra caído como um
mendigo, e que os cães da rua façam pouco de sua carcaça. Mas
não se preocupe: mandarei flores.
Dizendo isso, vir-me-ei para minha mãe, que estava
chorando, e disse:
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
154
– Não se preocupe, minha mãe, não vou morrer de fome.
Aliás, não vou morrer, porque já estou morta para todos vocês.
De hoje em diante, esqueçam-me.
Fui saindo porta afora, trajando apenas uma única roupa
no corpo que estava coberta de sangue. Minha mãe
acompanhou-me até a porta, perguntando para aonde eu iria.
Respondi-lhe:
– Ficarei uns dias nas cavernas até que possa me
recuperar. Não se preocupe comigo, pois estarei bem. Lembre-
se de mim como eu era antes. Agora esta que aqui está não é
mais a sua filha. Sou outra pessoa de agora em diante.
Ela chorou e implorou para que eu não fosse. Dizia que
iria convencer meu pai a voltar atrás. Mas depois do que ele me
fez e conhecendo-o como eu conhecia, sabia que seria inútil
permanecer e conviver com aquele monstro. Pela primeira vez
em minha vida, eu estava sendo fria. Sei que minha mãe caiu ao
chão desmaiando, mas não olhei para trás. Caminhei muito até
que, por fim, cheguei às cavernas. Elas pareciam sombrias e
tristes. Alguma coisa no ar estava mudando – eu e as cavernas
sabíamos disso. Elas sabiam que eu não era mais uma bruxa, e
sim uma feiticeira do mal.
Estava frio naquele dia e caía uma leve garoa fora das
cavernas – o que me fez sentir mais frio ainda. Revirei os baús
de Eleanor e peguei um manto para me agasalhar. Fui à entrada
das cavernas e peguei umas ostras. Fiz um caldo para me
aquecer do frio. Deitei-me na cama de palha de Eleanor, pois
estava muito cansada. Fiquei fitando o teto. Então, percebi que
as lágrimas rolavam em minhas faces. Imediatamente, passei as
mãos sobre os olhos e levantei-me, dizendo:
– Nunca mais, Emanuelizia, você será fraca de chorar
como uma criança mimada.
Adriana Matheus
155
Peguei o livro de evocações de Eleanor e comecei a ler
sobre como evocar o demônio. Peguei uma pedra e comecei a
traçar no chão aqueles símbolos estranhos. Fiz um círculo
sagrado e a estrela de seis pontas invertida no meio do círculo.
Acendi velas em volta dele e evoquei a besta, dizendo:
– Zholar, rei das trevas, apareça para mim. Invoco-o para
lhe oferecer minha alma em troca de seus favores.
Não precisei implorar muito, pois a besta abriu o chão da
caverna, fazendo a terra tremer. No meio do chão, uma enorme
fenda abriu-se e eis que a besta surgiu em sua forma original:
um enorme bode negro, com um pentagrama de ouro no meio da
testa. Ao ver-me, ele bateu os cascos no chão e deu uma de suas
costumeiras gargalhadas.
– Finalmente a senhora das profundezas implora por
minha ajuda! Em que posso servi-la, minha rainha? –
reverenciou-me.
– Quero vingar-me de tudo e de todos que me fizeram
mal, e sei que somente o senhor poderá me ajudar.
– Sim, minha rainha, mas o que me oferece em troca?
– Minha alma, meu corpo, minha fidelidade.
A besta deu outra gargalhada.
– Sua alma já tenho, minha rainha. Seu corpo não me
será de muita valia. Quanto à sua fidelidade, é inevitável que
seja fiel a mim.
– Então, ofereço-lhe o meu amor.
Novamente a besta riu, respondendo:
– Não seja tola, minha rainha: ninguém nunca me amou.
Sei que isso será impossível.
– Nada é impossível. Dê-me um voto de sua confiança e
mostro-lhe que nunca mais amarei a nenhum outro homem
sobre a Terra, e que todos os dias de minha vida vou trabalhar
para que meu sentimento por você cresça dentro do meu peito.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
156
A besta ficou séria e, após me rodear, falou:
– E o que você quer em troca, minha rainha?
– Juventude eterna. E também quero me vingar de todos
os meus algozes.
– Não tenho o poder de mantê-la viva por toda a
eternidade enquanto estiver sobre a Terra, somente quando
estiver ao meu lado, no inferno. Aí, sim, poderá ser bela e jovem
para sempre. Mantê-la-ei jovem enquanto sua vida lhe for
permitida. Quanto ao resto, que seja feita a sua vontade. Está
disposta a fazer, então, um pacto comigo?
– Sim, estou.
– Sabe qual será o meu preço?
– Sim, sei, e estou disposta a pagá-lo.
– Então, que a partir de hoje sua alma e também sua
matéria pertençam a mim.
Dizendo isso, a besta soprou e o ar que saía de sua boca
cheirava a enxofre e me fez adormecer profundamente. Acordei
no dia seguinte e não estava mais sangrando. Mesmo as
cicatrizes que haviam ficado em meu corpo sumiram por
completo. Minha pele estava mais alva e meus cabelos haviam
crescido uns trinta centímetros e caíam sobre os meus ombros,
com enormes cachos. Eu estava completamente nua e não me
lembrava de absolutamente nada que ocorrera comigo. Sentia-
me mais jovem e forte. Olhei para meus seios e eles também
estavam mudados, grandes. Minhas coxas, minha cintura, todo o
meu corpo havia se modificado. Eu era outra mulher, e pude
conferir isso vendo o meu reflexo nas águas cristalinas dos lagos
que se formavam dentro da caverna. Sorri espontaneamente
quando me vi.
Procurei no baú de Eleanor algo para me vestir. Foi
quando achei um vestido vermelho, cor de fogo, e uma cinta de
coro preta, que estavam colocados em cima de um banquinho
Adriana Matheus
157
propositalmente: a besta havia me deixado um vestido
lindíssimo e sapatos. E ao lado havia uma mesa posta cheia de
guloseimas. Acabei de me vestir e lambuzei-me com tantas
iguarias. Sorri novamente – afinal, não era tão mal servir à
besta, pois ele tratava muito bem os seus adeptos – pensei.
Voltei para o livro de magia e comecei a praticar a magia do
fogo. Era só eu o ordenar que se levantava e, do nada, acendia,
trazendo suas chamas para me aquecer nas noites frias. Fiquei
por muitos dias na caverna e, para a minha proteção, hipnotizei
uma coruja branca. Ela me guiava à noite, através dos seus
olhos. A besta enviou-me um de seus guardiões, um lobo negro.
Ele me trazia caça para que eu me alimentasse. Assim, segui
durante algum tempo, permanecendo ali, naquela caverna, que
me serviu de abrigo enquanto eu colocava meus planos de
vingança em prática.
Houve, porém, certa manhã em que eu estava à beira-
mar, ouvindo o som silencioso do mundo, e senti uma mão
macia pousar levemente em meu ombro direito. Olhei para trás e
era Maxuel, que me fitou perplexamente, dizendo:
– Emanuelizia, o que foi que aconteceu a você? Pensei
que chegaria aqui e a encontraria...
– Caída? Suja, maltrapilha, passando fome? Acho que
você não me conheceu muito bem, meu querido: caio; mas
quando me levanto, corra de mim. – ri.
– A única coisa que vim fazer aqui é trazer-lhe notícias
de sua mãe, que está muito preocupada com você. Mas, pelo que
percebo, você continua arrogante, como sempre foi. Como você
conseguiu se manter todo esse tempo aqui nesta caverna? Você
arrumou algum amante?
Dei uma enorme gargalhada, que ecoou por toda a
encosta. Se fosse em outros tempos, eu o teria esbofeteado. Mas
eu estava aprendendo a debochar da desgraça. Olhei-o
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
158
firmemente, depois de quase me desmanchar de tanto rir,
respondi-lhe da seguinte forma:
– Vamos dizer que tenho um benfeitor que não é deste
mundo e que nada me deixa faltar.
– Então, é verdade: você se transformou em uma bruxa e
fez um pacto com o demônio?
– Nossa, como correm as notícias neste lugar... Quem foi
o mensageiro que lhe contou tão rapidamente essa notícia?
– Como disse, vim trazer notícias de sua mãe, que não
está nada bem de saúde e pediu, mesmo estando em estado débil
por causa da doença, para lhe dizer que a Inquisição está vindo
capturá-la.
– Como? O que há com minha mãe?
– Ela contraiu a peste, como muitos na vila. Sem querer,
ela, em estado débil por causa da febre muito alta, acabou
contando seu segredo a seu pai, que a entregou à Inquisição. Ela
me mandou chamar quando soube do que seu pai havia feito e
pediu para que eu a ajudasse e não deixasse nada de ruim lhe
acontecer. Imediatamente, prontifiquei-me a ajudá-la. Mas, pelo
que percebo, você já tem um protetor.
– Não é bem assim: ele me protege de outra forma.
– Como, por exemplo?
– Não me deixou passar fome até agora. Sou-lhe grata
por ter vindo até aqui me avisar, mas não sei o que fazer. Não
tenho dinheiro para seguir caminho e fugir.
Ele sorriu.
– Agora quem não me conhece é você! Trouxe comigo
um pequeno obséquio que lhe dará a oportunidade de fugir até a
França. Lá, você poderá começar uma nova vida. Paguei um
cocheiro que a levará até a Marselha, onde daqui a dois meses
nos encontraremos.
– Vamos nos encontrar?
Adriana Matheus
159
– Sim. Assim que estiver tudo resolvido aqui, irei para
junto de você e viveremos juntos.
– Mas e sua filha e Eulália?
– Eulália ficará bem de vida, pois deixarei para ela a
fábrica e a casa. Quanto à minha filha, não posso prender-me a
Eulália por causa de uma criança inocente. Minha vida é um
inferno ao lado de sua irmã, e não posso deixar que minha filha
cresça no meio de tantas brigas. Isso não é um ambiente
saudável para ela. Quando ela crescer, escrever-lhe-ei uma carta
contando os motivos pelos quais saí de casa. Tenho certeza de
que ela entenderá.
– Você está mesmo decidido, não é?
– Sim, estou.
– Então, sendo assim, nos veremos em Marselha.
Ele me ajudou a juntar meus objetos e arrumar tudo para
a viagem. Os animais, porém, desapareceram misteriosamente
como se nunca tivessem existido. Na entrada da carruagem que
ele havia conseguido para me levar para a França, beijou-me
pela primeira vez. E foi um beijo diferente, cheio de carinho.
Aquele beijo mexeu comigo, porque eu estava carente.
Voltamos para as cavernas e no amamos. Quando terminamos
de nos saciar, Maxuel novamente levou-me até a carruagem e se
despediu com outro longo beijo. Tudo estaria bem se a besta,
não tivesse percebido meus sentimentos por Maxuel. E garanto,
não ficou nada satisfeito e puniu-me por aquilo.
Eram seis dias de viagem. No terceiro dia, a carruagem
parou fora do costumeiro horário em que parávamos para
almoçar. Achei aquela atitude muito estranha vinda do cocheiro,
que parecia de muita confiança. Estiquei a cabeça para o lado de
fora da carruagem, tentando verificar o que poderia estar
acontecendo. Foi quando o cocheiro abriu de supetão a porta e
puxou-me para fora. Ele roubou o dinheiro que Maxuel havia
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
160
me dado e todo o resto da minha bagagem, só jogando para mim
um pedaço de pão e os livros, que ele julgava não valerem nada
– ou pelo simples fato de não saber ler, o que era mais provável.
Fiquei perdida no meio de uma estrada. Não sabia onde
ela ia dar. Estava no meio do nada, mas, mesmo assim, dei
graças a Deus por ele não ter abusado de mim. Caminhei por
horas a fio até que cheguei a uma pequena província ao norte da
França. E por lá perambulei por dias. Pedi abrigo em uma
taberna e negaram-me. Eu estava cansada e com fome. Foi aí
que uma cortesã, ao ver-me perambulando pelas ruas, parou-me
e disse:
– Olá, pequena! Vejo que está perdida por aqui.
– Sim, estou.
– Parece que não conhece ninguém por essas bandas, não
é?
– Sim, a senhora está certa. Não conheço ninguém.
– Então, precisará de um lugar para ficar, correto?
– Sim, a senhora está correta.
– Mas, para isso, vai precisar trabalhar muito.
– Faço o que for preciso; não sou preguiçosa.
– Com uma cara linda dessas e um corpo desses, não vai
precisar fazer muito. Vai chover homens para você.
– A senhora está falando que terei que me prostituir para
não passar fome?
– Se quer comer e dormir, terá que dar alguma coisa em
troca ou morrerá por essas ruas, minha querida.
– Desculpe, mas não vou fazer esse tipo de coisa. Vou
me ajeitar. Em breve meu noivo vai me achar nessas bandas.
A mulher deu uma enorme gargalhada e disse:
– Seu noivo? Minha pequena, há dias você está
perambulando por essas ruas e até agora o seu noivo não veio
Adriana Matheus
161
buscá-la. Você ainda tem alguma esperança? Minha querida, ele
por certo, se existe mesmo, deve estar com outra.
– Não, ele não sabe que estou aqui.
Contei-lhe a minha história e ela disse:
– Bom, suponhamos que sua historinha triste seja
verdade...
– Mas é, tem que acreditar.
– Suponhamos que ela seja... Creio que precisará comer,
não é? Acho melhor pensar nisso, porque logo não encontrará
mais ninguém que lhe dê um pão para comer. Você ainda pode
conseguir roubar na praça, como a tenho visto fazer, porque está
com as vestes limpas e ainda pode se passar por uma dama. Mas
quando estiver com as vestes sujas e cheirando mal, logo será
repudiada e vagará por essas ruas, como tenho visto muitas
fazerem. As pessoas ainda a olham porque você não se tornou o
opróbrio delas. É assim que funciona a vida: somos o que
podemos oferecer e a aparência que podemos mostrar. Pense
com carinho, minha querida. Afinal, você não estará tirando
nada de ninguém. Muito pelo contrário: estará dando um pouco
de consolo àqueles que estão necessitando. – disse a mulher
fazendo ares de zombaria e seguindo em frente.
Eu estava naquela cidade há dias e até roubar para comer
me vi obrigada a fazer. Fui quase pega por um padeiro enquanto
roubava uma torta. Ela tinha razão: com o tempo, minhas vestes
estariam rasgadas e eu começaria a cheirar mal. Então, acabei
aceitando viver na casa daquela mulher como prostituta. Ela me
ensinou todas as formas de seduzir um homem e todas as
artimanhas de como fazê-los pensarem que estavam deleitando-
se com o meu corpo. Naquela época, isso era muito fácil porque
usávamos muitas saias e alguns homens contentavam-se de pé
mesmo. Com isso, era simples para nós enganá-los. Usei da
magia negra para seduzir cada vez mais homens. Bastava que
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
162
me olhassem nos olhos e estavam rendidos a mim. Não era
preciso roubá-los, pois eles entregavam suas carteiras de boa
vontade com a hipnose.
Os dias foram se passando e fui a prostituta mais
cobiçada daquela província. Muitos nobres procuravam por
meus serviços. Ganhei muito dinheiro, entre outras prendas.
Minha fama correu boa parte da Europa e todos queriam
experimentar dos carinhos da mais nova prostituta de Paris.
Confesso que a maioria daqueles homens nunca tocou realmente
em mim – como citei, valia-me da magia negra e diversas vezes
usei poções para fazê-los adormecer. No dia seguinte, os pobres
coitados acordavam com sensação de terem se deleitado em meu
corpo a noite toda. Só me deitei com os homens que eu escolhia
e pelos quais sentia alguma atração.
O certo é que fiquei tão afamada que, certo dia, um lorde
muito rico de nome Cervantes de La Costa apareceu por aquelas
bandas e quis me conhecer. Preparei-me especialmente para o
afortunado – que apesar de ser um homem de idade avançada,
era limpo e muito rico. Coloquei minha melhor roupa e fui ao
seu encontro. Ao olhar-me nos olhos, o homem ajoelhou-se
mediante a minha beleza e levou-me para o seu castelo, onde fui
descobrir que ele era um conde com muitas terras e muitos bens.
Ele tirou-me da vida em que me encontrava e pediu-me em
casamento. Tornei-me, então, Emanuelizia de La Costa. Fui
preparada para ser apresentada à corte francesa e fui considerada
a mulher mais bonita de toda a corte. Os homens caíam aos
meus pés. Criei em volta de mim um grande círculo de
inimizades femininas, pois as mulheres queriam me matar por
causa de seus maridos. Muitas delas cometeram suicídio por
despeito e raiva de mim. Acreditem ou não, sempre fui fiel ao
meu benfeitor. Mesmo sendo ele um homem de avançada idade,
nunca o traí. Mas sempre me vali de meus poderes para
Adriana Matheus
163
conseguir presentes caríssimos, como joias. Até uma tiara de
diamantes me foi dada por um rei que, ao fitar meus olhos, tirou
da cabeça da própria esposa, colocando-a sobre a minha. A
mulher, enfurecida, deixou o baile onde estávamos.
Seis anos mais tarde, meu querido benfeitor e esposo
veio a falecer devido à idade avançada. Muitos dos meus bens
foram confiscados devido as muitas dívidas de meu marido.
Porém, fiquei com um enorme casarão na França, com vinte e
um quartos, entre toaletes e suítes. Obviamente, escondi todas as
minhas joias para que não fossem a leilão. Meu dinheiro estava
acabando. Eu precisava pagar os empregados e, por me ver
novamente em uma situação muito difícil, percebi que o único
caminho a tomar era montar um cabaré. Não um simples cabaré,
mas o maior cabaré que Paris já tivera. Como o cancã estava na
moda, teríamos muitos shows para divertir os clientes. Resgatei
das ruas muitas mulheres que estavam na mesma situação em
que eu me encontrei um dia. Mulheres renegadas pela
sociedade hipócrita, pessoas que as usavam em surdina e depois
as queimavam como Judas. Ao todo, foram setecentas e
cinquenta mulheres que passaram pelo meu bordel. Muitas delas
encontraram bons homens e acabaram se casando. Outras não
queriam sair do cabaré.
Minha casa vivia cheia e, é claro, eu tinha um sótão onde
eu praticava a magia negra constantemente. Aos poucos, os
boatos de que eu era uma feiticeira poderosa espalharam-se por
toda a Paris e muitas senhoras procuravam-me às escondidas
para obter minhas poções do amor. Muitas dessas mulheres
eram da corte francesa, cuja vida conjugal não andava muito
bem. Muitas delas usavam de minhas poções para seduzirem
jovens mancebos que frequentavam a corte. Geralmente,
mulheres muito feias e mal amadas se valiam da minha magia
para conquistarem seus amantes. Criei diversas poções do amor
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
164
para assim satisfazer a diversas clientes. Com isso, minha casa
vivia cheia de homens elegantes: com suas esposas procurando
cada vez mais amantes jovens, os mais velhos e ricos corriam
para nós. Dinheiro para mim nunca foi problema, mas não mais
trabalhava como prostituta. Eu era a rainha do cabaré, a anfitriã
cujos olhares de cobiça renderam-me muitas joias. Recebia
diariamente diversas propostas, mas nunca cedi. Minhas filhas,
como eu as chamava, trabalhavam em meu lugar e eu sempre
tinha novidades para apresentar aos clientes.
Meus antigos animais retornaram certa manhã. Sumiram
do nada e apareceram do nada. Eu os acolhi como tinha que ser
feito. Meu lobo passou a ser o guardião do cabaré, e minha linda
coruja foi substituída por uma águia que descia e pousava em
meu obro quando eu descia os degraus do cabaré durante as
noites de apresentação. Era fabuloso ouvir os aplausos de todos
e os gritos clamando-me “Viva a rainha do cabaré!
Emanuelizia, nossa rainha!”. Foram dias de muita glória.
Confesso que me sinto orgulhosa não da vida que eu levava,
mas por ter conseguido aquele glamour todo, e também por ter
salvado tantas moças que levavam uma vida de miséria. Sei que
a prostituição não é algo de que se orgulhar, mas tirei muitas
daquelas mulheres de uma vida que sua imaginação jamais
alcançará. A mulher que me acolheu nas ruas, de nome Santiara,
uma cigana velha e uma prostituta em decadência, tornou-se
minha governanta e braço direito.
Como disse, acolhi diversas mulheres. Entre elas, uma
cujo nome era o mesmo da minha mestra na magia: Eleanor.
Adorei encontrar essa mulher, bonita, simpática e acima de tudo
muito inteligente, o que era uma raridade no meu meio. Então,
escolhi-a para ser minha discípula. Foi a maneira que encontrei
de homenagear a minha mestra. Isso foi o maior erro que já
cometi sobre a Terra. Eleanor aproveitou-se de certos regalos
Adriana Matheus
165
que lhe ofereci e tornou-se extremamente autoritária com as
minhas demais filhas do cabaré. Ela era invejosa e queria tomar
o meu lugar de rainha do cabaré. Muitas coisas deixei passar
despercebidas, porque achava que Eleanor ainda era muito
jovem e imatura – por isso, tinha muito que aprender e o tempo
iria transformar seu caráter. Isso foi um terrível engano, pois
uma vez nascida sem caráter, para sempre será uma sem caráter.
Eleanor chegou a roubar minhas joias e, mesmo assim, perdoei-
a.
Os dias passaram e, percebendo que o caráter daquela
jovem não mudava, expulsei-a do cabaré com muita dor no
peito, porque amava minhas meninas de igual forma. Mas era
algo que tinha que ser feito, pois uma maçã podre prejudica
todo o pomar. Só que meu pomar já estava bastante danificado,
porque quando Eleanor saiu, carregou com ela boa parte das
meninas. Havia se formado dentro do cabaré um complô e quase
fui assassinada enquanto adormecia. Fui salva, porém, por uma
jovem recém-chegada que, passando pela porta do meu quarto,
notou movimentos estranhos e entrou, pegando Eleanor com o
travesseiro tentando sufocar-me durante o sono. Mandei
imediatamente trancar Eleanor e suas comparsas. Na manhã
seguinte, fiz uma reunião informando a todas sobre o fato
acontecido. Não entreguei Eleanor à milícia – o que foi outro
erro gravíssimo da minha parte.
Após a expulsão de vinte jovens junto com Eleanor,
tentamos seguir com nossas vidas. Um monarca muito
conhecido e afamado resolveu dar um grande baile dentro do
meu cabaré para seus amigos e também para seu braço direito.
Essa comemoração foi privada e rendeu-me muito dinheiro.
Porém, entre eles havia certo cavalheiro que era amigo e amante
de Eleanor. Ele entrou em minha casa somente para observar
como tudo funcionava e poder ter acesso livre entre nós. Com
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
166
isso, uma emboscada estava sendo tramada pelas minhas costas
e nunca imaginei que Eleanor chegaria a tal ponto.
Certa manhã, acordei com uma de minhas criadas
batendo à porta do meu quarto. Ela parecia agitada. Porém,
levantei a cabeça calmamente, tirando a venda que cobria meus
olhos.
– Posso saber onde é o incêndio?
– Madame, há um senhor lá embaixo. Ele parece muito
precisado de falar com a senhora.
Deitei-me novamente, julgando ser um cliente fora de
hora. Então, falei:
– Diga a ele que a casa só funciona mais à noite, que
espere como todos.
– Madame, ele disse que é um velho amigo da senhora e
que se chama Maxuel. Ele disse que é seu primo, madame.
Levantei a cabeça imediatamente, respondendo:
– Ora, ora, diga-lhe que já desço. Leve-o para o salão e
ofereça-lhe o que ele desejar. Trate-o com carinho. E diga às
meninas que não as quero perto dele.
Vesti um lindo vestido vermelho encarnado com plumas
negras na gola. Prendi meus cabelos em um coque e coloquei a
tiara de diamantes que me foi dada pelo monarca. Quando sua
esposa saiu do palácio aos gritos histericamente, e percebendo
que de mim só conseguiria um sorriso, fez-me dar a ele uma de
minhas beldades. O monarca escolheu para si a mais jovem e a
mais delicada flor da minha casa: Carmélia, uma moça de
dezoito anos, de cabelos ruivos e olhos muito verdes. Sua pele
mais parecia seda, sua voz era de veludo. O monarca, ao vê-la,
apaixonou-se de imediato, mas queria exclusividade. A jovem
concubina passou a ter todos os regalos sonhados que uma
moça poderia ter, mas mantida sobre a minha proteção, pois ele
não podia deixar a rainha, sua esposa. Muitas delas
Adriana Matheus
167
conseguiram esse tipo de apadrinhamento. A maioria não se
casou com seu benfeitor, porque eles eram casados. Cada uma
das minhas meninas tinha uma alcunha. Essa eu chamava de
Esmeralda, por causa dos olhos verdes e da cor de suas vestes.
Outra por quem me afeiçoei muito era uma espanhola de
nome Rosalinda, que sempre se sentava ao meu lado durante os
festejos. Era uma mulher lindíssima que também conseguiu um
apadrinhamento. Porém, seu coração pertencia a um jovem de
origem humilde que nunca a tirou do cabaré por não ter
condições financeiras para sustentá-la. Espanhola, como a
tratávamos, dançava o flamenco como ninguém, girando e
tocando suas castanholas por todo o salão. Muitos homens se
renderam aos seus encantos. Houve até suicídios por sua causa.
Ela era, porém, uma mulher temperamental e de pouco falar.
Quando desejava obter alguma coisa, ninguém a segurava.
Apontei no início da escadaria de mármore branco com
corrimão de ferro negro. Desci calmamente para não ser notada
por Maxuel, que estava de costas. Ele, ao perceber minha
presença, virou-se, olhando-me como se estivesse vendo um
anjo à sua frente. Correu ao meu encontro para me dar a mão,
ajudando-me a descer o último degrau. Estendi a mão direita a
ele. Vendo-o ali, à minha frente, pude perceber como o tempo
havia passado, pois ele estava muito velho e com os cabelos
bem esbranquiçados. Quando tocou minha mão, ele disse:
– Como você está linda! O tempo parece não passar para
você!
– Obrigada... Você continua o mesmo homem gentil de
antes, embora não possa dizer o mesmo de sua aparência...
– São os problemas da vida. Não fui tão afortunado
como você. Mas tem que me contar o segredo por que nunca
envelhece.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
168
Dei uma gargalhada e levei-o para a sala de jantar. Pedi
que nos servissem o melhor da casa. Com a mesa posta, ofereci-
lhe uma taça de champagne e ele, parecendo surpreso,
respondeu:
– A esta hora da manhã, minha prima? Não acha que é
muito cedo para bebermos champagne?
Sorri.
– E desde quando é muito cedo para se beber
champagne? Existe uma regra para se beber o néctar dos
deuses? Desculpe-me, meu querido primo, champagne não se
bebe quando se tem vontade ou com hora marcada: se bebe
quando se pode. – disse isso levantando a taça em um brinde,
que ele não recusou.
Conversamos muito. Ele me contou que ainda estava
com a minha irmã. Ela estava passando maus bocados com a
filha, que havia se tornado amante de um homem casado.
Contou-me, ainda, que ao chegar a Marselha não me encontrou
no local que havíamos combinado. Então, pensou que eu o havia
abandonado e, revoltado, ele se deitou com todas as prostitutas
que encontrou pelo caminho – gastando, assim, até a última
economia que possuía. Uma das prostitutas havia se tornado sua
amante. Ele a levou para viver em sua casa, junto com sua
mulher. Disse que minha mãe havia morrido com a peste, e que
meu pai havia ficado louco e que, por anos, vagou pelas ruas
como mendigo. Acabou morrendo, caído em uma calçada. Os
cães urinavam nele depois de morto... Meu irmão havia se
casado e estava bem. Mas quando soube da vida que eu levava,
não queria saber notícias sobre mim.
Soltei uma gargalhada tão alta que acordei muitas das
meninas.
– Sinto por minha mãe. Porém, quanto à minha irmã e ao
meu pai, tiveram o que mereceram. Quanto a Pietro, sinto por
Adriana Matheus
169
ele também. Espero que tenha uma vida farta e se não quer me
ver, nada posso fazer. Diga-me, o que veio fazer em Paris?
– Vim a negócios e soube da sua fama, que correu até
Valença.
– É mesmo?! Minha nossa, creio que muitas mulheres
devem me odiar por isso, não? Inclusive a sua. – disse
sinicamente.
– Confesso que muitas a odeiam mesmo. E quanto à sua
irmã, às vezes me compadeço dela, pois está passando muitos
problemas com nossa filha.
– Humm... só com a filha? E o que ela acha da amante
que você levou para viver junto a ela?
– Bom, ela trabalha em minha casa. Creio que sua irmã
desconfia, mas não pode falar nada. Até hoje nunca dormimos
juntos.
Novamente soltei uma de minhas gargalhadas.
– Ah, que satisfatório! Quer dizer que depois de você ter
me traído com minha própria irmã, não a tem como esposa em
seu leito? Estou surpresa: o casal parecia tão apaixonado no dia
do casamento, desfilando de mãos dadas na minha frente e
sorrindo debochadamente...
– Não diga isso. Nunca amei sua irmã. Você sabe disso.
Eu teria lhe dado o mundo se você não tivesse escolhido o
caminho que escolheu. Creio que não pode me julgar sendo
você quem é.
– Não julgo ninguém e como pode perceber, não preciso
do seu mundo, pois consegui o meu próprio mundo. – disse isso
abrindo os braços e mostrando tudo ao meu redor.
– Sim, percebo que sim, mas à custa de quê?
– À minha custa. Não devo nada a ninguém. E antes de
falar da minha profissão, saiba que estou nesta vida porque você
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
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é o culpado. Se não tivesse me deixado sozinha com um ladrão,
jamais estaria aqui agora.
– Não a obriguei a ser uma prostituta.
– Antes de me julgar, olhe para você primeiro. Em
minha profissão, somos obrigadas a nos deitar com quem não
amamos para sobreviver. E você, quando se deitou com minha
irmã, o que lucrou com isso? Creio que somos bem parecidos,
não é?
– Minha mulher a acusa de ter jogado praga em nossa
filha, em nossa vida.
– Eu?! Imagine, primo... Não tenho poder para tanto.
Vivo aqui em Paris, como pode ver. Não estou por lá para
induzir sua filha a se deitar com seu amante. Tenha dó, primo!
Creio que não veio de tão longe somente para me criticar e me
acusar levianamente. Ora, francamente, deixe-me em paz! Já
teve o que queria de mim antes, agora se quiser de novo, terá
que pagar e lhe garanto, custo muito caro.
Levantei e saí andando. Ele se levantou imediatamente
quando percebeu que o estava deixando.
– Não vai querer saber notícias de certo cigano? – disse
alto.
Meu semblante mudou e fiquei furiosa.
– O que você sabe daquele crápula?
– Que seu acampamento está aqui, em uma cidadezinha
parisiense. Mas tenho o meu preço para lhe dar tais informações,
pois soube que paga muito bem a seus informantes.
– Pago o que for necessário, mas pensei que você
estivesse bem das finanças.
– Engana-se: estou passando por maus bocados.
– Então, pago. Mas se não for uma informação precisa,
irei atrás de você. Passei muito tempo procurando por esses
homens. Não quero perder mais tempo.
Adriana Matheus
171
– Eles estão acampados na mesma cidade em que você
ficou antes de vir para cá. Porém, o homem que lhe fez mal está
casado com uma francesa não cigana e vive aqui, em Paris.
– É mesmo? Que coincidência... nunca imaginaria!
Levantei-me como uma louca enfurecida, gritando por
Santiara. Ela veio correndo me atender.
– Pague a este senhor o preço que ele cobrar pelos
serviços prestados a mim. Encomenda-me uma coroa de flores,
quero que envie para Valença para o túmulo de meu pai. Depois,
siga para os meus aposentos. Quero falar-lhe imediatamente.
Andei de um lado a outro do quarto, remexendo na pedra
vermelha que Henrico havia me dado e para a qual mandei fazer
um cordão grosso. Aquela pedra o mantinha perto de mim. Era
assim que eu conseguia vê-lo. Só não imaginava que ele
estivesse tão perto! Já sabia que estava com uma mulher. Várias
vezes enfeiticei-a, jogando doenças nela através dos meus
feitiços. Finalmente, Santiara entrou no meu quarto e foi logo
perguntando:
– O que houve, senhora? Nunca a vi de mau humor. Nem
sabia que tinha um pai! Quanto mais que este estivesse morto!
– E não me verá novamente, garanto. Quanto à coroa de
flores, estou apenas cumprindo uma de minhas promessas. Não
quero que toque novamente neste assunto.
– Sim, senhora. Quem era aquele homem? Pois, além de
ter me pedido uma quantia exorbitante, saiu daqui com um ódio
nos olhos...
– É meu primo. Na verdade, ele acha que sou a culpada
por toda a desgraça que acontece na família dele. E também me
culpa por nunca tê-lo escolhido como esposo, depois de tudo o
que ele me fez.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
172
– E isso é verdade? A senhora é culpada por tudo de mal
que acontece com ele? Porque percebo certa mágoa em seu
coração...
– Em parte, sim. Mas se aconteceu tudo conforme ele
diz, é porque houve merecimento.
– E o que a senhora fez ao pobre?
– Nada demais, só uma praguinha aqui, outra ali... Mas
isso não importa agora.
– Sei... Conhecendo-a como conheço, imagino que essa
praguinha fez da vida desse infeliz um inferno.
– Isso não vem ao caso agora! O fato é que ele me trouxe
notícias daquele maldito cigano e de seus comparsas, e daquela
gente maldita... Agora vou destruí-los, um a um.
– Senhora... Não deveria fazer isso com aquela gente.
Afinal, há muitos inocentes entre eles. Lembre-se de que a
senhora mesma disse ter sentido simpatia pelo meu povo um
dia.
– Não me importo, pois ninguém se importou quando eu
era inocente. Agora, se você quer ficar do lado dessa sua raça de
origem, diga-me de uma vez por todas. Assim, saberei com
quem estou lidando. Não admito mais traições entre minhas
filhas.
– Não é nada disso, senhora. Estou e sempre estarei ao
seu lado. Porém, acho que tanto ódio não lhe faz bem. A
senhora é linda, generosa, e guarda o segredo da juventude
consigo. Qualquer homem neste mundo sentir-se-ia honrado de
tê-la como esposa. A senhora, porém, vem rejeitando diversos
pretendentes por causa desse homem e do ódio que sente por
ele. No fundo, acho que a senhora nunca deixou de amá-lo e,
por estar magoada demais, não percebe isso.
– Está louca?! Esse homem é o causador de toda a minha
desgraça. Jurei vingar-me de todos que me fizeram mal e, com
Adriana Matheus
173
certeza, ele não será poupado. É melhor que se cale, pois não
darei ouvidos a nada que venha a falar. Agora vá e chame o
capitão da guarda. Diga-lhe que tenho um favor a pedir. Ele não
me negará, pois tem dívidas comigo.
Santiara saiu pesarosa, mas nada disse para voltar a me
contrariar, pois sabia que eu passaria por cima de quem quer que
fosse para cumprir minha promessa. Algumas horas depois ela
subiu, avisando-me que o capitão da guarda havia chegado.
Desci imediatamente, indo ao seu encontro. Ele era um homem
alto e muito forte. Usava cavanhaque e nutria certa admiração
pela minha pessoa – o que não era novidade, pois a metade da
população masculina francesa também dividia o mesmo
sentimento por mim. Ao ver-me, veio receber-me prazenteiro.
Expliquei exatamente o que eu queria que fosse feito.
Porém, queria olhar nos olhos de cada facínora antes de serem
executados. Dei a ele os motivos para que pudessem ser
acusados. Alguns deles eram levianos, mas não me importei: o
ódio fazia parte da minha alma, eu só via a vingança na minha
frente. Como o capitão da guarda devia-me muitos favores, não
hesitou em atender aquele simples pedido meu. Consegui levar a
fuzilamento três de meus algozes por roubo. Fiz questão de
olhar um a um dentro dos olhos para que soubessem quem foi a
mandante de suas mortes. O plano foi muito bem sucedido e eles
caíram em uma emboscada, sucumbidos pela ambição. Dois
outros foram decapitados em praça pública, acusados de heresia
contra a Igreja, por adorarem ídolos demoníacos. Um foi
queimado vivo por práticas ilegais de magia negra. Mas ainda
faltava Henrico – esse deixei por último. Havia planejado uma
coisa muito especial para aquele crápula. Deixei que a poeira
baixasse por uma semana e, então, fui atrás dele. Descobri o
lugar onde ele morava e comprei a casa diretamente do
proprietário. Então, ele passou a ser meu inquilino. Fiz ele se
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
174
endividar ainda mais em um jogo, pois Henrico tornou-se
viciado em jogos. Um de meus clientes, um banqueiro, ao meu
pedido ofereceu-lhe certa soma exorbitante em dinheiro,
dizendo que não teria pressa para receber o pagamento dele.
Quando Henrico havia gastado todo o dinheiro que possuía em
jogatinas – o que não demorou muito –, apareci em sua casa
com o oficial, o banqueiro e um juiz, que também me devia
favores.
Eram nove horas da noite e eles estavam jantando.
Nunca vou me esquecer do rosto dele ao ver-me! Uma criança
veio abrir a porta. Era uma linda menininha de oito anos, que se
apresentou como Caroline. Em seguida, ela foi chamá-lo a meu
pedido. No instante em que ele me viu, empalideceu e
perguntou:
– Como você?... O que é que você está fazendo aqui?
Como foi que me achou?
– Fico feliz em ver que me reconhece e que está sendo
tão hospitaleiro!
– Saia de minha casa imediatamente! Não tenho nada a
tratar com você.
– Primeiro: não vim visitá-lo, vim a negócios. Segundo,
esta casa é minha e o senhor está devendo seis meses de aluguel,
o que requer que eu o despeje...
– Como esta casa é sua?
– Sim, é minha. Comprei-a de um senhor cujo nome é
Leonel Esteves.
Dizendo isso, estendi-lhe o documento que comprovava
a veracidade de minhas palavras. A mulher dele veio, dando a
mão à pequenina, e perguntou-lhe:
– O que está acontecendo, meu amor? Quem é esta
senhora e de onde você a conhece?
Adriana Matheus
175
Naquele meio tempo, o oficial de justiça entrou também.
Junto a ele, o chefe da guarda, o juiz, dois soldados e o
banqueiro. A mulher dele parecia muito assustada e o abraçou
chorando, querendo saber o que estava acontecendo. Ele, porém,
respondeu da seguinte forma:
– Não estou entendendo nada, querida. Deve haver
algum equívoco. Não conheço essa senhora, e muito menos
esses cavalheiros.
Tomei a frente e disse:
– Deixe que eu refresque sua memória, pois percebo que
o senhor sofre, além de falta de caráter, de perda de memória!
Esse homem aqui presente está sendo procurado pela milícia de
Valença por um crime que aconteceu há cerca de dez anos. Esse
senhor e mais seis de seus comparsas estupraram uma jovem
inocente à beira-mar. Esse homem sem caráter deixou-a ao
relento, à mercê de ser devorada por lobos famintos. Esse
homem está me devendo atualmente seis meses de aluguel, e
também deve uma exorbitante quantia em dinheiro a esse
cavalheiro aqui presente. – apontei-lhes o banqueiro, que
confirmou tudo lhes mostrando as promissórias assinadas por
Henrico.
A mulher afastou-se de Henrico apavorada e tremendo,
parecendo não estar acreditando no que acabara de ouvir.
Depois de muito chorar, ela lhe perguntou:
– Isso que essa mulher contou é verdade? Você teve a
coragem de fazer isso que ela disse? Responda! – disse ela,
ligando os fatos.
– Foi há muitos anos... Eu era um jovem impetuoso e
não pensei que ela ainda estivesse viva.
– Você está me dizendo que essa mulher à minha frente é
a mesma da história? Como você pôde? Você ainda diz que
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
176
pensava que ela estivesse morta? Como pôde fazer tal barbárie?
Você é um monstro! Eu o desprezo!
Sorri em ouvi-la dizendo aquelas palavras. O banqueiro,
naquele exato momento, tomou a frente, dizendo:
– Eu nada tenho a ver com essas discussões familiares.
Estou aqui porque quero receber o que esse homem de nome
Cervantes de Moá me deve.
– Engana-se, senhor banqueiro. Esse homem chama-se
Henrico Gonçalo Lopes. Se ele está usando outro nome, está
cometendo outro crime. – eu disse.
O oficial de justiça tomou a palavras, ressaltando:
– Então, se esse homem casou-se com essa mulher
usando um nome falso, creio que não são casados de verdade.
Isso significa que eles estão vivendo em concubinato, e isto é
crime.
Novamente, interpus-me.
– E digo mais, senhores: ele é um cigano foragido da lei.
Há poucas semanas, um de seus comparsas, antes de morrer na
fogueira, entregou-o, jurando sob confissão que ele é um larápio
e também praticante da magia negra. Pergunte ao capitão da
guarda aqui presente, que não me deixa mentir.
– Sim, é verdade. – confirmou o capitão, já em comum
acordo comigo e com os demais.
Henrico reagiu exasperadamente, como eu esperava.
– Essa mulher está mentindo: nunca roubei ninguém.
Confesso que cometi muitos crimes em minha vida, mas nunca
roubei ninguém e nunca pratiquei a magia negra.
– Então, o senhor confessa que cometeu muitos crimes?
E quem garante que não é também um larápio? – disse o oficial
de justiça.
– E quanto às suas origens, é verdade que o senhor é
mesmo um cigano? – perguntou o juiz.
Adriana Matheus
177
– Sim, é verdade, mas eu...
– E é verdade que o senhor usa um nome falso? –
perguntou o juiz novamente, interrompendo-o.
– Sim, confesso que sim. – disse ele, baixando a cabeça.
– Para mim, parece uma confissão. Portanto, devo
declará-lo preso imediatamente. Junto com você, a esposa, que
talvez ela seja sua cúmplice e também uma bruxa. – disse o
chefe da guarda afirmativamente.
Tomei a frente da conversa e usei de minhas artimanhas,
dizendo:
– Tenho uma proposta a fazer ao senhor Cervantes, ou
seja lá como se chama: se ele aceitar toda a dívida que tem com
o banqueiro e comigo mesma, a dívida moral será sanada.
– Não tenho acordo a fazer com essa mulher.
– Humm... que bonito! Aprendeu a ter orgulho agora?!
Está bem. Então, levem-no e que seja feita a vontade dele.
– Por favor, marido, ouça o que ela tem a nos dizer. Já
não basta tanto sofrimento?! – disse a mulher, temendo que
fossem levados presos.
– Bom, já que alguém aqui teve um pouco de sensatez –
disse eu, abrindo meu leque e circulando pelo ambiente –,
comprometo-me a quitar todas as dívidas desse senhor,
esquecendo-me até da dívida moral que ele tem comigo, e
inclusive prometo negociar sua liberdade com o juiz. Mas exijo
uma coisa em troca.
Todos olharam para mim, pois esse trunfo não tinha
contado a ninguém.
– E o que eu, em minhas poucas condições, posso ter
para oferecer à senhora?
– Senhora condessa, por favor! Exijo que me trate com o
devido respeito que mereço.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
178
Muito a contragosto, Henrico redigiu a frase, pois sabia
que estava em minhas mãos.
– Não vejo em que eu possa estar retribuindo os favores
da senhora condessa.
Os olhares voltaram-se novamente para mim,
transformando-me no centro das atenções. O que na verdade
aquelas pessoas queriam era ver o que eu iria realmente fazer
com Henrico. Vulgarmente falando, elas nada mais queriam do
que ver o circo pegar fogo. Respondi a tal plateia, tão
fervorosa:
– Quero a sua filha para mim. – disse, apontando o leque
fechado para a menininha, que se agarrava à saia da mãe.
Houve um murmúrio de surpresa. Henrico, porém,
relutou, respondendo-me:
– De maneira alguma darei minha filha para você! Isso
está fora de cogitação! A senhora condessa não tem esse direito.
– Bom, meu querido, então não vejo alternativa além de
ter que despejá-lo daqui e entregá-lo à milícia. Com certeza,
daqui a alguns meses será enforcado como ladrão que você é.
Sua esposa e filha viverão nas ruas a pedir esmolas,
logicamente, se sobreviverem aos inquéritos da Inquisição...
Sem contar que sua amada filha, se sobreviver, será usada pelos
piores maus elementos dessa cidade. E, pensando bem, acho que
já vi esta cena antes: a jovem inocente sendo deflorada por maus
elementos... Ou será que foi um pesadelo que ainda não
despertei?
Ouvindo falar aquelas palavras, a mulher de Henrico
jogou-se ao chão, implorando para que eu não levasse a filha
dela. Eu poderia ter cedido a tal cena tão comovente, mas meu
coração estava endurecido pelo ódio! A mulher agarrava-se à
minha saia, implorando e suplicando – o que só me fazia ficar
Adriana Matheus
179
mais antipatizada ainda. Ela, vendo que de nada adiantavam
seus argumentos, disse:
– Senhora, eu a suplico mais uma vez: não faça isso
comigo! Nada tenho a ver com o que houve entre a senhora e
meu marido. Sou uma vítima também, fui enganada até agora.
Eu lhe suplico: não a leve de mim, não posso ter mais filhos.
Empurrei-a com o pé para longe de mim, dizendo:
– Que coincidência: eu também não! Mulher egoísta,
prefere ver a própria filha morrer de fome, perambulando pelas
ruas, do que saber que ela estará a salvo e sendo bem tratada?
– Egoísta? Quem é você para chamar minha esposa
assim? Você vem a nossa casa e exige que ela dê o único bem
que temos para se vingar de mim!
Friamente, respondi-lhe:
– Sua casa? Não, minha casa. Sua esposa? Você nem
sabe qual é o seu nome! Você não passa de um verme mentiroso
e sem caráter. E, se quer saber, estou farta de todos vocês. Que
seja preso e que sua prole pague por seus pecados! Na cadeia,
que você se lembre de cada momento desse dia para saber que,
mais uma vez, você foi o culpado por desgraçar a vida de
alguém. Grite por clemência enquanto estiver sendo enforcado,
vamos ver se alguém virá a seu socorro...
Disse isso e fui saindo porta afora, carregando comigo
meus companheiros, dispostos a emitir um mandado de prisão
para Henrico. Quando eu já estava subindo em minha
carruagem, a mulher de Henrico, aos prantos, puxou-me pelos
babados da saia e falou:
– Por favor, senhora, leve minha filha com você. Não
posso permitir que ela pague pelos erros do pai. Eu a amo mais
que tudo neste mundo e prefiro morrer a vê-la sofrer algum dano
que seja.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
180
– Está louca, mulher? Nunca mais a veremos. – disse
Henrico, gritando com olhos arregalados. Voltei-me calmamente
para ela e disse:
– Você é uma mulher sábia. Dê-me a menina.
Peguei a pequena nos braços. Ela chorava muito e
gritava pela mãe. Subi na carruagem, dizendo:
– Meus advogados procurá-la-ão. Você não passará
necessidades, prometo. E quanto à pequena, não se preocupe:
será tratada como uma princesa.
Como prometido, meus advogados procuraram a mulher,
dando-lhe um obséquio que a manteve pelo resto da vida.
Henrico passou a beber desordenadamente daquele dia em
diante. A mulher, devido à falta que sentia da filha, acabou
enlouquecendo, sendo trancada em um manicômio, onde acabou
os seus dias. Várias vezes encontrei Henrico perambulando
pelas ruas, pedindo esmolas, pois perdeu todo o dinheiro em
jogatinas. A pequena criança cresceu e transformou-se em uma
linda jovem. Passou a ter afeição por mim. Coloquei-a em um
convento para que ela seguisse um caminho religioso, e não o
meu exemplo de vida.
O tempo passou e meus negócios iam muito bem. Eu
tinha tudo o que uma mulher poderia ter – menos um amor.
Havia me vingado de todos, mas no fundo algo dizia que não era
suficiente e que precisava me vingar mais ainda de Henrico.
Então, coloquei-o para limpar as latrinas e o estábulo de minha
casa. Ele já estava em idade avançada e mal se aguentava de pé,
mas eu o humilhava de todas as formas possíveis.
Certa manhã, acordei com um enorme alarido vindo do
andar de baixo. Levantei-me às pressas e, ao chegar ao corredor,
percebi que toda a casa estava em chamas. Tentei descer para
ajudar a salvar minhas meninas, mas o andar também já havia
sido tomado pelo fogo. As chamas aumentavam em uma
Adriana Matheus
181
proporção maior do que o comum. Tentei gritar, mas a fumaça
entorpeceu-me, sufocando-me e fazendo-me desmaiar. Logo as
chamas alcançaram-me e não vi mais nada do que aconteceu.
Acordei em um lugar imundo, onde pessoas maltrapilhas
comiam as próprias fezes. Encontrei Eleanor e ela não podia
falar comigo, apenas rangia os dentes. Vaguei naquele lugar por
muito tempo, clamando por socorro. Mas foi em vão: só
encontrei escuridão e desespero. Estava muito queimada e
minhas feridas estavam cheirando mal, cheias de bichos que me
devoravam viva. A dor era inigualável. Por várias vezes tentei
me matar, mas era em vão: parecia que eu estava condenada a
permanecer eternamente naquele estado. Assim passaram-se os
meus dias, que pareciam meses. E os meus meses pareciam
anos, e os anos nunca findavam... Até que, certo dia, vi uma luz
muito forte e corri para me aproximar e ver quem eram aquelas
pessoas. Até as trevas corriam delas. Estava tão cansada! E
sofrida... naquele momento parecia ser o certo me aproximar
delas.
Eram pessoas sem rostos, porque a luz era muito forte e
não dava para vê-los bem. Vestiam-se de modo simples, com
calça branca de linho e uma túnica branca também de linho.
Eram como anjos, pois se trajavam todos de branco.
Imediatamente, perguntei-lhes:
– Quem são vocês? E como não se sujam neste lugar
maldito e cheio de imundície?
Um deles abriu-me um largo sorriso e falou:
– Somos o socorro e estamos aqui para aqueles que estão
realmente arrependidos. Não nos sujamos porque a sujeira é
uma lembrança das mentes atordoadas pelos delitos que vocês
cometeram.
– Então, leve-me com vocês: estou arrependida do que
fiz.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
182
– Está sendo realmente sincera? – disse o homem com
voz rouca, mas suave.
– Sim, estou. Preciso e quero sair deste lugar.
Imediatamente eles me levaram em uma maca para um
lugar chamado La Paz. Fiquei dias em repouso, em uma espécie
de sono profundo. Nesse sono é como se apagassem de nós todo
o sofrimento, não a memória, mas o sofrimento. Quando voltei a
mim novamente, quis de imediato sair dali e saber onde estavam
minhas meninas e o que houve com elas. Só responderam-me
essa pergunta muito tempo depois, quando eu estava mais
calma. O jovem que Eleanor havia contratado para me
investigar seduziu uma das minhas meninas com promessas e,
certa noite, quando dormíamos, ele levantou-se de madrugada e
abriu a porta para que os demais entrassem e ateassem fogo em
meu cabaré. Fiquei sabendo que Eleanor, minha ex-discípula,
junto com algumas pessoas da Igreja Católica e a esposa do
monarca que me deu a tiara de diamantes, entraram
sorrateiramente durante a noite e atearam fogo em meu cabaré.
Fiquei feliz por saber que a filha de Henrico estava bem,
no convento onde a coloquei. Henrico encarnou-se e sua esposa
também estava na colônia. Eu e a esposa de Henrico falamo-nos
algumas vezes e pedi-lhe perdão. Ela aceitou por eu não ter
levado sua filha a caminho da perdição. Ela era uma mulher de
bom coração. Encontrei minha mãe e meus avós, que muito me
tentaram aconselhar, embora eu não fosse muito adepta a
conselhos.
Certo dia o mesmo homem que foi meu socorrista cujo
nome é Ângelo Wallejo Moralles, disse-me que eu estava
convidada a me reencarnar novamente, mas a escolha tinha que
ser minha. Optei por encarnar-me novamente e cometi os
mesmos erros de outrora, pois me encontrei novamente com
Henrico, perseguindo-o. Mesmo tendo desencarnado primeiro,
Adriana Matheus
183
obsediei-o por muitos anos, fazendo-o cometer inúmeros crimes
e levando-o finalmente ao suicídio. Fui, então, levada a um
julgamento e condenada a vagar pela Terra muitos anos a fio.
Até que me surgiu a oportunidade de ajudar as pessoas. Sou uma
emissária entre os dois mestres, mas vivo no subterrâneo. Se
alguém pedir a um, tenho que conseguir permissão com o outro.
Não faço mal, mas também não faço o bem. Ajudo
somente a quem me for fiel. Sempre peço alguma coisa em
troca, porque sou a rainha dos ciganos e, como tal, somos
mercenários. Sou a rainha dos cabarés, e assim serei lembrada
até que eu tenha conseguido convencer o mestre das trevas a
pedir perdão ao mestre da criação.
Minha rixa com Wallejo é por que ele apostou muito em
mim, arriscou-se para que eu pudesse reencarnar novamente, eu
traí sua confiança, não cumprindo com os desígnios do Cristo.
Eu violei as ordens dos meus superiores, e mesmo reencarnada
fui uma médium relapsa e mercenária. Eu e Wallejo não somos
inimigos. Apenas não falamos a mesma língua. Confesso que
obsediei a pessoa quem vos escreve durante muitos anos, caso
ela não saiba, ela é a reencarnação da Anna Shaara e também a
reencarnação da esposa de Henrico. Hoje trabalhamos juntas e
essa é a minha história...
Se me arrependo de tudo o que fiz? Muito. Mas não
tenho como voltar atrás. Fiz coisas que abalaram as estruturas
do universo. Tudo o que fiz, fiz conscientemente e sabendo que
era errado. Aproveitei-me de meus poderes como bruxa para
valer-me de favores com o mestre das trevas. Magoei muita
gente, fiz muita gente sofrer e chorar. Prostitui-me, embriaguei-
me, prostitui e vendi muitas mulheres, roubei, matei e vivi no
meio do ódio e da perversão. Fui a pior de todas as criaturas,
mas garanto: mesmo estando do lado em que estou, jamais
induzo alguém ao erro. Se alguém disser que faço isso, é
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
184
mentira. Por certo essa pessoa está cheia de obsessores, e posso,
com certeza, dizer: abaixo do pai das trevas existem criaturas
muito piores, criaturas que rastejam a seus pés, criaturas que
falam coisas abomináveis em seus ouvidos. Essas criaturas são
criadas por vocês, seres humanos, que de livre e espontânea
vontade agem contra a lei do Pai Maior. Ninguém os obriga a
fazer nada de errado, assim como nunca fui induzida ou
obrigada a fazer tudo o que fiz... Somos as respostas de tudo o
que praticamos e cometemos de errado. O caminho é livre: siga-
o como bem entender, mas não culpe ninguém pelo erro que
somente você cometeu.
Aqui os deixo saudosamente. Espero que minha história
de vida tenha lhes servido de exemplo para que possam ver que
o ódio e a vingança não são o caminho a se tomar, que o amor
verdadeiro é algo que está muito acima de qualquer poder ou
devaneio que subjuguem a mente humana. Não se pode prender
uma pessoa através dos laços da magia, muito menos obrigá-la a
nos amar de qualquer outra forma. O ser humano é livre e tem o
direito de ir e vir, seja em atitudes, atos ou pensamentos. Se
tentarmos prender alguém de alguma forma é porque não somos
capazes de conquistá-lo. O amor é um sentimento que não se
conquista. Porque quando amamos, por si só já nos rendemos e
nos prendemos a ele. Não precisamos de subterfúgios. Saiba o
que pedir em oração, pois será concedido. Mas muito cuidado:
você pode não estar preparado para pagar o preço. Pensem
nisso!
“Até quando o ser humano viverá de acordo com seus
caprichos? Até que a terra caia, ou até que o céu desça?
Cometemos constantemente erros e crimes contra nossos irmãos
e contra o Pai Maior. Mas será justo, após cometê-los,
pedirmos perdão e logo depois tornar a errar? Prudência, meus
Adriana Matheus
185
irmãos... Está na hora de pararmos para pensar que até mesmo
os anjos do céu cansam-se de ajudar-nos a apagar sempre o
mesmo erro”.
Fim.
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
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Transmissão oral dos ensinamentos ciganos
– O romani é uma língua ágrafa, ou seja, é uma língua
sem idioma e sem forma escrita. Portanto, para sua perpetuação
o romani conta somente com a transmissão oral, de uma geração
para outra, ou seja, de pai para filho. Existem livros de uma
língua que não têm sequer uma apresentação gráfica definitiva,
pois se os ciganos tivessem se originado na Índia, como supõem
muitos estudiosos, teríamos os caracteres sânscritos, mas como
encontramos ciganos em quase todas as partes do mundo, jugo
por mim que o romani pode muito bem ter os caracteres da
escrita russa, egípcia, latina, grega, árabe, espanhola,
portuguesa; entre tantas outras. Ressalto que não é somente o
idioma romani que é passado de geração a geração, toda história
e cultura cigana também são passadas dessa mesma forma para
os seus demais, sendo sempre do mais velho para o mais jovem.
Esse costume entre os ciganos é milenar.
Adriana Matheus
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Pequeno dicionário cigano
Acans: olhos Aruvinhar: chorar Bales: cabelos Baque: sorte, fortuna, felicidade Bato: pai Brichindin: chuva Cabén: comida Cabipe: mentira Cadéns: dinheiro Calin: cigana Calon: cigano Chão : solo Churdar: roubar Dai (ou Bata): mãe Diklô: lenço Dirachin: noite Duvêl: Deus, Nosso Senhor, Cristo Esantardar: prender Lumbre: Fogo Gadjó: não cigano Gajão: brasileiro, senhor Gajin: brasileira, senhora Jalar: ir embora Kachardin: triste Kambulin: amor Murros: lábios Lon: sal Marrão: pão Manzana: maçã Mirinhorôn: viúva
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
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Naçualão: doente Nazar: flor Paguicerdar: pagar Panin: água Paxivalin: donzela Querdapanin: português Quiraz: queijo Raty: sangue Remedicinar: casar Ron: homem Runin: mulher Salamandra: estufa Sunacai: ouro Suvinhar: dormir Tiráques: sapatos Trup: corpo Urai: imperador ou rei Urdar: vestir Vázes: dedos ou mão Xacas: ervas Xinbire: aguardente Xôres: barbas
Adriana Matheus
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Sobre a autora: Nascida em Juiz de Fora em 01/10/1970, onde
reside com seus dois filhos, a autora Adriana Matheus escreve desde os 14 anos de idade. Já participou de diversos concursos de literatura, inclusive de poesias, neste ganhou o prêmio de melhor iniciante, em 1999. Já escreveu doze obras: O Segredo dos Girassóis; Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras, Lendas Urbanas; Histórias dos Orixas, Perseu, o Príncipe dos Heróis; Memórias de um Psicopata; A cigana e a Lua, Doriko; Mary Polask; Nasce um pensador (poemas), Cartas de um Inquisidor, ERA UMA VEZ... (infantil). Sendo que O Segredo dos Girassóis é a que mais se destaca por ser uma obra de fácil entendimento e por envolver o leitor na leitura. O Segredo dos Girassóis ganhou neste ano de 2012 (em julho) o selo de boa escolha e o prêmio de excelência em literatura como reconhecimento da editora BOKESS. A autora publica todas as suas obras pela editora Ixtlan (http://www.editoraixtlan.com. A autora faz parte da Academia Luso Brasileira de Letras da cidade de Juiz de Fora-MG e já concorreu a vários prêmios de literatura, inclusive ao prêmio da Lei Murilo Mendes dessa cidade em 2010. Esse prêmio dá ao autor e à obra a chance de um grande reconhecimento nesse município. Contatos da autora:
http://anairdameuslivros.blogspot.com
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã
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FIM